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Anais do VI Congresso Nacional da FEPODI:

“Pós-Graduação, Desenvolvimento e Tecnologia”

13 e 14 de dezembro de 2018

Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM

Coordenadores:
Felipe Chiarello de Souza Pinto
Valter Moura do Carmo

Organização:
Yuri Nathan da Costa Lannes
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VI Congresso Nacional da FEPODI


“Pós-Graduação, Desenvolvimento e Tecnologia”

A Federação Nacional de Pós-Graduandos em Direito – FEPODI e a


Universidade Presbiteriana Mackenzie, realizaram nos dias 13 e 14 de dezembro de
2018 o VI Congresso Nacional da FEPODI, na cidade de São Paulo-SP, tendo por
objetivos: I - Divulgar as atividades de pesquisa realizadas pelos alunos dos
Programas e de Pós-Graduação e Graduação das Instituições de Ensino Superior do
país, bem como por docentes pesquisadores; II - Promover a integração ensino-
pesquisa-extensão entre os corpos discente e docente, no âmbito da Graduação e
Pós-Graduação; III - Incentivar o intercâmbio com pesquisadores das mais diversas
Instituições de Ensino Superior.
Foram 253 trabalhos submetidos ao evento, os quais passaram por dupla
avaliação cega, sendo que 212 trabalhos foram aprovados para apresentação no
evento, dos quais 172 foram apresentados nos 23 Grupos de Trabalhos: 85 trabalhos
no dia 13 de dezembro e 87 trabalhos apresentados no dia 14 de dezembro. Os
trabalhos aprovados foram submetidos por graduandos, pós-graduandos e
professores de diversas Instituições de Ensino Superior de todas as regiões do Brasil,
na proporção de: 52,9% Sudeste; 16,5% Norte; 14,1% Centro-oeste; 9,4% Nordeste
e; 7,1% Sul.
Participaram da avaliação dos trabalhos 47 Professores Doutores ligados às
principais instituições de ensino, sendo elas: Mackenzie, Unimar, Unicuritiba, UFMS,
estas na correalização do evento, além de professores ligados a outras instituições
como: PUC-SP; UNISAL; UNINOVE; USP-SP; USP-RP; FMU; UNESP; EPD; PUC-
PR; UFS; UNIFIEO; UFBA; UEA; UNIVALE; ESDHC; UFSC.
Estiveram ligadas ao evento ainda instituições como: Conselho Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI e; Associação Nacional de Pós-Graduandos
– ANPG.
Estiveram na Abertura do Evento Prof. Dr. Eng. Benedito Guimarães Aguiar
Neto - Reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Prof. Dr. Felipe Chiarello –
Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Prof. Dr.
Orides Mezzaroba – Presidente do CONPEDI; Aldo Rebelo - Secretário da Casa Civil-
SP e Ex-Ministro da Ciência e Tecnologia; Prof. Me. Yuri Nathan da Costa Lannes –
presidente da FEPODI e; Profa. Flávia Calé – presidente da ANPG.
Nestes anais temos a honra de apresentar os trabalhos aprovados e
apresentados nos Grupos de Trabalhos no VI Congresso Nacional da FEPODI –
Mackenzie.
Esperamos que todos possam aproveitar a leitura.

Yuri Nathan da Costa Lannes – Presidente da FEPODI


Felipe Chiarello de Souza Pinto – Diretor da Faculdade de Direito da Universidade
Presbiteriana Mackenzie

ISBN: 978-85-5505-743-4
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COORDENAÇÃO GERAL
Arthur Bezerra de Souza Junior (Mackenzie/UNINOVE)
Caio Augusto Souza Lara (Dom Helder Câmara/UFMG)
Elisângela Volpe dos Santos (ANPG)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (Mackenzie)
Livia Gaigher Bosio Campello (UFMS)
Mariana Ribeiro Santiago (UNIMAR)
Marianny Alves (UFMS)
Stephanie Dettmer Di Martin Vienna (UNINOVE)
Tais Ramos (Mackenzie/UNINOVE)
Valter Moura do Carmo (UNIMAR)
Vladmir Oliveira da Silveira (UFMS)
Welington Oliveira de Souza Costa (UFMS)
Yuri Nathan da Costa Lannes (FEPODI/Mackenzie)

ORGANIZADORES
Ana Carolyne Barbosa Tutya (UFMS)
Angela Jank Calixto (UFMS)
Eduardo Buzetti Eusteaquio (UNIMAR)
Elisângela Volpe dos Santos (ANPG)
Gustavo Santiago Torrecilha Cancio (UFMS)
Hélder Marcelino (UFES)
Igor Gomes Duarte dos Santos (UFMS)
Leandro André Francisco Lima (UNINOVE)
Lucas Pires Maciel (UNIMAR)
Mariana Amaral Carvalho (UFS)
Marianny Alves (UFMS)
Roberto Kosop (UNICURITIBA)
Stephanie Dettmer di Martin Vienna (UNINOVE)
Thiago Antunes Rezende (UNINOVE)
Wagner Gundim (PUC-SP)
Wellington Oliveira Costa (UFMS)
Yasmin Dolores de Parijós Galende (Centro Universitário do Pará)
Yuri Nathan da Costa Lannes (Mackenzie)

COORDENAÇÃO CIENTÍFICA
Felipe Chiarello de Souza Pinto (Mackenzie)
Valter Moura do Carmo (UNIMAR)

CONSELHO CIENTÍFICO
Álisson José Maia Melo (UNISETI)
Elisaide Trevisam (UFMS)
Eudes Vitor Bezerra (UNINOVE)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (Mackenzie)
Fernando Gustavo Knoerr (UNICURITIBA)
Jonathan Barros Vita (UNIMAR)
Kiwonghi Sebastiam Bizawu (Dom Helder)
Leonardo José Peixoto Leal (UNIFOR/FAVILI)
Livia Gaigher Bosio Campello (UFMS)
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Luc Quonian (Université de Toulon – França)


Lucas Gonçalves da Silva (UFS)
Luciana Aboim Machado Gonçalves da Silva (UFS)
Mariana Ribeiro Santiago (UNIMAR)
Orides Mezzaroba (UFSC)
Rubens Beçak (USP)
Sérgio Braga (UNINOVE)
Suzana Borràs Pentina (URV – Universitat Rovira i Virgili – Espanha)
Valmir Cesar Pozzetti (UFAM/UEA)
Valter Moura do Carmo (UNIMAR)
Viviane Côelho de Sellos-Knoerr (UNICURITIBA)
Vladmir Oliveira da Silveira (UFMS)
Ynes da Silva Felix (UFMS)
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A532
Anais do VI Congresso Nacional da FEPODI [Recurso eletrônico on-line] organização VI
Congresso Nacional da FEPODI – São Paulo;

Coordenadores: Yuri Nathan da Costa Lannes, Felipe Chiarello de Souza Pinto e Valter
Moura do Carmo – São Paulo, 2018.

Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-5505-743-4
Modo de acesso: www.fepodi.org
Tema: Pós-graduação, desenvolvimento e tecnologia

1. Pós-graduação. 2. Desenvolvimento. 3. Tecnologia. I. VI Congresso Nacional da


FEPODI (1:2019 : São Paulo, SP).

CDU: 34
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Sumário

ACESSO À JUSTIÇA........................................................................................................................... 7
DIREITO ADMINISTRATIVO, PREVIDENCIARIO E SEGURIDADE SOCIAL ........................ 61
DIREITO AMBIENTAL, GLOBALIZAÇÃO E SUSTENTABILIDADE I ..................................... 107
DIREITO AMBIENTAL, GLOBALIZAÇÃO E SUSTENTABILIDADE II .................................... 170
DIREITO CIVIL I ............................................................................................................................... 232
DIREITO CIVIL II .............................................................................................................................. 279
DIREITO CONSTITUCIONAL, DEMOCRACIA E CIBERDEMOCRACIA I ............................. 328
DIREITO CONSTITUCIONAL, DEMOCRACIA E CIBERDEMOCRACIA II ............................ 370
DIREITO DO TRABALHO E PROCESSO DO TRABALHO ...................................................... 434
DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO DO CONSUMIDOR E NOVAS TECNOLOGIAS ........ 498
DIREITO INTERNACIONAL ........................................................................................................... 561
DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA I .......................................................................................... 610
DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA II ......................................................................................... 654
DIREITO POLÍTICO E ECONÔMICO ........................................................................................... 703
DIREITO TRIBUTARIO E PROCESSO TRIBUTARIO............................................................... 758
DIREITO, EDUCAÇÃO E METODOLOGIAS DO CONHECIMENTO...................................... 778
DIREITOS DA CRIANÇA, ADOLESCENTE, IDOSO E ACESSIBILIDADE............................ 805
DIREITOS HUMANOS I .................................................................................................................. 846
DIREITOS HUMANOS II ................................................................................................................. 899
DIREITOS HUMANOS III ................................................................................................................ 961
FILOSOFIA E SOCIOLOGIA JURÍDICA/HERMENEUTICA JURIDICA/DIREITO, ARTE E
LITERATURA .................................................................................................................................. 1024
PROCESSO CIVIL ......................................................................................................................... 1096
PROCESSO PENAL ...................................................................................................................... 1152
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Grupo de trabalho:

ACESSO À JUSTIÇA
Trabalhos publicados:

A CONCILIAÇÃO ON-LINE COMO MEIO DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NA ERA


DIGITAL

A INEFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS: UMA ANÁLISE DAS CONCAUSAS DA


LITIGIOSIDADE NO BRASIL

DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DE ACESSO À JUSTIÇA E OS NOVOS


PARADIGMAS ESTABELECIDOS PELA LEI Nº 13.467, DE 13 DE JULHO DE 2017

MULTICULTURALISMO, O ACESSO À JUSTIÇA E A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS


DOS POVOS INDÍGENAS DO ESTADO DO AMAZONAS

O ACESSO À JUSTIÇA DA COMUNIDADE TRADICIONAL RIBEIRINHA NO


ESTADO DO AMAPÁ

O USO CONTRA-HEGEMÔNICO DOS ALGORITMOS: NOVAS PERSPECTIVAS DO


ACESSO À JUSTIÇA

O USO DE MEIOS ALTERNATIVOS PARA A SOLUÇÃO DOS CONFLITOS


TRABALHISTAS E SEUS REFLEXOS NO ACESSO À JUSTIÇA
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A CONCILIAÇÃO ON-LINE COMO MEIO DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NA


ERA DIGITAL
ONLINE CONCILIATION AS A MEANS OF RESOLVING CONFLICTS IN THE
DIGITAL AGE

Karim Regina Nascimento Possato


Samantha Meyer P-flug

Resumo: Os conflitos de interesse na atualidade são caracterizados pela urgência e


pela necessidade de soluções céleres, efetivas e acessíveis que, no mundo atual, são
potencializados pelos meios digitais de comunicação. Nesse contexto, o presente
ensaio, de forma dialética, propõe a estudo da conciliação on-line como Meio
Eletrônico para Solução de Conflitos – MESC, analisando a evolução dos meios
tecnológicos e a sua utilização pela sociedade, para além das questões vivenciadas
no dia-a-dia, de modo a possibilitar seu uso como ferramenta de pacificação de
controvérsias, demonstrando, ao final, suas vantagens, dada a celeridade e
acessibilidade propiciadas por esse método, apesar das desvantagens, inerentes ao
meio de comunicação necessário para o uso dessa plataforma digital.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Resolução de conflitos. Conciliação on-line.

Abstract: Conflicts of interest today are characterized by the urgency and the need for
fast, effective and accessible solutions that, in today's world, are enhanced by digital
means of communication. In this context, this essay, in a dialectical way, proposes the
study of online conciliation as an Electronic Environment for Conflict Resolution -
MESC, analyzing the evolution of technological means and its use by society, in
addition to the issues experienced in the day- to-day, in order to make it possible to
use it as a tool for pacification of controversies, showing, in the end, its advantages,
given the speed and accessibility provided by this method, despite the disadvantages
inherent in the communication medium necessary for the use of this digital platform.
Keywords: Access to justice. Conflict resolution. Online Conciliation.

INTRODUÇÃO

O conflito sempre permeou a vida das pessoas em todos os seus aspectos,


desde o ambiente familiar, escolar, no trabalho etc. Mesmo sozinho, o ser humano
vive em meio ao conflito, ainda que interno, pois suas decisões definem os rumos de
sua própria existência. A vida contemporânea impõe às pessoas, cada vez mais, a
urgência de suas tomadas de decisão ao mesmo tempo em que se assume o risco do
dano (seja material ou emocional) decorrente de um desígnio inadequado.
O consumerismo, por seu turno, acirra as disputas sociais que decorrem do
próprio modelo econômico, pautado no individualismo, característica própria do
contexto atual pós-moderno que determina as dualidades sociais extremas
posicionadas no eixo de valores sociais como a justiça.
Na mesma linha, o utilitarismo desprovido do interesse comum eleva a
consequência judiciosa da solução dos conflitos que, na atualidade, inunda o Poder
Judiciário de processos que, muitas vezes, poderiam ser evitados por meio do
consenso entre os próprios litigantes. Mas, afinal, a imediaticidade e a urgência
cotidiana impedem o cidadão de propor ativamente as resoluções que poderiam
compor o conflito.
9

Nesse mesmo contexto social, a internet e, atualmente, as redes sociais na era


digital, ao mesmo tempo que constituíram fatores de facilitação da vida cotidiana,
afinal, permite-se a resolução de vários dilemas da vida moderna por meio do uso de
eletrônicos, como os smartphones, propulsionaram os conflitos que se estendem
nessas novas/antigas interações.
Nesse contexto, o presente ensaio pretende explorar os meios digitais como
forma de resolução consensual de conflitos, buscando-se, especialmente, o estudo
da conciliação on line como método autocompositivo. Para tanto, a pesquisa
bibliográfica exploratória servirá como amparo ao estudo, que acontecerá de forma
dialética, propondo-se, inicialmente, a resolução on line como meio efetivo de solução
consensual das lides.
Da mesma forma, a identificação das vicissitudes do método on line comporá
antítese com o fim de se estabelecer o parâmetro adequado para se entender as
vantagens e desvantagens do instituto da conciliação com esse formato.

UMA SÍNTESE DO CONFLITO E OS MÉTODOS AUTOCOMPOSITIVOS DE


SOLUÇÃO

De forma geral, o conflito surge quando se reconhece a necessidade de


escolha entre condições mutuamente excludentes. Noutras palavras, ações reputadas
como incompatíveis entre si podem ser originadas a partir de pessoas, coletividades,
ou mesmo nações, gerando, nesse sentido os conflitos interpessoais, intercoletivos
ou internacionais que, por sua vez, podem assumir características destrutivas ou
construtivas, a depender da forma como as partes envolvidas tratam sua solução
(DEUTSCH, 2003, p.29-42).
Nessa linha, a composição consensual como forma de resolução do conflito
assume importante papel na medida em que a prestação jurisdicional se torna cada
vez mais custosa1 e morosa, dada a acentuada jurisdicionalização (DINAMARCO,
2013, p.120), fazendo com que haja cada vez mais processos e cada vez menos
justiça (MANCUSO, 2011, p.58), posto que os juízes se veem asfixiados por tamanha
demanda, impedindo, desse modo, que os processos recebam exame acurado
(COUTO; MEYER-PFLUG, 2013, p.376), levando anos a fio para sua conclusão, o
que representa impedimento material ao acesso à Justiça2, entendido, nesse caso,
como efetivo acesso à jurisdição que, em última análise, pode ser traduzida como
forma de justiça social em sentido amplo, como fundamento da ordem jurídica e
econômica3.
Ademais, a possibilidade de autocomposição também é um instrumento que
promove ao cidadão acesso a uma ordem de valores justa, ou seja, o efetivo acesso
à justiça, na medida em que o próprio cidadão passa a ser garantidor de sua própria
dignidade, caracterizando, assim, o Estado Democrático de Direito (POSSATO;
MAILLART, 2013, p. 115-121).

1
A exemplo da promulgação do novo Código de Processo Civil, imposta pela Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, a suspensão
dos débitos sucumbenciais representam forma de relativização da gratuidade da justiça e podem representar custo que, antes
da vigência da lei federal, não se impunha. Da mesma forma, a reforma trabalhista traduzida pela Lei nº 13.467, de 13 de julho
de 2017, ao estabelecer a sucumbência recíproca, aponta o esvaziamento dos fóruns trabalhistas. No entanto, o sintoma pode
indicar, na verdade, o afastamento da resolução do conflito por meio da jurisdição e o consequente aumento da tensão social
que compõe as relações trabalhistas.
2
Nesse sentido, o acesso à Justiça como um princípio constitucional pode assim ser entendido a partir da interpretação do
artigo 5º, incisos XXXV (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), XXXIV, alínea a
(“são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas [...] o direito de petição aos Poderes Públcos em
defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”), da Constituição Federal.
3
Artigo 170 e 193 da Constituição Federal.
10

Portanto, a promoção da justiça consensual como política pública de resolução


de conflitos4 representa medida efetiva para a busca de uma ordem jurídica justa
pautada com a solução pacífica das controvérsias, em consonância com o teor
preambular constitucional5. Assim, a arbitragem6, a conciliação e a mediação
compõem os métodos não jurisdicionais, consensuais de composição das resoluções
de controvérsias, oportunizando que os atores envolvidos no discurso, participem do
processo contínuo de formação racional de sua vontade individual e de sua opinião,
de modo a estabelecer o lugar comum como o melhor senso de justiça e de
responsabilidade solidária (HABERMAS, 2002, p.37-45).
Nesse sentido, vale ressaltar o valor da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015,
que instrumentalizou a mediação entre os particulares, admitindo, também, a
autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Nota-se, todavia,
que o legislador, ao caracterizar o instituto, não o fez de forma a diferenciar a
conciliação da mediação, juntando ambos sob o viés próprio utilitarista que se
aproxima da conciliação propriamente dita, apontando como princípios orientadores a
imparcialidade do mediador, a isonomia entre as partes, a oralidade, a informalidade,
a autonomia de vontade das partes, a busca do consenso, a confidencialidade e a
boa-fé.
A mediação, enquanto meio autocompositivo de solução de controvérsias,
normalmente se aplica a lides em que a relação entre os litigantes tende a ser
continuada, como as relações de vizinhança, familiares, no ambiente de trabalho,
entre outras. Diferentemente dos conflitos decorrentes de relações de consumo,
comércio etc, em que a relação entre os conflitantes não é de interdependência,
permitindo, então, o enquadramento utilitário do método traduzido pela conciliação
(BRAGA NETO, 201?).
Note-se que a autocomposição de conflitos, nesse sentido, a par da norma
insculpida pelo CNJ, em 2010, por meio da Resolução nº 125, passou a integrar,
também, verdadeira política jurisdicional, como é pontuado no artigo 1º, § 3º, do
Código de Processo Civil (CPC), quando se estabelece que a mediação, a conciliação
e outros meios autocompositivos de solução de conflitos deverão ser estimulados por
todos os operadores do direito que militam no meio jurisdicional.
No entanto, a conciliação assume papel relevante no Poder Judiciário na
medida em que se torna obrigatória a designação de audiência com o escopo
autocompositivo e, a partir de então, a ausência injustificada de uma das partes é
qualificada como ato atentatório à dignidade da justiça, sendo sancionada com multa
e até dois terços da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, nos termos
do artigo 334, § 8º, do CPC.
Paralelamente, a autocomposição extrajudicial também assumiu protagonismo
extrajurisdicional com a Lei nº 13.140/15, especialmente por reservar a instituições
privadas a possibilidade da prática da mediação e da conciliação, admitindo a previsão
contratual para a consecução da mediação.
Nesse seguimento, então, passaram a surgir diversas entidades privadas que
desenvolvem não só a autocomposição extrajudicial, seja pela mediação ou pela

4
Nos termos da Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Dispõe sobre a Política
Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências”.
5
“[...]justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias [...]”. (Preâmbulo da Constituição
Federal, grifou-se)
6
Voltada a litígios patrimoniais, regulada pela Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, a arbitragem constitui instrumento
efetivo alternativo à jurisdição. No entanto, apesar de não ser o foco do presente ensaio, verifica-se que tal instituto tem sido
utilizado como barreira à jurisdição, muitas vezes imposta ao particular em razão de adesão a determinados serviços, como
educação privada, prestação de serviços etc.
11

conciliação, abrindo campo, também, para a informatização do processo em rede, nos


termos do artigo 46 da Lei nº 13.140/15.

O PAPEL DA TECNOLOGIA NAS RESOLUÇÕES DE CONFLITOS

A sociedade mudou com o aparecimento e o avanço dos meios tecnológicos.


Esses meios estão tão enraizados no dia-a-dia que já não se vê caminho sem essas
ferramentas para resolução dos simples problemas diários, para comunicação e, mais
ainda, informação, afinal, a compreensão e percepção do que ocorre no mundo são
constituídas na trama do cotidiano, onde se edifica o ethos cultural que permeia as
relações humanas (HADDAD, 2011, p. 112).
Nesse contexto, como alerta João Carlos Correia (2005, p.40), “a comunicação
surge como fundamento das condições de possibilidade do agir justo o qual parece
irremediavelmente correlacionado com o desenvolvimento crescente das capacidades
comunicativas”.
Essa capacidade de se comunicar vem sendo dinamizada a cada nova
tecnologia que traz em seu bojo a expectativa de desenvolvimento rápido e eficaz que,
por vezes, não se concretiza ou, ainda, se reinventa, surgindo com uma nova
configuração, como no caso do vídeo-telefone que ressuscitou, mais tarde, por meio
dos aparelhos celulares (ECKSCHMIDT; MAGALHÃES; MUHR, 2016, p.63).
Nesse esteio, percebe-se que algumas inovações levam um certo tempo para
se fixar, seja pela espera até que se adquira confiança para o seu uso, como os
aplicativos utilizados para relacionamentos ou compras pela internet ou, ainda, a
incorporação dessas ferramentas até que se torne um costume, situação em que
passam a ser adotadas rapidamente, especialmente as tecnologias voltadas a
smartphones.
Para BAUMAN (2001, p. 17 e 18), o longo esforço para acelerar a velocidade
do movimento teria chegado a seu “limite natural”, o que muitos chamam de “fim da
história” de “pós-modernidade”, “segunda modernidade” ou sobremodernidade, não
existindo mais diferença entre “próximo” e “distante”.
As inovações tecnológicas voltadas à comunicação, especialmente, se
coadunam a essa disposição, permitindo até inferir que, se na medida que,
praticamente, extinguem a distância entre as pessoas, com a mesma régua
aproximam-nas do conflito.
BOAVENTURA (2011, p.26) já pontuava que “[...] o prolongamento no tempo
dos casos ainda estende-se ao quotidiano das pessoas envolvidas, uma vez que estas
não podem pôr o conflito/problema para trás e seguir com as suas vidas”. Todavia, o
paradoxo reside no fato de que, ao contrário, a tecnologia pode e deve buscar a
resolução temporal desses obstáculos. É nessa realidade que surgiu o instituto da
“conciliação on-line”.

A CONCILIAÇÃO ON-LINE

Como já abordado, a conciliação como Método Alternativo de Solução de


Conflito – MASC, encontra-se prevista na Lei nº 13.105/15, novo Código de Processo
Civil, em seu artigo 334, onde se verifica a parte procedimental desse tipo de
audiência. Tal matéria também se localiza disciplinada na Lei nº 13.140/2015 (lei da
12

mediação), posto serem a conciliação e a mediação pautadas na negociação baseada


em princípios”7.
Além disso, vale lembrar a regulação esparsa como a Resolução 125 do CNJ,
Código Civil, artigo 840, Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90, artigos.
5º, inciso IV, 6º, inciso VII, e 107), ou, ainda, a Lei nº 9.099/95, dos Juizados Especiais,
na qual a conciliação se consagrou como princípio jurídico (artigo 2º).
Em março de 2016, durante a 8ª Sessão Plenária Virtual do Conselho Nacional
de Justiça, foi atualizada a Resolução CNJ nº 125/10, por meio de sua segunda
Emenda que, dentre outras deliberações, criou a possibilidade de utilização de
Plataforma On-line para resolução de controvérsias.
O principal foco para utilização dessa ferramenta são os conflitos inerentes a
relação de consumo, área de seguros e os processos de execuções fiscais, além de
previsão, em seu artigo 18, de resolução específica, a ser editada pelo CNJ, na Justiça
do Trabalho.
Vale destacar que a forma de comunicação dentro do processo eletrônico de
solução de conflito ou Método Eletrônico Solução de Conflitos- MESC, é muito
acessível e rápida. Para tanto, basta que o interessado tenha a posse de um
computador, ou até mesmo smartphone, aparelhos necessários para acessar os sítios
eletrônicos disponíveis para essa plataforma, como por exemplo a Câmara de
Conciliação e Mediação “Vamos Conciliar”8, a plataforma “Conciliador On-line”9, a
“Concilie Online”10, dentre outros. Basta que o interessado, pessoa física (consumidor)
ou pessoa jurídica, acione o link próprio, de modo a detalhar a demanda que almejam
resolução e realizar o preenchimento dos dados que, posteriormente, são
encaminhados para um conciliador.
A seguir, haverá possibilidade de diálogo através do chat, oportunidade em que
as partes começarão as tratativas para chegarem a um consenso. Caso isso ocorra,
será emitida uma declaração do acordo. Ao contrário, o sistema disponibilizará um
documento explicitando o “não acordo”.

VANTAGENS E DESVANTAGENS DA UTILIZAÇÃO DE PLATAFORMA DIGITAL NAS


RESOLUÇÕES DE CONFLITOS

Diante das considerações anteriores, inegável o benefício do método


tecnológico em relação à celeridade na resolução de controvérsia por meio de
plataforma digital, considerando a usual demora encontrada na prestação
jurisdicional.
Outra vantagem que pode ser pontuada é a diminuição do custo com o método
em comparação à tutela jurisdicional, posto que, com a utilização da ferramenta
eletrônica, não mais se evidenciam as custas processuais comuns ao Poder
Judiciário, mesmo considerando que há pagamento pelo serviço on-line. Além disso,
deve-se ressaltar a inexistência de gastos com deslocamento, perda do dia no serviço
e disponibilidade para as infindáveis audiências. Da mesma forma, relevante é a
desnecessidade do desconforto e desgaste emocional em encontrar o desafeto, fato
que pode acirrar os ânimos e dificultar o acordo.
Todavia, a comunicação disponível no meio eletrônico possui limitações. Seu
uso se condiciona a cinco níveis distintos: imagens, texto, áudio, vídeo e múltipla

7
Diz-se do processo de discussão conjunta entre as partes a partir dos seus méritos, em busca de um objetivo comum.
(FISHER; URY; PATTON, 2005, p.101)
8
Disponível em: < http://www.vamosconciliar.com/>. Acesso em: 12 out.2018.
9
Disponível em: <http://www.conciliadoronline.com.br/>. Acesso em: 12 out.2018.
10
Disponível em: <https://www.concilie.com.br/>. Acesso em: 12 out.2018.
13

(ECKSCHMIDT; MAGALHÃES; MUHR, 2016, p. 128 e 129). Por esse motivo, a


utilização e o acesso aos equipamentos adequados para implementar todos os níveis
de comunicação pode consistir em fator restritivo a pessoas sem tal capacidade.
Por tudo exposto, nota-se que a conciliação on-line é uma ferramenta acessível
e muito útil, porém, deve ser observado em qual caso, especificamente, deverá ser
utilizada, normalmente nas relações de consumo, área de seguros, comércio e
execuções fiscais.

CONCLUSÃO

Como visto, o conflito nos tempos atuais encontra-se permeado pelas


características da pós-modernidade, para os quais se exigem soluções rápidas, que
atendam a mesma velocidade das relações que se formam e se desfazem no cotidiano
das pessoas.
Nesse sentido, verificou-se que a conciliação, enquanto instituto de resolução
consensual de controvérsias, por possuir caráter utilitário voltado à formalização do
acordo, normalmente em demandas desvinculadas de relações interpessoais
continuadas, adequa-se com maior efetividade nessa modalidade de disputa.
Na mesma linha, atendendo à celeridade requisitada nas relações cotidianas,
a tecnologia digital somou esforço no tratamento das divergências entre particulares
que, aliando-se à conciliação, excetuando-se as restrições de acesso a que podem se
submeter pessoas sem condições de integração digital, compôs método eficiente e
vantajoso na resolução alternativa das lides relacionadas ao direito do consumidor,
seguros, comércio e execuções fiscais.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de


Janeiro: Zahar, 2001.
BRAGA NETO, Adolfo. A mediação de conflitos e suas diferenças com a conciliação.
Conselho Nacional de Justiça, 201?. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/sobre-o-
cnj/composicao/436-acoes-e-programas/programas-de-a-a-z/movimento-pela-
conciliacao/justica-estadual/13366-justica-estadual>. Acesso em 23 out. 2018.
Conciliação, uma cultura de pacificação social do TJMG. Manual do Conciliador
2007/2008.
COUTO, Mônica Bonetti; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. A educação jurídica e
os meios não contenciosos de solução de conflitos. In SILVEIRA, Vladmir Oliveira da;
SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini; COUTO, Mônica Bonetti (org.).
Educação jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013.
CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. SAFE, 2002.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Resolução nº 125, de 29 de novembro
de 2010.
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15

A INEFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS: UMA ANÁLISE DAS CONCAUSAS


DA LITIGIOSIDADE NO BRASIL
THE INEFFECTIVENESS OF SOCIAL RIGHTS: AN ANALYSIS OF THE
CONCUSSIONS OF LITIGATION IN BRAZIL

Jéssica Chaves Costa


Bruno Cristian Gabriel

Resumo: A Constituição Federal de 1988 é caracterizada pela positivação de uma


extensa gama de direitos fundamentais, muitos dos quais ainda padecem de
efetividade e, comumente, são objeto de demandas judiciais. Nesse sentido, o
presente artigo visa averiguar de forma crítica a ineficácia dos direitos fundamentais
sociais consagrados no artigo 6.º da Magna Carta, e em que medida tal situação,
alinhada ao direito de acesso à justiça, também consagrado na Constituição de 1988,
contribui para o quadro da gigantesca litigiosidade que o Poder Judiciário e a ciência
processual vêm enfrentando, e se mostrando incapazes de solucionar, ocasionando
uma morosidade judicial preocupante. Desta feita, esse trabalho analisará o fenômeno
da litigiosidade, sob o viés da judicialização, enquanto consequência da ineficácia dos
direitos fundamentais sociais, como fator contributivo para o atual cenário de crise do
Poder Judiciário.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais Sociais; Litigiosidade; Acesso à justiça.

Abstract: The Federal Constitution of 1988 is characterized by the affirmation of a


wide range of fundamental rights, many of which, still suffer from effectiveness and are
commonly subject to lawsuits. In this sense, this article seeks to critically examine the
ineffectiveness of the fundamental social rights enshrined in article 6 of the Magna
Carta, and to what extent this situation, in line with the right of access to justice also
enshrined in the Federal Constitution of 1988, contributes to the picture of the
enormous litigiousness that the Judiciary Power and the procedural science have been
facing, and shown incapable of solving, causing a worrying judicial slowness. Thus,
this paper will analyze the phenomenon of litigiousness, under the bias of the
judicialization because of the ineffectiveness of social fundamental rights as a
contributory factor to the current scenario of crisis of the Judiciary.
Keywords: Fundamental Social Rights; Litigation; Access to justice.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 trouxe no capítulo II, denominado dos direitos e


garantias fundamentais, em seu artigo 6.º, os chamados direitos fundamentais sociais,
garantindo ao cidadão o direito à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia,
lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência
aos desamparados.
Inserido em um momento de redemocratização, o texto constitucional voltou-se
para o estabelecimento de direitos e garantias dos indivíduos, ademais, inspirada
pelos movimentos de acesso à justiça e, sobretudo, nas conclusões do “Projeto
Florença”, desenvolvido por Mauro Cappelletti, também previu expressamente o
acesso à justiça como um direito e garantia fundamental.
16

A análise acadêmica acerca da eficiência do Poder Judiciário tem sido muito


questionada, dada a morosidade com que os mais de 100 milhões 1 de processos
tramitam junto ao Poder Judiciário. Os impactos sociais e econômicos causados pela
morosidade judicial são gravíssimos e passaram a ser analisados pela academia
como uma temática própria, com especial destaque às nefastas consequências em
relação à demora na prolação da decisão judicial e consequente não efetivação de
direitos legislados.2
Desta feita, se mostra como problema central do presente trabalho a
inefetividade dos direitos fundamentais sociais e em que medida que, atrelados ao
direito de acesso à justiça também consagrado na Constituição Federal, esse
fenômeno contribui para o atual cenário de crise do Poder Judiciário. Importante ainda
salientar, que a academia vem se dedicando com afinco ao longo das últimas
décadas3, a refletir acerca das causas e consequências da morosidade judicial, o que
se justifica a presente pesquisa.
Para tanto, no primeiro capítulo será estudada a evolução histórica do Estado,
com o fim de identificar a transição do Estado Liberal para o Estado do Bem Estar
Social, reconhecendo ainda nesse capítulo a evolução do acesso à justiça atrelada ao
próprio desenvolvimento dos direitos sociais. Uma vez analisada, ainda que
brevemente, a evolução histórica do Estado, passaremos no segundo capítulo a
observar os direitos fundamentais sociais no Brasil e sua inefetividade, abordando a
Teoria da Reserva do Possível, utilizada pelo Poder Público como justificativa para
não efetividade dos direitos sociais. Por fim, o terceiro capítulo irá abordar a leitura de
acesso à justiça no Brasil e a judicialização dos direitos sociais em razão de sua
inefetividade, com vistas a analisar o impacto de tal situação face à crise numérica
enfrentada pelo Poder Judiciário.
Para o bom desenvolvimento desta pesquisa, se utilizará do método hipotético
dedutivo, utilizando-se de pesquisa bibliográfica.

BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO

Nesse capítulo, passamos a analisar brevemente a evolução histórica do


Estado, com vistas a localizar o próprio desenvolvimento da concepção de acesso à
justiça atrelada à garantia dos direitos fundamentais sociais.
Mauro Cappelletti foi um dos juristas que mais dedicou seus estudos ao tema
do acesso à justiça, em especial no denominado “Projeto Florença”. Neste projeto, o
estudioso pode reunir diversas informações acerca das principais barreiras ao efetivo
acesso à justiça, culminando posteriormente na obra clássica e emblemática “Acesso
à Justiça”, escrita conjuntamente com Bryant Garth.
Cappelletti e Garth (1988) identificaram que o conceito de acesso à justiça
sofreu transformação considerável ao longo dos anos, correspondendo tal
transformação a uma mudança equivalente ao estudo e ensinamento do próprio
processo civil. Sustentam ainda que, nos Estados Liberais “burgueses” dos séculos
XVIII e XIX, os procedimentos adotados para solução dos conflitos civis refletiam a
filosofia essencialmente individualista dos direitos. Não se verificava, portanto, a
preocupação do Estado em promover o afastamento da pobreza no sentido legal, ou
1
Em 2015, tramitaram junto ao Poder Judiciário 102 milhões de processos conforme dados do CNJ no relatório Justiça em
Números 2016. Disponível em http://cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros.
2
Dentre várias referências nacionais, destaca-se: AMARAL, 2001 / BARROSO, 2007 / GABBAY; CUNHA, 2012. E dentre as
estrangeiras, YAMIN; GLOPPEN, 2011.
3
É possível citar alguns exemplos, dentre tantos, de referências que são consideradas paradigmáticas nessa temática: REICH,
1965 / COMPARATO, 1986 / DAKOLIAS, 1999 / BARROSO, 2007.
17

seja, a incapacidade que muitos detinham de utilizar plenamente a justiça e suas


instituições, eis que a justiça, naquele sistema, somente poderia ser buscada por
aquele que detivesse condições para enfrentar seus custos.
Portanto, havia naquele momento um distanciamento entre a realidade social,
porquanto a maioria da população se perfazia de pessoas mais humildes, e o próprio
judiciário, acessível tão somente por aqueles com condições de custeá-lo. Contudo,
neste recorte temporal já não cabia mais tal pensamento, isso porque, as ações e as
relações que anteriormente se vivenciavam em um panorama individualista, passaram
a ter caráter mais coletivo, fazendo com que as sociedades modernas abandonassem
a visão individualista dos direitos.
Segundo HABERMAS (2003, p. 129), o Estado Liberal passou a ser insuficiente
em razão dos novos desafios trazidos pela integração social em sociedades
complexas. Por essa razão, já não bastava um Estado que apenas respeitasse a
liberdade individual do indivíduo, na forma de um direito geral e abstrato, mas exigia-
se um Estado que pudesse materializar o direito, garantindo não apenas liberdades
negativas, mas, sobretudo, prestações materiais positivas.
Diante do fracasso do Estado Liberal, no qual os interesses individuais se
sobrepunham aos interesses da coletividade, desencadeou-se a insatisfação das
classes trabalhadoras em razão da miséria crescente. Este é o ponto de partida para
o movimento que tentaria estruturar o Estado cujo objetivo maior seria garantir
materialmente os direitos fundamentais dos indivíduos, por intermédio da intervenção
em áreas que antes eram ignoradas, como saúde, educação e assistência social.
Assim, nasceu então o Estado de Bem Estar Social ou Estado Providência, um
Estado preocupado com o bem estar, organizador da vida e saúde social, política e
econômica, garantidor e protetor da população. Marcado pela quebra do paradigma
trazido pelos Estados Liberais, havendo, portanto, uma mudança do individualismo
para o coletivismo, reconhecendo-se os direitos sociais dos indivíduos e da sociedade
como um todo.
Nessa medida, CAPPELLETTI e GARTH (1988, p. 11) disciplinam:

Entre esses direitos garantidos nas modernas constituições estão os


direitos ao trabalho, à saúde, à segurança material e à educação. Tornou-
se um lugar comum observar que a atuação do Estado é necessária para
assegurar o gozo de todos esses direitos sociais básicos. Não é
surpreendente, portanto, que o direito ao acesso efetivo à justiça tenha
ganho particular atenção na medida em que reformas do welfare state têm
procurado armar os indivíduos de novos direitos substantivos em sua
qualidade de consumidores, locatários, empregados e, mesmo, cidadãos.

Em razão desta nova perspectiva de Estado preocupado em conceder aos


indivíduos novos direitos, os cidadãos passaram a se socorrer mais frequentemente
do Poder Judiciário, face a violação dos direitos assegurados nessa nova realidade.
Assim, verifica-se que o acesso à justiça não é apenas um direito individual
fundamentalmente reconhecido por todos, mas, sobretudo, é o objeto de estudo do
próprio direito processual.
CICHOCK NETO (2009, p. 61-63) salienta ainda:

A expressão “acesso à justiça” engloba um conteúdo de largo espectro:


parte da simples compreensão do ingresso do indivíduo em juízo,
perpassa por aquela que enfoca o processo como instrumento para a
realização dos direitos individuais, e por fim, aquela mais ampla,
relacionada a uma das funções do próprio Estado a quem compete, não
18

apenas garantir a eficiência do ordenamento jurídico; mas, outrossim,


proporcionar a realização da justiça aos cidadãos.

Em um Estado Democrático de Direito, a justiça deve ser acessível a todos,


sendo dever do Poder Judiciário agir em tempo razoável. É dever ainda do Estado, a
facilitação ao cidadão do conhecimento de seus direitos, para que, concatenando
essas ideias, o acesso à justiça seja o meio pelo qual o cidadão possa concretizar tais
direitos.
Desta feita, partindo dessas premissas, verifica-se que o acesso à justiça deve
ser encarado como direito fundamental, pois é através deste que se possibilita ao
cidadão garantir tantos outros direitos fundamentais, assim evidenciando um sistema
que acima de proclamar direitos, busca concretizá-los.

DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NO BRASIL E SUA INEFETIVIDADE

Verificamos no primeiro capítulo desta pesquisa que em razão do fracasso do


Estado Liberal, houve uma quebra de paradigma, passando o Estado a se preocupar
com o indivíduo, transformando-se em um Estado preocupado com a vida e saúde
social, política e econômica, reconhecendo os direitos sociais dos cidadãos e da
própria sociedade.
BONAVIDES (2006, p. 366) aduz que o Estado Social foi constitucionalmente
introduzido no Brasil a partir de 1934, quando inserido no ordenamento princípios
capazes de ressaltar a importância do social. Todavia, foi a Constituição Federal de
1988, editada em um momento crucial de nossa história, marcado pela derrocada da
ditadura e pelo início da redemocratização, que se voltou fortemente ao
estabelecimento de direitos e garantias dos cidadãos com vistas a resguardar a
dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, no Título II, denominado “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”, no capítulo II – “Dos Direitos Sociais”, encontramos o artigo 6.º, o qual
traz o rol dos direitos tidos como sociais: a educação, o trabalho, a moradia, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a
assistência aos desamparados.
Nessa escala, Sarlet, dispõe que:

Os direitos sociais de natureza positiva pressupõem seja criada ou


colocada à disposição a prestação que constitui seu objeto, já que
objetivam a realização da igualdade material, no sentido de garantirem a
participação do povo na distribuição pública de bens materiais e
imateriais” (Sarlet, 2011, p. 282)

Trata-se de direitos constituintes do patrimônio civilizatório de alcance


universal, sendo direito de todos seu gozo e dever do Estado de garanti-los.
Verificando-se ainda que, embora tais direitos sejam universais, estão intrinsecamente
ligados com as pessoas menos favorecidas, sem condições financeiras para arcar
com suas necessidades mais básicas, sendo dever do Estado garantir a dignidade
destas preservadas.
Mas a realidade brasileira está longe do que almejou o constituinte ao
assegurar os direitos fundamentais sociais aos cidadãos, basta verificarmos o estudo
desenvolvido por uma consultoria Britânica em 2011 – Centro de Pesquisa
Econômica e Negócios – que apontou o Brasil como figurando na 84ª posição no
Índice de Desenvolvimento Humano, se nivelando à países extremamente pobres, o
19

que de certo modo é incongruente com o fato de já ter sido o Brasil a 6ª maior
economia do mundo. Tal constatação reflete que o Brasil ainda não conseguiu garantir
aos seus cidadãos sequer direitos mínimos.
Os direitos sociais são direitos tidos como prestacionais e como tal, reclamam
do Estado ações positivas, contudo, sob argumento de escassez orçamentária, são
por vezes não implementados. É indiscutível que a concretização de tais direitos exige
um alto investimento do Estado, servindo a escassez de recursos como alegação para
a impossibilidade de concretização dos direitos sociais, através da chamada teoria da
reserva do possível.
Destarte, Caliendo conceitua a reserva do possível:

A reserva do possível (Vorbehalt dês Möglichen) é entendida como limite


ao poder do Estado de concretizar efetivamente direitos fundamentais a
prestações, tendo por origem a doutrina constitucionalista alemã da
limitação de acesso ao ensino universitário de um estudante (numerus-
clausus Entscheidung). Nesse caso, a Corte Constitucional alemã
(Bundesverfassungsgericht) entendeu existirem limitações fáticas para o
atendimento de todas as demandas de acesso a um direito. (CALIENDO,
2008, p. 200)

A concretização dos direitos sociais necessariamente provoca custo financeiro


para o Estado, não se pode negar. Contudo, a razão de existir do Estado consiste na
realização e alcance de seus objetivos fundamentais, dentre os quais os direitos
sociais encontram-se inseridos, de modo que, a alegação de impossibilidade de seu
cumprimento em função de escassez orçamentária é irrazoável.
Nessa esteira, Canotilho critica tal acepção:

Rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível


(Vorbehalt des Möglichen) para traduzir a ideia de que os direitos sociais
só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos. Um
direito social sob “reserva dos cofres cheios” equivale, na prática, a
nenhuma vinculação jurídica. (CANOTILHO, 2004, p. 481)

A resistência frente à teoria da reserva do possível repousa na concepção de


que os direitos sociais são direitos minimamente consagrados à pessoa humana, sem
os quais haveria inclusive afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana. Logo,
figuram-se os direitos sociais como o mínimo existencial, formado por condições
mínimas e indispensáveis, como prevê a doutrina:

O conceito de mínimo existencial, do mínimo necessário e indispensável,


do mínimo último, aponta para uma obrigação mínima do poder público,
desde logo sindicável, tudo para evitar que o ser humano perca sua
condição de humanidade, possibilidade sempre presente quando o
cidadão, por falta de emprego, de saúde, de previdência, de educação, de
lazer, de assistência, vê confiscados seus desejos, vê combalida sua
vontade, vê destruída sua autonomia, resultando num ente perdido num
cipoal das contingências, que fica à mercê das forças terríveis do destino”
(CLÈVE, 2003, p. 27).

Nesse mesmo sentido, Fiorillo discorre:

Uma vida com dignidade reclama a satisfação dos valores (mínimos)


fundamentais descritos no art. 6º da Constituição Federal, de forma a
exigir do Estado que sejam assegurados, mediante o recolhimento dos
tributos, educação, saúde, trabalho, moradia, segurança, lazer, entre
20

outros direitos básicos indispensáveis ao desfrute de uma vida digna.


(FIORILLO, 2007, p. 67-68).

A LEITURA DO ACESSO À JUSTIÇA E A JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS


SOCIAIS

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu artigo 5.º, inciso


XXXV que “a lei não excluirá do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão”. Segundo
MANCUSO (2015, p. 59) essa garantia constitucional tem merecido uma leitura que
se desloca da realidade judiciária contemporânea, tomando ares completamente
irrealistas. Isto porque, se tem extraído desta redação, garantias, deveres, premissas,
ilações exacerbadas, ou seja, do início ao cabo, se tem extraído premissas que
estimulam sobretudo o demandismo judiciário, transvestindo o direito de ação em
quase um dever de ação.
Destarte, GORON (2011, p. 258-259) pontua que:

O direito de acesso à Justiça foi inscrito em Constituições brasileiras


anteriores. Todavia, sua relevância se apresenta superior na vigente
ordem constitucional, pois a abrangência dos direitos fundamentais como
um todo resultou acentuada, assim como a sua força normativa. Não se
trata de uma exclusividade da experiência constitucional brasileira.
Enfatizam Cappelletti e Garth que “o direito de acesso efetivo tem sido
progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre
os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de
direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua
efetivação reivindicação”. [...]. Assim, tomado como direito fundamental, o
acesso à jurisdição encerra um sentido de estruturação de instituições e
procedimentos capazes de assegurar a proteção de direitos fundamentais
na sua maior amplitude possível, ao mesmo tempo em que lhe reconhece
uma dimensão objetiva que transforma essa ideia de acesso num valor
fundamental para a comunidade.

Não se coloca em dúvida que o processo é instrumento primordial na busca


da efetividade dos direitos, sobretudo em razão de eventual inobservância destes.
Contudo, o que se verifica, é a utilização massificada do Poder Judiciário com o viés
quase exclusivo de trabalhar as consequências do descumprimento dos direitos
assegurados aos cidadãos, sem se preocupar com suas causas.
Assim, uma vez que o Estado, em suas várias esferas e estruturas, não
atende de forma adequada à necessidade de criação do arcabouço necessário à
efetivação destes direitos, conforme SCHWARTZ JÚNIOR (2011), e somado à
conscientização do cidadão acerca dos instrumentos judiciais para demandar a
efetividade destes direitos legislados, os novos procedimentos judiciais e a criação e
organização das Defensorias Públicas que caracterizam o movimento de facilitação
de acesso à justiça referido por CAPPELLETTI e GARTH (1988), cria-se as condições
ideiais para o que FERRAZ (2011, p. 76) chamou de “judicialization of social rights –
the large and growing volume of claims involving the social rights that reach the courts
on a daily basis across Brazil – has achieved significant (and for many, worrying)
proportions”.4

4
Tradução livre: “judicialização de direitos sociais - o grande e crescente volume de ações judiciais envolvendo direitos sociais
que chegam aos tribunais diariamente em todo o Brasil - alcançou significativo (e para muitos, preocupante) proporções”.
21

A situação é grave. Seja pelos altíssimos valores orçamentários envolvidos na


administração dessa gigantesca massa de processos judiciais, quase R$ 80 bilhões5,
seja pelo desestímulo ao cumprimento voluntário de obrigações que a morosidade
proporciona. Outra consequência nefasta é o desatendimento de direitos daquelas
classes sociais ainda sem real acesso ao Poder Judiciário, como destaca
YOSHINAGA (2011). E, finalmente, a necessária crítica à atuação do Estado
enquanto gestor e implementador de direitos, como destaca TAVEIRA (2013).
O desrespeito aos direitos fundamentais, sobretudo em razão da ausência de
políticas públicas para sua implementação, traduz parcela considerável de culpa do
Estado para a ocorrência desta participação efetiva do Poder Judiciário. Isto
demonstra uma ineficiência, e porquê não, desídia do próprio Poder Executivo, o que
por via de consequência acaba por ocasionar numerosas demandas seriais e
repetitivas com o escopo de dar efetividade à direitos fundamentais previstos na
Constituição Federal.

CONCLUSÃO

Pode-se observar que muito embora nossa Constituição Federal de 1988


preveja expressamente os direitos sociais em seu artigo 6.º, estamos longe de
alcançarmos a verdadeira efetividade, mesmo sendo estes considerados como
mínimo existencial. Sob a utilização da teoria da reserva do possível, o Poder Público
enquanto Estado, vem se esquivando de seu dever prestacional, aduzindo a escassez
de recursos para implementação de tais direitos.
Logo, por via de consequência, em razão da completa inefetividade desta
gama de direitos assegurados pelo texto constitucional, atrelado ao próprio direito
fundamental de acesso ao judiciário, é que verificou-se que a judicialização dos
direitos sociais reflete uma enxurrada de processos que visam tutelar aqueles direitos
assegurados no artigo 6.º, sendo considerado, portanto, uma das principais
concausas responsáveis pela crise vivenciada pelo Poder Judiciário, mas aqui
adverte-se que está longe de ser a única, devendo ser entendida tal crise vivenciada
pelo Poder Judiciário como sistêmica, ou seja, de múltiplas causas.

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5
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habitante conforme dados do CNJ no relatório Justiça em Números 2016. Disponível em http://cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-
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dez/jan/fev 2011.
23

DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DE ACESSO À JUSTIÇA E OS NOVOS


PARADIGMAS ESTABELECIDOS PELA LEI Nº 13.467, DE 13 DE JULHO DE 2017
THE CONSTITUTIONAL GUARANTEE OF ACCESS TO JUSTICE AND THE NEW
PARADIGMS ESTABLISHED BY LAW 13467 OF JULY 13, 2017

Adriana Mendonça da Silva


Hilza Maria Feitosa Paixão

Resumo: Investigar os novos paradigmas estabelecidos pela Lei nº 13.467, de 13 de


julho de 2017 e a existência de violação à garantia constitucional de acesso à justiça,
a partir da análise das alterações processuais quanto à mudança dos requisitos para
concessão do benefício da justiça gratuita; pagamento de honorários periciais;
pagamento de custas na hipótese de arquivamento em razão da ausência do
trabalhador à audiência; implementação do modelo de quitação anual do contrato
individual de trabalho; assinatura do termo de quitação anual de obrigações
trabalhistas e inserção de cláusula arbitral em contrato individual para determinados
empregados, na medida em que as modificações legislativas não somente impactam
na garantia de direitos, na precarização das relações de trabalho e na violação de
direitos materiais trabalhistas, mas representam retrocesso social no que diz respeito
à garantia dos direitos sociais e às prerrogativas processuais que facilitam o acesso
aos direitos conquistados pelos trabalhadores.
Palavras-Chave: Acesso à Justiça. Reforma Trabalhista. Processo do Trabalho.

Abstract: Investigate the new paradigms established by Law 13467 of July 13, 2017
and the existence of a violation of the constitutional guarantee of access to justice,
based on the analysis of the procedural changes regarding the change of the
requirements for granting the benefit of free justice; payment of expert fees; payment
of costs in the event of dismissal due to the absence of the employee at the hearing;
implementation of the annual discharge model of the individual labor contract; signing
of the annual disbursement of labor obligations and insertion of an arbitration clause
in an individual contract for certain employees, insofar as legislative changes not only
impact on the guarantee of rights, the precariousness of labor relations and the
violation of material labor rights, but represent a social setback in terms of
guaranteeing social rights and procedural prerogatives that facilitate access to the
rights earned by workers.
Keywords: Access to Justice. Labor Reform. Labor Process.

INTRODUÇÃO

A Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017 (Reforma Trabalhista) trouxe


importantes modificações legislativas na garantia de direitos materiais trabalhistas e
na garantia constitucional de acesso à justiça e pode representar retrocesso social
quanto à salvaguarda dos direitos sociais e à supressão de prerrogativas processuais
que facilitam o acesso aos direitos sociais conquistados pelos trabalhadores.
A análise dos impactos da reforma apontam não somente para o aumento da
precarização das relações de trabalho mas, em relação aos aspectos processuais
relevantes, representa mitigação ao direito constitucional de acesso à justiça,
estabelecido no inc. XXXV do art. 5º da Constituição, em prejuízo aos princípios
peculiares e à autonomia do direito processual do trabalho, em face do direito
processual comum, orientados para a garantia dos direitos sociais.
24

Busca-se investigar as modificações de caráter processuais estabelecidas pela


Lei nº 13.467/17 na legislação trabalhista e que impactam no acesso do trabalhador à
justiça, com ofensa ao direito fundamental à tutela jurisdicional, em negação às
peculiaridades do processo do trabalho e ao princípio da proteção que informa o direito
do trabalho, entre essas alterações destacam-se: requisitos para concessão do
benefício da justiça gratuita, pagamento de honorários periciais, pagamento de custas
na hipótese de arquivamento em razão da ausência do trabalhador à audiência,
quitação anual do contrato individual do trabalho e a possibilidade de inserção de
cláusula contratual de arbitragem para determinados empregados.

O ACESSO À JUSTIÇA E A INAFASTABILIDADE JURISDICIONAL

A Lei nº 13.467/17 impôs alterações processuais que limitam o acesso à justiça.


Declarações Internacionais de Direitos Humanos reconhecem o direito de todo
ser humano a efetiva prestação jurisdicional e a Constituição Federal afirma o direito
de acesso à justiça ao declarar que a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito.
O acesso à justiça é um direito fundamental da cidadania e as modificações
processuais trabalhistas “devem ser compreendidas e aplicadas à luz da atual noção
do direito de acesso à justiça como um direito fundamental, que é condição de
possibilidade do próprio exercício dos direitos sociais” (SOUTO MAIOR e SEVERO,
2017).
O Código de Processo Civil, no art. 3º, repete a redação do inc. XXXV, do art.
5º da Constituição, reforçando o direito de acesso à justiça, que não deve se limitar
ao simples acesso ao judiciário, mas também, à garantia da duração razoável para
satisfação da pretensão processual e obtenção do resultado útil do processo.
O Brasil é signatário da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos de
São José da Costa Rica, que erige o acesso à justiça como uma prerrogativa de
direitos humanos e em seu art. 8º dispõe que toda pessoa tem o direito de ser ouvida
por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, que deve ser
estabelecido anteriormente por lei, com as garantias e dentro de prazo razoável, na
apuração de qualquer acusação penal, ou para que se determinem seus direitos ou
obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer natureza.

Trata-se de uma das garantias mais importantes do cidadão, uma vez que,
modernamente, a acessibilidade ao Judiciário é um direito fundamental de
qualquer pessoa para efetivação de seus direitos. De outro lado, não basta
apenas a ampla acessibilidade ao Judiciário, mas também que o
procedimento seja justo e que produza resultados (efetividade) (SCHIAVI,
2017, p.16).

Vê-se que a reforma trabalhista deixou de implementar melhorias ao processo


do trabalho para garantir avanços nas condições de acesso à justiça pelo trabalhador
e à efetividade da prestação jurisdicional. Isto porque deixou de considerar balizas
constitucionais de acesso à justiça do trabalho e os princípios e peculiaridades
próprias do processo trabalho que asseguram, mesmo ante a hipossuficiência do
trabalhador, a possibilidade do exercício dos direitos sociais, compensando as
desigualdades, considerando que o trabalhador é o litigante mais fraco no processo
do trabalho.

A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DA JUSTIÇA GRATUITA


25

Didier Junior e Oliveira (2008) definem justiça gratuita ou gratuidade judiciária


como a dispensa à parte do adiantamento de todas as despesas, judiciais ou não, que
estão diretamente vinculadas ao processo, assim como a dispensa do pagamento dos
honorários advocatícios. O benefício da justiça gratuita possibilita à parte, com
insuficiência de recursos, postular judicialmente sem ter de arcar com o pagamento
das despesas do processo, assim, o custo do processo não é obstáculo para o acesso
à ordem jurídica (MIESSA, 2018).
Os direitos ao benefício da justiça gratuita e assistência judiciária gratuita estão
previstos no inc. LXXIV do art. 5º da Constituição que prescreve que o Estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
O art. 14 da Lei nº 5.584, de 26 de junho de 1970, estabelece que, na Justiça
do Trabalho, a assistência judiciária a que se refere à Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro
de 1959 será prestada pelo sindicato da categoria profissional a que pertencer o
trabalhador.
O §3º do art. 790 da CLT, com redação dada pela Lei nº 10.537, de 27 de
agosto de 2002, facultava aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais
do trabalho de qualquer instância, conceder, a requerimento da parte ou de ofício, o
benefício da justiça gratuita àqueles que perceberem salário igual ou inferior ao dobro
do mínimo legal, ou declararem, sob as penas da lei, que não estão em condições de
pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família.
A Lei nº 13.467/2017, por seu turno, altera o §3º do art. 790 da CLT e
estabelece a faculdade aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do
trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da
justiça gratuita, àqueles que perceberem salário igual ou inferior a 40% (quarenta por
cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
Conforme §4º do art. 790 da CLT, o benefício será concedido à parte que comprovar
insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo.
As alterações do processo trabalhista no que concerne à concessão do
benefício da justiça gratuita trouxeram interpretações divergentes e suscitaram críticas
quanto à criação de entraves relativos ao acesso do trabalhador à justiça.
Os parâmetros fixados pelo legislador tornam mais rigorosos os critérios para
concessão da gratuidade judiciária na Justiça do Trabalho e evidenciam o paradoxo
de que a ações judiciais propostas na Justiça do Trabalho, tem como fundamento, em
regra, o descumprimento da legislação trabalhista pelo empregador. Neste ponto, sob
a perspectiva material, fere-se a presunção legal da hipossuficiência obreira, que tem
como esteio o princípio da isonomia.
Destaca-se, ainda que, o pagamento de despesas processuais impostas ao
empregado representa a transferência de um ônus que deveria ser suportado pela
reclamada ou pelo próprio Estado, na medida em que é dever do poder público a
garantia da efetividade do direito constitucional de acesso à justiça.
No ordenamento jurídico brasileiro, os microssistemas processuais evidenciam
tratamento mais favorável comparado aos novos parâmetros fixados para o
trabalhador na reforma. O Código de Processo Civil dispõe no §2º e §3º do art. 99,
que o pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na
contestação, na petição para ingresso de terceiro ou em sede recurso, independente
de comprovação. O art. 54 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, com base
nos princípios da informalidade e da oralidade autorizam a gratuidade ampla em 1ª
instância. Microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno
26

porte (art. 8º, §1º, inc. II, Lei nº 9099/95) também estão isentos do pagamento de
despesas processuais.
As normas processuais trabalhistas devem ser examinadas a partir do princípio
da proteção ao trabalhador, não se podendo olvidar que as reclamações trabalhistas
são propostas, como regra, por trabalhadores hipossuficientes que devem ter
garantidos recursos para o amplo acesso à jurisdição. Suscita-se que o legislador
reformista enrijeceu os requisitos para obtenção do benefício da justiça gratuita uma
vez que, anteriormente, bastava a declaração de pobreza prestada pelo trabalhador
para que o benefício fosse concedido.

DO TERMO DE QUITAÇÃO ANUAL DO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO

O art. 507-B da CLT, incorporado pela reforma, prevê a faculdade de


empregados e empregadores, na vigência ou não do contrato de emprego, firmar
termo de quitação anual de obrigações trabalhistas, perante o sindicato dos
empregados da categoria. A introdução da figura jurídica da quitação anual representa
alteração que envolve direito material e que impacta no acesso à justiça do
trabalhador.
Conforme o parágrafo único do artigo 507-B, o termo de quitação anual,
estabelece a discriminação das obrigações de dar e fazer cumpridas mensalmente e
a declaração do empregado, uma vez firmado o termo, dá eficácia liberatória às
parcelas nele especificadas. É documento, apresentado ao sindicato da categoria do
empregado, em que consta a discriminação de todos os pagamentos recebidos pelo
trabalhador no ano anterior, portanto, comprova o cumprimento das obrigações
decorrentes do contrato de trabalho.
O termo dificulta que o trabalhador posteriormente questione o pactuado
porque tem eficácia liberatória das parcelas especificadas e objetiva para o
empregador, reduzir o número de reclamações trabalhistas, porque se o empregado
assinou, anuiu quanto aos pagamentos discriminados, não podendo reclamar na
Justiça do Trabalho quanto às parcelas discriminadas, deste modo, acaba-se por
violar direitos sociais de proteção constitucional, impedindo o acesso à justiça.
O contexto atual é de crise financeira e econômica e elevado índice de
desemprego, não se podendo desconsiderar a subordinação do empregado ao
empregador e a forte pressão econômica existente entre as partes, de modo que o
trabalhador (mesmo com vício de vontade) concordará em dar a quitação anual das
verbas não recebidas para garantir o seu emprego.
A criação do termo de quitação anual de obrigações trabalhistas representa
uma estratégia do legislador de obstar a atuação da Justiça laboral quanto à
reclamação de créditos trabalhistas que, segundo o disposto no inc. XXIX do art. 7º
da Constituição, pode ser realizada pelo trabalhador até 2 (dois) anos contados do
término do contrato, já que a assinatura do termo representa uma quitação antecipada
de verbas não adimplidas e pode ser utilizada como prova contra o empregado em
eventual ação judicial.

PAGAMENTO DE CUSTAS NA HIPÓTESE DE ARQUIVAMENTO EM RAZÃO DA


AUSÊNCIA DO TRABALHADOR À AUDIÊNCIA

O pagamento de custas, na hipótese de arquivamento, em razão da ausência


do trabalhador à audiência, representa mais uma barreira ao acesso do trabalhador à
justiça. Em relação à Lei nº 13.467/2017, o §2º e o §3º do art. 790 da CLT introduzem
27

importantes alterações na legislação processual e que têm sido entendidas como


obstáculo ao direito fundamental do acesso à justiça.
A ausência do reclamante importa na condenação ao pagamento das custas,
calculadas na forma do artigo 789 da CLT, ainda que beneficiário da justiça gratuita,
salvo se comprovar, no prazo de quinze dias, que a ausência ocorreu por motivo
legalmente justificável. O pagamento das custas é condição para a propositura de
nova demanda.
Depreende-se que a inclusão do dispositivo dificulta o acesso do trabalhador à
jurisdição, na medida em que terá que comprovar o justo motivo de sua ausência, sob
pena de arcar com a despesa, independente da sua possibilidade de pagá-las e,
também, sob pena de não poder ajuizar nova ação.
Desta forma, como demonstrado, o §2º do art. 844 da CLT, acrescido com a
reforma, consubstancia violação ao princípio de acesso à justiça, ao determinar que a
ausência do reclamante na audiência inaugural, além do arquivamento da ação,
ensejará no pagamento de custas, ainda que ele seja beneficiário da justiça gratuita,
evidenciando-se a nítida afronta ao inc. LXXIV do art. 5º da Constituição, que garante
a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos.

DA POSSIBILIDADE DE INSERÇÃO DE CLÁUSULA CONTRATUAL DE


ARBITRAGEM PARA DETERMINADOS EMPREGADOS

O art. 1º da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, dispõe que a arbitragem


é ferramenta para solução de conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. A
arbitragem constitui método alternativo de solução de conflitos. É um procedimento
facultado às partes contratantes, que escolhem uma terceira pessoa para decidir,
segundo um mínimo de regras legais, proferindo uma decisão com força idêntica à de
uma sentença judicial (ALVIN, 2004).
O art. 507-A da CLT autoriza que aos contratos individuais de trabalho, possa
ser pactuada a Cláusula Compromissória de Arbitragem, desde que a remuneração
do empregado seja, pelo menos, duas vezes superior ao limite máximo do Regime
Geral da Previdência Social, desde que por iniciativa do empregado ou mediante a
sua concordância expressa, nos termos previstos na Lei nº 9.307/96. Anteriormente à
reforma, no processo do trabalho, a arbitragem era prevista somente para dirimir
conflitos coletivos, em observância ao disposto no §1º do art. 114 da Constituição
(CORREIA, 2018).
A arbitragem não era admitida para solução dos conflitos individuais
trabalhistas considerando-se a irrenunciabilidade de direitos trabalhistas, a
subordinação e a hipossuficiência do trabalhador face ao empregador, presumindo-se
duvidosa a declaração de vontade de aderir à Cláusula Compromissória.
A alteração legislativa parte do pressuposto que o empregado que recebe
salário duas vezes superior ao Regime Geral da Previdência Social tem capacidade
de manifestar livremente sua vontade, dado o elevado padrão salarial, podendo
consentir quanto a arbitragem privada como método de solução de conflito.
Entretanto, o alto patamar salarial é incapaz de descaracterizar a subordinação
jurídica e econômica própria da relação empregatícia e, estando o empregado
dependente da contraprestação salarial, fácil a imposição da cláusula arbitral pelo
empregador, sem qualquer garantia que essa manifestação de vontade esteja a salvo
de vício de consentimento.
28

Assim, as dificuldades financeiras e econômicas e o alto índice de desemprego


impedirão o trabalhador de opor-se à cláusula compromissória de arbitragem,
sujeitando-se, em caso de descumprimento de contrato por parte do empregador, à
resolução do conflito através da arbitragem, com observância ao disposto na Lei nº
9.307/96.
A adoção da arbitragem privada para solução de conflitos do contrato individual
de trabalho, para o trabalhador que tiver a inciativa ou que expressar concordância
expressa quanto ao método, e que receba salário superior a duas vezes o limite
máximo dos benefícios previdenciários, representa flagrante violação aos princípios
constitucionais de acesso à justiça e do valor social do trabalho pois desconsidera a
hipossuficiência obreira.

DO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS PERICIAIS

A Lei nº 13.467/17 altera a redação do art. 790-B da CLT e estabelece novas


regras em relação ao honorários periciais. Destaca-se que a responsabilidade pelo
pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão objeto da
perícia, ainda que beneficiária da justiça gratuita. O juízo, ao fixar o valor dos
honorários periciais deve respeitar o limite máximo estabelecido pelo Conselho
Superior da Justiça do Trabalho, podendo ser deferido o parcelamento dos honorários
periciais.
Ao juízo é vedada a exigência de adiantamento de valores para a realização de
pericias e, somente quando o beneficiário da justiça gratuita não tenha obtido em juízo
créditos capazes de suportar a despesa com honorários periciais, ainda que em outro
processo, a União responderá pelo encargo. Vê-se que o art. 790-B da CLT mantém
a concepção de que o pagamento dos honorários periciais é responsabilidade da parte
sucumbente, entretanto, passa a prever que mesmo o beneficiário da gratuidade da
justiça terá responsabilidade processual pelo pagamento dos valores referentes aos
honorários ante a sucumbência.
Segundo o §4º do art. 790-B, o beneficiário da justiça gratuita, sucumbente
quanto ao pagamento de honorários periciais, pode ter esse valor abatido de créditos
eventualmente obtidos, ainda que em outros processos.
A alteração processual relativa ao pagamento dos honorários periciais
engendrou polêmicos debates na jurisprudência trabalhista, uma vez que, de acordo
com a disciplina normativa, restringe-se o âmbito de proteção do direito fundamental
de acesso à justiça, oferecendo um tratamento distinto em relação ao processo civil,
com posicionamento menos favorável, considerando o espectro de proteção que deve
ser dada ao trabalhador que demanda em juízo.
No processo civil, a abrangência da gratuidade da justiça quanto ao pagamento
dos honorários periciais, é estabelecida pelo inc. VI, do §1º, do art. 98. De outro modo,
em dissonância ao litigante do processo civil, o legislador reformista estabelece uma
norma com regência menos favorável à principiologia de proteção ao trabalhador, pois
restringe o requerimento judicial de produção de prova técnica, sob pena do
pagamento de honorários.
Por outro lado, deve ser considerado que o reclamante, em regra, é o
trabalhador hipossuficiente, que não pode arcar com o pagamentos de custas e
despesas processuais, deste modo, o pagamento dos honorários periciais constitui
óbice ao livre acesso à jurisdição, na medida que cria entraves para a produção de
provas, dificultando a prestação jurisdicional.
29

Para Correa e Frota (2014), a exigência do pagamento dos honorários ao


trabalhador representa a negação ao livre exercício do direito de ação. Força o
trabalhador a desistir do direito inalienável à prestação jurisdicional, ou mesmo,
implica na renúncia ao direito de receber a completa prestação jurisdicional.
A reforma desconsidera a garantia estabelecida no inc. LXXIV do art. 5º da
Constituição e obstaculiza a produção de provas periciais nas ações que dependem
de prova técnica, a exemplo das ações de indenização por adoecimento, ações de
indenização de acidente de trabalho e requerimento de pagamento de adicionais de
insalubridade e periculosidade.
Desse modo, ainda que o trabalhador tenha direito ao benefício da justiça
gratuita, correrá o risco de arcar com gastos periciais o que servirá como barreira para
o pedido de indenizações por doença, acidentes de trabalho e adicionais de
insalubridade e periculosidade, matérias que exigem a prova técnica, independente
da faculdade do trabalhador de requerê-las.
A Reforma Trabalhista, assim, altera a concepção legal anterior que os
honorários periciais eram devidos pela parte sucumbente, salvo se beneficiária da
justiça gratuita e passa a autorizar a utilização de créditos trabalhistas auferidos em
qualquer processo pelo demandante beneficiário da justiça, ou seja, o beneficiário da
justiça gratuita sucumbente arcará com o pagamento das custas da prova pericial,
caso no mesmo processo ou em qualquer outro, tenha obtido créditos capazes de
suportar essa despesa. A União somente arcará caso não haja qualquer ganho
patrimonial.
A nova redação trazida com a reforma estabelece disposição que dificulta o
acesso do trabalhador à justiça, na medida em que impõe o pagamento de honorários
periciais à parte vencida no objeto da perícia, ainda que seja beneficiária da justiça
gratuita.

CONCLUSÃO

A análise das modificações legislativas trabalhistas advindas com a Lei nº


13.467/17 impactam no direito material trabalhista e no direito constitucional de
acesso à justiça dos trabalhadores, conforme estabelece o inc. XXXV do art. 5º da
Constituição Federal, retirando prerrogativas processuais dos trabalhadores.
O enrijecimento dos critérios para concessão da gratuidade judiciária fere o
princípio legal da hipossuficiência, com transferência do ônus da prova ao trabalhador,
que deverá comprovar insuficiência de recursos na Justiça do Trabalho para
pagamento de custas do processo, sob pena de indeferimento do benefício.
O arquivamento da ação, por ausência do reclamante à audiência, dará ensejo
à sua condenação ao pagamento de custas, ainda que seja beneficiário da justiça
gratuita, constituindo o pagamento condição para a propositura de nova demanda.
A criação do termo de quitação anual de obrigações trabalhistas representa
outra estratégia do legislador de impedir a atuação da Justiça laboral, já que a
assinatura do termo representa uma quitação antecipada de verbas não adimplidas
do contrato e pode ser utilizada como prova contra o empregado em eventual ação
judicial.
A arbitragem privada para solução de conflitos do contrato individual de
trabalho viola o princípio do acesso à justiça e do valor social do trabalho, pois
desconsidera a hipossuficiência obreira. O pagamento de honorários periciais, quando
o trabalhador for sucumbente no objeto da perícia, mesmo que beneficiário da
30

gratuidade da justiça, podendo ter esse valor ser abatido de créditos eventualmente
obtidos, ainda que em outros processos.
Assim, as modificações legislativas da reforma trabalhista criam barreiras ao
acesso à justiça, tornam ainda mais precária as relações de trabalho e violam direitos
materiais trabalhistas, impondo-se a discussão sobre os novos paradigmas
processuais, a fim de ser preservada a autonomia do direito processual do trabalho e
garantia dos direitos sociais, notadamente o direito material trabalhista.

REFERÊNCIAS

ALVIN, José Eduardo Carreira. Comentários à Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307, de


23/9/1996). 2. ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004.
CORREIA, Henrique. Comentários à MP 808/2017. Salvador: Editora Jus Podivm,
2017.
CORRÊA, Antonio de Pádua Muniz. FROTA. Paulo Sérgio Mont’Alverne. Honorários
Periciais: uma barreira significativa ao livre acesso à Justiça do Trabalho. 2014.
Disponível em: <https://www.trt16.gov.br/artigos/HONORARIOS_PERICIAIS.pdf>.
Acesso em: 03. mai.2018
DIDIER, Fredie; OLIVEIRA, Rafael. Benefício da Justiça Gratuita. Aspectos
Processuais da Lei de Assistência Judiciária (Lei Federal nº 1060/50). 2. ed.
Salvador: Editora JusPodivm, 2008.
SCHIAVI, Mauro. A reforma trabalhista e o processo do trabalho: aspectos
processuais da Lei n. 13.467/17.1. ed. São Paulo: LTr Editora, 2017.
MIESSA, Élisson, CORREIA, Henrique, MIZIARA, Raphael, LENZA, Breno. CLT
Comparada com a Reforma Trabalhista. Salvador: Editora Jus Podivm, 2017.
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SEVERO, Valdete Souto. O acesso à justiça sob a mira
da reforma trabalhista: ou como garantir o acesso à justiça diante da reforma
trabalhista. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região,
Curitiba, PR, v. 6, n. 61, p. 57-92, jul./ago. 2017.
31

MULTICULTURALISMO, O ACESSO À JUSTIÇA E A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS


DOS POVOS INDÍGENAS DO ESTADO DO AMAZONAS
MULTICULTURALISM, THE JUSTICE ACESS AND THE VIOLATION OF THE
INDIGENOUS PEOPLES RIGHTS IN THE AMAZONAS STATE

Thayna Augusta da Mata Carvalho


Bianor Saraiva Nogueira Júnior

Resumo: O acesso à justiça no Estado do Amazonas pelos povos indígenas,


enquanto direito fundamental, tem sido diuturnamente violado por não oportunizar a
garantia a uma justiça multicultural. O objetivo do artigo é analisar a violação do direito
de acesso à justiça multicultural no Amazonas em contraste à consolidação do Novo
Constitucionalismo Latino-americano, para tanto, compreenderá o direito de acesso à
justiça de uma perspectiva multicultural, discutirá os desafios de acesso à justiça pelos
povos indígenas no Amazonas e revisitará as principais experiências em matéria de
acesso à justiça pelos povos nativos no quadro do novo constitucionalismo latino-
americano. O presente estudo procedeu uma revisão bibliográfica e documental,
tendo como fonte as produções doutrinárias e a legislação que sustentam o assunto
abordado. A metodologia é dedutiva, por permitir que a partir de uma compreensão
geral do ordenamento jurídico pátrio se parta para a exposição e o entendimento de
uma questão local.
Palavras-chave: Multiculturalismo; Acesso à Justiça; Novo Constitucionalismo Latino
Americano

Abstract: The Amazonas State justice access by indigenous people, as a fundamental


right, has been continuously violated because it does not provide the guarantee of a
multicultural justice. This article purposes an analysis to the justice access right
violation in Amazonas in order to understand the multicultural justice perspective right,
to discuss the indigenous people challenges regarding justice access. This paper will
revisit the indigenous people justice access main experiences in the Latin American
New Constitutionalism framework. This study was performed based on a
bibliographical end documentary review in which the doctrinal production and
legislation were the main investigative resource. The methodology is deductive, since
it allows performing an investigation starting at a legal order general understanding
which drives to a local questions comprehension.
Key-words: Multiculturalism, Justice Access, Latin American New Constitutionalism
framework.

INTRODUÇÃO

A questão multicultural encontra-se hoje presente em todos os países, contudo,


ainda se faz muito necessário o reconhecimento de uma luta enraizada no processo
histórico de formação dos países latino-americanos, os quais passaram por um
processo de conquista e colonização, seguido de uma política de assimilação forçada
e de eliminação da identidade dos povos nativos.
Desse modo, a presente pesquisa objetiva analisar a violação do direito de
acesso à justiça multicultural no Amazonas em contraste à consolidação do Novo
Constitucionalismo Latino-americano, para tanto, compreender-se-á o direito de
acesso à justiça a partir de uma perspectiva multicultural, discutirá os desafios de
acesso à justiça pelo povos indígenas no estado do Amazonas e revisitará as
32

principais experiências em matéria de acesso à justiça pelos povos nativos no quadro


do novo constitucionalismo latino-americano.
O primeiro tópico preocupa-se em desenvolver a conceituação do
multiculturalismo e a sua influência na inserção do respeito à diversidade cultural no
âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, e justifica a reivindicação do pluralismo
jurídico pela pesquisa. O segundo tópico se atém à concepção do acesso à justiça
não apenas como um direito postulatório de ação, mas como também um direito que
garanta uma justa interpretação e aplicação da lei aos povos indígenas, respeitando
sua diversidade cultural, econômica, social e seu direito consuetudinário. O terceiro
tópico abarca os desafios de acesso, à qualquer jurisdição, enfrentados pelo estado
com a maior população indígena do Brasil, o Amazonas, flagranteando a violação das
garantias instituídas pela Constituição Federal e pelas Convenções ratificadas pelo
Estado brasileiro. Por fim, comunica-se o contexto brasileiro como contraditório às
experiências vivenciadas na América Latina, à comparação das constituições da
Bolívia e do Equador.
O estudo do presente texto é classificado como bibliográfico e documental, isso
porque assume a exploração de doutrinas e legislações que sustentam o assunto
abordado. Quanto à metodologia, trata-se de um trabalho norteado pelo método
dedutivo. Esta opção se justifica porque o método escolhido permite que a partir de
uma compreensão geral do ordenamento jurídico pátrio se alcance a exposição e o
entendimento de uma questão. A pesquisa utilizar-se-á de um plano de trabalho que
contém uma proposta de abordagem realista da temática, valorizando institutos,
conceitos, desenvolvimento histórico, legislação internacional e pátria, as
problematizações apresentadas e seus objetivos.

O MULTICULTURALISMO

O princípio da igualdade funda o paradigma do reconhecimento de uma


categoria de direitos inerentes à pessoa humana de maneira universal. Tal paradigma
só foi questionado quando grupos sociais minoritários, excluídos e discriminados se
uniram para questionar os critérios dominantes de igualdade e diferença e os
diferentes tipos de inclusão e exclusão que os legitimam.
O Multiculturalismo surge, então, das lutas pelo reconhecimento de outras
formas de saberes, diferentes, silenciadas e colonizadas através de anos e a cada dia
mais suprimidas pela globalização, ele configura-se como política de gestão da
multiculturalidade ou como movimentos culturais de valorização da diferença como
fator de expressão de identidade, em contraditório às concepções etnocêntricas e
segregacionistas.
No Brasil, sempre existiram conflitos interétnicos, mesmo antes da chegada
dos europeus, durante as guerras hegemônicas entre as tribos nativas. Contudo, é só
com o surgimento do colonizador que se assevera a imposição e a opressão de uma
cultura, justificando até os dias de hoje a necessidade de afirmação étnica e cultural
dos grupos formadores do povo brasileiro. Carlos Frederico Marés de Souza Filho
(1992), ao discorrer sobre o tema, afirma que as políticas públicas e as leis,
influenciados por tal noção de inferioridade, se propuseram durante muitos anos a
cumprir essa vontade dos Estados Nacionais.
Como descreve Taylor (1997), desde 1492 os europeus têm vindo a projetar
desses povos uma imagem de seres um tanto inferiores, “incivilizados”, e que, através
da conquista e da força, conseguiram impor tal perspectiva aos povos colonizados.
Reflexo disso, é o próprio Estatuto do Índio, a leitura simples do 1º artigo do dispositivo
33

nos revela tal posicionamento: regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das
comunidades indígena, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los
(BRASIL, 1973).
Foi só através da Constituição Federal (BRASIL, 1998) que se perceberam os
primeiros contornos de uma perspectiva diferente, quando, em seu artigo 231, veio
defender reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças
e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
tornando-se um marco importante para a introdução e aceite do multiculturalismo no
ordenamento jurídico brasileiro.
Todavia, não há como reconhecer aos índios suas organizações sociais, sem
reconhecer seus sistemas jurídicos próprios, por isso, foi só através da ratificação da
Convenção 169 da OIT, que o Brasil comprometeu-se a mudanças mais profundas.
Tal Convenção se apresenta até os dias de hoje como um dos instrumentos mais
importantes ao reconhecimento do pluralismo jurídico. Destaca-se a importância de
seu artigo 8.1, o qual define que ao aplicar-se a legislação nacional aos povos
interessados, deverão ser levados em consideração seus costumes ou seu direito
consuetudinário e, nos termos do artigo 9.1, na medida em que isso for compatível
com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente
reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados
recorrem tradicionalmente a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros
(OIT, 1989).
A inserção do pluralismo jurídico é a própria expressão da multiculturalidade de
uma nação, nas palavras de Rangel, o pluralismo jurídico é quem “acepta lo diverso,
lo distinto, pero sin perder lo esencial de la juridicidad, lo que le da sentido en última
instancia, lo que le permite ser Derecho: la justicia”1 (RANGEL, 2013).
Em seguinte, a afirmação do reconhecimento do pluralismo jurídico pelo
ordenamento brasileiro tornou-se mais expressa a partir da ratificação da Declaração
das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Luciano Moura Maciel
(2016) aduz que tal declaração é um hodierno instrumento jurídico internacional
fundamental para o reconhecimento do direito e da justiça indígena. Sua inovação se
resume ao artigo 40, o qual garante o direito a procedimentos justos e equitativos a
solução de controvérsias entre os povos com os Estados ou outras partes, assim como
garantem que tais decisões tomarão devidamente em consideração os costumes, as
tradições, as normas e os sistemas jurídicos dos povos indígenas interessados (ONU,
2007).
Por fim, em contexto mais recente, tais políticas continuam sendo reafirmadas,
tal como assinalado em recente Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos
Indígenas, aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos
(OEA), tendo dedicado seu artigo XXII a defesa do direito e da jurisdição indígena e o
seu reconhecimento em ordem jurídica nacional, regional e internacional (OEA,2016),
ratificando a garantia ao direito e justiça indígena no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

O ACESSO À JUSTIÇA

A Constituição Federal de 1988 disserta expressamente, nos termos do art. 5º,


XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito” (BRASIL,1998), de maneira a perpetuar o princípio da inafastabilidade da
jurisdição, o qual significa que o Estado não pode negar-se a solucionar quaisquer

1“Aceita o diverso, o distinto, mas sem perder o essencial da juridicidade, o que lhe dá sentido em última instância, o que a
permite ser Direito: a justiça”.
34

conflitos em que alguém alegue lesão ou ameaça de direito. Assim, o cidadão, por
meio do direito de acesso à justiça, vale dizer, direito de ação, postulará a tutela
jurisdicional ao Estado.
Cabe ressaltar, porém, que segundo Wolkmer (2003), o pluralismo jurídico
multicultural insere tal discussão do acesso à justiça no plano da sociologia jurídica,
garantindo que ocorra a superação do anterior discurso processualista no trato do
tema: o acesso à justiça passa a funcionar, então, como instrumento ético de
realização não de ação, mas propriamente da justiça, e será dessa nova relação que
decorrerá o surgimento teórico das formas plurais de acesso à justiça.
Segundo Luciano Moura Maciel, na reflexão sobre o acesso à Justiça no Brasil,
não basta pensar tão somente no livre acesso do cidadão, especialmente no que
condiz à realidade dos povos indígenas, pois o acesso em si não significa decisões
mais justas, plurais, emancipatórias e interculturais, mas pode significar a reprodução
de uma relação do Estado-Juiz com os povos indígenas de forma colonial, monista e
preconceituosa, que pode mais vir a negar direitos, do que propriamente reconhecê-
los e efetivá-los (MACIEL,2016).
De acordo com esse novo conceito de acesso à justiça, é necessário que haja
o acesso a uma ordem jurídica justa, a importância do pluralismo jurídico enquanto
teoria para se pensar o acesso à justiça é a inserção de participação e
descentralização no plano da administração estatal jurídica, permitindo a realização
do ideal de justiça social, oportunidades equitativas às partes do processo,
participação democrática e tutela jurisdicional efetiva.
O acesso à justiça não pode se resumir à mera admissão ao processo, ou ainda
a simples possibilidade de ingresso em juízo, logo, uma esfera alternativa indígena
adquiriria uma importante dimensão nessa inter-relação entre pluralismo jurídico e
acesso à justiça, uma vez que abrange canais tradicionalmente desconsiderados pela
abordagem convencional do tema.

A VIOLAÇÃO DO DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS DE ACESSO À JUSTIÇA


MULTICULTURAL NO ESTADO DO AMAZONAS

O Estado do Amazonas é detentor de um dos ecossistemas mais importantes


do planeta, possui abundantes recursos e sua diversidade étnica é formada por
quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, piaçabeiros e indígenas e possui
uma população indígena que ultrapassa 180 mil indivíduos, segundo Censo
(IBGE,2010), sendo o maior estado com concentração indígena do Brasil.
Em dissonância a tal realidade, o acesso à Justiça Multicultural no Estado do
Amazonas para os povos indígenas é inexistente e sua não institucionalização tem
violado diariamente os direitos fundamentais, garantidos nos artigos constitucionais e
nas inúmeras convenções ratificadas, todos já pré-mencionados. Os aparatos
jurídicos formais, segundo recentes estudos de Maciel e Shiraishi Neto (2016),
também quase ineficazes à região, não conseguem abranger a totalidade das
diferentes realidades socioculturais, julgando sua realidade de forma inadequada.
Uma vez que o direito estatal não consegue contemplar, em razão de suas
estruturas e órgãos não terem sofrido uma reforma a altura do processo democrático,
nem sequer legislar de forma necessária a abarcar as nuances das relações que
emergem dessas sociedades, com suas inúmeras particularidades econômicas,
étnicas e culturais, o Pluralismo Jurídico figura como uma alternativa a essa lacuna
regulatória e enseja efetividade em um contexto comunitário.
35

Entretanto, é notória a resistência por parte do Estado brasileiro em avançar a


questão indígena para além do que já está na Constituição Federal, resistência tão
latente, a ponto de assumir o papel de incoerente, ao passo que se omite acerca do
direito consuetudinário e toma soluções burocráticas com estruturas administrativas
autoritárias pré-existentes, enquanto continua a adotar compromissos internacionais
a teor da Convenção 169 da OIT, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito
dos Povos Indígenas e da Declaração Americana sobre o Direito dos Povos Indígenas
da OEA.
Os povos indígenas reclamam a proteção de seus direitos, tal proteção, tanto
por razões históricas como por princípios morais e humanitários, se configura como
um compromisso na área de preservação e herança cultural, nas últimas décadas
estes povos tem sido afastados de suas terras, tradições e de seu modo de vida.
A exemplo de tal negligência, São Gabriel da Cachoeira é a maior cidade com
população indígena do Brasil, com uma população estimada em 37.300 habitantes,
no âmbito jurisdicional, todavia, não há nenhuma resposta adequada às demandas
indígenas da região, haja a vista a presença de somente uma Vara da Justiça Comum
Estadual no município, a qual sequer é competente para tratar sobre direitos indígenas
no contexto coletivo. Acerca do tema, Maciel e Shiraishi Neto (2016), deflagram
violenta situação precária em artigo sobre o alcance à justiça pelos cidadãos múltiplos
no estado do Amazonas:

No Município de São Gabriel, para um grupo indígena reivindicar direitos


indígenas ou judicializar questões que envolvam um órgão federal, o
grupo necessita deslocar-se para a capital Manaus, a uma distância de
853,83 km. Há 03 meios de transporte, a saber: a) fluvial/barco – duração
de 02 dias e 14 horas de viagem; b) fluvial/lancha – duração de 1 dia e 2h;
c) aéreo/voo – duração de 2h. Assim, a depender da condição econômica
do sujeito ou do grupo utiliza um dos meios de transporte acima, sendo o
fluvial/barco o mais econômico. Para a grande maioria das ações na
Justiça Federal o processo é físico e necessita de uma interlocução do
povo indígena com o Ministério Público Federal presente apenas na
capital Manaus, obrigando o grupo deslocar-se para Manaus para dialogar
com o Ministério Público Federal, órgão responsável para defender os
interesses indígenas.

O que se aduz é: por mais que exista o reconhecimento estatal da diversidade


indígena e do pluralismo jurídico, como estabelecido ao início da pesquisa, não se
verifica nenhuma ação institucional ou projeto legislativo para diminuir a dificuldade
de acesso à Justiça ou a mecanismos de resolução de conflitos jurídicos entre povos
indígenas fora de estruturas autoritárias estatais que reproduzem sua herança colonial
no âmbito jurídico.
As limitações ao reconhecimento jurídico não condizem com a diversidade dos
povos indígenas no Brasil, os quais tem cada vez mais reivindicado maior autonomia.
Segundo Colaço (2015), a identidade destes povos também se manifesta na
especialidade do seu Direito Indígena, o qual deriva, entre outras coisas, de sua
conduta do direito consuetudinário, tradicional, conservado e respeitado por uma
comunidade ou um povo que o percebe como ordem própria, a consideração pelas
novas constituições latino-americanas como um direito vigente e aplicável, o
reconhece como um instrumento de preservação dessa mesma comunidade.
Garantir a efetividade de tal pluralidade jurídica é necessária para a
subsistência do tradicionalismo de tais povos, porém, também é verdadeiro o desafio
enfrentado dentro de um poder judiciário que dificilmente busca compreender quem
36

são os sujeitos históricos e culturais e quais são os direitos e interesses em risco, para
que se haja a proteção dos direitos coletivos pertencentes a tais grupos, ao invés da
livre interpretação de um jurista carregado de uma visão monocultural acerca, a
exemplo, da preservação da propriedade privada.
A violação do direito de acesso à justiça não se consubstancia apenas na
inexistência de uma jurisdição indígena para que os povos nativos julguem os conflitos
em suas áreas e em acordo aos seus costumes, como também, é violado por meio
do, ainda que difícil, acesso a uma justiça estatal com ínfima compreensão de tais
direitos multiculturais, sua historicidade, do processo colonial de destruição de suas
culturas, suas práticas sociais e modos de vida.

O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO

Ocorre que tal contexto de omissão e violação a direitos multiculturais não é


exclusividade histórica do ordenamento jurídico brasileiro, sabe-se, como já discutido,
que desde a chegada dos europeus, os indígenas foram objeto de políticas que lhes
retiraram o direito à personalidade cultural e jurídica em toda a América Latina.
Nos primeiros tempos da Era de Direitos Humanos, pós-48, as reivindicações
de tais povos foram ignoradas, dado o viés marcadamente liberal e individualista dos
direitos protegidos. Em frente ao fracasso das promessas constitucionais, no que se
refere a falta de representatividade de grupos como dos povos indígenas, o
neoconstitucionalismo, recepcionado pelas constituições latino-americanas, lançou tal
modelo a uma crise de legitimidade.
Assim deu-se na América Latina um movimento denominado Novo
Constitucionalismo Democrático Latino-Americano, uma proposta de nova
institucionalização do Estado, que se baseia em novas autonomias, no pluralismo
jurídico, em um novo regime jurídico calcado na democracia intercultural e em novas
individualidades particulares e coletivas. Um movimento que busca, em igual medida,
discutir e promover mecanismo para uma autonomia com reconhecimento das regras
de convivência e do seu caráter normativo.
Nesse contexto, foi que as constituições da Bolívia e do Equador reconheceram
as funções jurisdicionais de seus povos originários. A Bolívia e o Equador foram os
países latino americanos que passaram por maiores transformações constitucionais
no curso de movimentos políticos protagonizados por indígenas.
As constituições da Bolívia (2009) e do Equador (2008), na primeira através da
jurisdiccíon indígena originaria campesina e no segundo através da justicia indígena,
estabelecem que a justiça indígena e a justiça ordinária tem a mesma dignidade
constitucional. A Constituição Boliviana (2009), em seu capítulo quarto se dedica a
deliberar exclusivamente acerca da Jurisdiccion Indigena Originaria Campesina, no
que seu artigo 190 garante que: “ I. Las naciones y pueblos indígena originario
campesinos ejercerán sus funciones jurisdiccionales y de competencia a través de sus
autoridades, y aplicarán sus principios, valores culturales, normas y procedimientos
propios.”2.
Em relação ao texto constitucional do Equador (2008), esse também consagra
um capítulo todo para definir a respeito da Justicia Indígena, insta salientar seu artigo
171 ao discorrer que: “Las autoridades de las comunidades, pueblos y nacionalidades
indígenas ejercerán funciones jurisdiccionales, con base en sus tradiciones
ancestrales y su derecho propio, dentro de su ámbito territorial, con garantía de

2 “As nações e povos indígenas originários campesinos exercerão suas funções jurisdicionais e sua competência através de
suas autoridades, e aplicarão seus princípios, valores culturais, normas e procedimentos próprios”.
37

participación y decisión de las mujeres. Las autoridades aplicarán normas y


procedimientos propios para la solución de sus conflictos internos, y que no sean
contrarios a la Constitución y a los derechos humanos reconocidos en instrumentos
internacionales”3.
O problema de monopólio jurídico pátrio, faz com que o Brasil deixe de dialogar
com os avanços legislativos, judiciários e executivos da América Latina, ainda
segundo Maciel (2016), tal realidade é muito pouco discutida no país, embora o Novo
Constitucionalismo Latino Americano tenha tido espaço amplo de pesquisa e de
institucionalização.
Dessa maneira, o Brasil, diferentemente de seus vizinhos pré-mencionados,
como também do Peru, da Colômbia e a despeito dos experimentos do México, não
concebe formas de acesso à justiça fora da jurisdição estatal, em comum desacordo
com a consolidação do Novo Constitucionalismo Latino Americano, assumindo a
postura de um país omisso, sem perspectivas de procurar um efetivo processo
democrático que ampare e respeite sua existente e discriminada sociedade
multicultural, histórica e nativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando debatemos acerca de multiculturalidade, plurinacionalidade e acesso


a uma justiça heterogênea, não se trata de pensar em estruturas estatais de
atendimento indígena, a perspectiva é muito mais profunda, trata-se da recuperação
de uma cultura, do reconhecimento do coletivo, do diverso e de um direito de
autodeterminação, se trata de conceber a justiça indígena como parte importante de
um projeto político descolonizador.
No Brasil, a Constituição de 1988 abriu caminho para o resgate do passado e
a realização da justiça histórica ao reconhecer os direitos dos povos indígenas à
conservação da sua cultura, todavia, formas efetivas de resolução de conflitos pelos
povos indígenas são constantemente invisibilizados pelo Estado brasileiro, uma hora
pelos interesses econômicos envolvidos na cobiça das terras indígenas, outra pelo
racismo insidioso em taxá-lo como incivilizado ou incapaz.
É flagrante a violação dos direitos indígenas em solo amazonense, pois o
governo não proporciona um diálogo intercultural com o direito consuetudinário de tais
povos, se omite quanto aos seus compromissos ratificados na OIT, ONU e OEA,
inviabiliza de maneira desumana o acesso dessas populações não somente à ação,
como à própria justiça. E é por essa omissão que muitas vozes são silenciadas e
sangram.
Apresenta-se quase que como utópico defender a legitimidade da
implementação de uma jurisdição indígena no Amazonas, todavia, quem se distancia
da realidade é o próprio estado brasileiro, frente ao giro decolonial que o resto da
América Latina hoje vive ao garantir o reconhecimento e a concretização dos direitos
culturais indígenas. É contraditório que o estado com a maior concentração de povos
nativos ainda possua um poder judiciário resistente a interpretar o direito indígena em
acordo com a sua história, origem, cultura e insista na aplicação de um direito eivado
de colonialismo e etnocentrismo, enquanto convive a dois mil e vinte seis quilômetros
de um país que inovou em reconhecer a “pachamama”. Enquanto o Estado tradicional
insistir em utilizar uma única linguagem para a multiplicidade de realidades existentes

3 “As autoridades das comunidades, povos e nacionalidades indígenas exercerão funções jurisdicionais, com base em suas
tradições ancestrais e seu direito próprio, dentro de seu âmbito territorial, com garantia e participação e decisão das mulheres.
As autoridades aplicarão normas e procedimentos próprios para a solução de seus conflitos internos, no que não sejam contrários
a Constituição e aos direitos humanos reconhecidos em instrumentos internacionais”.
38

na sociedade, jamais será possível uma efetiva inclusão e reconhecimento dos


excluídos.

REFERÊNCIAS

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Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>.
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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6001.htm>.
BOLÍVIA. Constitución Política del Estado. Promulgada em 7 de fevereiro de 2009.
Disponível em: <https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf>.
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jurídico em América Latina. Aguascalientes: CENEJUS/ Florianópolis: UFSC-NEPE,
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setembro de 2008. Disponível em:
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LOUREIRO, Silvia M S; MARTINS, Marcello P A; SILVA, Caio H F. O Princípio de
Humanidade e os Conflitos Interculturais: Os desafios e possibilidades do Novo
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Augusto. LEAL, César Barros (org.). O Princípio de Humanidade e a Salvaguarda
da Pessoa Humana. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2016.
MACIEL, Luciano Moura. O Acesso à justiça dos povos indígenas e o necessário
diálogo com o novo constitucionalismo latino-americano. Rev. Fac. Direito São
Bernardo do Campo, S.B. do Campo, v.22, n.1, jan/jun. 2016.
MACIEL, Luciano Moura E SHIRAISHI NETO. Acesso à Justiça: direitos decepados
dos cidadão múltiplos do Estado do Amazonas. Revista Jurídica da Presidência,
Brasília – v. 18 n. 114 . Fev/Maio 2016. p. 169 – 194.
OEA. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Aprovada em 15
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Aprovada em 13 de setembro de 2007. Disponível em:
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TAYLOR, Charles. Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
SOUZA FILHO, C. F. Marés. O Direito Envergonhado (O Direito e os Índios no Brasil).
Revista do Instituto Interamericano de Direitos Humanos. Publicação em Maio de
1992.
RANGEL, Jesús Antônio de La Torre. Pluralismo jurídico y derechos humanos en la
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WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Um espaço de resistência na
construção de direitos humanos. In: WOLKMER, Antônio Carlos; VERAS NETO,
Francisco O.; LIXA, Ivone M. (Org.). Pluralismo Jurídico. Os novos caminhos da
contemporaneidade. São Paulo: Saraiva, 2010.
39

O ACESSO À JUSTIÇA DA COMUNIDADE TRADICIONAL RIBEIRINHA NO


ESTADO DO AMAPÁ
THE ACCESS TO JUSTICE OF THE TRADITIONAL RIVERSIDE COMMUNITY IN
AMAPÁ

Thalyta Rocha Belfort Pereira


Emanuel Corrêa Mergulhão
Simone Maria Palheta Pires

Resumo: Considerando que a efetividade do acesso à justiça engloba não somente


a possibilidade de ingresso ao sistema judicial, mas também a prestação de
informações e o conhecimento sobre direitos e deveres, este trabalho busca analisar
a jurisdição que vem sendo oferecida à comunidade ribeirinha do Arquipélago do
Bailique, atendida na Justiça Itinerante Fluvial promovida pelo Tribunal de Justiça do
Estado do Amapá (TJAP) – apontado como pioneiro na institucionalização de projetos
de itinerância no Brasil. A metodologia da pesquisa se resume em levantamento
bibliográfico e estatístico acerca da quantidade e da natureza dos processos que
envolvem a população ribeirinha, seguida de uma análise qualitativa desses
processos. As conclusões apontam que 66% dos litígios versam sobre relações
familiares, enquanto 34% estão relacionados a questões puramente patrimoniais. O
TJAP tem garantido o acesso à justiça enquanto direito de ingresso em juízo, mas não
enquanto instrumento de capacitação jurídica e compreensão de direitos.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Justiça Itinerante. Ribeirinhos.

Abstract: Considering that the effectiveness of the access to justice doesn’t only
includes the possibility of appealing to the legal system, but also to provide
informations about the rights and duties, this work pursuits to analyze the jurisdicition
that has been offered to the riverside community of Bailique’s Archipelago, assisted by
the itinerant justice and promoted by the State Court of Justice of Amapá (TJAP) -
highlighted as the pioneer of the itinerant projects in Brazil. The research’s
methodology is summarized in a bibliographical and statistical survey about the
quantity and nature of the processes involving the riverside dwellers, followed by a
qualitative analysis of these processes. The evaluations indicate that 66% of the
conflits are related to family issues, while 34% are about patrimonial issues. The TJAP
has guaranteed the access to justice as a right of joining into the court, but not as an
instrument of legal capacity building and understanding of rights.

Keywords: Access to Justice. Itinerant Justice. Riverside Dwellers.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho é fruto de um projeto de iniciação científica desenvolvido


na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), que teve como objetivo analisar o
acesso à justiça das comunidades tradicionais ribeirinhas no estado.
A visão de acesso à justiça defendida ao longo desta pesquisa é aquela que
Boaventura de Sousa Santos denomina de “acesso aos direitos e à justiça”. Deste
modo, entende-se que o acesso à justiça não se restringe somente à possibilidade de
uma pessoa ingressar com uma ação em juízo, mas também engloba a prestação de
informações e o conhecimento sobre os direitos, além de uma resposta efetiva e justa
por meio de uma decisão (BOCHENEK, 2011, p. 203).
40

No Amapá, o Tribunal de Justiça do Estado (TJAP), tem como principal


instrumento de acesso à justiça o desenvolvimento de projetos de itinerância, visto
que, segundo registros históricos, o TJAP foi o primeiro tribunal a institucionalizar a
Justiça Itinerante, em 1996 (IPEA, 2015, p. 13). Com o passar dos anos, este projeto
foi aprimorado, e atualmente é executado tanto no 1º quanto no 2º grau de jurisdição
e tem abrangência estadual, com atuação em todas as comarcas.
Atualmente, as jornadas itinerantes1 são realizadas pelas vias terrestre ou
fluvial. A itinerância terrestre, dividida em rural e urbana, é realizada em várias
comunidades, bairros periféricos, vilarejos e municípios vizinhos próximos da
Comarca da Macapá. Por outro lado, a itinerância fluvial é realizada no Arquipélago
do Bailique, lugar composto essencialmente por comunidades tradicionais ribeirinhas.
Além da prestação jurisdicional, o TJAP tem se preocupado em oferecer a
essas comunidades serviços públicos agregados, como os de saúde, saneamento e
expedição de documentos oficiais, os quais são viabilizados por meio de convênios
firmados com entidades parceiras, como Defensoria Pública do Estado, Ministério
Público, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, Secretaria
Municipal de Assistência Social – SEMAST, Companhia de Água e Esgoto do Amapá
– CAESA, Centro de Especialidades Odontológicas do Estado do Amapá, Polícia
Técnica (POLITEC), dentre outras.2
Até o momento foram realizadas 132 Jornadas Fluviais no Arquipélago do
Bailique3, e, apesar de ser considerado pioneiro em projetos de itinerância para o
atendimento de comunidades ribeirinhas, o TJAP não possui dados estatísticos
oficiais documentados e publicados sobre a efetividade da jurisdição prestada.
Considerando tal contexto, esta pesquisa visou analisar a jurisdição que vem
sendo prestada aos ribeirinhos para detectar se há efetividade de acesso à justiça.
Tal propósito foi alcançado através de dois objetivos específicos: a) levantar dados
estatísticos sobre o número de processos cíveis das jornadas itinerantes fluviais que
envolvem indivíduos pertencentes às comunidades tradicionais ribeirinhas; e b)
identificar a natureza das ações mais recorrentes ajuizadas no período compreendido
entre junho de 2015 a outubro de 2017, e o motivo dessa constância.
O delineamento metodológico da pesquisa foi feito em duas fases: em um
primeiro momento, foi realizado levantamento bibliográfico em bases de dados como
Scielo e Portal Capes, além de pesquisa em doutrinas e periódicos da área do Direito.
Após, foi realizado o levantamento estatístico dos processos físicos cíveis ajuizados
pelos ribeirinhos nas jornadas itinerantes fluviais, que se encontravam na Vara da
Infância, Juventude, Políticas Públicas e Itinerância, do Fórum de Macapá.
Com isso, espera-se que a população, a academia e o próprio TJAP, tenham
conhecimento dos resultados que vêm sendo alcançados ao longo desses anos e dos
desafios que ainda persistem no que se refere à efetividade do acesso à justiça nessas
comunidades.

2 O ACESSO À JUSTIÇA

1
A expressão “jornada itinerante” é utilizada no âmbito do tribunal para designar as viagens realizadas pela equipe de
servidores.
2
TJAP. Arquipélago do Bailique receberá 130ª Jornada Fluvial do Programa Justiça Itinerante na segunda-feira. Disponível em:
<http://www.tjap.jus.br/portal/publicacoes/noticias/7511-arquip%C3%A9lago-do-bailique-receber%C3%A1-130%C2%AA-
jornada-fluvial-do-programa-justi%C3%A7a-itinerante-na-segunda-feira.html>. Acesso em: 30 de agosto de 2018.
3
TJAP. 132ª Jornada Fluvial no Arquipélago do Bailique vai levar serviços jurisdicionais e de cidadania à região. Disponível
em: <http://www.tjap.jus.br/portal/publicacoes/noticias/7806-justi%C3%A7a-itinerante-inicia-calend%C3%A1rio-de-atividades-
do-2%C2%BA-semestre-com-jornada-fluvial-no-arquip%C3%A9lago-do-bailique.html>. Acesso em: 30 de agosto de 2018.
41

Cappelletti e Garth (1988, p. 12) entendem o acesso à justiça como o “requisito


fundamental de um sistema jurídico” e o mais básico dos direitos humanos. Além
disso, ele é consagrado em instrumentos normativos, como na Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948), na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos
do Homem e das Liberdades Fundamentais (1950), na Convenção Americana sobre
Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (1969) e, mais recentemente,
na Carta Mundial do Direito à Cidade (2005) (BOCHENEK, 2011, p. 207-208).
Por sua vez, Boaventura de Sousa Santos, ao tratar da temática da efetividade
do acesso à justiça, defende a promoção de uma “revolução democrática da justiça”.
Para o autor, essa revolução nada mais seria do que um processo de transformação
no sistema judiciário, que inclua a democratização do Estado e da sociedade, e
envolva uma verdadeira mudança na cultura jurídica e forte vontade política. Segundo
Santos (2007, p. 24-25), os principais vetores dessa transformação se resumiriam em:
profundas reformas processuais; novos mecanismos e novos protagonismos no
acesso ao direito e à justiça; o velho e o novo pluralismo jurídico; nova organização e
gestão judiciárias; revolução na formação profissional, desde as faculdades de direito
até a formação permanente; novas concepções de independência judicial; uma
relação do poder judicial mais transparente com o poder público e a mídia, e mais
densa com os movimentos e organizações sociais; e, uma cultura jurídica democrática
e não corporativa.
De acordo com o vetor denominado “novos mecanismos e novos
protagonismos no acesso ao direito e à justiça”, o autor propõe que o direito de acesso
à justiça não seja visto tão somente como a possibilidade de recorrer aos tribunais,
mas também como forma de capacitação jurídica, através da informação, do
conhecimento e da compreensão de direitos e deveres.
De mesmo modo, Bochenek (2011, p. 211) aponta que, para que haja uma
participação efetiva da população no judiciário, são necessários alguns “componentes
prévios”, como: informação, compreensão e conscientização sobre as instituições,
procedimentos, funcionamento do sistema judicial e, sobretudo, os direitos e a forma
de acessá-los.
Segundo o autor, o acesso à justiça:

[...] significa a possibilidade conjunta de três principais objetivos: de


conhecer, compreender e reivindicar direitos; de ter a disposição e
compreender que há diversos meios de solução pacífica de controvérsias
que ameaçam ou impedem direitos; e a alta probabilidade de aceitar a
decisão (BOCHENEK, 2011, p. 215).

3 A JUSTIÇA ITINERANTE NO AMAPÁ

A Emenda Constitucional nº 45/2004 (Reforma do Poder Judiciário) tornou


obrigatória em âmbito nacional a implantação de estratégias específicas para
promoção do acesso à justiça, dentre elas, destaca-se a instalação da justiça
itinerante pelos Tribunais Regionais Federais (art. 107, § 2º, CF), Tribunais Regionais
do Trabalho (art. 115, § 1º, CF) e Tribunais de Justiça (art. 125, § 7º, CF).
Marco Antonio Azkoul define a Justiça Itinerante da seguinte forma:

[...] é a prestação de serviços da tutela jurisdicional do Estado, que se


efetiva juridicamente com a sentença ou acórdão, ato pelo qual o juiz põe
termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa em outros espaços
que não os fóruns, ou seja, unidades móveis, em colégios, estádios de
futebol, locais comunitários e em repartições públicas em geral,
42

devidamente equipadas, preferivelmente, com sistema informatizado e de


telecomunicações (AZKOUL, 2006, p. 117).

Segundo o Relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o


TJAP foi primeiro tribunal a institucionalizar um projeto de justiça itinerante no país,
em 1996 (IPEA, 2015, p. 13).
Conforme a Resolução nº 023/2005 do TJAP, que disciplina o funcionamento,
organização e competência da justiça itinerante estadual, no 1º grau, a “justiça
itinerante terrestre” corresponde à realização de jornadas periódicas em
comunidades, vilas distritos ou municípios, acessíveis por terra (art. 1º, II). Por sua
vez, a “justiça itinerante fluvial” é realizada em comunidades vilas, distritos ou
municípios, acessíveis exclusivamente por água, com uso de embarcações próprias
ou alugadas (art. 1º, III).4
O Arquipélago do Bailique foi o destino escolhido pelo TJAP para a realização
da itinerância fluvial. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
o Arquipélago é um distrito do Município de Macapá, composto pelas Ilhas de Bailique,
Macedônia, Brigue, Curuá, Faustino, Franco, Marinheiro, Igarapé do Meio e Parazinho
(PIRES, 2017, p. 34).
A característica marcante do Bailique é o fato de ser um local composto
essencialmente por comunidades tradicionais ribeirinhas, que se caracterizam por um
forte laço de comportamento comunitário com os recursos naturais (LIMA, 2004).
Juridicamente, comunidades tradicionais são definidas como:

[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais,


que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam
territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição
(art. 3º, I, do Decreto nº 6.040/2007).

Os ribeirinhos possuem uma “ideia de espaço vivo”, o que sugere o “sentimento


de pertencimento que produz a noção de identidade e cultura” (PIRES, 2017, p. 45).
Grzebieluka (2012, p. 125) explica que são comunidades que se caracterizam “pela
diversificação nas atividades produtivas, as quais giram em torno da cultura dos
conhecimentos adquiridos sobre a natureza e seu funcionamento, garantindo a
sobrevivência de acordo com necessidades e principalmente com o que o meio lhes
oferece”.

3.1 O PERFIL DAS DEMANDAS AJUIZADAS

Por meio do levantamento realizado, constatou-se que ao todo, de junho de


2015 a outubro de 2017, 228 processos cíveis foram ajuizados durante a Justiça
Itinerante Fluvial no Bailique, sendo que: 186 processos (81,58%) estão relacionados
a procedimentos de jurisdição contenciosa e 42 (18,42%) de jurisdição voluntária.
Considerando o lapso temporal utilizado, é notório que a quantidade de ações
catalogadas demonstra que a cultura do conflito nessas comunidades é bastante
reduzida se comparada aos padrões da Comarca de Macapá.

4
TJAP. Resolução nº 023/2005-TJAP. Disponível em:
<http://www.tjap.jus.br/portal/images/justica_itinerante_2005_023_tjap.pdf>. Acesso em: 30 de agosto de 2018.
43

Por jurisdição contenciosa “entende-se a função estatal exercida com o objetivo


de compor litígios”. Já a jurisdição voluntária “cuida da integração e fiscalização de
negócios jurídicos particulares” (DONIZETTI, 2017, p. 96).
Observou-se que 66% dos processos de jurisdição contenciosa têm por objeto
relações familiares, e envolvem discussões sobre guarda e responsabilidade,
alimentos, adoção, investigação/reconhecimento de paternidade, casamento/união
estável e direito de visita. Por sua vez, apenas 34% estão relacionados a questões
puramente patrimoniais e envolvem reclamações cíveis, cumprimento de sentença,
execuções e ações possessórias.
O TJAP classifica como ações de jurisdição voluntária não só as demandas
regidas pelos procedimentos de jurisdição voluntária previstos no Código de Processo
Civil (CPC), como extinção consensual de união estável e matrimônio, mas também
retificação de registros de nascimento/casamento e pedidos de 2ª via de documentos
oficiais.

O gráfico a seguir demonstra o percentual de ajuizamentos de ações:


Principais demandas ajuizadas na Justiça Itinerante
Fluvial no Arquipélago do Bailique Guarda e
Responsabilidade
11%
Adoção
1% Cumprimento de
Ações Jurisdição Sentença e
Possessórias Voluntária Execução
2% 19% Investigação/ 4%
Reconhecimento
de Paternidade
Alimentos Reclamação 6%
31% Cível
21% Matrimônio/União
Estável
4%
Direito de Visita
1%

*Período compreendido: junho de 2015 a outubro de 2017.

É possível concluir que as ações contenciosas mais recorrentes estão


relacionadas ao inadimplemento de obrigações (reclamações cíveis e ações de
alimentos), visto que correspondem a 56% das demandas identificadas no gráfico. Tal
fato pode ter relação com as infinitas carências que assolam as comunidades
tradicionais que residem no Arquipélago.
Na Vila Progresso – comunidade mais estruturada economicamente da região
– os moradores, em sua maioria, dedicam-se às atividades de subsistência (como a
caça e a pesca) ou sobrevivem de pequenos comércios locais. Com a inexistência de
políticas públicas que busquem incentivar atividades econômicas na região, o
ribeirinho acaba deixando de cultivar seu modo de vida peculiar, e migrando para a
capital em busca de oportunidades de emprego para o atendimento de suas
necessidades básicas (PIRES, 2017, p. 46-47). Portanto, as dificuldades que essa
comunidade enfrenta podem ser um dos fatores que contribui para o alto índice de
inadimplementos.
Outro dado que chama atenção diz respeito ao alto número de processos de
jurisdição voluntária (19%), que como supracitado, em sua maioria buscam a
retificação de registros de nascimento e a 2ª via de documentos oficiais. Tal percentual
44

ratifica as ideias de que quando há oferta de serviços de emissão de documentos


oficiais, estas costumam ser atividades extremamente demandadas (IPEA, 2015, p.
45), e de que para o Poder Judiciário se aproximar da realidade social das
comunidades ribeirinhas, precisa se utilizar da estratégia de disponibilização de
serviços públicos (PIRES, 2017, p. 139).
Um fato observado durante o levantamento dos processos e a análise dos
termos de audiências é que o desconhecimento dos ribeirinhos sobre os seus direitos
e deveres ainda é alto. A justiça itinerante – enquanto mecanismo de acesso à justiça
– tem como objetivo não só promover o acesso à tutela jurisdicional, mas também à
informação, à participação, à assistência/consultoria jurídica e à cidadania. Todavia,
observou-se que o TJAP tem falhado nesse aspecto. Um número significativo de
ribeirinhos não possui documentos oficiais, e muitos relataram em audiência que
desconheciam a necessidade de emissão de tais documentos, que não foram
informados da existência de prazo legal para requerê-los (como a certidão de
nascimento), ou ainda, que por não existir cartório na região, não tinham condições
financeiras de ir à Macapá para proceder com o registro.
A promoção do acesso à justiça – entenda-se aos direitos e à justiça, como é
defendido nesta pesquisa – também tem relação com a prestação de informação às
comunidades atendidas a respeito dos direitos e deveres que possuem. Nesse
sentido, percebeu-se que mesmo com a realização de 132 jornadas, o TJAP ainda
apresenta dificuldade no diálogo com a comunidade ribeirinha.
Bochenek (2011, p. 206) assevera que “a concepção de que o acesso é apenas
a oportunidade de disponibilizar meios de ingresso ao sistema judicial, por intermédio
do ajuizamento de demandas, está ultrapassada”. Atualmente, segundo o autor:

Há dimensões prévias (que antecedem o ajuizamento de uma ação e


atuam na prevenção dos litígios ou na adequada preparação para a
solução dos litígios, seja pela via judicial, seja extrajudicial) e posteriores
(após o ajuizamento até a conclusão do processo e, ainda, podendo haver
repercussões até a efetiva realização ou não do direito) (BOCHENEK,
2011, p. 206).

Como se vê, os processos de jurisdição voluntária são ajuizados geralmente


apenas com intuito de fazer valer direitos constitucionais e legais já garantidos. Assim,
o conhecimento e a conscientização dos ribeirinhos acerca dos seus direitos e
deveres poderiam contribuir até mesmo para a prevenção de litígios.

4 CONCLUSÃO

Por meio da pesquisa realizada, foi possível perceber que diante da crise do
Poder Judiciário, a justiça itinerante se tornou um mecanismo bastante eficiente de
promoção do acesso à justiça, mas que ainda precisa ser aperfeiçoado pelos tribunais.
O TJAP tem assumido uma posição vanguardista nesse ponto e tem expandido
cada vez mais a prestação de seus serviços para as localidades mais longínquas do
estado do Amapá, tanto pela via terrestre quanto fluvial. A justiça itinerante fluvial, em
específico, atende uma comunidade tradicional da Região Norte, que foi
historicamente excluída da política de acesso à justiça adotada pelo estado brasileiro.
Os ribeirinhos, assim como toda e qualquer comunidade, possuem litígios
próprios e demandas reprimidas comuns ao dia a dia. O projeto de itinerância
desenvolvido pelo TJAP tem sido bastante importante para a solução dos conflitos
existentes no Arquipélago do Bailique. Não obstante, o projeto também tem
45

demonstrado que a carência de serviços básicos é uma infeliz realidade da região, e


que em grande parte dos casos, os ribeirinhos recorrem ao judiciário reclamando
apenas direitos que lhes são garantidos pelas leis e pela Constituição, mas que não
são prestados pelo estado por falta de políticas públicas específicas.
O alto número de processos de jurisdição voluntária pelos quais os ribeirinhos
buscam simplesmente a 2ª via de documentos oficiais e a retificação de registros, bem
como a busca crescente pelos serviços auxiliares disponibilizados por órgãos
públicos, retrata o parco acesso da comunidade aos serviços básicos. Ou seja, a partir
da noção de acesso à justiça defendida ao longo da pesquisa, percebeu-se que o
TJAP tem proporcionado o acesso à justiça, enquanto meio de ingresso ao sistema
judicial, mas não enquanto instrumento de acesso ao conhecimento, à participação e
à informação acerca de direitos e deveres.
Observa-se que o investimento em dimensões prévias (como cidadania,
informação e conhecimento) poderia gradativamente diminuir o número de demandas
ajuizadas pelos ribeirinhos.
O Arquipélago do Bailique ainda é um lugar esquecido pelo Governo do Estado
do Amapá, cuja população desconhece uma boa parte de seus direitos e deveres e
não tem acesso ao mínimo existencial. É importante que a justiça itinerante não seja
permeada pela visão limitada de que a prestação jurisdicional, por si só, promove o
acesso à justiça, pois como reafirmado ao longo do trabalho, a efetividade desse
direito fundamental perpassa por várias dimensões.

REFERÊNCIAS

AZKOUL, Marco Antonio. Justiça itinerante. 210 f. Tese (Doutorado) –


Departamento de Direito Constitucional, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 2006.
BOCHENEK, Antônio César. A interação entre tribunais e democracia por meio
do acesso aos direitos e à justiça: análise de experiências dos juizados especiais
federais cíveis brasileiros. 546 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Economia e
Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 2011.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília, 2007.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 20 ed. rev., atual.
e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.
GRZEBIELUKA, Douglas. Por uma tipologia das comunidades tradicionais
brasileiras. Revista Geografar, Curitiba, v. 7, n. 1. p. 116-137. jun. 2012.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Democratização do
acesso à justiça e efetivação de direitos: justiça itinerante no Brasil. Brasília, 2015.
Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150928_relat
orio_democratizacao_do_acesso.pdf>.
LIMA, Deborah de Magalhães. Ribeirinhos, pescadores e a construção da
sustentabilidade das várzeas dos rios Amazonas e Solimões. Boletim Rede
Amazônia: Diversidade Cultural e Perspectivas Socioambientais. Ano 3, n. 1. 2004.
46

PIRES, Simone Maria Palheta. Análise sociológica da justiça itinerante fluvial.


Belo Horizonte: Editora Vorto, 2017.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São
Paulo: Editora Cortez, 2007.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO AMAPÁ (TJAP). Arquipélago do Bailique
receberá 130ª Jornada Fluvial do Programa Justiça Itinerante na segunda-feira.
Disponível em: <http://www.tjap.jus.br/portal/publicacoes/noticias/7511-
arquip%C3%A9lago-do-bailique-receber%C3%A1-130%C2%AA-jornada-fluvial-do-
programa-justi%C3%A7a-itinerante-na-segunda-feira.html>. Acesso em: 30 de
agosto de 2018.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO AMAPÁ (TJAP). Resolução nº 023/2005-
TJAP. Disponível em:
<http://www.tjap.jus.br/portal/images/justica_itinerante_2005_023_tjap.pdf>. Acesso
em: 30 de agosto de 2018.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO AMAPÁ (TJAP). 132ª Jornada Fluvial no
Arquipélago do Bailique vai levar serviços jurisdicionais e de cidadania à região.
Disponível em: <http://www.tjap.jus.br/portal/publicacoes/noticias/7806-
justi%C3%A7a-itinerante-inicia-calend%C3%A1rio-de-atividades-do-2%C2%BA-
semestre-com-jornada-fluvial-no-arquip%C3%A9lago-do-bailique.html>. Acesso em:
30 de agosto de 2018.
47

O USO CONTRA-HEGEMÔNICO DOS ALGORITMOS: NOVAS PERSPECTIVAS


DO ACESSO À JUSTIÇA
THE COUNTER-HEGEMONIC USE OF ALGORITHMS: NEW PERSPECTIVES OF
ACCESS TO JUSTICE

Resumo: O presente trabalho busca realizar uma abordagem ao redor da área de


enfoque do acesso à justiça pela via dos direitos sociais, através do uso dos algoritmos
em perspectiva contra-hegemônica. Discute-se em qual medida as tecnologias, no
sentido instrumental da palavra, são percebidas como possíveis meios de promoção
do acesso à justiça e solução de conflitos. O presente trabalho também visa verificar
a forma como vem sendo desenvolvida a percepção do acesso à justiça ao longo dos
anos, a partir de suas ondas renovatórias, e como o big data surge como uma nova
tecnologia que se afina à sua conjuntura, bem como à discussão algorítmica.
Palavras-chave: Acesso à Justiça; Algoritmo; Big data.

Abstract: The present work seeks realease an approach around the area of focus of
access to justice by means of the social rights, through the use of algorithms in counter-
hegemonic perspective. It discusses to what extent technologies, in the instrumental
sense of the word, are perceived as possible ways of promoting the access to justice
and solution of conflicts. The present work also aims to verify the way in which the
perception of access to justice has been developed over the years, from its renewal
waves, and how the big data emerges as a new technology that is attuned to its
conjuncture, as well as to the algorithmic discussion.
Keywords: Access to Justice; Algorthm; Big data.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho pretende desenvolver tem como objetivo analisar a


possibilidade e efetivação do uso dos algoritmos em perspectiva contra-hegemônica
à medida em que podem se tornar mecanismos que auxiliem a efetivação dos direitos
sociais pelas vias do acesso à justiça.
O problema fundamental do trabalho de investigação proposto é: em que
medida os algoritmos podem se tornar meios de acesso à justiça na atual conjuntura
brasileira e podem auxiliar a busca pela resolução de conflitos?
O objetivo do trabalho é: analisar em qual medida as tecnologias, no sentido
instrumental da palavra, são percebidas como objeto de promoção do acesso à
justiça. São objetivos específicos do trabalho: analisar como a lógica algorítmica se
aplica à noção do acesso à justiça no tocante à efetivação dos direitos sociais.
Constatar em que medida toda a noção de acesso à justiça transcende a percepção
de direito social fundamental e passa a ser área de abrangência de tecnologias como
o big data.
No tocante ao tipo de investigação, foi escolhido, na classificação de Witker
(1985) e Gustin (2010), o tipo jurídico-projetivo. Esse estudo que se propõe pertence
à vertente metodológica jurídico-sociológica, tipo de investigação jurídico-projetivo e
nesta pretende-se desenvolver sua construção a partir de uma abordagem
fundamentalmente zetética do Direito.

2. AS ONDAS DE ACESSO À JUSTIÇA


48

O amparo do Estado às demandas dos cidadãos que intentem resolver seus


conflitos, quando postas perante o Poder Judiciário, é, praticamente, uma
consequência imperativa dessas questões que acabam por objetivar o provimento
jurisdicional. Também é válido ressaltar que, na sociedade brasileira contemporânea,
a resposta de um juiz se tornou um objetivo motor dos civis quando o que está em
voga é a busca pela satisfação de um conflito, não necessariamente sua solução.
Mormente, seguindo o raciocínio de exercício do direito à jurisdição por meio
de uma manifestação do estado-juiz como forma geral de solução de conflitos,
percebe-se que o acesso à justiça se conjectura através da compreensão normativa
do operador do direito nos aspectos formais, porém talvez não nos aspectos materiais.
Dessa forma, ainda que envolto de aspectos positivos, por mais eficaz que seja o
resultado do provimento jurisdicional, as questões colocadas à prova podem se
distanciar da melhor solução para aquela questão.
Em decorrência da adoção da perspectiva de lei como o norte máximo quando
o que está em jogo é o manuseio das circunstâncias que materializam o conflito e
única forma de solucioná-lo, as questões extrínsecas que consubstanciaram para dar
forma àquele processo podem ser fortemente deixadas de lado, mesmo que de
maneira involuntária. Isto porque, mesmo que seja considerado o mínimo de
instrumentos processuais, as questões personalíssimas ficam suscetíveis à não
consideração na resolução do conflito que recebeu amparo jurisdicional.
Através de análise dessa perspectiva, verificou-se um fenômeno de deficiência
no acesso à justiça que passou a ser desenvolvida de modo que pudesse ser sanada.
Mauro Capelleti e Bryant Garth (1988) denominaram as rupturas que demarcaram a
busca pela solução da referida deficiência em contextos de total desconhecimento da
noção de garantia ao acesso por ondas. Mais precisamente, Capelleti e Garth
demarcaram três ondas renovatórias como o retrato do estudo dos entraves para o
acesso à justiça.
A primeira onda de acesso à justiça, surgiu em um contexto de precariedade
quanto à efetivação dos direitos sociais. Nessa época o projeto Florença, coordenado
por Mauro Cappelletti, em colaboração com Bryant Garth e Nicolò Trocker, foi
extremamente relevante para o estudo do direito processual e seus desdobramentos
em vários países, retratando, por intermédio de estudos empíricos, as mencionadas
três ondas renovatórias, à começa por esta. O marco inicial da onda em discussão
surgiu com a garantia do acesso a quem não tinha condições de arcar com as custas
processuais, pobres em sentido econômico, haja vista que o norteador das soluções
de conflitos àquela época, o poder judiciário, só era acessível aos detentores do poder
econômico.
Em fase posterior, a segunda onda surgiu em um contexto onde o entrave era
a violação dos direitos coletivos e a questão era como resolver esta problemática.
Sequencialmente, a terceira onda veio com a informalização das modalidades de
solução de conflitos, com o aumento do exercício da autonomia privada dos indivíduos
e diminuindo o exercício do poder judiciário, promovendo a conquista do espaço pelos
métodos autocompositivos de soluções de conflitos (CAPELLETTI; GARTH, 1988).
De maneira independente ao Projeto Florença, na contemporaneidade do
século XXI, emergiu a quarta onda de acesso à justiça trazida por Kim Economides
(1997), que veio com a necessidade de reforma da educação jurídica, devendo o
profissional do Direito saber atuar com as modalidades alternativas de resolução de
litígios. Assim, figuram as clássicas ondas renovatórias de Capelleti e Garth, bem
como a perspectiva da quarta onda trazida posteriormente por Economides.
49

3. O ACESSO À JUSTIÇA EM PERSPECTIVA TECNOLÓGICA

“O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não


um favor que podemos ou não conceder uns aos outros”, como afirma Paulo Freire
(1996). Seguindo esse pensamento emancipatório, percebe-se que os meios de
acesso à justiça são tidos como caminhos potencializadores quanto ao alcance do
respeito à dignidade individual de cada cidadão.
O estudo de Adriana Goulart de Sena Orsini e Ana Carolina Reis Paes Leme
(2018) embasou o que constataram no ensaio “Acesso Tecnológico à Justiça”. Na
obra as teóricas afirmam que, nos dias atuais, percebe-se uma visão m torno do que
seria a noção de acesso tecnológico à justiça, preconizadora da compreensão da
alfabetização informacional como elemento básico que tangencia a instrução dos
cidadãos, quando relativa ao uso cônscio da tecnologia, componente existente em
importantes esferas da sociedade. Todavia, as autoras também trouxeram à tona a
perspectiva desenvolvida por Giovanni Alves (1999), em que o sociólogo vê o cidadão
inserido no contexto tecnológico como um indivíduo que está sujeito à rendição ao
capital m sua intimidade, sendo, em sequência, destruído em seu âmago pelo
contexto que permeia a tecnologia.
Neste diapasão, é precípua a inversão da noção tecnológica ligada ao acesso
à justiça quando tratada na forma hegemônica de utilização da tecnologia que é
contrária à capacitação informacional dos indivíduos, tendo em vista que a instrução
tecnológica se incorpora ao empoderamento individual dos cidadãos. Sendo assim, é
iníquo falar em conhecimento informacional apartado da efetivação do acesso
tecnológico à justiça.

4. A PERSPECTIVA CONTRA HEGEMÔNICA EM LÓGICA ALGORÍTMICA

A nova conjectura do acesso à justiça, através da efetivação dos direitos


sociais, ventila com a compreensão tecnológica e suas inovações. Isto acontece
quando ocorre a inserção dos indivíduos, à esta altura, conscientes, do cenário das
tecnologias voltadas para a extração econômica de dados que possibilitam o
perspicaz apanhado de padrões seguidos pelo cidadão inserido no contexto
tecnológico. Essas tecnologias elucidam o fenômeno do big data, de acordo com a
International Data Corporation (2011),
O big data permite abarcar fortemente a aplicação dos métodos contra-
hegemônicos na perspectiva tecnológica. Assim, comprende-se que as tecnologias
de captura de dados podem ser instrumentos de alta legitimação da conjectura do que
seria a quinta onda de acesso à justiça.
Em consonância com as afirmações de Alessandra Soares Barroso e Caio
Augusto Souza Lara (2015), a quinta onda surge no contexto da coleta de dados que
possibilitariam a exploração dos padrões analisadores e as relações, em primeiro
momento nebulosas, capazes de influenciar nas decisões dos sujeitos tecnológicos.
Assim, nota-se que os algoritmos, finitas sequências; distintas e pré-ordenadas,
podem ser utilizados ao bel prazer de quem venha programa-los.
A manipulação dos algoritmos possibilita a inversão de sua sistematização,
sendo permissiva ao seu uso hegemônico, como nota-se em casos esparsos pelo
mundo. Como exemplos de uso hegemônico dos algoritmos, em âmbito mundial,
percebem-se as possíveis atuação da Cambridge Analytica no Brexit e nas eleições
que sagraram Donald Trump, presidente dos Estados Unidos em 2016. Portanto,
considerando que o contexto algorítmico se trata de lógica programável, entende-se
50

que é viável o seu uso contra hegemônico, associado à noção do acesso à justiça
pela via dos direitos sociais, por intermédio da programação de fluxos de dados que
viabilizariam a conscientização digital. Como meio tecnológico de alcançar a efetiva
justiça nas diversas áreas de efetivação dos direitos sociais percebe-se a possível
atuação do poder público. Isto seria possível a partir do desenvolvimento de
aplicativos que atuariam nos setores da educação, por exemplo, efetivando o uso
contra-hegemônico das tecnologias digitais pelos mecanismos que o big data oferece.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Alessandra Soares; LARA, Caio Augusto Souza. O big data como uma
nova onda de acesso material à justiça. Disponível em:
>https://www.conpedi.org.br/ publicacoes/z307l234/25tf4rnv/QHR89sjIVzAwIiPc.pdf<.
Acesso em: 22/10/2018.
ECONOMIDES, Kim. Lendo as ondas do “Movimento de Acesso à
Justiça”: epistemologia versus metodologia?. Disponível em: <://gajop.org.br/
justicacidada/wp-content/uploads/Lendo-as-Ondas-do-Movimento-de-Acesso-aa-
Justica .pdf>. Acesso em: 22/10/2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática
Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FLORES, Paulo. O que a Cambridge Analytica, que ajudou a eleger Trump, quer
fazer no Brasil. Nexo Jornal, 2018. Disponível em: >
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/12/08/O-que-a-Cambridge-Analytica-
que-ajudou-a-eleger-Trump-quer-fazer-no-Brasil<. Acesso em: 23/10/2018.
GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a
pesquisa jurídica: teoria e prática. 3ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
INTERNATIONAL DATA CORPORATION. The 2011 Digital Universe Study:
extracting value from chãos. 2011. Disponível em < http://www.emc.com/ collateral/
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SENA, Adriana Goulart de, Orsini; LEME, Ana Carolina Reis Paes. Acesso
Tecnológico à Justiça. In: Lucélia de Sena Alves, Adriana Goulart de Sena Orsini.
(Org.). Reflexões acerca do Acesso à Justiça pela via dos direitos. 1. Ed. Belo
Horizonte: D’Plácido Editora, 2018, p. 189-210.
WITKER, Jorge. Como elaborar una tesis en derecho: pautas metodológicas y
técnicas para el estudiante o investigador del derecho. Madrid: Civitas, 1985.
51

O USO DE MEIOS ALTERNATIVOS PARA A SOLUÇÃO DOS CONFLITOS


TRABALHISTAS E SEUS REFLEXOS NO ACESSO À JUSTIÇA
THE USE OF ALTERNATIVE MEANS FOR THE SOLUTION OF LABOR
CONFLICTS AND THEIR REFLECTIONS ON ACCESS TO JUSTICE

Isabelli Maria Gravatá Maron


Antonio Renato Cardoso da Cunha

Resumo: O tema do acesso à justiça faz repensar formalismos do processo civil junto
à ideia de uma justiça social. O processualista deve pensar não apenas no processo
isoladamente, e sim num contexto mais amplo. Deve estar voltado para a finalidade
de um processo social. Acesso à justiça não é necessariamente a prestação da tutela
estatal através do Judiciário. O verdadeiro acesso à justiça é aquele que possibilita o
acesso à dignidade do ser humano. Nesse sentido, várias causas dificultam uma real
efetividade de acesso à justiça. Em uma primeira ordem, dentre outras, temos o custo
e a duração do processo. Ainda dentro da operosidade, encontram-se instrumentos
ou meios processuais que melhor executam a produção dos resultados, e um deles é
a conciliação. Os equivalentes jurisdicionais são um meio de garantir uma rápida
solução para as partes. A conciliação, a mediação e a arbitragem se mostram eficazes
nas causas trabalhistas?
Palavras-chave: acesso à justiça; conflitos trabalhistas; soluções alternativas.

Abstract: The issue of access to justice rethinks civil process formalisms along with
the idea of social justice. The proceduralist must think not only of the process alone,
but of a broader context. It should be geared towards the purpose of a social process.
Access to justice is not necessarily the provision of state tutelage through the judiciary.
True access to justice is one that allows access to the dignity of the human being. n
this sense, several causes make it difficult to effectively access justice. In a first order,
among others, we have the cost and duration of the process. Still within the operosity,
are instruments or procedural means that better execute the production of the results,
and one of them is the conciliation. Judicial equivalents are a means of ensuring a
speedy settlement for the parties. Are conciliation, mediation and arbitration effective
in labor cases?
Key words: access to justice; labor conflicts; alternative solutions.

INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05.10.1988,


em seu preâmbulo, institui um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceito, fundada na harmonia social e comprometida,
na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.
O preâmbulo não faz parte do texto constitucional propriamente dito, entretanto,
ele deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos
artigos que lhe seguem.
A Constituição da República prevê, portanto, uma sociedade livre, justa,
solidária e pluralista. Porém, quando se fala em cidadania, procura-se uma
participação popular mais democrática no processo político, repensando novos
instrumentos democráticos para uma real e efetiva contribuição social.
52

De acordo com o processualista Luiz Guilherme Marinoni1:

O Estado Democrático de Direito tem em seu conteúdo princípios da justiça


social e do pluralismo, devendo realizar-se através da democracia
participativa. A Constituição prevê várias formas de participação, entre elas
a ação popular, as ações coletivas e ação de inconstitucionalidade (essas
duas últimas possibilitando a participação através das entidades legitimadas
a agir).

O tema do acesso à justiça faz repensar formalismos do processo civil junto à


ideia de uma justiça social. O processualista deve pensar não apenas no processo
isoladamente, e sim num contexto mais amplo. Deve estar voltado para a finalidade
de um processo social. Acesso à justiça não é necessariamente a prestação da tutela
estatal através do Judiciário. O verdadeiro acesso à justiça é aquele que possibilita o
acesso à dignidade do ser humano.
A questão do acesso à justiça traz também o problema da igualdade e este,
atualmente, significa direito à igualdade de oportunidades. No caso em tela, igualdade
de oportunidades de acesso à justiça. Melhor falar, então, em acesso à ordem jurídica
justa2, que é, antes de tudo, uma questão de cidadania.3
Nesse sentido, várias causas dificultam uma real efetividade de acesso à
justiça. Em uma primeira ordem, dentre outras, temos o custo e a duração do
processo. Ainda dentro da operosidade, encontram-se instrumentos ou meios
processuais que melhor executam a produção dos resultados, e um deles é a
conciliação. Os equivalentes jurisdicionais são um meio de garantir uma rápida
solução para as partes. A conciliação se mostrou eficaz na Justiça do Trabalho4.
Convém lembrar que a Constituição da República de 1988 trouxe inúmeros
direitos aos cidadãos trabalhadores. Esses direitos e proteções estão basicamente
relacionados no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Os Direitos Sociais
foram elencados no Capítulo II, que é formado dos artigos 6 ao 11. Tais direitos, junto
aos elencados no art. 5º (Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos),
formam uma verdadeira rede de proteção e garantias ao trabalhador, o que levou o
relator da Constituição Brasileira de 1988, Ulysses Guimarães, à época de sua
promulgação, a chamá-la de Constituição Cidadã.
Tais direitos também geraram um aumento das demandas no Judiciário, pois
estando eles expressos na Carta Magna ficaram mais visíveis e passaram a ser
cobrados pelos trabalhadores de forma mais contundente. Há de se ressaltar que a
situação econômica do país contribui para que existam empregadores inadimplentes
o que leva o empregado a se valer do Judiciário para ver garantidos os seus direitos.
O estudo efetuado com base na estatística do Tribunal Superior do Trabalho 5
de processos trabalhistas autuados e julgados na Justiça do Trabalho e também
especificamente nas Varas do Trabalho constata que o número de demandas

1 MARINONI, L. G. Novas linhas de processo civil. São Paulo: Ed. Malheiros, 1996.
2 Destaca-se: “Por isso é que se diz que o processo deve ser manipulado de modo a propiciar às partes o acesso à justiça, o
qual se resolve, na expressão muito feliz na doutrina brasileira recente em “acesso à ordem jurídica justa”. ARAÚJO
CINTRA, Antônio Carlos de [et al.]. Teoria Geral do Processo. 18. ed. – São Paulo: Malheiros, 2002, p. 33.
3 Vale destacar as palavras de Kazuo Watanabe ao tratar dos Juizados Especiais: (WATANABE, Kazuo, in FIUZA, César
Augusto de Castro, SÁ, Maria de Fátima Freire de e DIAS, Ronaldo Brêtas C. (Coordenadores). Temas atuais de Direito
Processual Civil. – Belo Horizonte: Del Rey, 2001, Texto: Relevância Político-Social dos Juizados Especiais Cíveis
(sua finalidade maior), p. 207): “É importante que se firme, em todo o país, o microssistema de Juizados Especiais com as
características corretas acima mencionadas, que efetivamente proporcione a facilitação do acesso à Justiça pelo cidadão
comum, principalmente pelos mais humildes, e possibilite uma prestação jurisdicional efetiva, adequada e
tempestiva.” (grifos nossos).
4
Variação Percentual dos Processos Conciliados (site consultado em 25/10/2018: http://www.tst.jus.br/conciliacoes1).
5
Site consultado em 15/10/2018: www.tst.gov.br
53

trabalhistas aumentou após a Constituição Brasileira de 1988 e reduziu, em um


primeiro momento, após a chamada Reforma Trabalhista (Lei nº. 13.467/2017).
Essa corrida ao Judiciário infelizmente acaba por prejudicar o próprio
trabalhador, uma vez que provoca um verdadeiro “congestionamento” nos órgãos
julgadores. O excesso de demandas, por motivos óbvios, gera um retardo na
prestação da tutela jurisdicional, e o trabalhador, por conseguinte, demora a ver o seu
direito concretizado. Não se pode esquecer que justiça tardia não é justa.
A própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, após a
Emenda Constitucional nº 45 de 2004, passou expressamente a tratar do princípio da
celeridade, ao dispor no art. 5º, inciso LXXVIII que “a todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação”.
Um dos maiores tormentos a que se podem submeter os litigantes é a
morosidade do processo judicial. Ele avilta a parte, fere de morte o ideal da justiça e
funciona como mais uma razão de descrédito e desprestígio do Poder Judiciário.
A elevação no nível constitucional da garantia da celeridade vem demonstrar a
preocupação do legislador com a erradicação dessa mazela. Dependendo da forma
que esse princípio venha a ser instrumentado, poderemos finalmente obter uma
justiça ágil e célere, expurgando os recursos protelatórios, as infindáveis e
desnecessárias formalidades documentais, a multiplicidade de instâncias e outros
empecilhos típicos de um conceito de processo arcaico e moroso, sedimentado em
um tempo em que os conflitos sociais eram em menor número e de menor
complexidade e urgência, portanto imprestáveis para rapidez e multiplicidade de
facetas da vida deste início de século.

DESENVOLVIMENTO

Para amenizar esse problema da morosidade, a melhor solução é o caminho


da auto composição6. Esse caminho vem sendo trilhado como forma de agilizar a
solução dos conflitos, tornando o direito das pessoas um verdadeiro patrimônio que
pode ser operado na sua plenitude. Nesse sentido, não se pode deixar de citar o
pensamento de Mauro Cappelletti7:

Os juristas precisam, agora, reconhecer que as técnicas processuais


servem a funções sociais; que as cortes não são a única forma de solução
de conflitos a ser considerada e que qualquer regulamentação processual,
inclusive a criação ou o encorajamento de alternativas ao sistema
judiciário formal tem um efeito importante sobre a forma como opera a lei
substantiva – com que frequência ela é executada, em benefício de quem
e com que impacto social. Uma tarefa básica dos processualistas
modernos é expor o impacto substantivo dos vários mecanismos de
processamento de litígios. Eles precisam, consequentemente, ampliar sua
pesquisa para mais além dos tribunais e utilizar os métodos de análise da
sociologia, da política, da psicologia e da economia, e ademais, aprender
através de outras culturas. O “acesso” não é apenas um direito social
fundamental, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo
pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da
moderna ciência jurídica.

6
Nessa esteira de raciocínio César Augusto de Castro Fiuza (FIUZA, César Augusto de Castro, SÁ, Maria de Fátima Freire
de e DIAS, Ronaldo Brêtas C. (Coordenadores). Temas atuais de Direito Processual Civil. – Belo Horizonte: Del Rey,
2001, Texto: Formas alternativas de solução de conflitos, p. 91): “Geralmente, as partes tentam, primeiro, chegar por si
mesmas a um acordo, para só então, frustrada esta tentativa, procurar seus advogados, a fim de demandar.”
7 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 12 e 13.
54

Nesta esteira, em 12.01.2000 foi sancionada a Lei 9.958, que incluiu o Título
VI-A, com os artigos 625-A a 625-H na Consolidação das Leis do Trabalho, deu nova
redação ao art. 876 e ainda acrescentou o art. 877-A à CLT. Este novo Título trata das
Comissões de Conciliação Prévia. Com esta lei, foi dada a possibilidade da criação
da Comissão de Conciliação Prévia nos sindicatos, nas empresas, em grupos de
empresas ou ainda em caráter intersindical, de composição paritária, com
representantes dos empregados e dos empregadores, com a função precípua de
tentar conciliar os conflitos individuais do trabalho.
Assim como, com o advento da Reforma Trabalhista, Lei nº. 13.467/2017, foi
inserido o art. 507-A no texto da CLT, possibilitando a arbitragem para dissídios
individuais. Nos contratos individuais de trabalho cuja remuneração seja superior a
duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de
Previdência Social poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem,
desde que por iniciativa do empregado ou mediante a sua concordância expressa,
nos termos previstos na Lei nº. 9.307/96.
A arbitragem é uma forma extrajudicial de solução de conflitos não obrigatória
que possui como característica principal, uma terceira pessoa operando como um juiz
privado, o árbitro, que atuará expondo o direito nas causas levadas ao seu arbítrio. A
arbitragem é regulada pela Lei nº. 9307/1996. É um meio alternativo de solução de
conflitos que consiste na escolha de um terceiro imparcial, pelos litigantes, que terá
como objetivo dirimir os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
Não se pode esquecer que o crédito trabalhista tem natureza alimentar, razão
pela qual a parte necessita ver o seu direito satisfeito rapidamente, não podendo ficar
sujeita à morosidade do Judiciário.
Tendo em vista o número excessivo de processos, a reivindicação da criação
das Comissões de Conciliação Prévia, como forma de desafogar a Justiça do
Trabalho, é antiga na doutrina. Neste sentido, Eduardo Gabriel Saad8 observa: “Inclui-
se o novo diploma legal, no esforço de modernização do nosso Direito do Trabalho e,
ao mesmo passo, constitui-se numa louvável tentativa de descongestionar os vários
órgãos da Justiça do Trabalho.”
A criação das Comissões diminui o número de ações trabalhistas a serem
ajuizadas9. A maioria das reclamações trabalhistas não é complexa, sendo que a
maior parte delas demora anos para ser solucionada. Já em primeira audiência há a
possibilidade de serem feitos acordos nas reclamações trabalhistas. Por isso, os
empregados acabam preferindo resolver a questão naquele momento, mesmo abrindo
mão de alguns direitos, a ter de esperar muito tempo até a próxima audiência ou
sentença.
Grande parte das reclamações tem baixo valor, de modo que o custo do
processo é muito mais elevado do que o valor postulado pelo empregado.
As parcelas postuladas referem-se a um empregado dispensado que busca
apenas receber a contraprestação em relação ao trabalho já prestado. Assim sendo,
não há porque utilizar-se de uma estrutura tão burocrática, cara e demorada para
8 Saad, Eduardo Gabriel. Das comissões de conciliação prévia, Suplemento LTr, 043/00, p. 235.
9 Análise da estatística do Tribunal Superior do Trabalho dos processos trabalhistas autuados e julgados na Justiça do
Trabalho. Após a edição da Lei 9.958 no ano de 2000 o número de ações diminuiu, basta comparar com o ano de 1999:
1999 – 2.399.564, 2000 – 2.266.403, 2001 – 2.272.721 e 2002 – 2.113.533 (Site consultado em 02/03/2015: www.tst.gov.br).
Nesse sentido: “Há muito tempo se cogitava, no Brasil, da instituição de Comissões de Conciliação Prévia, sobretudo a partir
do momento em que se verificou que a Justiça do Trabalho não podia garantir a solução célere das numerosíssimas ações
perante ela ajuizadas.
As Comissões poderão, efetivamente, amenizar a calamitosa situação atual, em que a solução definitiva de um processo
trabalhista se pode arrastar, pelas várias instâncias, durante vários anos.” RUSSOMANO, Mozart Victor [et al.].
Consolidação das Leis do Trabalho Anotada. - Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 184.
55

julgar uma lide tão simples. Nisso reside a necessidade da criação de mecanismos
alternativos para a solução dos conflitos trabalhistas, tais como as Comissões de
Conciliação Prévia.
As Comissões de Conciliação não têm relação com a jurisdição do Estado
exercida pela Justiça do Trabalho.
É importante salientar, que o conflito trabalhista provém, em regra, da
pretensão resistida surgida da relação entre empregado e empregador. Portanto, a
lide está caracterizada quando há uma pretensão resistida.
Segundo Mozart Victor Russomano10:

... conflito de trabalho é o litígio entre trabalhadores e empresários ou


entidades representativas de suas categorias sobre determinada
pretensão jurídica de natureza trabalhista, com fundamento em norma
jurídica vigente ou tendo por finalidade a estipulação de novas condições
de trabalho.

Os conflitos trabalhistas são classificados em individuais e coletivos. Os


individuais são aqueles que têm por objeto interesses individuais concretos, de
pessoas determinadas. Já o conflito coletivo é aquele em que se tem uma controvérsia
entre grupos de trabalhadores e empregadores, podendo ser por interesses difusos,
coletivos propriamente ditos ou individuais homogêneos. Por interesses difusos
entende-se aqueles ligados a um direito indivisível, atingindo uma coletividade
indeterminada. Interesses coletivos propriamente ditos são aqueles igualmente
ligados a um direito indivisível, contudo uma coletividade determinada. Os individuais
homogêneos, por sua vez, também atingem um grupo determinado, porém ligados a
um direito divisível.11 Esses são tratados pela doutrina12 como acidentalmente
coletivos e não coletivos propriamente dito, por sua característica nitidamente
individual.
Na vida em sociedade constata-se a existência de conflitos entre os sujeitos
caracterizados por uma das causas de insatisfação (resistência de outrem ou veto
jurídico à satisfação voluntária) que devem ser eliminados. Segundo Carreira Alvim 13:
“O conflito de interesses é o elemento material da lide, sendo seus elementos formais
a pretensão (de quem pretende) e a resistência (de quem se opõe à pretensão)”.
Tendo em mente que o processo nada mais é do que um meio para realização
do direito material, existe a sua importância para amortização das tensões sociais. De
que adiantaria a existência de diversos direitos, se os mesmos não pudessem ser
exercidos em sua plenitude?
A instrumentalidade do processo funciona como uma catapulta, capaz de levar
os direitos materiais a transpor as muralhas das tensões sociais. Infelizmente o
processo vem dando diversas mostras de não possuir condições de suprir, com
excelência, os anseios sociais. O direito processual tornou-se prolixo e demorado, e
justiça tardia não é justiça.14 As relações sociais, cada vez mais dinâmicas, carecem

10 RUSSOMANO, Mozart Victor [et al.]. Consolidação das Leis do Trabalho Anotada. - Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.
261.
11 A corroborar com a necessária distinção, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes (MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro.
Ações Coletivas no direito comparado e nacional. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 218): “A correta
distinção se faz necessária e é importante, na medida em que as duas categorias estão submetidas a regime diverso em
termos de coisa julgada. A sentença proferida em relação aos interesses difusos produzirá efeitos erga omnes, enquanto
na solução dos conflitos envolvendo direitos coletivos a eficácia estará adstrita ao grupo, categoria ou classe.”
12 Nesse sentido: Aluisio Gonçalves de Castro Mendes (MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no direito
comparado e nacional. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 220)
13 ALVIM, José Eduardo Carreira. Comentários à Lei de Arbitragem (Lei n.º 9.307 de 23/9/1996). 2.ed. atual. – Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 23.
14 “A tarefa da ordem jurídica é exatamente a de harmonizar as relações sociais intersubjetivas, a fim de ensejar a máxima
56

de meios de soluções de conflitos que sejam ágeis15. As últimas reformas do Código


de Processo Civil e ainda da Consolidação das Leis do Trabalho em matéria
processual visam exatamente criar mecanismos para agilização do processo.
Embora a tutela estatal nem sempre seja o melhor caminho para a solução dos
conflitos, o exercício da jurisdição ainda é de incomensurável valia, evitando que os
sujeitos envolvidos façam a chamada “justiça com as próprias mãos”.
Entretanto, vivemos em uma sociedade já um tanto civilizada, de modo que é
possível relegar às partes, em alguns casos, o exercício da solução dos seus conflitos.
Isso, repita-se, em nada diminui o exercício da jurisdição pelo Estado, mas tão
somente aprimora os meios possíveis de solução dos conflitos.
A solução dos conflitos pode se dar16:
por obra de um, ou seja, um dos sujeitos (ou cada um deles) consente
no sacrifício total ou parcial do próprio interesse, ocorrendo a chamada
autocomposição;
por obra de ambos os sujeitos dos interesses conflitantes quando se
impõe o sacrifício do interesse alheio ocorrendo a chamada autodefesa ou
autotutela;
por ato de terceiro, enquadrando-se a defesa de terceiro, a mediação e
o processo (jurisdição).17
A heterocomposição18 caracteriza-se pela intervenção de um terceiro na
disputa entre dois ou mais sujeitos, podendo aquele decidir a questão ou tão somente
aconselhar as partes para que cheguem a uma solução.
Nos escólios de César Augusto de Castro Fiuza 19 as principais espécies de
heterocomposição são: jurisdição, arbitragem, conciliação, mediação, negociação,
facilitação, fact-finding e mini-trial.

realização dos valores humanos com o mínimo de sacrifício e desgaste. O critério que deve orientar essa coordenação ou
harmonização é o critério do justo e do equitativo, de acordo com a convicção prevalente em determinado momento e lugar.”
- ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de [et al.]. Teoria Geral do Processo. 18. ed. – São Paulo: Malheiros, 2002, p. 19.
15 Vale destacar as palavras de César Augusto de Castro Fiuza: “Outro ponto relevante, que devemos sempre ter em conta, é
a complexidade de nosso processo, principalmente o civil. O processo civil brasileiro tornou-se fim em si mesmo. De tão
complexo e formal, vai se distanciando, cada vez mais, do comum dos homens. Mundialmente, existe enorme tendência em
sentido contrário. Mesmo aqui no Brasil, já se atentou para o problema.” (FIUZA, César Augusto de Castro, SÁ, Maria de
Fátima Freire de e DIAS, Ronaldo Brêtas C. (Coordenadores). Temas atuais de Direito Processual Civil. – Belo Horizonte:
Del Rey, 2001, p. 79).
16 ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de [et al.]. Teoria Geral do Processo. 18. ed. – São Paulo: Malheiros, 2002, p. 20.
17 Nessa esteira de raciocínio, na doutrina trabalhista, segundo Marcos Abílio Domingues (DOMINGUES, Marcos Abílio.
Introdução do direito coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2000, p.53.) a solução do conflito pode se dar por
autocomposição, por heterocomposição ou por autodefesa:
autodefesa – ocorre quando há imposição da vontade de uma das partes, com o uso de meios de pressão sobre a outra.
autocomposição é a solução do conflito pelas partes, de maneira que o conflito acaba em razão da vontade convergente
dos agentes envolvidos.
heterocomposição é a solução do conflito pela ação de terceiros, que decidem segundo a própria convicção.
Em sentido contrário Sebastião Saulo Valeriano (VALERIANO, Sebastião Saulo. Comissões de Conciliação Prévia e
execução de título executivo extrajudicial na justiça do trabalho. - São Paulo: LTr, 2000, p. 15):
Solução por autodefesa ocorre quando as próprias partes procedem à defesa de seus interesses. Seriam exemplos de
autodefesa, na esfera trabalhista, a greve e o lockout.
Autocomposição é a forma de solução obtida pelas próprias partes. A composição através de mediação ou arbitragem não
deixa de ser uma forma de autocomposição. Entretanto, nestes casos há intervenção de um terceiro na solução do conflito.
Na mediação os mediadores aconselham as partes a negociarem, e na arbitragem o árbitro profere uma decisão para
resolver o conflito.
Heterocomposição ocorre quando a solução do conflito é dada por um terceiro. Seria o caso da jurisdição. No caso
específico da mediação e arbitragem a solução é dada por um terceiro escolhido pelas partes. Podemos dizer que a
arbitragem é um caso híbrido de composição decorrente da união da autocomposição e heterocomposição, pois há
autocomposição concretizada por uma heterocomposição.
18 Na doutrina nem todos os autores reconhecem essa nomenclatura heterocomposição. Em definição tem-se César Augusto
de Castro Fiuza: “Enquanto forma alternativa de solução de disputas, a heterocomposição ocorre quando terceiro intervém
na disputa, a fim de propor-lhe solução, ou seja, a fim de promover acordo entre os contendores ou de decidir a controvérsia.”
- FIUZA, César Augusto de Castro, SÁ, Maria de Fátima Freire de e DIAS, Ronaldo Brêtas C. (Coordenadores). Temas
atuais de Direito Processual Civil. – Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 92.
19 FIUZA, César Augusto de Castro, SÁ, Maria de Fátima Freire de e DIAS, Ronaldo Brêtas C. (Coordenadores). Temas atuais
de Direito Processual Civil. – Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 93-99.
57

Na evolução histórica apontada por Cintra, Grinover e Dinamarco 20, nos


sistemas primitivos, além da autotutela, outra solução possível dos conflitos era a
autocomposição. Os indivíduos, pouco a pouco, começaram a preferir, em vez da
solução dos seus conflitos por ato das próprias partes, uma solução amigável e
imparcial através de árbitros, pessoas de sua confiança mútua em que as partes se
louvam para que resolvam os conflitos. Nesse momento surge a arbitragem
facultativa, que advém da vontade das partes em eleger ou não um terceiro para o
deslinde do conflito. Com o desenvolvimento cada vez maior do Estado, o mesmo
passou a ganhar alguma ingerência sobre os conflitos entre os particulares. No
período do direito romano arcaico, as partes envolvidas em algum conflito recorriam a
um pretor e, em seguida, elegiam, por vontade própria, um árbitro de sua confiança.
Este árbitro receberia do pretor a função de decidir a causa. Já no período clássico, o
Estado romano passa a ter o direito de nomear os árbitros, ato que até então cabia
tão somente às partes. Dessa forma chega-se à arbitragem obrigatória. Numa terceira
etapa, o pretor passa a ter o poder de decisão. Sendo o pretor um representante do
Estado, é a partir daí que se nota a alteração do sistema de arbitragem obrigatória
para o reconhecimento da jurisdição do Estado.
As considerações acima mostram que, antes de o Estado conquistar para si o
poder de declarar qual o direito no caso concreto e promover a sua realização prática
(jurisdição), houve três fases distintas: a) autotutela; b) arbitragem facultativa; c)
arbitragem obrigatória. A autocomposição, forma de solução parcial dos conflitos, é
tão antiga quanto a autotutela. O processo surgiu com a arbitragem obrigatória. A
jurisdição, só depois (no sentido em que a entendemos hoje).21
Todo esse tema está diretamente ligado à terceira onda renovatória de
Cappelletti22 que traz como grande diferencial a criação de meios para tornar efetivos
os novos direitos. Não basta conseguir uma melhor representação judicial aos menos
favorecidos, necessária se faz a criação de novos mecanismos procedimentais na
estrutura dos tribunais, tais como o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais como
defensores e juízes.
Cappelletti propõe em sua terceira onda até mesmo modificações no direito
subjetivo para evitar demandas desnecessárias que só irão afogar cada vez mais a
máquina estatal. A criação de mecanismos que possibilitem uma maior velocidade no
julgamento é de fundamental importância. O referido autor expõe que para algumas
causas se faz necessária uma solução rápida, enquanto que para outras admite-se
um tempo maior.
Os mecanismos expostos na terceira onda de Cappelletti visam à simplificação
processual e à criação de meios alternativos para a solução dos conflitos. Dessa
forma, há maior rapidez no deslinde dos conflitos e a paz social é alcançada de
maneira satisfatória.
Entre os mecanismos utilizados para solução dos conflitos modernamente
encontram-se as ADRS (Alternative Dispute Resolution System ou Amicable Dispute
Resolution ou Resolução de Disputas ou Sistemas Alternativos de Solução de
Conflitos) ou MASCs (Métodos Alternativos de Solução de Conflitos), segundo José
Maria Rossani Garcez23:

20 ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de [et al.]. Teoria Geral do Processo. 18. ed. – São Paulo: Malheiros, 2002, p. 21-23.
21 ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de [et al.]. Teoria Geral do Processo. 18. ed. – São Paulo: Malheiros, 2002, p. 23.
22
“Ela (a terceira onda) centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos
utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas. Nós o denominamos “o enfoque do acesso
à Justiça” por sua abrangência. Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma,
mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso.” CAPPELLETTI, Mauro.
Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet - Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 67-68.
23
GARCEZ, José Maria Rossani. Negociação. ADRS. Mediação. Conciliação e Arbitragem. 2 ed. - Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003,
58

No jargão da literatura jurídica anglo-saxônica ADRS constituem os


Sistemas Alternativos de Solução de Conflitos, em português MASCs –
Métodos Alternativos de Solução de Conflitos, uma sigla que em verdade
representa um novo tipo de cultura na solução de litígios, distanciada do
antagonismo agudo dos clássicos combates entre o autor e réu no
judiciário e mais centrada nas tentativas para negociar harmoniosamente
a solução desses conflitos, num sentido, em realidade, direcionado à
pacificação social quando vista em seu conjunto, em que são utilizados
métodos cooperativos.

O mesmo Cappelletti já reconheceu que os esforços organizados sob a égide


da terceira onda devem ser levados a efeito fora do circuito jurisdicional, e que há
diversas formas para a concretização dos processos de heterocomposição,
notadamente, a mediação. Seguindo esse raciocínio, fica mais fácil chegar ao que se
denomina de quarta onda renovatória, a saber, a efetividade dos direitos processuais.

CONCLUSÃO

É notório que o Judiciário não possui meios físicos suficientes para absorver
todas as demandas judiciais. Dessa forma, conflitos que poderiam facilmente serem
resolvidos por conciliação, mediação ou arbitragem são tratados da mesma forma que
todos os demais. O abarrotamento do Poder Judiciário leva à demora na prestação
jurisdicional, retardando a solução dos conflitos.
O problema não está na conciliação ou na mediação ou até mesmo na
arbitragem, mas sim na redação atual da CLT que determina que as propostas de
acordo sejam feitas apenas pelo Juiz, bem como traz requisitos rígidos para que se
possa adotar o procedimento arbitral. Logo, só conseguiremos reduzir o número de
demandas apreciadas pelo Sr. Dr. Juiz do Trabalho se for possível a utilização dos
meios alternativos de solução dos conflitos, como efetivos garantidores do acesso à
justiça.
Empregados e empregadores não necessitam sempre da tutela do Estado ou
de sua jurisdição. Ambos podem se conciliar de forma autônoma. O que deve ser
garantido, sempre, é a possibilidade de ambos poderem recorrer ao Judiciário, caso
se sintam lesados. Com o funcionamento efetivo da Justiça do Trabalho os litigantes
serão beneficiados, uma vez que ocorrerá uma sensível diminuição no número de
causas a serem julgadas e a Justiça ficará mais livre para julgar questões mais
complexas, com mais qualidade e maior celeridade.
Portanto, os novos formatos contribuem para redução das demandas
apreciadas pelo Juiz do Trabalho e ampliam o acesso dos trabalhadores à justiça, de
maneira ágil.
A criação, dos novos métodos de solução de conflitos através da mediação, da
conciliação e da arbitragem, deve ser aceita, pois é a forma mais adequada para a
manutenção efetiva da prestação da tutela jurisdicional. Repita-se: não se pode
esquecer que justiça tardia não é justa. É necessário inovar, mas não só na lei, acima
de tudo na mentalidade de todos.

REFERÊNCIAS

p. 1.
59

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ALVIM, José Eduardo Carreira. Comentários à Lei de Arbitragem (Lei n.º 9.307 de
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61

Grupo de trabalho:

DIREITO ADMINISTRATIVO,
PREVIDENCIARIO E
SEGURIDADE SOCIAL
Trabalhos publicados:

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA COMO LIMITE AO DEVER-PODER


SANCIONADOR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

CONTRATAÇÃO DIRETA POR ENCOMENDA TECNOLÓGICA: NOVA


MODALIDADE DE AQUISIÇÃO DE INOVAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

CONTRATAÇÕES PÚBLICAS SUSTENTÁVEIS COMO INSTRUMENTOS DE


POLÍTICAS URBANAS AMBIENTAIS

CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO - NATUREZA JURÍDICA E


APLICABILIDADE FRENTE A INEFICIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
BRASILEIRA

MARCO REGULATÓRIO DAS ORGANIZAÇÕES DE SOCIEDADE CIVIL:


MECANISMOS DE CONTROLE E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

O CONFLITO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COM O


INSTITUTO DA ARBITRAGEM
62

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA COMO LIMITE AO DEVER-PODER


SANCIONADOR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
THE COMPANY SOCIAL FUNCTION AS A LIMIT TO THE PUBLIC
ADMINISTRATION DUTY-POWER OF SANCTION

Flávio Augusto de Oliveira Santos


Verônica Calado
Daniel Ferreira

Resumo: A atividade empresarial é fundamental para o atingimento de valores


positivados na Constituição Brasileira de 1988. Não há como alcançar de maneira
ótima a valorização do trabalho humano, o pleno emprego e o desenvolvimento
nacional sem a participação dos agentes privados. Para a empresa que cumpre este
papel, é necessária uma especial proteção visando a manutenção de suas atividades.
Trata-se de uma dimensão protetiva do princípio da função social da empresa. Por
outro lado, o Estado, no exercício de seu papel regulador, deve prescrever
comportamentos com a finalidade de atender interesses coletivos, fiscalizar, se for o
caso, aplicar sanção quando verificado o comportamento contrário. Neste contexto,
questiona-se se é possível - e em que medida - que o princípio da função social da
empresa funcione como um limite ao dever poder sancionador. Evitando, assim, que
a sanção administrativa extrapole suas finalidades e acabe por ferir de morte a
empresa.
Palavras chave: Função social da empresa; Sanção Administrativa, Limites ao dever-
poder sancionador

Abstract: Business activity is fundamental for the achievement of constitutional


values. It is impossible to achieve the valorization of human labor, full employment and
national development without the participation of private agents. For the businesses
that help to fulfill these goals, a especial protection is necessary to ensure the
continuity of its activities. That is a protective dimension of the business social function
principle. On the other hand, Estate, exercising its regulatory power, must prescribe
behaviors with the intent of fulfilling collective interests, inspect, and apply sanction
when verified the opposite behavior. In this context, a question arises, is it possible –
and in what measure – that the social function of business principle works as a limit to
the duty-power of sanction. Avoiding, this way, that administrative sanction
extrapolates its finalities and generate the “death” of a business.
Key words: Business Social Function; Administrative Sanctions; Limits to the sanction
duty-power.

INTRODUÇÃO

A atividade empresarial é de fundamental importância para o atingimento de


valores positivados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Não
há como alcançar de maneira ótima a valorização do trabalho humano, o pleno
emprego, a garantia de salário justo, o desenvolvimento nacional e a redução das
desigualdades sem a participação dos agentes privados.
Para a empresa que cumpre este papel, que atende os ditames constitucionais
que compõem o princípio da função social da empresa, é necessária uma especial
proteção – não aos interesses individuais do empresário, mas aos da coletividade -
visando, justamente, a manutenção de suas atividades. Trata-se de uma dimensão
63

protetiva do princípio, que se manifesta, por exemplo, na Lei de Recuperação de


Empresas (Lei 11.101/2005).
Por outro lado, o Estado, no exercício de seu papel regulador, deve prescrever
comportamentos com a finalidade de atender interesses coletivos, fiscalizar o
cumprimento e, se for o caso, aplicar a devida sanção quando verificado o
comportamento contrário ao prescrito. Neste contexto, questiona-se se é possível - e
em que medida - que o princípio da função social da empresa funciona como um limite
ao dever poder sancionador da Administração Pública. Evitando, assim, que a sanção
administrativa extrapole suas finalidades – prevenção do ilícito e recomposição da
ordem jurídica violada – e acabe por ferir de morte a empresa. O que pode resultar
em significativos impactos negativos de caráter socioeconômico.
Busca-se, no presente resumo, a resposta no princípio da legalidade, na
finalidade das sanções administrativas, na necessária razoabilidade e
proporcionalidade da atuação estatal e na nova tendência de consensualidade que
aparece, por exemplo, na Lei Anticorrupção e no âmbito dos processos
administrativos do CADE, do BACEN e da CVM, que vêm servindo como ferramentas
para enfrentamento da crescente complexidade da sociedade capitalista
contemporânea. A metodologia adotada foi a leitura analítico-crítica da doutrina.

A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA COMO LIMITE AO DEVER-PODER


SANCIONADOR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

É certo que a importância da manutenção da atividade empresária no Brasil


encontra respaldo não só na CRFB/88 – que prevê como direito fundamental a função
social da propriedade, extensível à propriedade dos meios de produção –, mas
também na legislação infraconstitucional, notadamente nas disposições da Lei
11.101/2005.
É também evidente, no entanto, que a atividade empresarial, para que cumpra
seus fins, deve ser regulada pelo Estado, posto que a este cabe a persecução da
realização do interesse público em suas mais diversas facetas e da harmonização dos
“princípios constitucionais dispares”1 que caracterizam a ordem econômica
constitucional brasileira.
Especificamente no que tange à atividade administrativa sancionadora, e como
inserida na economia capitalista moderna, “numa sociedade sem fronteiras e de
riscos, ensejadora de novos comportamentos, públicos e privados, inusuais em
termos remotos”2, ela começa – segundo Daniel Ferreira – a ter:

(...) valorados os efeitos, jurídicos e materiais, diretos e indiretos,


imediatos e mediatos (...), num cenário de responsabilização
administrativa sensível aos direitos e interesses, das pessoas humanas e
das pessoas jurídicas, isoladamente consideradas ou em face de toda a
coletividade.

Mas, se por um lado, a “sociedade contemporânea (...) global, tecnológica e de


riscos”3 parece reclamar “papéis renovados para o Estado Brasileiro e para a própria
Administração Pública, sob pena de não mais cumprirem, com a adequação

1
SALOMÃO FILHO, Calixto, Regulação e Desenvolvimento, In: SALOMÃO FILHO, Calixto (Coord.) Regulação e
Desenvolvimento, São Paulo, Malheiros Editores, 2002, p. 47.
2
FERREIRA, Daniel, Sanções administrativas: entre direitos fundamentais e democratização da ação estatal, Revista de
Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 12, n. 12 p. 167-185, julho/dezembro 2012. Disponível em:
http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/download/309/280, Acessado em 03 de julho de 2017, p. 168.
3
Ibid., p. 169.
64

necessária, sua própria razão de existir”4, por outro, o princípio da legalidade ainda é
não só “capital para a configuração do regime jurídico administrativo” 5, mas também
“específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a
identidade própria”6.
A vinculação da atividade sancionadora no exercício da função administrativa
aos estritos termos da legalidade – no que diz respeito à necessária aplicação da
sanção prevista, uma vez verificada a ocorrência do ilícito prescrito na norma primária
– parece obstar qualquer análise contextualizada que vise se valer de outros princípios
para afastar este comando imperativo.
É neste contexto que, finalmente, localiza-se a questão que se pretende
responder: se, e em que medida, o princípio da função social de empresa pode (ou
deve) funcionar como um limite ao dever-poder sancionador da Administração
Pública.
Assim, uma leitura do binômio legalidade/finalidade exige a compreensão de
que se a finalidade da lei se confunde com seu espírito, sua razão de ser, e o princípio
da finalidade é uma inerência da legalidade “pois corresponde à aplicação da lei tal
qual é; ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi
editada7, e, ainda, se justamente os princípios irradiam “sobre diferentes normas,
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência
delas (...)”8, então é possível entender que, por consequência lógica, não há norma
no ordenamento pátrio, que, ao intervir no exercício do direito de propriedade, possa
desconsiderar, como um todo, os ditames do princípio da função social, posto que
este é princípio fundamental do ordenamento.
Isto posto, em existindo uma dimensão protetiva do princípio da função social
da propriedade e, por consequência, do princípio da função social da empresa, então
passa a ser de interesse público que as empresas que cumprem sua função social
sejam protegidas. Sendo este o caso, cabe (re)lembrar que “qualquer ato
administrativo que dele [do interesse público] se desencontre será necessariamente
inválido”9.
Cabe, no entanto, novamente atentar para o alerta de Celso Antônio Bandeira
de Mello acerca do interesse público (como orientador da finalidade) contido nas leis
específicas. Se, portanto, uma eventual ponderação entre a aplicação da sanção e a
proteção da atividade empresária resultar no afastamento (por completo) da sanção,
então a finalidade e, por conseguinte, o interesse público ali positivado, a princípio em
acordo com as normas constitucionais, deixou, por completo de ser realizado (ou
mesmo perseguido). Assim, este critério não parece suficientemente adequando para,
no limite, solucionar a questão. Embora tenha sua inegável validade na apreciação do
quantum ideal da sanção a ser aplicada.
Proporcionalidade e razoabilidade no que diz respeito ao específico momento
de aplicação da sanção também não parecem sugerir uma conclusão diferente a partir
da análise da finalidade.
Ademais, embora este tema não tenha sido explorado – por uma questão de
recorte metodológico – os dois princípios, pressupõe-se, já incidiram no momento da

4
Ibid., p. 169.
5
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de direito administrativo, São Paulo, Malheiros Editores, 2009, p. 99.
6
Ibid., p. 100.
7
Ibid., p.106-107.
8
Ibid., p. 53.
9
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio Grandes temas de direito administrativo, São Paulo, Malheiros Editores, 2010, p.
181.
65

elaboração da norma que prescreve o comportamento e prevê a sanção para o seu


descumprimento.
Isto significa dizer que, embora o caso concreto possa mostrar realidade
diversa, a sanção prevista na norma deve – pelo menos em tese – ser abstratamente
proporcional à gravidade (também abstrata) da conduta. Portanto, mais uma vez,
impõe ressaltar que a norma encerra em si uma finalidade específica, que, neste caso,
pode mostrar-se na previsão de uma sanção grave, dada a similar gravidade na
valoração da conduta que não se deseja ver ocorrida.
É, portanto, difícil, se não mesmo impossível, concluir que a atenção aos
primados da razoabilidade e da proporcionalidade pode favorecer a manutenção da
empresa a ponto de determinar a não aplicação de sanção, quando constatado o
ilícito.
Quanto à solução proposta pela nova ideia de consensualidade, o corrente
debate sobre “a existência de margem de autonomia da vontade no âmbito do aparato
público”10 parece estar longe de permitir, ressalvadas as esparsas leis que já o fazem,
que o acordo funcione como ordinário e genérico substitutivo de sanção administrativa
mediante conveniência e oportunidade da Administração Pública.
Por outro lado, no âmbito dos acordos substitutivos que já se encontram
previstos em lei, Juliana Bonacorsi de Palma11 afirma que:

A relevância da disciplina da consensualidade pela esfera infralegal é


inquestionável. (...). A disciplina normativa da consensualidade não se
limita apenas à nota da legitimidade do Poder Público para dispor sobre a
concertação administrativa, mas também de assegurar ao administrado
conhecimento do instrumento consensual adotado pelo órgão ou entre
administrativo, assim como da dinâmica de atuação administrativa
consensual, para que tenha maior margem de negociação. As normas que
disciplinam a atuação administrativa consensual também cumprem o
exposto papel de conferir o desenho mínimo para que o administrado
estabeleça sua estratégia negocial e consiga obter, assim, melhores
resultados no pacto dos termos do acordo substitutivo.

Aparentemente, pois, onde ainda não há diploma legal específico e autorizador,


a substituição da sanção administrativa legalmente prevista por outra medida menos
aflitiva – ou mesmo, por suposição, mais eficiente na busca pela harmonização dos
vários princípios orientadores do ordenamento jurídico brasileiro – dentre os quais o
da função social da empresa – ainda deve se dar fora da função administrativa. Melhor
dizendo, se for o caso, competirá ao juiz aplicar as leis e o Direito ao caso, inclusive
valendo-se das técnicas de ponderação examinadas, para fazer valer uma solução
que recomponha a ordem jurídica e pari passu mantenha a empresa em plena
atividade.
Afinal, são igualmente do interesse público tanto a aplicação da sanção
administrativa (como instrumento para desestimular comportamentos reprováveis)
como a manutenção da atividade empresarial, notadamente por sua aptidão para
geração de empregos e de riqueza.
De todo modo, Priscila Beppler Santos e Daniel Ferreira 12 já propuseram a
assunção da função social da empresa como fundamento para os critérios
diferenciados de previsão e aplicação previstos na Lei Complementar 123/2006. Os
10
PALMA, Juliana Bonacorsi de, Sanção e acordo na administração pública, São Paulo, Malheiros Editores, 2015, p. 267.
11
Ibid., p. 275-276.
12 SANTOS, Priscila Bepples; FERREIRA, Daniel. Limites ao dever-poder sancionador para as microempresas e empresas de
pequeno porte nos contratos administrativos visando ao desenvolvimento nacional sustentável, Disponível em
http://portaldeperiodicos.unibrasil.com.br/index.php/anaisevinci/article/viewFile/921/897, Acessado em: 02 de Julho de 2017.
66

autores destacam as previsões contidas, por exemplo, no artigo 38B, que determina
redução de multas aplicadas em decorrência de ausência de prestação ou incorreção
no cumprimento de obrigações acessórias devidas aos diversos órgãos dos entes
estatais em percentuais que chegam a 90%13.
Nessa esteira, também é possível mencionar a previsão do artigo 55, §7º, do
mesmo diploma legal, que determina a observância do necessário tratamento
diferenciado das microempresas e empresas de pequeno porte para fixação de
valores de multa aplicadas no âmbito da fiscalização de questões relativas a aspectos
trabalhistas, metrológicos, sanitários, ambientais, de segurança, de relações de
consumo e de uso e ocupação do solo. Isto se deve ao reconhecimento da “especial
função social das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte e na própria
vulnerabilidade de sua estruturação empresarial”14. E, ainda, notadamente à especial
relevância das empresas dessa natureza na geração de empregos formais no Brasil.
Lembre-se, entretanto, que o princípio da função social da empresa não
determina somente a proteção de empresas de um determinado porte. Em verdade,
o que aqui se afirma é que este princípio determina, sim, a proteção de quaisquer
empresas que o façam por merecer, especialmente cumprindo sua função social nos
moldes esmiuçados, atendendo as vulnerabilidades resultantes da falta de emprego
e renda, auxiliando na realização dos objetivos da República e na concreção de
direitos fundamentais sociais.
Destarte, o princípio de que está se tratando é o da função social da empresa,
que revela o interesse coletivo na propriedade privada, que, também, compõe seu
âmago por força do Estado social constitucional.
Ou seja, se, por um lado, o exercício da função administrativa sancionadora
encerra em si uma gama de interesses públicos, e funciona fundamental e
adequadamente na prevenção de comportamentos indesejáveis e na recomposição
do ordenamento jurídico violado – quando a prevenção não foi suficiente, por outro
ainda assim é “necessário proteger (...) a pessoa jurídica em sua utilidade coletiva” 15:

Isto significa que esses dois princípios hão de necessariamente informar


a atividade administrativa para, em cada caso concreto, considerarem-se
– antes das tomadas de decisão – os efeitos, imediatos e mediatos, da
(potencial) sanção administrativa nos seus destinatários, diretos e
indiretos. Ademais, há quem sustente, ainda, que reconhecer a função
social da empresa é uma forma de valorizar a dignidade da pessoa
humana. (...). No contexto, quem exerce função administrativa sempre
deve estar atento ao cumprimento da lei com vistas ao (potencial)
atingimento da finalidade que legitima determina a prática de cada ato.
Logo, se num específico caso concreto se puder facilmente antever que o
resultado da prática do ato desbordará do fim legal pelas circunstâncias
particulares, então não apenas o ato será nulo (se, porventura, ainda
assim praticado), mas deverá o agente ver-se responsabilizado
pessoalmente, até mesmo porque ninguém está obrigado ao cumprimento
de ordem (decorra ela da lei ou de um ato administrativo) manifestamente
desconforme ao Direito.

Embora possa parecer que Daniel Ferreira lança mão de um argumento


consequencialista, o qual, em tese, poderia justificar, por parte da Administração
Pública, a não aplicação de uma sanção no caso concreto (mesmo quando constatada
a ocorrência do ilícito), é precipitado concluir que, para ele, sempre essa será a

13
Ibid.
14
Ibid.
15
Ibid., p. 181.
67

resposta adequada. Afinal, é dele que parte o contundente alerta para o fato de que o
agente público que porventura deixar de apurar ou aplicar sanções – fora dos limites
legais – pode estar sujeito às “sanções correspondentes por ato de improbidade, falta
(disciplinar) grave ou mesmo condescendência criminosa”16, razão pela qual, conclui,
“pode e deve o Poder Judiciário eventualmente afastar a lei para dizer o Direito”17.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vinculação da atividade administrativa ao princípio da legalidade, embora


necessária para evitar que a Administração Pública fuja da persecução dos interesses
públicos, pode conduzir a situações que colidem com os princípios fundamentais que
sustentam o modelo de Estado social brasileiro presenta na CRFB/88.
Visando conformar as potestades aos comandos principiológicos que, em
alguns casos, parecem contraditórios, esta mesma legalidade deve estar pautada pela
finalidade (que pode ser encontrada na positivação constitucional dos interesses
públicos), pela razoabilidade e pela proporcionalidade.
Este é o caso, também, da potestade sancionadora, ou melhor, do dever-poder
sancionador, que deve estar sempre pautado – em abstrato como in concreto – pela
adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, evitando, assim, o
exagero punitivo, e que pode, afinal, transpor a finalidade de desestimular um
comportamento a ponto de aniquilar o sujeito que nele incorreu. Isto é, no caso das
empresas, a sanção porventura imposta – mormente quando dimensionável no caso
concreto – não pode inviabilizar a manutenção da atividade, sob pena de desatenção
insuportável ao princípio da função social da empresa.
Não por outra razão, parece correto afirmar que, justamente por ser
fundamental à ordem constitucional brasileira e expressar verdadeiro interesse da
coletividade, o princípio da função social da empresa deve servir como limite ao
exercício do dever-poder sancionador administrativo ou mesmo como argumento
idôneo para eventual adoção de um “acordo”.
E é justamente nas alternativas que não de índole sancionadora que a resposta
para a realização desta difícil harmonização de princípios constitucionais parece,
afinal, se viabilizar. E não no incremento da previsão/aplicação de infrações e
sanções, especialmente porque, conforme José Roberto Pimenta Oliveira 18:

Em termos de estabelecimento das sanções, é possível afirmar que a


ordem jurídica autoriza o estabelecimento de sanções administrativas,
mediante lei formal, quando não seja possível oferecer aos bens jurídicos
afetados uma igual ou maior proteção através de meios não-
sancionatórios, menos lesivos.

Talvez a regulamentação dos acordos na esfera administrativa, de uma forma


genérica, aplicável com maior amplitude, venha a permitir que a Administração
Pública, no momento de decidir pela aplicação ou não da sanção, com base em
critérios motivados de “oportunidade” ou “conveniência”, tenha maior liberdade para
reconhecer e equilibrar os interesses públicos em jogo, inclusive a defesa da
propriedade em seu aspecto coletivo.

16
Ibid., p. 182.
17
Ibid., p. 182
18
OLIVEIRA, José Roberto Pimenta, Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro,
São Paulo, Malheiros Editores, 2006, p. 479.
68

Isto posto, é possível, aparentemente, afirmar que o dever-poder sancionador


da Administração Pública pode sim encontrar limites na função social da empresa
como, também por conta dele, se deva preferir a firmação de acordos que suspendam
o processo administrativo, ou mesmo que substituam a sanção, quando assim a lei
permitir. Não parece ser possível sustentar, pelo menos por enquanto, que ele se
preste a genericamente afastar a aplicação de sanções administrativas de maneira
absoluta, ao que se soma o fato de que deixar de cumprir “dever de ofício” (no caso,
impor a sanção – quando constatado o ilícito administrativo, já que assumida como
atividade ordinariamente vinculada) pode ser assumido como ato de improbidade
administrativa (ex vi do contido no art. 11, inciso II, da Lei nº 8.429/92).

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69

CONTRATAÇÃO DIRETA POR ENCOMENDA TECNOLÓGICA: NOVA


MODALIDADE DE AQUISIÇÃO DE INOVAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
DIRECT CONTRACTING BY TECHNOLOGICAL TASK: NEW MODALITY OF
ACQUISITION OF INNOVATION FOR THE PUBLIC ADMINISTRATION

Juliana da Silva Ribeiro Gomes Chediek

Resumo: A Lei nº 10.973/04, apelidada de “lei da inovação”, trouxe, a partir de


alterações realizadas pela Lei nº 13.243/2016, novos instrumentos de estímulo à
inovação nas empresas, dentre eles a contratação de encomenda tecnológica para a
realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento, que envolvam risco
tecnológico para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto,
serviço ou processo inovador ainda não disponível no mercado. Por sua vez, as
alterações realizadas na Lei nº 8.666/93, possibilitaram ao Administrador contratar
diretamente entidades públicas ou privadas – através de dispensa de licitação –
objetos de encomenda tecnológica, o que se mostrou um avanço. O trabalho
percorrerá, portanto, a partir da edição do Dec. nº 9283/2018, as principais
características deste novo e importante arranjo contratual.
Palavras-chave: contratos administrativos, inovação, encomenda tecnológica

Abstract: Brazilian Federal Law number 10,973/04, also known as the "innovation
law", has brought new instruments to stimulate innovation in companies, based on
changes introduced by Law 13243/2016, among them the contracting of technology
tasks to carry out activities of research, development, involving technological risk to
solve a specific technical problem or obtain an innovative product, service or process
not yet available in the market. On the other hand, the changes made in Law 8,666/93,
enabled the Administrator to directly hire public or private entities - through a waiver of
bidding – objects of technological tasks, which was an advance. The work will therefore
cover, from the edition of Dec. nº 9283/2018, the main characteristics of this new and
important contractual arrangement.
Key-words: administration contracts, innovation, technological task

INTRODUÇÃO

A ordem constitucional brasileira abrigou a promoção e o incentivo ao


desenvolvimento científico, pesquisa, capacitação científica e tecnológica e à
inovação a partir da edição, em 2015, da Emenda Constitucional n° 85. Esta alteração
constitucional não só modificou a redação do artigo 218, caput da Constituição Federal
(BRASIL, 1988), como também acrescentou os parágrafos primeiro a sétimo ao artigo
218; adicionando o parágrafo único ao artigo 219 e acrescentando os artigos 219-A e
219-B ao texto da Carta Magna.
A partir do novo texto constitucional, foi estabelecido que “o Estado promoverá
e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e
tecnológica e a inovação.” (BRASIL, 1988, art. 218), o que demonstrou, para além da
preocupação, o compromisso do Estado Brasileiro em fomentar o desenvolvimento
tecnológico, colocando-se como protagonista nas contratações de pesquisa,
capacitação científica, tecnológica e inovação.
A partir do marco constitucional, no âmbito infraconstitucional, a Estratégia
Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação – ENCTI (2016-2019) – documento de
orientação estratégica para a implementação de políticas públicas na área de Ciência,
70

Tecnologia e Inovação (CT&I) – veio a subsidiar a formulação de outras políticas de


interesse nacional. Administrada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e
Comunicações (MCTI), a ENCTI é ferramenta estratégica fundamental para a
superação das adversidades conjunturais do País no atual cenário de competitividade
global e complexos desafios sociais.
Por outro lado, no que diz respeito à política de inovação praticada pelos entes
administrativos, a Lei nº 10.973/04 (dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa
científica e tecnológica no ambiente produtivo), estabeleceu que a União, os Estados
e os Municípios e suas agências de desenvolvimento podem encorajar e apoiar o
estabelecimento de alianças estratégicas e o desenvolvimento de projetos de
cooperação envolvendo empresas nacionais, instituições científicas e tecnológicas
(ICT) e organizações privadas sem fins lucrativos focadas em atividades de pesquisa
e desenvolvimento, voltadas à geração de produtos e processos inovadores.
Com isso nota-se, portanto, que o legislador vislumbrou a necessidade, por
parte da Administração, da busca de parceiros privados como meio para que o Estado
consiga incentivar e desenvolver projetos, aquisições, produtos e serviços inovadores,
independentemente do arranjo de contratação administrativa. Nos Estados Unidos,
por exemplo, os governos federais e locais estão cada vez mais engajados em
parcerias com indústrias privadas para o desenvolvimento de novos produtos e
serviços. Há ocasiões nas quais o papel do governo americano na parceria se
restringe a fornecer acesso livre ao big data1, a fim de desenvolver novos produtos e
serviços na solução de problemas sociais (uma vez que o setor privado está melhor
equipado para utilizar ferramentas de controle e uso de dados2). Nesses casos, as
parcerias público-privadas desempenham papel crucial no avanço científico e na
inovação (OKEDIJI, 2016, p. 341).
Voltando ao caso brasileiro, e diante dos marcos legislativos abordados, tem
sido cada vez mais frequentes as hipóteses nas quais o administrador público busca
adquirir produtos e/ou serviços cuja a tecnologia ainda não é disponível para pronta-
entrega no mercado, principalmente no âmbito do Poder Executivo, o que é usual em
matéria de produtos de defesa nas Forças Armadas, no desenvolvimento de
equipamentos para exploração geológica e também nas aquisições na área de
tecnologia de informação. Nestas contratações, a Administração deverá ter como
norte para além das regras gerais de contratações públicas, as peculiaridades da
contratação de pesquisa e inovação, como: a possibilidade de utilização do
procedimento auxiliar de pré-qualificação; a mutabilidade do projeto básico; a
eventualidade da antecipação de pagamento; o enquadramento como contratação por
escopo; a exigência de sólido gerenciamento de riscos, entre outros3.
A Lei nº 10.973/04, apelidada de “lei da inovação”, trouxe, a partir de alterações
realizadas pela Lei nº 13.243/2016, novos instrumentos de estímulo à inovação nas
empresas, dentre eles a contratação de encomenda tecnológica para a realização de
atividades de pesquisa, desenvolvimento, que envolvam risco tecnológico para
solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo
inovador ainda não disponível no mercado.

1 De acordo com Neil M. Richards & Jonathan H. King (2014, p. 393 apud OKEDIJI, 2016, p. 332), tecnologistas utilizam a
denominação big data para uma definição de 3-Vs: grande volume, alta velocidade e grande variedade de ativos de informações
que demandam formas de processamento de informação economicamente viáveis e inovadoras para visão aprimorada e tomada
de decisão. (tradução nossa).
2 “In short, despite the official rule, government at all levels can structure tules that enhance or diminish their ownership interests
in copyrighted works. This is specially the case with state and local governments, many of which are already experimenting with
how to more effectively enhance public welfare through applications of big data in areas such as education, transport, crime
prevention, sanitation, land management, and others.” (OKEDIJI, 2016, p. 338)
3 Sobre o tema v. “Particularidades nas contratações de inovação e desenvolvimento tecnológico da Administração Pública.”
CHEDIEK, ROCHA, 2018.
71

Por sua vez, as alterações realizadas na Lei nº 8.666/93 pela lei de 2016,
possibilitaram ao Administrador contratar diretamente entidades públicas ou privadas
– através de dispensa de licitação – objetos de encomenda tecnológica, o que se
mostrou um avanço.
O trabalho percorrerá, portanto, a partir da edição do Dec. nº 9283/2018, as
principais características deste novo e importante arranjo contratual.

1. A CONTRATAÇÃO DIRETA POR ENCOMENDA TECNOLÓGICA

As contratações diretas em matéria de serviços de inovação podem ocorrer


tanto em termos de dispensa (quando há possibilidade de competição mas o
administrador, em sua competência de integrar a norma, entende que o interesse
público será melhor atendido sem certame), quanto em termos de inexigibilidade de
licitação (quando há real inviabilidade de competição), ambas hipóteses previstas nos
artigos 24 e 25 da Lei n° 8.666/93, respectivamente. Muito embora não apresente
competição entre possíveis fornecedores, a contratação direta sem licitação não
significa a desnecessidade de observância dos princípios da isonomia,
economicidade, publicidade, razoabilidade, moralidade, eficiência e motivação, uma
vez que estes informam a atuação do administrador público.
Para GARCIA (2012, p. 181), a dispensa envolve um juízo discricionário do
administrador que, diante da situação concreta, opta pela não realização da licitação
por entender que assim se atenderá melhor ao interesse público. A licitação é,
portanto, dispensável quando existam razões, legalmente previstas, que recomendem
ou reconheçam a desnecessidade de competição (MOREIRA NETO, p. 178). Tais
razões representam casos especificamente previstos nos quais o legislador aponta
como solução a contratação direta pela Administração, antecipando a justificação de
um juízo de conveniência administrativa4 (BINENBOJM, 2008, p. 341).
Conforme dito, no art. 24 da Lei nº 8.666/93 a lei prevê diversas hipóteses de
dispensa de licitação, as quais traduzem interesses administrativos distintos, razões
pelas quais o legislador faculta a não utilização do certame licitatório. A Lei n°
12.349/2010 (BRASIL, 2010) promoveu diversas alterações no Estatuto Geral das
Licitações (BRASIL, 1993), dentre elas a inserção do inciso XXXI ao artigo 24,
estabelecendo, em um mesmo inciso, quatro novas hipóteses de dispensa de
licitação, quais sejam: (i) cessão de uso de imóveis públicos para a instalação e a
consolidação de ambientes promotores de inovação (art. 3°, Lei n° 10.973/04 e 7°,
Dec. n° 9.283/18); (ii) compartilhamento ou permissão de uso de laboratórios
equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações por parte de ICT pública
(art. 4°, Lei n° 10.973/04); (iii) participação minoritária do capital social de empresas,
com o propósito de desenvolver produtos ou processos inovadores que estejam de
acordo com as diretrizes e as prioridades definidas nas políticas de ciência, tecnologia,
inovação e de desenvolvimento industrial (art. 5° Lei n° 10.973/04 e 4°, Dec. n°
9.283/18); e (iv) realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação
que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou
obtenção de produto, serviço ou processo inovador (art. 20, Lei n° 10.973/04 e art. 27
Dec. n° 9.283/18).
Dentre as novas hipóteses descritas, a última parece ser a mais adequada para
contratações de serviços em matéria de inovação tecnológica, qual seja, a contratação

4 Para Gustavo Binenbojm (2008, p. 341), “licitar nestes casos dispensáveis é agir contra este prévio juízo legislativo e exige um
ônus de justificação bastante robusto e específico para o caso concreto, eis que a melhor proposta, segundo a lei, será alcançada
pelo ente contratante mediante contratação direta.”
72

direta de ICT pública ou privada, entidades de direito privado sem fins lucrativos ou
empresas, isoladamente ou em consórcio, voltadas para atividades de pesquisa e de
reconhecida capacitação tecnológica no setor, com vistas à realização de atividades
de pesquisa, desenvolvimento e inovação, que envolvam risco tecnológico, para
solução de problema técnico específico ou para obtenção de produto, serviço ou
processo inovador.
Por sua vez, o art. 27, §1° do Dec. n° 9.283/18 estabelece que, serão
consideradas como voltadas para atividades de pesquisa, as entidades públicas ou
privadas, com ou sem fins lucrativos (diferentemente da exigência contida no art. 24,
XIII, na dispensa para contratação de instituição de pesquisa, na qual esta não poderá
ter fins lucrativos), que tenham experiência na realização de atividades de pesquisa,
desenvolvimento e inovação, independentemente de constar do ato constitutivo da
contratada a realização de pesquisa entre seus objetivos institucionais (exigência que
está contida no art. 24, XIII) ou que esta se dedique, exclusivamente, às atividades de
pesquisa. Parece ser mais aberta a aplicação desta hipótese de dispensa, em
comparação com a dispensa para contratação de entidade de pesquisa, do art. 24,
XIII da Lei nº 8666/935. Neste último caso, a lei estabelece maiores restrições, pois a
lei arrola três requisitos para a contratação: (i) que a instituição contratada tenha por
finalidade – prevista no seu regimento ou estatuto – pesquisa, ensino,
desenvolvimento institucional ou recuperação social de presos; (ii) que o contratado
detenha inquestionável reputação ético-profissional; (iii) instituição não tenha fins
lucrativos em seu estatuto social.
Quanto ao objeto da contratação, na encomenda tecnológica, caberá à
descrever as necessidades de modo a permitir que os interessados identifiquem a
natureza do problema técnico existente e a visão global do produto, do serviço ou do
processo inovador passível de obtenção, dispensadas as especificações técnicas
devido à complexidade da atividade de pesquisa, desenvolvimento e inovação ou por
envolver soluções inovadoras não disponíveis do mercado.
A incerteza quanto ao objeto da contratação também é uma característica de
outras modalidades de contratação administrativa, como, por exemplo, na contratação
integrada. A contratação integrada, de acordo com o art. 9°, §1° da Lei n° 12.426/11,
é uma modalidade de contratação da Administração que possui maior grau de
flexibilidade diante da incerteza sobre aspectos da prestação a ser cumprida pela
parte contratada. Embora não implique na outorga de uma “carta branca” ao particular,
esta forma de contratar implica na possibilidade do particular elaborar os projetos
básico e executivo, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a
realização de testes, a pré-operação e todas as demais operações necessárias e
suficientes para a entrega final do objeto6. Na contratação integrada é, portanto,
incumbência do contratado desenvolver os projetos básico e executivo da obra ou do
serviço a ser executado7, o que corrobora com a fluidez da descrição do objeto típica
das contratações de pesquisa e desenvolvimento. O mesmo ocorre na encomenda
tecnológica, na qual não é necessário o detalhamento de características técnicas do
objeto por envolver soluções inovadoras não disponíveis no mercado (art. 27, §3° Dec.
n° 9.283/18).

5 “Art. 24, XIII – na contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do
desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha
inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos”
6 O Regulamento do Procedimento Licitatório da Petrobrás também previu a modalidade “contratação integrada” no Decreto n°
2.745, de 24 de Agosto de 1998.
7 A lei de concessões admite a licitação com a mera especificação de “elementos do projeto básico” no edital (art. 18, XV, Lei n°
8.987/1995).
73

Para obtenção de informações necessárias à definição da encomenda


tecnológica, antes da celebração do contrato, a Administração poderá formular
consulta pública nos termos do art. 27 §4° do Dec. n° 9.283/18. Também será
facultado ao órgão ou a entidade criar comitê técnico de especialistas para assessorar
a instituição na definição do objeto da encomenda tecnológica (parâmetros mínimos
aceitáveis para utilização e desempenho da solução), na escolha do futuro contratado,
no monitoramento da execução contratual8, assim como em outras funções.
A normativa federal faculta à Administração a possibilidade de negociar a
celebração do contrato de encomenda tecnológica com um ou mais potenciais
interessados, com vistas à obtenção das condições mais vantajosas de contratação,
de forma transparente (ressalvadas as informações de natureza industrial,
tecnológica, ou comercial que devam ser mantidas sob sigilo).
A escolha do contratado será orientada para a maior probabilidade de alcance
do resultado pretendido pelo contratante, e não necessariamente para o menor preço
ou custo, e a Administração Pública poderá utilizar, como fatores de escolha, a
competência técnica, a capacidade de gestão, as experiências anteriores, a qualidade
do projeto apresentado e outros critérios significativos de avaliação do contratado (art.
27 §8° Dec n° 9.283/18). Ou seja, a possibilidade de não-êxito do projeto é uma
realidade em tais contratações, o que se relaciona intrinsecamente com a definição
de risco tecnológico prevista neste diploma, qual seja, a possibilidade de insucesso
no desenvolvimento de solução, decorrente de processo em que o resultado é incerto
em função do conhecimento técnico-científico insuficiente à época em que se decide
pela realização da ação (art. 2°, III).

CONCLUSÕES

A partir da edição dos marcos normativos supra, a Administração passou a


contar com novas figuras jurídicas para possibilitar o fomento e o incentivo à inovação
e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas à capacitação
tecnológica, ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento do sistema
produtivo nacional e regional.
O artigo procurou descrever as características principais da encomenda
tecnológica enquanto nova forma de contratar por dispensa de licitação da
Administração Federal, em sintética análise comparativa com outros instrumentos
contratuais similares disponíveis para a obtenção deste tipo de material.
Sendo assim, procurou-se oferecer breve contribuição ao tema, que ainda é
novo e deverá ser aprofundado pela doutrina e jurisprudência pátrias.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Renovar, 2008.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>
Acesso em: 17 Jun 2018.
______. Decreto n° 2.745, de 24 de agosto de 1998. Aprova o Regulamento do
Procedimento Licitatório Simplificado da Petróleo Brasileiro S.A. - PETROBRÁS

8 Art. 28, Dec. n° 9.283/18. “O contratante será informado quanto à evolução do projeto e aos resultados parciais alcançados e
deverá monitorar a execução do objeto contratual, por meio da mensuração dos resultados alcançados em relação àqueles
previstos, de modo a permitir a avaliação da sua perspectiva de êxito, além de indicar eventuais ajustes que preservem o
interesse das partes no cumprimento dos objetivos pactuados.”
74

previsto no art . 67 da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2745.htm> Acesso em: 18 Fev 2016.
______. Decreto n° 9.283, de 7 de fevereiro de 2018. Regulamenta a Lei nº 10.973,
de 2 de dezembro de 2004, a Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016, o art. 24, §
3º, e o art. 32, § 7º, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, o art. 1º da Lei nº
8.010, de 29 de março de 1990, e o art. 2º, caput, inciso I, alínea "g", da Lei nº
8.032, de 12 de abril de 1990, e altera o Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de
2009, para estabelecer medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica
e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas à capacitação tecnológica, ao
alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento do sistema produtivo
nacional e regional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2018/Decreto/D9283.htm> Acesso em: 12 Mar 2018.
______. Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI,
da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da
Administração Pública e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8666cons.htm> Acesso em: 02 Mar 2018.
______. Lei n° 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de
concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175
da Constituição Federal, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/Leis/L8987compilada.htm> Acesso em: 11 de
Out 2017.
______. Lei n° 12.346, de 15 de dezembro de 2010. Altera as Leis nos 8.666, de 21
de junho de 1993, 8.958, de 20 de dezembro de 1994, e 10.973, de 2 de dezembro
de 2004; e revoga o § 1o do art. 2o da Lei no 11.273, de 6 de fevereiro de 2006.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2010/Lei/L12349.htm> Acesso em: 03 Mar 2018.
______. Lei n° 12.462, de 04 de agosto de 2011. Institui o Regime Diferenciado de
Contratações Públicas - RDC; altera a Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, que
dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, a
legislação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a legislação da
Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero); cria a Secretaria
de Aviação Civil, cargos de Ministro de Estado, cargos em comissão e cargos
de Controlador de Tráfego Aéreo; autoriza a contratação de controladores de
tráfego aéreo temporários; altera as Leis nos 11.182, de 27 de setembro de 2005,
5.862, de 12 de dezembro de 1972, 8.399, de 7 de janeiro de 1992, 11.526, de 4 de
outubro de 2007, 11.458, de 19 de março de 2007, e 12.350, de 20 de dezembro
de 2010, e a Medida Provisória no 2.185-35, de 24 de agosto de 2001; e revoga
dispositivos da Lei no 9.649, de 27 de maio de 1998. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12462.htm> Acesso
em: 02 Abr 2018.
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75

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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo:
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MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de
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Public Welfare in the Era of Big Data, 18 Vanderbilt Journal of Entertainment and
Technology Law 331 (2016)
PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei de licitações e contratações
da Administração Pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
76

CONTRATAÇÕES PÚBLICAS SUSTENTÁVEIS COMO INSTRUMENTOS DE


POLÍTICAS URBANAS AMBIENTAIS
SUSTAINABLE PUBLIC CONTRACTS AS INSTRUMENTS OF THE
ENVIRONMENTAL URBAN POLICY

Laura Magalhães de Andrade


Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme

Resumo: Desde as últimas décadas do século XX, a busca por um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, notadamente após a Constituição da República de 1988,
com seu art. 225, está na pauta do governo nacional, com o intuito não só de minimizar
os impactos já existentes, mas de rever os hábitos consumeristas do próprio Estado
e da sociedade. Nesse contexto, este estudo objetiva estudar as licitações
sustentáveis como uma alternativa viável às contratações públicas municipais
tradicionalmente abarcadas pela Lei nº 8.666/1993 e que, atualmente, englobam o
conceito de desenvolvimento sustentável em um necessário ciclo ético-ambiental.
Desse modo, pretende- se apresentar o resultado de uma investigação teórico-
legislativa sobre o tema e, ao final, será possível concluir que as alterações legislativas
voltadas às licitações sustentáveis se sobrepõem à mera normatização, traduzindo-
se em ferramentas sustentáveis para o ambiente público que seguem uma tendência
mundial e que prima pelo Estado Socioambiental de Direito.
Palavras-chave: Meio Ambiente; Licitações Sustentáveis; Políticas Urbanas
Municipais.

Abstract: From the last decades of the twentieth century, the search for an ecologically
balanced environment, notably after the 1988 Constitution, with its art. 225, is on the
agenda of the national government, with the aim not only of minimizing the existing
impacts, but of reviewing the consumerist habits of the state itself and of society. In
this context, this study aims to study sustainable procurement as a viable alternative
to municipal public contracting traditionally covered by Law 8,666 / 1993 and which
currently encompasses the concept of sustainable development in a necessary ethical-
environmental cycle. In this way, we intend to present the result of a theoretical-
legislative investigation on the subject and, in the end, it will be possible to conclude
that the legislative changes directed to the sustainable licitations overlap with the mere
standardization, translating into sustainable tools for the public environment which
follow a worldwide trend and that is supported by the Socioenvironmental State of Law.
Keywords: Environment; Sustainable Tenders; Municipal Urban Policies.

INTRODUÇÃO

O meio ambiente é tratado pelo artigo 225, caput, da Constituição Federal como
direito fundamental de natureza difusa, tutelado como bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, cuja titularidade é da generalidade de pessoas
que compõem as gerações atuais e futuras. Em consonância com tal disposição, é
conceituado como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem
física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”,
conforme estabelece o artigo 3º, inciso I, da Lei nº 6.938/81, que instituiu a Política
Nacional do Meio Ambiente.
Da análise dessas assertivas depreende-se o intuito de atribuir ao meio
ambiente uma concepção ampla, que não o dissocia de fatores que nele influem e que
77

por ele são influenciados, e sobre os quais o Supremo Tribunal Federal (STF) já se
manifestou. Um marco jurisprudencial sobre o tema no âmbito do STF foi a ADI 3540-
MC/DF, na qual se enfatizou o caráter transindividual e multidimensional do direito ao
meio ambiente, que abarca, respectivamente, a proteção a um número indeterminado
de pessoas e as noções de meio ambiente natural, cultural, artificial (espaço urbano)
e laboral (do trabalho) (FIORILLO, 2013).
A despeito da indivisibilidade do conceito de meio ambiente, elegeu-se
fundamentalmente os aspectos natural e artificial para o desenvolvimento da presente
pesquisa, dada sua estrita relação com a política urbana e com as contratações
públicas a ela inerentes. Tais temas, em conjunto, formam o objeto deste estudo.
Feitas as considerações iniciais sobre os institutos a serem abordados no
presente trabalho, tem-se, como hipótese formulada, a indispensabilidade, pelo
Administrador, das normas que regem as contratações públicas sustentáveis para a
efetiva promoção da sadia qualidade de vida e a preservação do meio ambiente, como
consentâneos de um processo licitatório efetivamente voltado para a sustentabilidade.
Nesse contexto, a relevância deste estudo advém da necessidade de se instituir
políticas públicas que garantam a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento
urbano, visando ao incremento da qualidade de vida da população por intermédio de
contratações públicas sustentáveis, empregadas como instrumentos de política
urbana. O problema desta pesquisa, portanto, está assim delimitado: como
estabelecer mecanismos de promoção de políticas urbanas sustentáveis, que
resultem em transformações sociais e ambientais, a partir da realização de
contratações públicas pela Administração?
Para a exploração e análise do tema proposto elegeu-se, como referencial
teórico, os ensinamentos de Ingo Sarlet, Thiago Fensterseifer, Luís Roberto Barroso
e Celso Fiorillo, que são expoentes autores que versam sobre a sustentabilidade e
sua apropriação pela Administração Pública. Ademais, já que o estudo será realizado
por meio da análise legislativa e pesquisa bibliográfica sobre os temas propostos,
utilizar-se-á o método jurídico-doutrinal e analítico.
Como objetivo geral, buscar-se-á explicitar as necessárias interseções entre a
política urbana municipal e as contratações públicas sustentáveis. São objetivos
específicos: (i) traçar um panorama do desenvolvimento sustentável; (ii) tecer breves
considerações acerca do regime jurídico administrativo para as contratações públicas
e sua transição de uma ótica tradicional para as contratações públicas sustentáveis
no Brasil; e (iii) discorrer sobre os fundamentos e a eficácia da implementação de
contratações públicas sustentáveis como instrumento de política urbana.
A partir das considerações iniciais e da metodologia adotada para o presente
trabalho, partir-se-á ao seu desenvolvimento, no sentido de traçar breves linhas
acerca da análise legislativa e teórica sobre os temas propostos para, enfim,
apresentar os resultados e as conclusões finais.

DESENVOLVIMENTO

As políticas urbanísticas voltadas à proteção do meio ambiente natural e


artificial estão previstas na Constituição Federal de 1988, que estabeleceu, por
exemplo, como competência político-administrativa da União, a instituição de
diretrizes nacionais ao desenvolvimento urbano, habitação e saneamento básico (art.
21, XX, CF) e, como competências comuns a todos os entes federativos, a proteção
do meio ambiente e as ações em prol da garantia de moradia adequada e de acesso
ao saneamento básico (art. 23, VI, VII e IX, CF).
78

Compete, ainda, à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar


concorrentemente sobre Direito Urbanístico (art. 24, I, CF), que é essencial à proteção
do meio ambiente, visto que a organização da cidade perpassa pelas infraestruturas
básicas a ela concernentes. Ademais, tendo o Município interesse em legislar sobre
assuntos eminentemente locais, poderá suplementar legislações federais e estaduais
que tratem da temática (art. 30, I e II, CF).
Sabendo que o cumprimento de tais disposições perpassa a formulação e
execução de políticas públicas pela Administração, é importante ressaltar que as suas
ações, por serem necessariamente pautadas no regime jurídico administrativo, estão
vinculadas a princípios que visam a garantir a tutela dos interesses indisponíveis da
coletividade, notadamente por meio dos princípios da legalidade, moralidade,
eficiência, boa administração e continuidade dos serviços públicos, observando,
ainda, a supremacia do interesse público e a proteção aos direitos fundamentais, nos
quais se incluem a qualidade do meio ambiente e o bem-estar da sociedade.
Nessa seara, torna-se indispensável a rígida observância da legislação que
rege as contratações públicas para a consecução dos fins estatais supramencionados,
notadamente a Lei nº 8.666/93, que dispõe sobre normas gerais de licitações e
contratos administrativos, aplicável, portanto, às esferas federal, estadual, distrital e
municipal. Sabe-se, ainda, que a celebração de contratos administrativos, precedida
ou não do processo licitatório, nos termos da lei, visa a satisfazer necessidades da
Administração no gerenciamento da coisa pública, nas quais se pode incluir a garantia
da sustentabilidade, tanto por força dos ditames constitucionais de natureza social e
ambiental, quanto da alteração advinda na referida norma por intermédio da Lei nº
12.349/10, que inseriu o desenvolvimento nacional sustentável como finalidade da
licitação.
Sobre o desenvolvimento sustentável, inicialmente, ressalta-se que sua gênese
no cenário internacional remonta à Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente
Humano, realizada em Estocolmo, na Suécia, em 1972, cujo relatório final estabeleceu
princípios que visavam a harmonizar o crescimento econômico com a proteção do
meio ambiente1.
Outro marco importante foi a elaboração do relatório “Nosso futuro Comum”,
também conhecido como Relatório Brundtland, pela Comissão Mundial sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, em 1987, no qual se estabeleceu
efetivamente o conceito de desenvolvimento sustentável, sendo aquele
“desenvolvimento que encontra as necessidades atuais sem comprometer a
habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades” 2.
Tais acontecimentos culminaram na realização da Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento no Rio de Janeiro, em 1992.
Depois desse evento, foram realizadas diversas ações semelhantes pelas Nações
Unidas, dentre as quais a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável
(Rio+10), em 2002, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentável (Rio+20), em 2012, e a Cúpula de Desenvolvimento Sustentável, em

1
Cabe ressaltar, porém, que as discussões ambientais são anteriores a esse evento, tendo-se iniciado no pós-segunda guerra
mundial, momento do surgimento dos primeiros sinais de uma preocupação pelo meio ambiente global “(...) partiendo de hitos
históricos como la Conferencia de Naciones Unidas sobre la Conservación y Utilización de los Recursos (1949), otras normas y
actos posteriores (...)”. (MARTÍNEZ, 2017, p. 121).
2
Esse conceito, apesar de amplamente utilizado, tem sofrido críticas, uma vez que não abrange adequadamente todos os fatores
que envolvem o desenvolvimento sustentável. Este não consiste apenas em garantir harmonia entre práticas e objetivos
econômicos e a manutenção da qualidade do meio ambiente para as presentes e futuras gerações, já que não se resume à
moderada utilização dos recursos naturais da Terra. Ao desenvolvimento sustentável, portanto, deve ser atribuída uma
concepção mais ampla, que abarque também os aspectos sociais. Dessa forma, no entendimento proposto deve preponderar
uma visão holística, que observa os fenômenos econômicos, ambientais e sociais em suas características convergentes para,
então, formular políticas integradas e efetivas à promoção da igualdade e qualidade de vida (MISIŪNAS; BALSYTĖ, 2009).
79

2015, quando foram definidos os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS),


que sucedem e atualizam os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), de
2000, e que hoje são um referencial de aplicação do desenvolvimento sustentável em
todos as variáveis e níveis de organização política.
No que diz respeito às licitações, a questão da sustentabilidade aplicada nas
contratações governamentais surge a partir da ascensão do meio ambiente como eixo
condutor de discussões no âmbito nacional e internacional nas últimas décadas,
sofrendo impulso logo após o processo de aprofundamento da globalização em
meados da década de 1980, como acima demonstrado. A temática, nesse passo, tem
se tornado item obrigatório nas agendas governamentais, nas três esferas de poder,
como peça estratégica e fundamental na estrutura da gestão pública gerencial, que
deve buscar não só a tutela do meio ambiente, mas também a promoção do
desenvolvimento socioeconômico equilibrado, para a presente e as futuras gerações.
Tradicionalmente, a licitação pode ser considerada como um conjunto de regras
legais objetivas a fim de conferir organização metodológica, transparência
procedimental e segurança jurídica às relações entre o poder público e os particulares,
quanto este busca adquirir bens ou serviços, bem como alienar bens. Como
decorrência lógica, haverá a elaboração de um contrato administrativo, que é o
instrumento apropriado para formalizar a avença firmada entre o meio público e o
universo privado.
Na atualidade, gestores públicos devem incutir em suas ações os ditames da
sustentabilidade, mas também precisa atender todas as finalidades decorrentes de
um certame tradicional. Partindo-se dessas observações, o governo federal, através
da Secretaria de Articulação Institucional e Cidadania Ambiental, departamento
vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), estabeleceu um conceito de
licitações sustentáveis, por meio da cartilha explicativa da A3P (Brasil, 2009, p. 48):

Compras sustentáveis consistem naquelas em que se tomam atitudes


para que o uso dos recursos materiais seja o mais eficiente possível. Isso
envolve integrar os aspectos ambientais em todos os estágios do
processo de compra, de evitar compras desnecessárias a identificar
produtos mais sustentáveis que cumpram as especificações de uso
requeridas. Logo, não se trata de priorizar produtos apenas devido a seu
aspecto ambiental, mas sim considerar seriamente tal aspecto juntamente
com os tradicionais critérios de especificações técnicas e preço.

Nesse contexto, a realização das contratações ditas sustentáveis deve ir além


dos critérios habituais estipulados para a aquisição de produtos e serviços, utilizados
para suprir a necessidade coletiva. Devem ser incorporadas regras de índole
ambiental e, consequentemente, que se privilegiem empresas que geram menos
impacto negativo ao meio ambiente, não só quando da oferta de determinado bem ou
serviço, mas que estas apliquem os ideais sustentáveis em sua estrutura interna e em
toda a sua cadeia produtiva, em uma visão sistêmica de todo seu ciclo de vida
funcional. Trata-se, portanto, de um grande investimento governamental no
procedimento licitatório que antecede, em geral, as contratações públicas, com o fito
de incutir a sensibilização ambiental não apenas a nível institucional, mas a todos os
atores envolvidos com o poder público, para que reverbere em toda a coletividade.
Em termos legislativos, a primeira norma que trouxe a sustentabilidade
relacionada às compras públicas foi o Decreto nº 2.783, de 17 de setembro de 1998,
que dispõe sobre a proibição de aquisição, pelos governos e pelas entidades
integrantes da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, de
produtos ou equipamentos que contenham ou façam uso de Substâncias que
80

Destroem a Camada de Ozônio (SDO), expressamente discriminadas no anexo da


norma em apreço. Foram excluídos da vedação os produtos ou equipamentos
considerados essenciais, conforme classificação estabelecida pelo Protocolo de
Montreal3.
A partir dessa previsão, foi dado prosseguimento às iniciativas de adoção de
práticas socioambientais ao cotidiano da Administração Pública, conforme os
seguintes instrumentos normativos, elencados cronologicamente:
1. Recomendação nº 11, de 22 de maio de 2007, do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), cuja finalidade é aconselhar os tribunais relacionados no texto
constitucional a adotarem políticas públicas voltadas à formação e recuperação de um
ambiente ecologicamente equilibrado;
2. Instrução Normativa (IN) nº 02, de 30 de abril de 2008, da Secretaria de
Logística e Tecnologia da Informação (SLTI) do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão (MPOG), que contém práticas sustentáveis atreladas às
compras governamentais;
3. Portaria nº 61, de 15 de maio de 2008, do Ministério do Meio Ambiente
(MMA), com o principal objetivo de estabelecer práticas de sustentabilidade ambiental
a serem observadas nas licitações e demais formas de contratações realizadas pelo
MMA;
4. Instrução Normativa nº 01, de 19 de janeiro de 2010, da SLTI-MPOG,
que dispõe sobre os critérios de sustentabilidade ambiental na aquisição de bens,
contratação de serviços ou obras pela Administração Pública federal direta, autárquica
e fundacional;
5. Portaria nº 02, de 16 de março de 2010, da SLTI-MPOG, que versa sobre
as especificações de bens ligados à Tecnologia da Informação (TI) no horizonte da
Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, imputando a ela os
métodos ambientalmente corretos;
6. Lei nº 12.349, de 15 de dezembro de 2010, que modifica alguns
dispositivos da lei geral das licitações e contratos administrativos, merecendo
destaque o incremento da questão ambiental como finalidade na nova redação do art.
3º, ao dispor que “A licitação destina-se a garantir a observância do princípio
constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a
administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável (...)”;
7. Decreto nº 7.746/2012, que regulamentou a nova redação do art. 3º da
Lei nº 8.666/1993 e consiste na regulamentação jurídica a respeito da sustentabilidade
aplicada às compras governamentais;
8. Decreto nº 7.746, de 05 de junho de 2012, que regulamentou o art. 3º da
Lei nº 8.666/1993 e estabelece critérios e práticas visando à promoção do
desenvolvimento nacional sustentável através das contratações realizadas pela
Administração Pública direta, autárquica e fundacional, como também pelas empresas
estatais dependentes;
9. Instrução Normativa nº 10, de 12 de novembro de 2012, da SLTI-MPOG,
com finalidade específica, pois estabelece regras para a elaboração dos Planos de
Gestão de Logística Sustentável (PLS), que fora estabelecido pelo art. 11, I, “b” do
Decreto nº 7.746/2012;

3
De acordo com o sítio eletrônico do Ministério do Meio Ambiente, o “Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a
Camada de Ozônio, é um tratado internacional que entrou em vigor em 01 de janeiro de 1989. O documento assinado pelos
Países Parte impôs obrigações específicas, em especial a progressiva redução da produção e consumo das Substâncias que
Destroem a Camada de Ozônio (SDOs) até sua total eliminação”. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/clima/protecao-da-
camada-de-ozonio/convencao-de-viena-e-protocolo-de-montreal.html>. Acesso em: 09 out. 2018.
81

10. Resolução CNJ nº 201, de 03 de março de 2015, que dispõe sobre a


criação e competências das unidades ou núcleos socioambientais nos órgãos e
conselhos dos tribunais, sendo também responsável pela implantação do Plano de
Logística Sustentável no Poder Judiciário (PLS-PJ);
11. Finalmente, o Decreto nº 9.178, de 23 de outubro de 2017, alterou o
Decreto nº 7.746/2012, que regulamentou o art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de
1993, para trazer inovações recentíssimas à órbita das licitações sustentáveis, além
de instituir novos elementos à Comissão Interministerial de Sustentabilidade na
Administração Pública - CISAP.
Dentre as novidades trazidas por este último instrumento normativo, merece
destaque o art. 2º: “Na aquisição de bens e na contratação de serviços e obras, a
administração pública federal direta, autárquica e fundacional e as empresas estatais
dependentes adotarão critérios e práticas sustentáveis nos instrumentos
convocatórios, observado o disposto neste Decreto”. Cabe ressaltar que,
especificamente quanto à vigência do artigo 2º, esta se deu cento e oitenta dias após
a publicação do Decreto em apreço, que fora publicado em 23 de outubro de 2017.
Portanto, a obrigatoriedade quanto à adoção de “critérios e práticas sustentáveis nos
instrumentos convocatórios” passou a viger apenas a partir de 21 de abril de 2018.
Além disso, cabe ressaltar o artigo 3º com sua nova redação, o qual define que
“Os critérios e as práticas de sustentabilidade de que trata o art. 2º serão publicados
como especificação técnica do objeto” e não mais “veiculados como especificação
técnica” como dispunha a redação antecedente, trazida pelo Decreto nº 7.746/2012.
Essa alteração corrobora com a obrigatoriedade das práticas sustentáveis estarem
presentes desde o instrumento convocatório o que, portanto, vincula o contrato
administrativo dele decorrente.
A partir do panorama normativo apresentado, depreende-se, portanto, que o
Brasil possui, atualmente, importantes ferramentas à disposição dos gestores estatais
no propósito de inserir práticas de caráter sustentável, o que permite a mudança
comportamental na forma de consumo e provoca uma alteração estrutural significativa
na dinâmica do mercado interno, ao incentivar e promover avanços concretos na
implantação de uma economia mais equilibrada.

RESULTADOS

O presente estudo buscou demonstrar que não há como se dissociar uma


política urbana da contratação pública sustentável, visto que a efetiva satisfação da
necessidade da Administração – interesse público que norteou o procedimento –
pressupõe a utilização de mecanismos capazes de incrementar positivamente a
atuação ordinária estatal no planejamento e execução de políticas públicas, por meio
da licitação e/ou dos contratos administrativos que promovam a sustentabilidade
social e ambiental a partir da designação de requisitos técnicos, prévia e
isonomicamente estabelecidos, que devam ser atendidos pelo Contratado, assim
como a partir da estipulação de contraprestações relacionadas ao objeto da
contratação, ambos os casos em prol do interesse coletivo e de modo a não onerar
demasiadamente o erário nem a parte contratada.

CONCLUSÃO

A questão central e coerente com o papel do setor público comprometido com


a promoção da sustentabilidade deve ser o de alterar o paradigma de compras
82

públicas vigente, para além dos limitados critérios de preço e qualidade e de


interesses pessoais envolvidos, que desprezam a promoção social e a preservação
ambiental. É uma mudança de postura que poderá, efetivamente, impactar nos
padrões de produção e consumo de bens e serviços de toda a sociedade, além de
impulsionar determinadas organizações privadas que se destacam pela inclusão
social e pelo cuidado ambiental.
Por fim, a busca pelo objetivo da garantia da dignidade humana, atrelada ao
desenvolvimento sustentável, interpretada posteriormente como estratégia
governamental vinculada às políticas públicas, traz a temática ecológica como
questão chave na agenda pública, devendo ser reconhecida em todos os níveis de
governo como política indispensável, respondendo aos anseios dos movimentos
sociais, sobretudo aqueles contra a degradação natural. É um grande desafio,
portanto, a que toda a coletividade precisa estar atenta, para que as compras públicas
sustentáveis sejam uma realidade cada vez mais presente em todas as relações
jurídicas governamentais e, em reflexo, nas ações privadas, afim de que se tenha
efetividade na aplicação das normas ora estudadas.

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conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo:
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83

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84

CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO - NATUREZA JURÍDICA


E APLICABILIDADE FRENTE A INEFICIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
BRASILEIRA
PUBLIC SERVICE CONCESSION AGREEMENT – LEGAL NATURE AND
APPLICABILITY DUE THE INEFICIENCY OF THE BRAZILIAN PUBLIC
ADMINISTRATION

Tiago Miranda Soares


Ana Amélia Barros Miranda

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar de que forma a ineficiência do
poder de gestão da Administração Pública brasileira influencia na política de
desestatização de serviços públicos através de contratos de concessão. Da mesma
forma, analisar quais os pontos positivos e negativos dessa tendência
descentralizadora de competência estatal. Através do exame dos atributos
pertinentes, verificar se tais concessionárias estão, de fato, melhorando a qualidade
dos serviços públicos a elas delegados, e, portanto, atendendo ao interesse público
que os fundamentam, ou se tais contratos administrativos precarizam sua qualidade
ou dificultam o acesso da população a esses serviços, o que faz com que tais
instrumentos percam sua finalidade pública e gerem uma agressão ao princípio da
supremacia do interesse público, bem como aos princípios constitucionais que
disciplinam a atividade administrativa.
Palavras-Chave: Administração Pública. Ineficiência. Concessão de Serviço Público.

Abstract: The present study aims to analize how the ineficiency of the brazilian public
administration influences the politic of destabilization of public services through the
concession of these by public agreements. Also, the analysis of what are the positive
and negative points of this state competence descentralization tendence by the
assignment of public services to private companies. Throught the exam of the institutes
present in case, the study will analize if these dealerships are, indeed, improving the
quality of the services and attending the public interest of these contracts; or if the
public services are, actually, getting worse, which makes these agreements lose their
public goal and to be hitted the administrative foundations, like the foundament of the
supremacy of public interest.
Keywords: Public Administration. Ineficiency. Public Service Concession Agreement.

INTRODUÇÃO

Não é estranho ao senso comum do diálogo político do brasileiro médio o


debate acerca da ineficiência administrativa do Estado quanto a certos aspectos que
norteiam as funções de titularidade da Administração Pública por determinação
constitucional. Atualmente, muito se tem contendido sobre a aplicabilidade fática das
normas de natureza principiológica, tanto as de carácter constitucional quanto as de
carácter informativo, na atribuição de gerenciamento da Administração Pública
brasileira, frente aos mais diversos casos, amplamente divulgados pelos meios
midiáticos, de servidores públicos sobrepondo os seus interesses pessoais acima dos
interesses coletivos, que são, por excelência, o objetivo a ser almejado pelo Poder
Público.
Isso reflete, direta ou indiretamente – em conjunto com outros fatores a serem
expostos –, na eficiência da prestação de serviços públicos de interesse social
85

relevante, motivo pelo qual também emerge no cenário do debate político a indagação
acerca da possibilidade de delegação de serviços públicos úteis à iniciativa privada.
Dessa forma, vemos que a temática que envolve a concessão de serviços
públicos advém estritamente da discussão política que cerca a prestação de tais
serviços. Isso se constata claramente, pelo fato de que tais contratos administrativos
são oriundos, imperiosamente, de uma decisão política de delegação de competência
administrativa. Há, por esse motivo, portanto, imprescindível vínculo entre o interesse
governamental, especialmente sob o aspecto da prestação de serviços públicos, e a
outorga destes por meio dos contratos de concessão.
Preceitua Marçal Justen Filho (2003, p. 11), sobre o instituto da concessão,
nesse sentido:

A concessão se vincula, primeiramente, à temática do serviço público. Isso


significa o compromisso de atendimento a necessidades essenciais,
diretamente relacionadas com o princípio da dignidade da pessoa
humana, o que conduz usualmente participação estatal. Em qualquer
caso, está em jogo o interesse coletivo, cuja persecução geralmente é
atribuída ao Estado, e que se faz sob o regime jurídico de Direito Público.

O que se coloca em questão aqui, e que tem sido o cerne do debate nesse
sentido, é se a delegação da execução de serviços públicos a particulares através de
contratos administrativos de concessão, consiste, de fato, em um benefício para a
coletividade, pois, afastando o encargo estatal de promoção de determinado serviço,
garante-se uma maior eficiência na prestação do mesmo, cabendo ao Estado
unicamente a atribuição de fiscaliza-lo; ou, se com a desestatização, ocorre a
precarização de sua qualidade e há, de alguma forma, prejuízo ao acesso da
população beneficiária a esses respectivos serviços.
Isto posto, versar-se-á aqui sobre os contratos de concessão correlacionando-
os com as atribuições estatais de delegação e consubstanciados com a temática dos
serviços públicos sobre o embate político; bem como as consequências dessa
delegação ao interesse da coletividade – objeto finalístico da Administração Pública.

DESENVOLVIMENTO

Consoante ao objeto dos contratos de concessão, a Constituição Federal de


1988 dispõe em seu art. 175, caput, que incumbe ao Poder Público, na forma da lei,
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação,
a prestação de serviços públicos.
Vemos, portanto, que por determinação constitucional, há uma incumbência
estatal à prestação de serviços públicos, ainda que este não os prestem de forma
direta, podendo haver a intermediação de privados, sendo fator condicionante para tal
a fiscalização e regularização do Poder Público, submetendo-se estes, portando, às
exigências do Direito Público.
Não há, contudo, delimitação constitucional para a definição de serviço público
para fins de balizar quais serviços deverão ser prestados pelo Estado. Dessa forma,
coube à doutrina a definição do mesmo. Tal definição possui tão somente como
finalidade a demarcação de quais constituirão responsabilidade gerencial da
Administração Pública.
Serviço público é, portanto, para Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p.
687):
86

(...) toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material


destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente
pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus
deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um
regime de Direito Público - portanto, consagrador de prerrogativas de
supremacia e de restrições especiais instituído em favor dos interesses
definidos como públicos no sistema normativo.

Vemos, portanto, que serviço público consiste em uma atividade de interesse


da coletividade, que possui natureza pública pelo fato de que o Estado considera de
relevância tal que não permite a sua exploração pela iniciativa privada; ou, ainda que
haja exploração destes por particulares, o Estado ou os presta conjuntamente com
este ou os supervisiona.
Deste modo, não se misturam os conceitos de serviço público e serviço de
utilidade pública em sentido amplo, pois, serviço de utilidade pública é toda e qualquer
atividade que gere como consequência o atendimento às necessidades sociais, a
satisfação de um interesse coletivo. O que define, portanto, se determinada atividade
será considerada um serviço público próprio, stricto sensu, é a constatação de que
esta é prestada pelo Estado – direta ou indiretamente –, submetida à regulamentação
específica do Direito Público, o que atribui a esta, portanto, a sua essência pública.
Sobre isso, Hely Lopes Meirelles (2016, p. 418) assenta:

Também não é a atividade em si que tipifica o serviço público, visto que


algumas podem ser exercidas pelos cidadãos, como objeto da iniciativa
privada, independentemente de delegação estatal (...), que são prestados
ao público em geral e a quem deles necessita, mas, embora satisfaçam a
interesses da coletividade, não se caracterizam como serviços públicos
exatamente porque não submetidas (as atividades) a um regime jurídico
de direito público (...).

A doutrina administrativa brasileira pormenoriza uma série de classificações


quanto à temática do serviço público. Para fins do que será tratado adiante,
examinaremos, em síntese, a classificação quanto à satisfação dos interesses da
coletividade, que relaciona-se com o alcance desses sob a óptica do atendimento ao
bem social almejado.
Nessa categorização, temos os serviços públicos essenciais e os serviços
públicos úteis. Serviços públicos essenciais são aqueles que o Poder Público é
imputado a prestar diretamente, pois constituem quesitos imprescindíveis para a
manutenção da ordem social, de forma que, caso estes fossem consignados a
particulares, ainda que sobre fiscalização do Estado, haveria grave risco à paz pública.
Estes serviços são os que envolvem segurança nacional, serviços de polícia e saúde
pública.
Já os serviços públicos úteis são aqueles que, embora de total interesse da
coletividade, não geram a obrigação de prestação estatal direta, pois entende-se que
a sua prestação delegada não configura risco à ordem social. Tais serviços objetivam
facilitar a vida do indivíduo na coletividade, pondo à sua disposição utilidades que lhe
proporcionarão mais conforto e bem-estar (MEIRELLES, 2016, p. 421). Para citar
como exemplos, temos os serviços de transporte público, energia elétrica, estradas,
dentre outros. É sob esta categoria que figuram os serviços públicos delegados por
contratos de concessão.
Sendo um contrato administrativo, o contrato de concessão se submete às
regras deste, porém com algumas peculiaridades, que serão apresentadas no
transcorrer da explanação. Tratam-se, dessa forma, de um vínculo jurídico, criado a
87

partir da autonomia de duas vontades, sendo uma destas a Administração Pública –


que figurará sempre no polo contratante desta relação jurídica –, que tem por
finalidade a prestação de terminado objeto economicamente quantificável, e que se
submete às determinações do Direito Público, possuindo forma e procedimentos
previsto em lei – notadamente a Lei no 8666/93. Reside já aqui uma peculiaridade dos
contratos de concessão, que possuem regulação própria – a Lei no 8987/95, não
obstante a aplicação subsidiária sobre estes dos preceitos da primeira.
Da mesma forma, a Lei no 8666/93, no que tange ao procedimento, dispõe de
hipóteses em que a licitação pode ser afastada em casos de dispensa e inexigibilidade
fundamentados. Tais circunstancias não se evidenciam nos contratos de concessão,
visto que não há possibilidade de contratação direta, por determinação constitucional.
Além disso, dispõe a Lei no 8987/95 que a modalidade de licitação a ser aplicada é a
de concorrência, exclusivamente.
Diferentemente do que ocorre na teoria geral dos contratos civis, que dispõe
que as partes contraentes gozam de uma isonomia de tratamento e figuram em polos
igualmente suficientes do ponto de vista legal; não se prospera tal presunção nos
contratos firmados com o Poder Público. Isso se dá, pois tais contratos abarcam o
princípio da supremacia do interesse público, que manifesta-se nestes no sentindo de
garantir à Administração, como guardiã do interesse público, certas prerrogativas
frente ao particular na sua atuação como contraente, as chamadas cláusulas
exorbitantes, que permitem à Administração Pública a rescisão e alteração contratual
unilateral, bem como fiscalizar a execução do objeto do contrato, e impor medidas
sancionatórias em caso de descumprimento das obrigações contratuais do particular
contratado.
Isso se justifica, pois, se os contratos administrativos possuem como finalidade
irremissível o atendimento ao interesse público, garante-se ao Poder Público
concedente a prerrogativa de poder adequá-lo a fim de que este possa assumir sua
destinação inerente de benefício à coletividade, ao bem social. Nas concessões, tal
prerrogativa são mais valídas pela Administração Pública, visto que o objeto é o
serviço público em si.
Os contratos de concessão configuram-se como contratos administrativos de
delegação, que ocorrem quando a Administração Pública delega a um particular a
execução de determinado serviço público de sua titularidade. Diferentemente dos
contratos de colaboração, onde o particular terá o encargo de prestar determinado
serviço ao Poder Público ou então alienar determinado bem de interesse do Poder
Público, e este terá o encargo de adimplir, pecuniariamente, o particular contratado.
O serviços prestados no contrato de concessão se dirigem à coletividade, e não à
satisfação de um interesse interno da Administração Pública.
Conveniente corroborar que, a outorga do serviço público ao particular não
corresponde a mudança da sua essência em privado, ou seja, não afasta o regime
jurídico público, continuando este sobre tutela do Estado. O que se delega, tão
somente, é a execução do serviço, de modo que o encargo deste perdura-se à
Administração. É nesse caminho a cognição de Marçal Justen Filho (2003, p. 6):

É que, na concessão, o Estado continua a ser o titular do poder de


prestação do serviço. Transfere-se a um particular uma parcela da função
pública, mas o núcleo da competência permanece na titularidade do
Estado. Assim, o Estado não está renunciando ao poder de prestar o
serviço, nem abre mão do poder de disciplinar as condições de sua
prestação. O concessionário atua perante terceiros como se fosse o
próprio Estado. Justifica-se, desse modo, o poder-dever de o Estado
retomar os serviços concedidos, a qualquer tempo e independentemente
88

do prazo previsto para a concessão, sempre que o interesse público o


exigir.

Cabe ainda a ressalva de que, sendo a exploração do serviço o exercício de


uma atividade econômica – visto que o concessionário lucra com tal prestação – os
riscos de tal atividade são reservados especialmente ao concessionário, não se
estendendo ao Poder Público concedente. Há, nada obstante, o direito do particular
concessionário ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato quando a instabilidade
na relação custo/lucro se der em decorrência de ato da Administração. O Poder
Público possui, dessa forma a prerrogativa de alteração unilateral somente quanto às
cláusulas de serviço, não quanto às cláusulas financeiras. É nessa linha de
discernimento a arguição de Dinorá Adelaide Musetti Grotti (2007, p. 16):

A definição de equação econômico-financeira das concessões espelha a


relação entre receitas e custos, tomada no momento da celebração do
contrato, fazendo, os concessionários, jus a um reequilíbrio do ajuste
diante de: a) alterações unilaterais do contrato, promovidas pela
Administração Pública; b) fatos imprevistos; c) atos governamentais,
alheios ao próprio contrato (fato do príncipe).

Portanto, sendo a natureza jurídica do serviço conservada com pública,


aplicam-se as disposições do Direito Público, mais propriamente sobre as formas de
prestação do mesmo, bem como a correspondência desta prestação com os princípios
de adequação do serviço. A Lei no 8987/95 pormenoriza, em seu art. 6o, §1o, os
seguintes princípios a serem observados para efetiva adequação dos serviços
públicos prestados por particulares: generalidade, continuidade, eficiência,
modicidade e cortesia.
A concessão possui uma dupla natureza: jurídica e política; dessa forma, sua
aplicação na atividade administrativa não se dá pelo simples critério de viabilidade
jurídica, mas também como projeto político. Nas palavras de Marçal Justen Filho
(2003, p. 58):

(...) a concessão é um instrumento de implementação de certas políticas


públicas. Não é pura e simplesmente uma manifestação da atividade
administrativa contratual do Estado. Muito mais do que isso, é uma
alternativa para realização de valores constitucionais fundamentais.

É reconhecido que, num contexto de Estado Democrático de Direito, o aparelho


estatal não comporta o montante de recursos necessários e nem estrutura
administrativa para que possa, isoladamente, prestar todos os serviços públicos de
interesse da coletividade. Por esse motivo, as concessões sempre estiveram
presentes na atividade estatal, variando somente em quantidades ínfimas, submetidas
à força ideológica governamental, sob o viés do liberalismo econômico.
Esse é também o entendimento de Marçal Justen Filho (2003, p. 154), que
preconiza:

Enquanto o desempenho das atividades públicas realizar-se apenas com


o concurso do patrimônio e servidores públicos, não se colocará em
questão a figura do contrato. Se e quando verificar-se insuficiência dos
recursos materiais humanos públicos para atender às necessidades, o
Estado terá de recorrer a terceiros. Deverá captar, no plano de
comunidade não estatal, os préstimos ou os bens privados, deles se
valendo para o desempenho de suas funções.
89

A crise fiscal que acometeu o Brasil entre os anos 80 e 90 – no mesmo período


de surgimento da política neoliberal –, fez com que arrecadação tributária do Estado
brasileiro, que já não era hígida, caísse ainda mais. Somado a isto, a vigente recessão
econômica, trazida a cabo por uma crise política, pôs em cheque também a
credibilidade da estrutura administrativa brasileira, bem como a capacidade desta de
prestar serviços públicos de maneira eficiente. Emerge, diante disso, a questão da
utilização ainda mais intensiva do instituto da concessão como alternativa para a
ineficiência gerencial do Estado brasileiro.
A questão que se objetiva responder aqui é se a opção pelo incremento da
desconcentração administrativa através da delegação de serviços públicos à iniciativa
privada – originada pelo debate político frente a crescente insuficiência estatal na
prestação de direta destes –, consiste, de fato, numa opção promissora frente às
vicissitudes da atual Administração Pública brasileira. Para tanto, analisaremos quais
os pontos positivos e negativos da tendente concentração dos serviços públicos úteis
sob fruição de privados.
Dentre as tônicas negativas, no tocante a promoção das necessidades sociais
– objeto intrínseco e motivo de ser da Administração Pública –, a primeira se manifesta
no sentido de que, afastado o encargo estatal de prestação direta do serviço,
reputando este à forma de condução e de prestação de uma empresa privada, pode-
se gerar a perda do poder de controle do mesmo. É certo que, sendo atribuição
pública, tal prestação não se dará de forma desmedida, devendo esta atender as
regulamentações públicas. Inafastável é, no entanto, a percepção de que há
irremediável perda, ainda que inócua, do domínio da Administração Pública sobre
estes, não obstante a criação de pessoas jurídicas de direito público próprias para tal,
notadamente, as agências reguladoras.
Vários são os estudos que apontam que, malgrado a ineficiência da prestação
direta dos serviços públicos, a Administração Pública brasileira se mostra inábil, de
igual forma, na atribuição de fiscalizar os serviços delegados; mostrando-se a
concessão dos serviços públicos, dessa forma, como uma medida paliativa frente à
problemática.
Ainda, muito se contende no diálogo político que as concessões de serviços
públicos à iniciativa privada tendem a onerar a utilização destes pela coletividade
usuária. Argumenta-se que a população, em sua porção indigente, não consegue
suportar a dispendiosidade da aplicação de tarifas sobre a utilização do serviço, ainda
que essas sejam definidas pelo próprio Poder Público, por um critério de modicidade,
ou seja, de fixação de baixos valores, de forma a garantir o acesso da população a
esses serviços. Nada obstante, há insatisfações constantes de usuários no tocante à
relação custo/benefício.
Alega-se ainda como distinção negativa, outrossim, que a concessão de serviço
público, pela sua natureza e forma próprias, acaba por transformar as necessidades
públicas em produtos para a exploração da iniciativa privada. Pondera-se que a
anuência estatal para a exploração econômica particular de serviços de interesse
social acaba por objetificar as carências humanas como fontes de receita para o
capitalismo.
Trazidas, dessa maneira, as contestações sobre a aplicabilidade das
concessões no regime administrativo brasileiro, se tecerão aqui as arguições quanto
a positiva aplicação do instituto. Inicialmente, as correntes que admitem o
preterimento da prestação direta de serviços públicos à prestação indireta, dividem a
90

exposição sobre três óticas: sob a ótica do Poder Público concedente; sob a ótica do
concessionário; e, por fim, sob a ótica do usuário.
Para o gestor público, a vantagem de se admitir a delegação dos serviços de
sua obrigação prestacional consiste na simplificação dos procedimentos burocráticos
que se impõem aos atos administrativos. Acaba-se por garantir, nessa conjuntura, os
princípios de eficiência e transparência da Administração Pública, pois, atribuindo a
prestação deste ao particular concessionário, afasta-se a necessidade de observância
estrita dessas regras.
Pode-se citar o seguinte exemplo: se o Poder Público decidir fazer determina
obra em uma rodovia, precisará passar por um longo procedimento licitatório, se
submeter a diversas formalidades e, ainda, arcará com os ônus da mesma, tais como
eventuais atrasos e superfaturamentos. Tais empecilhos, no entanto, deixam de
existir, se os serviços públicos prestados naquela rodovia encontram-se sob regime
de concessão, de modo que o projeto da obra será realizado sem a burocratização
exigida em regime público de realização.
Sob o ponto de vista do empresário concessionário, o proveito da prática deste
instituto reside no fato de que, resguarda-se a este a possibilidade de lucro sobre uma
atividade econômica na qual se possui conhecimento técnico, despendendo o menor
percentual de recursos possível combinado com a prestação de um serviço da melhor
qualidade possível.
O cidadão usuário do serviço, por sua vez, possui como prerrogativa a
possibilidade de, em casos de inadequada prestação do serviço, insatisfações e
reclamações correspondentes à este, procurar a resolução de seu conflito com a
própria empresa concessionária, havendo, portanto, a possibilidade de resolução de
conflitos em âmbito material, de maneira mais efetiva. Também, o apanágio de
cobrança é mais concreto, visto que o particular paga diretamente pelo serviço
ofertado; e, da mesma forma, o adimplemento dos prazos de obras e atualizações é
mais perceptível, visto que o Poder Público atribui sanções ao particular concedente
que não os observa.
Apresentadas as circunstâncias positivas e negativas do incremento da
utilização dos contratos de concessão no exercício administrativo, e encaminhando-
se para o desfecho do presente trabalho, ponderar-se-á, adiante, acerca das
adversidades identificadas na temática, bem como para a resolução do problema
apresentado no corrente trabalho.
Frente a já superada abstração de que a Administração Pública, por consistir
na mais forte instituição vigente no ordenamento jurídico, possui capacidade de
gerenciamento das necessidades públicas em sua integralidade; os contratos de
concessão de serviços públicos figuram como ajustes de cooperação efetivos para a
concretização, não somente das atribuições constitucionais da Administração Pública,
como também da efetivação dos direitos através da prestação adequada dos serviços
de sua titularidade.
As arguições contrárias a tendência de liberalização, desconcentração estatal
e migração para um regime de “Administração Gerencial” prosperam sob alguns
pormenores. No entanto, não se sustentam certas alegações sob enfoque próprio da
natureza jurídica do instituto aplicado. Ante o aspecto da oneração, se ampara no
sentido de que há, faticamente, a aplicação de preços públicos para o acesso ao
serviço. Contudo, tal premissa se esvazia quando se constata que o preço público só
se aplica àqueles que utilizam-se do serviço, conquanto que nos serviços públicos de
prestação direta, toda a coletividade, até mesmos os não usuários, são "pagadores
indiretos” do mesmo.
91

No tocante à mercantilização das necessidades públicas apresentado sob um


viés humanístico, tal querela também não se prospera quando assimilada com a teoria
administrativa das concessões. O serviço público que é cedido ao privado é de
natureza inelutavelmente útil, ou seja, como já disciplinado em tópicos anteriores, é
aquele serviço público que constitui o gênero de proveito à coletividade, tão somente.
Não se confunde este com serviço essencial, que é, a valer, aquele que caso não
ministrado pelo Estado diretamente, configura-se risco à coletividade, prodigalizando
sua própria existência.
Não está a se defender aqui, todavia, que a aplicação cega da teoria de
contratualização administrativa (GROTTI, 2007, p. 4) gerará a satisfação imediata de
todos as necessidades públicas, incontinenti. O que se elucida, tão somente, é que a
aplicação das concessões de serviços públicos, frente a insuficiência de poderio
diretivo e coordenativo da Administração Pública brasileira, se mostra como
alternativa viável para o progressivo asseguramento e alcance efetivo dos preceitos
principiológicos e constitucionais que disciplinam a atividade estatal; bem como para
se garantir os primados da dignidade humana e da justiça social.

CONCLUSÃO

O instituto jurídico da concessão de serviços públicos manifesta-se controverso


no tocante à sua aplicabilidade na prática administrativa nacional, de forma que se
acorda arduamente, no âmbito das discussões políticas, sobre a sua colocação e
manutenção frente ao panorama de ineficiência inerente à Administração Pública
brasileira, no que se refere à prestação adequada de serviços públicos à coletividade,
sendo esta sua atribuição constitucional, portanto, o efetivo alcance às necessidades
públicas.
Após exame criterioso das mais diversas variáveis da temática, conclui-se que
o ajuste da delegação da incumbência estatal de prestação de serviços públicos
através de contratos de concessão se mostra, posto a ineficiência do Poder Público
vernáculo – engendrado de uma evolução histórica de enfraquecimento da
capacidade financeira do Estado, e, mais recentemente, tendo sua credibilidade
mitigada, diante de crises políticas e econômicas –, como caminho exequível para o
alcance da ordem administrativa constitucional, bem como o asseveramento em
absoluto do preceito da dignidade da pessoa humana.
Os contratos de concessão apresentam-se, portanto, como a forma com a qual
a Administração Pública atinará o diálogo com o corpo social, a fim de garantir a
satisfação de suas propensões, e com a qual conceberar-se-á a esta o protagonismo
necessário frente à sua mais importante função em um Estado Democrático de Direito:
a garantia, irrestrita, do interesse público.

REFERÊNCIAS

JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviços públicos. São
Paulo: Dialética, 2003.
___________. As Diversas Configurações da Concessão de Serviço Público.In:
Revista de direito público da economia: RDPE. Imprenta: Belo Horizonte, Forum,
2003.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª Edição. São
Paulo: Malheiros, 2013.
92

MEIRELLES, Hely Lopes. FILHO, José Emmanuel Burle Filho. BURLE, Carla Rosado.
Direito Administrativo Brasileiro. 42ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2016.
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. A experiência brasileira nas concessões de serviço
público. Interesse Público, Belo Horizonte, v. 9, n. 42, mar. 2007. Disponível em:
<http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/38544>. Acesso em: 15/08/2018.
93

MARCO REGULATÓRIO DAS ORGANIZAÇÕES DE SOCIEDADE CIVIL:


MECANISMOS DE CONTROLE E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
REGULATORY FRAMEWORK FOR CIVIL SOCIETY ORGANIZATIONS:
MECHANISMS OF CONTROL AND ADMINISTRATIVE IMPROBIT

Marcos Venancio Silva Assunção


Jessika Caroline Souza Costa

Resumo: Esta pesquisa nasce da observação de atos de improbidade administrativa,


envolvendo parcerias entre Organizações de Sociedade Civil e o poder Público.
Essas irregularidades envolvem o descumprimento dos requisitos legais de
contratação, desvios de finalidade, descumprimento de metas, impropriedades na
execução dos orçamentos e prestação de contas. Em 2014, com a entrada em vigor
do Marco Regulatório das Organizações de Sociedade Civil, Lei 13.019/14
estabeleceu-se novo tratamento jurídico para a realização das parcerias público
privadas, nas quais Poder Público e Organizações da Sociedade Civil, atuam em
sistema de cooperação para alcançar finalidades públicas de interesse comum, com
o objetivo de coibir irregularidades e dar maior segurança jurídica nas relações de
PPP. O presente estudo, propõe-se analisar, em que medida o MROSC proporciona
mudanças contra a improbidade administrativa, no cenário das Parcerias Público
Privadas e quais os pontos críticos se estabeleceram contra improbidade
administrativa, desde a vigência da Lei e suas alterações.
Palavras-chave: Marco Regulatório, Controle, Improbidade Administrativa

Abstract: This research is born from the observation of acts of administrative


improbity, involving partnerships between Civil Society Organizations and the Public
Power. These irregularities involve noncompliance with legal requirements for
contracting, deviations from purpose, noncompliance with targets, improprieties in
budget execution and accountability. In 2014, with the entry into force of the Regulatory
Framework of Civil Society Organizations, Law 13,019 / 14 established a new legal
treatment for the realization of public-private partnerships, in which Public Power and
Civil Society Organizations, act in a system of cooperation to achieve public purposes
of common interest, with the aim of curbing irregularities and giving greater legal
certainty in PPP relations. The present study intends to analyze the extent to which the
MROSC provides changes against administrative impropriety in the scenario of Public
Private Partnerships and which critical points have been established against
administrative impropriety since the validity of the Law and its amendments.
Key words: Regulatory Frameworks, Control, Administrative Misconduct

INTRODUÇÃO

Em 31 de julho de 2014, foi instituído no Brasil, o novo Marco Regulatório das


Organizações da Sociedade Civil (MROSC). O objetivo principal da edição da Lei
13.019/14 é regulamentar as relações de parceria realizadas entre os governos e
instituições do terceiro setor.
O novo regime jurídico que já conta com alterações trazidas pela Lei 13.204,
de 14 de dezembro de 2015, inaugura em suas diretrizes a priorização do controle de
resultados, positivando de forma inovadora o procedimento de controle e fiscalização
administrativa de Parcerias Público Privada (PPP).
94

Assim, à luz do direito brasileiro, este estudo se propõe analisar, em que


medida a Lei 13.019/14, proporciona mudanças contra a improbidade administrativa,
e quais os pontos críticos acerca MROSC, no cenário das Parcerias Público Privada.
Nesse propósito, serão considerados como objeto de investigação, o cenário
legislativo vigente à época da construção da Lei e demais fatores relevantes para a
publicação do dispositivo em análise, como o grande número de OSC’s que
emergiram nas duas últimas décadas. Some-se a isso, a necessidade de uma Gestão
Pública mais especializada e gerencial, e a falta de uma regulamentação de âmbito
nacional que disciplinasse os repasses de recursos, às Organizações de Sociedade
Civil

CONTEXTUALIZAÇÃO

Nas últimas décadas o Estado brasileiro tem sofrido os impactos da


globalização, deparando-se com a necessidade de adequar sua organização
administrativa às novas demandas políticas, econômicas, ideológicas e sociais.
Juntamente com a mudança de cenário, novos atores sociais têm surgido como via
alternativa que possibilitem o atendimento aos mais variados tipos de interesse
público.
Nos países em desenvolvimento como o Brasil, o projeto de um Estado Social
de direitos, não se demonstrou eficaz ao longo dos anos, causando considerável
descrédito e enfraquecimento desse modelo estatal, por não conseguir efetivar seu
caráter compromissório pactuado constitucionalmente com seus cidadãos. Essa
fragilidade vem exigindo que a Administração Pública, cada vez mais, democratize a
participação dos cidadãos brasileiros, nos termos do parágrafo 3º, do Art. 37, da
Constituição Federal, através de consultas, reclamações e representações, contra a
administração pública. Nessa perspectiva, os novos modelos estatais tendem a se
adaptar, modernizando suas funções típicas de fomento, regulação, fiscalização,
administração e amparo social, e ao mesmo tempo, recorrendo às parcerias
especializadas que tem condições de auxiliar os Governos, na garantia dos direitos
sociais necessários à população (DIAS, 2008).
Apear das diversas entidades abrangidas pelo terceiro setor, este estudo se
detém na análise daquelas tratadas especificamente pela Lei 13.019/2014, chamadas
hoje de OSC’s, organizações de Sociedade Civil, definidas como instituições de
utilidade pública, qualificadas como organismos sociais ou organizações da sociedade
civil de interesse público e os serviços sociais autônomos (MODESTO, 2011).
Nos últimos anos, sobretudo após a vigência do MROSC, houve uma explosão
no número de OSCs existentes no brasil. Segundo dados recentes do IPEA, as OSCs
somam o quantitativo 820.455 instituições ao todo no país. Como já visto, esse
crescimento é proveniente da insuficiência tanto do Estado, quanto do mercado para
providenciar bens públicos que atendam às demandas sociais de forma satisfatória
(COELHO, 2002).
Outro dado relevante fornecido pelo site DCI de notícias, baseado em dados
coletados da Controladoria Geral da União (CGU), demonstram que os repasses
federais às entidades sem fins lucrativos caíram 31,5% no período, de R$ 10,539
bilhões, em 2014, para R$ 7,214 bilhões, em 2015, devido a recessão e o ajuste fiscal
realizados naquele período. A informação serve para dar uma noção estimativa, dos
dos valores repassados às OSCs, pelo menos em nível federal, considerando a
dificuldade em se obter tais informações de forma atualizada (DCI, 2016).
95

Os fatos demonstram que as relações entre o poder público e o terceiro setor,


nem sempre configuram melhor custo-benefício para a sociedade. Ao longo dos anos,
vários foram os casos de ineficiência e corrupção envolvendo as parcerias público
privadas. Os noticiários frequentemente denunciam os escândalos envolvendo
políticos corruptos e gestores oportunistas, envolvidos em escândalos com OSCs, por
desvios e mau uso dos recursos públicos.
O Marco Regulatório das Organizações de Sociedade Civil, foi editado como
uma tentativa de normatizar as práticas de gestão e prestação de contas, relativas às
Parcerias Público Privadas, visando sobretudo, inibir atos de improbidade
administrativa e desvios de recursos Públicos. Sua abrangência, alcança todas as
entidades do Terceiro Setor que previstas em lei, façam parceria com o Poder Público,
em todos níveis da federação, com a finalidade de subsidiar o Estado, na execução
de atividades finalísticas de interesse público.

DEFINIÇÕES E REQUISITOS

O Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil – MROSC, pode ser


definido como agenda política, com o propósito de aperfeiçoar as relações jurídicas e
institucionais das Organizações da Sociedade Civil e suas parcerias estabelecidas
com o Estado.
A Lei Federal n° 13.019, de 31 de julho de 2014, estabeleceu novo tratamento
jurídico para a realização das parcerias público privadas, nas quais tanto o Poder
Público quanto as Organizações da Sociedade Civil, atuam em sistema de
cooperação para alcançar finalidades públicas de interesse comum. A lei se aplica a
todos os órgãos e entidades públicas federais, estaduais e municipais, dos poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário, sendo, portanto, de abrangência nacional.
Entende-se por Organizações da Sociedade Civil – OSCs, todas as
organizações de caráter privado, dotadas de personalidade jurídica própria, que
atuam precipuamente na promoção e defesa de direitos, assim como desempenham
atividades nas áreas de cultura, saúde, educação, ciência e tecnologia, assistência
social, agricultura, habitação, direitos humanos, entre outras de interesse público. São
definidas como OSCs, as entidades privadas sem fins lucrativos, as sociedades
cooperativas e as organizações religiosas.
Dentre as que celebram parcerias com a Administração Pública pode-se
relacionar creches, APAE, Abrigos e ONGs de amparo a idosos, Cooperativas de
Produtores Rurais, Associações de Catadores e Reciclagem, Federações e
Associações Esportivas, Associações Culturais, entre outras.
Para que ocorra a celebração de uma parceria envolvendo transferência de
recursos financeiros, são indispensáveis a utilização dos instrumentos formais
previstos em na Lei, denominados de Termo de Colaboração, ou Termo de Fomento.
Caso não haja transferência de recursos financeiros, o instrumento será celebrado por
um Acordo de Cooperação (BRASIL, 2014).
No Termo de Colaboração, são previamente estabelecidas pelo governo, as
diretrizes da parceria e sua celebração, se faz por meio de chamamento público. No
Termo de Fomento, a seleção também é feita via chamamento público porém, não há
delimitação das propostas, podendo as OSCs, sugerirem quais os melhores projetos
de atuação devem ser aplicados à determinada necessidade Pública.
Os casos de Acordo de Cooperação, quando não há transferência de recursos
financeiros, a parceria pública privada se estabelece por dispensa ou inexigibilidade,
para os específicos previstos em Lei, a fim de que se desenvolvam projetos de
96

interesse mútuo e finalidade pública. Ressalte-se, que nos casos de comodato,


doação patrimonial ou outra forma de compartilhamento de bens é necessário a
realização de chamamento público nos termos art. 29º, Lei nº 13.019/2014.
Chamamento Público é o procedimento pelo qual se realizam as seleções das
Organizações de Sociedade Civil, interessadas e capazes de fazer parceria com a
administração Pública. Sua função é dar isonomia à seleção, entre as OSCs
concorrentes para obtenção de recursos públicos, com a apresentação da proposta
mais adequada. É feito por intermédio de um edital que estabelece os critérios da
seleção, garantindo a observância dos princípios da administração pública, da
vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos princípios
específicos das políticas públicas setoriais. Em casos excepcionais, porém, a Lei
admite a dispensa de chamamento público, ou sua a inexibilidade (BRASIL, 2014).
Poderá ocorrer a dispensa do chamamento público, sempre em que houver
urgência de celebração de parceria, por paralisação ou iminência de paralisação das
atividades de relevante interesse público; nos casos de guerra, calamidade pública,
grave perturbação da ordem pública, ou ameaça à paz social; ou ainda, nos casos de
programas de proteção à pessoas ameaçadas, ou em situação que possa
comprometer sua segurança. Por fim, a Lei prevê dispensa para atividades voltadas
a serviços de saúde, educação e assistência social; nestes casos, se aplicam apenas
para organizações com cadastro prévio, realizado pelo órgão público responsável pelo
acordo (BRASIL, 2014).
É permitida também, contratação na modalidade inexigibilidade quando for
exclusivo o objeto da parceria, ou seja, quando as metas propostas para o alcance
dos resultados, sejam alcançadas apenas por uma determinada OSC. Outro motivo
de inexigibilidade ocorre, quando a OSC é indicada por acordo internacional, ou em
lei que a mencione. Nisto, inclui-se também, a subvenção social. Vale destacar, que
tanto a dispensa, quanto a inexigibilidade, exigem que o gestor público justifique da
ausência do chamamento.
Além das modalidades anteriores, o Marco Regulatório prevê também a
ausência de chamamento público, quando o repasse dos recursos forem oriundos de
Emendas Parlamentares. Estas contratações, devem respeitar as exigências
específicas trazidas na Lei.
A Lei 13.019/14 elencou em seus artigos 33 e 34, os requisitos formais para
que as OSCs possam celebrar parcerias com o Poder Público, dentre os quais, a
apresentação de estatuto contendo o objetivo da atividade proposta, cláusula de
transferência do patrimônio líquido, para outra pessoa jurídica de igual natureza,
preferencialmente com objeto social igual ao da extinta, nos casos de dissolução,
além disso, exige cláusula prevendo a escrituração de acordo com as Normas
Brasileiras de Contabilidade. Prevê ainda, os requisitos temporais de 3 (três) anos de
existência para parcerias com a União, 2 (dois) anos para parcerias com o Estado e o
Distrito Federal e 1(um) ano para parcerias com Municípios. A capacidade técnica,
material e operacional das OSCs, serão estabelecidas mediante decreto (BRASIL,
2014).
Na intenção de dar segurança jurídica às parcerias, o MROSC inovou,
formando uma espécie de ficha limpa, ao vedar a celebração de convênios com OSCs
que tiveram suas contas rejeitadas, ou mesmo punidas com suspensão para participar
de licitações, contratos e parcerias com a Administração Pública. O regramento
impede a celebração de parcerias com organizações, em que seus dirigentes tenham
contas julgadas como irregulares, sejam acusados de improbidade administrativa, ou
cometido faltas graves e inadequadas para o cargo ocupado. Além disso, proíbe
97

parcerias com OSCs, cujo dirigente máximo tenha parentesco em linha reta, colateral,
ou por afinidade, de até segundo grau, com dirigente de órgão ou entidade da
Administração Pública da mesma esfera governamental na qual será celebrada a
parceria. (BRASIL, 2014).

CONTROLE E MONITORAMENTO

Quanto ao controle e monitoramento das parcerias público privadas, a Lei


13.019/14 admite a utilização de apoio técnico de terceiros, ou seja, o suporte de
outros entes públicos, ou entidades localizadas na região em que se desenvolve a
parceria e que permita maior eficácia no acompanhamento das atividades executadas.
As atividades monitoradas serão prestadas por meio de relatório, a ser avaliado por
uma Comissão de Monitoramento e Avaliação, que é órgão colegiado, instituído por
ato normativo específico, encarregado de verificar se as ações estão condizentes com
o interesse público pretendido e com os objetivos fixados na parceria (BRASIL, 2014).
Para auxiliar no controle das operações, poderá ser criado também, através de
Decreto, o CONFOCO - Conselho Estadual de Fomento e Colaboração, órgão
colegiado, composto por representantes do Poder Executivo Estadual e por
representantes da sociedade civil em igual número. |Este Conselho tem a função de
propor sugestões, dar apoio e monitorar políticas e ações que solidifiquem as
parcerias celebradas pelo Poder Público.
Outra inovação do MROSC é o controle das contas com foco nos resultados.
Nesse método, a Administração Pública pode verificar o cumprimento dos indicadores
de resultado, inicialmente através da análise de prestação de contas simplificada,
apresentadas pela OSC. Caracterizado o descumprimento de metas e do objeto
pactuado, serão exigidos outros documentos que permitam a comprovação das
despesas realizadas. Outro avanço significativo é a possibilidade eletrônica de
prestação de contas, proporcionando maior celeridade e transparência na
fiscalização.
Os prazos legais para a realização das prestações de conta são tratados no
art. 49 da Lei, estabelecendo que as parcerias que extrapolem o período de um ano,
deverão prestar contas anualmente em caráter obrigatório. Finalizada a parceria a
OSC terá ainda um prazo de 90 dias, prorrogados por mais 30, para apresentação da
prestação de contas final, conforme a inteligência do art. 69, da norma em comento.
A Administração Pública por sua vez, terá que analisar as contas apresentadas
pela OSCs, no intercurso de tempo de 150 dias, prorrogados por mais 150, se houver
motivo justificável. Ao final, emitirá parecer conclusivo da apreciação, classificando a
conta como aprovadas, aprovada com ressalva, ou reprovada (BRASIL, 2014).

PENANLIDADES

Nos casos em que houver comprovação de irregularidades ou inadequações


ao cumprimento dos objetivos estabelecidos no plano executivo proposto na parceria,
poderá a Administração Pública poderá aplicar sanções à OSC. Apenas Ministros de
Estado e Secretários Estaduais ou Municipais, possuem competência para aplicação
das sanções nos termos da Lei, como: advertência, suspensão de participação em
chamamento público e declaração de inidoneidade que impede parcerias e contratos
com a Administração por 2 anos e ressarcimento de prejuízos causados.
Não obstante, a Lei Federal n° 13.019/2014, art. 77, traz em seu bojo,
dispositivos que inibem a atos de improbidade administrativa, alterando o art. 10 da
98

Lei 8.429 de 1992, Lei de Improbidade Administrativa considerando: frustrar a licitude


de processo seletivo, negligencias na celebração, fiscalização e análise das
prestações de contas, descumprimento das normas pertinentes à celebração,
fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública.
No que tange o ato de negligência, cabe uma crítica pontual, por parecer
desnecessário a utilização desse termo utilizado na Lei, uma vez que tal ato, configura
uma modalidade de culpa. Portanto, além de ser desnecessário, o legislador acaba
por suscitar ainda mais, a controvérsia em torno da possibilidade de improbidade
culposa, não só no inciso XX, como para outros atos previstos no art. 10, da Lei de
Improbidade Administrativa (8.429/92), além daqueles inaugurados pelos artigos 77 e
78, da Lei 13.019/2014, tratando de atos que geram danos ao erário público e que
violam os princípios que regem as boas práticas de gestão.

FALHAS NO CONTROLE E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

De fato, os casos de improbidade administrativa são de fato, uma realidade


recorrente na administração Pública Brasileira e em geral a apuração de práticas
ilícitas está relacionada primeiro com a ineficiência detectada nos mecanismos de
controle. Segundo Maria Tereza Fonseca Dias (2008), essas falhas decorrem da
ausência de controle interno em alguns entes da federação, ou pela atuação de
controle interno integrado exercido pelo executivo, controlando os demais poderes, e
mesmo o controle parlamentar das parcerias estabelecidas com o legislativo, e
orientado pelo tribunal de contas ainda deixa muito a desejar. Segundo, com as
lacunas existentes na Lei, sobretudo acerca da não exigência de prévia licitação para
a celebração das parcerias. No entendimento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2015),
no convênio não se cogita de licitação, pois é inviável a competição quando se trata
de mútua colaboração.
Sem dúvida nos últimos anos houve significativo avanço doutrinário, além da
construção de novos entendimentos jurisprudenciais acerca das improbidades
administrativas decorrentes das relações de parcerias público privadas, mesmo
assim, as irregularidades não foram inibidas totalmente. Um dos motivos, sem dúvida
é o poder discricionário do gestor público ao escolher qual entidade parceir a ser
celebrado o convênio; ausência de prestação de contas, falta de transparência, além
da estrutura inadequada dos órgão responsáveis pelo repasse de recursos, para
monitorar o cumprimento do objeto pactuado.

CONCLUSÃO

Abordar as parcerias público privadas sob a ótica do MROSC, faz concluir que
diversos foram os avanços trazidos por seu regramento desde a sua edição em 2014,
como exigência de chamamento público, equipes e custos indiretos remunerados,
atuação em rede e extinção da contrapartida financeira, prestações de contas
detalhadas, maior controle e transparência, entre outras. No entanto, como toda nova
Lei, após um período de vigência, surgem as lacunas e deficiências a serem corrigidas
na norma ou em sua aplicação. Alguns aspectos negativos dizem respeito às
exclusões de várias modalidades de contratos de parceria, alto grau de
discricionariedade dos gestores responsáveis pelos acordos e deficiência nos
mecanismos de controle. Todos estes fatores enfraquecem um a gestão institucional
de eficácia e não colabora para a garantia da segurança jurídica das parcerias.
99

Mesmo com a aplicação da Lei 13.019/14 e suas alterações, ainda se verifica


uma cultura de desconfiança acerca das parcerias público privadas e a necessidade
de rompimento do padrão de controle burocrático, que ainda permeia a gestão pública
como um todo, posto que os elementos que produzem a inércia organizacional na
Administração Pública, convergem para que esse padrão se permaneça.
A cultura da gestão pública, bem como seu aparato administrativo-jurídico
ainda voltado para o controle formal de meios, acaba enrijecendo o controle e o
monitoramento das parcerias. Modesto (1998) entende que, porém, que é necessária
uma análise da gestão de parceria que vá além da aplicação da legislação. A ideia é
de que não sua aplicabilidade e controle não se concentre apenas nos aspectos
legais, sem considerar outras dimensões presentes na celebração das parcerias.
Assim, é imprescindível que o poder público atue de forma estratégica, a partir de uma
visão sistêmica acerca das parcerias.
Destarte, a despeito das lacunas identificadas no MRSOC, ou Lei nº.
13.019/2014, e críticas pertinentes acerca da segurança jurídica trazida pelo
dispositivo, há que se concordar este regramento tem se mostrado extremamente
importante para apurar e coibir atos de improbidade administrativa.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 13.019, de 31 de jul. de 2014. Marco Regulatório das Organizações de


Sociedade Civil, Brasília,DF, mar 2014.
COELHO, Simone de Castro Tavares. Terceiro setor: um estudo comparado entre
Brasil e Estados Unidos. 2 ed. São Paulo: SENAC, 2002.
DCI. Repasses federais ao terceiro setor caíram 31,5% em 2015, para R$ 7 bi.
2016. Disponível em: https://www.dci.com.br/economia/repasses-federais-ao-
terceiro-setor-cairam-31-5-em-2015-para-r-7-bi-1.341828. Acesso em: 24 out.2018.
DIAS, Maria Tereza Fonseca. Terceiro setor e estado: legitimidade e regulação.
Por um novo marco jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: Concessão,
Permissão, Franquia, Terceirização, Parceria Público-Privada e outras Formas. 10.
ed. São Paulo: Atlas, 2015.
MODESTO, Paulo. CUNHA JUNIOR, Luiz Arnaldo Pereira. Terceiro Setor e
Parcerias na Área de Saúde. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2011
__________. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista de
Direito Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, Renovar, n. 214, pp. 55-68, 1998.
Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/47266>.
Acesso em 24.10.2018.
100

O CONFLITO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COM O


INSTITUTO DA ARBITRAGEM
THE CONFLICT BETWEEN THE PRINCIPLES OF PUBLIC ADMINISTRATION
WITH THE INSTITUTE OF ARBITRATION

Karoline Eduarda Brescia


Gisele Laus da Silva Pereira Lima

Resumo: O presente artigo traz a problemática da possibilidade aplicação da


Arbitragem nos contratos da Administração Pública, devidamente autorizada a partir
do advento da Lei n. 13.129/2015 que alterou a Lei de Arbitragem n. 9.307/1996, a
qual adequou a Arbitragem aos princípios basilares do Direito Administrativo
derrubando dogmas doutrinários a respeito da impossibilidade da aplicação de
referido instituto nas contratações da Administração Pública. Para tanto, a partir da
premissa da definição de contratos administrativos, o artigo analisa o conflito entre os
princípios da administração pública com o instituto da arbitragem, suas delimitações
conceituais de arbitralidade, tipos e formas, e por fim os fundamentos econômicos da
arbitragem nos contratos administrativos.
Palavras-chave: Arbitragem, Administração Pública, Contratos Administrativos,
Indisponibilidade do Interesse Público.

Abstract: This article presents the problem of the possibility of applying Arbitration in
Public Administration contracts, duly authorized as from the advent of Law no. 13.129
/ 2015 which amended the Arbitration Law n. 9.307 / 1996, which adapted the
Arbitration to the basic principles of Administrative Law overturning doctrinal dogmas
regarding the impossibility of the application of said institute in the contracting of Public
Administration. Therefore, based on the premise of the definition of administrative
contracts, the article analyzes the conflict between the principles of public
administration with the arbitration institute, its conceptual boundaries of arbitration,
types and forms, and finally the economic fundamentals of arbitration in administrative
contract
Keywords: Arbitration, Public Administration, Administrative Contracts, Unavailability
of Public Interest.

INTRODUÇÃO

A motivação do presente artigo é de investigar a aplicação da Arbitragem nos


contratos administrativos, a incorporação desses institutos no ordenamento jurídico
brasileiro com a Lei n. 13.129/2015 que alterou a Lei 9.307/1996 (Lei de Arbitragem)
trazendo novos contornos de resolução de conflitos para a Administração Pública.
Primeiramente será abordado o comparativo entre o Poder Judiciário e os
meios alternativos de resolução de conflitos, o qual irá tratar sobre o atual cenário
judicial brasileiro e os mecanismos adotados para uma prestação jurisdicional mais
eficiente, em atendimento ao princípio constitucional basilar de acesso à justiça.
Será explanado os aspectos gerais da Arbitragem à luz da Lei n. 9.307/1996,
e, dos contratos administrativos, distinções terminológicas e conceituais, em que será
abordada a Supremacia do Interesse Público, e, considerações sobre a edição da Lei
n. 13.129/2015, correntes doutrinárias favoráveis a aplicação da arbitragem nas
contratações do Poder Público anteriores a sua edição e precedentes jurisprudenciais
101

que se debateram sobre o conflito entre os princípios da Administração Pública com


o instituto da arbitragem.
Consequentemente, será analisada a compatibilidade entre a arbitragem e os
contratos administrativos, e, a sua constitucionalidade à luz dos Princípios da
Administração Pública, os quais estão previstos no artigo 37 da Constituição Federal
de 1988, bem como os reflexos positivos de sua adoção, quais sejam, soluções
adequadas e eficientes, reflexos econômicos e celeridade.
Por último os fundamentos econômicos da arbitragem nos contratos de
licitação, objetivando demonstrar a vantagem da incorporação da cláusula
compromissória para o correto cumprimento do Interesse Público e para o particular
que pretender contratar com a Administração Pública.

DA ARBITRAGEM

A arbitragem é um meio de resolução de conflitos heterocompositivo que versa


sobre direitos disponíveis1, onde há a intervenção de um terceiro imparcial e estranho
a relação que detém poderes para decidir pelas partes, sendo esta equivalente a uma
sentença judicial.
Não se trata de uma inovação contemporânea, eis que:

Engana-se quem pensa que a arbitragem seja um instituto novo. Esta


alternativa remonta às civilizações primitivas, época em que os sacerdotes
faziam papel de árbitros, garantindo tomar as decisões acertadas e
sempre com base nas vontades divinas. (Koerich, 2017, pg.1).

No Brasil, a arbitragem tornou-se obrigatória no Código Comercial de 1850 em


razão das sociedades comerciais. Conforme o aperfeiçoamento legislativo, tanto
comercial quanto processual, foi incentivando-se o uso dessa prática, igualando-se
aos meios judiciais convencionais.
O instituto da Arbitragem foi regimentado pela Lei n° 9.307/96, que sistematizou
a arbitragem no Brasil ao transitar entre o direito material e o direito processual
relativos ao instituto (CAHALI, 2015). A mesma decorre de um instrumento conhecido
como convenção arbitral que pode ser uma cláusula compromissória ou arbitral,
expressa em contratos com a concordância das partes.
A clausula compromissória, também conhecida como cláusula arbitral, é
prevista no artigo 4º da Lei da Arbitragem, e esta, por convenção das partes determina
dentro de um contrato que ao surgimento de algum conflito relativo a este, as partes
se submeterão ao juízo arbitral.
Outro instrumento é o chamado compromisso arbitral em que as partes
submetem o conflito a arbitragem, sendo imprescindível que as partes concordem com
a nomeação de um árbitro.
O compromisso arbitral, previsto no artigo 9º da lei da Arbitragem, é aquele em
que as partes se submetem a arbitragem após o surgimento do conflito, este
compromisso irá prever todas as regras do procedimento que será seguido para a
concretização da sentença arbitral.
A decisão arbitral constitui título executivo judicial, não cabendo assim recurso
em instância superior, pois, consiste no fato de que o julgamento arbitral se faz, em
regra, em instância única, ou seja, sem a possibilidade de recursos (CAHALI, 2015).

1
Direitos disponíveis são aqueles direitos relativos a bens que podem ser apreciados economicamente, isto é, quantificados em
moeda. Nesse sentido, o direito disponível se refere a bens apropriáveis, alienáveis, que se encontram no comércio jurídico.
102

Aliás, não se justifica cogitar a instância recursal, haja vista que as partes têm
total liberdade e o dever de escolha do julgador, devendo ser aquele que lhes suscita
mais confiança e expertise da matéria do objeto da controvérsia, dentre outros
requisitos que podem ser avaliados pelas partes, devendo as partes acompanhar o
procedimento desde o início.

DOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

O conceito de contrato está intimamente ligado a um pacto, um acordo, que


materializa a vontade das partes envolvidas, com o fim de criar, modificar ou desfazer
direitos e obrigações, prevalecendo, o princípio da Autonomia da Vontade.
Os contratos da Administração Pública têm o seu fundamento na Lei n°
8.666/93, e tem a sua definição nos termos do artigo 2º, parágrafo único, como “todo
e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares,
em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de
obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”.
A Administração Pública firma contratos com terceiros com o intuito de
satisfazer o interesse público, seja este terceiro particular ou outro ente público.
Ressalte-se que os contratos administrativos são regidos e fundamentados no Direito
Público, sendo que somente serão aplicadas as normas de Direito Privado,
subsidiariamente.
Logo, a Administração só recorrerá a contratação de terceiros quando do
interesse público for, Celso Antônio Bandeira Mello define a licitação como:

Procedimento administrativo pelo qual uma pessoa governamental,


pretendendo alienar, adquirir ou locar bens, realizar obras ou serviços,
outorgar concessões, permissões de obra, serviço ou de uso exclusivo de
bem público, segundo condições por ela estipuladas previamente,
convoca interessados na apresentação de propostas, a fim de selecionar
a que se revele mais conveniente em função de parâmetros
antecipadamente estabelecidos e divulgados (MELLO, 2009, p. 519).

Partindo do Princípio da Supremacia do Interesse Público, quando a


Administração firma um contrato administrativo com terceiros, não há que se falar em
igualdade na relação de contratado e contratante, justamente para a proteção do
interesse coletivo, o que justifica o tratamento diferenciado.
Tais cláusulas conferem a Administração a possibilidade de alterar o contrato
unilateralmente, rescindi-lo, fiscaliza-lo ou aplicar penalidades ao terceiro contratado,
estando prevista no artigo 58, do referido diploma legal de Licitações e Contratos.
Porém, o fato da Administração Pública estar em relação de superioridade ao
terceiro contratado, não significa que o mesmo esteja desamparado ou vulnerável,
pois a Lei de Licitações garante ao terceiro particular a preservação econômica
evitando possíveis prejuízos por conta das decisões arbitrárias da mesma.

A EDIÇÃO DA LEI Nº 13.129/2015

Antes da edição da Lei 13.129/2015, havia ausência de regras gerais expressas


sobre a possibilidade de a Administração Pública aplicar a arbitragem em suas
contratações, sendo objeto de debates, dúvidas e polêmicas. Assim, a
Administração pública se utilizava da arbitragem, com base correntes doutrinárias.
103

Sem contar, do histórico precedente caso “Lage”, o qual fora julgado pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) em 1973, que envolveu a incorporação à União de
bens e direitos das empresas das Organizações Lage e, mais especificamente, a
indenização devida aos Espólios de Henrique Lage e Renaud Lage por essa
incorporação. Nos termos do Decreto-Lei 9.521/1946, o valor seria definido por
arbitragem. O STF considerou válida disposição legal que autorizava a submissão da
Administração à arbitragem, afirmando, para tanto, que rejeitar as convenções
arbitrais firmadas pela Fazenda Pública seria restringir indevidamente a autonomia
contratual do Estado. (STF, AI 52.181/GB, rel. Min. Bilac Pinto, DJ 15.02.1974).
Em 27 de maio de 2015, a Lei de Arbitragem, foi alterada pela Lei n°
13.129/2015 que entrou em vigor em 25 de julho de 2015, sendo a principal alteração
a possibilidade para a Administração Pública aplicar a arbitragem em seus contratos
para dirimir conflitos sobre direitos patrimoniais disponíveis, tal previsão, está
elencada no artigo 1°, §1°, da referida Lei de arbitragem que assim dispõe “A
administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir
conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”, o novo texto apenas consolidou
o entendimento jurisprudencial.

DO CONFLITO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COM O


INSTITUTO DA ARBITRAGEM

No tocante a aplicação da arbitragem envolvendo a Administração Pública, o


primeiro obstáculo a ser enxergado, foi o conflito entre o Princípio da Indisponibilidade
do Interesse Público e o fato da arbitragem versar sobre direitos patrimoniais
disponíveis, este, obstáculo já superado com a edição da Lei 13.129/2015, mas que
merece atenção, pois ainda mesmo que em uma minoria, tem resistência doutrinária.
Carlos Ari Sundfeld e Jacinto Arruda Câmara explicam que o Princípio da
Indisponibilidade do Interesse Público não estabelece um dever e nem uma proibição,
não podendo ser denominado conforme a doutrina determina como princípio-regra,
como é tratado o Princípio da Legalidade, que impõe a Administração Pública o dever
de agir somente mediante prévia autorização legislativa, ou seja, segundo os autores
referido princípio deve ser tratado como princípio-valor, não sendo a sua função de
prescrever condutas, mas sim de apontar um traço característico daquele conjunto de
normas, contribuindo para a sua compreensão e posterior interpretação, (SUNDFELD
e CÂMARA, 2008).
É possível concluir que a indisponibilidade do interesse público só deverá ser
considerada absoluta quando se referir a sociedade na sua totalidade, ou seja, quando
se tratar ao direito à liberdade, à vida, à saúde, à dignidade humana, da justiça, da
democracia, do desenvolvimento econômico, da proteção do meio ambiente, dentre
outros, o regime público é indispensável, sendo estes insuscetíveis de discussão em
procedimento arbitral.
Quanto ao Princípio da Publicidade dos Atos da Administração, este, suprimiu
o Princípio da Confidencialidade presente na Arbitragem, em razão do princípio da
supremacia do interesse público, justamente por ser inadequado e ter previsão no
artigo 37, caput, da Constituição Federal e artigo 2°, §3°, da Lei 9.307/1996.
E, para concluir a problemática deste capítulo, Cássio Telles Ferreira Neto, em
sua obra, Contratos Administrativos e Arbitragem, lecionou:

Como se vê, a utilização da Arbitragem para dirimir conflitos de direito


patrimonial disponível, oriundos das relações entre o particular e o Estado,
constitui hoje a etapa mais avançada da tendência de modernização da
104

Administração Pública, pelo que deve ser creditada e incentivada, por si


constituir em um eficiente instrumento de desenvolvimento para o País
(FERREIRA NETO, 2008, pág. 78).

Assim, a edição da Lei 13.129/2015, afastou todo e qualquer questionamento


a respeito, com o intutito de estimular a utilização desta proveitosa forma de solução
de conflitos.

FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA ARBITRAGEM NOS CONTRATOS


ADMINISTRATIVOS

É sabido que se submeter a arbitragem no quesito econômico, em um primeiro


momento não parece ser vantajoso em relação à justiça comum, por se tratar de um
procedimento caro, porém, a consequência é contrária a este entendimento, conforme
veremos a seguir.
Sobre este tema, Salama explica:

Em países em desenvolvimento como o Brasil o emprego eficiente dos


recursos existentes deve ser uma prioridade nacional. Para enfrentar seus
problemas, a sociedade brasileira necessita de instrumentos jurídicos
eficientes que estimulem as atividades produtivas, a resolução de conflitos
de forma pacífica, a democracia, a livre iniciativa, a inovação, e a redução
da corrupção e da burocracia, do desperdício e da pobreza. O estudo dos
incentivos postos pelos institutos jurídicos faz parte deste esforço, e os
estudiosos do Direito podem e devem tomar parte neste processo.
(SALAMA, 2008, p. 02).

Logo, a utilização da arbitragem, é cláusula eficiente nas contratações da


Administração, haja vista que o Agente Público contratante ciente da celeridade do
julgamento arbitral, sua eficiência e expertise do assunto, tem em si, desestimulado o
oportunismo, havendo a responsabilização necessária e eficaz para qualquer ato
oportunista e de má-fé. (SOUZA SARAIVA e SILVA, 2016).
É notório, que quando o litígio é levado ao Judiciário, os custos com relação à
arbitragem serão superiores se considerada a lentidão, o alto grau de incerteza quanto
a procedência do litígio, o custo com advogados e custas processuais, e, por muitas
vezes a falta de conhecimento específico dos juízes de Direito na matéria em questão,
impedem uma prestação jurisdicional equilibrada. Nesse contexto, pode-se enxergar
que as partes por meio da arbitragem podem chegar a um acordo muito mais
vantajoso e produtivo, quando, em comparação à justiça comum.
Esta linha de raciocínio é totalmente válida no que concerne as contratações
da Administração Pública, esta, quando começa um processo licitatório, está em
busca de um terceiro que possa executar a prestação qualitativamente e
quantitativamente de maneira satisfatória ao cumprimento do Interesse do Público, ou
seja, o futuro contratado deve demonstrar que possui condições de realizar a atividade
dentro dos padrões de qualidade exigidos e especificados pela Administração Pública,
e da mesma maneira com o meio econômico possível. (JUSTEN FILHO, 2013).
Para o particular elaborar suas propostas no processo licitatório, são
elaborados estudos detalhados, sendo estes jurídicos, econômicos e financeiros,
nestes estudos já se pode deduzir custos antes mesmo do particular se qualificar
como concorrente no processo de licitação, que por si só refletem no preço da
proposta de contrato.
105

Em síntese, todas as possibilidades e variantes são incluídas no cálculo de


formação do preço da proposta para entrada no processo de licitação. Quanto maiores
as incertezas e reviravoltas dos fatores de contratação com a Administração Pública,
maior é o risco, consequentemente, mais alto o valor da proposta. Em contrapartida,
quanto maior segurança e a previsibilidade a respeito dos diversos fatores da
contratação, menor é o risco e mais atrativa será a proposta para o proponente
disputar no processo licitatório.
Assim, é possível concluir que quando o ambiente de negócios para
contratações com a Administração Pública, seja ela direta ou Indireta, é aprazível, os
preços propostos são mais baixos. O dinheiro público, portanto, é utilizado com maior
eficiência em benefício de toda a população, o que atende ao fim maior da razão do
Estado, que é a satisfação do interesse público. (CARVALHO FILHO, 2011).
Sem contar, que muitas das prerrogativas que são reconhecidas à
Administração Pública, são incompatíveis com o processo arbitral, devendo o árbitro
decidir somente sobre os efeitos patrimoniais da lide.
Traçado o caminho para que a Administração Pública e o particular possam
estabelecer contrato, a aplicação da arbitragem pode ser compreendida como um
mecanismo de segurança jurídica tanto do contratado, quanto, para o contratante,
bem como, para ocorrer o correto adimplemento do objeto contratado e previsibilidade
para o particular, e é da conclusão deste raciocínio que se retira a lógica econômica
quando a arbitragem é aplicada nas contratações da Administração Pública.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve por objetivo explanar sobre a aplicação da arbitragem


nos contratos administrativos analisando os princípios basilares da Administração
Pública e a Lei 13.129/2015.
Reconhecidamente a Administração Pública como parte processual, também é
afetada pela ineficácia das decisões judiciais ou morosidade. E para buscar a sua
maior eficiência, a aplicação e incorporação de meios consensuais pelo ente público
se torna vantajosa na medida em que atende essa diretriz.
Assim, procurou-se esclarecer que não há violação constitucional ao se aplicar
a cláusula compromissória ou o compromisso arbitral nas contratações da
Administração Pública, pois a correta aplicação e ponderação do Princípio da
Supremacia do Interesse Público e do Principio da Indisponibilidade do Interesse
Público, não são óbices para a arbitragem nos contratos administrativos, podendo ser
esta, vista como mecanismo de segurança jurídica, vez que é um procedimento
extrajudicial de resolução de conflitos célere em que se pode alcançar um julgamento
mais justo e técnico, quando submetido à um arbitro ou a tribunal arbitral que possuem
maior expertise da matéria do conflito, e por se tratar também de um meio mais
econômico do que o da justiça comum.
A edição da Lei 13.129/2015, apenas veio para superar os dogmas doutrinários
e ratificar o entendimento jurisprudencial, que em sua maioria, admitia a aplicação da
arbitragem nas contratações da Administração, e dar autorização geral e explícita para
os órgãos da Administração Pública Direta e Indireta. Antes se pautavam sob
autorizações legislativas específicas, como autorização genérica para todos os órgãos
da Administração, e, ao entendimento doutrinário benéfico para tal instituto.
Nesse sentido, a arbitragem ganha exequibilidade nos contratos
administrativos, pois é um procedimento célere, técnico, vantajoso, flexível e eficiente,
106

que contribui para a melhor resolução das avenças que envolvem a Administração
Pública.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil


promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 29
abr. 2018.
BRASIL. Lei n° 8.666 de 21 de junho de 1993: Lei de Licitações e Contratos da
Administração Pública. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm> Acesso em: 29 abr. 2018.
BRASIL, Lei nº 9.307, 23 de setembro de 1996. Lei da Arbitragem. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm>. Acesso em: 29 abr. 2018.
BRASIL, Lei nº 13.129 de 26 de maio de 2015. Alterou dispositivos da Lei 9.307 de
23 de setembro de 1996 e da Lei 6.404 de 15 de dezembro de 1976. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13129.htm>. Acesso
em: 14 abr. 2018.
CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem, 5ª edição, Revista dos Tribunais,
2015.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24ª ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
FERREIRA NETTO, Cássio Telles. Contratos Administrativos e Arbitragem. Rio de
Janeiro: ELSEVIER, 2008.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Licitações e Contratos Administrativos, 6ª
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JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 9ª ed. São Paulo: RT,
2013.
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PUGLIESE, Antonio Celso Fonseca. SALAMA, Bruno Meyerhof. A Economia da
Arbitragem: Escolha Racional e Geração de Valor, Revista Direito GV, 4(1), jan-jun
2008, p. 15-28.
REZENDE OLIVEIRA, Rafael Carvalho. A Arbitragem nos Contratos da
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SARAIVA, Mariana de Souza. SILVA, Danielle Caroline. A pertinência da utilização
da arbitragem pela administração pública: uma análise dos princípios da
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SUNDFELD, Carlos Ari. CÂMARA, Jacinto Arruda. O cabimento da arbitragem nos
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TIBURCIO, Carmen. MAGALHÃES PIRES, Thiago. Arbitragem envolvendo a
Administração Pública: notas sobre as alterações introduzidas pela Lei
13.129/2005. Revista de Processo, 2016.
107

Grupo de trabalho:

DIREITO AMBIENTAL,
GLOBALIZAÇÃO E
SUSTENTABILIDADE I
Trabalhos publicados:

A DESARTICULAÇÃO DOS ARRANJOS INSTITUCIONAIS NO PROJETO DE


INTEGRAÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO

AGROECOLOGIA VERSUS DIREITOS FUNDAMENTAIS: O (DES)EQUILÍBRIO


ENTRE A LIVRE INCIATIVA ECONÔMICA E O DIREITO AO MEIO AMBIENTE
ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO

ATORES INTERNACIONAIS E MECANISMOS DO PROCESSO DE EFETIVAÇÃO


DO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL COMO UMA FERRAMENTA AOS
DIREITOS HUMANOS

COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO VALE DO RIBEIRA E O PLANTIO


TRADICIONAL – BARREIRAS BUROCRÁTICAS PARA O EXERCÍCIO DE DIREITOS

EMPREGO SUSTENTÁVEL, O PAPEL DA EMPRESA NO COMBATE ÀS


DESIGUALDADES SOCIAIS.

ESPAÇOS PROTEGIDOS E DIREITOS SOCIOAMBIENTAIS DOS POVOS


ORIGINÁRIOS

ESTADO, MERCADO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UMA ANÁLISE DO


PROGRAMA AMAZÔNIA FLORESCER

MEDIAÇÃO COMO MECANISMO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS EM POVOS


INDÍGENAS URBANAS NA CIDADE DE MANAUS

PAGAMENTO POR SERVIÇOS AMBIENTAIS EM TERRAS INDÍGENAS E O


DIREITO À CONSULTA LIVRE, PRÉVIA E INFORMADA PREVISTO PELA
CONVENÇÃO N° 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO
108

A DESARTICULAÇÃO DOS ARRANJOS INSTITUCIONAIS NO PROJETO DE


INTEGRAÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO
LA DÉSARTICULATION DES ARRANGEMENTS INSTITUTIONNELS DANS LE
PROJETO DE INTEGRAÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO

Mariana Bruck de Moraes Ponna Schiavetti


Maria Eugênia Bruck de Moraes

Resumo: Os grandes impérios sempre serão lembrados por seus legados, independe
do passar dos séculos. Entretanto, não é incomum o desejo ardente de ser tornar o
líder extraordinário que será lembrado por levar água ao semiárido, por exemplo. No
entanto, observa-se é que as grandes obras demandam um complexo nível
organizativo e uma estruturação bem estabelecida entre todos os atores responsáveis
pelo desenvolvimento de uma política pública de larga escala. O Projeto de Integração
do Rio São Francisco é um marco como ação de desenvolvimento humano, porém
não preenche os requisitos mínimos de articulação governamental, impossibilitando
sua implementação efetiva.
Palavra-chave: Projetos de transposição de água. Política pública. Arranjos
institucionais.

Résumé: C’est certain qu’on se souviendra toujours des grands empires pour leurs
héritages, indépendamment du passage des siècles. Cependant, le désir ardent de
devenir le grand leader dont on se souviendra pour avoir amené de l'eau dans le semi-
aride, par exemple, n'est pas rare. Néanmoins, il est observé que les grandes actions
exigent un niveau organisationnel complexe et une structuration bien établie entre tous
les acteurs responsables du développement d'une politique publique à grande échelle.
Le Projeto de Integração do Rio São Francisco est un jalon historique en tant qu'action
de développement humain, mais il ne répond pas aux exigences minimales de
l'articulation gouvernementale, ce qui rend impossible sa mise en œuvre effective.
Mots-clés: Projets de transposition de l'eau. Politique publique. Arrangements
institutionnels.

INTRODUÇÃO

O Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF) com as Bacias


Hidrográficas do Nordeste Setentrional foi desenvolvido como o intuito de garantir o
fornecimento de água para 12 milhões de habitantes dos Estados de Pernambuco,
Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. A construção de dois eixos de ligação do rio
pretende beneficiar moradores de 390 municípios, frequentemente, acometidos por
grandes períodos de seca.
O desejo de levar água à região do semiárido nordestino não é novidade no
Brasil. A primeira proposta, ainda que muito vaga, tratava da abertura de um canal
que levasse água do rio São Francisco ao rio Jaguaribe, idealizada no século XIX,
pelo ouvidor José Raimundo dos Passos Barbosa, em 1818 (HENKES, 2014). Desde
então diversos líderes nacionais já propuseram algum tipo de plano para essa obra,
por exemplo: em 1980, durante o governo do general Figueiredo foram estabelecidos
os planos para a transposição do Rio São Francisco de modo a fornecer água para as
regiões mais afetadas pela seca naquele ano. Porém, depois de projetos do
presidente Itamar Franco e das intenções do presidente Fernando Henrique Cardoso,
a obra não foi implementada até o início de2007, durante o governo do presidente
109

Luís Inácio Lula da Silva, quando foi incorporado no Programa de Aceleração do


Crescimento (PAC).
A urgência imposta ao Projeto resultou em diversos entraves à sua devida
implementação, tais como negativas de licenciamento ambiental, ausência de suporte
dos representantes dos Estados “prejudicados” com a transposição e suspensões
judiciais pelo Tribunal Regional Federal 1. Todavia, talvez um dos pontos que mais
chama a atenção dentro do PISF é a complexidade de atores envolvidos em todas as
esferas da federação.
Para que fosse implementado, o Projeto passou por diversas modificações
estruturais, bem como foi levado para discussões – ainda que de modo questionável
– nos Comitês de Bacias Hidrográficas, audiências públicas, órgãos fiscalizadores,
como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA), e o Tribunal de Contas da União, bem como e no Congresso Federal.
Apesar da articulação realizada para que fosse implementada, a obra de
integração do Rio São Francisco com as demais bacias hidrográficas do Semiárido,
papel desempenhado principalmente pela Casa Civil, observa-se grandes falhas na
elaboração dos arranjos institucionais. A ausência de ato normativo específico que
determine os objetivos concretos e estratégias adotadas para a concretização da
política pública evidenciam que o excesso de interesses individuais e a ideia de
urgência imposta ao Projeto prejudicaram sua elaboração e implantação.
Nessa ótica, Maria Paula Dallari Bucci observa que um dos momentos mais
importantes do ciclo das políticas públicas é a avaliação, que deve ser realizada antes
da implementação do projeto ou programa. Ao realizar a avaliação de determinado
programa é possível identificar possíveis erros ou tomadas de decisões sem
efetividade e corrigi-las antes do período final de concretização, tornando o ciclo mais
racional e efetivo.
Desse modo, a análise realizada neste trabalho tem como objetivo identificar,
sob o viés da articulação institucional das políticas públicas, o nível de organização e
desenvolvimento dentro do PISF. Para tanto, o trabalho buscou responder as
seguintes perguntas: i) qual o nível de organização estabelecido no Projeto? ii) as
estruturas estabelecidas no Projeto estão articuladas ao conceito estabelecido por
Maria Paula Dallari Bucci?
Destaca-se, por fim, que o PISF é uma das maiores obras brasileiras de
infraestrutura e de desenvolvimento humano, devendo ser acompanhada de perto por
toda a sociedade civil. Ademais, do ponto de vista dos arranjos institucionais, tal
Projeto apresenta um alto nível de relação entre as três esferas de poder, bem como
com outras áreas necessárias para sua concretização. Portanto, a escolha do objeto
de estudo em questão se justifica pela grandeza da obra e diversidade de detalhes a
serem explorados dentro da temática de desarticulação das políticas públicas
brasileiras.

PROJETO DE INTEGRAÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO COMO POLÍTICA


PÚBLICA DE DESENVOLVIMENTO HUMANO

O PISF tem como intuito captar água em dois pontos do rio São Francisco e
levá-la ao Semiárido Nordestino para prover água às populações; assegurar safras
agrícolas, atividades industriais e o turismo; fixar a população rural na região;
promover o crescimento das atividades produtivas; diminuir gastos públicos com
medidas emergenciais durante as frequentes secas; garantir água para uma
infraestrutura de reserva e distribuição já existente (açudes, rios e adutoras), enfim,
110

segundo o Governo, promover o desenvolvimento (MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO


NACIONAL , 2004)
Ao longo dos dois séculos de projetos de transposição do rio São Francisco, a
ideia foi fornecer água para a população do Semiárido Nordestino, visando reduzir o
baixo índice de desenvolvimento humano dessa região. Importante destacar que
conforme apurado por Empinotti (2011), no alto São Francisco (sudeste brasileiro), o
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) está acima (0,839) da média nacional
(0,792), enquanto que no baixo São Francisco (região nordeste), o IDH está em torno
de 0,507.
Rossoni (2013) ressalta que a gestão de um recurso hídrico deve consistir em
uma “parceria de recurso comum”. Isto porque, conforme Campos e Fracalanza apud
Rossoni (2013), o êxito de uma política pública depende da capacidade financeira,
instrumental e operacional do Estado e, para tanto, é necessário construir espaços
para negociação efetiva de tal política de forma a mobilizar os grupos para que a
apoiem (ROSSONI, 2013).
Desse modo, utilizando o conceito de política pública definido Maria Paula
Dallari Bucci como

arranjos institucionais complexos, que se expressam em estratégia ou


programas de ação governamental e resultam de processos juridicamente
definidos para a realização de objetivos politicamente determinados, com
o uso de meios à disposição do Estado (BUCCI, 2006).

O PISF se mostra como um programa voltado para a redução do baixo IDH,


bem como um instrumento para o desenvolvimento econômico e social da região
semiárida do Nordeste brasileiro, possuindo, teoricamente, todos os elementos para
caracterizar uma política pública; i) ação; ii) coordenação; iii) processo e; iv) programa.
As questões relativas a coordenação e a má formulação do programa serão
tratadas nos tópicos abaixo, entretanto, é clara a constatação de que a simples
transposição do rio não resolverá o problema da “falta de água”, embora a
disponibilidade hídrica aumente no Semiárido Nordestino. O problema continuará
sendo a democratização do acesso e não a oferta de água (HENKES, 2014). Os
problemas poderiam ser resolvidos com soluções alternativas de menor impacto
ambiental e menor custo financeiro e social, tal como o Programa de Revitalização do
São Francisco.
De fato, a economia da região provavelmente será beneficiada com a obra, que
e desenvolverá economicamente por meio da instalação de novos postos de trabalho,
mas os resultados positivos deste desenvolvimento – puramente econômico – não
serão igualitários, descumprindo os objetivos gerais da política. Ainda, segundo
Henkes (2014), o PISF como a obra, em especial no Eixo Norte, foi projetado para
beneficiar o desenvolvimento econômico sem a devida preocupação com o
desenvolvimento sustentável ou como a repartição social dos benefícios trazidos
pelas águas do “Velho Chico” (HENKES, 2014).

LEGISLAÇÃO NACIONAL E O CONFLITO NOS ARRANJOS INSTITUCIONAIS

Ao longo dos anos, para que o PISF fosse implementado, foram editados
diversos instrumentos normativos, dentre decretos, portarias, resoluções e relatórios
anuais há mais de 20 instrumentos. Foram utilizados como base para o presente
trabalho os 11 instrumentos descritos no quadro 1, em razão de sua maior relevância
para a análise do nível organizacional dos principais atores responsáveis pelo Projeto.
111

Quadro 1 – Instrumentos normativos selecionados para análise no presente projeto


Decreto 5.995 19 de Institui o Sistema de Gestão do Projeto de
dezembro Integração do Rio São Francisco com as Bacias
de 2006 Hidrográficas do Nordeste Setentrional, e dá
outras providências.
Lei 9.433 08 de Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos,
janeiro de cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de
1997 Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do
art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º
da Lei 8.001, de 13 de março de 1990, que
modificou a Lei 7.990, de 28 de dezembro de
1989.
Parecer 031 do 2005 Análise do EIA/RIMA do Projeto de Integração do
Ministério da Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do
Integração Nordeste Setentrional (parecer técnico para
Nacional subsidiar a Licença Prévia).
Resolução 411 da 22 de Outorga do Direito de Uso de Recursos Hídricos
Agência Nacional setembro do Rio São Francisco.
de Águas de 2005
Portaria 118 do 18 de Publicação da Metodologia para Identificação,
Ministério da março de Quantificação e Alocação de Riscos, para as
Integração 2014 licitações concernentes ao Projeto de Integração
Nacional do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do
Nordeste Setentrional.
Portaria 7do 9 de Publicação das Tabelas de Preços referenciais
Ministério da janeiro de revisadas para o pagamento de indenizações dos
Integração 2014 imóveis necessários à implantação do Projeto de
Nacional Integração do Rio São Francisco com Bacias
Hidrográficas do Nordeste Setentrional e de suas
obras associadas.
Portaria 179 do 6 de maio Publicação das Tabelas de Preços referenciais
Ministério da de 2014 revisadas para o pagamento de indenizações dos
Integração imóveis necessários à implantação do Projeto de
Nacional Integração do Rio São Francisco com Bacias
Hidrográficas do Nordeste Setentrional e de suas
obras associadas.
Resolução 412 da 22 de Certificado de Avaliação da Sustentabilidade da
Agência Nacional setembro Obra Hídrica - CERTOH - em favor do Ministério
de Águas de 2005 da Integração Nacional para o Projeto de
Integração do Rio São Francisco com as Bacias
Hidrográficas do Nordeste Setentrional - trechos I,
II, III, IV, V e Ramal do Agreste Pernambucano,
localizado nos Estados do CE, PB, PE e RN.
Licença de 08 de Relativas aos trechos I e II do Eixo Norte e trecho
Instalação 925 do abril de V do Eixo Leste do Projeto de Integração,
IBAMA 2013 atingindo territórios dos Estados de PE, PB, RN e
CE, em consonância com a Resolução 411/2005
da ANA, que dispõe sobre a Outorga do Direito de
Uso de Recursos Hídricos.
112

RIMA do Ministério Junho de Relatório de Impacto Ambiental do Projeto de


da Integração 2004 Integração do Rio São Francisco com as Bacias
Nacional Hidrográficas do Nordeste Setentrional

Com base nos instrumentos normativos descritos e na bibliografia levantada,


foram analisados os arranjos institucionais que compõem o PISF, bem como a
articulação e organização dessa complexa política pública.

ESTRUTURAÇÃO DO PROJETO DE INTEGRAÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO


COM AS BACIAS HIDROGRÁFICAS DO NORDESTE SETENTRIONAL E SEUS
PRINCIPAIS INSTRUMENTOS NORMATIVOS

O sistema de gestão do PISF foi instituído em 19 de dezembro de 2006, por


meio do Decreto 5.995, que determina no art. 1º como seus objetivos: i) promover a
sustentabilidade da operação referente à infraestrutura hídrica a ser implantada pelo
Ministério da Integração Nacional no âmbito do PISF; ii) garantir a gestão integrada,
descentralizada e sustentável dos recursos hídricos disponibilizados, direta e
indiretamente, pelo PISF; iii) viabilizar a melhoria das condições de abastecimento
d'água na área de influência do PISF, visando atenuar os impactos advindos de
situações climáticas adversas; iv) induzir o uso eficiente dos recursos hídricos
disponibilizados pelo PISF pelos setores usuários, visando ao desenvolvimento
sustentável da região beneficiada pelo referido Projeto e; v) coordenar a execução do
PISF (BRASIL. Decreto 5.995/06).
O Decreto 5.995 ainda instituí que farão parte do sistema de gestão do PISF
grupos de assessoramento e instituições federais e estaduais, com interferência na
gestão dos recursos hídricos, assim organizado: i) Ministério da Integração Nacional,
Órgão Coordenador; ii) Agência Nacional de Águas - ANA, Entidade Reguladora; iii)
Conselho Gestor; IV - Operadora Federal; e iv) Companhia de Desenvolvimento dos
Vales do São Francisco e do Parnaíba - Codevasf, como Operadora Federal e; v)
Operadoras Estaduais (BRASIL, 2006).
Todavia, apesar da aparente organização data pelo decreto supracitado, o que
se observa é que a competência, supostamente, definida para cada ator não condiz
com os padrões racionais da estruturação de uma política pública, como descritos por
Bucci:

O arranjo institucional de uma política compreende seu marco geral de


ação, incluindo uma norma instituidora [...], da qual conste o quadro geral
de organização da atuação do Poder Público, com a discriminação das
autoridades competentes, as decisões previstas para a concretização da
política, além do balizamento geral das condutas dos agentes privados
envolvidos, tanto os protagonistas da política quanto os seus destinatários
ou pessoas e entes por ela afetados, como empresas e consumidores, por
exemplo (BUCCI, 2013, p. 27).

A necessidade de readequação da normativa base do PISF decorre de dois


grandes pontos importantes; a própria confusão na determinação da competência de
cada um dos membros integrante do grupo de gestão do projeto, como da discussão
do tipo normativo utilizado para a instituição propriamente dita do PISF.

A IMPRECISÃO QUANTO ÀS RESPONSABILIDADES PELA GESTÃO DO PISF


113

A simples leitura dos dispositivos legais do Decreto 5.995/06 é suficiente para


observar que a ausência de clareza quanto as competências dos atores principais do
PISF é responsável por diversos problemas enfrentados durante todo o processo de
implementação da política pública.
O relatório de auditoria da Controladoria Geral da União realizado em 2015
destaca a

confusão nas disposições do decreto, com relação às atribuições dos


entes envolvidos no projeto, PISF, especialmente quanto à coordenação
e à gestão. Quanto à coordenação da execução do PISF, essa
responsabilidade é atribuída ao SGIB no artigo 1º e ao MI no artigo 4º,
enquanto o artigo 6º atribui a responsabilidade pelo acompanhamento da
execução ao Conselho Gestor. Quanto à Gestão, o artigo 1º ao instituir o
Sistema de Gestão do PISF – SGIB, lhe atribui a finalidade de alcançar
diversos objetivos relativos à gestão. Por outro lado, o artigo 4º dispõe que
o MI coordenará o SGIB, enquanto o artigo 6º dispõe que o PISF será
gerido pelo Conselho Gestor, que, por sua vez, é presidido pelo MI
(COORDENAÇÃO-GERAL DE AUDITORIA DA ÁREA DE INTEGRAÇÃO,
2015)

Sem detalhar todos os artigos do decreto, pois esse não é o objetivo desse
trabalho, o que se verifica nos dispositivos é que não está claro os papéis do SGIB
como sistema em si e do Conselho Gestor, visto que é dada a função de
gerenciamento do PISF para ambos, bem como estes são coordenados pelo
Ministério da Integração Nacional. Além disso, é nítido o acúmulo de funções ao
Ministério da Integração Nacional, como destacado no relatório Controladoria Geral
da União.

O artigo 4º dispõe que o MI tem atribuições de coordenar a execução do


PISF, o SGIB e o Conselho Gestor, enquanto ao Conselho Gestor, que é
presidido pelo MI, é atribuída (artigo 6º) a competência de acompanhar a
execução e gerir o PISF (COORDENAÇÃO-GERAL DE AUDITORIA DA
ÁREA DE INTEGRAÇÃO, 2015).

Diferentemente da primeira impressão, o marco legal que institui o PIFS não


apresenta termos bem definidos, assim como não foi capaz de organizar as
atribuições dos membros do Sistema de Gestão dessa política pública, inviabilizando
a coordenação futura entre os entes e a governabilidade do ponto de vista macro.
A governabilidade aqui refere-se às condições sob as quais se dá o exercício
do poder em uma sociedade, incluindo as características do regime político, a forma
de governo, as relações entre os poderes, os sistemas partidários e o sistema de
intermediação de interesses. Além disso, sendo a governança um processo em que
são propostos e adotados novos caminhos com o objetivo de estabelecer uma relação
em que há espaço para o atendimento das demandas sociais e o gerenciamento dos
diferentes interesses, pode-se dizer que, no contexto da Transposição do Rio São
Francisco, o conflito está predominando (ROSSONI, 2013).
Se não é possível compreender quem é o responsável pela execução,
fiscalização ou mesmo quem deverá arcar financeiramente com os investimentos e
futuras obras secundárias, é impensável a articulação dos arranjos institucionais da
política pública.

DECRETO REGULATÓRIO SEM LEI?


114

O segundo ponto que se destaca no Decreto 5.995/06 é a inexistência de lei


ordinária relacionada a instituição do Sistema de Gestão do PISF. Este assunto foi
abordado na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4113, proposta pelo partido
político Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2008. Importante destacar que até
o momento da apresentação desse artigo (junho 2018) a ADI 4113 ainda pende de
julgamento no Supremo Tribunal Federal.
Apesar de existirem diversas ações questionando a constitucionalidade do
Decreto 5.995/06 no Supremo Tribunal Federal, a ADI 4113 versa especificamente
sobre a ofensa à Constituição Federal quanto aos artigos 37, caput; 48, inciso IV; 49,
inciso XVI; 70 e 231 §3º.
Em resumo, o Decreto 5.995/06 não é uma regulamentação de lei que dispõem
sobre o PISF, trata-se na verdade de um decreto autônomo do Poder Executivo, no
qual diversas atribuições são dadas exclusivamente ao próprio Poder Executivo, como
as competências do Ministério da Integração Nacional na execução do Sistema de
Gestão do PISF.
Como salientado na petição apresentada pelo PSOL ao Supremo Tribunal
Federal:

O Projeto em questão não pode ser disciplinado apenas pelo Presidente


da República (vide, neste sentido, o item III do parecer de ANDRÉ RAMOS
TAVARES), à medida que o art. 48, IV, da CB, arrola como competência
do Congresso Nacional dispor sobre matérias da União, especialmente
sobre:
IV – planos e programas nacionais, regionais e setoriais de
desenvolvimento. (grifo original)

A utilização do instrumento normativo decreto reforça a ideia de imediatismo e


urgência atribuído a política de integração do rio São Francisco pelo PAC, resultando
em diversos atrasos e suspensões das obras do PISF ao longo da última década.
A decisão de impor um programa de desenvolvimento, como é a política
estabelecida no PISF, via decreto do Poder Executivo, não levou em consideração as
questões específicas das áreas afetadas com a “perda d’água” como com o “ganho”,
tais como as comunidades tradicionais que vivem ao longo das áreas ou sequer a
condição orçamentária dos municípios que arcarão com as obras de distribuição
d’água.
As políticas públicas, especialmente as que compreendem o âmbito nacional -
no caso, pelo menos cinco estados federais - devem ser elaboradas em conjunto com
a sociedade civil, órgãos técnicos, academia, entre outros. Os questionamentos
decorrentes da formulação do Sistema de Gestão do PISF são a prova do baixo grau
de articulação na política pública analisa, sendo altamente preocupante o fato de que
após dez ano, caso seja reconhecida a procedência da ADI 4113 todas as decisões e
ações tomadas pelos membros estabelecidos pelo Decreto 5.995/06 serão ilegítimas.

CONCLUSÕES

O Programa de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas


do Nordeste Setentrional se apresenta como uma política de desenvolvimento
humano estabelecida sob um viés político gravemente afetado pelo imediatismo e
desejo de deixar uma obra grandiosa como legado pessoal, ignorando questões
estruturais básicas.
Se consideramos os arranjos institucionais tais como definidos por Bucci
(2013), em matéria de articulação dos entes participativos, organização e estruturação
115

da política pública, o PISF não pode ser considerado como institucionalizado ou


mesmo adequado para os objetivos que se propõem.
A urgência em reformular o Sistema de Gestão do PISF e a inexistência de
instrumento normativo específico são provas de que a política pública falhou na sua
implementação, cabendo ao Poder Executivo reavaliar essa política para adequá-la a
realidade nacional.

REFERÊNCIAS

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Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos,
regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da
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Nordeste Setentrional, e dá outras providências., Brasília, DF, dez 2006.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
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públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. Cap. 1.
BUCCI, M. P. D. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. 1ª.
ed. São Paulo: Saraiva, 2013. Cap. 3.
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de Auditoria. Controladoria-Geral da União. Brasília, DF. 2015. (201503325).
EMPINOTTI, V. L. E se eu não quiser participar? O caso da não participação nas
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Licença de Instalação 925 de 08 de abril de 2013. Relativas aos trechos I e II do
Eixo Norte e trecho V do Eixo Leste do Projeto de Integração, atingindo
territórios dos Estados de PE, PB, RN e CE, em consonância com a Resolução
nº 411/2005 da ANA, que dispõe sobre a Outorga do Direito de Uso de Recursos,
Brasília, DF, 08 Abril 2013.
116

MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL. Relatório de impacto ambiental da


transposição - RIMA. Brasília, DF, p. 1-136. 2004.
MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL. Parecer 031 de 2005. Análise do
EIA/RIMA do Proejtode Integração do Rio São Francisco com as Bacias
Hidrográficas do Nordeste Setentrional (parecer técnico para subsidiar a
Licença Prévia), Brasília, DF, 2005. Disponível em: <
http://www.mi.gov.br/documents/10157/3675235/PARECER+031+2005.pdf/5f8f2923
-3d95-4366-bc65-23955ecf2f09> Acesso em: 01/06/18
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Riscos, para as licitações concernentes ao Projeto de Integração do Rio São
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Março 2014. Disponível em: <
http://www.mi.gov.br/documents/10157/3675235/Portaria_118.pdf/862cc978-14e9-
4976-8fb2-cf500f2535b1> Acesso em 01/06/18
MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL. Portaria 179 de 06 de maio de 2014.
Publicação das Tabelas de Preços referenciais revisadas para o pagamento de
indenizações dos imóveis necessários à implantação do Projeto de Integração
do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional e de
suas obras associadas, Brasília, DF, 06 Maio 2014.
MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL. Portaria 07 de 09 de janeiro de 2014.
Publicação das Tabelas de Preços referenciais revisadas para o pagamento de
indenizações dos imóveis necessários à implantação do Projeto de Integração
do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional e de
suas obras associadas., Brasília, DF, 09 Janeiro 2014. Disponível em: <
http://www.mi.gov.br/documents/10157/3675235/portaria+7.pdf/4f23f9aa-600e-4d43-
8cf6-2d8fa10e369e> Acesso em: 01/06/18
ROSSONI, F. F. P. Políticas Públicas e Conflito Ambiental na Bacia Hidrográfica do
Rio São Francisco. Revista Brasileira de Agropecuária Sustentável (RBAS), v. 3,
n. 1, p. 74-80, Julho 2013. ISSN 22369724.
117

AGROECOLOGIA VERSUS DIREITOS FUNDAMENTAIS: O (DES)EQUILÍBRIO


ENTRE A LIVRE INCIATIVA ECONÔMICA E O DIREITO AO MEIO AMBIENTE
ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO
AGROECOLOGY VERSUS FUNDAMENTAL RIGHTS: THE (DIS)EQUILIBRIUM
BETWEEN FREE-ECONOMIC INITIATIVE AND THE RIGHT OF ECOLOCALLY
BALANCED ENVIRONMENT

Alysson Oliveira Moreira


Josilene Hernandes Ortolan Di Pietro

Resumo: O presente trabalho visa fazer uma reflexão crítica acerca da potencial
colisão entre os direitos fundamentais consagrados da livre iniciativa econômica e ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado como corolário da sadia qualidade de vida,
e positivados nos artigos 170 e 225 da Constituição da República Federativa do Brasil
(CRFB/88), respectivamente. Busca, dentro desse contexto, ressaltar a importância
da agricultura familiar e da agroecologia no processo produtivo e na concretização
dos preceitos constitucionais fundamentais. Tem como resultado esperado difundir na
sociedade a noção de responsabilidade socioambiental e provocar reflexão crítica
acerca dos hábitos de consumo. Utilizar-se-á método hipotético dedutivo, com revisão
bibliográfica.
Palavras chave: Meio ambiente ecologicamente equilibrado. Agricultura sustentável.
Livre-iniciativa.

Abstract: This work seeks to do a critical reflection about the potential collision
between the consecrated fundamental rights of free-economic initiative,
ecologically balanced environment and the healthy quality of life, recommended in
articles 170 e 225 of the Constitution of Federative Republic of Brazil (CRFB/88, in
portuguese), respectively. It seeks, within this context, to emphasize the importance
of family agriculture and agroecology in the productive process and in the
implementation of fundamental constitutional precepts. It has as expected result to
spread in society the notion of socio-environmental responsibility and to provoke
critical reflection about consumption habits. A deductive hypothetical method will be
used, with a dialectical bibliographic review.
Key-words: Ecologicaly balanced environment. Sustainable agriculture. Free-
initiative.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho discute as relações entre o direito fundamental ao meio-


ambiente ecologicamente equilibrado, a sadia qualidade de vida, fundados no art. 225
da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) e à tutela constitucional
da livre iniciativa e a desenvoltura de atividade econômica, com base nos arts. 1º, IV
e 170, ambos da CRFB/88. Tal discussão se insere no desenvolvimento do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) com fomento da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas (UFMS/CPTL), intitulado
“Direito, meio ambiente e agricultura: diálogos entre os direitos fundamentais e a
economia na agricultura familiar e de pequenos produtores”.
É ela fruto da polarização entre a defesa do progresso econômico e da proteção
ao meio ambiente, tratadas como situações diametralmente opostas. Porém, são elas
duas faces de uma mesma moeda e que no caso da agricultura, em geral, constituem
118

uma relação de interdependência e complementariedade. Portanto, utilizando-se de


método hipotético-dedutivo e revisão bibliográfica, com base nos marcos teóricos dos
direitos fundamentais socioambientais, oferecidos por Ingo Wolfgang Sarlet e do
desenvolvimento sustentável, com fulcro dos escritos de Édis Milaré, buscar-se-á um
potencial ponto de equilíbrio entre a economia e o meio ambiente, para sua inexorável
convivência simbiótica.

A RELAÇÃO SIMBIÓTICA ENTRE A LIVRE INICIATIVA ECONÔMICA E A TUTELA


DO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO

A CFRB/88 é considerada uma das mais avançadas do mundo na tutela do


Direito Ambiental, dedicando capítulo exclusivamente para a proteção do meio
ambiente, dentro da ordem social. Devido a cláusula de abertura positivada no art. 5º,
§ 2º, CRFB/88, primeira parte, embora a proteção constitucional ao equilíbrio
ambiental, consubstanciada no art. 225 do mesmo Diploma, não esteja diretamente
previsto no elenco de direitos fundamentais do art. 5º, é pacífico que o art. 225
consagra um direito fundamental, de aplicação imediata e merece atenção para
criação de mecanismos para sua concretização e solução de conflitos que envolvam
sua aplicação.
Ao seu turno, o art. 1º, IV, CRFB/88, consagra a livre iniciativa econômica como
fundamento da República Brasileira, conjugado com o art. 170, caput e incisos – com
destaque do inciso VI, CRFB/88, ao tratar da ordem econômica, vai além, do mero
patrimonialismo economicista, e funda a economia como meio e fim último de
asseguramento da dignidade da pessoa humana, como afirma Josilene Hernandes
Ortolan Di Pietro (DI PIETRO, 2013) “o art. 170 da Constituição Federal, limita a
atuação da atividade econômica à realização dos interesses sociais. Trata-se da
prevalência da pessoa humana sobre os valores patrimoniais e individualistas”.
Dentro dessa dicotomia entre desenvolvimento econômico e proteção
ambiental, de ânimos ferrenhos no campo jurídico-social brasileiro, desenvolver-se-á
uma análise entre os dois direitos fundamentais e a sua potencial convivência
harmônica e holística (PADILHA, 2010).

O DIREITO FUNDAMENTAL À LIVRE INCIATIVA ECONÔMICA NA ORDEM


SOCIOAMBIENTAL

A CRFB/88 consagrou em seu texto, ao zelar da ordem econômica, que os


brasileiros têm, além do direito fundamental a livre iniciativa e do trabalho, os deveres
de, na desenvoltura das suas atividades econômicas, velarem pela dignidade da
pessoa humana e do desenvolvimento sustentável.
É uma implicação prática do Estado Democrático de Direito, com fulcro na
socialdemocracia, zelar e proteger os cidadãos dos riscos ambientais e da
insegurança gerada pela sociedade tecnológica em que se insere o desenvolvimento
econômico-social, pois são interdependentes a sadia qualidade de vida, o meio
ambiente e a dignidade da pessoa humana, nos dizeres de Ingo Sarlet, a sociedade
contemporânea “deve ser capaz de conjugar os valores fundamentais que emergem
das relações sociais e, por meio das instituições democráticas [...], garantir aos
cidadãos a segurança necessária à manutenção e a proteção da vida com qualidade
ambiental, vislumbrando, inclusive, as consequências da adoção de determinadas
tecnologias” (SARLET, 2016).
119

Dentro desse contexto de um Estado de Direitos Socioambientais, é salutar


relembrar a afirmação de Peter Häberle “sobre a necessidade de um desenvolvimento
mais reforçado de deveres e obrigações decorrentes da dignidade humana em vista
do futuro humano, o que se justifica especialmente nas dimensões comunitária e
ecológica da dignidade humana” (HÄBERLE apud SARLET, 2016 – grifo nosso).
Em um viés mais verticalizado na ordem econômica, o direito fundamental a
livre iniciativa econômica tem uma relação íntima com o direito de propriedade, porém,
ambos flexibilizados mediante critérios de ponderação e razoabilidade quando em
confronto com outros direitos fundamentais (SARLET, 2016).
A opção do constituinte por uma guinada à pessoa humana e a
responsabilidade socioambiental, deixando o caráter eminentemente patrimonialista,
é ressaltado nos dizeres do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Eros
Grau:

É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção


pelo sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa
circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só
intervirá na economia em situações excepcionais. Mais do que simples
instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes,
programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade.
Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a
sociedade, informando pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º,
3º e 170. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas
pela empresa, mas também pelo trabalho. [...] Se de um lado a
constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina o estado a
adoção de todas as providências tendentes a garantir [...] o interesse da
coletividade, interesse público primário (ADI nº 1.950, Rel. Min. Eros Grau,
julgamento em 03/11/2005, Plenário, Diário da Justiça de 02/06/2006).

Entretanto, reforça-se o viés humanizador e personalista do constituinte de


1988, principalmente na relação com a propriedade privada – aqui de importância
inexorável a pequena propriedade rural para a produção agrícola familiar e sustentável
– relativizado contemporaneamente pela função social. Leciona Di Pietro acerca da
funcionalização e humanização da propriedade privada, dentro de um contexto de
responsabilidade socioambiental e solidariedade social que

À propriedade quase sempre foi atribuída proteção jurídica. Com a


evolução socioeconômica, ela continua resguardada, mas tal proteção foi
redelineada e somente se faz válida se voltada à realização do interesse
coletivo, e não apenas, do interesse individual. De fato, o proprietário é
responsável em atribuir uma finalidade coletiva aos bens particulares. Ao
explorar a propriedade privada, o proprietário não pode fazê-la em
prejuízo do bem coletivo. Ao revés, deve pautar-se na consecução e
promoção da dignidade da pessoa humana e solidariedade social. Com
as transformações advindas com a globalização econômica, além de
instrumento de exercício da liberdade individual, a propriedade passou
adquiriu a função de instrumento de realização da igualdade social e
solidariedade social (DI PIETRO, 2013).

Constitui, então, a propriedade privada, conjugada com a livre iniciativa


econômica, um poder-dever (FERNANDES, 2016) para o atendimento do interesse
particular do agricultor em cultivar sua terra e ao interesse difuso e coletivo da
proteção do meio ambiente.
120

A AGRICULTURA FAMILIAR EM HARMONIA COM A LIVRE INICIATIVA


ECONÔMICA COMO FUNDAMENTO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A agricultura tem sido sustentáculo da economia brasileira nos últimos tempos,


correspondendo a 14,5% do Produto Interno Bruto brasileiro para o ano de 2017,
segundo os dados divulgados pelo Centro de Estudos Avançados Em Economia
Aplicada da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São
Paulo (CEPEA/ESALQ-USP, 2018). Dentro desse montante, a agricultura familiar
responde a 50% da produção alimentar brasileira (GUIMARÃES, 2018), embora ainda
seja um setor frágil do agronegócio brasileiro, pois enfrenta dificuldades de acesso a
tecnologias produtivas e devido a fragilidade econômica.
Entretanto, esses pequenos agricultores e aqueles que produzem em regime
familiar têm se reinventado para sobreviverem no mercado consumidor regido pela
livre iniciativa. Têm eles buscado meios produtivos mais sustentáveis, porque são
dependentes do equilíbrio ecológico para sua produção, em razão de ficarem
suscetíveis aos regimes climáticos e as intempéries. Além da dependência climática,
os pequenos agricultores são economicamente frágeis em consequência da sua
produção limitada por falta de fatores tecnológicos (BITTENCOURT, 2018) e,
geralmente, o bastante para sustentarem as suas famílias e reinvestirem na próxima
safra.
No processo de atualização produtiva, essa classe produtora agrícola tem
buscado refúgio nas técnicas de produção orgânica e sustentável. Embora tenham
logrado um certo êxito nessa escolha, em razão do sucesso expressivo de feiras
agroecológicas (LIRA, 2018), ainda é necessária uma reflexão crítica da sociedade
acerca dos hábitos de consumo e da responsabilidade socioambiental.
A opção por produtos agroecológicos ou oriundos da agricultura familiar
conjugam um potencial meio para concretização dos preceitos do direito fundamental
a sadia qualidade de vida e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado do art. 225
da CRFB/88, como da função social e da responsabilidade ambiental ao integrarem
esse setor frágil da agricultura no mercado de consumo e na sociedade, em atenção
a função social e a solidariedade, num sentimento republicano.
Dentro desse contexto, há um potencial ponto de equilíbrio entre o
desenvolvimento econômico e social e a proteção ao meio ambiente. Os pequenos
proprietários rurais e a agricultura familiar encontram-se regidos pelos princípios
econômicos constitucionais, como aqueles elencados pelo art. 170 da CRFB/88. Mas,
também estão sob a égide normativa constitucional que direciona sua atividade
econômica na consecução da solidariedade social e da sua função social, entendida
nesse contexto como a proteção e o equilíbrio ambiental.
Segundo Josilene Di Pietro, enquanto uma atividade produtiva “encontra-se
inserida nesta ordem econômica constitucional, cujos princípios possibilitam ao
proprietário usufruir de sua propriedade e exercer a liberdade de iniciativa, aspectos
característicos do Estado Social Democrático de Direito que privilegia ideais
capitalistas” (DI PIETRO, 2013), ao mesmo tempo se encontrará norteada pelo
“cumprimento da função social como condição para tutela estatal, consagrando a
expressiva contemplação do social em detrimento das ações individualistas” (DI
PIETRO, 2013), compreendido o interesse social e difuso no equilibro socioambiental
e ecológico, garantidor da sadia qualidade de vida a todos cidadãos.
As discussões ferrenhas e polarizadas nada favorecem ao desenvolvimento
socioambiental, da mesma forma que é prejudicial a dicotomia entre economia e
ecologia, postos em posições diametralmente opostas.
121

Então, em consonância com o desenvolvimento socioambiental e econômico,


dirigido por um espírito de solidariedade social, há, segundo Sarlet, uma opção
constitucional pelos princípios estruturantes e fundamentais da República Brasileira,
por um capitalismo ambiental ou socioambiental

capaz de compatibilizar a livre-iniciativa, a autonomia e a propriedade


privada com a proteção ambiental e a justiça social (e também justiça
ambiental), tendo como norte normativo ‘nada menos’ do que a proteção
e promoção de uma vida humana digna e saudável (e, portanto, com
qualidade, equilíbrio e segurança ambiental) para todos os membros da
comunidade estatal (SARLET, 2016).

Numa perspectiva geral entre a economia e o desenvolvimento sustentável, há


a necessidade de pautar-se em princípios éticos ambientais, numa convivência
harmônica e simbiótica dos processos produtivos e tecnológicos, ao passo que são
forças motrizes do fomento científico, cultural, social e ambiental. Segundo Édis
Milaré, numa sociedade que a consciência da cidadania, e no viés aqui proposto da
responsabilidade socioambiental, ainda são vacilantes (MILARÉ, 2015), a discussão
e reflexão crítica é inexorável para a consecução dos objetivos constitucionais.
Em síntese, a ética ambiental e desenvolvimento sustentável devem servir de
pedra fundamental nas decisões governamentais e, principalmente, das escolhas e
reflexões acerca dos hábitos de consumo da sociedade. Deve, então, direcionar o
processo deliberativo e, por consequência e necessidade de adaptação, do processo
produtivo, no sentido de buscar o atendimento das necessidades das gerações
contemporâneas, assegurado a satisfação e sobrevivência das gerações futuras.
Soma-se também a esse direcionamento o consumo alinhado a produção
agroecológica e a atitudes que menor impacto causem na natureza e sejam
benfazejas ao conjunto simbiótico de todos os seres (MILARÉ, 2015).

CONCLUSÃO

Embora a Constituição da República esteja nos seus plenos 30 anos de


vigência, com a sua promulgação em outubro de 1988, ainda existem discussões
acirradas acerca dos seus preceitos e princípios estruturantes. Muito distante ainda
se encontra a concretização plena deles, principalmente os atinentes a tutela jurídica
do meio ambiente ecologicamente equilibrado, convertida em concretude no mundo
dos fatos.
Contudo, discussões que buscam um ponto de equilíbrio entre potencial colisão
entre direitos fundamentais, como a tutela do meio ambiente e a proteção da ordem
econômica. Mas essas discussões não podem se limitar apenas ao campo das ideias
e do mundo jurídico, devem elas refletir e causar reflexão nos hábitos da sociedade.
Hão de ser fornecidas alternativas sustentáveis aos consumidores, como restou
salientado na reinvenção da agricultura familiar pautada na agroecologia pela
demanda de produtos mais saudáveis e orgânicos. Concomitantemente, há de ser
constantemente pensado na proteção e integração social dos pequenos proprietários
rurais e agricultores familiares, na concretização da sua dignidade como fim e, como
meio de concretização do equilíbrio ecológico ambiental e da sadia qualidade de vida.
É, portanto, objetivo e resultado esperado do presente trabalho a concretização
os preceitos consagrados nos arts. 1º, IV; 3º, I e III; 170 e 225, todos da CRFB, com
a difusão da ética ambiental e provocação a reflexão crítica norteada pela
responsabilidade socioambiental.
122

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Daniela. Agricultura familiar, desafios e oportunidades rumo à


inovação. Secretaria de Comunicação – Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária. Disponível em: www.embrapa.br/busca-de-noticias/-
/noticia/31505030/artigo---agricultura-familiar-desafios-e-oportunidades-rumo-a-
inovacao. Acesso em: 09/04/2018.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA (CEPEA-
ESALQ/USP). PIB do agronegócio brasileiro. Disponível em:
www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx. Acesso em
21/09/2018.
DI PIETRO, Josilene Hernandes Ortolan. A dimensão constitucional da atividade
empresarial. In: LIMA, Sandra Mara Maciel de, DANTAS, Fernando Antonio de
Carvalho e RIBAS, Lídia Maria Ribas. (Org.). Sustentabilidade econômica e social
em face à ética e ao Direito. Florianópolis: FUNJAB, 2013.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. rev.
ampl. e atual. – Salvador: JusPODIVM, 2016.
GUIMARÃES, Elian. Agricultura familiar já responde por metade da produção de
alimentos no país. Estado de Minas: Agropecuário. Disponível em:
www.em.com.br/app/noticia/agropecuario/2018/05/07/interna_agropecuario,956711/
agricultura-familiar-metade-da-producao-de-alimentos-mesa-brasileiros.shtml.
Acesso em: 21/09/2018.
LIRA, Aline. Feiras orgânicas estimulam o consumo saudável e valorizam a
agricultura familiar. Estado de Mato Grosso do Sul – Agência de Desenvolvimento
Agrário e Extensão Rural (Agraer). Disponível em: http://www.ms.gov.br/feiras-
organicas-estimulam-o-consumo-saudavel-e-valorizam-a-agricultura-familiar/.
Acesso em: 21/09/2018.
MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. – 10. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2015
PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do direito ambiental
brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional / Ingo Sarlet, Luiz
Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero. – 5. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2016.
123

ATORES INTERNACIONAIS E MECANISMOS DO PROCESSO DE EFETIVAÇÃO


DO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL COMO UMA FERRAMENTA AOS
DIREITOS HUMANOS
INTERNATIONAL ACTORS AND MECHANISMS OF EFFECTIVENESS PROCESS
OF INTERNATIONAL ENVIRONMENTAL LAW AS A TOOL TO HUMAN RIGHTS

Graziele Regos da Silva

Resumo: O artigo tem como objetivo verificar os possíveis atores internacionais do


novo Direito Ambiental Internacional, bem como também os mecanismos de atuação
para a efetivação da proteção ao meio ambiente ecologicamente sadio e equilibrado.
Procura-se interdisciplinar essa atuação como um meio para garantir uma prerrogativa
ambiental estabelecida, no decorrer da história, nos Direitos Humanos como sendo
um direito fundamental a todo indivíduo. A partir dessa análise, a problemática central
do projeto é tentar estabelecer quais são os instrumentos desses novos atores
internacionais, bem como tentar buscar e analisar casos jurídicos referentes a esse
novo ramo internacional, a fim de demonstrar se podem enfrentar questões mais
complexas do Direito Ambiental. Por fim, o artigo demonstra como essa ferramenta
do Direito Ambiental Internacional é um mecanismo concretização dos Direitos
Humanos.
Palavras-chave: Direito Ambiental Internacional, Direitos Humanos e Atores
Internacionais

Abstract: The article has as a priority to check the possible international actors of the
new International Environmental Law, as well as the mechanisms of action for the
effectiveness of ecologically correct and balanced environmental protection. I wanted
to interdiscipline this action as a way of guaranteeing an environmental prerogative
established, throughout history, in Human Rights being a fundamental right for all
individuals. From this analysis, the central problem of the project is to try to establish
the instruments of these new international actors, as well as to try to analyze the legal
cases related to this new international branch, in order to show if it can face more
complex issues of the environmental law. Finally, the article demonstrates how this tool
of International Environmental Law is a concrete mechanism for human rights.
Keywords: International Environmental Law, Human Rights and International Actors.

INTRODUÇÃO

A defesa do Meio Ambiente não é objeto reservado ao controle exclusivo da


legislação interna dos Estados, mas dever de todo o conjunto Internacional. Não
obstante, a proteção ambiental tem por função tutelar o meio ambiente em decorrência
do direito à sadia qualidade de vida, em todos os seus fracionamentos, sendo assim
considerada uma das vertentes dos direitos humanos. Neste contexto, é de suma
importância rememorar que apenas a partir da década de 1970, no âmbito da “Nova
Ordem Econômica e Mundial” os Estados soberanos começaram a se preocupar com
esta problemática. Entretanto, apenas no ano de 1972, na Conferência de Estocolmo,
a real importância ao Direito Ambiental começou a surgir, tutelando princípios
fundamentais que possuem a mesma relevância sobre aqueles protegidos na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
Desse modo, foram inúmeros os Tratados e Convenções Internacionais
ratificados desde 1972 até a atualidade. A consequência de todo esse procedimento
124

internacional na matéria ambiental tem também reflexos no campo de proteção


internacional dos direitos humanos. Pode-se ponderar que o direito ao meio ambiente
ecologicamente sadio e equilibrado, apesar de não ter sido expressamente colocado
no teor da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948 (em que somente
constam direitos civis, políticos e direitos econômicos, sociais e culturais), pertence
ao bloco de constitucionalidade dos textos constitucionais contemporâneos, entre
eles, a Constituição Federal Brasileira de 1988. A partir dessa análise posta, verifica-
se que o princípio pelo qual toda pessoa tem direito a uma ordem social e
internacional, estabelecida pela DUDH, passa a ser integrado pelo Direito
Internacional do Meio Ambiente (antigo ramo). E assim, apenas com a garantia de um
ambiente saudável é que os direitos e liberdades estabelecidos na DUDH podem ser
plenamente serem efetivados.
Ademais, os instrumentos internacionais para a proteção ambiental foram no
decorrer dos tempos, aperfeiçoados, visto que a concepção clássica de Direito
Internacional do Meio Ambiente seria insuficiente para tratar de temas ambientais
mais complexos, uma vez que pouco adotava a solução de conflitos em uma análise
sistêmica. Diante dessa limitação, surge o Direito Ambiental Internacional (DIA), um
ramo inovador, com princípios e características próprias, capaz de estudar os
desacordos ambientais de caráter transnacional. Nessa nova especialidade é possível
identificar uma estrutura incorporada com novos conhecimentos, com atores
diferenciados e instrumentos de enfrentamento.
Com isso, a informação geral a ser investigada neste artigo visa identificar os
atores internacionais do DIA, sendo o objeto principal demonstrar quais os
mecanismos de instrumentalização até então postos no sistema, verificar se possuem
capacidade jurídica para atuarem em âmbito internacional. Feita essa análise,
procurar casos específicos de atuação desses novos atores internacionais e se tais
casos possuem como ferramenta a concretização dos Direitos Humanos nos conflitos
postos. Os resultados do presente estudo estão sendo adquiridos por meio de
pesquisa metodológica pautada no método qualitativo na análise de artigos, revistas,
revisão bibliográfica, documental, raciocínio baseado em premissas e conclusões.

ATORES INTERNACIONAIS DO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL

Como já exposto, diante da insuficiência do antigo ramo que tratava sobre


questões mais complexas dos conflitos ambientais, surge então o Direito Ambiental
Internacional – DAI, que tem como escopo importante a atuação de novos Atores
Internacionais. Nesse aspecto, essa área ganhou, paulatinamente, espaço no Direito
Contemporâneo, em razão da sua aptidão pragmática e competente no
equacionamento na tratativa de problemas ambientais complexos, promovendo a
relação dos Estados e Organizações Ambientais Internacionais, com novos atores,
essencialmente por meio de redes.1
Assim sendo, a partir desta nova perspectiva, os Estados começaram a
aceitar a participação dos novos atores internacionais do DAI, admitindo alguns
regimes, como indivíduos, empresas privadas, organizações não-governamentais,
mídia, povos tradicionais, governos subnacionais e locais, ampliando, assim, o
catálogo internacional das instituições ambientais. No entanto, imprescindível deve
ser a distinção dos sujeitos de direito internacional dos atores que compõe a estrutura
institucional desse direito. Sobre o assunto, argumenta VARELLA:

1
As redes representam uma maneira coletiva de gestão participativa e monitoramento de regras e padrões ajustados a partir
de ralações não hierárquicas, com direções verticais e horizontais, entre os múltiplos participantes.
125

Em sede doutrinária, no entanto, distinguem-se sujeitos de direito internacional


de atores de direito internacional. Aqueles são apenas os Estados e as Organizações
Internacional, ao passo que empresas, organizações não-governamentais e
indivíduos seriam os atores de direito internacional, mas não sendo reconhecidos
como sujeitos de direito internacional. Registre-se, porém, a partir de uma perspectiva
processual, que os indivíduos têm sido admitidos em organismos internacionais como
sujeitos de direitos e obrigações.
Sob a ótica de MAZZUOLI, os atores internacionais participam da sociedade
internacional, mas sem deterem personalidade jurídica de Direito Internacional
Público:

Em verdade, da sociedade internacional também fazem parte as


coletividades não estatais, o que não significa que muitos dos atores que
as compõem sejam efetivamente sujeitos do Direito Internacional Público,
a exemplo organizações não governamentais (ONGs) e das empresas
transnacionais. Trata-se de coisas distintas. Pertencer à sociedade
internacional é uma coisa; ser sujeito de direito das gentes é outra bem
diferente.

Nesse sentido, reitera-se no avanço primordial do DAI ao aceitar na sua base


o pluralismo de sujeitos, abrangendo a atuação de novos atores internacionais. Essa
inclusão está representando como um fenômeno positivo nas negociações
internacionais, com a introdução e defesa de posições adequadas com a opinião
pública, tendo como consequência uma contribuição maior de políticas adequadas na
efetivação da proteção do Meio Ambiente.
Nesse aspecto, é importante elucidar os mecanismos de instrumentalização
dos Atores Internacionais do Direito Ambiental Internacional, tendo como
demonstração suas principais atribuições na solução de conflitos ambientais mais
complexos: as ONGs, os Governos subnacionais, o Mercado e as Comunidades
epistêmicas.
As ONGs surgiram no século XX. Elas desempenham papel fundamental na
construção da governança ambiental. MORAES sintetiza suas funções na governança
ambiental: a) influenciar no processo de decisões, tanto no âmbito nacional quanto
internacional; b) conscientizar atores, como indivíduos e Estados, sobre questões
ambientais; c) idealizar e realizar espaços de discussão e debate; d) zelar pelo
cumprimento das normas ambientais pelos Estados e empresas; e) difundir
informações à mídia e ao público em geral; f) participar diretamente na elaboração de
normas ambientais que servirão de norte no comportamento de Estados, empresas e
pessoas.
Os Governos subnacionais têm como função primordial no sistema ambiental
a sua organização em rede, estabelecendo uma paradiplomacia ambiental 2.
Compreendem-se por governos subnacionais as cidades ou blocos regionais que
visam sua inserção internacional na busca por interesses locais, mas também
estaduais e nacionais. Tais Governos possuem atribuições fundamentais na proteção
ambiental, como, por exemplo, na própria Constituição Federal Brasileira de 1988, que
dispõe competências específicas a esses governos na efetivação de um Meio
Ambiente Saudável e Sadio. Seguindo esse pensamento, YAHN FILHO argumenta:

2
Paradiplomacia Ambiental expressa o interesse e a participação direta dos estados subnacionais nas questões ambientais
globais, bem como na promoção do desenvolvimento sustentável. (Bueno da Silva, 2010 apud REI, Fernando; CUNHA, Kamyla
Borges da; SETZER, Joana. Paradiplomacia Ambiental: a participação brasileira no regime internacional das mudanças
climáticas. In: Revista de Direito Ambiental, ano 18, vol. 71, jul. – set/2013, p. 272).
126

Esta busca das cidades e regiões por uma inserção internacional


determinou a participação de novos atores nas relações internacionais,
cuja atuação se faz por meio de uma paradiplomacia, criando, em alguns
casos, conflitos com a política externa nacional, mas, em outros casos,
tornando-se uma forma de aliviar a pressão sobre os governos centrais,
nas busca de soluções para problemas locais e, até mesmo, colaborando
com a inserção internacional do país.

Assim, de acordo com BARROS “A atuação dos governos subnacionais leva


tanto a transformação na agenda – já que novas demandas são inseridas – quanto a
questionamento sobre a normativa internacional – por ser necessário discutir-se
acerca das repercussões dos acordos assumidos pelos governos não centrais no
direito internacional”.
Já o Mercado também é estabelecido como um dos importantes atores do DAI,
visto que seu cenário na proteção do Meio Ambiente se fortaleceu a partir das
conferências relaizadas pela Organizações das Nações Unidas sobre esse tema.
Visto isso, o setor privado começou a investir no âmbito ambiental internacional. A
Agenda 21 considera que as empresas são grandes provedoras de tecnologias
ambientalmente saudáveis e, juntamente como os Governos, podem disponibilizar
informações científicas e tecnológicas essenciais para o desenvolvimento
sustentável.3
Deve-se enfatizar também sobre as sociedades epistêmicas, agentes de
mudança em uma sociedade globalizada, formados por cientistas e grupos de
estudiosos que possuem ideias comum sobre determidado tema. Em suma, registra-
se sua importância no DAI pela busca de informações adequadas sobre os aspectos
ambientais. Ao produzir o conhecimento, essas comunidades fortalecem uma
importante proteção de direitos existentes e também na construção de novos direitos,
regulmentos e diretrizes.
Por fim, em âmbito nacional, a proteção do Meio Ambiente foi realizada com a
criação de novos órgãos, como o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), o
Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) e um órgão voltado para a
fiscalização, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA). Esses intitutos possuem a participação de todos os setores da
economia e da sociedade civil, entre eles, dos Atores Internacionais. Essa
interdisciplinalidade é fundamental para ampliar a participação, os objetivos e a
cooperação entre os institutos, e para reforçar a governança global do DIA.

DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL COMO UMA FERRAMENTA PARA OS


DIREITOS HUMANOS

Nesta problemática, é necessário enfatizar que a tutela jurisdicional no Meio


Ambiente acontece a partir dos impasses ambientais que ocorrem no planeta,
correnpondente ao esgotamento de recursos naturais, da mortandade da fauna e da
flora, do aquecimento global, do problema da água, do esgoto, do planejamento
urbanístico, entre outros aspectos que afetam diretamente a vida dos indivíduos.
Nesse sentido, a reflexão acerca da efetividade dos Atores Internacionais do Direito
Ambiental Internacional na persecução de conflitos ambientais mais complexos, em
níveis transnacionais, é de urgente e extrema importância.
Assim sendo, o Meio Ambiente está sofrendo com grandes ataques de toda
espécie e de todo volume, que por consequência proporciona, lamentavelmente, um

3
Agenda 21 Global. 3° ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretárias de Edições Técnicas, 2003.
127

desequilíbrio efetivo que porderá comprometer a vida da pessoa humana e de todos


os seres. Verdadeiramente, as medidas de proteção começam a ser tomadas em
âmbito internacional: em 1972 foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre
o Meio Ambiente Humano, com uma comissão que produziu um documento
denomidado “Nosso Futuro Comum”, também conhecido como Relatório Brundtland,
em que apresentou um novo conceito de desenvolvimento sustentável. Essa
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano configura o que
FERRER4 denomina de primeira ‘onda’ no processo cronológico do Direito Ambiental,
caracterizando-se pela constitucionalização do Direito Ambiental em um número
significativo de países e pela conscientização da necessidade de se estabelecer
limites de crescimento, tendo em vista as agressões dirigidas ao meio ambiente.
Já em 1992 é realizado no Rio de Janeiro – Brasil, a Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio+10, que reuniu 179 chefes
de Estado, sendo produzido um importante documento denominado Agenda 21, com
princípios, programas, estratégias e propostas de ação. Nesta conferência, o número
de ONG’s participantes, direta ou indiretamente, contabilizou em torno de 1400
ONG’s. Essa Conferência foi um marco importante para a realização da Rio+20,
ocorrida em 2012, apresentada pela Conferência das Nações Unidas sobre o
Desenvolvimento Sustentável.
No que tange sobre a Rio+20, uma das conferências mais importantes sobre o
Meio Ambiente Internacional, reuniu diversos Atores Internacionais para a discussão,
sendo: 10822 foram para as delegações, 9856 para ONG’s e “grupos majoritários”,
emvolvendo entidades privadas, como empresas por exemplo, 4.075 para a mídia,
1.781 para os diálogos e 4.363 para a segurança, como também um número
representativo da socedade civil, participante através de Redes Sociais como
Facebook e Twitter. Com isso, denomidada a Cúpula dos Povos (entidades da
sociedade civil e movimentos sociais de vários países), teve como objetivo discutir as
causas da crise socioambiental, apresentando soluções práticas, como também no
intuito de fortalecer os movimentos sociais no Brasil e no Mundo.
Como supracitado no texto, a incapaciade dos Estado Nacionais em lidar com
as crises ambientais estimulou o surgimento desses Novos Atores Internacioanis, no
sentido de suprir essa deficiência estatal ou, pelo menos, no sentido de auxiliá-los no
enfretamento dessas crises. Nessa perspectiva, de acordo com SILVA:

O problema da tutela jurídica do meio ambiente manifesta-se a partir do


momento em que sua degradação passa a ameaçar não só o bem-estar,
mas a qualidade da vida humana, se não a própria sobrevivência do ser
humano. [...]. O que é importante é que se tenha consciência de que o
direito à vida, como matriz de todos os direitos fundamentais do homem,
é que há de orientar todas as formas de atuação no campo de tutela do
meio ambiente. Cumpre compreender que ele é um fator preponderante,
que há de estar acima de quaisquer outras considerações como as de
desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade e como
as de iniciativa privada.

Com isso, a efetivação dos Direitos Humanos, e aqui de forma mais precisa os
Direitos ao Meio Ambiente Saudável e Equilibrado (3º geração), são de titularidade de
todos os indivíduos, e devidos a cada um, os quais tem legitimidade para exigirem a
efetividade dos mesmos com base em sua natureza ética, através de instrumentos
jurídicos e políticas concretas em um contexto universal; passando assim a gerarem
4
FERRER, Gabriel Real. La construcción del Derecho Ambiental. Revista Aranzadi de Derecho Ambiental (Pamplona,
Espanã), n. 1, 2002, págs. 73-94.
128

obrigações aos próprios indivíduos e ao Estado, os quais são atores principais na


garantia da efetividade dos direitos humanos.

CONCLUSÃO

Conclui-se, de forma parcial, a relevância para a comunidade acerca da


percepção dos Atores Internacionais do Direito Ambiental Internacional como recanto
para preservação dos direitos e garantias fundamentais. Sua eficácia se propõe
através dos seus efeitos práticos, a partir de ações e políticas que o governo brasileiro
adotou para a prevenção de problemas ambientais mais complexos tendo o auxílio
dos Atores Internacionais. Foi examinado a sistematização e os mecanismos de
atuação desses atores, bem como também suas principais atribuições na execução
de conflitos ambientais. Tendo em vista toda essa investigação, o objetivo específico
foi verificado que esses principais meios aplicados de interdisciplinalidades dos Atores
Internacionas e Estados Nacioanis são ferramentas efetivas para a concretização dos
Direitos Humanos de terceira geração.

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130

COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO VALE DO RIBEIRA E O PLANTIO


TRADICIONAL – BARREIRAS BUROCRÁTICAS PARA O EXERCÍCIO DE
DIREITOS
VALE DO RIBEIRA’S QUILOMBOLA COMMUNITIES AND THE TRADITIONAL
PLANTING – BUREAUCRATIC BARRIERS FOR THE EXERCISE OF RIGHTS

Helena Gontijo Duarte de Oliveira


Marcelo Kokke Gomes

Resumo: O tema da pesquisa que se pretende desenvolver abrange as comunidades


quilombolas do Vale do Ribeira, abordando a burocracia no processo de licenciamento
para o cultivo tradicional da terra. O devido processo burocrático pode impactar
diretamente sobre o modo de vida dessas comunidades, influindo sobre questões
sociais, econômicas e ambientais. É dada ênfase também aos direitos dos povos
quilombolas, analisando-se criticamente a efetividade de leis e garantias
constitucionais. Ademais, analisar-se-á seu contexto histórico, suas características,
peculiaridades, tradições e costumes, aprofundando a pesquisa no trabalho e na luta
realizada pelas populações do Vale do Ribeira, compreendendo sua importância face
a preservação do meio ambiente e da história desses povos como patrimônio cultural
do Brasil.
Palavras-chave: comunidades quilombolas; cultivo da terra; burocracia.

Abstract/Resumen/Résumé: The theme of the research that is intended to be


developed covers the quilombola communities of Vale do Ribeira, addressing how the
bureaucracy in the license process can affect the people’s traditional land cultivation.
The bureaucratic process can directly impact in the communities lifestyle, influencing
in social, economic and environmental matters. It´s given emphasis in quilombola´s
rights, critically analyzing the law and constitutional guarantees effectiveness. In
addition, their history, unique features, peculiarities, traditions and mores will be
analyzed, taking a deep look in the work and struggle of the people of Vale do Ribeira,
spelling out their importance in the face of environmental and history of these
communities as cultural heritage.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: quilombola communities; land cultivation;
bureaucracy.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Para dar início a seguinte pesquisa, que abarca principalmente as comunidades


quilombolas do Vale do Ribeira, região sudeste do Estado de São Paulo, e seu modo
de vida tradicional, é preciso ressaltar a importância destas e do meio ambiente como
patrimônio cultural brasileiro, ambos intrinsicamente ligados. Por essa razão, é preciso
analisar criticamente as legislações e as políticas públicas que garantem direitos a
esses povos, a fim de promover o reconhecimento por parte da sociedade e do
Estado.

2. CONTEXTO HISTÓRICO E CARACTERÍSTICAS DAS COMUNIDADES


QUILOMBOLAS

Os primeiros negros que pisaram em território brasileiro chegaram aqui no


século XVII, advindos do tráfico negreiro. Vinham, primeiramente, da costa ocidental
131

africana, e posteriormente, da oriental; esses grupos possuíam língua e


características próprias, e unidos pela sua captura, esses povos fizeram intensas
trocas culturais e estabeleceram alianças entre si. Desde o início, muitos negros se
refugiavam e agrupavam-se na mata, originando os primeiros quilombos; ao longo da
história, em terras desocupadas de todo país, essas comunidades caracterizavam-se
pela pequena produção agrícola, em regiões interioranas. Após a abolição da
escravatura, muitos negros ex escravos continuaram seu cultivo de terra, já outros
foram obrigados a trabalhar para latifundiários, para sua sobrevivência.
De acordo com a IN 57, Instrução Normativa do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em seu artigo 3º, as comunidades
quilombolas são reconhecidas pelas seguintes características:

“Art. 3°. Consideram-se remanescentes das comunidades dos


quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-
definição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.”
(BRASIL, 2013)

O quilombo é símbolo de luta e resistência histórica, mas também de


organização social, fatos estes que garantem a permanência das comunidades negras
rurais e urbanas. A identidade desse povo é a base da constituição de seus territórios,
onde as relações sociais e ecológicas são feitas em coletividade.

3. LEGISLAÇÃO – GARANTIAS ÀS COMUNIDADES QUILOMBOLAS

No artigo 4º da IN 57, caracterizam-se as terras quilombolas: “Art. 4º.


Consideram-se terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos
toda a terra utilizada para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e
cultural.” Ademais, a essa comunidade deveria ser garantida toda a proteção legal,
pois a Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 216 o tombamento dos
sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, e o Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), em seu artigo 68, reconhece às
comunidades quilombolas a propriedade sobre seus territórios, e dessa forma, torna
possível que elas sejam alvo de outras políticas públicas no futuro.
O INCRA, como explicitado no artigo 5º da IN 57, é um órgão federal com
competência para identificar, reconhecer, delimitar, demarcar, desintruir, titular e
registrar imobiliariamente as terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades
dos quilombos, sem prejuízo da competência comum e concorrente dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios. A delimitação de terras quilombolas consiste em um
processo complexo, em que são levados em conta relatórios antropológicos,
indicações da própria comunidade, bem como estudos técnicos e científicos, o que
consistirá na caracterização espacial, econômica, ambiental e sociocultural da terra
ocupada pela comunidade; cada um desses critérios sendo minuciosamente
abordado.
A titulação das terras é uma garantia de proteção aos territórios quilombolas,
tendo em vista as pressões exercidas sobre eles, tais como a grilagem de terras e a
especulação imobiliária. A constituição garante o direito de autodeterminação de
terras aos povos quilombolas, entretanto, é função do Estado a delimitação destas;
dessa forma, é acarretada uma série de procedimentos burocráticos, que acabam
tornando o processo demorado e ineficiente. Por isso, o número de comunidades
132

quilombolas que obtiveram título definitivo, após o processo de regularização


fundiária, não corresponde ao número real de comunidades quilombolas existente. De
acordo com o site do INCRA, no estado de São Paulo existem, atualmente, 51
comunidades quilombolas com processos em aberto; algumas com titulação parcial,
outras já possuem a portaria de reconhecimento, mas a maioria ainda está na primeira
fase da regularização fundiária, que consiste na elaboração do Relatório Técnico de
Identificação e Delimitação (RTID), que visa o levantamento de informações
fundiárias, cartográficas, agronômicas, ecológicas e socioeconômicas.

3.1. A CONVENÇÃO 169 DA OIT

Um ponto importante a ser tratado, referente aos direitos das comunidades


quilombolas, é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A
OIT é uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU), fundada em 1919 e
conta com sedes em diversos países. A agência tem o objetivo de promover a justiça
social e o reconhecimento internacional dos direitos humanos e trabalhistas, e nesse
viés, no ano de 1989, durante a 76ª Conferência Internacional do Trabalho da OIT, foi
adotada A Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países
Independentes, entrando em vigor em setembro de 1991. A Convenção foi ratificada
pelo Brasil no ano de 2003, e dessa forma, assume que seus dizeres possuem força
normativa perante o ordenamento jurídico brasileiro. Ela garante a povos indígenas e
povos tradicionais, tais como os quilombolas, respeito por parte do Estado frente as
suas características culturais, sociais, étnicas e econômicas, além de garantir outros
direitos que cabem aqui ser citados.
Em seu artigo 7º, a Convenção assegura aos povos tradicionais que o governo
deve, entre outros aspectos, adotar medidas em cooperação com os povos
interessados para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles
habitam e seu modo de vida tradicional. Entretanto, quando observamos o atraso na
emissão de licenças para o cultivo da terra no Vale do Ribeira, nos deparamos com
um exemplo de como o Estado falha ao garantir esse direito, assegurado pela
Convenção.

3.2. O DECRETO Nº 4887/2003

O decreto nº 4887 do ano de 2003 foi mais um direito assegurado aos povos
tradicionais; este regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias. Em seus artigos 2º e 3º, por exemplo, é assegurado o
direito de autodeterminação desses povos, assim como a garantia de sua reprodução
física, social, econômica e cultural. Este Decreto atribui ao INCRA a realização dos
procedimentos legais que visem assegurar esses direitos.
No início do ano de 2018, a ADI 3239 (Ação Direta de Inconstitucionalidade) foi
julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal, declarando a
constitucionalidade do decreto nº 4887/2003. A ADI foi movida pelo partido político
Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), e apontava uma série de
inconstitucionalidades no decreto, entre elas o critério de autodefinição concedido
neste. Com 8 votos contrários a ADI, ela foi julgada improcedente, como já dito antes;
vale destacar a justificativa do voto da ministra Rosa Weber, que foi favorável ao
decreto 4887/2003:
133

“Tenho por inequívoco tratar-se de norma definidora de direito


fundamental de grupo étnico-racial minoritário, dotada, portanto, de
eficácia plena e aplicação imediata e, assim, exercitável o direito subjetivo
nela assegurado, independentemente de qualquer integração legislativa”.
(STF..., 2018)

4. AS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO VALE DO RIBEIRA

O Vale do Ribeira é a região que comporta a maior parte das comunidades


quilombolas do estado de São Paulo; ademais, nessa região encontram-se outras
populações tradicionais e locais, como indígenas, agricultores familiares e caiçaras. A
região além de riquíssima em questões culturais, também é aquela onde se encontra
boa parte da mata atlântica remanescente, e como iremos dispor aqui posteriormente,
o meio ambiente também se enquadra como patrimônio importantíssimo para a
sociedade brasileira, e deve ser preservado. Na região do Vale do Ribeira, de acordo
com o Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira, datado de 2013, são
apontadas cerca de 66 comunidades quilombolas; entretanto, somente 21 são
reconhecidas oficialmente e 6 contam com títulos homologados pelo Estado. O ITESP,
Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo, presta assistência técnica para
mais de 1.400 famílias quilombolas, distribuídas em 13 municípios; são 33
comunidades remanescentes de quilombos reconhecidas pelo órgão, seis delas já
tituladas até o final do ano de 2017, de acordo com o site da fundação.
Os quilombolas do Vale do Ribeira desenvolveram um sistema de plantio que
garante a sobrevivência da comunidade e preservação da Mata Atlântica do local; o
método é chamado de Roça de Coivara e consiste em cortar a mata, queimar apenas
a área derrubada, plantar por alguns anos e depois deixar a área em pousio para que
a vegetação nativa e o ecossistema se recomponham naturalmente, o que ajuda na
manutenção e até aumento da biodiversidade local.
Ademais, toda a produção das roças é orgânica, sem o uso de nenhum tipo de
produto químico; os quilombolas mantém sua tradição de não utilizar nenhum
agrotóxico em suas lavouras. Para a comunidade como um todo, é muito gratificante
saber que o alimento cultivado será colhido por eles, preparado por eles e chegará à
mesa de todas as famílias dali. Além disso, os municípios próximos das comunidades
também são beneficiados com a produção dos alimentos saudáveis, que chegam até
a população em geral em feiras livres e compras municipais que beneficiam escolas,
hospitais e outras instituições.
A lei da Mata Atlântica autoriza o cultivo da terra por populações tradicionais,
entretanto, os quilombolas ainda necessitam de licenças ambientais fornecidas por
órgãos estaduais (CETESB, Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) para o
corte da vegetação; porém, o processo é extremamente burocrático, e por isso,
sempre atrasa, acarretando uma série de prejuízos às comunidades. De acordo com
o Estado, a falta de pessoal no campo é o principal fator para o atraso na emissão das
licenças, e a CETESB alega que para atender às comunidades é feito todo um
trabalho envolvendo o Itesp, a Fundação Florestal e a própria companhia, e a
produção dessa documentação pode tomar bastante tempo e dessa forma, é
fundamental o planejamento no pedido dessas autorizações. Entretanto, tudo indica
que a morosidade e a burocracia no processo gera intenso volume de papel, práticas
que se caracterizam como empecilhos para a realização das roças tradicionais, pois
a demora ocasiona na perda das sementes, que por serem orgânicas, devem ser
plantadas pouco tempo depois de colhidas; além das épocas certas de plantio de
134

acordo com a estação do ano e o tipo de cultura, conforme o calendário agrícola. O


atraso no ciclo do plantio gera insegurança alimentar, perda de variedade agrícola,
êxodo rural da população mais jovem, além de comprometer a conservação das
floretas do Vale do Ribeira.
Por isso, é preciso discutir sobre o conceito de racismo ambiental, de acordo
com Benjamin Chavis, líder do movimento negro que mesclava religião e ciência e
primeiro a propor o conceito:

“Racismo ambiental é a discriminação racial nas políticas ambientais. É


discriminação racial na escolha deliberada de comunidades de cor para
depositar rejeitos tóxicos e instalar indústrias poluidoras. É discriminação
racial no sancionar oficialmente a presença de venenos e poluentes que
ameaçam as vidas nas comunidades de cor. E discriminação racial é
excluir as pessoas de cor, historicamente, dos principais grupos
ambientalistas, dos comitês de decisão, das comissões e das instâncias
regulamentadoras” (MATHIAS, 2017)

Os próprios quilombolas do Vale do Ribeira contestam o porquê de grandes


agricultores terem milhares de hectares desmatados para pasto e bananal e suas
comunidades, que sempre preservaram a Mata Atlântica do local e realizaram o
plantio e a colheita de acordo com o tempo da floresta, recebem empecilhos para o
exercício de suas atividades. A partir da fala e do que foi exposto, pode-se relacionar
a situação das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira com o racismo ambiental;
quando as licenças para os povos quilombolas não são emitidas no prazo e em certos
casos, pela necessidade de sobrevivência, alguns quilombolas plantam mesmo sem
licença e são multados pelos órgãos ambientais.
Já para os grandes produtores agrícolas, que na grande maioria das vezes são
monocultores e usam métodos convencionais de produção, com desmatamento de
praticamente toda a propriedade e uso de agrotóxicos, as licenças são dadas ou
eventualmente não são cobradas, os órgãos de fiscalização deliberadamente ignoram
as irregularidades, e não aplicam as devidas multas e cobrança de recuperação
ambiental de Reserva Legal e áreas de preservação Permanentes (APP).
Desta forma, percebemos uma escolha deliberada por parte do Estado
daqueles que podem e daqueles que não podem realizar suas atividades.
Entrevistado, o quilombola Maurício Pupo deu uma declaração dizendo que o “não”
recebido pelo Estado já é costumeiro e gera constrangimento, pois dá a impressão de
que a comunidade está tão abaixo que não merece a devida atenção, a devida
visibilidade, e questiona se os direitos quilombolas também estão sendo renegados.
Dessa forma também é perceptível uma discriminação governamental, quando esses
grupos são excluídos das tomadas de decisão de suas próprias vidas e dessa forma,
tem sua cultura, tradição e estilo de vida ameaçados.

5. O MEIO AMBIENTE E A ROÇA TRADICIONAL QUILOMBOLA COMO


PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL BRASILEIRO

Conforme o artigo 1º, inciso III da Lei 7.347/85, patrimônio cultural abrange
todos os "bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico".
Todo bem cultural deve ter preservadas suas características essenciais. Quando isso
não é respeitado, o Ministério Público Federal entra em ação, na esfera judicial ou fora
dela. O meio ambiente, por sua vez, é definido como o "conjunto de condições, leis,
influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e
rege a vida em todas as suas formas". Constitucionalmente, cabe ao Ministério Público
135

o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras


gerações. Pode-se estabelecer uma relação direta entre os dois conceitos, e desta
forma, caracterizar o meio ambiente como patrimônio histórico e cultural do Brasil.
Para a presente pesquisa, é necessário que se faça uma ponte entre o meio
ambiente como patrimônio cultural e o trabalho realizado pelas comunidades
quilombolas do Vale do Ribeira. Por meio do cultivo da terra e da manutenção de suas
tradições e costumes, o povo daquele local preserva a Mata Atlântica remanescente,
amplamente desmatada no território brasileiro. Para a criação de gado e amplas
plantações, grandes agricultores desmatam milhares de hectares, sem se
preocuparem com a proteção ambiental; já os povos quilombolas, por terem suas
terras demarcadas, seguem o “tempo da floresta” e dessa forma, asseguram a
manutenção da Mata Atlântica.
Como já dito anteriormente, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira
utilizam de um sistema agrícola tradicional chamado de Roça de Coivara, que, no dia
20 de setembro de 2018, recebeu o título de patrimônio cultural do Brasil pelo IPHAN
(Instituto do Patrimônio Cultural e Artístico Nacional). O registro dessa forma de plantio
como Patrimônio Cultural do Brasil ampliará as ações de proteção já realizadas por
grupos quilombolas da região, com atividades de valorização das técnicas agrícolas
tradicionais, proteção da floresta, estruturação de cadeias de comercialização,
educação e transmissão de conhecimento, formação de pesquisadores, visibilidade e
adequação da legislação ambiental, entre outras, de acordo com o portal do IPHAN.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como já analisado anteriormente, as comunidades quilombolas desempenham


um papel fundamental no que tange a preservação do patrimônio cultural brasileiro.
Por meio da manutenção de suas tradições e costumes, esses povos resguardam a
história e a cultura da população negra brasileira, além de assegurarem que o meio
ambiente em que vivem será respeitado e protegido. Por meio do cultivo da terra, as
populações tradicionais retiram da natureza o que lhes é necessário para a
sobrevivência; e da mesma maneira, por estabelecerem relações ecológicas fortes
com o meio em que vivem, garantem que a vegetação nativa seja preservada.
No que tange aos quilombolas do Vale do Ribeira, chega-se a conclusão de
que o atraso para emissão de licenças acomete toda a comunidade, gerando
insegurança alimentar, êxodo rural e forte ameaça a manutenção do modo de vida,
cultural e produtivo, destas populações tradicionais. Diante disso, é necessário que o
Estado tome providências para que os direitos das populações tradicionais, já
assegurados constitucionalmente e por meio de tratados internacionais, sejam
assegurados; a legislação é completa, abordando várias garantias, entretanto, é
preciso assegurá-las e efetivá-las.

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WITKER, Jorge. Como elaborar uma tesis en derecho: pautas metodológicas y
técnicas para el estudiante o investigador del derecho. Madrid: Civitas, 1985.
137

EMPREGO SUSTENTÁVEL, O PAPEL DA EMPRESA NO COMBATE ÀS


DESIGUALDADES SOCIAIS.
EMPLEO SOSTENIBLE, EL PAPEL DE LA EMPRESA EN EL COMBATE A LOS
DESIGUALDADES SOCIALES.

José Messias dos Santos Oliveira


Camila Aparecida Borges

Resumo: A partir do método hipotético-dedutivo, o presente resumo busca analisar a


responsabilidade da empresa na continuidade das relações do trabalho, a partir do
paradigma da sustentabilidade pluridimensional, tendo como pressuposto a atividade
do empresário e o princípio da continuidade das relações do trabalho. Aplica-se, no
caso, a metodologia tendo como premissa maior a Constituição Federal de 1988 e o
conceito de sustentabilidade, bem como autores que são referência na problemática
abordada. Justifica-se a pesquisa pela importância da continuidade nas relações do
trabalho e a contribuição que a empresa pode oferecer como parte deste conjunto,
agregados ao princípios norteadores da ordem econômica constitucional.
Palavras-chave: Constituição Federal. Emprego sustentável. Função social da
empresa.

Resumen: A partir del método hipotético-deductivo, el presente resumen busca


analizar la responsabilidad de la empresa en la continuidad de las relaciones del
trabajo, a partir del paradigma de la sostenibilidad pluridimensional, teniendo como
presupuesto la actividad del empresario y el principio de la continuidad de las
relaciones del trabajo. Se aplica, en el caso, la metodología teniendo como premisa
mayor la Constitución Federal de 1988 y el concepto de sustentabilidad, así como
autores que son referencia en la problemática abordada. Se justifica la investigación
por la importancia de la continuidad en las relaciones del trabajo y la contribución que
la empresa puede ofrecer como parte de este conjunto, agregados a los principios
orientadores del orden económico constitucional.
Palabras clave: Constitución Federal. Empleo sostenible. Función social de la
empresa.

INTRODUÇÃO

O Brasil adotou o capitalismo no sistema econômico, tendo como princípio a


livre iniciativa, proteções do emprego, da renda, da dignidade da pessoa humana, do
meio ambiente, do consumidor entre outros direitos constitucionalmente amparados
pelos ditames legais.
O capital por sua vez, trabalha com a utilização dos meios de produção a partir
da livre iniciativa na geração de riqueza, circulação de mercadoria e auferido lucro,
que por sua vez parte deste é repassado ao Estado na forma de impostos, taxas ou
contribuições que são investidos em políticas públicas na garantia e preservação dos
direitos fundamentais.

FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA E SEUS LIMITES DE ATUAÇÃO

A ordem econômica constitucional, conforme prevê o art. 170, da Constituição


Federal, possui como fundamento basilar, a valorização do trabalho humano aliado à
livre iniciativa, tendo como premissa maior, garantir a todos uma existência digna nos
138

moldes da justiça social, ou seja, pautada em princípios constitucionais que dentre


outros: a função social da propriedade, defesa do meio ambiente e a busca do pleno
emprego.
Neste contexto, muito se discute sobre a função social da empresa, e até que
ponto esta deve atuar sem que para isso, termine cumprindo uma função que seria de
responsabilidade do Estado.
Dentro deste contexto, BARBIERI (2011. p.54), elenca quatro dimensões da
responsabilidade social empresarial, no entanto, não é a pretensão deste artigo
abordar todas elas, ficando restrita apenas a responsabilidade econômica, que está
ligado à capacidade da empresa ser lucrativa, segundo autor:

As responsabilidades econômicas remetem ao fato de que a empresa


deve ser lucrativa. Esta é a primeira e principal responsabilidade social da
empresa, pois, como diz Carroll, antes de qualquer coisa, ela é unidade
básica econômica da sociedade e, como tal, tem a responsabilidade de
produzir bens e serviços que a sociedade deseja e vendê-los com lucro.

O autor demonstra que o lucro é o bem maior a ser perseguido pela empresa,
e seria de fato uma responsabilidade social, pois segundo BARBIERI, (2011. p. 54).
“Todos os demais papéis que a ela vier desempenhar estão condicionados por essas
responsabilidades”. Que neste caso é obter lucro.

SUSTENTABILIDADE NAS RELAÇÕES DO TRABALHO

O art. 1º inc. IV da Constituição Federal estabelece como fundamento da


República, o valor do trabalho e a livre iniciativa. Notadamente, distinções precisam
ser feitas nas questões relativas aos valores sociais do trabalho vez que, a expressão
tem um sentido latu, tendo em vista que o termo “valores sociais do trabalho” aqui
utilizado pelo constituinte tem o sentido abrangente estando este em conjunto com a
livre iniciativa.
O art. 170, afirma que a ordem econômica, que é fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, tem a na sua principal finalidade, garantir os
ditames da justiça social, observando, portanto, os princípios, e aqui destacamos os
incisos VII e VIII da Carta Magna, que é a redução das desigualdades regionais e
sociais, e a busca do pleno emprego.
Esta distinção é importante a partir do momento em que a Constituição Federal,
dispõe sobre a valorização do trabalho humano e o reconhecimento do valor social do
trabalho, que são fundamentos principiológico, isso quer dizer que demais valores
ligados a estes princípios podem surgir, isso porque, segundo SILVA (2000. p. 298),
a Constituição amplia as hipóteses de proteção dos trabalhadores que figuram no art.
7º e incisos, quando da proteção do mercado de trabalho da mulher e redução de
riscos na forma de segurança do trabalho por meio de normas de saúde, higiene e
segurança.
Em sentido amplo, o pleno emprego pode ser um cenário onde não há pessoas
sem trabalho ou atividade remunerada. Para tanto, segundo SANDRONI (2005. p.
659), o pleno emprego, é uma situação em que a demanda de trabalho é igual ou
inferior à oferta. Isso significar dizer, que todos a aqueles que desejarem vender sua
força de trabalho pelo salário corrente, não terão dificuldades em encontrar quem
queira pagar. Em termos técnicos, pleno emprego significa o grau máximo de
utilização dos recursos produtivos (materiais e humanos) de uma economia.
139

É inegável que a globalização trouxe mudanças significativas nas relações do


trabalho, haja vista que os avanços tecnológicos contribuem para o aumento da
produtividade e consequentemente o lucro, que é a razão maior do capitalismo. Para
tanto, não se pode esquecer que estes mesmos avanços podem trazer também um
duro retrocesso quanto à demanda na busca por novas oportunidades de emprego.
Segundo GRAU (2014. p. 214), garantir o desenvolvimento, é construir uma sociedade
livre, justa e solidária, e, realizar políticas públicas cuja reivindicação é desta mesma
sociedade, encontra fundamentação legal no art. 3º, inc. II da Constituição Federal.
Neste contexto, a empresa não pode afastar-se dessa responsabilidade que é
sabidamente de cunho social ao ser humano, ou seja, consiste em clara expressão
da função social da empresa no fomento de práticas que valorizem o ambiente de
trabalho e o trabalhador.
Neste contexto, esclarece SILVA (2015. p. 116-117) ao afirmar que:

Nestes termos, o fenômeno da globalização econômica tem impulsionado


os governos a uma revisão daquele modelo estatal que se corporificou, a
partir do inicio do século XX, com intervenções flagrantes na economia,
ao lado da extensiva atividade regulamentadora, mormente no âmbito das
relações de emprego. Propugna-se, hoje, pela flexibilização ou até mesmo
pela desregulamentação das leis trabalhistas.

Assim, a critica feita pelo autor quando o Estado intervém nas leis que regulam
as relações com viés de flexibilização, tem como consequência não assegurar os
direitos e garantias fundamentais nas relações do trabalho, pois segundo ele, a
“flexibilização está prevista na Constituição Federal, no art. 7º, incisos VI, XII e XIV,
porém, estas seriam apenas alterar direitos do trabalhador que não fosse básico ou
irrenunciáveis”.
Segundo SILVA (2015. p. 117), se contrapondo a este modelo, que para o autor
não garante uma continuidade nas relações do trabalho, afirma que:

Em contraposição, a flexibilização e a desregulamentação, nos moldes


hoje determinadas, têm por escopo justamente afastar o Estado desta
modalidade de relações contratual e, consequentemente, em detrimento
desses mesmos princípios e regras que resguardam aquele mínimo de
dignidade, duramente conquistado, (...).

Assim, o papel da empresa enquanto fomentadora no que diz respeito à


geração de riquezas assume a responsabilidade de capitanear um ciclo operacional
capaz de produzir transformações sociais.
GRAU (2014. p. 251-252), elenca uma série de princípios constitucionais, e
segundo ele, além do combate à redução das desigualdades regionais e sociais,
cumpre também a função como um objetivo a ser alcançado, assume, portanto, a
função diretriz, em outros termos, a expansão das oportunidades de emprego
produtivo já contemplado dentre aqueles previstos na ordem econômica com a
Emenda Constitucional nº 1/69, neste caso, “a expansão das oportunidades de
emprego produtivo”.

CONCLUSÃO

Pretendeu-se mostrar a necessidades do emprego sustentáveis, que no cerne


trata da intervenção do Estado na economia, regulando, fiscalizando e principalmente
fomentando a viabilidade na implementação de políticas públicas, e o capital, pela livre
140

iniciativa protegido constitucionalmente com a utilização dos meios de produção para


que se tenha um equilíbrio entre a oferta e demanda de empregos de qualidades.
Não se pode pensar em uma economia dinâmica em que os meios de produção
operam de forma plena, sem que para isso tenha-se um olhar social por parte de todos
os sujeitos envolvidos, para tanto, ainda que o objetivo maior da empresa seja auferir
lucro, pois foi para isso que ela foi criada, a qualidade do trabalho que é ofertado e se
é acobertado pelo princípio da continuidade das relações de emprego, o que leva a
questionamentos no sentido de que não basta uma grande oferta de emprego, se esta
vier acompanhada de direitos e garantias fundamentais.

REFERÊNCIAS

BARBIERI, José Carlos. Responsabilidade social empresarial e empresa sustentável:


da teoria a prática/José Carlos Barbieri, Jorge Emanuel Reis Cajazeiras. – São Paulo:
Saraiva, 2009.
____________. p. 27-27
____________. p. 54
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
Acesso:10/Jun/2018
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. (Interpretação e
crítica) São Paulo, 2014, 16ª Ed, ver., e atual. Malheiros Editores, p. 214.
____________. p. 251-252
SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. – Rio de Janeiro: Record,
2005.
____________. p. 456 - 457.
SILVA, Afonso José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17ª ed. 2000 – São
Paulo: Malheiros editores
____________. p. 298
____________. p. 521
____________. p. 775
SILVA, Laércio Lopes da. A terceirização e a precarização nas relações de trabalho:
a atuação do juiz na garantia da efetivação dos direitos fundamentais nas relações
assimétricas de poder: uma interpretação crítica ao PL nº 4.330/2004. – São Paulo:
LTr, 2015
____________. p. 36.
____________. p. 116 -117.
____________. p. 117.
141

ESPAÇOS PROTEGIDOS E DIREITOS SOCIOAMBIENTAIS DOS POVOS


ORIGINÁRIOS
PROTECTED SPACES AND SOCIO-ENVIRONMENTAL RIGHTS OF
ORIGINATING PEOPLES

Ana Carolina Lucena Brito


Valmir César Pozzetti

Resumo: O objetivo dessa pesquisa foi o de analisar o Sistema Nacional de Unidades


de Conservação – SNUC, disposto na Lei nº 9.985/2000, sob a ótica da relação entre
Unidades de Conservação e a presença de povos originários nestes espaços; uma
vez que houve sobreposições de direitos durante o processo de criação de espaços
protegidos, sendo violados os direitos pertencentes à população residente no local. A
metodologia utilizada nesta pesquisa foi a do método dedutivo, sendo que, quanto aos
meios, a pesquisa foi bibliográfica e quanto aos fins, a pesquisa foi a qualitativa. A
conclusão a que se chegou foi a de que o Estado tem o dever de elaborar e pôr em
prática, políticas públicas, voltadas a solucionar conflitos territoriais; entretanto, a
participação popular dos povos tradicionais é imprescindível para obtenção de
melhores resultados na conciliação.
Palavras-chave: Espaços protegidos; Povos Originários; Direitos Sócioambientais.

Abstract: The objective of this research was to analyze the National System of
Conservation Units - SNUC, established in Law no. 9.985 / 2000, from the point of view
of the relation between Conservation Units and the presence of native peoples in these
spaces; since there were overlaps of rights during the process of creating protected
spaces, and the rights belonging to the resident population were violated. The
methodology used in this research was that of the deductive method, and, in terms of
means, the research was bibliographical and in terms of the purposes, the research
was qualitative. The conclusion reached was that the State has the duty to elaborate
and implement public policies aimed at resolving territorial conflicts; however, the
popular participation of traditional peoples is essential to obtain better results in
conciliation.
Keywords: Protected spaces; Original Peoples; Social and Environmental Rights.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, por força de seu artigo 225, assegura o direito
a um meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental a todos
os indivíduos, além de estabelecer como dever de todos, a sua preservação. Assim,
no bojo da Constituição, encontra-se o mandamento da conservação ecológica, que
abrange a preservação, a manutenção, a utilização sustentada, a restauração e a
melhoria do meio.
Diante disto, em no ano de 2000, foi editada e lei que passou a regular o
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC, a Lei nº
9.985/00, que tem como principal objetivo a proteção de espaços territoriais para
garantir a preservação da biodiversidade.
A lei contempla diversas modalidades e diferentes aspectos de criação e
utilização de espaços territoriais especialmente protegidos pelo Poder Público, dentre
eles as Unidades de Conservação, em sentido estrito, nas quais a presença e
interferência humana nesse meio são vedadas. Entretanto, existe uma parcela de
142

indivíduos denominada de comunidades ou populações tradicionais que,


originalmente, utilizam a natureza como meio de subsistência, moradia e perpetuação
de sua cultura, nos quais se enquadram indígenas, quilombolas, agricultores
familiares e ribeirinhos, às quais podem fazer uso desse meio ambiente.
O artigo 42, da lei do SNUC, preleciona que “as populações tradicionais
residentes em unidades de conservação nas quais sua permanência não seja
permitida serão indenizadas ou compensadas pelas benfeitorias existentes e
devidamente realocadas, pelo Poder Público, em local e condições acordados entre
as partes”; ou seja, a fim de que o espaço seja conservado, os próprios povos
originários habitantes de determinado lugar que se transformou em Unidade de
Conservação, deverão ser realocados e indenizados, após consentimento prévio e
informado.
Ocorre, que o Brasil já foi cenário de grandes conflitos envolvendo estes dois
entes, de modo que os interesses das populações tradicionais, muitas vezes,
acabaram por não serem respeitados. Deste modo, a problemática que rege a
presente pesquisa é: como compatibilizar a conservação da natureza e ainda atender
aos anseios dos povos originários, sem afrontar diretamente seus modos de vida?
É neste norte que a pesquisa encontra sólida justificativa, haja vista o
cometimento de casos emblemáticos em que houve sobreposições de direitos durante
o processo de criação de espaços protegidos, sendo violados seus direitos a crença,
cultura e modos de vida. Assim, vale salientar que os aspectos culturais dessas
populações são considerados como patrimônio cultural da humanidade, o que se
requer também uma tutela jurídica apropriada, portanto, sendo necessárias
alternativas eficazes para solução de conflitos territoriais que envolvem esses
indivíduos.
Como metodologia, foi adotado o método dedutivo, pois este parte de uma
verdade geral para provar um fato particular. Tem o propósito de explicar o conteúdo
das premissas, sendo elas essenciais para sustentar de modo completo a conclusão,
ou, partindo de uma lógica, para não sustentarem a conclusão esperada, conforme
preleciona Marconi e Lakatos (2010, p. 23): “[...] partindo das teorias e leis, na maioria
das vezes prediz a ocorrência dos fenômenos particulares”. Assim, quanto aos meios,
a pesquisa será a bibliográfica, com consulta à doutrina, legislação e jurisprudência e
quanto aos fins, a pesquisa será a qualitativa, pois de acordo com Oliveira (2007, p.
41), a pesquisa qualitativa: "tem um processo de reflexão e análise da realidade
através da utilização de métodos e técnicas para compreensão detalhada do objeto
de estudo em seu contexto histórico e/ou segundo sua estruturação”.

1 BREVE HISTÓRICO NORMATIVO DOS ESPAÇOS PROTEGIDOS NO BRASIL

O Sistema Nacional de Unidades de Conservação, instituído pela Lei nº


9.985/2000, foi um importante instrumento para regulamentação do que dispõe o
artigo 225, da Constituição Federal de 1988. Contudo, anteriormente à edição desta
lei, um longo caminho foi percorrido para criação e evolução de espaços protegidos
no Brasil.
Milano (2001, p. 23) assevera que “a concepção de delimitação para
conservação de territórios naturais ganhou força a partir de movimentos sociais
durante o período da Revolução Industrial, em meados do século XIX”. Foi nesse
contexto que, segundo Brito (2003, p. 23) em 1872, nos Estados Unidos da América,
“foi criado o Parque Nacional de Yellowstone, modelo de sistema de áreas naturais
protegidas, surgido com uma finalidade nitidamente preservacionista, dissociando a
143

relação homem-natureza, tornando-se modelo para diversos países, inclusive o Brasil


durante o processo de criação do Parque Nacional de Itatiaia, em 1937”.
Nesse sentido Peters (2003, p. 21) esclarece que “após um longo período
histórico, as primeiras impressões mais expressivas no ordenamento jurídico
brasileiro apareceram durante a Era Vargas, tendo como exemplos legislativos o
Código de Águas, o Código de Minas e o Código Florestal Brasileiro, todos de 1934”.
Destaca-se também o Código Florestal Brasileiro editado em 1965, que estabeleceu
novas diretrizes e conceituações de unidades de conservação, dividindo-as em de uso
direto ou não restritivas e de uso indireto ou restritivas.
Somente em 1981 o Brasil ganhou estruturas fortalecidas no Poder Público,
através da implementação da Política Nacional de Meio Ambiente - PNMA (Lei nº
6.931/81). No mesmo ano foi instituído também o Sistema Nacional de Meio Ambiente
(SISNAMA), pela Lei nº 6.938/81. Assim, como explana Maria Cecília Wey de Brito
(2003, p. 25), “antes de tais leis, não havia um tratamento unitário acerca da proteção
ambiental no Brasil, daí a importância da elaboração desses amparos normativos”.
Mesmo com tamanha relevância, Costa Neto (2003, p. 31) preleciona que “foi
com a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, que houve um
balizamento mais aprofundado em relação a essa ideia de sustentabilidade e de
defesa do meio ambiente, pois, anteriormente, era tarefa do legislador ordinário
legislar sobre seus mecanismos”.
Dessa maneira, em 18 de julho de 2000, os espaços territoriais protegidos
passaram a ser regulados pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação
(SNUC), inserido no plano jurídico brasileiro pela Lei nº 9.985/2000, norma esta que
regulamentou, por fim, o que dispõe o artigo 225, § 1º, inciso III, da Constituição
Federal:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,


bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a
supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização
que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

A Lei conceitua unidades de conservação como “espaço territorial e seus


recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais
relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e
limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias
adequadas de proteção” (artigo 2º, I).
Os objetivos das unidades de Conservação estão elencados na Lei nº
9.985/2000, merecendo destaque seus incisos:
Art. 4o O SNUC tem os seguintes objetivos:
I. contribuir para a manutenção da diversidade biológica e dos recursos
genéticos no território nacional e nas águas jurisdicionais;
II. proteger as espécies ameaçadas de extinção no âmbito regional e
nacional;
III. contribuir para a preservação e a restauração da diversidade de
ecossistemas naturais;
IV. promover o desenvolvimento sustentável a partir dos recursos naturais;
V. promover a utilização dos princípios e práticas de conservação da
natureza no processo de desenvolvimento;
144

VI. proteger paisagens naturais e pouco alteradas de notável beleza


cênica;
VII. proteger as características relevantes de natureza geológica,
geomorfológica, espeleológica, arqueológica, paleontológica e cultural;
VIII. proteger e recuperar recursos hídricos e edáficos;
IX. recuperar ou restaurar ecossistemas degradados;
X. proporcionar meios e incentivos para atividades de pesquisa científica,
estudos e monitoramento ambiental;
XI. valorizar econômica e socialmente a diversidade biológica;
XII. favorecer condições e promover a educação e interpretação
ambiental, a recreação em contato com a natureza e o turismo ecológico;
XIII. proteger os recursos naturais necessários à subsistência de
populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e
sua cultura, promovendo-as social e economicamente.
Remetendo-se ao processo histórico e jurídico da temática, fazia-se necessário
no ordenamento jurídico brasileiro uma compilação legal de sistemáticas que
pudessem conciliar a ideia de conservação e preservação. Dessa forma, o SNUC
representa no Brasil o marco regulatório não somente de pertinência da tutela do meio
ambiente, mas sim de preservação da diversidade biológica, estes que tanto precisam
de atenção para sua perpetuação, a fim de que se tenha, verdadeiramente, um meio
ambiente ecologicamente equilibrado também para as gerações futuras.

2 DOS DIREITOS DOS POVOS ORIGINÁRIOS EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

Ainda em análise da redação da lei citada, observa-se que o legislador


preocupou-se em instituir diretrizes de criação de espaços especialmente protegidos
que respeitasse a população cuja subsistência dependa da utilização de recursos
naturais existentes no interior das unidades de conservação. Trata-se de povos
originários, como indígenas, quilombolas, ribeiros, entre outros.
Durante o processo legislativo do SNUC, a partir de averiguações in loco, viu-
se que no Brasil não se poderia proceder com a criação de espaços protegidos sem
total presença humana. Diante da realidade em que se tinham inúmeras comunidades
indígenas e tradicionais presentes no território brasileiro, o legislador obrigou-se a
examinar com maior cautela a relação entre o homem e o meio nessas áreas, na qual
se expressa de modo diferente acerca desses povos originários.
Nesse norte, para extrair uma melhor compreensão da importância do território
a esses povos, Antônio Carlos Diegues e Rinaldo Arruda (2001) ensinam que
populações tradicionais são grupos culturalmente diferenciados, pois possuem um
modo particular de vida e de relação com a natureza, prevalecendo a cooperação
social entre seus membros, a adaptação a um meio ecológico específico e um grau
variável de isolamento.
Destaca-se que essa mesma concepção encontra-se presente no princípio 22,
da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992,
no qual estabelece que os povos originários têm o papel fundamental na gestão do
meio ambiente e no desenvolvimento, tendo em vista que são possuidores de
conhecimentos e práticas tradicionais que acabam por promover a defesa da natureza
e do meio em que estão inseridos.
Desse modo, para eles o território é o meio pelo qual podem realizar suas
manifestações culturais e estabelecer seu modelo de vida, transformando aquele meio
em território. Colabora para o entendimento Paul Little (2002, p. 3), que define “(...)
territorialidade como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar
e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-
se assim em seu território”. Assim, Little (2012, p.10) Ele ainda assevera que
145

(...) a noção de pertencimento a um lugar agrupa tanto os povos indígenas


de uma área imemorial quanto os grupos que surgiram historicamente
numa área através de processos de etnogênese e, portanto, contam que
esse lugar representa seu verdadeiro e único homeland. Ser de um lugar
não requer uma relação necessária com etnicidade ou com raça, que
tendem a ser avaliadas em termos de pureza, mas sim uma relação com
um espaço físico determinado.

Dessa forma, por ser de grande relevância essa harmonização entre a


preservação do meio ambiente e a observância de direitos naturalmente pertencentes
aos povos originários sobre seus territórios, o legislador estabeleceu, além das demais
diretrizes, o direito à indenização para comunidades tradicionais quando a área em
que residem transforma-se em unidade de conservação.
Usando este exemplo, percebe-se que o Estado possui um importante papel
na prática de atos que promovam a dignidade humana através de condutas ativas,
garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território, tornando-se
o garantidor de uma Justiça Social, a luz do Estado Democrático de Direito, esculpido
na Constituição Federal.
Porém, para se atingir esse objetivo, ainda há empasses existentes. Ocorre
que, por mais que existam garantias protecionistas tanto em relação ao meio
ambiente, quanto aos povos originários, esses dois entes entram em colisão,
causando conflitos de direitos e anseios por soluções mais eficazes, como será mais
bem explicado.

3 CONFLITOS E SOLUÇÕES

Pode ser até contraditório, mas ainda ocorrem no Brasil conflitos territoriais
causados por antagonismos de direitos culturais e direitos ao meio ambiente,
refletindo a dificuldade encontrada em conciliar os dois lados.
Explica Abirached, Brasil e Shiraishi (2010, p. 6) que
Isso ocorre porque o planejamento governamental desses territórios é
desarticulado. Falta maior interlocução entre os órgãos responsáveis pela criação de
áreas protegidas. Por exemplo, não é raro uma UC ser criada sobre uma terra
indígena, ou o órgão indigenista delimitar terras indígenas no interior de UC. O uso de
recursos naturais, expressão das práticas e da cultura tradicional indígena, por vezes
contradiz os objetivos pelos quais a unidade foi criada, quando esta prevê apenas o
uso indireto do território. Também há casos em que a UC, pela categoria de manejo
de proteção integral, inviabiliza as práticas agroextrativistas de quilombolas e outras
populações tradicionais, gerando conflitos na gestão ambiental e territorial.
Para melhor evidenciar o assunto, levanta-se o conhecido caso do Parque
Nacional do Jaú, no Amazonas. O Parna-Jaú localiza-se a aproximadamente 200 km
a noroeste de Manaus, no médio rio Negro. Sua criação de deu em setembro de 1980,
através de decreto presidencial, com uma área de 2.272.000 hectares, representando,
assim, a maior área de floresta tropical contínua e protegida do Estado do Amazonas.
Devido à área ter se tornado uma unidade de conservação, a população que,
principalmente, utilizava o rio Jaú para se locomover teve que migrar para outras áreas
por ter sua subsistência prejudicada. Por esta razão, vê-se que no Plano de Manejo
do Parna-Jaú possuiu um grande momento indenizatório para as famílias que teriam
migrado da região, devido à atuação do órgão gestor IBDF (Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal).
146

Assim, segundo Mendes, Creado, Campos e Ferreira (2006), “em 2004, o


Ministério Público Federal impetrou uma Ação Civil Pública a fim de acelerar o
processo de regularização fundiária do Parque Nacional do Jaú e, ainda, requereu
indenização por danos morais para cada uma das famílias de moradores e ex-
moradores afetados pela criação da referida unidade”.
Este é somente um dos inúmeros casos que ocorreram no Brasil. Mas, este
apresenta grande relevância, pois não reforçou somente o empoderamento de direitos
dos povos originários acerca de indenização, mas sua análise também é importante
para exemplos de levantamentos de soluções para embates como estes em comento.
Nesse caso, conforme Mendes et al (2006, p. 51), “foram instituídas medidas
como um Acordo de Pesca e novas estratégias de manejo de recursos naturais, que
demandou uma parceria entre o Poder Público e a própria população local para se
chegar a resultados positivos, utilizando um discurso e mobilização muito mais
coesos, sob a ótica socioambiental “.
Com isso, verifica-se que o Estado é inteiramente responsável pela
observância sempre presente de ações que visem a minimização de confrontos de
direitos ao se criar um espaço protegido, de modo a cumprir o que é exigido por lei,
conservando a diversidade biológica do território delimitado e também conciliando
direitos fundamentais destes indivíduos, como defendido por Leuzinger (2008, p. 12):

Não se contesta, portanto, a necessidade de instituição de unidades de


conservação, incluídas as UCs de proteção integral e domínio público,
como necessárias à proteção do ambiente natural e, em especial, da
diversidade biológica, mas defende-se que sua instituição deve obedecer
aos requisitos constitucionais e infraconstitucionais, que permitem
conciliar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e os
direitos culturais, dentro da perspectiva de ser o Brasil não apenas um
país rico em biodiversidade, mas também um país sociodiverso, portador
de imensa riqueza cultural, que conforma o seu patrimônio cultural,
essencial à formação da identidade nacional.

Todavia, mesmo com a responsabilidade estatal, a atuação deve ser conjunta


entre comunidades tradicionais e o Estado para se chegar numa máxima eficaz de
conciliação entre seus interesses, daí a necessidade de se respeitar a consulta e o
consentimento livre, prévio e informado durante todo o processo de criação de
unidades de conservação, principalmente aquelas que exigem o remanejamento
dessas comunidades. Acerca da importância da participação popular nesse aspecto,
afirmam Brito e Pozzetti (2017, p. 10):

A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho preconiza a


importância cada vez mais presente desses grupos de pessoas, muitas
vezes esquecidos. Isso traduz uma visão de “interação” de culturas e não
mais de “integração”, como existia no passado. Para Dantas (2006, p. 87)
ambientes abertos a representação cultural: “configuram a fronteira
contemporânea, o espaço de lutas pelos direitos, onde um novo modo
democrático de relação, fundado na emancipação, possa, pelo exercício
de direitos, vencer os processos históricos de espoliação”.

Portanto, no interim de qualquer medida que afete diretamente o modo de vida


desses grupos com tamanha vulnerabilidade, estes se mostram agentes ativos na
busca pela compatibilização de interesses a serem tutelados e observados pelo Poder
Público, agindo assim para aos poucos superar o passado e garantir o seu espaço de
voz, autodeterminação cultural e o exercício da democracia.
147

CONCLUSÃO

A problemática que se apresentou nesta pesquisa foi a de verificar a


compatibilização da conservação da natureza atendendo aos anseios dos povos
originários, sem afrontar diretamente seus modos de vida. Neste sentido os objetivos
foram cumpridos, na medida em que se analisou a legislação e os conceitos
doutrinários, para se chegar a uma resposta que respondesse à problemática lançada.
Verificou-se que os debates sobre sobreposições em conflitos entre Unidades
de Conservação e Povos Originários ainda são atuais no Brasil e o levantamento de
suas soluções deve ser feito conforme o caso concreto que se observa.
Os espaços especialmente protegidos, regulados pelo SNUC, em legislação
própria, contam com amparo constitucional e buscam garantir o direito difuso ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Nesse
norte, tanto os direitos ambientais, como os culturais estão no mesmo nível
hierárquico de proteção constitucional.
Conservar espaços territoriais e sua biodiversidade é preciso, entretanto, a
ideia de meio ambiente nunca deve estar desvinculada da interação de diversidades
culturais. A partir da máxima kantiana em que o homem é visto como um fim em si
mesmo e não como um meio, existem direitos fundamentais inerentes também aos
povos originários que devem ser respeitados durante o processo de implementação
de uma Unidade de Conservação.
Nesse aspecto, o homem inserido no meio de comunidades tradicionais deve
ser visto como colaborador e protetor da própria natureza, à vista de todo arcabouço
cultural que permeia seus modos milenares de vida. Assim também o seu território
deve ser encarado pelo Estado como meio de consolidação desse patrimônio cultural.
Dessa forma, concluiu-se que a conciliação de interesses entre conservação
do meio ambiente e povos originários não é fácil. Caberá, portanto, aos órgãos
públicos federais, estaduais ou municipais, em parceria com instituições diversas,
apoiar a produção sustentável e procurar a adequação de alternativas de manejo com
as próprias populações tradicionais envolvidas, por meio de consultas e
consentimentos mútuos para que se alcançar o bem maior: uma sustentabilidade sem
violações de direitos fundamentais.

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149

ESTADO, MERCADO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UMA ANÁLISE DO


PROGRAMA AMAZÔNIA FLORESCER
STATE, MARKET AND SUSTAINABLE DEVELOPMENT: AN ANALYSIS OF THE
AMAZÔNIA FLORESCER PROGRAM

Amanda Naif Daibes Lima


Ana Elizabeth Neirão Reymão

Resumo: O trabalho discute a relação entre Estado, mercado e desenvolvimento


sustentável fazendo uma análise do Amazônia Florescer, programa de microcrédito
do Banco da Amazônia. A região, de baixa renda per capita, mas rica em recursos
naturais, é marcada historicamente pela valorização da agricultura e do manejo
agroflorestal de seus recursos. Os agricultores familiares vinculados a essa atividade
enfrentam enormes desafios para manter sua produção em bases sustentáveis.
Nesse contexto, o Programa Amazônia Florescer objetiva a concessão de
microcrédito para esses pequenos produtores a fim de viabilizar seus
empreendimentos, valorizar a mão de obra, além de reduzir as desigualdades sociais
e regionais. Conclui-se que o Estado Desenvolvimentista, ao intervir na economia,
possui um viés garantidor de direitos fundamentais e sociais previstos na Constituição,
de forma a se buscar o desenvolvimento sustentável.
Palavras-chave: Crédito; Desenvolvimento sustentável; Estado.

Abstract: This paper discuss the relation between state, market and sustainable
development by analyzing the Amazônia Florescer program, which was created as an
Amazon’s Bank microcredit program. The region, with a low per capita income, but rich
in natural resources, is historically known by its agriculture and the agroforestry
management of the resources. The family farmers related to those activities have been
facing big challenges to keep its production on sustainable bases. In this context, the
Amazônia Florescer program aims the concession of microcredit to those small
producers to facilitate ventures, value the labor and reduce social and regional
inequalities. In conclusion, the developmental State, by intervening on economy, has
as objective the guarantee of social and fundamental rights provided for in Constitution
on the way to pursuit the sustainable development.
Keywords: Credit; Sustainable development; State.

INTRODUÇÃO

A concretização dos direitos fundamentais e sociais presentes na Constituição


Federal de 1988 é um dos desafios da nova ordem mundial vigente desde a crise do
petróleo em 1973, com o avanço dos ideais do neoliberalismo e os argumentos em
favor do afastamento do Estado da economia. Entretanto, considerando os objetivos
da República, em especial o desenvolvimento e a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, resta claro que o Poder Público não poderia se manter inerte.
Sendo assim, o desenvolvimento, a partir de uma perspectiva includente, isto
é, considerando as especificidades regionais, mostra-se uma alternativa ao modelo
hegemônico que tende à valorização do lucro em detrimento de direitos sociais. Por
isto, autores como Loureiro (2009) e Sachs (2008; 2009) propõem um modelo em que
o crescimento econômico dissociado de direitos sociais, como saúde, educação e
garantia de um trabalho digno, não pode ser considerado desenvolvimento. Nesse
150

sentido, questiona-se: em que medida a atuação estatal pode contribuir para o


desenvolvimento sustentável na realidade brasileira e, em especial, na Amazônia?
Ao vislumbrar a realidade regional, na qual a agricultura possuiu e possui papel
fundamental, é preciso conceder uma atenção especial aos agricultores familiares,
notadamente os de menor renda. A concessão do microcrédito a estes produtores
significa não apenas a democratização de recursos financeiros, mas sobretudo a
possibilidade de redução da pobreza, fomento ao empreendedorismo e, por
consequência, redução das desigualdades sociais e regionais. Tal projeto se fez
possível mediante o programa Amazônia Florescer, do Banco da Amazônia, objeto de
estudo deste trabalho.
Diante disto, o texto está estruturado em três partes, sendo a primeira esta
introdução. A segunda seção, enquanto desenvolvimento, aborda o programa
Amazônia Florescer, seus objetivos e fundamentos, bem como a relação entre Estado,
desenvolvimento sustentável e mercado. Nesta, adota-se a perspectiva de Estado
Desenvolvimentista e a sua relação necessária com o mercado a fim de que se
alcance o desenvolvimento sustentável. As considerações finais são apresentadas na
terceira seção.

ESTADO E DESENVOLVIMENTO: A IMPORTÂNCIA DO CRÉDITO DO AMAZÔNIA


FLORESCER

A nova ordem global, marcada pelo desenvolvimento intensivo e extensivo do


capitalismo, oscilou entre políticas econômicas distintas antes de se consolidar. No
capitalismo do século XIX, marcado pela Revolução Industrial na Inglaterra e baseado
no liberalismo econômico clássico, é evidente a lógica de exploração e os precários
sistemas de proteção social. Em sentido oposto, o Estado do Bem-Estar social, trouxe
uma preocupação maior com as questões sociais, especialmente em virtude da
defesa do welfare state.
Contudo, especialmente a partir da crise do petróleo de 1973, as políticas
keynesianas de intervenção estatal na economia, inspiradoras desse modelo de
Estado, passaram a ser questionadas, abrindo espaço para que o neoliberalismo
ditasse os caminhos a serem traçados por inúmeros países, especialmente após os
anos 1980. Nessa fase, em 2008 a crise do setor imobiliário nos Estados Unidos
contagiou o mercado financeiro mundial, contribuindo para mais uma onda recessiva.
Tendo em vista isto, a globalização e a internacionalização dos mercados
trouxeram uma nova perspectiva de capitalismo, o qual é responsável por dinamizar
atividades produtivas e expandir a produção industrial. Isto significa dizer que houve
uma flexibilização na produção, a exemplo da instalação de empresas transnacionais
em diversos países, fator que contribui para o que Ianni (2014) chama de caráter
revolucionário da globalização, isto é, a união de conceitos aparentemente opostos,
como destruição e recriação, mas, acima de tudo, a capacidade de alteração das
relações de produção e modos de vida por onde passa.
Nesse sentido, este processo está lastreado pelo modo de produção capitalista,
o que possibilita a uniformização das realidades de cada região em prol da lógica de
mercado e do lucro. Sendo assim, alternativa proposta por Loureiro (2009) é buscar
uma forma de desenvolvimento que priorize as características próprias de cada
região, sem apagá-las ou reduzi-las. Trata-se, portanto, de um desenvolvimento
includente.
Cumpre destacar, nesta perspectiva, que a Constituição Federal de 1988 em
vários momentos se referiu ao desenvolvimento e à sustentabilidade, seja aquele
151

enquanto objetivo fundamental da República (artigo 3º, II, CRFB/88), enquanto


princípio da Ordem Econômica e Financeira (artigo 170, VI, CRFB/88) ou até mesmo
enquanto direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, CRFB/88).
Isto significa que o Constituinte elegeu proteger o desenvolvimento no lugar do
crescimento econômico, pois se o primeiro se preocupa com aspectos qualitativos,
como garantia de direitos sociais sem excluir a possibilidade de distribuição de
riqueza, o segundo possui como objetivo questões precipuamente quantitativas, como
o lucro ou o superávit econômico.
A partir disto, afirma-se que é dever do Poder Público a garantia e
concretização, mediante políticas públicas, dos direitos previstos no texto
Constitucional. Isto nos leva à classificação proposta por Tavares (2011) de um
Estado Desenvolvimentista, que vislumbra a intervenção enquanto uma necessidade
a fim de que se alcance uma sociedade justa e igualitária. Desta forma, observa-se
que, a despeito de se garantir a livre iniciativa e a livre concorrência, o Estado não
poderá se afastar da economia.
Entretanto, a questão a ser desenvolvida é em que medida a atuação Estatal
pode contribuir para o desenvolvimento sustentável na realidade brasileira e, em
especial, na Amazônia. Para tal, é preciso compreender as especificidades históricas
que marcam esta região.
Na realidade brasileira, a agricultura possui um relevante papel histórico, pois
períodos marcados pelo ciclo da cana-de-açúcar, do algodão, café, soja e, no
presente momento, o açaí, refletem grande interesse nacional e internacional pela
região. Desta forma, em virtude das dificuldades encontradas para a construção de
um empreendimento, normalmente estes produtos são concebidos como
commodities, o que, visando essencialmente atender ao mercado internacional,
mostram-se como um empecilho ao desenvolvimento sustentável da região.
Nesse sentido, com o objetivo de inclusão financeira e da promoção do
desenvolvimento regional, foram criados programas de concessão de crédito
destinados aos pequenos negócios, a exemplo do Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), cuja finalidade é o fornecimento de
crédito agrícola e auxílio institucional aos agricultores familiares, além de ter como
objetivo o estímulo à geração de renda e o incentivo à melhora da mão de obra
familiar.
Apesar dos avanços, várias críticas podem ser feitas ao PRONAF, dentre elas
o fato de que não atingia o pequeno produtor em regiões mais pobres, tendo este
programa que melhorar sua eficácia no que se refere ao combate das desigualdades
(REYMÃO; FERREIRA, 2017; SOUZA et al., 2013). Sendo assim, tendo em vista a
dificuldade de acesso ao crédito e ao fato de que a distribuição de renda contribui para
o desenvolvimento socioeconômico, o Banco da Amazônia implementou o programa
Amazônia Florescer, tendo a concessão de microcrédito rural como um de seus
subprogramas.
Com o expressivo aumento da demanda do açaí no mercado internacional, um
dos objetivos do programa é financiar a exploração do fruto de forma sustentável,
mediante a concessão de crédito a fim de que se estimule a atividade empreendedora.
Conceitualmente, o microcrédito é uma política que visa oportunizar pessoas de baixa
renda a acessar recursos financeiros com o fim de desenvolver pequenos negócios.
Como explica Reymão (2010), esta oferta de crédito diferencia-se das operações de
crédito tradicionais, pois se está diante de montantes de pequeno valor, simplificação
dos procedimentos de concessão, além do que o tomador não está obrigado a
oferecer garantias reais para acessar tais empréstimos.
152

Ressalta-se que tais valores são destinados à produção, não ao consumo, uma
vez que o objetivo do programa é justamente viabilizar o investimento e o negócio de
forma a gerir melhor seus riscos e, consequentemente, acumular capital. A
importância disto reside no fato de que, a despeito do sucesso do açaí no mercado
global, a renda de seus produtores ainda é baixa, além de que estes sofrem com
várias carências, como falta de saneamento, acesso à saúde e à educação. Portanto,
a dificuldade na capitalização impede a expansão de suas atividades e,
consequentemente, as melhorias na condição de vida.
Todavia, seria utópico acreditar que a mera concessão de crédito cria, por si
só, oportunidades. Assim, o que se defende neste trabalho é a crença de que este
incentivo concedido pelos bancos permite que as pequenas propriedades possuam
viabilidade econômica para garantir o trabalho e a renda.
De acordo com Sachs (2008), o crescimento favorecido pelo emprego não se
reduz à mera sobrevivência, mas considera, acima de tudo, a geração de empregos
decentes. Ademais, reforça o autor, o desenvolvimento deve ser pensado de dentro,
partindo-se da inclusão, e tendo em vista um ambiente sustentável, buscando-se
meios para a erradicação da pobreza mediante a inclusão social para o trabalho, além
de outros direitos sociais, como a educação, a saúde e moradia.
Nesta perspectiva, ao se observar os resultados práticos de dez anos de
funcionamento do programa Amazônia Florescer, tem-se que o mesmo já movimentou
mais de trezentos milhões de reais, além de atender a mais de cento e noventa e nove
mil pessoas, de acordo com os dados fornecidos pelo Banco da Amazônia em 2017.
Desta forma, o Amazônia Florescer vai ao encontro dos ideais propostos pelo
autor, sobretudo quando se considera as metas do programa de universalização do
acesso ao crédito de forma a fomentar o empreendimento, geração de emprego e
renda, promoção e integração de políticas públicas, redução da pobreza e da
desigualdade social. Assim, tem-se que o fortalecimento da agricultura familiar é uma
forma de viabilizar o desenvolvimento sustentável, além de ser uma ferramenta de
integração social.
Em termos práticos, os resultados do programa apontam para o aumento dos
investimentos na cadeia produtiva do açaí entre os anos de 2011 e 2012. Além disto,
houve o aumento dos créditos nesta produção entre 2012 e 2013, o que resultou no
valor de um milhão e novecentos mil reais neste último ano. Somado a isto, em 2015
este montante correspondeu a 17,3% do valor aplicado e 15,2% dos indivíduos
atingidos pelo programa. Assim, tais dados apontam que este mercado é
caracterizado pela grande expansão da produção, sendo a demanda superior à oferta,
o que repercute na demanda pelo crédito (REYMÃO; SILVA, 2018).
É importante, ainda, mencionar que, nos últimos anos, os resultados mostram-
se preocupantes no que se refere à queda do número de participantes no programa,
além da concentração de recursos nesta cadeia de produção, aspecto prejudicial ao
agricultor familiar. Todavia, o programa Amazônia Florescer, longe de romantizar a
concessão do crédito, objetiva a sua disponibilização, sendo, ainda, um programa é
recente, pois iniciou suas atividades em 2007.
Isto quer dizer que, ainda que exista a necessidade de reformulações para
melhor se adequar à realidade do pequeno produtor, há muito se precisava de uma
iniciativa como esta a fim de estimular, de maneira sustentável, o empreendimento e
a extensão da pequena produção, já que isto gera impactos positivos que contribuem
ao desenvolvimento sustentável da região.
Portanto, reitera-se que o alcance de objetivos norteadores do projeto, como a
universalização do crédito, geração de emprego e renda, fortalecimento das unidades
153

produtivas, redução da pobreza e da desigualdade social, dentre outros, são medidas


de longo prazo, mas que já podem ser concebidas atualmente por meio dos resultados
apresentados, a exemplo da maior facilidade à aquisição de pequenos montantes se
comparada com as formas de empréstimos convencionais.

CONCLUSÃO

A partir do exposto, tem-se que a globalização e a internacionalização dos


mercados geraram a necessidade de intervenção do Estado a fim de garantir um
desenvolvimento sustentável includente. Isto porque, para que se evite a imposição
de um modelo hegemônico, o Poder Público não deve fechar os olhos para as
peculiaridades sociais e regionais.
Em especial, na Amazônia, o programa Amazônia Florescer mostra-se uma
alternativa de democratização do crédito, pois possui uma série de incentivos que
facilitam o seu acesso pelo pequeno produtor. Este valor, ao ser investido na própria
produção, fomenta o empreendedorismo, novas formas de trabalho, além da
concretização de direitos sociais, como saúde e educação. Sendo assim, a própria
exploração da atividade econômica passa a possuir um viés sustentável.
Considerando os resultados alcançados pelo programa até o presente
momento, tem-se que a movimentação de mais de trezentos milhões de reais e o
atendimento de mais de cento e noventa e nove mil pessoas são pontos positivos a
serem destacados. Entretanto, não se pode desconsiderar os resultados
preocupantes, já que os mesmos auxiliam na melhora do programa, sem perder de
foco seus objetivos.
De uma forma ou de outra, tem-se que o Amazônia Florescer é um programa
que há muito se necessitava na região, uma vez que a transição da realidade dos
commodities para o empreendimento não ocorre de forma tão evidente, demandando-
se uma postura positiva por parte do Poder Público.
Portanto, o fortalecimento da agricultura familiar, a redução do desemprego e
da pobreza viabilizam o desenvolvimento sustentável ao melhorar as condições de
vida da população local, seu bem-estar econômico, social e cultural. Em outras
palavras, tem-se o fortalecimento da integração social, aspecto relevante do Estado
Democrático de Direito, pois vai ao encontro dos objetivos republicanos e direitos
consagrados no nível constitucional.

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155

MEDIAÇÃO COMO MECANISMO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS EM POVOS


INDÍGENAS URBANAS NA CIDADE DE MANAUS
MEDIATION AS A MECHANISM FOR SETTLEMENT OF CONFLICTS IN URBAN
INDIGENOUS PEOPLES IN THE CITY OF MANAUS

Vitória da Silva Lima Monteiro


Denison Melo de Aguiar

Resumo: A mediação pode ser um instrumento que contribua para a solução de


conflitos que envolvem povos indígenas, em áreas urbanas. O objetivo desta pesquisa
é descrever a mediação como ferramenta mais flexível à solução de conflitos em
realidades repletas de especificidades, como a dos povos indígenas inseridas na área
urbana de Manaus. Através de uma pesquisa aplicada e exploratória nas modalidades
bibliográfica e documental. Utilizou-se como base teórica, o multiculturalismo da
cidade de Manaus e a aplicação da mediação como ferramenta nele, como
ferramentas eficientes de comunicação e solução de litígios. A partir disso, demonstra-
se que, além do aspecto referente à crise habitacional que atinge a cidade de Manaus,
há nas ocupações indígenas urbanas, não planejadas, onde as cosmovisões
diferenciadas dos indivíduos envolvidos podem determinar acordos, questões que
devem ser ponderadas em conjunto pelo mediador.
Palavras-chave: Mediação; Indígena; Multiculturalismo.

Abstract: Mediation can be an instrument that contributes to the resolution of conflicts


involving indigenous peoples in urban areas. The objective of this research is to
describe mediation as a more flexible tool to solve conflicts in realities full of
specificities, such as the indigenous peoples inserted in the urban area of Manaus.
Through an applied and exploratory research in the bibliographic and documentary
modalities. The multiculturalism of the city of Manaus and the application of mediation
as a tool in it, as efficient tools of communication and solution of litigation, was used
as theoretical base. From this, it is shown that, besides the aspect related to the
housing crisis that affects the city of Manaus, there are in the urban, unplanned
occupations, where the different worldviews of the individuals involved can deminer
agreements, issues that must be considered together by the mediator.
Keywords: Mediation; Conflicts; Indigenous; Multiculturalism.

INTRODUÇÃO

A mediação indígena como mecanismo de solução de conflitos pode ser um


instrumento facilitador no convívio entre os povos indígenas urbanos na cidade de
Manaus, Amazonas.
A cidade Manaus é a capital do Estado do Amazonas, e conta com uma
população de 2.130.264 habitantes (IBGE, 2010), estimativa estabelecida em último
censo, realizado em 2010. Na análise da distribuição espacial dos autodeclarados
indígenas revelada pelos Censos Demográficos, observou-se que a Região Norte e o
ambiente amazônico mantêm a supremacia ao longo dos Censos, com 37,4% de um
total de 817 mil dos autodeclarados em todo o país (IBGE, 2012). Trata-se de uma
cidade grande e urbanizada, que conta com uma rica variedade socioambiental no
que se refere aos povos indígenas que integram a população local.
Refere-se a povo indígena segundo a definição pautada pelos critérios
adotados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que se baseiam na Convenção
156

169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT, BRASIL, 2004) sobre Povos


Indígenas e Tribais, promulgada integralmente no Brasil pelo Decreto nº 5.051/2004.
Segundo tal definição, índio é todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana
que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas
características culturais o distinguem da sociedade nacional;
Dessa forma, os critérios utilizados consistem: a) na auto-declaração e
consciência de sua identidade indígena e b) no reconhecimento dessa identidade por
parte do grupo de origem;
Refere-se a conflitos dos mais variados, trazendo um enfoque especial a
conflitos de moradia envolvendo grupos indígenas citadinos reconhecidos pela
FUNAI. Entende-se conflito de moradia no contexto em estudo como o gerado por
povos indígenas citadinos que migraram para o centro urbano, formando ocupações
habitacionais irregulares
Os povos indígenas do Brasil têm suas próprias cosmovisões de mundo e suas
próprias construções culturais. A colonização brasileira foi caracterizada pela
imposição, por parte do colonizador eurocêntrico, da forma estadocêntrica de se
representar o Judiciário (CHAVES, 2013). A verdade é que a cultura e a visão de
mundo do indivíduo são determinantes para sua visão do Estado e de sua justiça. As
leis e o funcionamento do sistema Judiciário brasileiro são fruto de um Estado de
formação cristã, e de heranças culturais de nossos progenitores europeus.
A cidade de Manaus possui uma realidade marcada pelo multiculturalismo,
afirmado por Taylor (1993) como o problema da convivência entre diversidades
culturais de uma forma que pretende conciliar posturas conflitantes.
O estudo pretendeu demonstrar que a mediação, como meio autocompositivo
de controvérsias entre particulares, pode constituir ferramenta essencial de
comunicação entre os mediandos em conflito, ao buscar entender a linguagem de
cada um.
Importante ressaltar que a mediação é voluntária, opcional e pode versar sobre
o todo ou sobre parte do conflito (Lei 13.140/2015, § 1o, art 4o). O mediador, escolhido
pelos mediandos ou designado e aceito pelas partes, conduz o procedimento de
comunicação entre os mediandos, buscando o entendimento e o consenso e
facilitando a resolução do conflito. Não cabe ao mediador a palavra final ou a decisão
coercitiva de resolução da lide, mas sim aos mediandos, através do diálogo por ele
facilitado.
Assim sendo, se instaura um problema: Como, na mediação, pode-se ter o
consenso entre a cosmovisão de um povo indígena com a população não-indígena na
cidade de Manaus?
Através desta pesquisa, objetiva-se descrever a mediação como ferramenta
mais flexível à solução de conflitos em realidades repletas de especificidades, como
a dos povos indígenas inseridas na área urbana de Manaus. A partir disto, pretende-
se demonstrar que os conflitos entre índios e não índios vão além do objeto em litígio.
Num segundo ponto, é objetivo do presente estudo descrever a mediação como
método adequado de resolução de conflitos de moradia no contexto dos povos
indígenas citadinos do centro urbano de Manaus.
Cumpre, ainda, demonstrar como a presença de um mediador devidamente
inserido na cultura e no convívio da comunidade contribui para oportunizar um diálogo
aproximado à jurisdição indígena, mantendo a solução e o procedimento de acordo
com a legislação brasileira.
A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa, bibliográfica e documental,
aplicadas à realidade dos povos inígenas, em área urbana, na cidade de Manaus,
157

através de uma pesquisa aplicada e exploratória nas modalidades bibliográfica e


documental. Utilizou-se, também como base teórica, o multiculturalismo da cidade de
Manaus e a aplicação da mediação como ferramenta nele, como ferramentas
eficientes de comunicação e solução de litígios, por isso, esta pesquisa ter cunho
qualitativo.
Através de uma pesquisa aplicada e exploratória nas modalidades bibliográfica
e documental, buscou-o conteúdo de doutrinas, lei e jurisprudência para compreender
o multiculturalismo da cidade de Manaus e definir a aplicação da mediação como
ferramenta nele.
Com uma abordagem qualitativa, busca-se um aprofundamento na
compreensão dos grupos sociais envolvidos, buscando aspectos da realidade que não
podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das
relações sociais (GERHARDT,2009).
Trata-se, ainda, de pesquisa de natureza aplicada, pois objetiva gerar
conhecimentos específicos para aplicação prática.
A pesquisa também é exploratória. Busca-se coletar as informações
necessárias para possibilitar investigação mais precisa a respeito do tema. De forma
que, através do conhecimento da problemática da moradia urbana aplicada ao
contexto do indígena, bem como a problemática envolvendo conflitos de cosmovisão
entre o índio e o não-índio, obtém-se maior proximidade às técnicas mais adequadas
de pesquisa.
Quanto aos procedimentos, foram utilizadas as modalidades bibliográfica e
documental para a elaboração da presente pesquisa. No presente trabalho, utiliza-se
ambas, através do levantamento de referências teóricas publicadas por meios escritos
e eletrônicos. Com essa pesquisa, realizada em artigos científicos, livros e
jurisprudência, obtém-se conhecimento do que já se estudou sobre o assunto.
Enquanto a pesquisa bibliográfica procura referências teóricas como objetivo de
recolher informações ou conhecimentos prévios a respeito do qual se procura a
resposta, a pesquisa documental recorre a fontes mais diversificadas e dispersas, sem
tratamento analítico (MATOS, 2001).

O MULTICULTURALISMO MANAUARA E O AMBIENTE DIALÓGICO CRIADO PELO


MEDIADOR

Na cidade Manaus há quase 2 milhões de habitantes (IBGE 2010), possuindo


63 bairros por uma área de mais de 11 mil km². A diversidade étnica e multicutural na
metrópole, é muito alta. De acordo, com o IBGE (2010) há 4.020 indígenas
autodeclarados, representando 92 etnias, que falam 36 línguas, presentes em 62
bairros. Entretanto, não há dados convergentes, de um lado os dados do Censo
quantificaram em, aproximadamente, 8 mil indígenas e as organizações indígenas
fazem referência a 20 mil indígenas (PEREIRA, 2016).
A cartografia descrita por Pereira (2016), que elaborada juntamente com os
integrantes da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME),
em 2015, se identificou 34 etnias em 51 bairros.
Os povos indígenas são: Munduruku, Tikuna, Sateré-Mawé, Desana, Tukano,
Miranha, Kaixana, Baré, Kokama, Apurinã, Tuyuka, Piratapuya, Kamaiura, Kambeba,
Mura, Maraguá, Baniwa, Macuxi, Wanano, Tariano, Bará, Arara [do Aripuanã],
Karapãna, Barasana, Anambé, Deni, Kanamari, Katukina, Kubeo, Kulina, Marubo,
Paumari, Arara do Pará e Manchineri (PEREIRA, 2016).
158

Estes 19 línguas faladas: Munduruku, Tikuna, Mawé, Mura, Desano, Tukano,


Baré, Língua geral amazônica (Nhengatu), Piratapuya, Wanano, Apurinã, Tariano,
Kaixana, Kokama, Karapãna, Tuyuka, Barasana, Baniwa e Kambeba - em 41 bairros
(PEREIRA, 2016).
Pode-se afirmar desse modo, que na cidade de Manaus, se possui 34
cosmovisões indígenas, dialogando em um centro urbanos, com os citadinos.
Ao descrever a riqueza sociocultural da cidade de Manaus, aponta-se que ela
desafia a população manauara a buscar ferramentas de comunicação e solução de
litígios. Percebe-se que, além do aspecto referente à crise habitacional que atinge a
cidade de Manaus, há nessas ocupações indígenas o aspecto da cosmovisão
diferenciada dos indivíduos envolvidos, questões que devem ser ponderadas em
conjunto pelo mediador. A riqueza cultural nos desafia a estabelecer uma
comunicação entre as partes envolvidas de forma a respeitar a subjetividade de cada
uma (NICÁCIO, 2007).
Considera-se, ainda, que o centro urbano de Manaus vive o multiculturalismo
descrito por Charles Taylor. Neste sentido, para resolução de conflitos de moradia no
contexto dos povos indígenas citadinos, é necessário observar que, pelo
multiculturalismo, tendo os avanços tecnológicos rompido com a visão de mundo
centrada e ordenada pela vontade divina, é preferível uma ordem jurídica cada vez
mais negociada com as cosmovisões indígenas, e a mediação surge como exercício
de convivência e promoção de direitos (NICÁCIO, 2011).
Taylor (1993) defende o contexto multicultural, associado à necessidade de
uma política legítima de reconhecimento público das diferenças. Dessa forma, por
parte das instituições públicas, justificando desta forma a defesa da sobrevivência das
comunidades culturais presentes nas sociedades multiculturais por estarem
vinculadas à formação das identidades humanas, bem como à concessão de direitos
especiais aos grupos culturais específicos (SILVA,2006).
Como em qualquer conflito, é desejo das partes ver de pronto a solução. Mas
sabe-se que dificilmente as partes envolvidas em um conflito judicial conseguem
preservar uma boa amizade após a sentença final. A perspectiva proporcionada pela
mediação neste contexto é o ambiente dialógico criado pelo mediador, através desta
ferramenta voluntária, que abre a possibilidade de se obter um consenso entre a
cosmovisão de um povo indígena com a população não-indígena na cidade de
Manaus.

A MEDIAÇÃO COMO FERRAMENTA DE AUTONOMIA

A natureza da mediação é, inequivocamente, relacional (Six, 1990 apud C. S.


Nicácio 2011). No sentido de demonstrar a importância da existência de um mediador
preocupado em entender a cultura do povo indígena através de um convívio e de um
acompanhamento mais próximo, a presente pesquisa propõe que esta estratégia
trata-se de um uso diferenciado de abordagem para a solução de conflitos. Tal
abordagem constitui oportunidade de aplicar as diversas fontes do Direito de forma a
possibilitar o direito a autonomia dos povos indígenas. De forma que a mediação pode
ser grande ferramenta não só na resolução de conflitos, mas até mesmo na maior
inserção da população mediada à cidade.
O foco do mediador não é resolver o conflito, mas sim estabelecer um diálogo
entre os mediandos. Six (1990) descreve quatro tipos de mediação que aliam a
resolução do conflito à preservação dos laços relacionais. Segundo ele, um conceito
de mediação tem que considerar preliminarmente que existem pelo menos quatro
159

tipos de mediação: uma mediação criadora, outra renovadora; uma preventiva e outra
criativa. As duas primeiras dedicam-se a fazer nascer ou renascer laços relacionais,
enquanto as duas outras se destinam a administrar uma situação de conflito (seja ele
eminente ou já deflagrado). As quatro visam estabelecer ou restabelecer a
comunicação entre pessoas ou grupos: a natureza da mediação é, inequivocamente,
relacional (Six, 1990 apud C. S. Nicácio 2011) O autor se preocupa em destacar a
natureza relacional da mediação enquanto ferramenta de diálogo, porquanto o
mediador deve aliar a eventual resolução de um conflito à preservação dos laços em
questão.
Deve-se considerar estes apontamentos com especial cuidado ao procurar
solucionar conflitos entre pessoas de convívio próximo. Trazendo a reflexão proposta
por Six (1990) às pequenas e, por vezes, grandes brigas que ocorrem constantemente
entre o índio e o não-índio no centro urbano de Manaus, observamos a importância
de preservar os relacionamentos entre os vizinhos e famílias envolvidas, por exemplo.
Em Manaus, por exemplo, parte das terras destinadas à Zona Franca acabaram
ocupadas por migrantes para habitação. A forma desordenada como se deu a
urbanização de Manaus é o principal fator que ocasionou dificuldades de moradia.
Nessas ocupações irregulares, incluem-se grupos de indígenas. Migrantes em razão
de devastação de seu território original ou em busca de maiores oportunidades de
empregos na capital.
Nessas ocupações, além de, muitas vezes, conviverem com condições
degradantes de saneamento básico e enfrentarem dificuldades em razão da falta de
estrutura urbana em geral, os povos indígenas deparam-se com ocupantes não-
indígenas, levados à ocupação irregular por razões similares às suas. Ainda que o
fator da degradação ambiental influencie na migração desses povos indígenas, o fator
econômico é determinante para a migração tanto do indígena quanto do não-indígena.
De maneira que, ao depararem-se ambos com a problemática da falta de espaço para
moradia digna no espaço urbano, surgem mais conflitos.
Demonstra-se, dessa forma, que a postura do mediador que preocupa-se em
compreender a cultura de ambas as partes mediandas é decisiva para a eficácia da
mediação, tanto em sua função de método de resolução de conflitos como em seu
aspecto relacional, ao oportunizar um debate dialógico. Tal debate pode levar a uma
solução não só eficiente, como também amigável. Evidenciando a utilidade da
mediação como instrumento de interação entre alteridades.

CONCLUSÃO

Ao se questionar: Como, na mediação, pode-se ter o consenso entre a


cosmovisão de um povo indígena com a população não-indígena na cidade de
Manaus? Se tem a ideia de uma relação entre o Direito formal e a cosmovisão
indígena. É neste sentido que se aponta a possibilidade do mediador ser ferramenta
de solução diferenciada de conflitos.
Dessa forma, afirma-se que a mediação está arraigada no meio social e tem
ganhado espaço também nas próprias estruturas judiciárias, evidenciando uma
dinâmica mais ampla em direção a uma ordem jurídica e social que se quer cada vez
mais negociada
Segundo os quatro tipos de mediação descritos por François Six (1990), é
imprescindível afirmar a natureza relacional da mediação. Afirma-se, ainda, que há
uma relação de multiculturalismo presente nos conflitos que envolvem indígenas e
160

não indígenas. Relação que prescinde da política legítima de reconhecimento público


das diferenças proposta por Taylor.
Demonstra-se, por fim, que os conflitos entre índios e não-índios vão além do
objeto em litígio. São, muitas vezes, um conflito cultural a ser pacificado e a mediação,
ao conferir autonomia às partes e possuir caráter voluntário, oportuniza um debate
dialógico. Tal debate pode levar a uma solução não só eficiente, como também
amigável. Evidenciando a utilidade da mediação como instrumento de interação entre
alteridades.
Evidenciado o fato de que os povos indígenas do Brasil possuem suas próprias
cosmovisões de mundo e suas construções culturais, apontamos que mediador pode
ser ferramenta de solução diferenciada de conflitos, ao tempo em que compreende e
integra os diferentes povos indígenas em Manaus à população local.
Por fim, cumpre apontar que diferentes abordagens para tratamento de
conflitos não são prejuízos à autoridade do Judiciário, mas sim oportunidade de
desenvolver uma cultura jurídica diferenciada, não mais presa a uma visão única e
coercitiva do Direito. Cultura jurídica diferenciada em que a mediação é um
instrumento de socialização jurídica.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal,


1988.
BRASIL. Decreto Nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção no 169
da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais.
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2006/2004/decreto/d5051.html>. Acesso em: 20 abr. 2018.
BRASIL. Lei Nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre
particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de
conflitos no âmbito da administração pública; altera a Lei n o 9.469, de 10 de julho de
1997, e o Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972; e revoga o § 2o do art. 6o da Lei
no 9.469, de 10 de julho de 1997. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm>. Acesso
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GERHARDT, T. e Silveira, D. T. Métodos de Pesquisa. 1 Ed. Porto Alegre - RS.
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Disponível em: < http://institucional.ufrrj.br/portalcpda/files/2018/06/Os-
ind%C3%ADgenas-na-cidade-de-Manaus-Vers%C3%A3o-final.pdf>. Acesso em: 17
out. 2018.
162

PAGAMENTO POR SERVIÇOS AMBIENTAIS EM TERRAS INDÍGENAS E O


DIREITO À CONSULTA LIVRE, PRÉVIA E INFORMADA PREVISTO PELA
CONVENÇÃO N° 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO
ENVIRONMENTAL SERVICES PAYMENT IN INDIGENOUS LAND AND THE
RIGHT OF PREVIOUS, FREE AND INFORMED CONSULTATION PROVIDED BY
THE INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION CONVENTION N° 169

Antonio José Cacheado Loureiro


Marckjones Santana Gomes

Resumo: O artigo tem por objeto analisar a questão do pagamento por serviços
ambientais em terras indígenas, sobretudo em como esses negócios jurídicos
relacionam-se com o direito à consulta prévia, livre e informada, tratando,
pormenorizadamente, de como este direito pode servir como instrumento para a
correta decisão no que tange tais avenças. Além disso, o artigo busca expor conceitos
fundamentais para entender o problema, bem como aprofunda aspectos referentes às
consequências decorrentes do provimento de serviços ambientais por povos
indígenas. Vale ainda ressaltar que o artigo propõe a observação do direito à consulta
prévia, livre e informada como mecanismo de prevenção para os problemas
decorrentes de tais negócios, aduzindo, ainda, casos concretos de projetos de
pagamento por serviços ambientais em terras indígenas que já estão em operação no
Brasil.
Palavras-chave Pagamento por Serviços Ambientais; Povos Indígenas; Direito à
Consulta Prévia, Livre e Informada.

Abstract: This paper has as its object the analysis of the payment for environment
services in Indian lands, mostly showing how this bargains relate to the right of
previous, free and informed consultation, treating how this right can serve as
instrument for the correct decision in those bargains. Although, this paper tries to
expose fundamental concepts to understand the problem, as well as deeply focus on
aspects linked to the consequences that result from the environment services
provision. It is worth mentioning that this paper proposes the observation of the right
of previous, free and informed consultation as mechanism of prevention for the future
problems related to those kind of bargains, adding, yet, concrete cases of payment for
environment services in Indian lands projects that are already working in Brazil.
Keyword: Enviroment Services Payment; Indigenous People; Right of Previous, Free
and Informed Consultation.

INTRODUÇÃO

Hodiernamente, um tema tem, novamente, ganhado destaque no cenário


mundial e que incide diretamente no Brasil. Tal tema refere-se ao pagamento por
serviços ambientais. Os serviços ambientais são processos e funções ecológicas, de
acentuada relevância, gerados pelos ecossistemas, em termos de manutenção,
recuperação ou melhoramento das condições ambientais, em benefício do bem-estar
de toda a sociedades humana e do planeta.
O seu provimento realizado por comunidades tradicionais, sobretudo as
indígenas, revela-se importante aliado ao desenvolvimento sustentável, visto que
permite a preservação do Bem Ambiental ao passo que movimenta a economia, seja
legitimando novos empreendimentos ou assegurando a sadia permanência dos que
163

já estão em atividade, além de garantir renda aos sujeitos envolvidos em sua provisão,
o que tem atraído muito interesse.
No entanto, embora economicamente interessantes, os negócios jurídicos
envolvendo pagamento por serviços ambientais entre as comunidades indígenas e as
instituições do segundo setor tem acarretado consequências negativas, mormente
quando seus direitos são violados.
O presente trabalho tem como objetivo apresentar a relação entre o direito à
consulta livre, prévia e informada e o pagamento por serviços ambientais em terras
indígenas. Para tanto, intenta-se discorrer sobre os conceitos pertinentes,
confrontando o interesse econômico das comunidades indígenas e a preservação de
seu modo de vida tradicional.
A metodologia jurídica utilizada teve enfoque em fontes bibliográficas
multidisciplinares, além de técnicas de pesquisas doutrinária, legal e de notícias.
Quanto à classificação desta, o procedimento técnico adotado foi o analítico, baseado
nas teorias econômico-jurídicas e sociólogo-jurídicas, com vistas à construir o
desenvolvimento do resumo.
A partir dessa exposição, o problema central da pesquisa consiste em
responder à pergunta que segue: Quais as consequências da inobservância do direito
à consulta livre, prévia e informada nos negócios jurídicos envolvendo pagamento por
serviços ambientais em terras indígenas?
Com efeito, o presente artigo busca analisar de que forma os serviços
ambientais são implantados em terras indígenas e quais as consequências daí
decorrentes para as comunidades, sobretudo no que diz respeito ao direito à consulta
prévia, livre e informada, pois ainda que a prestação de serviços ambientais deva
gerar benefícios a esses povos, pode também acarretar prejuízos, quando
inobservadas as condições técnicas e socioculturais dos povos originários.

1 SERVIÇOS AMBIENTAIS

1.1 CONCEITO DE SERVIÇO AMBIENTAL

O termo serviço ambiental tem a ver com a ideia de prestação de serviços


ecossistêmicos, ou seja, a natureza trabalhando em prol dela mesmo. Trata-se dos
benefícios obtidos direta ou indiretamente da fauna ou da flora, através dos
ecossistemas, com o escopo de preservar a vida no planeta Terra (PACKER, 2015, p.
43).
O projeto de lei n. 312/15, da Câmara dos Deputados, define serviços
ambientais como “iniciativas individuais ou coletivas que podem favorecer a
manutenção, a recuperação ou a melhoria dos serviços ecossistêmicos”. Logo,
qualquer do povo pode fornecer e prestar tais serviços, tornando-se o chamado
Prestador de serviços ambientais. Devendo arcar com o compromisso de preservar
um serviço ecossistêmico. Os Prestadores de serviços ambientais mais frequentes
são empresas, comunidades tradicionais, instituições e o poder público (LOUREIRO,
2017).
Nas palavras de Nusdeo (2012, p.18) “serviços ambientais, ou naturais, são os
serviços que a natureza oferece ao homem e que são indispensáveis a sua
sobrevivência, estando associados à qualidade de vida e bem estar da sociedade”.
Assim, de acordo com Antonio Loureiro (2017, p.01), “podemos inferir que o
conceito, em tela, traz uma carga vanguardista no que diz respeito ao núcleo do Direito
Ambiental, qual seja, o próprio direito fundamental a vida".
164

1.2 PAGAMENTO POR SERVIÇOS AMBIENTAIS

Sabe-se, que diversos produtos são extraídos da floresta, através de processos


in natura, ou seja, diretamente do seio daquele sistema, podendo ter, em regra, valor
econômico. Ilustram esta realidade os recursos genéticos encontrados em plantas,
animais ou até mesmo micro-organismos como fungos e bactérias, que muitas vezes
originam avanços científicos como cosméticos e fármacos (MASULO, 2007).
Assevera Nusdeo (2012, p.16):

A expressão serviços ambientais designam duas categorias diferentes.


Em primeiro lugar, os chamados produtos ambientais utilizados
diretamente pelo ser humano para consumo ou comercialização, tais
como água, frutos, madeira, carne, semente e medicinais. Por serem
usados diretamente, há maior facilidade para a sua valorização. Ainda
existe uma segunda categoria, em razão da primeira, referente aos
suportes da natureza, tais como a polinização natural, a ciclagem de
nutrientes do solo, o fluxo de genes, a manutenção do volume e qualidade
dos recursos hídricos, o seqüestro de carbono, entre outros.

No presente trabalho, restringe-se o conceito de serviços ambientais à segunda


categoria apresentada, uma vez que essa depende da elaboração de estratégias para
sua implementação, entre as quais destaca-se o Pagamento por Serviços Ambientais
(PSA).
A provisão de serviços ambientais, ou seja, a participação direta do homem nas
funções e processos ecológicos que visam a promoção ambiental, constitui,
hodiernamente, importante linha de defesa do meio ambiente, contribuindo para o
aumento da rede de proteção ambiental e permitindo, a partir de sua consecução, a
realização do almejado desenvolvimento sustentável, ao passo que é capaz de gerar
riqueza e ser ecologicamente correto. Como destaca Wunder (2009, p. 30):

Provedor de serviços ambientais pode ser quem demonstra domínio sobre


o serviço ambiental, no sentido de poder garantir sua provisão. Isto faz
com que o grupo de potenciais provedores se limite a pessoas ou
entidades com capacidade e direito de excluir terceiros do acesso e/ou
uso da terra que provê o serviço ambiental em questão.

No momento em que os serviços da natureza são reconhecidos, a


compensação deve ser a via natural, pois os provedores de serviços ambientais, em
regra os pequenos produtores rurais ou comunidades isoladas, merecem ser
recompensados pela atividade, ou até mesmo inatividade, que estes fornecem.
Assim, no que tange às atuais formas de compensação monetária, Altman
(2009, p.78), utilizando a contribuição informativa da UNEP, dispõe acerca das
espécies de instrumentos utilizados para realizar os pagamentos por serviços
ambientais, quais sejam:

a) transferências diretas de valores monetários;


b) favorecimento na obtenção de créditos;
c) isenção de taxas e impostos (renúncia fiscal);
d) fornecimento preferencial de serviços públicos;
e) disponibilização de tecnologia e capacitação técnica;
f) subsídios na aquisição de produtos e insumos;
165

A variedade nas formas de pagamento revela o caráter fomentador dos projetos


envolvendo pagamento por serviços ambientais, que na maioria das vezes são
elaborados como políticas públicas para desenvolver determinadas regiões. A
diversidade de instrumentos, em comento, divulga e facilita a participação dos sujeitos
interessados ampliando a rede de proteção do Bem Ambiental (SILVA, 2013, p.32).
Cumpre, ainda, destacar, conforme Antonio Loureiro (2017, p.01):

No que tange à questão da precificação dos serviços em análise, faz-se


necessário a utilização de técnicas e procedimentos de valoração
ambiental. Tais procedimentos visam quantificar monetariamente o devido
aos serviços prestados pelos ecossistemas, mesmo que através da ação
direta do homem (provedor).

2 DIREITO À CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA E SUAS


CONSEQUÊNCIAS EM RELAÇÃO AO PROVIMENTO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS
EM TERRAS INDÍGENAS

2.1 DIREITO À CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA

O direito à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado, de acordo


com Deborah Duprat (2016, p.01), sustenta-se no reconhecimento dos direitos
fundamentais de povos e comunidades tradicionais e na garantia da sua livre
determinação. Ou seja, povos indígenas e tribais têm o poder de decidir livremente
sobre seu presente e futuro na qualidade de sujeitos coletivos de direitos. Para fazer
respeitar esse princípio, os Estados devem observar a obrigatoriedade de consultar
os povos afetados por medidas administrativas e legislativas capazes de alterar seus
direitos.
O direito à consulta prévia, livre e informada foi previsto na Convenção nº. 169
da Organização Internacional do Trabalho (doravante Convenção nº 169/OIT) como
ferramenta para a superação do paradigma jurídico integracionista vigente até o final
da década de 80, e dispõe que os sujeitos interessados deverão ser consultados pelos
governos sempre que forem previstas medidas administrativas ou legislativas
suscetíveis de afetá-los diretamente (GARZÓN; OLIVEIRA; YAMADA, 2016, p.06).
Segundo Duprat (2016, p.01):

A consulta também só se qualifica como tal se for compreendido o seu


propósito em toda a sua extensão. Daí o imperativo de que seja
culturalmente situada. A primeira consequência é de que não há um
modelo único de consulta; ao contrário, ela se desenvolve de acordo com
as peculiaridades de cada grupo.

O direito à consulta prévia recebeu proteção jurídica nacional com a ratificação


da Convenção nº. 169/OIT, no dia 20 de junho de 2002, e que entrou em vigor em 25
de julho de 2003. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), em vigor
no Brasil desde 25 de setembro de 1992, e a Declaração da ONU sobre os Direitos
dos Povos Indígenas (UNDRIP), assinada em 2007, também oferecem proteções
internacionais, localizando o direito à CCPLI no rol dos direitos humanos fundamentais
para povos indígenas e tribais. Pelo fato de disporem sobre direitos humanos, as
citadas Convenções foram incorporadas à legislação brasileira na qualidade de
normas supralegais, possuindo aplicabilidade imediata, como tem reconhecido o
Supremo Tribunal Federal (STF).
166

2.2 PROVIMENTO DE SERVIÇOS AMBIENTAIS EM TERRAS INDÍGENAS

As terras indígenas da Amazônia detêm significativa parte dos recursos


florestais brasileiros, o que coloca esses atores no centro do debate pertinente às
questões climáticas, notadamente por que são eles os mais afetados por essas
mudanças, inclusive com repercussão nos campos social, econômico, cultural,
ambiental e político.
Para Paul Little (2010, p.268):

“Terras indígenas” é uma categoria jurídica que originalmente foi


estabelecida pelo Estado brasileiro para lidar com povos indígenas no
marco da tutela. De todos os povos tradicionais, os povos indígenas foram
os primeiros a obter o reconhecimento de suas diferenças étnicas e
territoriais, mesmo que tal reconhecimento tenha sido efetivado por meio
de processos que, em muitos casos, prejudicaram seus direitos.

Logo, enquadram-se como provedores de serviços ambientais os povos


indígenas, uma vez que historicamente fazem uso sustentável dos recursos
provenientes do meio ambiente, e o modo de vida tradicional dessas comunidades
permite que os recursos naturais mantenham suas funcionalidades no ecossistema,
garantindo, assim, o provimento dos serviços ambientais que são usufruídos por
todos.
Essas peculiaridades do modo de vida dos indígenas inauguram a possibilidade
de que, em pouco tempo, essas comunidades alcancem um papel de destaque no
plano de mitigação do aquecimento global, pois os serviços ambientais providos pelos
indígenas, como supracitado, favorecem o desenvolvimento sustentável (PACKER,
2015, p.98).
Quanto ao seu regime jurídico, as terras indígenas são bens indisponíveis, de
modo que não pode o Estado brasileiro utilizá-las para outra destinação que não a
prevista no texto constitucional. Além disso, são também inalienáveis, ou seja, não
podem ser vendidas, arrendadas ou concedidas a terceiros sob qualquer título ou
pretexto (BARROSO, 2015, p.334).
Em razão da duração estipulada nos contratos decorrentes dos projetos de
pagamento por serviços ambientais, que costuma ser longa, os povos indígenas
afetados pela avença, podem sofrer efeitos irreversíveis sobre seus modos de vida.
Em outras palavras, a inserção e intensificação de mecanismos de mercado voltados
para a negociação de créditos de carbono, mudanças culturais fundadas sobre trocas
interculturais desiguais tendem a se difundir entre os povos tradicionais e o resultado
desse processo pode culminar em perdas tanto do ponto de vista da conservação
ambiental quanto da diversidade cultural destes grupos (FURLAN, 2008).
Essas interferências tendem a repercutir diretamente no direito à consulta
prévia, livre e informada, o que resulta na atual situação em que os contratos
envolvendo serviços ambientais vêm sendo firmados até então, tais negócios jurídicos
são celebrados à revelia do direito em comento, mostrando-se demasiadamente
prejudicial às comunidades indígenas. Tal direito, reitere-se, está previsto nos arts. 6º
e 15 da Convenção nº 169 da OIT.

2.3 AS CONSEQUÊNCIAS DA INOBSERVÂNCIA DO DIREITO À CONSULTA


PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA EM PROJETOS DE SERVIÇOS AMBIENTAIS EM
TERRAS INDÍGENAS
167

Sabe-se que os negócios privados envolvendo o provimento de serviços


ambientais em terras indígenas costumam envolver, além da imobilização das terras,
permissões para pesquisas no interior das referidas terras. Tais incursões,
aparentemente legitimadas por contratos, camuflam verdadeiras hipóteses de
biopirataria, uma vez que os supostos pesquisadores tendem a ser patrocinados por
multinacionais interessadas em adquirir conhecimento e essências da floresta,
sobretudo nos casos de empresas de medicamentos e cosméticos (FERENCZY,
2012, p.44).
Percebe-se, no caso supracitado, que a falta de informação é demasiadamente
danosa para a comunidade indígena que estiver em dos polos da negociação, visto
que pode trazer consequências indesejadas aos contratantes, o que poderia ser
evitado caso fossem utilizados os métodos consultivos.
Outra consequência polêmica, que vale a análise, é a supracitada imobilização
das terras indígenas abarcadas pelo contrato. Em regra, um negócio jurídico que
tenha por objeto o provimento de serviços ambientais traz a ideia de conservação e,
nesse ponto, deve-se entender como engessamento, ou seja, o povo local que habita
a terra não pode utilizá-la livremente. As atividades típicas como caça, extração de
bens da flora, a construção de moradias, a criação de roçados, entre outras, são
vedadas em razão das características do negócio realizado (PACKER, 2015, p. 57).
Os indígenas possuem uma ligação, um vínculo vital com suas terras ancestrais
e a realização de negócios jurídicos ambientais, sobretudo os que envolvem serviços
ambientais, podem impossibilitar o modo de vida dos povos indígenas afetados pelo
contrato. Rituais e outras atividades tribais são impedidas sob pena de execução de
cláusulas penais, as multas, que costumam ser bastante gravosas. Ainda há o
agravante da duração dos contratos, já que costumas ter duração média superior a
10 anos, sendo tal fator, em determinados casos concretos, um verdadeiro suplício
para os indígenas envolvidos (SANTILLI, 2005).
Um exemplo é o emblemático caso do povo Paiter Suruí, de Rondônia, que, em
2012, deu início a um ousado projeto de provimento de serviços ambientais. O objeto
do contrato foi a criação de um fundo de carbono para ser comercializado através da
iniciativa REDD+. No entanto, passados cinco anos, o povo Paiter Suruí arrependeu-
se do projeto e hoje tentam a rescisão judicial do contrato. O motivo é a imobilização
de suas terras ancestrais, o que estaria impossibilitando seu modo de vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão envolvendo o pagamento por serviços ambientais merece ser melhor


explorada, uma vez que se coaduna com os ideais do desenvolvimento sustentável,
ao passo que serve de instrumento para a um possível empoderamento econômico-
financeiro dos povos indígenas brasileiros.
Os projetos de serviços ambientais podem ter o condão de emancipar
financeiramente as comunidades indígenas, como nos casos de tribos norte-
americanas e canadenses que enriqueceram em razão do provimento de serviços
ambientais. O dinheiro decorrente dos negócios jurídicos ambientais, envolvendo os
serviços em análise, proporciona um novo modo de vida às comunidades alcançadas
pelas avenças.
Tal modo de vida pode ser benéfico ou pode trazer prejuízos aos envolvidos,
por isso é de suma importância a observação do direito à consulta prévia, livre e
informada nos casos de serviços ambientais, tanto nas hipóteses envolvendo
168

comunidades indígenas, como nas que envolvem outras comunidades ou povos


tradicionais.
A opção pelo provimento de serviços ambientais, como já visto, imobiliza a
utilização da terra objeto do contrato, impossibilitando, assim, a continuidade dos
costumes e tradições do povo indígena que habita na área. O modo de vida, em regra,
é afetado e pode trazer consequências indesejáveis como o esvaziamento
populacional da área, uma vez que os indígenas não poderão prosseguir com suas
tradições, abandonando, então, sua terra ancestral.
Uma outra hipótese levantada seria a própria extinção da etnia, já que
impedidos de praticar atos definidores e caracterizadores de sua cultura, os indígenas
atingidos não conseguiriam perpetuar nas futuras gerações os seus ideais, suas
crenças, suas práticas tradicionais.
O direito à consulta prévia, livre e informada revela-se um importante
instrumento para influir positivamente na decisão dos povos envolvidos. Uma
consulta, culturalmente adequada, ou seja, nos exatos padrões da etnia contratante
mostra-se eficaz para, realmente, informar os participantes sobre as possíveis
consequências do empreendimento, tanto as positivas como as negativas.
O objetivo da consulta prévia, livre e informada é esclarecer todos os pontos do
projeto, desde os mais simples aos mais complexos, e para isso é necessário a
presença de bons moderadores, indicados por todos os interessados no negócio
jurídico ambiental (povo indígena envolvido e demais contratantes) para que haja
plena comunicação entre os contratantes, o que é fundamental para atingir o sucesso
na consulta.
Percebe-se, então, que os contratos para o provimento de serviços ambientais
por comunidades indígenas podem afetar diversos direitos referentes a estes povos,
tais como: direito à terra (posse ou propriedade), direito à autodeterminação, direito à
consulta prévia, livre e informada, entre outros.
Assim, faz-se necessário a devida observância dos direitos indígenas
envolvidos, sobretudo no que diz respeito ao direito à consulta prévia, livre e
informada, uma vez que, além de ser uma prática incorporada ao ordenamento
jurídico brasileiro, é, de fato, um instrumento bastante eficaz para a perfeita
compreensão das consequências que podem decorrer de um contrato para
provimento de serviços ambientais.

REFERÊNCIAS

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Imperativos jurídicos e ecológicos para a preservação e a restauração das matas
ciliares. 1ª ed. Caxias do Sul: Educs, 2009.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2015.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Sítio eletrônico
internet - planalto.gov.br
BRASIL. Lei n° 4.266 de 1° de Dezembro de 2015. Legislação Estadual do
Amazonas. Publicada no DOE de 1º. 12.15, Poder Executivo.
DUPRAT, Deborah. A Convenção 169 da OIT e o direito à consulta prévia, livre e
informada. Publicado em 23 de agosto de 2016. Disponível em:
<http://reporterbrasil.org.br/2016/08/a-convencao-169-da-oit-e-o-direito-a-consulta-
previa-livre-e-informada/>. Acesso em: 22 ago. 2017.
169

FERENCZY, Marina Andrea Von Harbach. Direito Ambiental – Potencial do REDD+


para a Sustentabilidade. 1ª Ed. Curitiba: Juruá, 2012.
FURLAN, Melissa. A função promocional do direito no panorama das mudanças
climáticas: a idéia de pagamento por serviços ambientais e o princípio do protetor-
recebedor. 2008. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUCSP), São Paulo, 2008.
GARZÓN, Biviany Rojas; YAMADA, Erika; OLIVEIRA, Rodrigo. Direito à Consulta e
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Washington: Due Process of Law Foundation, 2016.
LERDA, Daniela.; ZWICK, Steve. Um breve panorama dos pagamentos por
serviços ambientais no Brasil. Publicado em 20 de fevereiro de 2009. Disponível
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<http://ecosystemmarketplace.com/pages/article.news.php?component_id=6524&co
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LOUREIRO, Antonio José Cacheado. Pagamento por serviços ambientais
hídricos: solução para a crise hídrica no Brasil?. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XX,
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juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=20003>.
Acesso em: 27 jun. 2018.
LITTLE, Paul. Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: por uma
Antropologia da Territorialidade. Série Antropologia. No. 322.
MASULO, Manuel de Jesus da Cruz. Territorialização Camponesa na Várzea da
Amazônia. Tese de Doutorado. Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia,
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Sustentabilidade e Disciplina Jurídica. 1ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012.
PACKER, Larissa Ambrosano. Novo Código Florestal e Pagamento por Serviços
Ambientais: Regime Proprietário sobre os Bens Comuns. 1ª ed. Curitiba: Juruá, 2015.
SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos: Proteção Jurídica à
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WUNDER, Sven; BORNER, Jan; TITO, Marcos Rugnitz; PEREIRA, Lígia. Pagamento
por Serviços Ambientais: Perspectivas para a Amazônia Legal. 2ª Ed. Brasília:
MMA, 2009.
170

Grupo de trabalho:

DIREITO AMBIENTAL,
GLOBALIZAÇÃO E
SUSTENTABILIDADE II
Trabalhos publicados:

“BELO MONTE DE VIOLÊNCIAS”: UM ETNOCÍDIO SILENCIOSO?

A CIDADANIA DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

A CIDADE E A DIGNIDADE HUMANA: UM OLHAR SOBRE A ÁGUA

A FALTA DE SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL: UMA VIOLAÇÃO AO MEIO


AMBIENTE E AOS DIREITOS DA PESSOA HUMANA

A PENSÃO ALIMENTÍCIA NA GUARDA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO

ÁGUA E CULTURA INDÍGENA: SIMBOLOGIA DE COSTUMES E TRADIÇÕES

EFEITOS DA EC N° 96/2017: RETROCESSO DO BEM-ESTAR ANIMAL

O PL NO6.299/02 - O PACOTE DO VENENO - E SEUS DESDOBRAMENTOS


171

“BELO MONTE DE VIOLÊNCIAS”: UM ETNOCÍDIO SILENCIOSO?


“VIOLENCE IN BELO MONTE”: A SILENT ETHNOCIDE?

Jamilly Izabela de Brito Silva

Resumo: O presente estudo busca verificar se a ausência de conclusão dos


processos judiciais iniciados para questionar as diversas etapas para a implantação
da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, primordialmente no que se refere aos povos
indígenas do Médio Xingu, contribui para uma ação etnocida do Estado brasileiro e do
consórcio Norte Energia, responsável pelas obras. Após analisar o conceito de
etnocídio e o andamento das ações civis públicas ajuizadas no Caso Belo Monte pelo
MPF/PA que envolvem diretamente o componente indígena, constata-se que, tal
como defende o MPF/PA, um etnocídio lento e gradual é praticado contra os povos
indígenas impactados pela obra.
Palavras-chave: BELO MONTE, ETNOCÍDIO, POVOS INDÍGENAS.

Abstract: This paper aims to verify if the lack of conclusion of the legal proceedings
initiated to question the various stages of the implementation of the Belo Monte
Hydroelectric Power Plant, primarily with regard to the indigenous peoples of the
Middle Xingu, contributes to an ethnocidal action of the Brazilian State and The Norte
Energia, responsible for the works. After analyzing the concept of ethnocide and the
progress of the public civil actions that constitutes the Belo Monte Case, filed by the
MPF/PA, that directly involve the indigenous peoples, it is observed that, as advocated
by the MPF/PA, slow and gradual ethnocide is practiced against the indigenous
peoples impacted by the project.
Keys-words: BELO MONTE, ETHNOCIDE, INDIGENOUS PEOPLES.

INTRODUÇÃO

A partir da retomada dos estudos para a construção da Usina Hidroelétrica de


Belo Monte (UHE Belo Monte)1, o Poder Judiciário brasileiro passou a testemunhar
uma série de intermináveis batalhas judiciais travadas contra a obra, incluída no
Programa de Aceleração do Crescimento2.
Desde o ano de 2001, ocasião em que foi ajuizada a primeira ação, até a
presente data, já se acumulam 25 (vinte e cinco) ações civis públicas3 manejadas pelo
Ministério Público Federal no Estado do Pará (MPF/PA). Cada ação manejada aponta
para diversas ilegalidades cometidas em cada nova fase do processo de
licenciamento ambiental da UHE Belo Monte4.
Apesar disso, em 05/05/2016, a então Presidente Dilma Rousseff inaugurou o
empreendimento, ocasião em que o site oficial do governo brasileiro destacou que a
“a usina é o primeiro empreendimento hidrelétrico com ações voltadas em benefício

1
A expressão utilizada no título deste artigo remete diretamente ao trabalho do Procurador da República Felício Pontes Junior
em blog com o mesmo nome criado exclusivamente para tratar sobre o caso Belo Monte, especialmente a partir da retomada
das obras em 2000, e até o ano de 2011. Cfr.: <http://belomontedeviolencias.blogspot.com/>. Acesso em: 10 de outubro de 2018.
2
Em consulta ao sítio eletrônico do Programa de Aceleração do Crescimento, a obra de Belo Monte apresenta como investimento
previsto o valor de R$28.861.480.000,00. No mais, tendo como referência a data de 30 de junho de 2018, o estágio atual da
implantação é “em obras”. Cfr.: <http://www.pac.gov.br/obra/9059>. Acesso em: 10 de outubro de 2018.
3
Somente 04 (quatro) das 25 (vinte e cinco) ações civis públicas foram definitivamente julgadas. São elas: ACP
2001.39.00.005867-6 (nova numeração: 5850-73.2001.4.01.3900); ACP 2009.39.03.000363-2 (nova numeração:
000036335.2009.4.01.3903); ACP 002022411.2012.4.01.3900 e ACP 000270866.2012.4.01.3903.
4
No site do MPF/PA, consta resumo de cada uma das ações, com atualização até março/2016. Cfr.:
<http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/documentos/2016/tabela_de_acompanhamento_belo_monte_atuali
zada_mar_2016.pdf/>. Acesso em: 12 de outubro de 2018.
172

das aldeias [indígenas] do entorno da obra [...] [e que com] o acompanhamento da


Fundação Nacional do Índio (Funai), projetos sociais vêm garantindo a segurança
territorial, alimentar e ambiental aos povos tradicionais do Médio Xingu” 5.
Paradoxalmente, no ano imediatamente anterior à inauguração, o MPF/PA
ajuizou ação civil pública com o fim específico de que fosse reconhecido que a
implantação de Belo Monte constitui uma ação etnocida do Estado brasileiro e da
concessionária Norte Energia, evidenciada pela destruição da organização social,
costumes, línguas e tradições dos grupos indígenas impactados (Processo 3017-
82.2015.4.01.3903, ainda pendente de decisão).
Feitas tais considerações, a questão a ser debatida é a seguinte: o projeto da
Usina Hidrelétrica de Belo Monte deve ser considerado como uma ação etnocida
perpetrada pelo poder público brasileiro?
Nesse panorama, o presente estudo tem como objetivo averiguar se a ausência
de conclusão dos processos judiciais iniciados para questionar as diversas etapas
para a implantação da UHE Belo Monte, primordialmente no que se refere aos povos
indígenas do Médio Xingu6, é um fator que contribui para uma ação etnocida do
Estado brasileiro e do consórcio Norte Energia, responsável pelas obras.
Para tanto, será discutido o conceito de etnocídio, advindo da Antropologia,
bem como suas repercussões jurídicas atuais, mormente em razão da atual legislação
brasileira e internacional relativa à proteção dos direitos dos povos indígenas. Ato
contínuo, será realizada uma breve análise do andamento processual das ações
ajuizadas no Caso Belo Monte pelo MPF/PA que envolvem diretamente o componente
indígena, bem como esmiuçadas as irregularidades sucessivas cometidas durante a
obra de Belo Monte.
Os métodos de pesquisa utilizados, conforme ensinam MEZZAROBA e
MONTEIRO (2014), serão o estudo de caso e o indutivo. Por sua vez, o procedimento
de pesquisa adotado será a pesquisa qualitativa. Por fim, o estudo será executado por
intermédio da busca, seleção, leitura e análise crítica do material bibliográfico e
documental.

1. O CONCEITO DE ETNOCÍDIO: GÊNESE ANTROPOLÓGICA E


REPERCUSSÕES JURÍDICAS

Segundo CLASTRES (2014, pág. 77-79), a construção do termo etnocídio


adveio da necessidade de criar um vocábulo capaz de traduzir uma realidade
etnocentrista típica da América do Sul que nem mesmo a palavra “genocídio”
conseguia exprimir, verbis:

Desde o descobrimento da América em 1492, pôs-se em funcionamento uma


máquina de destruição dos índios. Essa máquina continua a funcionar, lá
onde subsistem, na grande floresta amazônica, as últimas ‘tribos selvagens’.
Ao longo dos últimos anos, massacres de índios têm sido denunciados no
Brasil, na Colômbia, no Paraguai. Sempre em vão. Ora, foi sobretudo a partir
de sua experiência americana que os etnólogos, e muito particularmente,
Robert Jaulin, viram-se levados a formular o conceito de etnocídio. É a
realidade indígena da América do Sul que se refere essa idéia de início.

5
Cfr.: <http://www.brasil.gov.br/governo/2016/05/dilma-inaugura-usina-hidreletrica-de-belo-monte>. Acesso em: 14 de outubro
de 2018.
6
Segundo a petição inicial da ACP 3017-82.2015.4.01.3903 são 09 (nove) as etnias impactadas diretamente pela construção da
UHE de Belo Monte: Xipaya, Kuruaya, Juruna, Arara, Xikrin, Assurini, Araweté, Parakanã e Kayapó – habitantes de onze Terras
Indígenas, uma reserva indígena, uma área de restrição de uso para índios isolados (Ituna/Itatá) e inúmeras áreas desaldeadas
(pág. 7-8). Parte dessas etnias possui contato recente com a sociedade envolvente, a exemplo dos Arara, residentes da Terra
Indígena Cachoeira Seca (pág. 26-27).
173

Dispomos aí, portanto, de um terreno favorável, se é possível dizer, à


pesquisa da distinção entre genocídio e etnocídio, já que as últimas
populações indígenas do continente são simultaneamente vítimas desses
dois tipos de criminalidade. [...]
O termo etnocídio aponta não para a destruição física dos homens (caso em
que se permaneceria na situação genocida), mas para a destruição de sua
cultura. O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática dos modos de vida
e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa
destruição. [...]

Por conseguinte, para VIVEIRO DE CASTROS (2015, pág. 1), “toda decisão
política tomada à revelia das instâncias de formação de consenso próprias das
coletividades afetadas por tal decisão, a qual acarrete mediata ou imediatamente a
destruição do modo de vida das coletividades, ou constitua grave ameaça [...] à
continuidade desse modo de vida”, pode ser considerada como ação etnocida,
especialmente quando se trata das minorias étnicas situadas no território brasileiro.
Por conseguinte, a prática etnocida, prossegue CLASTRES (2014, pág. 80),
possui duas premissas, a saber, a existência de uma suposta hierarquia entre culturas
e a supremacia da cultura ocidental, a qual, por sua vez, denota a ideia de
integracionismo dos povos indígenas, em voga no Brasil até o marco constitucional
de 1988.
Feitas tais considerações conceituais, ainda que a ação dita etnocida tenha
seus contornos desenhados incialmente pela Antropologia, tem-se que tal ação,
enquanto violadora do que dita (a) a Constituição Federal de 1988, particularmente o
art. 231, (b) a Convenção 169 da OIT, primordialmente os arts. 2.1, 8.1 e 8.2 e (c) as
Declarações das Nações Unidas e Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas,
tem inquestionáveis contornos jurídicos.
Ora, a existência de normas constitucionais e internacionais internalizadas pelo
Estado brasileiro que demonstram considerável preocupação com o repúdio à
assimilação e com o direito à identidade e à integridade cultural dos povos indígenas
revelam a categorização jurídica do etnocídio, sendo certo que a diversidade étnica é
tutelada pelo ordenamento.
Assim sendo, se o etnocídio é entendido como a destruição (ou o risco da
destruição) do modo de vida dos grupos indígenas atingidos e o atual arcabouço
jurídico assegura as diversas formas de expressão e os modos de fazer, criar e viver
desses variados grupos que contribuíram para a formação da sociedade brasileira, é
indubitável que a ação etnocida, cada vez mais, trará repercussões jurídicas para
aqueles que a praticam.
Como alerta VIVEIROS DE CASTRO (2015, pág. 4), “nossa impressão é que o
conceito caminha lenta mas firmemente para seu acolhimento oficial por parte dos
organismos internacionais, apesar de uma persistente pressão contrária exercida
pelos Estados nacionais”, inclusive porque, tal como o Estado brasileiro, “têm em seu
passivo histórico e ético uma abundância de políticas inequivocamente etnocidas,
associadas ou não a ações genocidas”.

2. CASO BELO MONTE: ACÕES CIVIS PÚBLICAS E COMPONENTE INDÍGENA

Das 25 (vinte e cinco) ações ajuizadas contra o empreendimento de Belo


Monte, ao menos, 10 (dez) envolvem circunstâncias que afetam diversos povos
indígenas na região (Médio Xingu). A miríade de violações aos direitos desses povos
é de proporções avassaladoras.
174

Para o MPF/PA, as violações praticadas contra os povos indígenas envolvem,


pelo menos, a ausência de consulta prévia, realização de audiências públicas em
número reduzidíssimo para debater o EIA/RIMA, ausência de regulamentação da
exploração do potencial hídrico, a lenta e gradual morte do ecossistema da Volta
Grande do Xingu e, ainda, a desagregação política, social e cultural das comunidades,
sendo certo que as repercussões da UHE Belo Monte mal começaram a ser
contabilizadas.
A seguir consta tabela com um resumo das 10 (dez) ações civis públicas
diretamente relacionadas ao componente indígena, sendo que, nos parágrafos
imediatamente posteriores à tabela, tem-se a indicação do atual estágio do
andamento de cada processo7:

ACPs QUE ENVOLVEM DIRETAMENTE O COMPONENETE INDÍGENA


NÚMERO DO PROCESSO RESUMO DO OBJETO
1. 2001.39.00.005867-6 Ausência de decreto legislativo e de oitiva das
5850-73.2001.4.01.3900 comunidades afetadas (art. 231, §3º., CF/88).
(numeração nova) Licenciamento conduzido por órgão incompetente.
Ausência de licitação para contratação de EIA-
RIMA.
2. 2006.39.03.000711-8 Ilegalidade do decreto legislativo 788/2005.
709-88.2006.4.01.3903 Ausência de consultas indígenas.
(numeração nova)
3. 2009.39.03.000575-6 Violação do direito de informação e
26161-70.2010.4.01.3900 participação. Metodologia de audiências públicas
(numeração nova) falha. Estudos ambientais incompletos. Número
de audiências insuficiente para atender os
atingidos. Nulidade de audiências por violação das
funções institucionais do Ministério Público.
4. 25997-08.2010.4.01.3900 Falta de regulamentação do art. 176 da CF.
5. 002894498.2011.4.01.3900 Impactos irreversíveis sobre o ecossistema da
Volta Grande do Xingu (VGX). A morte iminente
do ecossistema. Risco de remoção dos índios
Arara e Juruna e demais moradores da VGX.
Vedação Constitucional de Remoção. Violação do
direito das futuras gerações. O direito da natureza.
A Volta Grande do Xingu como sujeito de direito.
6. 655-78.2013.4.01.3903 Condições estabelecidas para a viabilidade do
empreendimento não atendidas pelo
empreendedor. Violação da licença ambiental.
Recusa do empreendedor em cumprir
condicionante de proteção territorial das terras
indígenas afetadas. Indígenas lançados à zona
limítrofe de um etnocídio.
7. 1655-16.2013.4.01.3903 Condições estabelecidas para a viabilidade do
empreendimento não atendidas pelo
empreendedor. Violação da licença ambiental.
Recusa do empreendedor em cumprir
condicionante de aquisição de terras para índios
7
A tabela contida neste artigo foi construída a partir da tabela disponibilizada no sítio oficial do MPF/PA. Os andamentos
processuais encontram-se atualizados até 17 de outubro de 2018.
175

Juruna da aldeia boa vista. Danos graves.


Desagregação e risco à sobrevivência da
comunidade.
8. 25799-63.2013.4.01.3900 Impacto sobre índios Xikrin moradores do rio
Bacajá. Insuficiência da análise de impactos no
EIA-RIMA. Estudos complementares atrasados e
insuficientes. Não previsão de impactos e
compensações para população indígena na área
de influência direta do empreendimento Belo
Monte.
9. 2694-14.2014.4.01.3903 Descumprimento de condicionantes indígenas.
Reestruturação da FUNAI de Altamira. Caos no
atendimento à sobredemanda gerada por Belo
Monte.
10. 3017-82.2015.4.01.3903 Ação etnocida do estado e da Norte Energia
SA.

A primeira ACP, de nº. 2001.39.00.005867-6 (1), entre outras coisas,


questionou o fato de que os estudos para construção de Belo Monte foram iniciados
sem a devida autorização do Congresso Nacional e sem consulta prévia às
comunidades afetadas, providências exigidas pelo art. 231, §3º., da Constituição
Federal. A referida ação, já transitada em julgado, foi julgada parcialmente procedente
para que fossem corrigidas tais falhas e para determinar que o licenciamento
ambiental fosse realizado pelo órgão competente (IBAMA).
Por sua vez, a ACP 2006.39.03.000711-8 (2) foi julgada parcialmente
procedente pelo Tribunal Regional Federal da 1ª. Região (TRF1) em 13/08/2012, com
a declaração de invalidade material do Decreto Legislativo 788/2005 por violação à
Constituição Federal e à Convenção 169 da OIT. Todavia, referida decisão foi
suspensa em 27/08/2012 por determinação do Supremo Tribunal Federal. O processo
ainda se encontra pendente de decisão final, aguardando julgamento de recursos
pelos Tribunais Superiores.
Já a ACP 2009.39.03.000575-6 (3) foi julgada improcedente pelo Juízo de
primeiro grau em 18/05/2016, o qual considerou suficiente a realização de apenas 04
(quatro) audiências públicas para debater o EIA/RIMA com toda a população afetada,
inclusive as comunidades indígenas (as audiências foram realizadas entre os dias 9 e
15 de setembro de 2009, nas cidades de Brasil Novo, Vitória do Xingu, Altamira e
Belém). O processo encontra-se aguardando o julgamento de recurso pelo TRF1.
A ACP 25997-08.2010.4.01.3900 (4) também foi julgada improcedente em
21/01/2013, tendo em conta que o “empreendimento não está localizado em terras
indígenas”, o que afastaria a alegação de nulidade de todo o procedimento com base
no §1º. do art. 176 da Constituição Federal e, ainda, o fato de que “a questão da
proteção aos direitos da populações nativas volta-se, em última análise, à vigilância
conjunta do correto funcionamento e efetividade dos instrumentos fixados pela
legislação pátria infraconstitucional, bem como pela Carta Magna”. Atualmente, o
processo aguarda julgamento de recurso no TRF1.
Quanto à ACP 002894498.2011.4.01.3900 (5), ao consignar a “reconhecida a
feição estratégica da UHE Belo Monte e, por conseguinte, a impropriedade de
intervenção judicial sobre sua implantação” e, ainda, que há mera suposição de que
a implantação do empreendimento resultará na impossibilidade de que as populações
locais possam continuar sobrevivendo das atividades relacionadas ao Rio Xingu, o
176

Juízo de primeiro grau julgou improcedente a ação em 11/07/2014. O recurso ainda


está pendente de análise pelo TRF1.
Na ACP 655-78.2013.4.01.3903 (6), o pedido formulado pelo MPF/PA foi
julgado parcialmente procedente em 26/05/2017, tendo o Juízo de primeiro grau
determinado que (a) a FUNAI apresente novo cronograma para o cumprimento das
ações de proteção às Terras Indígenas; (b) a empresa responsável pela hidrelétrica,
a Norte Energia, não execute obras de proteção com padrões diferentes dos previstos
no plano de proteção das Terras Indígenas, devendo, ainda, destacar e sinalizar seus
limites e; (c) a Norte Energia adote diversas medidas assim que receber o novo
cronograma elaborado pela FUNAI (readequação das unidades de proteção territorial,
dar início à construção das unidades pendentes e contratar e capacitar 112 agentes
para atuação nessas unidades). O processo aguarda análise de recurso pelo TRF1.
A ACP 1655-16.2013.4.01.3903 (7), ainda pendente de sentença, teve decisão
liminar concedida em 06/09/2013 para que fosse providenciada imediatamente a
aquisição dos imóveis indicados pela FUNAI para a criação da Reserva da
Comunidade Indígena Jurunas, considerando que “os impactos da obra para a
comunidade indígena em apreço necessitam de uma mitigação imediata, a fim de
evitar maiores prejuízos à integridade dos indígenas”.
A ACP 25799-63.2013.4.01.3900 (8), por seu turno, foi julgada improcedente
em 23/01/2015, tendo o Juízo de primeiro grau entendido que “os estudos
apresentados sobre o rio Bacajá, desde a fase de licenciamento prévio, foram
satisfatórios, sob o aspecto estritamente ambiental, e atenderam aos parâmetros
exigidos pela legislação”, não havendo que se falar em descumprimento de qualquer
medida em relação aos indígenas por ausência de comunicação por parte da FUNAI.
O processo aguarda julgamento de recurso pelo TRF1.
Quanto à ACP 2694-14.2014.4.01.3903 (9), houve decisão liminar em
02/03/2015 determinando a apresentação de um plano de ação de reestruturação da
FUNAI. Com o descumprimento da referida determinação, em decisão de 13/01/2016,
foi determinada a suspensão dos efeitos da licença de operação da UHE Belo Monte
até a satisfação da obrigação condicionante de reestruturação da FUNAI na região.
Referida decisão foi suspensa por determinação da Presidência do TRF1. Até o
momento, não houve prolação de sentença.
Por fim, em relação à ACP 3017-82.2015.4.01.3903 (10) nenhuma decisão foi
proferida até o momento. Importa consignar que, na ação em questão, o MPF/PA
busca “o reconhecimento de que, da forma como vem sendo implementada, a UHE
Belo Monte viola o art. 231 da Constituição Federal e representa prática de destruição
do modo de vida de grupos indígenas do médio Xingu”.
Isso porque, segundo o MPF/PA, a uma, o Plano de Mitigação de Impacto8
aplicável aos povos indígenas foi negligenciado e flexibilizado pelo Estado; a duas,
houve negligência do governo, especialmente no que pertine ao fortalecimento da
FUNAI e do IBAMA com providências indispensáveis para viabilizar o cumprimento de
suas missões institucionais; a três, não houve a completa demarcação de terras
indígenas na região, bem como ainda se encontra pendente a retirada de não
indígenas (processo de desintrusão) e; a quatro, inexiste a devida fiscalização das
práticas coloniais e integracionistas do Consórcio Norte Energia.

8
Definido, segundo a inicial da ACP em referência, como um conjunto de “ações emergenciais antecipatórias, de
responsabilidade do Estado e do empreendedor, que deveriam estabilizar a região para o início das obras da hidrelétrica, e de
programas de médio e de longo prazo, que devem constar de um Plano Básico Ambiental (PBA-CI), a ser elaborado pelo
empreendedor como condição para obter a Licença de Instalação” (pág. 13-14).
177

UHE DE BELO MONTE: O BINÔMIO ENTRE INTERESSE NACIONAL E


SEGURANÇA JURÍDICA

Em cada etapa do processo de licenciamento de Belo Monte, novas


irregularidades são apontadas, as quais, na maioria das vezes, antes de serem
apreciadas pelo Poder Judiciário são “superadas” pela necessidade de dar
continuidade ao projeto de “interesse nacional”, sob o argumento de que o
empreendimento é indispensável para a política energética do país.
A Corte Suprema brasileira, em duas oportunidades (SL 125 e MC-RCL14.404),
ratificou a necessidade de prosseguimento das obras, a despeito de violações às
normas constitucionais e internacionais relacionadas ao componente indígena.
Em decisão proferida em 16/03/2007, a Min. Ellen Gracie suspendeu, em parte,
os efeitos do acórdão que havia determinado a paralisação do empreendimento por
ilegalidades relacionadas ao Decreto Legislativo 788/2005, adotando, como razão de
decidir, a necessidade de garantir o cronograma governamental de planejamento do
setor elétrico. No mesmo sentido, em decisão prolatada em 27/08/2012, o Min. Ayres
Britto determinou a retomada das obras, afastando a eficácia de novo acórdão
emanado do TRF1 que havia suspendido o andamento do empreendido pelo mesmo
motivo.
Cada vez que uma irregularidade não é sanada e se passa à etapa posterior
da implementação de Belo Monte, reitera-se a prática etnocida que, como sabido, até
a mudança de paradigma instituída pela Constituição Federal de 1988, justificou a
quase extinção dos povos indígenas mediante processos de aculturação e
incorporação forçada à cultura dominante.
Em suma: as alegações de violação do direito de informação e participação dos
povos indígenas, de morte iminente do ecossistema da Volta Grande do Xingu, de
indígenas lançados à zona limítrofe de um etnocídio e de desagregação e risco de
sobrevivência das etnias foram suplantadas pela imperiosa necessidade de gerar
energia supostamente limpa, sendo que o próprio potencial energético de Belo Monte
é questionado.
Em outras palavras, como defende o MPF/PA na ACP 3017-
82.2015.4.01.3903, a UHE Belo Monte representa “um acelerador do processo de
fragmentação econômico, social e cultural em curso a uma velocidade incompatível
com as estratégias de auto-reação e de autoadaptação que vinham sendo
experimentadas pelos grupos indígenas atingidos”.
Indubitável, portanto, que a atuação do Estado brasileiro, no caso do
empreendimento de Belo Monte, pautou-se exclusivamente na supremacia de um
interesse público definido exclusivamente pela necessidade imediata de produção de
energia elétrica sem respeitar a complexidade ambiental e o severo impacto causado
nas comunidades tradicionais, desrespeitando as condicionantes impostas pelos
próprios órgãos públicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Poder Judiciário, apesar de ser acionado por mais de 20 (vinte) vezes, até o
momento, seja por razões processuais como os mecanismos de suspensão de
decisões previstos no ordenamento jurídico9, seja por razões fincadas na suposta
9
Sobre o assunto, tem-se que, segundo LOUREIRO E SILVA (2012, pág. 6), “por força do incidente processual de suspensão
de liminar (PSL) e do efeito suspensivo concedido em sede de recurso de agravo de instrumento, travam-se as vias recursais no
bojo das ações principais [ações civis públicas] e esta paralisia processual propicia o avanço das fases seguintes do processo
de licenciamento ambiental, sem proceder-se ao saneamento das ilegalidades apontadas na fase anterior”.
178

impossibilidade de interferir na política de governo do Estado, assiste impotente ao


progresso imposto independentemente da salvaguarda dos direitos dos povos
indígenas, das populações tradicionais e de todos os impactados pela obra.
Em documento emitido pela Relatora Especial sobre os direitos dos povos
indígenas em 08 de agosto de 2016, após visita ao Brasil (Relatório
A/HRC/33/42/Add.1), são destacadas diversas condutas e omissões do Estado
Brasileiro e da empresa responsável pela construção da UHE de Belo Monte que, se
não geram a imediata destruição cultural dos povos indígenas impactados, apontam
para a prática lenta e gradual de etnocídio nos últimos 17 (dezessete) anos, desde a
retomada do projeto e até os dias atuais. Vejamos algumas conclusões do referido
documento:

39. Ao tempo da visita da Relatora Especial em março de 2016, a construção


da barragem tinha sido finalizada e os reservatórios estavam sendo enchidos.
Como previsto pelos povos indígenas afetados, a barragem resultou na
perda de controle sobre suas terras, rio e recursos. Apesar da
hidrelétrica não estar localizada dentro de terras indígenas demarcadas,
ela afeta diretamente povos indígenas em 11 terras indígenas na região.
[...]
41. As comunidades descreveram como seus modos de vida tradicionais
baseados na pesca e caça tornaram-se inviáveis devido à mudança
radical das correntes do rio, a água tornou-se turva e o estoque de
peixes foi reduzido. Eles explicaram que as doenças transmissíveis por
mosquitos aumentaram, que áreas extensas foram desmatadas, ilhas
submersas e pessoas desalojadas. Moradias inadequadas e
inapropriadas foram oferecidas àqueles desalojados pela barragem,
algumas vezes em lugares sem acesso ao rio Xingu. [...]
43. Enquanto isso, as medidas adotadas incrementaram o dano -
inclusive com a distribuição de comidas industrializadas para as
comunidades, alegadamente para reprimir oposições ao projeto - com o
efeito de acelerar a perda de formas tradicionais de sustento. [...]

A ausência de termo final – com decisões que analisem, em toda a


profundidade, os argumentos expendidos pelo MPF/PA – funciona não somente como
uma contribuição para ação etnocida em curso, mas ratifica tal conduta. Em verdade,
a ausência de segurança jurídica funciona como vetor etnocida.
Ao se referir ao que viu quando visitou a aldeia dos Arara de Cachoeira Seca,
indígenas de recente contato e supostamente beneficiados pelo plano de mitigação
de impactos, a Procurada da República Thais Santi, uma das subscritoras da ACP
3017-82.2015.4.01.3903, em entrevista concedida à Eliane Brum, descreve a cena
“como se fosse um pós-guerra, um holocausto”, explicitando que “[o]s índios não se
mexiam. Ficavam parados, esperando, querendo bolacha, pedindo comida, pedindo
para construir as casas. Não existia mais medicina tradicional. Eles ficavam pedindo.
E eles não conversavam mais entre si, não se reuniam”. Essas palavras não podem
ser ignoradas.

REFERÊNCIAS

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência – pesquisas de antropologia política. 3ª.


ed. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
LOUREIRO, Silvia Maria da Silveira; SILVA, Jamilly Izabela de Brito. Os institutos
processuais brasileiros do pedido de suspensão de liminar e do recurso de agravo de
instrumento face ao direito ao recurso efetivo previsto na convenção americana sobre
direitos humanos: uma análise à luz das ações civis públicas propostas pelo Ministério
179

Público Federal no caso Belo Monte. In: Revista Brasileira de Direitos Humanos, v. 2,
julho/setembro 2012, pág. 5-34.
SANTI, Thais. “Belo Monte: a anatomia de um etnocídio”. Brum, Eliane. El Pais Brasil,
Opinião, Dezembro, 01, 2014. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/
brasil/2014/12/01/opinion/1417437633_930086.html>. Acesso em: 19 de outubro de
2018.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Sobre a noção de etnocídio, com especial atenção
ao caso brasileiro. Parecer. Disponível em: <https://www.academia.edu/25782893/
Sobre_a_no%C3%A7%C3%A3o_de_etnoc%C3%ADdio_com_especial_aten%C3%
A7%C3%A3o_ao_caso_brasileiro>. Acesso em: 10 de outubro de 2018.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Relatório da missão ao Brasil da
Relatora Especial sobre os direitos dos povos indígenas. Assembleia-Geral. Conselho
de Direitos Humanos. Trigésima terceira sessão. Item 3 da Agenda. Relatório
A/HRC/33/42/Add.1, de 8 de agosto de 2016. Disponível em:
<http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/eventos/2017/relatorio-da-onu-sobre-
direitos-dos-povos-indigenas/RELATORIOONU2016_pt.pdf>. Acesso em: 18 de
outubro de 2018.
180

A CIDADANIA DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS


THE CITIZENSHIP OF PEOPLE AND TRADITIONAL COMMUNITIES

Allex Jordan Oliveira Mendonça


Patrícia Fortes Attademo Ferreira

Resumo: O objetivo desta pesquisa é analisar se há a efetivação da cidadania de


povos e comunidades tradicionais, visando expor o histórico, conceito, trajetória e
inovação deste direito através de estudos de Direito Ambiental, bem como analisar
como as comunidades e povos tradicionais legitimam a ideia de cidadania ambiental,
destacando normas legais que visam à proteção e manutenção meio ambiente. A
metodologia utilizada nesta pesquisa foi a do método dedutivo; quanto aos meios a
pesquisa foi a bibliográfica, com uso da doutrina, legislação e jurisprudência; quanto
aos fins, a pesquisa foi qualitativa. Conclui-se que embora haja legislação que ampare
a existência dos povos e comunidades tradicionais, há a falta de participação, diálogo
e informação entre estes o Poder Estatal, o que inviabiliza a sua plena cidadania.
Palavras-chave: cidadania; meio-ambiente; povos e comunidades tradicionais.

Abstract: The objective of this research is to analyze whether there is the realization
of citizenship of traditional peoples and communities in order to expose the historical
concept to the trajectory and innovation of this right through environmental law studies
as well as analyzing how communities and peoples Traditional legitimize the idea of
environmental citizenship highlighting legal norms aimed at protecting and maintaining
the environment. The methodology used in this study was the deductive method; As
to the means the research was the bibliography with the use of the doctrine legislation
and jurisprudence; The research was qualitative for the purposes. It is concluded that
although there is legislation that is in the presence of traditional peoples and
communities, there is a lack of participation and dialogue and information between the
state powers which makes their full citizenship impossible.
Key-words: citizenship; environment; traditional peoples and communities

INTRODUÇÃO

O Direito Ambiental é ramo complexo, que possui várias definições devido à


incidência constitucional que lhe e dada.
Embora o meio ambiente seja uno, a doutrina costuma classificá-lo em alguns
aspectos, a fim de demonstrar o reconhecimento de alguns direitos. Dentro estas
classificações, existe o meio ambiente cultural, que diz respeito a diversidade
brasileira, esta enquanto cultura, povo e costumes.
Neste diapasão, os povos e comunidades tradicionais são entidades que se
enquadram dentro deste aspecto, pois se revestem pela diversidade social e cultural.
Assim, o presente trabalho aborda a questão dos povos e comunidades tradicionais
quanto a legitimação e efetivação de sua cidadania.
Por esta análise, a pesquisa buscou estudar a cidadania, desde sua concepção
até os dias atuais, mostrando que tal status do ser humano é um fenômeno que busca
alcançar direitos para o bem-estar do homem. Por este viés a cidadania alcança um
patamar que transborda a ideia do direito constitucional de votar e ser votado.
Para a sociologia, a cidadania apresenta aspectos civis, políticos e sociais que
são inerentes a condição humana, que foram conquistados por várias gerações até
se chegar à ideia de uma cidadania ambiental.
181

Agregar conceitos de diversidade cultural, aliada a cidadania e ao meio


ambiente é tarefa na qual busca tirar da invisibilidade as minorias qualitativas, como
as populações tradicionais. Esta ação de reconhecimento surge como aliada para
determinação de obrigações de cunho ambiental tanto por parto do Estado quanto por
parte de indivíduos da sociedade.
O método adotado para a realização desta pesquisa será o dedutivo; quanto
aos meios, utilizar-se-á a doutrina, a legislação e a jurisprudência; quanto aos fins
utilizar-se-á a pesquisa qualitativa.

1 CONCEPÇÃO DA CIDADANIA

Da análise da cidadania a partir do Direito Constitucional, é possível identificá-


la como sendo um dos direitos políticos do Estado Democrático de Direito; baseado
no sistema representativo democrático, através da participação direta do povo no
governo ou por meio de representantes eleitos.
A cidadania, neste contexto, se insere como um status ligado aos direitos
políticos, que qualifica aqueles que participam na dinâmica do Estado, ou como afirma
Silva (2005, p. 345) “é atributo das pessoas integradas na sociedade estatal, atributo
político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela
representação política”.
Assim, o cidadão é a pessoa titular de direitos políticos que possui a capacidade
de votar e de ser votada. A qualidade de cidadão é conquistada a partir do alistamento
eleitoral, sendo obrigatório para pessoas maiores de dezoito anos, e facultativo para
analfabetos, maiores de setenta anos, maiores de dezesseis e menores de dezoito
anos, conforme art. 14 da Constituição Federal. Neste sentido, expõe Silva (2005, p.
347):

O alistamento eleitoral depende de iniciativa da pessoa, mediante


requerimento, em fórmula que obedece ao modelo aprovado pelo Tribunal
Superior Eleitoral, que apresentará instruído com comprovante de sua
qualificação e de idade, dezesseis anos, no mínimo, até à data de eleição
marcada; essa última circunstância não consta na Constituição mas é
razoável admiti-la como no Direito Constitucional revogado. As
providências para o alistamento hão de efetivar-se, para o brasileiro nato,
até os dezenove anos de idade e, para o naturalizado, até um ano depois
de adquirida a nacionalidade brasileira, sob pena de incorrerem em multa.

Covre (2001, p. 18) remete a origem da cidadania à Grécia antiga. Onde a


sociedade era composta de homens livres, que participavam de uma democracia
direta, na qual a coletividade e suas atividades eram debatidas constantemente,
promovendo o exercício de ser cidadão. Durante o período feudal não houve grande
desenvolvimento da idéia de cidadania, que voltou a ter espaço apenas com a
ascensão da sociedade capitalista, através de revoluções que trouxeram à tona
documentos constitucionais que indicavam o estabelecimento de direitos de
igualdade. Nesse sentido Covre (2001, p. 20) expõe:

Para uma primeira aproximação, vale a pena retroceder às revoluções


burguesas, particularmente à revolução Francesa. Com elas,
estabelecem-se as Cartas Constitucionais, que se opõem ao processo de
normas difusas e indiscriminadas da sociedade feudal e às normas
arbitrárias do regime monárquico ditatorial, anunciando uma relação
jurídica centralizada, o chamado Estado de Direito. Este surge para
estabelecer direitos iguais a todos os homens, ainda que perante a lei, e
182

acenar com o fim da desigualdade a que os homens sempre foram


relegados.

A compreensão da cidadania está ligada com o desenvolvimento do


capitalismo, pois segundo Covre (2001, p. 24) aquela está ligada elevação da
burguesia, com a valorização do trabalho e ao desenvolvimento da vida urbana.
Neste sentido, “a ideologia capitalista parece haver acenado com aspectos da
cidadania, sempre atravessados pela sua dubiedade característica: apontando para a
melhoria nas condições de vida dos trabalhadores, mas explorando-os” (COVRE,
2001, p.43).
Esclarecendo: o capitalismo trouxe a ascensão da classe burguesa, e esta, por
sua vez, utilizou-se da mão de obra dos trabalhadores para lucrar. Neste embate, a
necessidade de uma sociedade impregnada por práticas sociais mereceu destaque,
na qual visou melhores condições de vida para a classe operária. Covre (2001, p. 44)
ensina:

Tudo isso valoriza a categoria cidadania como estratégia de luta para uma
nova sociedade. Os trabalhadores devem estar sempre em pugna por
seus interesses e direitos – a primeira exigência para isso é a manutenção
de condições democráticas mínimas, acompanhadas de uma boa
Constituição e de governantes que a respeitem. Luta que inclui pressões,
graves e desobediência civil, se necessário, mas com o fim de manter o
processo civilizatório contra um processo anárquico e bárbaro, que pode
pôr abaixo conquistas anteriores.

Em todos os períodos históricos, percebe-se que a cidadania se constitui como


um verdadeiro princípio da igualdade, através da ideia de liberdade dos homens, que
possuem a capacidade de participar de forma individual na sociedade.
Embora para o Direito Constitucional a cidadania se consubstancia em um
direito político, para a sociologia este instituto se reveste de características mais
complexas, que vão além do direito de votar e de ser votado.
Para Marshall (1967, p. 96) não é possível definir precisamente os direitos do
cidadão: deve-se ter em mente o elemento qualitativo dos indivíduos que são
tutelados. Entretanto, necessário é um mínimo de direitos reconhecidos legalmente.
É um direito a igualdade de oportunidade (de direitos), através da eliminação de
privilégios de parcela de indivíduos, com o reconhecimento da desigualdade de
outros.
A cidadania passou a ser assunto de destaque atualmente, aparecendo nas
falas de quem detêm o poder político, através dos meios de comunicação, nas
produções intelectuais, e na pauta de diversos movimentos de minorias sociais, que
se fundamentam na cidadania para reivindicar saneamento básico, educação, fim da
discriminação sexual e racial. Assim, é necessário analisar a cidadania de cada um
desses grupos sociais, pois estes se encontram em diversas posições na sociedade.
Covre (2001, p. 8) ensina:

Alguns deles têm acesso a quase todos os bens e direitos; outros não, em
virtude do baixo salário e do não-direito à expressão, à saúde, à educação
etc. O que é cidadania para uns e o que é para outros? É importante
apreender de que cidadania se fala.

Cidadania é mais que o direito de votar e ser votado – ela demonstra condições
de nível econômico, social, político e cultural – instituto que se fundamenta na ideia
de que todos os homens são iguais. Ainda, a cidadania diz mais do que apenas um
183

direito do homem, ela é impregnada de deveres, de responsabilidade do indivíduo


para com a sociedade.
A cidadania como direitos e deveres é algo possível, que pode ser conquistado,
segundo Covre (2001, p. 10), através do enfrentamento político, através de
reivindicações de direitos, de apropriação dos espaços, respeito ao próximo –
questões que visam uma sociedade melhor. Podendo, inclusive, falar da cidadania
como o próprio direito à vida, no sentido pleno.
Com fins didáticos, Covre (2001, p. 11) classifica a cidadania em três aspectos
– civil político e social. Pelo aspecto civil, a cidadania refere-se ao direito de
locomoção, de segurança, e de possibilidade de dispor do próprio corpo, diz respeito
a liberdade do indivíduo. Como exemplo, a autora remete às décadas em que foi
instaurada a ditadura militar, período marcado pela tortura, pela não liberdade de
expressão, pela morte de pessoas que eram contra a forma de pensar do Estado.
Ressalta-se que até mesmo após o período militar, algumas ações estatais são
consideradas anti-cidadãs, como grupos armados que executam pessoas de locais
periféricos, trabalhadores rurais que são feitos de escravos, etc.
A cidadania pelo aspecto social diz respeito às necessidades básicas do
indivíduo. Ligados ao labor do homem (salário proporcional ao trabalho, direito à
saúde, educação, habitação, saneamento básico).
Por fim, a cidadania como um direito político é aquela voltada para a prática
política, através de institutos de organização que representam a população em
questões que deliberam outros direitos – sociais e civis – ou “o direito de participar no
exercício do poder político, como membro de um organismo investido da autoridade
política ou como um eleitor dos membros de tal organismo”. (MARSCHALL, 1967, p.
63).
Assim, a efetiva realização da cidadania depende desses três aspectos, que
vai além da ideia de votar e ser votado. Através destes três elementos, Marshall (1967,
p. 63) conceitua a cidadania da seguinte forma:

A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de


uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com
respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status. Não há nenhum
princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão,
mas as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em
desenvolvimento criam uma imagem de uma cidadania ideal em relação
à qual o sucesso pode ser medido e em relação à qual a aspiração pode
ser dirigida.

2 CIDADANIA E MEIO AMBIENTE

O homem e a sociedade evoluíram, e na busca de progresso, estes se


utilizaram dos meios naturais de forma predatória visando desenvolvimento industrial
e tecnológico. A partir da Revolução industrial o homem domina a natureza,
apoderando-se de seus recursos – que são finitos – de forma irracional. Com isso
impactos ambientais foram vistos de forma cada vez mais frequente: devastação do
meio ambiente natural com a extinção de animais, desmatamento e problemas e
poluição foram pautas durante o século XIX.
O crescimento desarrazoado das cidades, durante a Revolução Industrial,
fortificou a revalorização do meio ambiente natural. Neste sentido Araújo (2012, p. 26)
assevera que “o adensamento demográfico e a proliferação de ambientes insalubres,
promíscuos e “feios” contribuíram para gerar um sentimento anti agregativo, induzindo
184

uma atitude de contemplação dos espaços naturais, lugar de reflexão e de isolamento


espiritual”.
A delicada situação dos recursos naturais gerou um estado de alerta para a
humanidade na qual se viu diante de um a crise ambiental. Passou-se a revalorizar a
questão ambiental como pauta política e novos conceitos de cunho protecionista
foram desenvolvidos – no ano de 1992, por exemplo, realizou-se a Conferência das
Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente, a Rio – 92, na qual buscou
conceituar o que vem a ser o desenvolvimento sustentável. Inclusive a Constituição
brasileira vigente passou a se preocupar também com questões de proteção
ambiental. Ao tratar sobre o meio ambiente, o documento constitucional abordou o
princípio do desenvolvimento sustentável: o art. 225 da Carta Magna dispõe sobre a
observância da coletividade e do Poder Público de preservarem o meio ambiente para
as presentes e futuras gerações,
Assim, o viés ambiental ganhou força por parte do Poder Estatal e o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado passa a ser considerado um direito
fundamental. Neste contexto novas formas de expressão da cidadania foram surgindo,
com fulcro de determinar obrigações de cunho ambiental através deveres aos
cidadãos, na busca de um meio ambiente sadio para as presentes e futuras gerações.
O Direito Ambiental passa ser determinante que agrega princípios da participação
popular, da cooperação ambiental, do não retrocesso, e da cidadania. Oliveira (2012,
p. 12) ensina:

A construção de uma cidadania participativa pode ter uma dupla face. Se


por um lado o exercício e a promoção de uma cidadania participativa e
pluralista convida (e necessita que) outros segmentos da sociedade
participem e se integrem ao movimento de mudanças a fim de
preservarem o bem ambiental ou diminuírem os impactos já causados. Por
outro lado, esta universalidade e generalidade admitida pela cidadania
participativa pode apagar anos de lutas que determinados segmentos
sociais vem construindo para que sejam reconhecidos como diferentes,
como por exemplo os povos indígenas.

Por esta perspectiva a cidadania também passou a ter uma nova roupagem.
Segundo Oliveira (2012, p. 26) busca-se a valorização da vida em meio à crise
ambiental, através do fortalecimento da ideia de dignidade humana e dos princípios
fundamentais. Além disso, o cidadão passa a ter deveres em relação ao meio
ambiente, sendo um deles a necessidade de compreensão da posição ecológica do
ser humano e das possibilidades decorrentes da sua atividade predatória.
Ressalta-se o dispositivo do art. 225 da Constituição Federal a respeito do meio
ambiente ecologicamente equilibrado, segundo o qual “todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-
lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Percebe-se que o bem
ambiental é de uso comum do povo. O Estado e a coletividade devem viabilizar a sua
proteção, através de mudanças de comportamento social, por meio da participação e
informação.
Segundo Oliveira (2012, p. 40), existem meios para a consecução de uma
cidadania ambiental: a participação de criação de normas ambientais, a formulação
de políticas ambientais e a participação via acesso ao Poder Judiciário. Tais
instrumentos podem ser agregados aos cidadãos através da educação ambiental.
Estes dizeres se consubstanciam em uma concepção mais ampla da cidadania,
185

através da participação ativa e pluralista, reverberando uma cidadania não apenas


local, mas preocupada também com a crise ambiental de forma planetária.
Segundo a Agenda 21, feita pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento – Resolução n2 44/228 da Assembleia Geral da ONU,
de·22-12-89 – a Cidadania é mais do que garantia de direitos: é instituto de
responsabilidade pelos destinos da comunidade planetária.

3 POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

As comunidades tradicionais fazem parte da sociedade brasileira e encontram


amparo na Constituição Federal de 1988. São consideradas minorias qualitativas e
por isso merecem tratamento constitucional. Destaca-se que também são
considerados institutos tutelados pelo Direito Ambiental, pois a diversidade cultural
também é um dos aspectos do meio ambiente.
Neste sentido, o art. 216 da Carta Magna informa que constituem o patrimônio
cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial de diferentes grupos
formadores da sociedade, incluindo as forma de expressão, modos de criar, fazer e
viver, criações científicas, artísticas e tecnológicas, além de obras, objetos,
documentos, edificações e demais espaços destinados a manifestações artístico-
culturais e obras, objetos, documentos e edificações destinadas às manifestações
artístico-culturais.
Segundo Machado (2009, p. 1094.) o patrimônio cultural é conceito dinâmico,
caracterizado de diferentes formas – de uma forma ampla é conceituado como
patrimônio cultural social nacional. As comunidades tradicionais dizem muito da
diversidade cultural de cada país, traduzindo, conforme aponta Fiorillo (2013) na
identificação da formação do povo e de sua cultura – considerada um dos elementos
identificadores da cidadania.
Os artigos 215 e 220 da Constituição Federal também disciplinam a tutela ao
direito cultural, determinando a garantia ao pleno exercício dos direitos culturais e do
acesso às fontes da cultura nacional, devendo o Estado protegerá as manifestações
de populares, indígenas e afro-brasileiras. Os povos e comunidades tradicionais
fazem parte da diversidade cultural do Brasil, por isso merece destaque a analise sua
cidadania, tais grupos apresentam formas peculiares de viver e de se expressar.
Quanto ao conceito de comunidades tradicionais, Almeida (2006) evidencia que são
formas de associação, intimamente ligadas com o processo de territorialização de
determinada área, incorporados por fatores étnicos, de auto definição coletiva e de
consciência ecológica.
Neste sentido as comunidades tradicionais são grupos familiares que se
utilizam de recursos naturais, através do uso comum de florestas, recursos hídricos,
campos e pastagens e exercem atividades produtivas como extrativismo, agricultura,
pesca, caça, artesanato
Tais grupos ainda são caracterizados pela invisibilidade social, deixando-os a
margem de decisões do Poder Público que pouco se preocupa com sua existência.
Exemplo disso são as comunidades ribeirinhas que habitam a unidade de
conservação Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro.
Silva, G (2013) mostra que ao criar as áreas de conservação, o Estado
estabelece um caráter impositivo diante dos moradores destes locais, o que
redireciona suas práticas de vida em relação àquele meio. Isso afeta diretamente as
possibilidades de sobrevivência da comunidade, que não encontra viabilidade para
reprodução dos seus núcleos familiares.
186

Assim, necessário o fortalecimento da cidadania de tais grupos, como forma de


integrá-los ao Estado Democrático de Direito, dando a eles vez e voz no que tange
tomada de decisões sobre seus territórios, sobre a incidência de unidades de
conservação em suas áreas, sobre a necessidade de votarem e escolherem seu
melhor representante, de não delimitarem suas atividades por meio de leis. Ressalta-
se que o termo “comunidades tradicionais” engloba vários movimentos sociais,
tornando-se conceito complexo, integrando nele os seringueiros, as quebradeiras de
coco babaçu, os quilombolas, ribeirinhos, entre outros. Isso mostra a riqueza da
diversidade cultural do país, podendo se falar, inclusive, como aponta Almeida (2006)
em um Estado Pluriétnico.
O exercício da cidadania, no caso de povos e comunidades tradicionais, pode
se dar através da adoção de políticas e ações governamentais e da população que
influenciam a consciência ética e o respeito. A não-cidadania neste caso pode causar
a falta de integridade do bem-estar da população, por meio de ameaças à reprodução
cultural devido à restrição ao acesso de recursos naturais, violência e coerção por
parte de órgãos fiscalizatórios que detêm o poder. A proteção jurídica dada à
diversidade cultural no que diz respeito às populações tradicionais garante a cidadania
ambiental planetária. Exemplo disso é o Decreto nº 4.339/2002 que institui a Política
Nacional da Biodiversidade, no qual informa a importância das populações tradicionais
na conservação e na utilização da biodiversidade brasileira.
A Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões
Culturais, art. 2º, informa a diversidade cultural como grande riqueza para os in-
divíduos e para a sociedade, sendo a proteção, promoção e manutenção da
diversidade culturais condições essenciais para o desenvolvimento sustentável em
benefício das gerações atuais e futuras. Por fim, o art. 8 da Convenção da Diversidade
Biológica estabelece como obrigação o respeito a preservação e a manutenção do
conhecimento, as inovações e práticas das comunidades locais e populações
indígenas como estilo de vida tradicional relevante à conservação e à utilização
sustentável da diversidade biológica

CONCLUSÃO

A cidadania é status que garante o bem-estar de cada indivíduo. Percebe-se


que esta vem sendo construída desde a criação da sociedade grega até os dias atuais.
O homem, em luta com o Estado, busca melhores condições de vida. Esta
constatação mostra que os movimentos sociais são necessários para se garantir
direitos e para o desenvolvimento da cidadania.
Assim, falar em cidadania apenas como direito de votar e ser votado é inócuo,
pois é necessário analisar este instituto pelos aspectos sociais, culturais e políticos.
Esta concepção abre espaço para que grupos minoritários ganhem espaços na esfera
pública. Embora haja vasta legislação a respeito da diversidade cultural,
constata-se uma resistência do Poder Público em resguardar a cidadania dos povos
e comunidades tradicionais
A participação, o diálogo e o exercício da cidadania fazem parte da construção
da democracia. Aliar esta concepção ao direito ambiental é tarefa que deve ser
instituída para se gerar a cidadania ambiental, instituto que, além de garantir direitos
das comunidades tradicionais (como objeto da diversidade cultural do meio ambiente),
institui deveres a todos os indivíduos da sociedade, não só para a consecução da
proteção ambiental, mas para se resguardar um ambiente sadio para as presentes e
futuras gerações.
187

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de Quilombos, Terras Indígenas,


“Babaçuais Livres”, “Castanhais do Povo”, Faxinais e Fundos de Pasto: Terras
tradicionalmente ocupadas. Manaus: PGSCA-UFAM. 2006.
ARAÚJO, Marcos Antônio Reis. Unidades de Conservação: Importância E História
No Mundo. In: Unidades de conservação no Brasil: o caminho da Gestão para
Resultados. Organizado por NEXUCS – São Carlos: RiMa Editora, 2012. p. 25-50.
BRASIL. Constituição da República Federativa do. Brasília, DF, Senado, 1998.
___________________. Decreto nº 4.339, de 22 de agosto de 2002. Institui
princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional da
Biodiversidade.
___________________. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais. Brasília: Diário Oficial da República Federativa do Brasil.
___________________. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a
Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e
aplicação, e dá outras providências
___________________. Decreto Legislativo nº 2, de 1994. de Convenção da
Diversidade Biológica. Aprova o texto do Convenção sobre Diversidade
Biológica, assinada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, realizada na Cidade do Rio de Janeiro, no período de
5 a 14 de junho de 1992.
COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é cidadania. São Paulo: Brasiliense, 2001.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro – 14ª ed.
rev., atual. e ampl. e atual. Em face da Rio + 20 e do novo “Código” Florestal – São
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MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 17. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2009
MARSCHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
OLIVEIRA, Karla Auricélia Fernandes. A cidadania no estado de direito ambiental:
da proposta universalista ao reconhecimento das diferenças. Dissertação
(Mestrado)–Universidade do Estado do Amazonas, Programa de Pós-graduação em
Direito Ambiental, 2012.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª ed. São
Paulo: Malheiros: São Paulo, 2005.
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 10ª ed. São Paulo:
Malheiros: São Paulo, 2013.
SILVA, Gimima Beatriz Melo da. Guardiões da Floresta, retóricas e formas de
controle da gestão ambiental e territorial – Niterói: 209 f.; il. Tese (Doutorado –
Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense, 2013.
188

A CIDADE E A DIGNIDADE HUMANA: UM OLHAR SOBRE A ÁGUA


THE CITY AND THE HUMAN RIGHTS: AN WATER VIEW

Aline Ribeiro da Costa Freitas


Caio Henrique Faustino da Silva

Resumo: Proteger às águas urbanas insere-se em uma das preocupações centrais


do presente século. Desta feita, norteado pela perspectiva de um Estado
Socioambiental de Direito, o presente artigo objetiva, por meio de uma revisão
bibliográfica e documental, discutir o papel da proteção das aguas urbanas enquanto
um direito humano. Para tanto, analisou-se o desenvolvimento do meio urbano
enquanto um fenômeno histórico global na perspectiva dos usos e da disponibilidade
do recurso hídrico. Em seguida, evidenciou-se a relação entre os muitos ciclos de
contaminação e consumo da água nos grandes conglomerados urbanos. Finalmente,
revisitou-se arcabouço jurídico-normativo nacional e internacional em matéria de
direito das aguas, tendo como fio condutor a compreensão do meio ambiente
enquanto direito humano
Palavras-chave: DIREITO DE ÁGUAS, DIREITOS HUMANOS, MEIO AMBIENTE.

Abstract: Protect the urban water is one of the central concerns of this century. This,
based on the principles of Environmental protection, this article aims by the
documental review to talk about the role of urban water protection as a human right.
For this, the development of the urban environment was analyzed as a global historical
phenomenon in the perspective of the uses and the availability of the water resource.
After, it was noticed the relationship between the many cycles of contamination and
water consumption in large urban conglomerates. Finally, it was revised the national
and international legal framework on water law, understanding the environment as a
human right.
Keywords: WATER LAW, HUMAN RIGHTS, ENVIRONMENT

1. INTRODUÇÃO

É sabido que a história do homem em sociedade vive um constante e secular


processo de sagração da grande narrativa progressista, calcado no ideário do
inegável aperfeiçoamento sequencial rumo aos êxitos da plena civilização. Nesta
grande narrativa darwiniana, assiduamente reescrita e reavivada, cultua-se o deus-
progresso enquanto preceptor da humanidade rumo à libertação e a superação de
todos os males, rumo à eterna felicidade, justiça e paz (DENNY, 2006, p.64).
Neste cenário, os direitos humanos constituem uma importante dimensão de
disputa, isto é, compreendidos tanto em nível nacional – observados os ordenamentos
jurídicos e as famílias de direito as quais se filia cada um dos Estados – quanto em
nível regional e, sobretudo, internacional. Desta feita, norteado pela perspectiva de
um Estado Socioambiental de Direito, o presente artigo objetiva, por meio de uma
revisão bibliográfica e documental, discutir o papel da proteção das aguas urbanas
enquanto um direito humano. Para tanto, analisou-se o desenvolvimento do meio
urbano enquanto um fenômeno histórico global na perspectiva dos usos e da
disponibilidade do recurso hídrico. Em seguida, evidenciou-se a relação entre os
muitos ciclos de contaminação e consumo da água nos grandes conglomerados
urbanos. Finalmente, revisitou-se arcabouço jurídico-normativo nacional e
internacional em matéria de direito das aguas, tendo como fio condutor a
189

compreensão do meio ambiente enquanto direito humano.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 O QUADRO DE POLUIÇÃO DAS ÁGUAS NAS CIDADES

O urbano, sob a ótica classificatória de direito ambiental de José Afonso da


Silva (2004) em sua clássica obra ligando o Direito Constitucional e o Direito Ambiental
é atribuir ao meio urbano a junção do meio ambiente artificial, cultural e natural. Esta
abordagem tem como finalidade deixar assente que as cidades, mesmo que para fins
estritamente legais, não é composta somente de concreto e indivíduos, mas também
tem como integrante o meio ambiente tido como natural, como árvores, rios e lagos
com importância primordial à urbanização.
Este entendimento coaduna-se ao conceito de Glaeser e Joshj-Ghani (2013),
caracterizando o meio urbano como o resultado de três fatores: o primeiro é a estrutura
física que compõe a cidade, seja a estrutura construída ou a natural; o segundo é o
setor público, que define as fronteiras da cidade e é responsável por regular as
interações entre as pessoas, fornecendo estrutura adequada; e o terceiro fator são as
pessoas, o coração da cidade, cujas interações geram a cultura, ou seja, as inovações
em arte, tecnologia, política e religião.De fato, a urbes, no contexto histórico secular
da humanidade, caracteriza-se inegavelmente por ser uma realidade social
(LEFEBREV, 2011) de consequências paradoxais, caracterizando-se por lançar luzes
e sombras inerentes a sua complexidade.
Por outro lado, a urbanização proporciona as condições físicas para o
surgimento de inúmeros desafios. Sabe-se da mesma forma que a concentração
humana em um espaço territorial reduzido está diretamente ligada ao aumento dos
níveis de poluição, ao acréscimo do trânsito nas ruas (o que dificulta a locomoção), a
deterioração psíquica dos cidadãos, e, por essa questão meramente física que
engloba um espaço reduzido a um conglomerado de pessoas, facilita a disseminação
de doenças, criando, dessa forma, desafios para a saúde pública. São o que Glaser e
Joshi-Grani (2013) denominam de demônios da densidade demográfica.
Esse fator é agravado quando em confronto com um dos recursos de maior
importância para o humano – a água. Este verdadeiro bem da vida1 exerce funções
importantíssimas para a manutenção do constante processo de vida em conjunto 2. No
entanto, apesar da ancestral atribuição de valor à água, também é muito antiga a
história de poluição dos rios. Tão antiga que se pode afirmar, inclusive, que a poluição
das águas urbanas é um dos mais antigos flagelos da urbanização (GLAESER;
JOSHI-GHANI, 2013, p. 2).
Estima-se que as águas de mais da metade das cidades do mundo estão
poluídas. Segundo o 2017 World Water Development Report, publicado pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) e Organização das Nações Unidas para a

1
Aqui se utiliza o termo bem da vida não como o bem da vida do código de processo civil, mas sim a compreensão da água
como um “bem” ambiental essencial para a manutenção da vida.
2
Enumenrando de maneira simplificada as bençãos da água urbana está, em primeiro lugar, o abastecimento de água potável,
indispensável para as pessoas beberem, prepararem alimentos e se higienizarem, sendo de suma relevância para a manutenção
da saúde; em segundo, por desempenhar um papel importante para a economia das regiões, uma vez que as águas urbanas
são necessárias para a manutenção das indústrias, para o fornecimento de energia elétrica e para o transporte; e em terceiro
lugar, importa salientar, por fim, o aspecto cultural das águas no meio urbano, pois a água, além de ter função recreacional,
representando meio para o lazer dos habitantes, também é um bem quase sagrado de certas sociedades, que mantém uma
relação quase religiosa com a água, a exemplo dos indígenas na região amazônica, da cultura indiana (SHIVA, 2006) e da antiga
civilização grega e egípcia (RODRIGUES DA SILVA, 1998). Em quarto lugar, as águas têm por função, juntamente com as
estradas, proporcionar facilidade de circulação, favorecendo contatos, sendo um dos fatores relacionados à criação de cidades
(GANDARA, 2013).
190

Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), cerca de 80% do esgoto gerado nas


cidades do mundo é descartado sem nenhum tratamento (WORLD HEALTH
ORGANIZATION et al, 2017). No Brasil, a situação é similar. Segundo estimativas do
relatório da Agência Nacional das Águas (2013), conforme dados fornecidos pelo
IBGE em 2008, de todo o esgoto doméstico urbano gerado no Brasil, apenas 29,94%
é tratado (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS, 2013). 3.
Sabe-se desde meados de 1850, cientificamente, por conta dos trabalhos de
John Snow4, que a água é fonte transmissora de doenças tais como: a hepatite A, a
cólera, a diarreia infecciosa, a leptospirose, a esquistossomose e outras (DIVISÃO DE
DOENÇAS DE TRANSMISSÃO HÍDRICA E ALIMENTAR ET AL, 2009).
Trata-se de um retrato simplificado da inter-relação entre a água e o urbano e
as suas consequências sociais. O direito, como instrumento de regularização das
inter-relações humanas e com árduo papel de instrumentalizar mecanismos de
desenvolvimento nas condições de vidas humanas em sua finalidade primordial de
zelar pela justiça vem desempenhando um papel crescente elaboração de normas a
fim de abarcar essa situação ambiental.

2.3 A EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO DAS ÁGUAS URBANAS NO PLANO


INTERNACIONAL E NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Em uma digressão normativa, sabe-se que o impulso para a preocupação


normativa das águas urbanas aconteceu junto com o crescimento do movimento
ambientalista na década de 1960, principalmente devido às preocupações científicas5
com os efeitos da poluição nos seres humanos. A propagação dessas preocupações
foram o estopim para o surgimento do que José Afonso da Silva (2005, p. 173)
denomina de “condições objetivas e subjetivas para a criação de normas”. Em 06 de
maio de 1968 foi proclamada pelo Conselho da Europa, em Estrasburgo, República
Francesa, a Carta Europeia da Água, da qual o Brasil é signatário. Este diploma
estabeleceu 12 princípios sobre a importância da preservação da água para a vida,
tanto humana quanto de outros seres vivos (Carta Europeia da Água, 1968). 6
A importância da proteção desse bem ganhou força concomitantemente à
campanha mundial para a proteção do meio ambiente que, segundo Fábio Konder
Comparato (2015), foi sedimentada em 1972, pela Conferência das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, que buscou fixar e propagar o
conceito de qualidade de vida, buscando demonstrar a necessidade de efetivação
mundial do princípio da solidariedade, tanto às gerações atuais como às futuras.

3
No entanto, ressalta-se que tal afirmação é apenas uma estimativa, pois o governo brasileiro padece de um gigantesco problema
de ausência de informações quanto à qualidade das águas, o que impossibilita o fornecimento de dados precisos sobre a situação
hídrica no Brasil (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS, 2016 ). A exemplo do próprio informe sobre o quadro da situação hídrica
no Brasil de 2016, que não forneceu dados precisos sobre o estado da situação das águas no Brasil, justificando que dos 27
estados da Federação, apenas 17 têm pontos de monitoramento do padrão de qualidade de águas e, deles, cada um adota seus
próprios índices de monitoramento, in verbis: “É importante frisar que nem todas as redes estaduais monitoram todos os
parâmetros necessários para o cálculo do IQA. Nestes casos, o vazio de informações não permite uma avaliação da qualidade”
(AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS, 2016).
4
John Snow foi um importante médico e pesquisador britânico que descobriu a relação entre o cólera que afetava a população
londrina à época e a presença de bactérias das fezes nas águas (VINTEN-JOHANSEN, 2003). Ele publicou tal hipótese em
artigos em 1854 (Snow, 1857) e em o seu livro chamado On the mode of communication of cholera, em que realizou a relação
de causa e efeito entre a má qualidade da água e a epidemia de cólera nas cidades inglesas (SNOW, 1855).
5
Dentre as publicações científicas que afetaram tal movimento está o livro Primavera Silenciosa de Rachel Carson, que foi
considerado pelo Secretário do Interior dos Estados Unidos Stuart Udal como o marco que deflagrou o movimento ambientalista.
Além do seu livro, a autora também marcou os estudiosos sobre a proteção em um discurso ao comitê científico do presidente
Kennedy, in verbis: “the right of the citizen to be secure in his own home against the intrusion of poisons applied by other persons.
I speak not as a lawyer but as a biologist and as a human being, but I strongly feel that this is or ought to be one of the basic
human rights” (BOYD, 2012).
6
A Carta Europeia da Água é, efetivamente, um dos principais marcos legal sobre a proteção das águas em esfera mundial, pois
formalizou entre os países signatários uma direção a seguir, uma meta e um compromisso em gestão governamental.
191

O reconhecimento da importância das águas foi posteriormente reforçado pelos


representantes estatais em vários outros eventos internacionais sobre a matéria
ambiental, a exemplo: da Declaração de Dublin sobre Água e Desenvolvimento
Sustentável de 1992, da Declaração de Mar Del Plata em 2005 e da Carta Mundial do
Direito à Cidade de 2004.
A Carta Mundial do Direito à Cidade, firmada em Quito, Barcelona e Porto
Alegre, no afã de ser um instrumento de consagração internacional dos conceitos de
Direito à Cidade, inclusive, firmou o dever de o espaço urbano garantir a todos o
acesso permanente à água potável e ao saneamento básico.7 Essa Carta tem a
peculiaridade de reconhecer, no seu artigo 2º, o direito à cidade, compreendida em
seu sentido amplo, como interdependente de todos os outros direitos humanos
reconhecidos no ambiente internacional, demonstrando a inter-relação do meio
ambiente urbano e com os direitos básicos e fundamentais do homem.
A proteção das águas urbanas permeia questões relativas à proteção
ambiental, ao saneamento básico, à saúde, à cultura e ao lazer, tudo envolto de
aspectos que asseguram a dignidade humana. Por conta disso, a proteção das águas
urbanas está contida no núcleo dos direitos humanos. Esse status legal, apesar de
não estar previsto originalmente na Declaração Universal dos Direitos do Homem de
1948, foi reconhecido na Conferência de Estocolmo em 1972 (BOYD, 2012).
A proteção das águas urbanas é compreendida como parte do meio ambiente,
sendo, inclusive, essencial à qualidade de vida e saúde da população. Por isso, pode-
se dizer que o art. 225 Constituição Federal abarca a proteção das águas urbanas e
confere proteção a esse bem, tanto de natureza subjetiva como também de natureza
coletiva, considerando que o bem ambiental, de forma genérica, tem como
característica sua não distributividade (ALEXY, 2010, p. 181).
Também se pode afirmar, considerando as estatísticas citadas no início do
texto, que o direito à proteção das águas também está ligado às questões de saúde
pública, fato que o insere no arcabouço protetivo do art. 192 da Constituição Federal,
que impõe ao Estado o dever de adotar políticas públicas com finalidade de reduzir
ou evitar risco de doenças, que é o fornecimento de saúde preventiva.
Em terceiro lugar, a proteção das águas urbanas também está relacionada ao
direito à cidade sustentável, disposta no art. 182 da Constituição Federal, versando
sobre as funções sociais da cidade e determinando ao município o dever de garantir
o bem-estar de seus habitantes, partindo da premissa lógica de que a cidade que tem
como adjetivo a sustentabilidade imprescinde da qualidade de seus bens ambientais,
dentre eles, a água.
Por fim, conforme expressamente disposto no art. 225 da Constituição Federal,
a ligação entre o meio ambiente e a sadia qualidade de vida da população demonstra
que o direito à proteção das águas urbanas se insere no âmbito de abrangência
referente à dignidade humana, cujo conceito é um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil, conforme positivação do art. 1º, III, da Constituição Federal
(BRASIL, 1998), representando um dos elementos que compõem e validam o Estado
Democrático de Direito e sendo um “valor supremo que atrai todo o conteúdo dos
direitos fundamentais” (SILVA, 1998, p. 89).
Resta, então, demonstrado o grau de importância que a Constituição Federal
atribui à água, considerando o âmbito de proteção (ALEXY, 2008) dos artigos
constitucionais que dispõem sobre o direito ao meio ambiente, à saúde, à cidade
7
As cidades devem garantir a todos(as) os(as) cidadãos(ãs) o acesso permanente aos serviços públicos de água potável,
saneamento, coleta de lixo, fontes de energia e telecomunicações, assim como aos equipamentos de saúde, educação e
recreação, em co-responsabilidade com outros organismos públicos ou privados de acordo com o marco jurídico do direito
internacional e de cada país (art. XII da Carta Mundial de Direito a Cidade)
192

sustentável e à dignidade humana. Isto posto, parte-se para a definição da natureza


jurídica desse direito assegurado pelos enunciados normativos supracitados.

2.4 DIREITOS FUNDAMENTAIS, DIREITOS HUMANOS, MEIO AMBIENTE E


ÁGUAS.

Em razão de ser um direito humano e sua proteção estar positivada na


Constituição Federal, a proteção das águas, e toda a ótica dos direitos protegidos pelo
direito ambiental brasileiro (FIORILLO, 2007), está inserida no âmbito de proteção dos
direitos fundamentais8. Ressalta-se que existem diferentes perspectivas na inter-
relação entre direitos humanos e direitos fundamentais, especialmente a adotada por
Vieira da Rocha (2015, p. 126) que, seguindo viés de Alexy, afirma que “todo direito
humano é direito fundamental, mas nem todo direito fundamental será
necessariamente um direito humano”, caraterizando-se por adotar uma teoria mais
ampla dos direitos fundamentais. José Afonso da Silva (2005) conceitua direitos
fundamentais como os direitos basilares da pessoa humana, sem os quais a pessoa
não “se realiza”, não se relaciona com outras, e nem sobrevive, apontando que ao
termo não pode haver desvinculação de sua historicidade, pois são direitos
decorrentes da luta popular, soberana, em prol da conquista do reconhecimento e
efetividade desses direitos.
Os direitos fundamentais representam a verdadeira razão de existência do
ordenamento jurídico; são a base para a validade de todos os outros direitos
assegurados no ordenamento jurídico interno. São direitos que geram deveres
oponíveis a todos, inclusive aos particulares, por isso, considera-se insuficiente
(SILVA, 2005) a classificação dos direitos fundamentais como simples direitos
subjetivos oponíveis ao Estado.
Assim, ao considerar a proteção das aguas urbanas um direito fundamental e,
consequentemente, um direito humano, verifica-se que, em matéria ambiental, a
Constituição Federal de 1988, preparou o caminho para a instituição de um Estado
Socioambiental de Direito no qual a agenda política é produto de demandas sociais e
ambientais articuladas a fim de promover o desenvolvimento humano (SARLET, 2017,
p.38-39). E, seguindo por tal perspectiva, é possível reconhecer na própria
Constituição Federal, a existência de princípios gerais e especiais que norteiam não
apenas o direito ambiental, mas todo o ordenamento jurídico pátrio no sentido dos
“deveres de proteção ambiental” (SARLET, 2017, p.33). Neste quadro, a proteção
ambiental passa a ser concebida como uma instancia de reforço da própria
democracia na medida em que

O princípio do Estado Socioambiental (e Democrático) de Direito assume


a condição de princípio constitucional geral e estruturante, assegurando
uma integração e articulação, sem que se possa falar em hierarquia, entre
pilares da Democracia, do Estado de Direito, do Estado Social (ou da
sociabilidade) e da proteção ambiental. Em outras palavras, a proteção
ambiental e promoção do ambiente como tarefa essencial do Estado e da
sociedade deve se dar de modo a preservar e mesmo reforçar o princípio
democrático (SARLET, 2017, p.45).

8
Adota-se, no trabalho, o entendimento de que os direitos fundamentais são direitos humanos positivados. Direitos Humanos,
dessa forma, são direitos positivados na esfera internacional e direitos fundamentais são direitos humanos positivados no âmbito
do direito interno, os quais se diferenciam dos direitos naturais porque estes são os direitos não positivados, conforme
classificação exposta por Dimitri Dimoulis (2013, p. 49). Não obstante, este trabalho não se afilia ao conceito de direitos
fundamentais adotado por esse autor.
193

Assim, é neste cenário que se concebe, invariavelmente, que a pobreza, a


desigualdade e a degradação da vida são consequências articuladas, gêmeas
siamesas nascidas da degradação ambiental fruto de um sistema politico, econômico
e, sobretudo, cultural baseado no consumo e na liquidez das relações (BAUMAN,
2001). Tem-se, neste diapasão, a figura do Estado tangenciado que vê “seu tradicional
papel de mediação reduzir-se cada vez mais e se colocar, na maioria das vezes, a
serviço das instâncias do mercado mundial e dos complexos militar-industriais”
(GUATTARI, 1990, p. 10). Este mesmo Estado é um dos responsáveis por lançar os
sujeitos em uma espécie de paradoxo lancinante que

de um lado, o desenvolvimento continuo de novos meios técnico-


científicos potencialmente capazes de resolver as problemáticas
ecológicas dominantes e determinar o reequilíbrio das atividades
socialmente úteis sobre a superfície do planeta e, de outro lado, a
incapacidade das forças sociais organizadas e das formações subjetivas
constituídas de se apropriar desses meios para torna-los operativos
(GUATTARI, 1990, p. 12).

Dessa forma, ao apregoar a existência de um Estado Socioambiental de Direito,


salienta-se a existência de uma dimensão ecológica da dignidade humana capaz de
dar guarida a uma ideia de bem-estar ambiental, isto é, de um patamar mínimo
existencial assentado sobre os elementos essenciais para uma vida digna, saudável
e segura (SARLET, 2017, p.64). Diante disso, consegue-se extrair o seguinte conceito
jurídico quanto à proteção das águas urbanas: trata-se de um direito humano, de
posição constitucional e, por isso, é considerado um direito fundamental.

3. CONCLUSÕES

Os rios urbanos fornecem sombras e luzes ao cotidiano dos seus habitantes.


Desde o início da ocupação ocidental nas cidades os rios fornecem importantes
perspectivas paras o planejamento das cidades, especialmente se considerando que
são de vital importância para a sobrevivência, bem como para a manutenção da
qualidade de vida, pois as pessoas sofrem diretamente os males causados pela
contaminação da água urbana. Isso é uma questão que afeta a dignidade humana.
Há que se considerar, ainda, como comumente acontece nas cidades do
mundo (Bonnell, 2014) que as sombras dos males causados pela água são maiores
em populações com menos recursos financeiros, relegadas a escuridão e ao
esquecimento e deixadas às margens da sociedades juntamente com os esquecidos
e poluídos rios, sofrendo diariamente com as mazelas sociais e salutares decorrentes
de sua invisibilidade.
Por conta disso, existe um amplo arcabouço jurídico brasileiro e estrangeiro
que preceitua a necessidade de proteção das águas urbanas, especialmente
considerando o grau de importância que a Constituição da República Federativa do
Brasil confere às águas, considerando que tal proteção se insere no suporte fático dos
artigos constitucionais que dispõem sobre o direito ao meio ambiente, à saúde, à
cidade sustentável e à dignidade humana.
Em razão de ser um direito humano e sua proteção estar positivada na
Constituição Federal, a proteção das águas está inserida no âmbito de proteção dos
direitos fundamentais, utilizando-se a concepção material de direitos fundamentais.
Assim, optou-se por adotar o seguinte conceito jurídico quanto à proteção dos
194

igarapés urbanos: trata-se de um direito humano, de posição constitucional e, por isso,


considerado um direito fundamental.

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196

A FALTA DE SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL: UMA VIOLAÇÃO AO MEIO


AMBIENTE E AOS DIREITOS DA PESSOA HUMANA
THE LACK OF BASIC SANITATION IN BRAZIL: A VIOLATION OF THE
ENVIRONMENT AND HUMAN RIGHTS

Arthur Bezerra de Souza Junior


Isabelle Dias C. Santos

Resumo: Até o século XIX, a proteção do meio ambiente era relegada a um segundo plano,
havendo pouca ou nenhuma consciência ecológica de respeito e preservação da natureza,
existindo uma preocupação mais com as finalidades econômicas do que com os valores
ambientais. Somente nas últimas décadas é que a proteção a um meio ambiente saudável se
tornou assunto de suma importância, tanto na esfera política e social, quanto jurídica, numa
relação estreita com a proteção da dignidade da pessoa humana. Apesar das normas de
cunho nacional e de o Brasil ser signatário de tratados internacionais sobre a proteção ao
meio ambiente, na prática não são raros os casos de nítida violação a tal direito, dentre os
quais se encontra a falta de água potável e saneamento básico em distintas regiões do país.
Para tanto, foi utilizado método descritivo e exploratório, com base na legislação nacional,
tratados internacionais, doutrinas, casos e sites.
Palavras-chave: Meio Ambiente. Desastres Ambientais. Direitos Humanos.

Abstract: Until the nineteenth century, environmental protection was relegated to the
background, with little or no ecological awareness of respect and preservation of
nature, with concern for economic purposes rather than for environmental values. Only
in the last decades has the protection of a healthy environment become a matter of
great importance, both politically and socially, as well as juridically, in a close
relationship with the protection of the dignity of the human person. Despite national
standards and Brazil being a signatory to international treaties on protecting the
environment, in practice, cases of clear violation of this right are not uncommon, among
which is the lack of drinking water and basic sanitation in different regions of the
country. For that, a descriptive and exploratory method was used, based on national
legislation, international treaties, doctrines, cases and sites.
Key-words: Environment. Environmental Disasters. Human rights.

INTRODUÇÃO

A proteção da pessoa humana no que tange ao meio ambiente tornou-se uma


preocupação crescente não só na esfera nacional, como também internacional, com
a inserção tanto no território brasileiro como na ordem externa de documentos
inerentes a proteção dos direitos humanos no campo do direito ambiental.
Porém, para que haja um desenvolvimento sustentável na esfera econômica
sem prejuízo ao meio ambiente, mister que valores e paradigmas venham a ser
mudados para se adequarem à nova realidade jurídico-social que norteiam o meio
ambiente no século XXI, tendo em vista que o meio ambiente , segundo Jose Afonso
da Silva é: “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que
propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em toda as suas formas”1.
Para que isso se dê, necessário que o ser humano, acostumado nos últimos
tempos a pensar de forma imediatista e não a longo prazo, passe a ver questão
ambiental como um tema a ser trabalhado visando a si próprio, as gerações

1
SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 2.
197

presentes, bem como as vindouras, por meio de ações estatais e não estatais, que
evitem ou ao menos mitiguem violações aos direitos da pessoa humana.
Diante dessa realidade, mister tratar o saneamento básico e a sua falta dentro
de grande parte do Estado brasileiro, direito esse reconhecidamente como um direito
humano na seara nacional e internacional, que uma vez não observado, fere o meio
ambiente, bem como a dignidade da pessoa humana.

1 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DESDE A MODERNIDADE

Os direitos humanos como conhecemos hodiernamente remonta à Revolução


Francesa, época em que os direitos civis e políticos foram pleiteados pelo povo e, que
surgiu a Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão, limitando o poder dos
governantes até então defendido, bem como o lema Liberté, Egalité et Fraternité que
veio a nortear às três primeiras gerações ou dimensões de direitos humanos, com um
novo regime de leis.
A partir de então, iniciou-se reivindicações a direitos variados nas diversas
esferas sociais, surgindo gradativamente a necessidade de lutar por direitos. Assim,
passasse a dividir modernamente os direitos humanos, em três principais gerações
ou dimensões, como alguns autores preferem. Outros estudiosos ainda acrescentam
uma quarta e ainda há outros que já inserem uma quinta e uma sexta dimensão.
Tem-se a priori, no início no século XVIII, pós Revolução Francesa, a
reivindicação de direitos civis e políticos, denominados de “direitos da liberdade”,
sendo chamados de direitos de primeira geração ou dimensão.
Já os direitos de segunda geração ou dimensão surgiram no cenário mundial
em meados do século XIX, com o advento da Revolução Industrial com políticas
visando o desenvolvimento econômico-social por meio de uma intervenção estatal,
até então mínima.
Além dessas duas primeiras gerações, aceitas de forma unânime pela doutrina,
como dito anteriormente, há outras gerações mais recentes.
No que se refere a gênese da terceira geração/dimensão dos direitos humanos
não há um marco histórico preciso que configure, e nem mesmo existe uma
unanimidade doutrinária em considerá-la como mais uma geração ou dimensão.
Contudo, a maioria doutrinária considera seu surgimento no século XX, sendo
denominada de direitos da fraternidade ou solidariedade, cujos objetivos é a
preservação da paz, do desenvolvimento, do progresso, do direito ambiental, dentre
outros direitos difusos, sendo tido, por isso, uma geração extremamente heterogênea
e ampla
Vale frisar, que foi somente com o pós Segunda Guerra Mundial, que a
preocupação com um ambiente saudável, bem como a um desenvolvimento
sustentável passam a serem objetos de discussões dos Estados com a inserção de
um número cada vez maior de documentos de prevenção e proteção nas esferas
nacional e internacional, com o escopo de mitigar os danos ambientais, e assegurar
uma vida digna, para as gerações presentes e futuras.2
O certo é que conforme lições de José Rubens Morato Leite e Ney Bello Filho
“O direito ambiental é o novo marco jurídico de emancipação que permitirá a

2
Para o constitucionalista português Gomes Canotilho, o direito de terceira geração na verdade configuraria um direito de quarta
geração em razão de estar em causa direito dos povos. Para ele a primeira dimensão trata dos direitos da liberdade, a segunda
dimensão dos direitos de participação política, a terceira dos direitos sociais e dos trabalhadores e a quarta dimensão ou geração
dos direitos dos povos, no qual se incluía a proteção do meio ambiente. CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria
da Constituição.7ª Edição. Coimbra: Almedina, p. 386.
198

ampliação da cidadania no século XXI”3 ganhando relevância nas constituições de


diversos países como um direito fundamental, incluso no nosso ordenamento pátrio.
Outras gerações ou dimensões posteriores também surgiram, como a quarta
que trata dos direitos ligados questões sobre globalização e ao biodireito, conforme
elucida Norberto Bobbio, a quinta geração que aborda direitos ligados a internet e a
cibernética, porém com relação a essas duas dimensões há algumas celeumas 4 e,
por fim, a sexta, que aborda a água potável e o saneamento básico como mais um
direito humano, estando este relacionado diretamente à questão ambiental.

2 DIREITO AMBIENTAL E A SUA PROTEÇÃO JURÍDICA COMO UM DIREITO


HUMANO

2.1 PROTEÇÃO FUNDAMENTAL PELO DIREITO PÁTRIO

A Constituição Federal de 1946 foi a primeira a elencar no seu bojo o direito


ambiental, porém com a sua revogação o assunto deixou de ser uma preocupação
estatal.
Ainda na primeira metade da década de 1970 o direito ambiental era um tema
relegado a plano secundário pelo Estado, tendo em vista que a ânsia por um
desenvolvimento e crescimento econômico estava em primeiro lugar, apesar de
algumas posições contrárias a esta postura.5
Apesar de algumas defesas nesse sentido o Brasil ainda se pautava no
conceito de soberania absoluta, no qual o mesmo poderia aproveitar de seus recursos
naturais por meio de explorações desenfreadas, visando seu desenvolvimento, em
detrimento de uma proteção a um meio ambiente equilibrado. Essa postura se deve a
própria realidade do direito ambiental à época, que vivia a chamada primeira
dimensão, ou seja, “baseava em regras que não ultrapassava o limite do Estado.”6
Somente com o advento da década de 1980, é que algumas visões passaram
a ser alteradas e a publicação da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente – Lei
6.938/1981- o tema passou a ser definido no ordenamento nacional.
Já a Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano de 1972 assegurou
a “correlação de dois direitos fundamentais do homem: o direito ao desenvolvimento
e o direito a uma vida saudável”.7 Essa ideia foi trazida pelo constituinte originário em
1988, passando a ser o direito a um ambiente digno e não poluído um direito
fundamental, e a sua violação um ferimento aos direitos humanos. Assim, com a
elaboração da Constituição Federal Brasileira de 1988 (CF/88) o direito ambiental se
consagrou como um direito fundamental do ser humano8, tratando do tema em
algumas normas constitucionais como os artigos 23, incisos III, IV, V VI, VII, IX; 170,
inciso VI e mais especificamente em seu artigo 225, caput que prevê, in verbis:

3
MORATO LEITE, José Rubens e BELLO FILHO, Ney de Barros (org.) Direito Ambiental Contemporâneo. São Paulo: Manole,
2004, p. 639.
4
A doutrina mais moderna já trata de uma sexta de geração ou dimensão de direitos humanos, como sendo o Direito a água
potável e o saneamento básico.
5
Araújo Castro, diplomata brasileiro junto ONU de 1968 a 1971, é um exemplo dessa posição contrária ao perpetrado pelo
governo brasileiro.
6
MORATO LEITE, José Rubens. Em palestra proferida na Universidade Anhanguera/Uniderp, Campo Grande/MS, em 26 de
setembro de 2008.
7
ONU. Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano de 1972. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br>. Acesso: 11 de out. de 2018.
8
No Brasil, as Constituições anteriores à de 1988, não consagravam regras específicas sobre o meio ambiente. A Constituição
Federal de 1946 foi a única que trouxe menção sobre o direito ambiental, estabelecendo a competência para a União legislar
sobre a proteção da água, das florestas, da caça e pesca.
199

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de


uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para às
presentes e futuras gerações.9

Na década de 1990, outras normas referentes à proteção ambiental estão


elencadas na Lei 9.605/98, art. 29, §§ 2º e 4.º, Lei 9.714/98 dentre outras, ampliando
a legislação pátria sobre o assunto. De modo mais específico, em 2007 foi criada a
Lei 11.455 de 2007, também conhecida como Lei do Saneamento Básico.
A partir de então, o Estado Brasileiro passou a se engajar cada vez mais nas
questões relativas ao desenvolvimento sustentável, no âmbito internacional, como
veremos a seguir.

2.2 DIREITO AMBIENTAL E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS


HUMANOS

A preocupação inicial com a questão ambiental tem sua gênese no século XIX,
porém com um intuito preservacionista da fauna da flora e rios. Somente na década
de cinquenta do século XX é que tal ramo do direito passou a tratar não só da
preservação, mas também da prevenção do meio ambiente contra o aumento de
poluição à época, por meio de uma cooperação internacional.
Porém a internacionalização das questões relativas a proteção dos direitos
humanos frente ao meio ambiente deu-se com o advento da Carta das Nações Unidas
e outras tantas convenções internacionais, em que se destacam a Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente ocorrida em 1972 em Estocolmo, Suécia e
vinte anos mais tarde com a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento10, em 1992 no Rio de Janeiro, ampliando dessa forma o rol de
abrangência das questões a serem tratadas.
Dentre os documentos que passam a ser criados com o fito de preservar e
proteção o meio ambiente e ao mesmo tempo estimular o desenvolvimento econômico
e social com sustentabilidade, alguns se destacam sobremaneira como por e.g. a
Declaração sobre o Meio Ambiente Humano das Nações Unidas, adotada em
Estocolmo no ano de 1972, e vinte anos depois, a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, sediada no Rio de Janeiro em 1992, mais
conhecida como ECO-92, que reafirmou os princípios da Declaração de Estocolmo,
realizada vinte anos antes, e inseriu outros princípios acerca do desenvolvimento
sustentável, bem como a implementação do Protocolo de Quioto.
O certo é que a relação do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do
Direito Internacional ambiental torna-se cada vez mais estreita e evidente, em que “As
normas de proteção internacional ao meio ambiente têm sido consideradas como um
complemento aos direitos do homem, em particular o direito à vida e à saúde
humana11.
As preocupações com o meio ambiente deixam de cuidar tão somente do efeito
da poluição em determinado espaço físico e passa a tratar dos problemas que
envolvem um meio ambiente saudável e sustentável em nível global, em que a
resolução de tais problemas passa ser de competência do conjunto Estado soberanos,

9
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
10
Desenvolvimento sustentável ou desenvolvimento sustentado é “aquele que não sacrifica seu próprio cenário, aquele que não
compromete suas próprias condições de durabilidade”. REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva,
2008, p. 245.
11
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas, 2003, p. 173.
200

e um dever a ser compartilhado por toda a sociedade que na grande maioria dos casos
arca apenas com o ônus dos problemas que afligem a natureza e o ser humano.
Dentre esses problemas centrais que atingem o ser humano e o meio ambiente
está a ausência de saneamento básico nos países em desenvolvimento e
subdesenvolvidos, em que “em todo o mundo, cerca de [...] seis em cada dez — ou
4,5 bilhões — carecem de saneamento seguro, de acordo com novo relatório da
Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF)”12, sendo essa uma realidade de parcela do Estado brasileiro.
Diante dessa realidade, o saneamento básico foi reconhecimento
internacionalmente pela Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) como mais um
direito humano, sendo inserido como sexta dimensão ou geração de direitos humanos.

3 O BRASIL E A FALTA DE SANEAMENTO BÁSICO

A água potável e o saneamento básico são praticamente inexistentes em


algumas localidades do país, especialmente as regiões norte e nordeste, situação que
coloca em risco não só a vida e saúde da população, diante da inércia do Estado em
clara violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, como também polui em
grande parte dos casos o meio ambiente.
Na seara nacional, a Constituição da República Federativa do Brasil traz em
artigo 23, inciso IX, a estipulação da competência comum dos entes federados, isto é,
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “promover programas de
construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento
básico”13
O Estatuto das Cidades de 2001 em seu artigo 2º, I que a: “garantia do direito
a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao
saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos,
ao trabalho e ao lazer, para às presentes e futuras gerações”.14
Já a Lei 11.455 de 2007 ou Lei do Saneamento Básico, estabeleceu Diretrizes
nacionais e Políticas de saneamento, abrangendo o abastecimento de água potável,
esgotamento sanitário, a limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, a drenagem e
manejo das águas pluviais urbanas.15
No mesmo sentido, o próprio governo define o saneamento básico como “todo
o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações relativas ao abastecimento de
água potável, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo das
águas pluviais dos centros urbanos e rurais”16
Não obstante os documentos jurídicos, segundo dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) de, 2007, cerca de 34% da população morava em
habitações inadequadas em que “Apenas 52,5% dos domicílios brasileiros têm
abastecimento de água, esgoto sanitário ou fossa séptica, coleta de lixo [...]” 17. Na
mesma senda, o IBGE ainda traz que:

12
ONUBR. ONU: 4,5 bilhões de pessoas não dispõem de saneamento seguro no mundo. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/onu-45-bilhoes-de-pessoas-nao-dispoem-de-saneamento-seguro-no-mundo/>. Acesso em: 15 de out.
2018.
13
Art. 23, IX. da Constituição Federal de 1988. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado
Federal, 1988.
14
Artigo 2º, 1 da Lei 10. 257 de 10 de julho de 2001 - Estatuto da Cidade. São Paulo: Saraiva, 2001.
15
BRASIL. Lei 11.455 de 2007
16
BRASIL. Governo do Brasil. Por que o saneamento básico é tão importante para as cidades?. Disponível
em:<http://www.brasil.gov.br/noticias/meio-ambiente/2018/03/por-que-o-saneamento-basico-e-tao-importante-para-as-
cidades>. Acesso em: 15 de out. 2018.
17
Globo. Apenas 52,5% das moradias do Brasil têm condições adequadas, diz IBGE. Disponível
em:<http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/10/apenas-525-das-moradias-do-brasil-tem-condicoesadequadas-diz-bge.html>.
201

[...] 2,3 milhões de moradias (4,1%) são precárias, sem o mínimo de


infraestrutura. Entre as regiões do país, o Norte apresentou o pior quadro,
com apenas 16,3% de domicílios considerados adequados. Já no Sul
(68,9%) e no Sudeste (59,35%) mais da metade das casas está ligada a
redes de saneamento básico. (IBGE, 2010) 18 [em que] cerca de 4,8
milhões de crianças de até 14 anos estão expostas a riscos de doenças
por residirem em lares sem estrutura de saneamento básico. 19

O acesso a água potável, bem como ao saneamento básico é fundamental,


pois o propicia ao mesmo tempo ao proteção do meio ambiente, pois coíbe que se
jogue dejetos e lixos nos rios, mangues e mares, por exemplo, como também permite
que o ser humano usufrua de um bem-estar físico, ao evitar doenças a proliferação
infecciosas20 entre crianças e adultos/idosos.
No campo do meio ambiente, mais precisamente, de acordo com o Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, a ausência de saneamento
básico é um dos piores problemas ambientais, pois polui as águas do planeta (doce e
salgada), como também “o solo, lençóis freáticos e reservas de água, levando à
morte de animais e reduzindo a quantidade de água potável disponível [em que] os
prejuízos podem se estender para a agricultura, comércio, indústria, turismo e outros
setores da economia”.21

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A doutrina passou a considerar como Direito Humano de Terceira Geração o


direito a um ambiente ecologicamente equilibrado, e a sua violação como afronta aos
direitos humanos fundamentais dispostos na Carta Magna.
Essa preocupação se dá, sobretudo porque quando falamos em meio ambiente
saudável vivendo em conjunto com um desenvolvimento sustentável, tratamos de
questões que vão incidir não só na atualidade, mas que também terão influência nas
gerações futuras, como é o caso da ausência de saneamento básico suficiente em
todo o país.
Desse modo, se não pudermos viver num planeta não poluído e sem ameaças
que coloque em risco a sua preservação, a própria existência do ser humano no
planeta estará ameaçada com consequências de difícil reparação e solução.
Vale lembrar que os problemas ambientais são multidimensionais e
transtemporal, assim quando tratamos de proteção ao meio ambiente, necessário se
faz um trabalho conjunto entre o Poder Público e a sociedade, por meio de medidas
educativas e métodos de implementação de saneamento básico não apenas em
determinadas regiões e grandes cidades, mas de modo global em todo o país, para
que não somente o meio ambiente seja protegido, mas também o próprio ser humano,
visando um alcance a todos indistintamente.

Acesso em: 30 set. 2018.


18
IBGE. Metade das moradias do Brasil tem condições inadequadas, diz IBGE. Disponível em: <http://
www.abc.habitacao.org.br/homologacao/index.php/aproximadamente-metade-das-moradias-do-brasil-tem-condicoes-
inadequadas-diz-ibge/>. Acesso em: 3 out. 2018.
19
DINÂMICA AMBIENTAL. Quais são os riscos da falta de saneamento básico?. Disponível em:<
https://www.dinamicambiental.com.br/blog/meio-ambiente/sao-riscos-falta-saneamento-basico/>. Acesso em: 14 de out. 2018.
20
São exemplos de doenças associadas à falta de saneamento básico, dentre outras: esquistossomose, febre amarela, cólera,
dengue, disenterias e febre tifoide, podendo levar a morte de crianças e idosos, em casos mais graves.
21
DINÂMICA AMBIENTAL. Quais são os riscos da falta de saneamento básico?. Disponível em:<
https://www.dinamicambiental.com.br/blog/meio-ambiente/sao-riscos-falta-saneamento-basico/>. Acesso em: 14 de out. 2018.
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Atlas, 2003.
203

A PENSÃO ALIMENTÍCIA NA GUARDA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO


THE ALIMONY IN PETS GUARD

Carolina Araujo do Nascimento


Lara Costa Barroso Andrade de Oliveira

Resumo: Diante da enorme quantidade de animais de estimação no Brasil, conflitos


acerca de guarda de animais domésticos e a eventual ajuda financeira para o sustento
deste vêm sido trazidos à tona. A partir desses conflitos recentes, foi analisado, à luz
do ordenamento jurídico brasileiro, o instituto da guarda desses seres, a natureza
jurídica deles — se bens, coisas, seres sencientes ou pessoas — e observado, a partir
de jurisprudência, a natureza jurídica da ajuda financeira por parte de algum dos ex-
cônjuges. Foi percebido que, apesar de haver dois projetos de lei que abordam a
temática, nenhum deles foi incorporado ao ordenamento jurídico e, por conseguinte,
não foram utilizados nas decisões estudadas. Atualmente, os tribunais e o Superior
Tribunal de Justiça vêm se valendo de analogias e princípios do Direito para julgar tais
decisões, como nos três casos analisados.
Palavras-chave: Animais. Guarda. Alimentos.

Abstract: There are an enormous number of pets in Brazil, so, conflicts about pets
guardianship and eventual financial help for animal support have been brought to light.
Starting from these recent conflicts, it was analyzed, under the Brazilian legal system,
the institution of these beings’ guardianship, their legal nature —if they are property,
things, sencients beings or people — and observed, from jurisprudence, the legal
nature of financial help by some of the former spouses. It was noticed that, although
there are two law projects that approach the subject, none of them were incorporated
by the legal order and, therefore, used in the studied decisions. Nowadays, the courts
and Superior Justice Tribunal are using analogies and law's principles to judge the
demands, as it's seen in the three cases analyzed.
Keywords: Animals. Guard. Alimony.

1 INTRODUÇÃO

No senso comum, é consolidada a máxima de que “o cão é o melhor amigo do


homem”. Quando se trata de animais de estimação, não há dúvidas para alguns são
muito mais do que bens e sim membros da família. Inclusive, há famílias em que o
animal substitui um filho, desenhando assim novas configurações familiares que o
ordenamento jurídico brasileiro não alcança. Partindo disso, surgem questionamentos
acerca do futuro dos animais domésticos quando as uniões se dissolvem: como e com
quem ficarão esses animais e como eles serão mantidos?
Nesse sentido, o presente trabalho objetiva analisar a possibilidade de o
ordenamento jurídico brasileiro atender, tanto o pagamento de pensão alimentícia
quanto da própria guarda de animais domésticos, estudar o entendimento da doutrina
acerca da natureza jurídica dos animais enquanto bens, coisas ou pessoas, partindo
desse pressuposto, entender a natureza jurídica da ajuda de custo: se pensão
alimentícia ou mera contribuição para a mantença do suposto bem semovente
(animal) e observar o comportamento desse instituto na jurisprudência.
Esses objetivos foram investigados a partir da revisão bibliográfica de doutrina,
livros, periódicos e textos jornalísticos, bem como por análise de legislação e projetos
204

de lei acerca do tema. Também foi examinada jurisprudência dos tribunais de justiça
de São Paulo e Rio de Janeiro a fim de perceber como se comporta o tema na prática.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Considerando que os animais são mais que bens ou meros seres vivos, surge,
no direito civil francês, a figura do ser senciente, no qual se encaixam os animais
domésticos. Seres sencientes são aqueles que têm capacidade de sentir emoções
como amor, tristeza, felicidade, prazer, dor e responder a estímulos externos
negativos ou positivos (PRADA, 2008, p 10-14).
Contudo, no direito nacional os animais domésticos ainda são considerados
como coisas. Nesse toar, há o Projeto de Lei nº 351 (ou 3670, na Câmara dos
Deputados), de 2015, do senador Antonio Anastasia, que buscou alterar o Código Civil
Brasileiro, no sentido de não mais considerar os animais como coisas e sim bens
móveis, acrescentando o parágrafo único ao artigo 82 e inciso IV ao artigo 83, ambos
do referido código (BRASIL, 2015). O projeto em questão foi aprovado no Senado
Federal e atualmente aguarda revisão na Câmara dos Deputados.
Ocorre que, mesmo que não sejam mais considerados como coisas, ao
passarmos a tratar os animais de estimação como bens, não resta resolvida a questão
da guarda, uma vez que este instituto diz respeito a pessoas e não bens ou coisas.
Anos antes do mencionado projeto de lei, em 2010 o deputado Márcio França
propôs o Projeto de Lei nº 7196, que foi arquivado, que versa justamente “sobre a
guarda dos animais de estimação nos casos de dissolução litigiosa da sociedade e do
vínculo conjugal entre seus possuidores, e dá outras providências” (BRASIL, 2010).
Apesar de demonstrar avanço no tocante à guarda, o projeto de lei se limita a
mencionar, em sua justificação, que os animais são considerados como bens no
ordenamento jurídico brasileiro e nada acrescenta tanto quanto à natureza jurídica
que os animais eventualmente adquiririam com a aprovação do projeto, tanto quanto
ao dever de prestar alimentos.
Mesmo sem legislação vigente sobre o tema, há tribunais que já se esbarraram
em conflitos acerca da guarda de animais de estimação, o que até ensejou discussão
no Superior Tribunal de Justiça. Há o caso discutido no Tribunal de Justiça de São
Paulo, onde, no processo de origem, o juiz entendeu que o tema não era da
competência da vara de família e sucessões. Em decisão agravada, o TJ-SP decidiu
que a questão da guarda de animais domésticos é sim competência da vara de família
e ainda dá o nome ao litígio de “posse compartilhada e regime de visitas” (BRASIL,
2018):

AGRAVO DE INSTRUMENTO. Decisão que extinguiu a ação,


parcialmente, em relação ao pedido de “posse compartilhada e regime de
visitas” de cão de estimação do casal, por entender o MM. Juiz singular
que o Juízo da Família e Sucessões não é competente, pois a questão é
cível. Competência para julgar o pedido que é do juízo da 3ª Vara de
Família e Sucessões do Foro Central, em que se discute o
reconhecimento e dissolução de união estável. Recurso a que se dá
provimento.

Neste mesmo caso, em referência a caso anterior, o relator demonstra a


possibilidade de decidir em pela guarda, compartilhada ou não, de animais de
estimação analogicamente à guarda de crianças e adolescentes, diante da lacuna
legislativa, mesmo sem considerá-los pessoas (BRASIL, 2018).
205

Partindo de caso semelhante, originado também em São Paulo, o Superior


Tribunal de Justiça se debruçou sobre a problemática da guarda compartilhada de
animais domésticos. O conflito em análise trata da possibilidade de visita do ex-marido
à cadela adquirida pelos ex-cônjuges antes da separação. Em recurso especial, o STJ
reconheceu o direito de visitas do ex-marido, considerando o laço afetivo criado com
a cadela (BRASIL, 2018):

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DISSOLUÇÃO DE UNIÃO


ESTÁVEL. ANIMAL DE ESTIMAÇÃO. AQUISIÇÃO NA CONSTÂNCIA DO
RELACIONAMENTO. INTENSO AFETO DOS COMPANHEIROS PELO
ANIMAL. DIREITO DE VISITAS. POSSIBILIDADE, A DEPENDER DO
CASO CONCRETO.
1. Inicialmente, deve ser afastada qualquer alegação de que a discussão
envolvendo a entidade familiar e o seu animal de estimação é menor, ou
se trata de mera futilidade a ocupar o tempo desta Corte. Ao contrário, é
cada vez mais recorrente no mundo da pós-modernidade e envolve
questão bastante delicada, examinada tanto pelo ângulo da afetividade
em relação ao animal, como também pela necessidade de sua
preservação como mandamento constitucional (art. 225, § 1, inciso VII -
"proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que
coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de
espécies ou submetam os animais a crueldade"). 2. O Código Civil, ao
definir a natureza jurídica dos animais, tipificou-os como coisas e, por
conseguinte, objetos de propriedade, não lhes atribuindo a qualidade de
pessoas, não sendo dotados de personalidade jurídica nem podendo ser
considerados sujeitos de direitos. Na forma da lei civil, o só fato de o
animal ser tido como de estimação, recebendo o afeto da entidade familiar,
não pode vir a alterar sua substância, a ponto de converter a sua natureza
jurídica. 3. No entanto, os animais de companhia possuem valor subjetivo
único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos,
totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada.
Dessarte, o regramento jurídico dos bens não se vem mostrando
suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar
envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão atinente
à posse e à propriedade. 4. Por sua vez, a guarda propriamente dita -
inerente ao poder familiar - instituto, por essência, de direito de família,
não pode ser simples e fielmente subvertida para definir o direito dos
consortes, por meio do enquadramento de seus animais de estimação,
notadamente porque é um munus exercido no interesse tanto dos pais
quanto do filho. Não se trata de uma faculdade, e sim de um direito, em
que se impõe aos pais a observância dos deveres inerentes ao poder
familiar.
5. A ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação
do homem com seu animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais.
Deve-se ter como norte o fato, cultural e da pós-modernidade, de que há
uma disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de
ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela
preservação e garantia dos direitos à pessoa humana, mais precisamente,
o âmago de sua dignidade.
6. Os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem
natureza especial e, como ser senciente - dotados de sensibilidade,
sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais
racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado. 7. Assim, na
dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao
animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser
adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso
em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da
sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o
animal. 8. Na hipótese, o Tribunal de origem reconheceu que a cadela fora
206

adquirida na constância da união estável e que estaria demonstrada a


relação de afeto entre o recorrente e o animal de estimação,
reconhecendo o seu direito de visitas ao animal, o que deve ser mantido.
9. Recurso especial não provido.

Porém, mesmo que seja reconhecida a guarda compartilhada de animais de


estimação, ainda não há pronunciamento do STJ acerca do pagamento de pensão
alimentícia. Em caso recente, a ex-companheira ingressou com pedido contra o ex-
companheiro de colaboração para a mantença de seis cães e uma gata. Em segunda
instância, o desembargador Ricardo Couto de Castro entendeu que, mesmo que os
animais não sejam titulares de direitos alimentares, há gastos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. INDEFERIMENTO DE GASTOS


PROVISÓRIOS DESTINADOS À MANUTENÇÃO DE ANIMAIS DE
ESTIMAÇÃO, DIANTE DA ALEGAÇÃO DE PROPRIEDADE EXCLUSIVA
DA REQUERENTE. IRRESIGNAÇÃO. PROVA DA CONTRIBUIÇÃO DO
AGRAVADO COM O CUSTEIO DOS ANIMAIS MESMO APÓS O FIM DA
CONVIVÊNCIA. 1. Verificando-se a propriedade compartilhada dos
animais, adquiridos no curso da união estável, bem como a
impossibilidade da agravante de sustentá-los integralmente, imperioso o
deferimento da tutela de urgência requerida. 2. Os animais de estimação,
ainda que não titularizem direitos alimentares, geram despesas que
devem ser suportadas por ambos os proprietários, mesmo após a
dissolução da relação em comum. RECURSO A QUE SE DÁ
PROVIMENTO

Dessa forma, mesmo que não haja uma pluralidade de decisões acerca desta
temática, não há, ainda o que se falar acerca do pagamento de pensão alimentícia
para animais, uma vez que estes não são titulares desse direito. Portanto, o que é
devido ao ex-parceiro na dissolução de união estável ou divórcio é simplesmente uma
ajuda financeira do bem semovente, mesmo que este seja dotado de afeto recíproco,
como é o animal.

3 CONCLUSÃO

A partir do analisado, conclui-se que os animais de estimação, no ordenamento


jurídico brasileiro ainda são considerados como bens semoventes ou coisas. Apesar
disso, há uma movimentação da jurisprudência, apesar de discreta, em reconhecer os
"pets" como membros da família, aplicando analogicamente as disposições do direito
de família no momento do divórcio.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Projeto de Lei n. 351, de 2015. Acrescenta parágrafo único ao art.82, e


inciso IV ao art. 83 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para que
determinar que os animais não serão considerados coisas. DF: Senador Federal,
2015. Disponível em <https://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=3530571&disposition=inline>. Acesso em 24/10/2018.
BRASIL. Projeto de Lei n. 7196, de 2010. Dispõe sobre a guarda dos animais de
estimação nos casos de dissolução litigiosa da sociedade e do vínculo conjugal entre
seus possuidores, e dá outras providências. DF: Câmara dos Deputados, 2010.
Disponível em
207

<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=761274&f
ilename=PL+7196/2010>. Acesso em 24/10/2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1713167/SP, Rel Min. Luis
Felipe Salomão. Quarta Turma, julgado em 19/06/2018. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&seq
uencial=83443343&num_registro=201702398049&data=20181009&tipo=91&formato
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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento
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julgado em 11/04/2018. Disponível em:
<http://www4.tjrj.jus.br/EJURIS/VisualizaEmentas.aspx?CodDoc=3632006&PageSeq
=0>. Acesso em 24 de out. 2018.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento
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Direito Privado, julgado em 23/03/2018. Disponível
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Acesso em: 24 de out. 2018.
BRETAS, Valéria. STJ deve decidir ainda hoje sobre guarda compartilhada de
animais. Revista Exame, São Paulo, jun. 2018. Disponível em: <
https://exame.abril.com.br/brasil/stj-deve-decidir-ainda-hoje-sobre-guarda-
compartilhada-de-animais/>. Acesso em: 24 de out. 2018.
PARA TJ-SP, VARA DE FAMÍLIA DEVE JULGAR GUARDA COMPARTILHADA DE
ANIMAIS. Revista Consultor Jurídico, mai. 2018. Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2018-mai-13/tj-sp-vara-familia-julga-guarda-
compartilhada-animais>. Acesso em: 24 de out. 2018.
PRADA, Irvenia LS. Os animais são seres sencientes. I Simpósio Multidisciplinar
sobre Relações Harmônicas entre Seres Humanos e Animais. 2008.
208

ÁGUA E CULTURA INDÍGENA: SIMBOLOGIA DE COSTUMES E TRADIÇÕES


WATER AND INDIGENOUS CULTURE: SYMBOLS OF TRAJECTORIES AND
TRADITIONS

Viviane Simas da Silva


Larissa Campos Rubim

Resumo: Amazônia, com inúmeras peculiaridades tem na água uma preciosidade


ímpar, que chama a atenção do mundo. Entre lendas, mitos e contos, as comunidades
indígenas têm na água fonte de vida, intimamente ligada à cultura tradicional, sendo
reverenciada. É apresentado um panorama geral dos indígenas no Brasil, apresenta
origem dos rios e rituais relacionados à água, e apresentando uma visão de
preservação dos recursos hídricos. Foi utilizado o método dedutivo-qualitativo, através
da pesquisa bibliográfica, com uso de doutrina, jurisprudência e texto legal. Tem-se
na água um elemento da criação, de transformação, cuja relação com o homem é de
solidariedade, no âmbito mítico, marca o início das relações entre os homens e os
outros domínios, sendo reverenciada como integrante da família, trazendo consigo
toda uma simbologia carregada de tradições e costumes.
Palavras-chave: Água. Origem dos Rios. Rituais Indígenas. Preservação da água.

Abstract: Amazon, with many peculiarities has in the water a unique preciousness,
which attracts the attention of the world. Among legends, myths and tales, indigenous
communities have a source of life in the water, closely linked to traditional culture, and
revered. It presents an overview of the natives in Brazil, presents the origin of rivers
and rituals related to water, and presents a vision of preservation of water resources.
The deductive-qualitative method was used, through bibliographical research, using
doctrine, jurisprudence and legal text. There is in the water an element of creation, of
transformation, whose relationship with man is one of solidarity, in the mythical context,
marks the beginning of relations between men and other domains, being revered as a
member of the family, bringing with it a whole symbology laden with traditions and
customs.
Keywords: Water. Origin of the Rivers. Indigenous Rituals. Preservation of water.

INTRODUÇÃO

A Amazônia, terra particularmente diferente das outras em seu clima, solo e


vegetação, trás com o homem tradicional um misto de culturas e tradições na busca
da construção de uma sociedade o meio do paraíso verde. Detentor do maior volume
de água doce do planeta, o Brasil, segundo informações disponíveis no sitio oficial da
ANA – Agencia Nacional de Águas, estima-se em torno de 12%, cuja maior parte
(70%) dessa água está na bacia Amazônica.
Em meio a um povo que vive em função das cheias e vazantes dos rios, as
significações simbólicas da água estão cotidianamente vivas e presente como ocorre
em todas as culturas desde as mais antigas tradições carregadas de misticismo. Para
Chevalier, através dos mitos e religiões, as alegorias sobre a água eram relacionadas
com símbolo e a origem de vida, meio de purificação e cerne de regenerescência
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988).
Entre lendas, mitos e contos, as comunidades indígenas têm na água fonte de
vida, intimamente ligada à cultura tradicional, sendo reverenciada e cultuada como um
deus que dá e tira a vida. No entanto, muitas comunidades indígenas têm sido
209

vilipendiadas em seu modo de viver com a contaminação das águas, com a “matança
dos rios”, e consequentemente exterminando as tradições que jamais tornaram a ser
realizadas, apesar do amparo constitucional.
A Carta Magna em seu Parágrafo 1º do Artigo 231 confere aos índios a posse
permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos
existentes nas terras indígenas, que são as terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios, “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao
seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições”.
Em uma breve análise este trabalho busca demonstrar a relação mística e cheia
de simbologia existente ante as comunidades indígena e a água, sob um aspecto
amplo, entendendo a origem das águas, seus rituais e perdas culturais oriundas da
degradação do meio ambiente. Enredando esta linha de ideias, tem o presente
trabalho utilizará o método dedutivo-qualitativo, através da pesquisa bibliográfica, com
uso de doutrina, jurisprudência e texto legal, sob a égide que “os povos indígenas da
Amazônia sempre tiveram uma relação de respeito com a água, que é passada de
geração para geração desde os ancestrais, sendo reverenciada” 1.
No campo das ciências, quem estuda a relação dos povos com a água é a
etnografia, que abordam as peculiaridades de um povo, sua cultura, suas atividades
e sua relação com a natureza (MAGNANI, 2009). O índio e a natureza sempre tiveram
uma relação harmoniosa e de respeito, no entanto, ao se adaptarem aos costumes
dos outros povos (“homem branco”), os indígenas mudam costumes, inclusive em
relação com a água (JUNQUEIRA, 2004). O respeito e todas as crenças em torno da
água tem se perdido, pois, os jovens muitas vezes não querem aprender sobre sua
própria cultura, preferindo as tecnologias que estão disponíveis a eles hoje em dia
(AZANHA, 2005).

1. PANORAMA DOS INDÍGENAS NO BRASIL

Atualmente no Brasil, vivem aproximadamente 734 mil índios2, distribuídos


entre 241 sociedades indígenas. Esses dados equivalem não somente àqueles
indígenas que vivem em aldeias, mas também os que estão vivendo fora das terras
indígenas, inclusive em áreas urbanas, como os povos ainda sem contato com a
sociedade nacional e outros que hoje reassumem suas identidades étnicas até então
ocultadas (OLIVEIRA, 1999, p. 27)3. Tem sua história intimamente vinculada ao
descobrimento do Brasil que “do ponto de vista, do conquistador, seus acontecimentos
e suas práticas serviram para o desenvolvimento” da população, promovendo o
progresso e a civilização. Mas, na ótica dos povos indígenas e do discurso civilizador,
o que existiu na verdade foi uma negação das suas histórias, culturas, costumes,
religiões e valores (VIEIRA, 2004, p. 9).
Na colonização, somente o empreendedorismo do colonizador português não
bastavam para o êxito, uma vez que a tarefa de coletar da mata produtos espontâneos
exigia um modo de vida específico, sendo relevante a contribuição indígena, que

1
Fala da brasileira Maria Alice Campos Freire, do Conselho Internacional das Treze Avós Indígenas, no 8º Fórum Mundial da
Água, realizado em Brasília, no período de 18 a 23 de Março de 2018.
2
Cf.dados do CIMI-2007 (www.cimi.org.br)
3
Cf. a leitura de OLIVEIRA, João Pacheco de. A problemática dos índios misturados e os limites dos estudos americanistas: um
encontro entre a antropologia e a história. In: OLIVEIRA, João Pacheco de. Ensaios em antropologia histórica. Rio de Janeiro,
UFRJ, 1999.
210

mostrou ao homem branco como pescar, como comer, como dormir em


rede, como caçar, como remar. Deu-lhe lições diárias como viver nos
trópicos amazônicos, inclusive tomando banho várias vezes ao dia.
Contribuiu com a sua linguagem, o seu folclore, os seus hábitos de vida
cotidiana para que o português, incorporando esses valores, pudessem
mais facilmente assenhorar-se da terra, amansá-la, extrair das florestas a
das águas os elementos que viriam pesar no comércio regional [...]
(TOCANTINS, 1969, p. 41).

Mediante o exposto, afirma Leonardo Tocantins que este índio veio a ser um
agente do processo econômico e, portanto, a peça mais importante na colonização
amazônica, pois, foi ele quem instruiu o homem, ensinou na prática a exploração das
riquezas naturais, em um meio completamente estranho ao europeu, transmitindo a
sua técnica de trabalho, colaborando nas tarefas comuns à sociedade.
Aparecendo sempre de forma estereotipada, etnocêntrica, o índio de uma
maneira genérica, onde “o outro é o aquém ou o além, nunca o igual ao eu” (ROCHA,
2000, p.10). Em sua história tem-se por complexas as relações vividas entre o grupo
e o seu espaço físico que ocuparam, devendo sob a ótica de Guimarães, “[...] revisitar
o passado que não pode ser desvinculado das demandas e exigências de um tempo
presente” (GUIMARÃES, 2007, p. 23-42).
O estereótipo pode ser entendido como “um modelo rígido a partir da qual se
interpreta o comportamento de sujeitos sociais, sem considerar o seu contexto de
intencionalidade [...] Funciona como um padrão de significados utilizado por um grupo
na qualificação do outro” (FLEURI, 2006, p. 498).
Nesse entendimento em uma manifestação estereotipada, é possível identificar
um conjunto de descrição a grupos de sujeitos, colando-os à natureza para torná-los
fixos, como o fazemos mesmo de maneira inconsciente com os indígenas. Com base
nessa afirmação destaco algumas manifestações estereotipadas (VIEIRA, 2008, p.
73) escritas pelos estudantes, objeto do trabalho de Carlos Naguilis Vieira, os quais
são transcrito abaixo:

Índio é uma cultura que vive só nas matas que não tem comida, não tem
forno para fazer as coisas. Eles pintam a cara, vivem em tribo, dançam
todos os dias, não conhecem muitas coisas, caçam onças e etc. Se
vestem com penas, se enfeitam com dentes, peles de animais. Eles fazem
algum ritual todo dia e moram na casa de palha. (aluno, 11 anos, 6º ano –
Escola A – Material coletado no ano de 2005).
Os índios fazem arco e flecha para se defenderem e eles fazem colar e
pulseira de tudo, mas o que mais fazem é de semente de planta. Eles
fazem casa de palha e é uma cultura, mas tem gente que não gosta dessa
cultura dos índios, não sei por quê? Eu acho muito interessante a cultura
deles. (aluno, 11 anos, 6º ano – Escola A - Material coletado no ano de
2006).
Eu sei que os índios são povos antigos que vivem em floresta e eles vivem
até hoje. Os portugueses foram os primeiros a conhecer os índios e até
hoje existem aldeia no Brasil. (aluno, 12 anos, 7º ano – Escola B -Material
coletado no ano de 2007).
Que é um povo diferente, que se pintam, andam quase nus e tem um estilo
de vida diferente do nosso. Adora o sol, a lua e fazem até danças para
eles. Eles ainda moram em aldeia, em tribos e são muito unidos. Plantam,
caçam e pescam para sobreviver. (aluna, 13 anos, 8º ano – Escola A -
Material coletado no ano de 2006).

Deve-se levar em conta as considerações de Gomes (2007, p. 43-63) de que a


cultura histórica não é primazia só do conhecimento histórico em sentido restrito,
211

abarcando outros campos, como a literatura e o “folclore”. Seguindo a autora,


observamos que uma cultura histórica pode conformar-se articulada a uma cultura
política e que o estudo das duas nos permite a compreensão de como uma
determinada “[...] interpretação sobre o passado foi produzida e consolidada através
do tempo, integrando-se ao imaginário ou à memória coletiva de grupos sociais,
inclusive os nacionais” (GOMES, 2007, p. 46-48).

2. ORIGEM DOS RIOS: uma visão indígena

A água, elemento central da reprodução simbólica dos povos indígenas e


comunidades tradicionais. Presente em inúmeros mitos de criação dessas
populações, da qual as divindades separaram as terras firmes das águas. Também
aparece nos mitos criadores das próprias sociedades. Presente na criação do mundo,
as águas são consideradas dádivas divinas abundantes e por isso mesmo o seu
desaparecimento significa o fim da própria sociedade (Diegues, 1998).
Muitas são as histórias e lendas que surgem nas diversas culturas e
comunidades indígenas. Sobre o Rio Amazonas, conta-se que dois noivos
apaixonados de planejavam se casar. Ela vestia-se de prata e seu nome era Lua. Ele
vestia-se de ouro e o seu nome era Sol. Lua era a dona da noite e Sol era dono do
dia. Havia um obstáculo para o namoro de ambos. Se eles se casassem o mundo se
acabaria. O ardente amor de sol queimaria a terra toda. O choro triste da Lua toda a
terra afogaria. Apesar de apaixonados, como poderiam se casar? A Lua apagaria o
fogo? O Sol faria toda a água evaporar? Apaixonados, se separaram e nunca puderam
se casar.
No desespero da saudade, a Lua chorou durante todo um dia e uma noite. Suas
lágrimas escorreram por morros sem fim até chegar ao mar. Mas o oceano,
bravio, não queria aceitar tanta água. A sofrida lua não conseguiu misturar suas
lágrimas às águas salgadas do mar e foi assim que algo estranho aconteceu. As
águas formadas com as lágrimas da lua escavaram um imenso vale, onde
também muitas serras se levantaram. Um imenso rio apareceu inundando vales,
florestas e lugares sem fim. Eram as lágrimas da lua, que de tanta tristeza, formaram
o rio Amazonas, o rio-mar da Amazônia (PINTO, 1955).
Diante do exposto, as significações simbólicas e místicas da água estão
presentes em todas as culturas desde as mais antigas, permeadas de conteúdos
mágicos. Através dos mitos e religiões, estas alegorias sobre a água eram
relacionadas com símbolo e a origem de vida, meio de purificação (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1988).
Assim, os rituais indígenas e em diversas mitologias, as águas doces originam
o mundo e as culturas humanas. Nas sociedades tradicionais e contemporâneas,
marcadas pela religião, as águas doces têm um valor sagrado que tem se perdido nas
sociedades modernas. Lugares de onde vertem as águas, como as fontes e as grutas
consideradas sagradas, muitas transformados em locais de culto e devoção.

3. RITUAIS INDÍGENAS COM A ÁGUA

Podemos entender como cultura o modo no qual um grupo de pessoas vive,


pensa, sente, organiza-se, celebra e compartilha a vida. “Em todas as manifestações
e expressões da cultura subjaze um sistema de significados, de valores e critérios, de
visões do mundo que são traduzidos em linguagens, gestos, símbolos, estilos e
modos de vida, assim como na percepção, análise, interpretação e avaliação da
212

realidade através da ação e da expressão” (UNESCO, Estocolmo, 1998, p.12).


Compartilhando uma mesma cultura, cada grupo sua própria identidade e, com ela, o
grupo desenvolve uma segurança coletiva para enfrentar e superar os desafios de seu
ambiente natural e social.
Com a água, encontramos a possibilidade do fortalecimento dos aspectos
físicos e psicológicos do indivíduo, fazendo amadurecer através de rituais de imersão,
sem alterar a substância do ser. A água é um elemento da criação, é um elemento da
transformação. Sua relação com os homens é de solidariedade, no âmbito mítico,
marca o início das relações entre os homens e os outros domínios, como indica
Gruoioni

Foi o dono-controlador do mundo aquático que ensinou aos homens a cura


das doenças. As plantas medicinais são do domínio terrestre, mas seu
conhecimento e as regras de sua manipulação para o benefício dos
homens foram adquiridos no mundo aquático através da mediação de um
xamã e de sua relação com o dono-controlador deste domínio
(GRUPIONI, 1994, p. 150-151).

Os rituais possuem aspectos simbólicos que transcendem a organização social,


relação e parentesco, transmissão de nomes e prerrogativas. O canto, a coreografia
e os ornamentos, dos quais os homens se apropriaram no tempo das origens, são
reproduzidos no ritual como manifestação da situação atual da humanidade no cosmo.
Os rituais de iniciação e nominação mostram que a humanidade Xikrin se constrói a
partir dos atributos dos diferentes domínios que compõem o universo. E a interligação
dos domínios, que tem no centro os próprios Xikrin, que permite a construção de sua
sociedade. Fazem-se também, menções da água como símbolo de poder espiritual e
força, e diversos são os rituais nos quais ela é utilizada (BRUNI, 1994). Dentre os
povos que a usam como símbolo material, espiritual e social, em suas crenças,
tradições e costumes, estão os indígenas (AZANHA, 2005).
Festas das Águas da etnia Pataxó, oportunidade que se celebra da chegada
das chuvas, celebram a fatura, pois ninguém consegue fazer água, nem tem o poder
de fazer chover. Os índios cantam e dançam para celebrar a chegada das chuvas. Eles
agradecem e pedem. No dia anterior à Festa das Águas, acontecem os casamentos e
os batizados da aldeia. Os rituais indígenas são marcados por muitos cantos com
dança, ora na língua portuguesa, ora na língua dos pataxós. Para os batizados, os
indígenas se reúnem na beira do lago que há na aldeia, e as crianças passam pela
bênção do cacique e do vice-cacique. Depois são banhadas na água.
Rituais de pesca, na tribo dos Enawenê Nawê que são pescadores experientes,
pegam os peixes com lanças ou os capturam com um veneno feito a partir do extrato
de um cipó. Na estação chuvosa, eles constroem represas intrincadas de madeira ao
longo dos rios para capturar grandes quantidades de peixes. Eles passam vários
meses acampados na floresta, defumando os peixes capturados numa casa
especialmente construída e, em seguida, enviam-nos de volta à aldeia de canoa. O
ritual mais importante é conhecido como Yãkwa, um intercâmbio, de quatro meses de
duração, dos alimentos entre os seres humanos e espíritos. Quando os homens e
rapazes chegam de volta dos campos de pesca, o alimento é trocado com o mundo
espiritual, em elaboradas cerimônias e rituais.

4. OS INDIOS E A PRESERVAÇÃO DA ÁGUA


213

Para as comunidades indígenas de países sul-americanos a água é tratada


como um membro da família e como algo sagrado, a ser conservado para as próximas
gerações. Defenderam a preservação dos rios e montanhas e criticaram as propostas
de privatização e venda de mananciais e aquíferos.
A brasileira Maria Alice Campos Freire, do Conselho Internacional das Treze
Avós Indígenas, explicou no 8º Fórum Mundial da Água realizado no período de 18 a
23 de Maio de 2018, que os povos indígenas da Amazônia sempre tiveram uma
relação de respeito com a água, que é passada de geração para geração desde os
ancestrais, devendo a água, preservada e, antes de se pensar no consumo, deve ser
observada como algo “que devemos reverenciar”. E continua expondo:

“Somos seres conectados. Para nós, a água é um ser vivo, divino de uso
e propriedade comunitária e, portanto deve ser compartilhada. Não
entendemos como se deve vendê-la. Sempre protegemos e insistimos que
nossos recursos naturais não fossem destruídos. Quando as propriedades
privadas começam o processo de destruição desses ecossistemas
ficamos sem possibilidade de coletar a água”.

Já Freya Antimilla, representando os povos Mapuche, do Chile, ainda no 8º


Fórum Mundial da Água defendeu que as respostas para os recentes descompassos
com a natureza, especialmente relacionados à água, estão nos povos originais
destaca:

“A água é vida. É a nossa mãe, é a nossa vitalidade e o equilíbrio com os


elementos da Terra, com os próprios elementos dessa natureza. É
equilíbrio da nossa maneira de viver com esses elementos. A escassez da
água e todos problemas que estamos vivendo e crescem cada vez mais
nasce desse desequilíbrio: só tirando, tirando, tirando. Sem dar
importância e deixando a biodiversidade de lado”,

Assim, é notório que as comunidades indígenas e seus representantes atuam


veementemente na proteção do meio ambiente em todos os seus aspectos,
protegendo a vida, considerando a água detentora da própria vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A luta pela água, e sua proteção, está vinculada a vida e cultura indígena, mitos,
contos e lendas, vinculados às religiões, tem suas as alegorias sobre a água eram
relacionadas com símbolo e a origem de vida, vinculadas ao meio de purificação, com
suas significações simbólicas e místicas da água estão presentes em todas as
culturas desde as mais antigas, permeadas de conteúdos mágicos, mantendo-se
presentes através da luta pela preservação da água com representação nos
movimentos sociais.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Alfredo Wagner B de. Conflito e Mediação. Os antagonismos sociais na


Amazônia segundo os movimentos camponeses, as instituições religiosas e o
Estado. Rio de Janeiro, 1993 (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do
Rio de Janeiro).
214

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2014.
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outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
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VIEIRA, Carlos Magno Naglis. “O Que Interessa Saber De Índio?”: Um Estudo A
215

partir das manifestações de alunos de escolas de Campo Grande sobre as


populações indígenas do Mato Grosso Do Sul. Campo Grande: Universidade
Católica Dom Bosco, 2008.
216

EFEITOS DA EC N° 96/2017: RETROCESSO DO BEM-ESTAR ANIMAL


EFFECTS OF EC N° 96/2017: REGRESSIONS OF ANIMAL WELFARE

Nilcinara Huerb de Azevedo


Deicy Yurley Parra Flórez
Valmir César Pozzetti

Resumo: Através da promulgação da EC n° 96∕2017, a prática da vaquejada, bem


como de outras modalidades desportivas que envolvam animais, passaram a ser
regulamentadas como manifestações culturais de cunho imaterial, não sendo, assim,
concebidas como atos de crueldade. O objetivo desta pesquisa foi o de analisar o §7°
do art. 225 da CRFB/88 e verificar, sob a ótica do bem-estar animal, se a vaquejada
não representaria hipótese de maus tratos; implicando, portanto, em afronta direta ao
preceito constitucional que prega a proteção da fauna contra atos de crueldade. A
metodologia utilizada foi o do método dedutivo; quanto aos meios a pesquisa foi a
bibliográfica e quanto aos fins foi a qualitativa. Concluiu-se que, de fato, a aprovação
daquela emenda constitucional foi capaz de conferir, em prol do entretenimento
humano, legitimidade a realização de condutas que suscitam o sofrimento animal,
tendo em vista a diversidade de infortúnios que lhes são perpetrados.
Palavras-chaves: EC n° 96/2017; bem-estar animal; vaquejadas

Abstract: Through the promulgation of EC No 96/2017, the practice of vaquejada, as


well as other sporting modalities involving animals, began to be regulated as cultural
manifestations of an immaterial nature, and were not therefore conceived as acts of
cruelty. The objective of this research was to analyze §7 of art. 225 of the CRFB / 88
and verify, from the point of view of animal welfare, whether the vaquejada would not
represent a hypothesis of mistreatment; implying, therefore, in direct affront to the
constitutional precept that preaches the protection of the fauna against acts of cruelty.
The methodology used was the deductive method; As for the means, the research was
the bibliographical one and for the purposes was the qualitative one. It was concluded
that, in fact, the approval of this constitutional amendment was able to confer, in favor
of human entertainment, legitimacy to conduct conduct that arouses animal suffering,
in view of the diversity of misfortunes that are perpetrated against them.
Keywords: EC n° 96/2017; animal welfare; vaquejadas

INTRODUÇÃO

A história da civilização é marcada pelo antagonismo do homem em relação à


natureza. Pautado na concepção utilitarista de que os animais deveriam servir às
finalidades antropocêntricas, permitiu-se que ao longo do tempo uma série de
serventias lhes fossem outorgadas, muitas das quais consideradas verdadeiros atos
de crueldade.
Com o advento de forças protecionistas, as quais passaram a ganhar maior
força em meados do século XVIII, o reconhecimento de que os animais, assim como
a espécie sapiens seriam capazes de sentir e sofrer, erigiu como um importante vetor
de combate ao especismo. Na esteira desse entendimento, o constituinte originário
brasileiro ao admitir a proteção dos animais contra condutas cruéis, para o fim de
garantir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado às presentes e futuras
gerações, estabeleceu limites ao uso dos animais, sejam estes decorrentes de causas
religiosas, econômicas ou mesmo desportivas.
217

A problemática que envolve esta pesquisa é: de que forma garantir aos animais
não-humanos o direito à dignidade, sem trabalho exaustivo ou cruel?
Para tanto, a justificativa dessa pesquisa consiste em analisar se com a
promulgação da EC n° 96/2017, pela qual passou a legitimar a vaquejada como
manifestação cultural de natureza imaterial, incorreu-se em afronta a preceitos
constitucionais, e, consequentemente a violação do bem-estar e dignidade dos seres
submetidos ao aludido desporto. A metodologia que se utilizará nessa pesquisa é a
dedutiva; quanto aos meios a pesquisa será bibliográfica e quanto aos fins, qualitativa.

1. SENCIÊNCIA E BEM-ESTAR ANIMAL

O dualismo entre o ser humano e os não-humanos pode ser compreendido


como a máxima concebida no decorrer dos séculos. A ideia de que os animais seriam
dotados de uma função meramente utilitarista edificou as bases estruturais sobre o
qual transportou o homem para o centro de todas as preocupações jurídico-filosóficas
e, consequentemente, admitiu-lhe como o único sujeito merecedor de consideração
moral e, consequentemente, jurídica.
A centralidade da figura humana emergiu a partir da visão do mundo ocidental,
especialmente através dos ideais judaico-cristãos. Para Aristóteles e São Tomás de
Aquino, principais adeptos desse prisma, os animais não-humanos seriam destituídos
de alma, de modo que quaisquer atos cometidos contra os mesmos seriam passíveis
de justificação (CHUAHI, 2009, p.11).
A natureza, segundo a corrente aristotélica, constituiria uma espécie de
hierarquia, de sorte que as criaturas de ínfima capacidade de raciocínio subsistiriam
em proveito das demais, sendo esse o pressuposto basilar para apartarem-se os
mestres dos seguidores (SINGER, 2010, p.145).
Seguindo a mesma vertente, São Tomás de Aquino (2015, p.302) contemplou
a ideia de que o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, fora atribuído
um valor espiritual mais expressivo quando comparado ao restante dos seres vivos.
Dessa forma, enquanto as criaturas racionais poderiam se auto-governar, as demais
por serem destituídas da capacidade de compreensão deveriam ser subjugadas:

Lo que tiene dominio de su acto es libre en el obrar, ― porque libre es


quien es causa de sí; sin embargo, lo que tiene necesidad de ser actuado
por otro para obrar, está sujeto a servidumbre. Luego toda criatura,
exceptuada solamente la intelectual, está sujeta a servidumbre. Mas, en
todo gobierno, a los libres se les provee por ellos, y a los siervos, para que
estén al servicio de los libres. Por tanto, la divina providencia atiende a las
criaturas intelectuales por ellas, y a las demás, en atención a ellas 1 .

O ideal antropocêntrico ganhou maior relevância, no século XVII, através da


teoria mecanicista de Descartes (2006) do qual dispunha que os animais eram
incapazes de sentir e sofrer, pois ainda que pudessem grunhir ou se contorcer diante
de um estímulo externo, suas ações corpóreas eram reduzidas a meros movimentos
mecânicos. Isto é, manifestavam apenas reflexos naturais decorrentes dos impulsos
que lhes eram impostos, mas não detinham a real compreensão sobre a sensação
produzida.

1
O que tem o domínio de seu ato é livre em ação, - porque livre é aquele que é causa de si mesmo; no entanto, aquele que
precisa ser executado por outro , está sujeito a servidão. Assim, todas as criaturas, com exceção do sujeito intelectual estão
naturalmente sujeitas à servidão. E em qualquer regime aos livres se os provê em razão de si mesmos, e aos servos para que
sejam úteis aos livres. Assim, pois, mediante a divina providência se provê às criaturas intelectuais em razão de si mesmas e às
demais criaturas em razão daquelas (tradução nossa).
218

Além dos supracitados pensadores, diversos outros nomes destacaram-se na


propagação dos ideais antropocentristas, dentre os quais: Platão, Sócrates, Thomas
Hobbes, Spinoza e John Locke (LEVAI, 2011, p. 9-10).
Para Naconecy (2006, p.66), o antropocentrismo moral ou também conhecido
como chauvinismo humanista, baseado nessa perspectiva, adota como principais
premissas o fato de que:

(I) Animais não têm status moral, pois eles não têm consciência,
racionalidade, linguagem, etc.
(II) Logo, em termos morais, não importa como os tratamos. Nenhum
tratamento é imoral – exceto pelos eventuais efeitos nocivos indiretos
sobre os humanos.
(III) Na prática, todo uso de animais por parte dos humanos está
eticamente permitido.

Sob essa ótica utilitarista, diversos argumentos surgiram ao longo do tempo


como mecanismos para legitimação de condutas atentatórias a sua dignidade e bem-
estar. De acordo com os estudos de Silva (2018, p.123), a forma de utilização dos
animais pode ser classificada em três grandes categorias, quais sejam: “enquanto
matérias-primas, enquanto prestadores de serviços e no contexto da sociedade
tecnocientífica”.
No primeiro grupo, o uso dos animais dá-se como um recurso essencialmente
alimentício, e também como meio para confecção de vestuários e adornos. No
segundo, estão inseridas as espécies empregadas como meios de transportes, guias
de cegos, auxiliares de busca e salvamento, apoio de funções de policiamento e
guarda doméstica, além daquelas que são aproveitadas na realização de espetáculos
de circo, atividades desportivas ou ainda em produções audiovisuais. A terceira
categoria, por sua vez, remonta ao aproveitamento de animais para fins científicos,
seja na área da tecnociência ou da bioindústria (SILVA, 2018, p.123).
Como se verifica, a atribuição da natureza de “bens” ou “coisas” aos não-
humanos, concepção adotada pela própria legislação brasileira a que lhes conferiu a
condição de “semoventes”, acabou por relegá-los a mera posição de propriedade
humana, donde “nunca possibilitará a emersão do animal como ser com valor
intrínseco ou inerente”, enaltecendo assim, a ideologia especista, uma vez que
evidencia a ausência de valor subjetivo próprio, isto é, aqueles são simples meios para
a concretização das necessidades humanas (PAZZINI, 2017, p.95).
Por outro lado, alinhavada a uma vertente menos intolerante do homem sobre
as demais formas de vida, despontaram, sobretudo, a partir do século XVIII, discursos
pós-antropocêntricos como ferramentas à superação do especismo e,
consequentemente voltados à defesa dos direitos dos animais, sendo a primeira
voltada a doutrina que prega o denominado Abolicionismo Animal, e a diversa, o Bem-
Estar Animal. No que tange a segunda, cerne da presente pesquisa, Rodrigues (2012,
p. 205) assim dispõe:

A primeira delas, escoltada pelos ditames preconizados pelo filósofo


australiano Peter Singer, que segue a trilha de Jeremy Bentham, mediante
um protecionismo utilitarista defende o bem-estar dos animais não-
humanos em razão do princípio da igual consideração de interesses, ainda
que, muitas vezes, em prejuízo de interesses individuais dos homens.
Esta preconiza que os Direitos dos Animais estão fundamentos no
respeito, no bem-estar, no valor intrínseco, na compaixão, na
sensibilidade ao q\sofrimento, na inteligência e outros conceitos de
ordem moral, tendo estreita relação com produtividade e saúde dos não-
219

humanos. Ou seja: a questão atrelada aos deveres do ponto de vista ético


e não, do Direito (grifos nossos).

Partindo da premissa de que os animais são seres sencientes, munidos da


capacidade de ter “sensações como dor, fome e frio; emoções relacionadas com
aquilo que sente, como medo, estresse e frustração; consciência de suas relações
com outros animais e com os seres humanos, etc.” (NACONECY, 2006, p. 117), em
suma, de possuir consciência sobre tudo o que está ao seu redor e os acomete, o ser
humano deve evitar ações de maus-tratos que contra aqueles possam ser cometidos.
O Bem-estar animal, portanto, pode ser concebido como a vertente ética sobre
a qual se funda a proteção dos não-humanos tendo por base dois fundamentos
essenciais, quais sejam, o tratamento humanitário e a eliminação de toda série de
infortúnios, na medida em que sendo passiveis de apropriação, aqueles podem ser
utilizados em prol do bem social, desde que certos cuidados sejam observados. Neste
sentido Rodrigues (2012, p. 207-208) destaca:

Assim, o Direito dos Animais fundamentados no bem-estar animal objetiva


somente assentar fronteira aos comportamentos afetuosos ou não do
homem para com os não-humanos. Isso porque a crueldade é real e
inexiste qualquer pretexto cabível a realização de maus-tratos,
atrocidades e falta de atenção e cuidado para com os Animais não-
humanos. A lei os protege não contra a sua morte ou uso físico e psíquico,
mas apenas contra o sofrimento, e, com isso, os protege debilmente
contra as ações dos seres humanos.

É com isso dizer, ainda que não sejam titulares de direitos fundamentais, tal
como aduz o sistema jurídico pátrio vigente, a ideia de dignidade e de conforto não
lhes devem ser negligenciadas, pelo simples fato de que os animais estão suscetíveis,
assim como a sociedade em geral, a experimentar sensações de suplício físico e
mental, dada sua natureza de sencientes. Corrobora esse entendimento Naconecy
(2006, p. 125) ao prescrever:
Se um animal exibe um comportamento que é consistente com aquele
observado nas pessoas quando dizem que estão sofrendo, então o animal também
deve estar sofrendo. Isso é válido principalmente frente a sinais inequívocos de dor
intensa, humana e animal, como gritos e convulsões. Para além da mera dor física,
os esforços dos animai para escapar das gaiolas, jaulas, matadouros sugerem que
eles também passam por sofrimento mental, como a angústia, medo e pavor.
Assim sendo, o fundamento da exploração animalista baseada na concepção
de que “os seres humanos possuem determinados atributos” em contraposição aos
demais seres vivos, tais como a racionalidade, a comunicação, o pensamento
abstrato, o poder de planejar o futuro, assim como a capacidade de estabelecer
relações sociais, afetivas e culturais, por exemplo, (LOURENÇO, 2018, p. 39), não
merece mais preponderar como chancela à realização de atos abusivos e que há
muito tem vigorado, especialmente nas indústrias de alimentos e cosméticos, bem
como nas manifestações de práticas culturais, pois como já defendia o filósofo
utilitarista Jeremy Bentham (1984, p. IX) “[...] a questão não é: eles podem raciocinar?
Ou então, eles podem falar? Mas, eles podem sofrer?”.

2. A BIOÉTICA COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO ANIMAL

Com efeito, a Bioética, compreendida numa simples análise como “novo


semblante da ética médico-científica” (DINIZ, 2006, p. 6) e vinculada à “ciência do
220

dever moral” (SANTOS, 1993, p.93) revela-se um importante instrumento no que


tange à proteção dos animais, vez que por meio de seus preceitos e valores, passa a
ser conferida fundamental importância às questões relativas aos seres vivos de um
modo geral, isto é, independentemente se pertencentes ou não à espécie humana,
sempre que qualquer fator de ameaça possa lhes comprometer a intangibilidade física
e a própria vida. (SOUZA, 2008).
A aplicação da Bioética no tocante aos não-humanos pode ser fomentada
através do princípio da “ igual consideração de interesses”, de Peter Singer, através
do qual “é possível determinar quais práticas que afetam os animais não humanos
são justificáveis e quais não são” (SINGER, 2010, p. 172).
Por meio desse pressuposto, torna-se imperioso que não desprezemos o
suplício causado a outras espécies simplesmente por não pertencer a mesma que a
nossa, do contrário estar-se-ia perpetrando o especismo, prática tão insatisfatória
quanto o próprio racismo perpetrado contra os negros ou mesmo o machismo, na qual
se pauta a desvalorização da figura feminina.

3. VAQUEJADAS: EFEITOS DA PROMULGAÇÃO DA EC n° 96/17 AO BEM-ESTAR


E DIGNIDADE ANIMAL

A vaquejada, concebida como atividade recreativa, “praticada por dois


vaqueiros, montados em seus cavalos, os quais perseguem o boi desde a saída da
sangra até o julgamento”, de forma que “devem tombar o boi até o chão, arrastando-
o brutalmente , até que mostre as quatro patas” (SIRVINKAS, 2013, p. 2780-2781) é
modalidade recorrente em diversos estados do nordeste brasileiro, dentre os quais,
Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba.
A questão sobre se a referida prática ofenderia ou não o preceito constitucional
da proteção ao meio ambiente que obsta os maus-tratos e, consequentemente o bem-
estar animal, cuja disposição perfaz-se no art. 225 e seguintes gerou acalorados
debates, pois se de um lado seus entusiastas defendiam veementemente que “hoje
ela é considerada um esporte, com federação esportiva e regulamentos e como tal
não admite maus tratos aos animais que participam do certame esportivo”
(PITOMBEIRA, 2017, p. 101) incorrendo inclusive na eliminação do vaqueiro que age
de maneira contrária; além de assentarem justificativa no aumento expressivo da
geração de empregos e na conservação do folclore e cultura nordestina.
Por outro lado, os que se posicionavam de forma contrária àquele
entendimento, aduziam que tal modalidade esportiva vai de encontro à ascensão
protecionista. causando, dessa forma, verdadeiros prejuízos aos animais, vez que a
mesma é capaz de gerar hematomas e até hemorragias internas devido as bruscas
quedas dos animais (BOFF; VIEIRA, 2016, p. 153).
Foi a partir dessa percepção que se deu no ano de 2013 a interposição da ação
direta de inconstitucionalidade (ADIN 4.983) da lei cearense n° 15.299/2013 perante
o Supremo Tribunal Federal, da qual regulamentava a vaquejada como prática cultural
e esportiva.
Em apertada votação, a mais alta instância do poder Judiciário declarou em
2016 a inconstitucionalidade daquele diploma, porquanto coadunou-se o
entendimento de que a manifestação cultural em apreço comprometia a
intangibilidade física com risco à vida do senciente, afrontando, pois, o dispositivo
constitucional que veda “práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (art. 225, §
1°, VII, CRFB/88), regulamentado pela Lei de Crimes Ambientais (Lei n° 9.605/98)
221

pelo qual elenca em seu art, 32 as sanções penais e administrativas impostas a quem
cometer crimes de maus-tratos contra as espécies da fauna.
Para corroborar o voto pela declaração de inconstitucionalidade, o Ministro
Relator embasou sua decisão levando em conta laudos técnicos que puderam
evidenciar:

Consequências nocivas à saúde dos bovinos decorrentes das tração


forçada no rabo, seguida da derrubada, tais como fraturas nas patas,
ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, traumatismos e
deslocamento da articulação do rabo ou até o arranchamento deste,
resultando no comprometimento da medula espinhal e dos nervos
espinhais, dores físicas e sofrimento mental (Acórdão ADI 4983/CE

Considerando, no entanto, que o Poder Legislativo não se vincula à decisão do


Supremo Tribunal Federal, pouco tempo depois o Senado Federal apresentou
proposta de emenda à constituição (PEC n° 270∕2016) tendente a acrescentar o § 7°
ao art. 225 da CRFB/88 pelo qual dispunha que “práticas desportivas que utilizem
animais não são consideradas cruéis, nas condições que especifica”. Nessa mesma
esteira, a Câmara dos Deputados apresentou ulteriormente outra proposta (PEC n°
50∕2016), no sentido de “permitir a realização das manifestações culturais registradas
como patrimônio cultural brasileiro que não atentem contra o bem-estar animal”.
Após os devidos trâmites, a mesa do Congresso Nacional finalmente aprovou
a EC n° 96/2017, cujo dispositivo passou a conferir a seguinte redação ao texto
constitucional:

Art. 225 (omissis)


§7°, CRFB/88. Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º
deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que
utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o §
1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de
natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser
regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais
envolvidos."

Segundo a supracitada emenda, modalidades como vaquejadas e rodeios,


portanto, passaram a ser classificadas como manifestações da cultural nacional,
erigidos à condição de patrimônio imaterial, sem que, para tanto, fossem concebidas
como práticas cruéis aos animais. Em que pese, tal terminologia, é relevante ressaltar
que os aludidos eventos transformaram-se em verdadeiros espetáculos cujo objetivo
predominante é o econômico.
Sobre o tema Pitombeira (2017, p. 104) assevera que “o enquadramento da
vaquejada como atividade esportiva retirou-lhe a característica de celebração
histórico-cultural, remanejando-a à categoria de evento comercial, posto que acontece
a obediência a calendários criteriosamente programados”, e que ainda “a
programação da vaquejada abrange uma série de outras atrações igualmente
comerciais cujo conjunto compõe um ‘espetáculo’ “.
Ademais, ainda que os direitos culturais constituam prerrogativas fundamentais
garantidos no diploma constitucional (artigos 215 e 216), da mesma forma deve ser
assegurada proteção à fauna contra atos que os exponham à crueldade. Sustentar o
argumento de que a prática da vaquejada não compromete a saúde e o bem-estar
dos animais que participam do certame esportivo conduz a uma verdadeira percepção
paradoxal, tendo em vista as inúmeras consequências nocivas perpetradas aos bois,
tais como “fraturas nas patas, rupturas de ligamentos e de vasos sanguíneos,
222

traumatismos e deslocamento da articulação do rabo ou até o arranchamento deste,


resultando no comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores
físicas e sofrimento mental”, conforme manifestação de laudos técnicos contidos no
processo da ADIN 4983.
Insta salientar que o próprio Conselho Federal de Medicina Veterinária, por
meio de nota publicada em seu sítio eletrônico, posicionou-se de forma contrária às
vaquejadas. Para tanto, ressaltou que afora o sofrimento físico manifestamente
acarretado, “o impedimento de fuga de uma ameaça exacerba reações límbicas de
ansiedade, medo e desespero”, de maneira que “negando ao indivíduo a possibilidade
de fuga e acumulando o desconforto visual e auditivo, confirma o sofrimento
emocional a que os bovinos são expostos em uma vaquejada” (ANDA, p.p, 2016).
Assim sendo, a natureza da atividade desportiva em comento conduz a
uma série de malefícios perpetrados aos animais envolvidos nos torneios. Conquanto
haja o conflito aparente de duas normas constitucionais, quais sejam, o direito à
manifestação cultural e o direito à proteção dos animais de não sofrer maus tratos,
fato é que considerando os aspectos morais envolvidos, a imposição de sofrimento
demasiado aos sencientes não deve prevalecer ante ao deleite humano.

CONCLUSÃO

A ausência de determinados atributos conferidos aos animais, tais como a


capacidade de raciocínio ou comunicação não devem justificar o tratamento cruel e
desumano mormente conferido a eles, uma vez que a própria experiência cientifica já
pôde demonstrar que assim como a espécie humana, os sencientes quando
submetidos a fatores externos agem de maneira semelhante através de gritos,
convulsões, angústia e o natural extinto de proteção.
A decisão pela inconstitucionalidade da Lei Cearense 15.299/2013, que
passou a regulamentar a vaquejada como prática cultural e esportiva mostrou-se
acertada, uma vez que pautada em preceitos jurídico-morais, relativos ao bem-estar
animal.
Por outro lado, a manobra do Congresso Nacional ao promulgar a EC n°
96/2017, por meio da qual acrescentou o §7° ao art. 225 da CRFB/88, na contramão
daquele julgado, conduziu a um verdadeiro retrocesso, tanto no aspecto social quanto
no jurídico, sob a ótica da proteção animal, tendo em vista que conforme evidenciado
através de laudos técnicos trazidos à Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983, bem
como pela nota de repúdio manifestada pelo Conselho Federal de Medicina
Veterinária em seu sítio eletrônico, o aludido entretenimento não acarreta nenhum tipo
de benefício aos animais, pelo contrário, atenta diretamente contra sua dignidade
físico- psicológica.
Conclui-se, dessa forma, que o cerne do debate não está em conferir
prerrogativas que extrapolem a sua condição de “objeto de direito”, mas sim a de
admitir que determinadas práticas, nesse caso culturais, não devam servir como
mecanismos tirânicos capazes de lhes comprometer a possibilidade de uma vida
satisfatória, direito de todos os seres vivos, quer sejam humanos ou não.

REFERÊNCIAS

ANDA. Conselho Federal de Medicina Veterinária se posiciona contra


vaquejadas, 2016. Disponível em:
223

<https://anda.jusbrasil.com.br/noticias/398816849/conselho-federal-de-medicina-
veterinaria-se-posiciona-contra-vaquejadas>. Acesso em: 20 de out.2018.
AQUINO, São Tomás de. Suma contra os gentios. Trad: Joaquim F. Pereira. São
Paulo: Ipiringa, 2015.
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1988.
_______. EC n° 96/2017. Acrescenta § 7º ao art. 225 da Constituição Federal para
determinar que práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas
cruéis, nas condições que especifica. Congresso Nacional, Brasília, 20118.
_______. Supremo Tribunal Federal. ADIN 4.983∕CE. REl. Min. Marco Aurélio.
Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12798874.
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224

O PL Nº6.299/02 - O PACOTE DO VENENO - E SEUS DESDOBRAMENTOS


PL Nº6.299 / 02 - THE POISON OF THE POISON - AND ITS DEPLOYMENTS

Marie Antoine Feghali


Valmir Cesar Pozzetti

Resumo: O objetivo desta pesquisa foi o de analisar o PL nº 6.299/02 que tramita na


Câmara dos Deputados, com condão de “desburocratizar” a introdução e comércio de
produtos agrotóxicos no Brasil como solução sine qua non ao crescimento econômico
e a produção de alimentos no campo, e verificar se essa celeridade traz segurança
alimentar e ao meio ambiente. A metodologia utilizada foi de pesquisa bibliográfica,
com uso de doutrina, legislação e jurisprudência e pesquisa qualitativa. A conclusão
que se chegou foi que o PL nº 6299/02 não é a única, e nem tampouco a melhor
solução para demanda da agroindústria brasileira. Inúmeras são as alternativas de
viabilidade da agricultura familiar e agroecológica na produção de alimentos saudáveis
e na construção de uma sociedade mais justa, democrática e sustentável.
Palavras-chave: Lei dos Agrotóxicos, Pacote do Veneno, Defensivos Fitossanitários.

Abstract: The objective of this research was to analyze PL nº 6.299 / 02, which is
being processed by the Chamber of Deputies, with the purpose of "de-bureaucratizing"
the introduction and trade of pesticides in Brazil as a sine qua non for economic growth
and food production in Brazil. field, and verify that this speed brings food security and
the environment. The methodology used was of bibliographical research, with use of
doctrine, legislation and jurisprudence and qualitative research. The conclusion
reached was that PL 6299/02 is not the only one, nor is it the best solution for Brazilian
agribusiness demand. There are many alternatives for the viability of family and
agroecological agriculture in the production of healthy food and in building a more just,
democratic and sustainable society.
Keywords: Agrochemicals Law, Poison Package, Plant Protection Defenses.

INTRODUÇÃO

Atualmente, no Brasil, o uso de agrotóxicos na produção das lavouras agrícolas


é regulado pela Lei nº 7.802/1989, e o Decreto nº 4.074/2002, que discriminam
critérios específicos desde a pesquisa, produção, até o destino final dos resíduos e
embalagens dos defensivos e seus componentes.
Neste passo, a lei, em seu art. 2º, I e II, define como tal (princípios ativos,
matérias primas e etc), quaisquer produtos, agentes físicos e substâncias, químicos e
biológicos utilizados nos setores de produção de alimentos e insumos, cuja finalidade
seja alterar a composição da flora ou da fauna, incluindo os empregados como
desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento, a fim de
preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos às plantações.
O termo “Agrotóxico” foi criado pelo Professor Adilson Paschoal, ainda na
década de 1970, com a intenção, sobretudo, de alertar os consumidores sobre a
toxidade do produto. A agroindústria e as fabricantes dos produtos, contudo, vêm
travando um embate, há anos, para que haja alteração da legislação vigente e suas
determinações, dentre elas, o uso do termo “agrotóxicos” para “defensivos
fitossanitários”, sob argumento de que a alcunha lança uma pecha sobre a produção
agroindustrial do país.
225

A alteração do nome empregado aos produtos é apenas uma das propostas


trazidas pelo Projeto de Lei nº 6299/02, que, basicamente, se funda no argumento de
defasagem da legislação atual e na suposta necessidade de desburocratizar e
acelerar os meios de aprovação, comercialização e uso dos produtos utilizados como
defensivos agrícolas.
Uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou, em 25 de junho
de 2018, o projeto com parecer favorável de seu relator. Com isso, a proposta,
discutida há 3 (três) anos, e já aprovada pelo Senado Federal (PLS 526/99), não
precisará passar pelas comissões permanentes e poderá ser colocada na Ordem do
Dia da Casa para votação definitiva. Caso aprovada, restará pendente, tão somente,
da sanção presidencial para entrar em vigor.
A pauta mobilizou membros da sociedade civil, parlamentares, órgãos e
entidades de controle, a comunidade científica de saúde coletiva, e as Nações Unidas
(ONU) que advertiu em manifesto ao governo brasileiro sobre as alterações propostas,
apontando, em suma, que o enfraquecimento dos critérios para aprovação do uso de
agrotóxicos, ameaçam os direitos humanos.
O problema está em mensurar os impactos que tal “desburocratização” poderá
promover à saúde alimentar e ambiental da população brasileira, uma vez que, apesar
da hodierna burocracia envolvida na aprovação e utilização dos defensivos agrícolas,
o Brasil está no topo do ranking dos países que mais utilizam agrotóxicos no mundo.
É de fundamental importância que se proceda a análise cuidadosa da proposta,
mensurando os interesses envolvidos, a fim de que não se olvide da proteção de
direitos fundamentais importantes da nação brasileira, que são a vida digna e um
ambiente saudável que lhe proporcione gozá-la.
Neste diapasão, objetivou-se delinear as principais mudanças propostas no
projeto nº 6299/02, aprovado, a fim de considerar as perspectivas de sua
aplicabilidade e os impactos à saúde das pessoas e do meio ambiente, traçando um
panorama sobre a legislação ainda vigente.

1 O PACOTE DO VENENO: ALTERAÇÕES APROVADAS NA CÂMARA

O Projeto de Lei que tramita sob o nº 6299/2002, de autoria do atual Ministro


da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Blairo Maggi (PP), propõe, dentre outras
coisas, a revogação da atual Lei dos Agrotóxicos (Lei nº. 7802/89). Trata-se de um
compilado de 30 propostas de alteração, que vêm sendo apresentadas no Congresso
Nacional desde os anos de 1999 até 2017.
No dia 28 de junho de 2018, o projeto foi aprovado pela Comissão Especial da
Câmara dos Deputados, com parecer favorável do relator Deputado Federal Luiz
Nishimori (PR-PR), por 17 votos favoráveis contra 7 desfavoráveis. Em sequência, a
proposta de alteração legislativa, deve ir para aprovação pelo Plenário da Casa e,
caso aprovada e sancionada pelo Presidente da República, deverá implementar
pacote de medidas de flexibilização ao uso dos agrotóxicos na produção de alimentos
e insumos agrícolas no Brasil.
Denominado popularmente como “Pacote do Veneno”, conforme Carneiro
(2018, pág. 08), no dossiê entregue no final de maio de 2018 ao Congresso Nacional
pelas Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Associação Brasileira de
Agroecologia (ABA), o projeto tem enfrentado resistência por parte da comunidade
científica que se dedica ao estudo e defesa da saúde humana e ambiental como um
todo. Inúmeros trabalhos vêm sendo publicados em oposição à aceitação do projeto,
226

questionando pontos de mudanças no atual sistema de controle e suas possíveis


consequências ao consumidor em geral e ao trabalhador do campo.
O primeiro dos embates (e dos mais fervorosos), se deu sobre a alteração da
nomenclatura dos produtos de “agrotóxicos” (utilizados na lei atual) para “defensivos
agrícolas” ou “produtos fitossanitários”. De acordo com seus propositores, o termo
“agrotóxico” lança uma pecha sobre o setor agroindustrial por ter tomado conotação
depreciativa no mercado consumerista no decorrer dos anos.
O relator considerou que, apesar da etimologia da palavra corresponder ao
produto (do grego agros, que exprime a ideia de campo, e toxikon, que exprime a ideia
de veneno), o termo é, de fato, depreciativo, apontando essa utilização somente no
Brasil. Ponderou, portanto, que o termo adequado deverá se basear na língua
portuguesa de Portugal, e nos principais idiomas internacionais, que classificam os
produtos como pesticidas “pestis” (enfermidade epidêmica ou pandêmica) e cida (o
que mata), definindo como seus hipônimos: “fungicida”; “germicida”; “herbicida”; e
“inseticida”.
Neste sentido, é importante registrar que o termo “Agrotóxico” foi criado pelo
brasileiro Professor Adilson Paschoal, ainda na década de 1970, com a intenção,
sobretudo, de alertar os consumidores sobre a toxidade do produto. Assim, segundo
Paschoal, em entrevista concedida à revista Globo Rural On line, em junho de 2018:
“agrotóxicos têm sentido geral para incluir todos os produtos químicos usados nos
agrossistemas para combater pragas e doenças. O termo é uma contribuição útil, já
que a ciência que estuda esses produtos chama-se toxicologia”.
Importante notar, contudo, que nem todos os projetos apensados ao pacote de
alterações propostos pelo PL nº 6299/02, buscavam abrandar a regulamentação
sobre os agrotóxicos. Houve aqueles que pretendiam medidas mais rigorosas, quer
fosse de fiscalização e reavaliação dos registros (PL nº 3.063/2011), ou até mesmo a
rotulação dos produtos pesticidas com a inclusão de imagens realistas sobre prejuízos
à saúde humana (PL nº 49/2015, nº 371/2015, nº 461/2015). Estes, porém, não
obtiveram aprovação.
Em 18 de junho de 2018, após a realização de 9 (nove) audiências públicas, o
relator da Comissão Especial formada para análise do tema, Deputado Luiz Nishimoro
(PR-PR) emitiu parecer favorável à aprovação da PL 6299/02 e 13 apensos:

18/06/2018 - Parecer do Relator, Dep. Luiz Nishimori (PR-PR), pela


constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa; pela adequação
financeira e orçamentária; e, no mérito, pela aprovação do PL 6.299/2002
e dos PL's nºs 2.495/2000, 3.125/2000, 5.852/2001, 5.884/2005,
6.189/2005, 1.567/2011, 1.779/2011, 4.166/2012, 3.200/2015,
3.649/2015, 6.042/2016 e 8.892/2017, apensados, com Substitutivo; e
pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa; pela adequação
financeira e orçamentária; e, no mérito, pela rejeição dos PL's nºs
713/1999, 1.388/1999, 7.564/2006, 3.063/2011, 4.412/2012, 49/2015,
371/2015, 461/2015, 958/2015, 1.687/2015, 2.129/2015, 4.933/2016,
5.218/2016, 5.131/2016, 7.710/2017, 8.026/2017 e 9.271/2017,
apensados.

Considerou pela defasagem e ineficácia da legislação atual ao não atentar para


as dificuldades dos controles de pragas nas produções nas regiões tropicais e que os
critérios de avaliação utilizados para os produtos pesticidas está em descompasso
com o cenário internacional e os tratados internacionais dos quais o Brasil se tornou
signatário após a publicação da Lei nº 7802/89. Destacou a necessidade de
227

substituição do critério “análise de perigo” por “análise de risco”, justificando ser esse
o parâmetro adotado no resto do mundo.
Hodiernamente, agrotóxicos que têm potencial cancerígeno (teratogênicos,
carcinogênicos, mutagênicos) são totalmente proibidos (art. 3º, §6, alínea “c” da Lei
nº 7.802/89) no Brasil. Por meio do PL nº 6299/09, no entanto, relativiza-se o risco
destas substâncias, graduando-o como tolerável ou inaceitável; ou seja, mesmo que
exista o risco, o produto só será coibido, caso o perigo seja comprovado
cientificamente como “inaceitável”, cabendo à autoridade competente pelo registro do
produto fazer o cotejo entre seus malefícios e benefícios sob os “prismas econômicos
- fitossanitários e a disponibilidade de uso de produtos substitutos” (art. 3º, § 14 do PL
6299/02).
Nesse sentido, invocando o Princípio da Precaução, há que se perguntar:
Existe risco aceitável para uso de agrotóxico que pode causar câncer?
Para os parlamentares que representam o agronegócio e reclamam da
dificuldade de registrar novas fórmulas de agrotóxicos, o risco de provocar doenças,
per si, não compensa o atraso tecnológico para agroindústria brasileira, supostamente
causado pelos trâmites burocráticos existentes. Segundo à Empresa Brasil de
Comunicação S/A (2018), afirmou o deputado Adilton Sachetti (PRB), à rádio Agência
Nacional, no Portal EBC: “Nós estamos atrasados em relação aos outros países,
naquilo que de novo tem para ser usado neste setor. Moléculas mais seguras, mais
eficientes, menos tóxicas. Nós aqui, atrelados a burocracia, não estamos conseguindo
usar. Onde está a comprovação científica que tem produto que é cancerígino? Indícios
é uma coisa, comprovação é outra”.
Não obstante, tenta-se com o novo projeto criar a figura do “registro temporário”
que se divide em Registro Especial Temporário - RET, para produtos novos com fins
de pesquisa e experimentação, cujo registro deverá ser concluído no prazo de 30
(trinta) dias (art. 3º, § 2º do PL nº 6299/02), e do Registro Temporário - RT, ou
Autorização Temporária - AT, ambos para os produtos registrados para culturas
similares ou para usos ambientais similares em três países membros da Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE que adotem, nos
respectivos âmbitos, o Código Internacional de Conduta sobre a Distribuição e Uso de
Pesticidas da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO
(art. 3º, § 6º e § 8º da PL nº 6299/02).
Atualmente a Lei nº 7.802/89 exige o registro prévio dos agrotóxicos para sua
produção, importação, exportação ou comercialização, de acordo com os requisitos e
diretrizes dos órgãos federais responsáveis pelos setores da saúde, do meio ambiente
e da agricultura, conforme expresso no art. 8º do Decreto nº 4.074 que regulamenta a
referida lei:

Os agrotóxicos, seus componentes e afins só poderão ser produzidos,


manipulados, importados, exportados, comercializados e utilizados no
território nacional se previamente registrados no órgão federal
competente, atendidas as diretrizes e exigências dos órgãos federais
responsáveis pelos setores de agricultura, saúde e meio ambiente.

Com a alteração, tanto os registros quanto a autorização temporária, terão


validade até a deliberação conclusiva dos órgãos federais de agricultura, de saúde e
de meio ambiente sobre o registro do produto. Entretanto, a proposta PL nº 3.063/11,
que pugnava pela reavaliação periódica dos produtos pesticidas a cada 10 (dez) anos,
foi inacolhida pelo relator, sob argumento de inviabilidade, já que o tempo de revisão
é o que se tem tomado para aprovação e registro do produto atualmente.
228

Nesse compasso, também houve inacolhimento de uma das alterações mais


polêmicas, proposta pelo apenso PL nº 4933/2016, que visava acelerar o prazo de
registro de agrotóxicos concentrando sua competência exclusiva ao Ministério da
Agricultura, extinguindo a atual estrutura tripartite composta também pelo Instituto
Brasileiro de Recursos Renováveis - IBAMA e Agência Nacional de Vigilância
Sanitária - ANVISA, haja vista a impossibilidade de supressão de competências dos
órgãos federais de saúde e meio ambiente. Aventou-se, contudo, a possibilidade de
coordenadoria pelo órgão da agricultura sobre os procedimentos de aprovação e
registro sobre os demais órgãos, conforme apontado no substitutivo.
Conforme a relatoria, o PL nº 3200/2015 (apensado ao PL nº 6299/02), de
autoria do deputado Covatti Filho, que originou a criação da Comissão Especial, é o
que sugere mudanças mais profundas na estrutura organizacional atual, prestando-
se à revogação da Lei nº 7.802/89 e a criação de uma Comissão Técnica Nacional de
Fitossanitários - CTNFito, uma estrutura colegiada técnica que funcionaria no
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), estabelecendo diretrizes
relacionadas sobre os pesticidas. Esta última, por sua vez, restou inacolhida por
reduzir as competências dos órgãos federais de meio ambiente e saúde,
permanecendo a proposta de revisão e modernização da Lei de Agrotóxicos atual.
Limita-se no novo projeto a atuação dos Estados e Municípios da Federação,
permanecendo a União com a prerrogativa legislativa sobre o tema, restando aos
demais entes a fiscalização e o poder legislador suplementar - desde que sobre
fundamentos cientificamente comprovados, conforme a art. 9º do PL nº 6299/02, in
verbis:

Art. 9º Compete aos Estados e ao Distrito Federal, nos termos dos arts.
23 e 24 da Constituição Federal, legislar supletivamente, desde que
cientificamente fundamentado, sobre o uso, a produção, o consumo, o
comércio e o armazenamento dos pesticidas e de controle ambiental, seus
componentes e afins, bem como fiscalizar o uso, o consumo, o comércio,
o armazenamento e o transporte interno.
Parágrafo único. Cabe ao Município, nos termos do art. 30, II, da
Constituição Federal, legislar supletivamente, desde que cientificamente
fundamentado, sobre o uso e o armazenamento dos pesticidas e de
controle ambiental, seus componentes e afins.

No que consente à zona urbana, a proposta estabelece logo no seu início, no


art. 1º, § 1º que “produtos e agentes de processos físicos, químicos ou biológicos,
destinados ao uso nos setores de proteção de ambientes urbanos e industriais são
regidos pela Lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976.”, a Lei de Vigilância Sanitária
à que estão sujeitos medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos e etc.
Por fim, foram rejeitados os Projetos nº 713/99, nº 1.388/99, nº 7.564/06, nº
4412/12, nº 2129/15 e nº 5218/16, todos com proposições de banir do mercado e
excluir de circulação produtos com ativos considerados perigosos ao uso, à exemplo
do glifosato.
Em suma, as principais alterações apresentadas ao projeto original estão
destacadas acima, permanecendo, em sua maioria, os arranjos criticados em
pesquisas e trabalhos científicos pelos opositores ao projeto, e os alertas do Instituto
Nacional do Câncer, Fundação Oswaldo Cruz, Ministério Público Federal, Ministério
Público do Trabalho, Ibama, Anvisa, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), condensados no alerta da ONU ao governo brasileiro, sobre a lição tomada
por outros países, nos quais, os arranjos institucionais permitiram a aceitabilidade dos
riscos para os produtos agrotóxicos: “Furthermore, lessons from other countries
229

illustrate how standards based on the acceptability of risks fail to adequately protect
those most at risk from exposure to toxic chemicals, such as low-income communities,
minorities, workers, different genders and their children”.

CONCLUSÃO

No Brasil, a política agrícola adotada desde a década de 1960, estruturou-se


sobre um modelo de agronegócio que concentra a terra e utiliza altas quantidades de
venenos para garantir a produção em escala industrial e a venda de commodities para
o exterior, colocando o país em destaque no ranking de maiores consumidores de
pesticidas no mundo.
Não obstante à esse cenário, foi aprovado o Projeto de Lei nº 6299/2002, de
autoria do atual Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Blairo Maggi (PP),
propondo, a “desburocratização” dos processos de aprovação dos agrotóxicos no
Brasil, sob o argumento de necessidade de modernização regulamentar para
manutenção do setor agroindustrial, que estaria sendo prejudicado pela defasagem
da atual legislação e consequente demora para aprovação de novos produtos.
Contudo, há que se refletir sobre os impactos que essa alteração legislativa
poderá causar à saúde alimentar e ambiental da população brasileira e se será
suficientemente eficaz para garantir sua segurança alimentar.
Em análise ao parecer apresentado pelo relator do PL nº 6299/02, em junho do
presente ano, é possível identificar sensíveis alterações no projeto original, nos pontos
questionados pelos seus opositores. Ainda assim, percebe-se uma tendenciosidade
ao afrouxamento dos marcos regulatórios em prol da aceleração econômica do setor
agroindustrial interessado, sem que se defina critérios objetivos quanto aos riscos dos
produtos e a qualidade da produção.
Curioso pensar que recentemente proibimos a experimentação de cosméticos
em animais, todavia nos permitimos experimentar em outros seres humanos,
substâncias de impacto ainda não comprovado, como é o caso dos pesticidas na
alimentação.
Outrossim, há que se apontar que o efeito da aprovação de tal projeto poderá
ser reverso ao alegado desenvolvimento do agro setor, que, sabidamente, possui seus
maiores ganhos na exportação, uma vez que os principais paíse do mundo estão
extirpando substâncias agrotóxicas na produção de seus itens de consumo.
Questiona-se: Quem comprará a produção brasileira na qual há uso predominante
dessas substâncias?
O parecer do relator, em grande parte, poderia ser concluído pelo ditame
popular: “A diferença entre o remédio e o veneno está na dose, sendo recorrente o
argumento de que não é o agrotóxico o problema, mas o erro de sua aplicação pelo
agricultor. Mas é justamente a esse agricultor que se suprime informações, por
exemplo, quando se tenta subliminar a toxicidade dos produtos substituindo sua
nomenclatura por “fitossanitários” ou afins, ou ainda, quando se deixa de exigir receita
para compra de determinados venenos.
Conclui-se pois, que a estratégia de “flexibilizar” demonstra-se um sofisma
legislativo em todos os prismas de análise do PL nº 6299/02. Cobre-se com o véu de
legalidade o processo. Induz ao cidadão médio a falsa percepção da garantia de seus
direitos de proteção e representatividade, pois o direito não foi revogado, apenas
“reformado”.
As vantagens econômicas, têm pressionado a relativização de princípios
Constitucionais que colocam como dever do Estado a proteção à saúde da população
230

e ao meio ambiente, o que, conforme Ministério Público Federal (2018), viola pelo
menos seis artigos da Constituição Federal.
Em movimento diametralmente oposto, tramita na Câmara dos Deputados o PL
nº 6670/16 - Política Nacional de Redução de Agrotóxicos - PNARA, proposta pela
Comissão de Legislação Participativa, que indica a redução progressiva do uso de
agrotóxicos com a ampliação da oferta de insumos de origens biológicas e naturais,
contribuindo para a promoção de saúde e sustentabilidade ambiental, e a produção
de alimentos saudáveis.
O PL nº 6299/02 não é de forma alguma a única solução para demanda da
agroindústria brasileira. Já há alternativas de manejo de pragas apresentadas pela
Embrapa e soluções rentáveis na agroecologia. A Política Nacional de Redução de
Agrotóxicos - PNARA, traz, inclusive, sugestões de incentivos fiscais para redução do
uso das substâncias, ao contrário do ocorre atualmente. Inúmeras são as alternativas
de viabilidade da agricultura familiar e agroecológica na produção de alimentos
saudáveis e na construção de uma sociedade mais justa, democrática e sustentável.
A questão cinge-se, portanto, em aceitar um caminho de desenvolvimento
sustentável para agroindústria e o agronegócio que coadune com a preservação da
saúde da coletividade e do meio ambiente, ainda que, para tanto, renuncie-se aos
lucros mercadológicos imediatos em prol da saúde desta e das gerações vindouras.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Câmara dos Deputados. Atividade Legislativa. Atividade Legislativa.


Comissões Especiais. 55ª Legislatura (2015-2019). PL 6299/02. Regula Defensivos
Fitossanitários. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pl-3200-15-
regula-defensivos-fitossanitarios-1. Acesso em: 09 de out de 2018.
BRASIL. Senado Federal. Atividade Legislativa. Projetos e Matérias. Pesquisas.
Projeto de Lei do Senado nº 526, de 1999. Disponível em:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/41703. Acesso em: 09
de out de 2018.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Atividade Legislativa. Comissões. Resultado de
Votação Nominal. PL 6299/02. Disponível em: http://www.camara.leg.br/presenca-
comissoes/votacao-portal?reuniao=53232. Acesso em: 09 de out de 2018.
BRASIL. LEI Nº 7.802, DE 11 DE JULHO DE 1989. LEI DOS AGROTÓXICOS,
Brasília,DF, jul 1989. Disponivel em:
http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/LEIS/L7802.htm. Acesso em: 09 out. 2018.
BRASIL. PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL. 4ª Câmara de Coordenação e Revisão. Meio Ambiente e Patrimônio
Cultural. Nota Técnica sobre o Projeto de Lei nº 6.299/2002.Disponível:
http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/4ccr_notatecnica_pl-6-299-
2002_agrotoxico.pdf. Acesso em: 09 de out de 2018.
CARNEIRO, F F. et al.Dossiê ABRASCO ABA. Contra o PL do Veneno e a favor da
Política Nacional de Redução de Agrotóxicos - PNARA. ABRASCO, Rio de Janeiro,
julho de 2018. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/wp-
content/uploads/2018/08/DOSSIE_NOVO_26_JULHO_Final-compressed2.pdf.
Acesso em: 09 de out de 2018.
ONU. Palais Des Nations, Geneva, Switzerland, 13 June 2018. Reference: OL BRA
5/2018. Disponível em:
231

https://www.ohchr.org/Documents/Issues/ToxicWastes/Communications/OL-BRA-5-
2018.pdf. Acesso em: 09 de out de 2018.
PASCHOAL, Adilson. Por que o uso de agrotóxicos aumenta o número de pragas, na
visão deste pesquisador. In.: Revista Globo Rural [online]. 2018. Disponível em:
https://revistagloborural.globo.com/Noticias/Agricultura/noticia/2018/05/por-que-o-
uso-de-agrotoxicos-aumenta-o-numero-de-pragas-na-visao-deste-pesquisador.html.
Acesso em: 09 de out de 2018.
SACHETTI, Adilton. Portal EBC In.: Rádio Agência Nacional [online]. 2018. Disponível
em: http://radioagencianacional.ebc.com.br/politica/audio/2018-06/nova-
regulamentacao-de-uso-de-agrotoxico-e-aprovada-em-comissao-da-camara. Acesso
em: 09 de out de 2018.
232

Grupo de trabalho:

DIREITO CIVIL I
Trabalhos publicados:

A AUTONOMIA EXISTENCIAL À LUZ DOS DIREITOS REPRODUTIVOS E SEXUAIS

A DIGNIDADE HUMANA LEVADA AO LIMITE DA VIDA: LIBERDADE PARA


DELIBERAR ACERCA DO MORRER

ABANDONO EFETIVO: DA FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO AO DIREITO

AS RESTRIÇÕES DE ALTERAÇÃO DO NOME CIVIL POR MOTIVO DE


CASAMENTO SOB AS NORMAS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO AMAZONAS

O TRATAMENTO JURÍDICO DO NASCITURO EMPREGADO PELOS TRIBUNAIS


SUPERIORES

OS PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA E A FAMÍLIA NA ATUALIDADE

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: A CELEUMA DA CARACTERIZAÇÃO E DA


ATRIBUIÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
233

A AUTONOMIA EXISTENCIAL À LUZ DOS DIREITOS REPRODUTIVOS E


SEXUAIS
THE EXISTENTIAL AUTONOMY IN LIGHT OF REPRODUCTIVE AND SEXUAL
RIGHTS

Ananda Hellen Figueiredo Moreira


Cleber Affonso Angeluci

Resumo: A pesquisa se propõe abordar os aspectos dos direitos reprodutivos e


sexuais estabelecidos por lei que estão em incongruência com as perspectivas da
autonomia existencial sobre a disposição do próprio corpo. A análise da Lei do
Planejamento Familiar a partir de uma revisão das condições legais para a realização
de esterilização voluntária e as intervenções limitadoras ao exercício da autonomia
privada. Pretende-se fomentar o diálogo acerca da restrição ao livre exercício dos
direitos reprodutivos e sexuais, cuja interferência aflige ao planejamento familiar.
Utilizou-se o método hipotético dedutivo, com enfoque dialético, fundado nos
instrumentos doutrinários produzidos sobre o tema, nas discussões realizadas no
Grupo de Pesquisa Direito Civil Emergente e na interpretação da lei vigente.
Palavras-chave: Autonomia existencial. Direitos reprodutivos. Planejamento familiar.

Abstract: The present work intends to approach aspects of reproductive and sexual
rights established by law that is incongruous with the perspectives of an existential
autonomy about disposition of the own body. The analyze of the family planning law
from the review of legal conditions for a volunteer sterilization and the limiting
interventions for the private autonomy exercise. The intention is to promote the
dialogue about limitations for free exercise of reproductive and sexual rights whose
interference reach the family planning. A deductive hypothetical method was used
focusing on dialectical further the read of articles, the discussions produced by a
research group about emerging civil law and the interpretation of law.
Key-words: Autonomy. Reproductive Rights. Family Planning.

INTRODUÇÃO

A tutela atribuída aos Direitos Humanos e Fundamentais consagrados


constitucionalmente no tocante à igualdade de gêneros encontra-se abarcados para
uma sadia e solidária qualidade de vida. Entretanto, diante de diversas conquistas,
acerca dos direitos reprodutivos e sexuais na contemporaneidade, ainda se faz
necessário o amparo e proteção destes, visto o enfrentamento para a sua real
efetivação no âmbito do exercício dos direitos quanto a autonomia sobre o próprio
corpo.
Razão pela qual o enfrentamento das divergências se faz necessário para a
tutela dos referidos direitos. A Constituição Federal assegura princípios para reger a
esfera individual, possibilitando a pessoa explorar sua vida privada, no exercício de
sua dignidade inserido na sociedade. Entretanto, ao oferecer os mesmos mecanismos
para o controle, faz-se necessário a análise da relevância de limitações oferecidas
pelo legislador. O presente estudo examina a Lei do Planejamento Familiar a partir
das condições limitadoras para encontrar as incompatibilidades dentro do próprio
ordenamento quanto ao exercício da disposição do próprio corpo com a finalidade de
intervenção cirúrgica para esterilização voluntária.
234

A autonomia privada enquanto direito fundamental, apesar de ser o ponto


central do ordenamento, é limitada com relação aos atos de disposição sobre o próprio
corpo, com a interferência indevida do Estado sobre a capacidade reprodutiva, como
também, se legitima através da integridade física. No tocante a intervenções, a
autonomia privada não se encontra plena sob a ótica da Lei do Planejamento Familiar
ao possibilitar além da intervenção estatal, a interposição do cônjuge para restringir o
exercício da autonomia existencial de seu consorte.

AUTONOMIA PRIVADA E INTERVENÇÃO DO ESTADO

A Constituição Federal promulgada em 1988 garante um rol de direitos


fundamentais, efetivados em seu artigo 5º, determinando acerca dos contornos gerais
do texto constitucional para integrada proteção dos direitos individuais e coletivos. De
toda sorte, a dignidade da pessoa humana é princípio basilar e serve de suporte para
proporcionar aos demais princípios a efetividade da estrutura normativa e ordem
social. Na concepção constitucional, a configuração do pluralismo e da solidariedade
incutidos na sociedade demonstram a implicação de uma construção diversificada de
viver em sociedade, como também, na aceitação da multiplicidade de visões de
mundo pois, acarretam a possibilidade de cada pessoa construir sua própria
concepção daquilo que é bom para si.
A subjetividade que cada pessoa carrega consigo para a autodeterminação de
suas escolhas perante o universo, enquanto sujeito de direitos e ser no mundo, em
conjunto com sua autonomia fruto de sua plena liberdade, é responsável pela
construção de sua personalidade. Esta resguarda direitos próprios à defesa e
promoção de sua essencialidade, compatível com o ideal esboçado pela Lei Maior.
Contudo, deve ser exercida no íntimo existencial do indivíduo e, em consonância com
a dignidade da pessoa humana exterioriza um dever geral de proteção, respeito e
intocabilidade.
A autonomia privada por sua vez, tutelada pelo direito, enquanto direito
fundamental, é compatível com o padrão de autogoverno do indivíduo de modo a
conduzir sua existência. Para determinar suas escolhas, o ordenamento jurídico
estabeleceu uma tutela positiva da liberdade, em especial quanto às questões
existenciais, para uma integral proteção das situações individuais. Dessas situações,
as interferências externas são permitidas quando o Estado as garante por meio da
igualdade material (TEIXEIRA, 2018, p. 07).
Tendo em vista que o ordenamento jurídico após a Constituição de 1988 sofreu
uma drástica mudança, com o um viés evidentemente mais humanista, a autonomia
privada também acompanhou a alteração. A anterior tutela se voltava para a
autonomia patrimonial, a qual se atribuía o maior valor à liberdade contratual e ao
patrimônio, em que suas atribuições repousam sobre a livre iniciativa. Em
contrapartida, dada a centralidade da pessoa humana, o ordenamento atribui uma
nova situação jurídica para as questões existenciais, em razão da pessoalidade e do
amparo a sua dignidade, bem como a construção de uma personalidade relevante
para a fruição de todos os direitos inerentes à pessoa (MORAES; CASTRO, 2014, p.
16).
Dessa forma, segundo a definição feita por Heloísa Helena Barboza e trazida a
lume por Ana Carolina Brochado Teixeira, a autonomia decorre do “reconhecimento
do poder do sujeito privado de autorregular-se, nos limites da lei, aqui entendida em
seu sentido amplo, e que tem na Constituição da República sua expressão maior”
(BARBOZA apud TEIXEIRA, 2018, p. 11). Entretanto, quando a própria legislação
235

impõe limites desarrazoados para vetar o exercício da autonomia, especificamente


quanto ao direito sobre o próprio corpo, provém a necessidade de construir bases para
melhor compreender se é defeso a substituição da vontade para exercer os direitos
sobre o próprio corpo, feita pelo sujeito capaz e livre de coação, àquela que possui o
mesmo poder de regular as relações jurídicas a partir da premissa de total proteção à
integridade física, muito embora contrária aos valores e princípios eleitos por esse
sujeito no processo deliberativo e construtivo de sua própria existência.
Nessa seara, o Código Civil prevê acerca dos atos de disposição do próprio
corpo em seu artigo 13, que a disposição somente é defesa quando não importar
diminuição permanente da integridade física ou ainda, não contrariar aos bons
costumes. Ademais, o referido dispositivo deve ser interpretado em conjunto com a
Lei n. 9.434 de 04.02.1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes
do corpo humano para fins transplante e tratamento.
Embora, a referida lei regulamente mais especificamente sobre a temática da
disposição, o artigo 9º permite à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de
tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para
transplantes. No entanto, o legislador ainda não reconhece o direito subjetivo para
explorar uma efetiva autonomia corporal, ao passo que determina condições para
restringir o uso do corpo pelo sujeito, desse modo, ao suprimir qualquer traço para o
exercício de sua autonomia existencial dificulta uma real percepção entre o sujeito e
o objeto do direito (KONDER, 2013, p. 06).
Em igual sentido, a Lei nº 9.263 de 12/01/1996, denominada Lei do
Planejamento Familiar, determina em relação a permissão para a esterilização
voluntária e, impõe condicionantes para o livre exercício da autonomia corporal,
quando dizem respeito aos direitos reprodutivos, consequentemente, coadunam com
o estabelecido pelos atos de disposição do próprio corpo. Dessa feita, a manifestação
autônoma sobre o próprio corpo é tolhida pelo pensamento conservador do legislador
infraconstitucional.
Como afirmado, o Estado intervém sobre as decisões existenciais de seus
tutelados, contudo, é contraditório ao interferir na capacidade reprodutiva dos
indivíduos, pois, conforme previsto, o planejamento familiar é de livre decisão do
casal, por conseguinte, não estando legitimado para interferir logo, ultrapassa os
limites da norma constitucional quando o faz, de acordo com o disposto no artigo 226,
§ 7º, CF.
A moderna concepção para a efetivação dos direitos reprodutivos e sexuais
estabelece que os indivíduos dentro de sua autonomia privada determinem acerca da
sua capacidade reprodutiva, bem como, é defeso a opção por não ter filhos. Todavia,
quando é manifesto o desejo por uma esterilização voluntária, o Estado se vê
legitimado para interferir no planejamento da família, ainda que, não se trate de uma
família propriamente dita, apenas a manifestação de vontade autônoma de um
indivíduo capaz, para a intervenção em seu próprio corpo por meio de uma cirurgia de
esterilização. É nesse contexto de valorização do planejamento familiar que as demais
limitações legais estabelecidas com intuito de impedir a autonomia sobre o próprio
corpo se instalam, como exemplo, a necessidade do consentimento do cônjuge para
a realização de cirurgia de esterilização.

AUTONOMIA PRIVADA E INTERVENÇÃO DO OUTRO

As restrições impostas pela Lei do Planejamento Familiar, evidentemente, parte


da premissa de que as pessoas casadas somente podem se submeter a uma
236

esterilização mediante o consentimento do outro. Portanto, o cônjuge em caso de


discordância atua como um legitimado para restringir a autonomia existencial de outra
pessoa, no exercício de sua autonomia individual, da mencionada lei, in verbis:

Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes


situações:
I - em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de
vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde
que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da
vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa
interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo
aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a
esterilização precoce;
§ 5º Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do
consentimento expresso de ambos os cônjuges.

Atenta-se ao requisito de idade estabelecido pelo legislador para maiores de


vinte e cinco anos, é sabido que no Brasil a menoridade cessa aos dezoito anos de
idade (art. 5º, caput, do Código Civil), razão pela qual a pessoa fica habilitada para
exercer todos os atos da vida civil, inclusive implicar em responsabilização pelas
escolhas feitas. A partir do momento em que o legislador estabelece como
circunstância alternativa a existência de uma prole de pelo menos dois filhos vivos,
evidentemente, há interferência, novamente, no planejamento familiar. Dessa forma,
resulta por determinar indiretamente um número ideal de filhos, enquanto padrão
estabelecido na média de filhos da sociedade, que um casal deve ter para se submeter
a um procedimento de esterilização.
No que diz respeito ao desencorajamento à esterilização precoce, novamente,
o outro faz as vezes do Estado e interfere no seio familiar por intermédio de uma
equipe multidisciplinar, durante um lapso temporal de 60 dias. Destaca-se a relevância
do Princípio da Liberdade Familiar ou da Não- intervenção, o qual relaciona-se com o
art. 1565, § 2º do Código Civil. Posto isso, objetiva a vedação de qualquer tipo de
coerção por parte de instituições privadas ou públicas indicado pela excessiva
ingerência tanto na esfera individual quanto familiar.
Além das delimitações de idade ou eventual número de filhos, a vigência de
uma sociedade conjugal atua como uma limitação extra para as pessoas que desejam
exercer seus direitos reprodutivos e sexuais, de modo que, a dependência do
consentimento do cônjuge é condição indispensável para a realização do
procedimento e, por consequência, têm afetado seu planejamento reprodutivo. Em
igual sentido, quando se trata de uma pessoa divorciada, por exemplo, com dois filhos
ou idade superior ao estabelecido, outra condição equivalente não é necessária.
A concepção atual de sua sociedade conjugal não está mais instituída na
tradicional convicção do casamento fundado na necessidade de procriação. O
contemporâneo modelo de família se compatibiliza com o affectio maritalis, no dever
natural de mútua assistência entre os cônjuges para o crescimento da unidade afetiva
e familiar. Portanto, se incompatibiliza com a influência desnecessária entre seus
membros com o intuito de limitar a plena garantia à autonomia corporal, a sua
dignidade e realização pessoal (CARVALHO, 2016, p. 13). Visto que, a situação se
agrava dada a condição humana das mulheres. Dessa forma, quando há a restrição
imposta pelo cônjuge para a limitação do exercício dos direitos reprodutivos e sexuais,
de forma a cercear a utilização de qualquer método contraceptivo, importa em
violência doméstica. Dado que, apesar do desenvolvimento dos métodos
237

contraceptivos disponíveis a esterilização humana voluntária também é reconhecida


como método contraceptivo, eficaz e viável.
Portanto, não cabe ao cônjuge a possibilidade jurídica e legítima de restringir a
autonomia existencial de outra pessoa, uma vez esta sendo capaz e livre para exercer
sua própria autonomia privada no que diz respeito a seus direitos reprodutivos e
sexuais. Para que seja concedido tal espaço é necessário a reformulação de alguns
princípios e dispositivos do próprio ordenamento.

CONCLUSÃO

O direito, enquanto fenômeno em constante mudança, existe para promover e


assegurar os direitos de seus tutelados por meio da sistematização em torno desses
e, ainda, necessita de adequação para as diversas situações existentes. Embora,
careça de discussões para fomentar a concretização plena de cada uma delas,
principalmente no que tange a tutela da autonomia corporal, persiste a necessidade
de exposição da incoerência da norma eficaz e presente no ordenamento.
Diante da análise trazida à luz dos direitos reprodutivos e sexuais é substancial
o reconhecimento da autonomia privada para gerenciar o próprio corpo, vez que a
autonomia existencial caminha para superação que conduz a própria existência e,
incumbe a pessoa autônoma a responsabilidade inerente a ela. A partir da manifesta
incompatibilidade da legislação vigente com o ordenamento e os princípios eleitos
para salvaguarda da dignidade humana em conjunto com a proteção a liberdade e
realização pessoal.
Dessa forma, quando retira essa autonomia dos indivíduos, determinando
sobre seus corpos e, consequentemente, sobre suas vidas fazendo por eles suas
escolhas, por conseguinte, cerceia o desenvolvimento existencialista da
personalidade de cada indivíduo que explora a vertente de uma vida privada e digna
dentro da sociedade, sob o enfoque da sua autonomia para vir a gerir sua existência
como julgar adequada para a sua subsistência.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF: Senado Federal. 1988. 119 p.
BRASIL. Lei nº 9.232, de 12 de janeiro de 1996.
BRASIL. Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
CARVALHO, Carliane de Oliveira. Autonomia da Mulher à luz da criação humana.
RJLB, Ano 2, nº 6 p. 261-279. 2016.
KONDER, Carlos Nelson. Privacidade e corpo: convergências possíveis. Revista:
Pensar: Fortaleza/CE, v. 18, n. 2, p. 354-400, mai./ago. 2013.
MORAES, Maria Celina Bodin de; CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de, A
autonomia existencial nos atos de disposição do próprio corpo. Revista: Pensar,
Fortaleza, v. 19, n. 3, p. 779-818, set./dez. 2014.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autonomia Existencial. Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 16, p. 75-104, abr./jun. 2018.
238

A DIGNIDADE HUMANA LEVADA AO LIMITE DA VIDA: LIBERDADE PARA


DELIBERAR ACERCA DO MORRER
HUMAN DIGNITY TAKEN TO THE LIMIT OF LIFE: FREEDOM TO DELIBERATE
ABOUT TO DIE

Cleber Affonso Angeluci

Resumo: O presente estudo tem por base um paralelo entre o viver com dignidade e
o morrer com dignidade, enfocando mais precisamente as chamadas Diretivas
Antecipadas de Vontade, declaração acerca de procedimentos médicos, cirúrgicos ou
medicamentosos que a pessoa deseja ou não se submeter; a hipótese consiste em
traçar um paralelo entre o viver e o morrer com dignidade, respondendo a questão-
problema se haveria a possibilidade de renunciar tratamentos para que a vida possa
seguir seu curso, sem entretanto, ingressar nas questões de antecipação da morte.
Utiliza-se o método hipotético-dedutivo e dialético e como instrumento de pesquisa o
material produzido por estudiosos acerca das Diretivas Antecipadas de Vontade.
Como conclusões preliminares se defende a liberdade de formas para a eficácia e
efetividade das declarações emitidas, devendo ser respeitadas independentemente
da forma pela qual externada.
Palavras-chave: Vida digna. Morte digna. Diretivas antecipadas.

Abstract: The present study is based on a parallel between living with dignity and
dying with dignity, focusing more precisely the so-called Advance Directives of Will,
statement about medical, surgical or medical procedures that the person wishes or
does not submit to; the hypothesis is to draw a parallel between living and dying with
dignity, answering the problem question if there would be the possibility of giving up
treatments so that life can follow its course without, however, joining in the questions
of anticipation of death. The hypothetical-deductive and dialectical method is used and
as a research instrument the material produced by scholars about the Advance
Directives of Will. As preliminary conclusions it is defended the freedom of forms for
the effectiveness and effectiveness of the declarations issued, and must be respected
regardless of the way in which it is issued.
Key-words: Life with dignity. Death with dignity. Advance directives.

INTRODUÇÃO

O Direito não é capaz de acompanhar os avanços médicos tecnológicos e nem


mesmo os mistérios que cercam a existência humana. Muito embora haja previsão
constitucional do direito à vida com dignidade, nada se fala acerca dos momentos
finais da existência, ou seja, do morrer com dignidade. Garantir que a dignidade seja
exercida em sua plenitude, inclusive nos momentos finais da existência, com espeque
nas Diretivas Antecipadas de Vontade, consiste o cerne desse estudo, sem ingressar,
entretanto, em questões como a antecipação da morte, a eutanásia.
Num primeiro momento, se indaga acerca de um ‘direito à vida ou um dever à
vida’ com dignidade, procurando traçar um paralelo na existência humana – vida, com
os momentos que antecedem o termo final – a morte e o progresso da ciência médica
acerca dos procedimentos que buscam prolongar a vida.
Na sequência se apresenta o negócio jurídico existencial denominado Diretivas
Antecipadas de Vontade, em suas duas espécies: o testamento vital e o mandato
duradouro com o a defesa de ausência de formalidade para a emissão validade da
239

vontade do declarante, buscando, por tal argumento, maior efetividade ao referido


negócio.
Emprestar à vida, em sua plenitude – até o momento da morte – a maior e mais
abrangente dignidade, com respeito à liberdade da pessoa para decidir sobre sua
terminalidade, representa, uma grande deferência à dignidade humana.

DIREITO OU DEVER À VIDA DIGNA?

A Constituição Federal de 1988 estabelece a dignidade da pessoa humana


como fundamento da República Federativa do Brasil, garantindo o direito à vida como
direito fundamental da pessoa.
Indubitavelmente, há uma garantia constitucional do direito à vida,
expressamente prevista no art. 5º da Constituição Federal e, mais, essa vida deve ser
orientada pelo fundamento da República Federativa do Brasil, descrito no art. 1º, III, a
dignidade da pessoa humana. De se arguir a partir de tais dispositivos se haveria uma
antinomia entre um tal direito à vida, a qualquer custo e um direito à vida digna; estaria
o ser humano vinculado a um direito à vida ou, submetido às mais diversas tecnologias
de distanciamento da morte, estaria ele obrigado à vida, em outras palavras, teria o
ser humano um dever à vida?
Em princípio, não se pretende discutir acerca da eutanásia e suas formas, a
uma porque não caberia uma discussão de tal envergadura no pequeno espaço desse
trabalho; a duas, porque o problema central ora estudado, consiste em indagar acerca
de um direito à vida com dignidade, inclusive nos seus últimos momentos e, se o
exercício da autonomia privada, ainda permitiria à pessoa a possibilidade de escolher.
O direito à vida humana é, sem dúvida, um dos grandes pilares que sustentam
o Estado Democrático de Direito. Seus mistérios e nuances permitem a cada pessoa
uma existência singular amalgamada em uma existência coletiva na Humanidade,
cabendo ao Direito garantir condições para o seu pleno exercício, preservando a
unidade viva de cada ser no mundo.
Necessário considerar as suas peculiaridades da vida, com a sabença de que
“reconhecer a santidade da vida não implica a tentativa de gerenciar o destino de
modo que as vidas sejam vividas em sua plenitude; significa, antes, não frustrar os
investimentos já feitos na vida” (DWORKIN, 2009, p. 138).
Portanto, é imprescindível compreender a marcha da coletividade, sem
desconsiderar as escolhas e potencialidades individuais, sem adentrar numa limitação
equivocada que conduziria, irremediavelmente, à um dever à vida com ofensa à
própria dignidade dessa vida.
Isso, quando se considera o avanço tecnológico acerca de instrumentos,
procedimentos e medicamentos que permitem um prolongamento do estado de vida,
a qualquer custo e, em muitos casos, a perdas muito elevadas ao próprio paciente.
Saliente-se que a expressão custos aqui utilizada não está restrita exclusivamente ao
monetário, indo além, buscando abranger também a qualidade de vida, as condições
de existência, as liberdades de escolha, o pleno exercício de autonomia, entre outros,
ou seja, a sua própria dignidade.

De acordo com Kant, no mundo social existem duas categorias de valores:


o preço (preis) e a dignidade (Würden). Enquanto o preço representa um
valor exterior (de mercado) e manifesta interesses particulares, a
dignidade representa um valor interior (moral) e é de interesse geral. As
coisas têm preço; as pessoas, dignidade. O valor moral se encontra
infinitamente acima do valor de mercadoria, porque, ao contrário deste,
240

não admite ser substituído por equivalente. Daí a exigência de jamais


transformar o homem em meio para alcançar quaisquer fins. Em
consequência, a legislação elaborada pela razão prática, a vigorar no
mundo social, deve levar em conta, como sua finalidade máxima, a
realização do valor intrínseco da dignidade humana (BODIN DE
MORAES, 2006, p. 115-116).

Parece ser necessário e imprescindível estabelecer uma relação entre o direito


à vida digna e um consequente direito à morte digna, sem prolongamentos
desnecessários, custosos e doloridos à pessoa no final de vida, atribuindo a ela o
direito de fazer suas escolhas existenciais individualmente, ainda que devidamente
amparada e informada, mas sem quaisquer influências de ordem moral ou estatal que
lhe tornem forçoso o exercício do direito à vida, que no extremo, se tornaria um dever
à vida, como anteriormente afirmado.
Desconsiderar esse direito de escolha, essa opção de vida, significa em última
instância desconsiderar a própria vida, afinal, “como já sabiam os antigos, a vida se
reconhece não somente lá onde há uma aparência de alma intelectiva, mas também
onde existe uma manifestação de alma sensitiva e vegetativa” (ECO; MARTINI, 2014,
p. 29).
Nesse contexto e no respeito intransigente à vida humana e à possibilidade de
escolhas da pessoa, que se advoga a favor das chamadas Diretivas Antecipadas de
Vontade (DAVs), seja ela em quaisquer modalidades.

AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

As chamadas Diretivas Antecipadas de Vontade (DAVs) não encontram


regulamentação expressa no ordenamento jurídico brasileiro, exceto pela
representação da Resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina que
estabelece a sua definição e orienta a conduta do profissional médico na observância
e respeito às decisões do paciente.
A morte constitui a única certeza indelével do ser humano e sua consciência
dessa realidade o diferencia dos demais animais, permitindo a tomada de decisão
acerca de eventuais tratamentos médicos ou intervenções cirúrgicas.
Há tempos esse fenômeno de finitude não mais representa um processo
natural, pois o avanço das técnicas, procedimentos médicos-cirúrgicos,
medicamentos e equipamentos de tecnologia, admitem uma existência quase artificial,
com monitoramento e utilização de mecanismos que substituem os órgãos falidos pelo
tempo ou pela doença, representando um prolongamento de vida, ainda que com
possível perda de um parâmetro de dignidade anteriormente existente.

A ciência e a medicina expandiram os limites da vida em todo o mundo.


Porém, o humano está para a morte. A imortalidade não tem cura. É nessa
confluência entre a vida e a morte, entre o conhecimento e o
desconhecido, que se originam muitos dos medos contemporâneos.
Antes, temiam-se as doenças e a morte. Hoje, temem-se, também, o
prolongamento da vida em agonia, a morte adiada, atrasada, mais sofrida.
O poder humano sobre Tanatos (BARROSO; MARTEL, 2010, p. 236-237).

É importante ressaltar a existência de interesses, dos mais variados, acerca do


assunto, que variam desde a área econômica, dado o interesse de grandes
laboratórios e produtores de equipamentos de alta tecnologia, da moral e ética, além
das questões mais afeitas ao próprio Direito. Possibilitar à pessoa o direito de morrer,
241

se não mais lhe interessar uma vida não-digna, consistiria então, em permitir o pleno
exercício de sua autonomia e dignidade, o que pode ser feito a partir de instrumentos
que carecem de regulamentação expressa no ordenamento jurídico brasileiro.
Por Diretivas Antecipadas de Vontade, pode ser considerado o instrumento
através do qual a pessoa declara sua vontade acerca dos procedimentos médicos,
cirúrgicos e medicamentosos que deseja ou não se submeter para o seu tratamento,
mesmo quando não estiver em condições de manifestar sua vontade em momento
posterior, configurando suas espécies o testamento vital e o mandato duradouro.
“O testamento vital é um documento escrito no qual uma pessoa dispõe acerca
da sua vontade quanto aos cuidados médicos que pretende receber ou não receber
quando perca a capacidade de exprimir os seus desejos, ou se encontrar em tal
estado de incapacidade que não possa decidir por si” (RAPOSO, 2011, p. 175).
Outra interessante espécie de Diretiva Antecipada de Vontade é o mandato
duradouro, que “constitui o documento pelo qual o paciente nomeia um ou mais
procuradores que deverão ser consultados pelos médicos, em caso de incapacidade
deste – permanente ou temporária, quando estes tiverem que tomar alguma decisão
sobre tratamento ou não tratamento” (DADALTO, 2013, p. 3).
Embora não haja regulamentação expressa no ordenamento jurídico,
disciplinando as Diretivas Antecipadas de Vontade, há um considerável esforço dos
estudiosos em emprestar a esse negócio jurídico diretrizes para que possa ser
plenamente utilizado e, respeitada a vontade da pessoa, em suas declarações quanto
ao final de vida. Essa ausência de regulação pode se constituir em obstáculo para a
existência e validade desse tipo de negócio, pois “não se pode pretender que o Poder
Legislativo que regulamente, como no passado, todos os setores da vida social” que
está “mais dinâmica e insuscetível de enquadramento por modelos de organização e
de comportamento predefinidos, especialmente no âmbito de relações existenciais”
(TEPEDINO, 2016, p. 32), como é o caso das DAVs.
Portanto, uma vez emitida a declaração de vontade quanto aos procedimentos
médicos, cirúrgicos e medicamentosos que a pessoa deseja ou não se submeter, essa
declaração deve ser respeitada e cumprida nos seus estritos rigores.
Nessa esteira, não se pode exigir que as DAVs sejam emitidas com
formalidades que o legislador não expressamente exigiu, em especial consideração
com o momento de tecnologia de informação pelo qual está passando a sociedade
hodierna. Com a devida vênia a opiniões contrárias, exigir instrumento escrito, pela
forma pública ou particular ou quaisquer outras formalidades, ao fim e ao cabo poderá
levar à impossibilidade de realização de direito existencial da pessoa que não se
submeteu a tal procedimento solene.
Ora, a contemporaneidade está a romper a fronteira do papel, da materialidade
do ato, que pode ser muito bem externada, compreendida e acessada, pelos mais
variados tipos de mídia digital. Em qualquer momento se pode declarar por vídeo ou
áudio, por exemplo, os desejos e vincular-se ao que fora deliberadamente declarado,
sem outras exigências desnecessárias.
Dessa forma, em respeito ao princípio de liberdade de forma que rege as
relações jurídicas em geral, a defesa que se faz consiste em permitir que as Diretivas
Antecipadas de Vontade possam ser externadas também por qualquer meio apto para
compreender o real querer do declarante, sem a necessidade de formalidade
específica para esse mister, “não precisam ser realizadas por escrito”, pois “se
constituem em negócios jurídicos para os quais a lei não exigiu forma específica, de
se admitir sua forma livre, embora se reconheça que a forma escrita garante maior
segurança jurídica” (MEIRELLES, 2016, p. 721).
242

O respeito à liberdade acerca das decisões sobre procedimentos de final de


vida não pode ser obstado por formalismos e formalidades exacerbadas que não
guardam qualquer relação com a vida moderna, entre a liberdade de agir e a
formalidade, preferível aquela a esta.

CONCLUSÕES

Há considerável polêmica acerca das questões que envolvem o final de vida,


notadamente pelos mistérios que a própria existência revela, bem como às questões
que fogem da exclusividade de um único ramo do saber, afinal o ser humano tem
consciência da iminência de sua morte; a cada dia, por mais difícil que seja essa
realidade, se está mais próximo desse fato indelével.
Considerar que há uma garantia constitucional acerca da de uma vida digna,
deve também servir de parâmetro para a defesa de final de vida com dignidade, nos
mesmos moldes que se permitiu/garantiu no decurso do tempo existencial da pessoa.
Portanto, emprestar validade e eficácia à vontade externada, acerca de
procedimentos médicos, cirúrgicos ou medicamentosos, para as Diretivas
Antecipadas de Vontade, corresponde a garantir a máxima liberdade da pessoa para
agir e se colocar diante de questões existenciais.
A ausência de regulamentação expressa não pode servir de obstáculo para que
a autonomia privada possa ser exercida em sua plenitude, menos ainda se pode criar
empecilhos ou formalidades que não condizem com a realidade contemporânea sob
pena de levar as Diretivas Antecipadas de Vontade à inefetividade, dadas as
limitações de acesso à informação e a órgãos oficiais.
Além disso, com os mais variados meios aptos a externalização da vontade,
propiciados pela tecnologia da informação, tal exigência acaba soando contraditória e
arcaica; contraditória porque remonta ao passado patrimonialista e arcaica porque não
reconhece os mais variados meios de captação da imagem e voz acessível a grande
parte da população.
O respeito à ‘santidade da vida’ humana passa também por respeitar o desejo
de viver os últimos momentos de vida, ou seja, o morrer com dignidade.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é:
dignidade e autonomia individual no final da vida. Revista da Faculdade de Direito
de Uberlândia. vol. 38, 2010, p. 235-274.
DADALTO, Luciana. Aspectos registrais das diretivas antecipadas de vontade.
Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 2, n. 4, out./dez., 2013. Disponível em:
<http://civilistica.com/aspectos-registrais-das-diretivas-antecipadas-de-vontade/>.
Acesso em: 10/07/2018.
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais.
[trad. Jefferson Luiz Camargo; revisão da tradução Silvana Vieira] 2ª ed. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2009.
ECO, Umberto; MARTINI, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem? [trad.
Eliana Aguiar]. 16ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Diretivas antecipadas de vontade por pessoa
com deficiência. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de. [Org.]. Direito das pessoas
com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas. Rio de Janeiro:
Editora Processo, 2016, p. 713-731.
243

MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato


axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang [org.]. Constituição,
Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2ª ed. Rio Grande do Sul: Livraria do
Advogado, 2006.
RAPOSO, Vera Lúcia. Diretivas Antecipadas de Vontade: em busca de lei perdida.
Revista do Ministério Público. Janeiro/Março, 2011. Disponível em: <
https://www.vda.pt/xms/files/v1/Publicacoes/Directivas_Antecipadas_de_Vontade_-
_Em_Busca_da_Lei_Perdida.pdf>. Acesso em: 10/07/2018.
TEPEDINO, Gustavo. O papel atual da doutrina no Direito Civil entre o sujeito e a
pessoa. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor
(Coords.) O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao
professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 17-35.
244

ABANDONO EFETIVO: DA FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO AO DIREITO


EMOTIONAL ABANDONMENT: THE INDIVIDUAL FORMATION AND THE LAW

Valéria Morine Nagy


Janaína Paiva Sales

Resumo: O abandono afetivo relaciona-se com a falta da referência afetiva, daquilo


que afeta o comportamento humano, parte fundamental da formação do indivíduo. Se
essa formação é falha ou negativa nesse período, interferirá no desenvolvimento
integral desse ser como ser social e emocional. Entendendo a importância da
afetividade na vida humana, o Direito, por meio do Legislativo e pela ação
interpretativa do Judiciário, regulou a proteção aos filhos, garantindo a eles o cuidado,
especialmente na infância e adolescência, pelos pais ou responsáveis. Essa
obrigação nada tem a ver com o amor, mas com o bom desenvolvimento emocional,
cognitivo e motor da pessoa. O abando afetivo não está ligado necessariamente ao
afeto como sentimento, mas, sim, à falta do cuidado básico que prejudicará o pleno
desenvolvimento da criança em seu ambiente. O presente estudo exporá a
importância da afetividade na vida humana por meio da visão biopsicossocial e as
consequências de sua apreensão negativa pelo indivíduo, e trará à luz do Direito
brasileiro as implicações jurídicas deste para com os pais ou responsáveis que
praticam o abandono em pauta.
Palavras-chave: ABANDONO AFETIVO – AFETIVIDADE – FAMÍLIA

Abstract: The emotional abandonment is related to the lack of the affective reference,
of what affects the human behavior, a fundamental part for the formation of the
emotional. Understanding the importance of affectivity in human life, the Law, through
the Legislative and the interpretive action of the Judiciary, regulated the protection of
children, ensuring that they are cared for as adolescent children by parents or
guardians. This obligation has nothing to do with love, but with the proper emotional,
cognitive and motor development of the person. The affective abandonment is not
necessarily related to affection as feeling, but rather to the lack of basic care that
impairs the full development of the child in its environment. The present study will
expose the importance of affectivity in human life in the psychosocial view and the
consequences of its negative apprehension by the individual and will bring to light the
legal implications of this affective abandonment for parents or guardians practicing
abandonment.
Keywords: EMOTIONAL – ABANDONMENT – FAMILY

INTRODUÇÃO

Desenvolver um estudo sobre relações humanas sempre será desafiador, pois


o humano, como ser social, traz em sua estrutura grande complexidade,
principalmente em se tratando de sua formação emocional. Ao longo do tempo, o
conceito de família evoluiu — como a própria sociedade — e estabeleceu diversas
composições familiares não menos importantes que a classificada como “tradicional”;
todas são famílias, com o mesmo peso e responsabilidade, seja qual for a sua forma.
Por meio da observação estrutural dos perfis psicossociais humanos, chamou-
nos atenção, em particular, a complexa cadeia emocional que pode ser formada em
cada indivíduo a partir da mais tenra idade (ou até mesmo pré-natal, intrauterino) por
consequência daquilo que o afeta, conforme tese desenvolvida pelo psicólogo francês
245

Henri Paul Hyacinthe Wallon (1879-1962), que trouxe à luz da Educação os conceitos
do desenvolvimento psíquico da criança a partir de três dimensões: motora, afetiva e
cognitiva. Na vida adulta, muitas experiências ficam guardadas no subconsciente,
todavia em dado momento algumas emergirão para o consciente, expressando-se nas
ações e decisões que tomamos.
Contudo, vemos aumentar cada vez mais os casos de abandono afetivo, seja
de pais que se divorciam; seja de pais que adotam e desistem, como se o ser humano
fosse reduzido a uma coisa da qual se pode desfazer quando não se quer mais. Se o
Direito não permite que tratemos as reais coisas assim, tampouco deve permitir que
tratemos do mesmo modo as pessoas. E, assim, o abandono afetivo passa a ter
espaço cada vez mais amplo para a proteção jurídica dos filhos perante as obrigações
dos pais.
Assim, antes de o Estado-juiz concluir o julgamento de um litígio por abandono
afetivo, importa saber quais as consequências desse ato para a vítima do abandono
não só nos termos materiais que a discussão jurídica deve abarcar, mas,
principalmente, nos aspectos biopsicossociais desse indivíduo.

1 COMO SE DESENVOLVE A AFETIVIDADE HUMANA

1.1 O ser social segundo Henri Wallon

O ser humano é um ser social, está inserido em sociedade e dela necessita


para seu desenvolvimento completo — biológico e material; intelectual e emocional.
O biológico (o físico, o material) está relacionado à ciência natural. Já o intelectual (o
espiritual, o emocional), à ciência social. Na teoria do materialismo dialético, de Henri
Wallon, não há como separar do homem o material do espiritual, como muitos querem
defender; não há separação, um depende do outro para a integral formação humana.

Wallon admite o organismo como condição primeira do pensamento,


afinal, toda função psíquica supõe um equipamento orgânico. [...] O
homem é fisiológica e socialmente sujeito, portanto, a uma dupla história,
a de suas disposições internas e das situações exteriores que encontra ao
longo de sua existência.1 (GALVÃO, 1995)

Embora muitos estudiosos ainda separem o adulto da criança, como se fossem


entidades distintas, seres independentes, não há como verificar essa diferenciação.
O adulto é a criança no estágio final de desenvolvimento físico, químico e psicológico.
Assim, pode-se conhecer o adulto através da criança; aquele é o resultado desta, o
que afeta a criança perdurar-se-á no estágio maduro desse ser, de acordo com o
objeto afetado. Wallon não aceita o conceito do ser humano a partir de um único
aspecto, e, sim, por vários campos funcionais nos quais se desenvolve a atividade
infantil: afetividade, motricidade, inteligência, ou seja, “a criança contextualizada, isto
é, nas suas relações com o meio2”.
A criança, então, não é uma porção menor do adulto, ela é o adulto em
formação, o que significa dizer que na infância se desdobra toda a complexidade de
percepções e apreensões psicológicas, emocionais, materiais e cognitivas do
indivíduo, que estabelecerá como ele será quando atingir a maturidade
biopsicossocial, que também tem fundamental papel no período que antecede a vida
adulta, a saber, a adolescência. Desse modo, ela é afetada pelos elementos externos

1
GALVÃO, Izabel. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. Petrópolis: Vozes, 1995, 4. ed., p. 20
2
Idem. p. 22
246

e internos do ambiente e que dele despertam, como os objetos, informações, olhares,


ou medo e fome, por exemplo, sendo essa afetação positiva ou negativa. Daí se extrai
a afetividade humana, tão cara ao desenvolvimento e que não tem o mesmo
significado de carinho e amor, como se costuma associar ao termo “afeto”.

2 A AFETIVIDADE E O DIREITO BRASILEIRO

O abandono afetivo sempre existiu, porém, foi mais recentemente que o


Judiciário começou a ser chamado para decidir sobre o assunto. A Constituição de
1988 estabelece, em seu artigo 229, que “os pais têm o dever de assistir, criar e
educar os filhos menores [...]3”. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) assim define o
abandono afetivo:

Quando caracterizada a indiferença afetiva de um genitor em relação a


seus filhos, ainda que não exista abandono material e intelectual, pode ser
constatado, na Justiça, o abandono afetivo. Apesar desse problema
familiar sempre ter existido na sociedade, apenas nos últimos anos o tema
começou a ser levado à Justiça, por meio de ações em que as vítimas, no
caso os filhos, pedem indenizações pelo dano de abandono afetivo.
Algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) são no sentido
de conceder a indenização, considerando que o abandono afetivo constitui
descumprimento do dever legal de cuidado, criação, educação e
companhia presente, previstos implicitamente na Constituição Federal. 4

O CNJ diferencia o abandono afetivo do abandono intelectual e material,


entendendo que o primeiro engloba os demais (educação e recursos necessários)
juntamente com o dever de cuidar e oferecer o convívio saudável com os pais ou
responsáveis, conforme estabelecido na CF/1988. O Código Civil 5, no artigo 1.634, I,
diz caber aos pais o dever de criar e educar os filhos, e, no artigo 1.638, II, diz que os
pais podem perder o direito de exercer o poder familiar se deixarem o filho em situação
de abandono.
O Direito vem entendendo o sentido da afetividade como sendo o dever de
cuidar, educar e criar, e, também, o dever dos pais em dar atenção, carinho e suporte
para o desenvolvimento emocional saudável dos filhos, sejam eles biológicos ou
adotivos. Com a evolução das famílias, esse direito se amplia, ainda, pelo vínculo
social do afeto que tenha sido estabelecido entre padrastos/madrastas e enteados,
por exemplo, estabelecendo a relação socioafetiva. A “pais” estende-se o conceito
aos casais homoafetivos, em pé de igualdade com os casais heteroafetivos, assim
como para qualquer outra configuração familiar e sua relação parental. Maria Berenice
Dias6 (2009) expõe, acerca das composições familiares, que

Nesse extenso rol não consta o que talvez seja o mais importante dever
dos pais com relação aos filhos: o dever de lhes dar amor, afeto e
carinho. A missão constitucional dos pais, pautada nos deveres de
assistir, criar e educar os filhos menores, não se limita a vertentes
patrimoniais. A essência existencial do poder parental é a mais
importante, que coloca em relevo a afetividade responsável que liga pais

3
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988. Brasília:
Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2015, p. 133
4
Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Entenda a diferença de abandono intelectual, material e afetivo. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80241-entenda-a-diferenca-entre-abandono-intelectual-material-e-afetivo>. Acesso em 17 jul
2017
5
BRASIL. Código Civil e normas correlatas. 8. ed. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2017, pp. 183 e
184
6
DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 388
247

e filhos, propiciada pelo encontro, pelo desvelo, enfim, pela convivência


familiar.

A análise psicológica antes exposta neste artigo ilumina o entendimento da


afetividade como parte fundamental do desenvolvimento humano, por meio da
emoção, do sentimento e da paixão. O amor pode não ser sinônimo de afetividade,
mas está incluído no seu significado; amor como sentimento que provoca a afeição, a
estima e a amizade, elementos essenciais para que se desenvolva o caráter positivo
da segurança e da saúde emocional na pessoa, desde a infância.
Ter segurança emocional possibilita ao indivíduo crescer e gozar de um período
adulto mais saudável na convivência social, seja familiar, pessoal ou profissional, pois
garante a este o equilíbrio na elaboração dos pensamentos e das decisões, portanto,
das ações diante da vida para si e para a sociedade. Essa segurança não pode ser
proporcionada sozinha, pois depende do ambiente familiar ao qual o indivíduo é
exposto desde bebê (a afetação do meio pela observação e absorção do externo pelo
interno). Contudo, é impossível obrigar alguém a amar. O amor, sendo sentimento,
não é determinável nem legislável, pois é involuntário — não se pode planejar amar
alguém. A lei pode, então, exigir o cuidado, mas não o amor. Destarte, ainda que não
haja amor, os pais têm o dever de cuidar dos filhos e dar a eles, além da proteção
material e educação, condições emocionais favoráveis para seu bom desenvolvimento
pessoal e íntimo, ainda que amor, repito, não haja. Um instituto (ainda novo no Brasil)
que mostra essa relação não baseada no ânimo da paixão, mas no desejo de ter filhos
e deles cuidar sem, entre aspas, expor a criança às problemáticas emocionais de um
relacionamento é o da coparentalidade, por meio do qual os genitores decidem
procriar sem estabelecer vínculo emocional entre si. Este vínculo emocional será tão
somente estabelecido com o filho.
As situações de abandono afetivo, na maioria das vezes, ocorrem após o
divórcio dos pais, mas não somente nesses casos. Essa questão é complexa para o
Direito, pois não diz respeito à proteção patrimonial e não reduz a filiação aos bens
da família, mas, sim, abarca o desenvolvimento emocional, o direito a ter uma
formação biopsicossocial saudável, garantindo a todos o direito à dignidade humana
e à boa convivência familiar. A família, seja como for sua configuração, prossegue
sendo a base da sociedade, pois é nela que se sustentam os sentimentos humanos,
ou seja, é pela afetividade que se desenvolve na família (a afetação do meio pela
emoção, pelo sentimento e pela paixão), que se estabelecerá o futuro de uma
sociedade, por meio dos indivíduos que a formam. Vale lembrar, porém, que essa
afetação pode ocorrer de maneira positiva ou negativa; o Direito vai, então, garantir
aos filhos o dever dos pais de proporcionar a afetação positiva da prole e punir aqueles
que o fazem de forma negativa, como meio de compensar, ainda que materialmente
apenas, essa falha de comportamento e tentar conscientizar os genitores de suas
obrigações na criação dos filhos.
Há de se compreender que o ato de ter filhos determina obrigações dos pais
ou responsáveis enquanto eles — os filhos — forem menores de idade. Por isso é
preciso que haja uma reeducação da sociedade diante do planejamento familiar e no
ensino sobre a sexualidade humana, para que se entenda quais são as aplicações e
implicações da filiação, que abrange os adotivos, a fim de que não se vejam mais
casos em que os adotantes devolvem o adotado, seja pelo motivo que for. Nota-se,
então, a gravidade do despreparo emocional de adultos que repassam, talvez, sua
própria afetividade negativa para os que dependem ou poderiam deles depender. É,
portanto, dever do Estado-juiz realizar parte dessa reeducação social por meio do
248

Direito. Assim como explana Rodrigo da Cunha Pereira7 (2012), presidente do Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM),

A afetividade pode se traduzir como fonte de obrigação jurídica porque


significa atenção, imposição de limites, convivência e todos os cuidados
necessários para o desenvolvimento saudável de uma criança ou
adolescente. Sem isso não há sujeito, não há humanidade. É obrigação
dos pais cuidar dos seus filhos. E aqueles que descumprem tal obrigação
estão infringindo regras do Código Civil — artigo 1.634, inciso II — e o
princípio constitucional da paternidade responsável, devendo sofrer as
sanções da lei, sob pena de ela tornar-se mera regra moral, ou seja, virar
letra morta.

O Estado-juiz deve decidir os litígios que os cidadãos por si mesmos não


conseguem, ainda mais quando tratam de relações humanas, na proteção do bem-
estar de crianças e adolescentes que precisam de cuidados e de atenção para que
possam se tornar adultos emocionalmente saudáveis e responsáveis, criando a
oportunidade de quebrar a continuidade da má assistência dos pais, que, por essa
razão, podem, inclusive, perder o direito do poder familiar pela falha na criação dos
filhos menores.
Sabendo que nem todas as uniões perduram, o Direito precisa garantir a
proteção jurídica nas relações entre as pessoas. Muitos divórcios acabam em
episódios dramáticos, repletos de mágoas e de raiva, e o ressentimento dos ex-
cônjuges por vezes respingam nos filhos. O abandono afetivo de um dos pais (ou de
ambos) pode terminar, ainda, em alienação parental, quando um genitor tenta colocar
o filho contra o outro genitor, afastando o direito desse filho de conviver de forma
saudável com o pai ou com a mãe. Cria-se mais uma consequência emocional danosa
no desenvolvimento desse indivíduo: a síndrome da alienação parental. Necessária
se faz, indiscutivelmente, nesses casos, a interferência do Judiciário para diminuir,
pode-se assim dizer, os prejuízos causados à prole afetivamente abandonada ou
alienada.

A cisão no relacionamento dos pais não pode levar à cisão dos direitos
parentais. O rompimento da relação de conjugalidade não deve
comprometer a continuidade da convivência com ambos os genitores. O
filho não pode se sentir objeto de vingança, em face dos ressentimentos
dos pais.8 (DIAS, 2009)

O acesso à convivência familiar saudável é um direito de todos, sem exceção,


e garantir esse direito é respeitar a dignidade da pessoa humana, tão cara à
humanidade e lembrada pela Constituição brasileira de 1988.

A dor de um filho abandonado pelo pai, que o privou do direito à


convivência, de amparo afetivo, moral e psíquico e de ser cuidado por ele,
afronta também o princípio da dignidade humana. Kant já tinha “cantado
essa bola” há séculos em sua Fundamentação da Metafísica dos
Costumes: o amor enquanto inclinação não pode ser ordenado, mas o
bem fazer por dever, que rende em princípios de ação e não em
compaixão. É só esse amor que pode ser ordenado.9 (CUNHA PEREIRA,
2012)

7
CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. A afetividade como fonte de obrigação jurídica. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-
jun-26/rodrigo-cunha-pereira-afetividade-obrigacao-juridica>. Publicado em: 26/6/2012. Acesso em 17 jul 2017
8
DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 66
9
CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. A afetividade como fonte de obrigação jurídica. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-
jun-26/rodrigo-cunha-pereira-afetividade-obrigacao-juridica>. Publicado em: 26/6/2012. Acesso em 17 jul 2017
249

Desse raciocínio, os tribunais no Brasil têm dado provimento a ações de


indenização por dano moral decorrentes do abandono afetivo, nas quais filhos buscam
no Judiciário alguma reparação pelo devastador ato de abandono cometido por ambos
os pais ou por um deles, assim como ocorreu no Resp nº 1.159.242-SP10, recurso no
qual um pai foi condenado a pagar indenização de R$ 200.000,00 à filha, por
abandono afetivo.
Os danos psicológicos causados pelo abandono afetivo são inúmeros e a vítima
os levará por toda a vida, tendo, então, que aprender a lidar com o trauma, ou, caso
não tenha a plena consciência dele, viver as consequências deixadas por este na sua
personalidade. O sujeito pode tornar-se depressivo, ou emocionalmente frio, ou,
ainda, alguém com alto grau de agressividade; pode também repetir o abandono
afetivo que sofreu, agindo igualmente com os futuros filhos.

A consequência mais imediata do traumatismo é a angústia, que consiste


num sentimento de incapacidade para adaptar-se à situação do
desprazer. Se o salvamento não chega e mesmo a sua esperança parece
excluída, torna-se necessária uma válvula de escape.11 (SCHOR, 2016)

A indenização via Judiciário não cura o trauma, mas responsabiliza aquele que
o provocou e não deixa cair no esquecimento o resultado desastroso de sua falha.
Muitos dos filhos vítimas do abandono afetivo conseguem tratar os traumas ao longo
da vida, por meio da psicanálise ou tratamentos psiquiátricos, mas, ainda assim, tratar
o problema não diminui a responsabilidade do pai, da mãe ou do responsável autor(a)
do abandono.

CONCLUSÃO

O desenvolvimento da espécie humana precisa, além das necessidades


biológicas, da afetividade, para que seja bem-sucedida. O afeto é o cuidado que o
indivíduo percebe e absorve a partir da observação da realidade desde bebê e que
fará parte do crescimento até a vida adulta. Assim, não há interrupções nessa
afetação, ela é uma constante; participa do desenvolvimento da pessoa. A afetação
será positiva ou negativa, a depender do ambiente onde se cresce — daí surgirá o
indivíduo emocionalmente saudável (positiva) ou emocionalmente traumatizado
(negativa).
A falta de orientação adequada, a banalização das relações humanas e a má
condução afetiva das famílias resultam em pessoas despreparadas emocionalmente,
adultos inseguros, depressivos ou agressivos, que não sabem lidar com as próprias
emoções e menos ainda com as dos que estão ao seu redor, seja pessoal ou
profissionalmente. E essa orientação errada acaba sendo passada de geração a
geração.
O abandono afetivo é um grande gerador de desequilíbrio emocional, pois, por
atuar no interior do indivíduo desde bebê, deságua em traumas e carências
extremamente profundas em relação a si mesmo e, consequentemente, em relação
aos demais, criando dificuldades de relacionamento e de convivência social. Esses
traumas podem provocar tanta dor íntima que impedem uma pessoa de conseguir ter
10
Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial nº 1.159.242-SP. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília (DF), 24
de abril de 2012 (Data do Julgamento). Documento: 1067604 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 10/05/2012 Página
2 de 49. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/acordao-abandono-afetivo.pdf>. Acesso em: 17 jul 2017
11
SCHOR, Daniel. Heranças invisíveis do abandono afetivo: um estudo psicanalítico sobre as dimensões da experiência
traumática. São Paulo: Edgard Blucher, 2016, p. 68
250

qualquer contato social com êxito. Por isso, muitas vítimas desse abandono afetivo
têm procurado o Judiciário para, minimamente, ter seu direito reparado. É claro que o
dinheiro não basta para resolver um trauma tão importante, mas é um meio de cobrar
do pai ou da mãe faltante, que tinha o dever de assegurar essa afetividade positiva, a
responsabilidade não cumprida.
Mais do que nunca, pela evolução das famílias na contemporaneidade, o
“Direito das Famílias”, no plural, como sugere o IBDFAM12, precisa estar atualizado,
para servir ao anseio dessa nova sociedade, que pede auxílio do Judiciário para tratar,
agora, não apenas do patrimônio, mas da emoção e do sentimento. E se o amor não
pode ser escrito em Lei nem determinado pela Justiça, o dever de respeitar a
dignidade da pessoa humana e de cuidar dos filhos pode. Filhos não são propriedade
dos pais; filhos são responsabilidade dos pais. Portanto, os pais devem cuidar
afetivamente e materialmente destes e não podem fazer com eles o que bem
entenderem. Trata-se aqui de pessoas, não de coisas, embora muitos pais tratem os
filhos como se coisas fossem. Mas não são. E o Direito está aí para garantir o
tratamento digno às “pessoas humanas”. Faz-se urgente o resgate das famílias como
tal e não como somente um aglomerado de gente que se suporta e divide o mesmo
sobrenome — a família é amor, atenção, cuidado, educação, vínculo afetivo,
segurança emocional (e não importa qual seja sua configuração — hetero ou
homoafetiva; monoparental; adotiva; socioafetiva etc.).
É preciso que haja uma reestruturação das sociedades, com reeducação
emocional, para que seja quebrada a corrente do abandono afetivo e, desse modo,
seja possível reerguer a estrutura dos núcleos familiares que hoje estão tão
ampliados, abrindo possibilidades novas de ensinar a humanidade a ser mais
compreensiva e menos intolerante. O Direito precisa, cada vez mais, compreender o
lado humano, interpretando, portanto, o ordenamento jurídico com humanidade, para
que se possa, então, tratar o indivíduo como ser social, que traz em seu núcleo a
emoção, o sentimento e a paixão.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Civil e normas correlatas. 8. ed. Brasília: Senado Federal,


Coordenação de Edições Técnicas, 2017
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional
promulgado em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, Coordenação de
Edições Técnicas, 2015
Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Entenda a diferença de abandono intelectual,
material e afetivo. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80241-entenda-
a-diferenca-entre-abandono-intelectual-material-e-afetivo>
COSTA, Gley. et al. A clínica psicanalítica das psicopatologias
contemporâneas. Porto Alegre: Artmed, 2010
CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. A afetividade como fonte de obrigação jurídica.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-jun-26/rodrigo-cunha-pereira-
afetividade-obrigacao-juridica>. Publicado em: 26/6/2012
DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2009
GALVÃO, Izabel. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil.
4. ed. Petrópolis: Vozes, 1995

12
Instituto Brasileiro de Direito de Família.
251

LIGER, Olivan. Patologias do desvalimento: o vazio do não ser. Disponível em:


<https://sppsic.wordpress.com/tag/andre-green>. Publicado em: 9/8/2011
Revista eletrônica Valor do Conhecimento. A teoria de Melaine Klein e o eterno
dilema entre amor e ódio. Edição de 21 de setembro de 2015. Disponível em:
<http://www.valordoconhecimento.com.br/blog/a-teoria-de-melanie-klein-e-o-eterno-
dilema-entre-o-amor-e-o-odio>
SALLA, Fernanda. O conceito de afetividade de Henri Wallon. Disponível em:
<https://novaescola.org.br/conteudo/264/0-conceito-de-afetividade-de-henri-wallon>.
Publicado em 1/10/2011
SCHOR, Daniel. Heranças invisíveis do abandono afetivo: um estudo psicanalítico
sobre as dimensões da experiência traumática. São Paulo: Edgard Blucher, 2016
Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial nº 1.159.242-SP. Relatora:
Ministra Nancy Andrighi. Brasília (DF), 24 de abril de 2012 (Data do Julgamento).
Documento: 1067604 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 10/05/2012
Página 2 de 49. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/acordao-abandono-
afetivo.pdf>
252

AS RESTRIÇÕES DE ALTERAÇÃO DO NOME CIVIL POR MOTIVO DE


CASAMENTO SOB AS NORMAS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO AMAZONAS
THE RESTRICTIONS OF CIVIL NAME ALTERATION FOR REASON OF WEDDING
UNDER THE COURT OF JUSTICE OF AMAZONAS REGULATION

Luiz Felipe Lima dos Santos


Mario Vitor Magalhães Aufiero
Denison Melo de Aguiar

Resumo: As restrições da modificação dos nomes dos nubentes pode ser uma forma
de violar o Direito ao nome. O objetivo desta pesquisa é descrever as restrições que
possam vim a ocorrer no caso específico do casamento. A metodologia jurídica
utilizada nesta pesquisa foram as pesquisas: bibliográfica, doutrinária, legal e
jurisprudencial. Nesta pesquisa, foi considerado o direito fundamental do nome e suas
crescentes possibilidades de alteração versus as regras impostas pela Corregedoria-
Geral de Justiça do Estado do Amazonas através do Manual da Atividade Extrajudicial
instituído através do provimento de nº 278 no ano de 2016, do Tribunal do Amazonas.
Há de se considerar que, restringir somente a um dos nubentes a modificação do
nome é uma violação do Direito Fundamental ao nome.
Palavras Chave: Nome. Casamento. Código Civil.

Abstract: Restrictions on changing names of spouses may be a way of violating the


right to name. The purpose of this research is to describe the restrictions that may have
occurred in the specific case of marriage. The legal methodology used in this research
was the bibliographical, doctrinal, legal and jurisprudential research. In this research,
the fundamental right of the name and its increasing possibilities of alteration were
considered versus the rules imposed by the Corregedoria-Geral de Justiça do Estado
do Amazonas, through the Manual da Atividade Extrajudicial instituted through do
provimento de nº 278 in the year 2016, of the Tribunal do Amazonas. It must be
considered that, to restrict only to one of the spouses the modification of the name is
a violation of the Fundamental Right to the name.
Key Words: Name. Marriage. Civil Code.

INTRODUÇÃO

Há restrições de alteração do nome civil por motivo de casamento sob as


normas de Tribunal de Justiça do Amazonas, que violam Direitos Fundamentais civis.
Desde o ano de 2016, a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Amazonas
instituiu limite de mudança de nome, especificamente o sobrenome, quando a causa
da mudança for o casamento, para que apenas um dos nubentes possa, querendo,
acrescer sobrenome de seu cônjuge. Tal mudança cerceia o direito ao nome daqueles
que casam, direito este que integra a personalidade da pessoa, sendo reconhecido
como direito fundamental, garantido internacionalmente.
Neste sentido, o objetivo desta pesquisa é descrever as restrições que possam
vim a ocorrer no caso específico do casamento. Inicialmente, se discorreu sobre o
nome no Ordenamento Jurídico Brasileiro, se descreveu o nome civil nos registros
públicos e de como os princípios dos registros são instrumentos para efetivar este
Direito.
A metodologia jurídica utilizada nesta pesquisa foram as pesquisas:
bibliográfica, doutrinária, legal e jurisprudencial. Utilizou-se o procedimento técnico
253

analítico, baseado nas teorias sociólogo-jurídicas da criminologia crítica e do sistema


de controle social.
A partir dessa exposição, o problema central da pesquisa consiste em
responder à pergunta que segue: como ocorrem as restrições de alteração do nome
civil por motivo de casamento sob as normas do Tribunal de Justiça do Amazonas?

2. O NOME CIVIL NO ESTADO DE DIREITO BRASILEIRO

O nome civil é inserido no direito à personalidade, e é a forma principal de


designação e distinção de uma pessoa, ou seja, é a característica que a diferencia e
destaca das demais em sua vida social, podendo ser de esfera pública (da interação
dessa pessoa com o estado) ou privada (das relações interpessoais e públicas).
Seu caráter de Direito Humano Fundamental advém da Declaração dos Direitos
da Criança adotada pela Assembléia das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959,
na qual Brasil subscreveu e ratificou em 1990. O tratado foi incorporado no direito
nacional por meio do decreto número 99710, de 1990 (BRASIL, 1990).
Dentro do conjunto de normas do Direito Brasileiro, o direito ao nome é
expresso dentro do Código Civil, de 2012, em seu art. 16: “Toda pessoa tem direito
ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”, se tratando de direito
reconhecido por diversas esferas jurídicas, como doutrina, jurisprudência e a própria
lei.
São discutidas nestes aspectos, as características do nome civil, havendo
divergência a respeito da inclusão ou exclusão de determinadas características, mas
podem ser citadas a “exclusividade, a imprescritibilidade, a inalienabilidade” (VIEIRA,
2008), dentre outras.
O nome é formado normalmente de duas partes: o Prenome (também chamado
de nome de batismo ou nome próprio), aquele que é escolhido pelos pais, possuindo
maior flexibilidade na hora da escolha, e o Sobrenome que, como podemos interpretar
do a partir do Código Civil, seriam os chamados “nomes de família”, ou seja, aquela
parte do nome civil que indica a filiação, sendo a partícula mais antiga destas (VIEIRA,
2008).

3 DISPOSIÇÃO SOBRE O NOME NA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS

A lei que trata dos registros públicos, incluindo o registro de nomes, é a lei
6.015/73, chamada Lei de Registros Públicos. Nela, são definidos formas e critérios
para o registro do nome civil e, a partir do registro, dar publicidade aos nomes como
um todo. Ademais, disciplina as possibilidades de mudança deste registro, como, por
exemplo, como ocorre com o casamento ou com a mudança de sexo.
Incluídos nesta lei, pode-se verificar múltiplas possibilidades de mudança, tanto
de sobrenome (como viuvez, casamento, divórcio) como de prenome (prenome
ridículo, erro gráfico, maioridade).
O ato do Casamento, especificamente, fica contido quase integralmente no
referido corpo normativo, possuindo capitulação destinada à habilitação, ao
casamento em si e seus registros, bem como do casório sob risco de vida iminente.
O histórico de mudanças da lei 6.015/75 permite observar a progressiva
disponibilidade do nome, já que anteriormente os casos de mudança eram mais
escassos e pontuais, enquanto hoje em dia existe a possibilidade até de transexual
que não realizou redesignação alterar seu registro (stf, 2018).
254

4 DOS EFEITOS DO REGISTRO

Via de regra, o registro do nome possui efeitos declarativos, raramente


possuindo efeitos constitutivos, uma vez que o ato que dá causa ao registro já está
aperfeiçoado antes que este possa ser feito. Podemos tomar como exemplo o
nascimento.
A Lei de Registros Públicos disciplina em seu art. 50 que todos os nascimentos
serão registrados. In verbis:

Art. 50. Todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser
dado a registro, no lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar da
residência dos pais, dentro do prazo de quinze dias, que será ampliado
em até três meses para os lugares distantes mais de trinta quilômetros da
sede do cartório.

Se a lei fala que o nascimento deve ser dado a registro, seu efeito é apenas
declaratório, ou seja, apenas atesta fato ocorrido e já perfeito, completo e em regra é
a isso que o ato se propõe. Os fatos naturais que têm relevância no mundo jurídico
terão tais características em sua essência.
As possibilidades de registro com efeito constitutivo são limitadas, dentre as
mais notáveis delas estão certos casos de mudança de nome, especialmente no que
diz respeito a mudança do prenome, como afirmam Rosenvald e Chaves (2014): “O
registro Civil serve como fonte aquisitiva do prenome”.
Dito isto, pode-se pensar nos casos em que a pessoa possui prenome que lhe
expõe ao ridículo, é inadequado a sua identidade sexual e social, além dos casos de
homonímia, já que estes podem causar complicações. Nesses casos, o registro teria
efeitos constitutivos. Somente após o assentamento, estaria concreta a mudança é
garantido o direito.

5 DOS PRINCÍPIOS DO REGISTRO

São diversos os princípios de direito que se encontram envoltos na questão dos


registros públicos. Neto e Carvalho (2014) realizam uma divisão interessante destes
princípios. Inicialmente, os primeiros são os Princípios Finalísticos, tais como
publicidade, autenticidade e segurança jurídica, e por fim, os Princípios que informam
a função do registro, como legalidade, independência, territorialidade, etc.
Os princípios finalísticos são aqueles ligados a finalidade da atividade registral,
ou seja, através dela, tais princípios se expressam. O princípio da segurança jurídica
é aquele referente à estabilidade das relações e está presente no ordenamento
jurídico como um todo, nesta seara, se dedica a dar segurança às relações da pessoa,
bem como a garantir direitos a ela.
O princípio da autenticidade aqui se apresenta no sentido de auferir ou declarar
a veracidade do que o registro diz, já que este vai separar o verdadeiro do falso.
O terceiro princípio, publicidade, vai lidar com a questão do alcance das
informações assentadas em registro, tornado essas informações públicas e acessíveis
e, além disso, traz a possibilidade da sociedade se pronunciar acerca daquele registro,
se for o caso (como, por exemplo, quando existe oposição de pessoa interessada a
casamento já realizado).

6. DO CASAMENTO
255

O Casamento, instituição social com uma história específica através dos


séculos, possui diversas significações doutrinárias, muito em função das distintas
áreas que discutem o casamento, como a Filosofia, a religiosidade e o Direito.
Tradicionalmente, é dito que o casamento ocorre entre pessoas de sexo diferente, até
mesmo em função de dispositivo constitucional, constante no art. 226, da Constituição
da República Federativa do Brasil, de 1988.
Quanto a sua natureza jurídica, igualmente discutida doutrinariamente, tem-se
uma relação complexa. Logo, esta é uma instituição social, como defendido por
Lafayette (1945), bem como é contrato, surgida no século XIX com o Código
Napoleão.
Diante dessa discussão surge a concepção de Carvalho Santos (1961) que diz
ser “um contrato todo especial” em função de “o casamento se prende a elevados
interesses morais e pessoais”, enquanto os demais contratos “só giram em torno do
interesse econômico”.
Desta forma, podemos concluir que casamento é ato solene, de normas de
ordem pública, que estabelece comunhão plena de vida, que dá direito e deveres
iguais entre os cônjuges, não exigindo diversidade de sexos nem que
necessariamente se tenha prole, sendo indispensável liberdade de escolha do
nubente. Ou seja, casamento e contrato especial de direito de família, guiado, apesar
de ser contrato, pela afetividade.

7. DA MUDANÇA DO NOME CIVIL PELO CASAMENTO SOB O MANUAL DA


ATIVIDADE EXTRAJUDICIAL DO ESTADO DO AMAZONAS

O casamento é uma das hipóteses da mudança de nome, provavelmente sendo


a mais comum e mais presente na cultura popular, e uma das mais simples em
comparação com as demais.
A alteração de nome pelo casamento é prevista em diversos corpos de lei,
como a Lei do Divórcio (Lei n° 6.515/77), que trouxe a facultatividade do acréscimo de
sobrenome, a Lei de Registros Públicos (Lei n° 6015/73) e, mais atualmente, no
Código Civil de 2002 que trata dessa mudança em seu art. 1.565, §1°. In verbis:

Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a


condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da
família.
§ 1o Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o
sobrenome do outro.

Vale ressaltar que, pelo menos sob força de lei, não fica permitido aos nubentes
a exclusão de sobrenomes (existindo julgados em sentido contrário, admitindo a
exclusão do nome materno), permitindo tão somente o acréscimo, podendo ele ser
acréscimo mútuo, sendo esta prática, apesar de não muito popular, crescente. A
Central de Informações do Registro Civil (CRC) diz que em 2002, apenas 3% dos
homens adotavam o sobrenome da mulher. Em 2012 esse número subiu para 8%
(TRIBUNA, 2014).
Entretanto, em 30 de junho de 2016, a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado
do Amazonas, através de seu corregedor-geral Flávio Pascarelli Lopes, pelo
provimento de n° 278, aprovou o manual de regulamentação do serviço extrajudicial
do Estado do Amazonas (TJ-AM). O manual trata em grande parte da atividade
cartorial, estando incluídas normas que tratam desde a habilitação ao registro de
casamento.
256

Em relação a mudança de nome em função do casamento, o manual traz o art.


279 §2°:

Art. 279. Na petição inicial, os nubentes declararão o regime de bens a


vigorar e o nome que passarão a usar, se for o caso.
§2º Somente um dos nubentes, querendo, poderá acrescentar ao seu o
sobrenome do outro, não será admitida a simultaneidade do acréscimo,
sendo vedada a supressão total de sobrenomes de solteiro.

Assim sendo, desde 2016, ficaram impedidos os nubentes de acrescentar


mutuamente os sobrenomes, norma mais restritiva daquela estabelecida no Código
Civil, como o exemplo mais significativo das restrições da modificação do nome a
nubentes.
O manual tem o objetivo de facilitar a atividade cartorial, diminuindo a
possibilidade de conflitos advindos das normas do Código Civil, mas acabou por
diminuir em demasia a liberdade daqueles que casam, por isso, havendo violação de
Direito Fundamental Civil ao nome.

CONCLUSÃO

Tendo em vista os aspectos mencionados, aponta-se que o Direito ao Nome se


trata de Direito da Pessoa Humana, direito este reconhecido internacionalmente,
através de tratado da Organização das Nações Unidas, mas que também possui
positivação no direito interno no estado brasileiro, em diversos corpos legislativos.
Além disto, que o nome não é estático, sendo admitidas diversas possibilidades
de alteração, todas visando garantir maior alcance aos benefícios e funções do nome,
mitigando quaisquer abusos à dignidade da pessoa humana que o erro de nomeação
poderia causar, principalmente nas esferas privada e moral.
Ademais, que os registros públicos são formas, em regra, de declarar este
direito, apenas tornando pública e oponível a situação que já se encontra constituída
no mundo dos fatos.
Assim como, que o casamento, contrato especial de direito de família, é guiado
pela afetividade e pela vontade de comunhão entre os cônjuges, por isto sendo uma
das formas que permite a mudança do nome civil, sendo possível o acréscimo mútuo
de sobrenomes no Código Civil.
Por fim, que o Manual da Atividade Extrajudicial vigente no Estado do
Amazonas, por força da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Amazonas, que
regula a atividade cartorial e, portanto, regula os casamentos que acontecem no
estado, impede o acréscimo mútuo e a supressão de sobrenomes, não tornando
possível a criação de um nome comum familiar, além de impossibilitar a integração do
nome a esfera pessoal de um dos cônjuges.
Em virtude do exposto, conclui-se que a restrição, contida no corpo legislativo
em questão, traz cerceamento a um direito humano, que apresenta característica
crescente de disponibilidade, assim como a crescente utilização do acréscimo mútuo,
e que apesar de objetivar menores conflitos, poderia fazê-lo sem ofender a
personalidade daqueles que casam no estado.

REFERÊNCIAS
257

BRASIL. Constituição da República Federativa do, 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 19
out. 2018.
BRASIL. Decreto nº 99710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção
sobre os Direitos da Criança. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em: 19
out. 2018.
CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil Brasileiro Interpretado. 7. ed. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1961.
NETO, Mário de Carvalho Camargo; OLIVEIRA, Marcelo Salaroli de. Registro Civil
das Pessoas Naturais: Parte Geral e Registro de Nascimento. Vol.1. São Paulo:
Saraiva. 2014.
PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de Família. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1945.
ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Christiano Chaves de. Curso de Direito Civil I: Parte
geral de LINDB. Salvador: JusPODIVM, 2014.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). ADI 4275. 2018. Disponível em: <
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2691371>. Acesso em: 19 out
2018.
TRIBUNA.com.br. Cresce número de homens que passaram a adotar sobrenome
da esposa. Cidades. 2014. Disponível em:
<http://www.atribuna.com.br/noticias/noticias-detalhe/cidades/cresce-numero-de-
homens-que-passaram-a-adotar-sobrenome-da-
esposa/?cHash=37eabc0718c64e458e329701d66c7485>. Acesso em 19 out. 2018.
TRIBUNAL DO AMAZONAS (TJ-AM). Manual Extrajudicial constante no
provimento n. 278/2016- CGJ-AM. Disponível em:
<http://www.tjam.jus.br/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=1301&li
mit=50&limitstart=0&order=name&dir=DESC&Itemid=168>. Acesso em 19 out. 2019.
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Nome e Sexo: Mudanças no Registro Civil. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2008.
258

O TRATAMENTO JURÍDICO DO NASCITURO EMPREGADO PELOS TRIBUNAIS


SUPERIORES
THE BRAZILIAN HIGHER COURTS’ UNDERSTANDINGS CONCERNING THE
UNBORN CHILD

Fábio Luís Procópio Braga Yamaoka


Isa Gabriela de Almeida Stefano

Resumo: O presente trabalho de revisão bibliográfica, de natureza descritiva,


objetivou expor e analisar as correntes jurídicas sobre o tema “nascituro”, assim como
seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro. Nascituro é o ser humano já
concebido, ainda no ventre materno, com expectativa de nascimento. No Brasil,
atualmente, inexiste legislação específica a esse respeito, havendo entendimentos e
posicionamentos distintos entre doutrinadores e magistrados. A teoria concepcionista
garante titularidade de direito ao nascituro desde a fecundação. A teoria natalista não
concede personalidade ao nascituro, apenas se este nascer com vida, momento em
que deixa de ser nascituro e adquire status de pessoa propriamente dita. O STJ,
majoritariamente, alinha-se com a teoria concepcionista, ao passo que o STF, em
suas decisões mais recentes, com a natalista.
Palavras-chave: Nascituro. Concepção. Nascimento.

Abstract: This bibliographic review work has a descriptive nature and aims to expose
and analyze the juridical currents on the subject "unborn child", as well as its reflexes
in brazilian’s legal system. The unborn child is the human being already conceived,
still in the womb, with expectation of birth. In Brazil, there are no legal definitions about
the beginning of the human personality nor about the extension of the rights of the
unborn child, which results in disagreements among authors and even among Judges.
The conceptionist theory guarantees rights to the unborn child since fertilization. The
natalist theory only grants human personality to the child born alive; in this case, the
birth moment would give the child the status of a person properly. The Superior
Tribunal de Justiça mostly aligns with the conceptionist theory, while the Supremo
Tribunal Federal has decided, recently, under the natalist optic.
Keywords: Unborn. Conception. Birth.

1. INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro não é claro acerca da amplitude da tutela do


nascituro, há decisões e doutrinas em sentidos diversos de modo a causar
insegurança jurídica nas diversas áreas em que o nascituro figura.
Nosso ordenamento jurídico estabelece que só pode ser titular de direitos e
deveres a pessoa, assim, as demais coisas existentes só poderão estar presentes em
uma relação jurídica como objeto e não como sujeito de direito. Nesse sentido, Sílvio
de Salvo Venosa ressalta que: “A questão do início da personalidade tem relevância
porque, com a personalidade, o homem se torna sujeito de direito”.1
O ponto de divergência existe quanto a estabelecer, dentre as fases de
desenvolvimento do ser, o momento em que surge a pessoa, instaurando-se, destarte,
a personalidade, isto é, tornando-a sujeito de direitos.
Tanto a doutrina quanto os magistrados dividem-se, basicamente, entre duas
principais teorias: a natalista e a concepcionista, esta defende o início da
1
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. São Paulo, 2018. p. 132
259

personalidade do ser humano desde a fecundação, enquanto aquela apenas a partir


de seu nascimento com vida.
O problema da pesquisa pretende demonstrar a coexistência dessas teorias
em nosso sistema jurídico e as possíveis consequências dessa dualidade. Nesse
intento, utilizou-se de pesquisa bibliográfica dialética-qualitativa, com a utilização de
diversas obras de diferentes doutrinadores, assim como as decisões mais relevantes
e atuais dos Tribunais Superiores.

2. CONCEITO DE NASCITURO

O Código Civil, em seu artigo 2º, determina que o começo da personalidade


civil se inicia com o nascimento com vida, mas o dilema quanto a quem pode ser
sujeito de direitos e deveres decorre da previsão do mesmo artigo mencionado, de
que a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Maria Helena Diniz conceitua o nascituro como: “aquele que há de nascer,
cujos direitos a lei põe a salvo”.2 Há, no entanto, divergência doutrinária se o embrião
é ou não tutelado dentro da acepção do nascituro.
Maria Helena Diniz3 e Silmara Chinelato4 entendem que se deve proteger a
pessoa desde sua concepção, independentemente de estar ou não em
desenvolvimento no ventre materno, pois a tutela jurídica do ser humano deve ocorrer
em todas as suas fases, seja ela in vivo ou in vitro.
Esse também é o entendimento do Projeto de Lei nº 478/07, denominado de
Estatuto do Nascituro, em seu artigo 2º, parágrafo único estabelece que: “O conceito
de nascituro inclui os seres humanos concebidos ‘in vitro’, os produzidos através de
clonagem ou por outro meio científica e eticamente aceito”.
Este, porém, não é o entendimento da doutrina majoritária que, em
conformidade com o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI nº 3.510, entende que
nascituro é a pessoa que está para nascer, isto é, não contempla o embrião in vitro.

3. PRINCIPAIS TEORIAS APLICADAS EM NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO

3.1. TEORIA NATALISTA

A teoria natalista (ou negativista) não concede personalidade civil ao nascituro,


sendo o nascimento com vida condição sine qua non para sua aquisição.
Os adeptos desta teoria não reconhecem o nascituro como pessoa – sendo
considerado, tecnicamente, mais como uma parte do organismo da genitora; dessarte,
o acesso aos direitos fundamentais é mera expectativa de direito. A personalidade só
começa com o efetivo nascimento com vida.

De acordo com o art. 29, item 6, da Resolução nº 1, de 13-6-1988, do


Conselho Nacional de Saúde, o nascimento com vida é a expulsão ou
extração completa do produto da concepção quando, após a separação,
respire e tenha batimentos cardíacos, tendo sido ou não cortado o cordão
umbilical, estando ou não desprendido da placenta. 5

2
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 3, p. 378
3
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: teoria geral do direito civil, vol. I. São Paulo, 2018. p. 226
4
ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e. Tutela civil do nascituro. São Paulo, 2000. p. 12
5
CASSETTARI, Christiano. Elementos de direito civil. São Paulo, 2018. p. 46
260

O nascimento com vida independe da ruptura do cordão umbilical; o que


caracteriza tal acontecimento é a respiração.
Cristiano Chaves de Farias entende que: “[...] os requisitos para o
reconhecimento da personalidade jurídica de pessoa humana são nascimento e
vida”.6
Para Caio Mário da Silva Pereira “o nascituro não é ainda pessoa, não é um
ser dotado de personalidade jurídica”.7 Orlando Gomes também é adepto desta teoria,
pois concorda com o art. 2° do Código Civil, “a personalidade civil começa do
nascimento com vida”.8
Silvio de Salvo Venosa afirma:

O ordenamento brasileiro poderia ter seguido a orientação do Código


francês que estabelece começar a personalidade com a concepção. Em
nosso Código, contudo, predominou a teoria do nascimento com vida para
ter início a personalidade. O nascituro, contudo, tem direitos resguardados
em nosso ordenamento, com muitos julgados agasalhados por nossos
tribunais.9

A Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 3.510 – DF, que será analisada


em momento oportuno, compactua com esta teoria e autoriza a utilização de células-
tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos, desde que
cumpram com as seguintes exigências:

I – sejam embriões inviáveis; ou


II – sejam embriões congelados há três anos ou mais, na data da
publicação desta Lei, depois de completarem três anos, contados a partir
da data do congelamento.
§ 1º. Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2º. Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisas
ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter
seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética
e pesquisa.
§ 3º. É vedada a comercialização do material biológico a que se refere
este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº
9.434/1997.10

Apesar de estar em conformidade com o Código Civil, em especial com o art.


2º, alguns doutrinadores criticam esta teoria por não reconhecer na figura do nascituro
a pessoa e todos os efeitos jurídicos que acompanham tal definição.

3.2. TEORIA CONCEPCIONISTA

A teoria concepcionista (ou afirmativista) defende que o nascituro adquire


personalidade civil no momento da concepção.
Apesar do reconhecimento da personalidade desde o momento da concepção,
apenas os direitos da personalidade (personalíssimo) são garantido de pronto, alguns
outros direitos, notadamente os patrimoniais materiais, como por exemplo à herança,
são apenas eventuais, que somente serão conquistados no nascer com vida.

6
FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. Salvador, 2018 p. 340
7
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro, 2006. p. 2017
8
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro, 2001. p. 144
9
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. São Paulo, 2018. p. 134
10
Art. 5º da Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança)
261

Defende esta teoria Francisco do Amaral, que destaca a segunda parte do art.
2° do Código Civil: “mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro”.11
Maria Helena Diniz alinha-se com a teoria concepcionista e faz uma distinção
entre personalidade jurídica em sentido formal (direitos da personalidade) e
personalidade material (direitos patrimoniais) para justificar a aquisição imediata de
alguns e a eventualidade de outros. Diz: “se nascer com vida adquire personalidade
material, relativa aos direitos patrimoniais, mas se tal não ocorre nenhum direito
patrimonial terá”.12
Cristiano Chaves de Farias opina:

Sem dúvida reconhecendo o acerto da teoria concepcionista, é de se notar


que a partir da concepção já há proteção à personalidade jurídica. O
nascituro já é titular de direitos da personalidade. Com efeito, o valor da
pessoa humana, que reveste todo o ordenamento brasileiro, é estendido
a todos os seres humanos, sejam nascidos ou estando em
desenvolvimento no útero materno. Perceber essa assertiva significa, em
plano principal, respeitar o ser humano em toda a sua plenitude. 13

O Enunciado 1 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal


parece corroborar com esta teoria, pois garante não só ao nascituro como também ao
natimorto os direitos personalíssimos: “A proteção que o Código defere ao nascituro
alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como: nome,
imagem e sepultura”.
José Afonso da Silva ao tratar do tema “aborto”, deixa transparecer seu
posicionamento quanto ao início da vida ao dizer: “a nós, nos parece que, no feto, já
existe vida humana”.14
A Lei 11.808/2008 reforça, de certa maneira, a teoria concepcionista ao
conceder “alimentos gravídicos”, pois apesar de o texto aludir ao direito de alimentos
da mulher gestante, o beneficiado é o nascituro. Assim entende Fábio de Oliveira
Azevedo:

Na realidade, a interpretação teleológica não pode conduzir a outra


conclusão que não seja reconhecer que os alimentos gravídicos são
materialmente do nascituro, e apenas formalmente da mãe.
Em reforço ao entendimento desenvolvido, basta lembrar que o art. 1º,
‘caput’, se refere expressamente à titularidade da mãe quanto ao direito a
alimentos, embora, de modo contraditório, o art. 2º se refira a situações
de necessidade para o nascituro, e não para a mãe [...]
No parágrafo único do art. 6º, o legislador diz que ‘após o nascimento com
vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em
favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão’. Portanto,
resta claro que o direito a alimentos é do nascituro, e não da mãe, sob
pena de sermos obrigados a reconhecer a sucessão no direito subjetivo a
alimentos em decorrência do nascimento.15

O Pacto de San Jose da Costa Rica, apesar de não impor o início da


personalidade desde a concepção, transparece uma sugestão nesse sentido. 16

11
AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. Rio de Janeiro, 2003.
12
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: teoria geral do direito civil, vol. I. São Paulo, 2018. p. 180
13
FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. Salvador, 2018. p. 343
14
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo, 2018. p. 205
15
AZEVEDO, Fábio de Oliveira. Direito Civil – Introdução e Teoria Geral. Rio de Janeiro, 2009. p. 130 e 131
16
Art. 4º. Direito à vida
262

A crítica mais severa à teoria concepcionista é que conferir personalidade ao


ser humano em formação, anteriormente ao seu nascimento com vida, contraria o art.
2° do Código Civil, que não deixa margens para dúvidas de que a personalidade civil
apenas se inicia com o nascimento com vida. Devendo, portanto, haver uma alteração
do texto do referido artigo para que esta teoria se torne válida e não contra legem.
Adotar esta teoria significaria, entre outras coisas, proibir ou dificultar o
procedimento de fertilização in vitro, as pesquisas com células-tronco embrionárias e
a pílula do dia seguinte.

4. DECISÕES JUDICIAIS

4.1. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Em diversas decisões, o Superior Tribunal de Justiça reconhece e iguala os


direitos civis do nascituro aos da pessoa humana, demonstrando uma tendência à
teoria concepcionista, como por exemplo:
REsp 931.556 – RS (2007/0048300-6): a 3ª Turma do Supremo Tribunal de
Justiça concedeu indenização, a título de danos morais (préjudice d’affection), a um
nascituro pela morte de seu pai em um acidente de trabalho. A Ministra Nancy
Andrighi, relatora do caso, afirmou: “Maior do que a agonia de perder um pai é a
angústia de jamais ter podido conhecê-lo [...]”17.
HC 228998 - MG (2011/0307548-5): a 5ª Turma define que, iniciado o trabalho
de parto, não há falar mais em aborto, mas em homicídio ou infanticídio. Não sendo
necessário que o nascituro tenha respirado para configurar tais crimes18.
REsp 1.415.727 – SC (2013/0360491-3): A 4ª Turma do STJ concedeu o
pagamento de seguro DPVAT (Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores
de Via Terrestre) pela morte de um nascituro. Importante ressaltar que este seguro
não paga indenização por prejuízos decorrentes de danos patrimoniais, apenas danos
pessoais. O relator, Ministro Luís Felipe Salomão, fundamentou que “o direito
brasileiro confere ao nascituro a condição de pessoa”, possível inferir a partir da
exegese sistemática dos arts. 1º, 2º, 6º e 45, caput, do Código Civil; direito do
nascituro de receber doação, herança e de ser curatelado (arts. 542, 1.779 e 1.798 do
Código Civil); a especial proteção conferida à gestante (art. 8º do Estatuto da Criança
e do Adolescente); alimentos gravídicos, destacando que o titular nesse caso é o
nascituro e não a mãe (Lei nº 11.804/2008); no direito penal que criminaliza o aborto
em seus arts. 124 a 127 do Código Penal19.
REsp 1.487.089 – SP (2014/0199523-6): a 4ª Turma do STJ concedeu
indenização por danos morais a Marcus Buaiz, Wanessa Godói Camargo Buaiz e
J.M.D.C.B., este último à época da propositura da demanda, em outubro de 2011,
nascituro, contra o comediante “Rafinha Bastos” pelo seguinte comentário: “Eu
comeria ela e o bebê, não tô nem aí!”20.
Em contrapartida, há decisões que, apesar de proteger o nascituro, não lhe
concedem titularidade, sendo seus direitos resguardados por via de consequência;
como exemplo o REsp 1629423 - SP (2016/0185652-7) que garante a conversão

1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento
da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
17
STJ - REsp: 931556 RS 2007/0048300-6, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 17/06/2008, T3 -
TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: --> DJe 05/08/2008.
18
STJ - HC: 228998 MG 2011/0307548-5, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 23/10/2012, T5
- QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/10/2012.
19
STJ - REsp 1.415.727∕SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 4∕9∕2014, DJe 29∕9∕2014.
20
STJ - REsp 1.487,089∕SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, QUARTA TURMA, julgado em 23∕06∕2015, DJe 28∕10∕2015.
263

automática dos alimentos gravídicos em pensão alimentícia quando do nascimento


com vida do nascituro, porém afirma que a beneficiária direta dos alimentos gravídicos
é a gestante e não o nascituro21. Contrariando, inclusive, fundamentação supracitada
do Ministro Luís Felipe Salomão no REsp 1.415.727 - SC (2013/0360491-3) que
entende o nascituro como titular dos alimentos gravídicos.22

4.2. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O STF, aparentemente, possui entendimento diverso do Superior Tribunal de


Justiça.
O Ministro Marco Aurélio Mello, relator da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 54 - DF, defendeu a prática de aborto de feto anencéfalo como
conduta atípica: “[...] o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, porque feito
de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica
[...]”.
Uma decisão impactante do STF, que demonstra inclinação da egrégia corte à
teoria de que a vida da pessoa não começa antes do início da atividade cerebral, é a
da 1ª Turma acerca do habeas corpus 124.306 (Rio de Janeiro) que revogou a prisão
preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica de aborto na cidade de
Duque de Caxias – RJ.
O relator, Ministro Marco Aurélio, concedeu a liberdade com a justificativa de
que não havia requisitos para a prisão preventiva.
O Ministro Luís Roberto Barroso pediu vista e, além de concordar com a
revogação das prisões por não estarem presentes os requisitos que legitimassem a
prisão cautelar, acrescentou um segundo fundamento: “inconstitucionalidade da
incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no
primeiro trimestre”, afirmando que a criminalização nesses casos fere os princípios
fundamentais da mulher, assim como o princípio da proporcionalidade.

A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais:


os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada
pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher,
que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a
integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo
e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já
que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero
depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.23

Em 29 de maio de 2008, a maioria do pleno do STF decidiu que as pesquisas


com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida; tal decisão foi contrária
ao pedido do então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, que ajuizou esta
ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3.510) com o propósito de impedir a
utilização de embriões em estudos científicos.
O Ministro Carlos Ayres Britto, relator, destacando o espírito de fraternidade e
em brilhante fundamentação, votou pela total improcedência da ação e cunhou a
célebre frase: “o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa
humana” que por mais axiomática que possa parecer, carrega em seu âmago o

21
STJ - REsp 1629423/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/06/2017, DJe
22/06/2017.
22
STJ - REsp 1.415.727∕SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 4∕9∕2014, DJe 29∕9∕2014
23
Voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso em HC 124.306 - RJ
264

entendimento de que esses três “entes” não se confundem, mais uma evidência de
que na atual composição do Supremo Tribunal Federal prevalece a teoria natalista.
Em 2016, no julgamento de Agravo Regimental no Mandado de Injunção 6.591
- DF, o STF constatou a ausência de regulamentação dos direitos do nascituro na
Carta Maior, assim como a inexistência, em seu texto, de obrigatoriedade do legislador
infraconstitucional criar normas neste sentido. A decisão, unânime do pleno,
acompanhou o voto do relator, Ministro Luiz Fux.24

5. CONCLUSÃO

Como proposto inicialmente, este trabalho teve como objetivo enumerar e


explicar as diferentes correntes acerca do nascituro, assim como uma tentativa de
análise imparcial sobre os pontos positivos e negativos de cada uma delas, não
entrando no mérito de qual seria a mais justa e/ou correta.
Desta maneira, é possível perceber que as diversas teorias e posicionamentos
têm argumentos e embasamentos, sendo razoável que o ordenamento jurídico adote
qualquer um deles.
A definição, entretanto, do início da vida do ser humano não é banal, visto que
o impacto nas diversas áreas é extenso. Não havendo consenso entre os magistrados,
vide posicionamento majoritário antagônico entre o Superior Tribunal de Justiça e o
Supremo Tribunal Federal nos capítulos 4.1 e 4.2, não há segurança jurídica; esse
mesmo fator, porém, pode ser uma vantagem ao possibilitar entendimentos diversos,
aparentemente conflitantes, como por exemplo, a concessão de indenização ao
nascituro e a não criminalização do aborto antes de a gestação completar três meses.
Ao delimitar e pacificar uma única teoria, essa flexibilização, em tese, tornar-se-ia
impossível, sendo impraticável, por exemplo, a coexistência da concessão de
personalidade jurídica ao nascituro e a admissão do aborto.
O assunto “nascituro”, como visto, é polêmico; há muitos pontos a serem
considerados e distintos posicionamentos, sendo o tema delicado e necessitando
ainda de muitas discussões e reflexões para sua resolução.

6. REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva,


2000.
AMARAL, Francisco. Direito civil: Introdução. 5ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
AZEVEDO, Fábio de Oliveira. Direito Civil: Introdução e Teoria Geral. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.
CASSETARI, Christiano. Elementos de direito civil. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: teoria geral do direito civil,
vol. I. São Paulo: Saraiva, 2018.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
FARIAS, Cristiano Chaves de; Rosenvald, Nelson. Curso de direito civil: parte geral
e LINDB. 16ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.

24
“In casu, não há norma constitucional que imponha ao legislador o dever de regulamentar os direitos do nascituro. Como se
infere do art. 5º, LXXI, da CFRB/88, o mandado de injunção tem lugar quando a falta de norma regulamentadora impedir o
exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.
Nesse passo, inexistente a previsão do direito na Constituição Federal, tampouco do dever de regulamentação, não há que se
falar em omissão legislativa que possa ser imputada às autoridades impetradas” – STF - MI: 6591 DF, Relator: Min. Luiz Fux,
Data de Julgamento: 30/08/2007, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-65 DIVULG 28/06/2016.
265

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
MORAES, Alexandre de. Direitos constitucional. 33ª ed. São Paulo: Editora Atlas,
2017.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. II. Rio de Janeiro:
Forense, 2006.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 41ª ed. São Paulo:
Editora Malheiros, 2018.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2018.
266

OS PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA E A FAMÍLIA NA ATUALIDADE


THE PRINCIPLES OF FAMILY LAW AND THE FAMILY IN THE CURRENT

Vivian Gerstler Zalcman


Maísa de Souza Lopes

Resumo: As reflexões do presente visam a abordagem dos princípios constitucionais


e dos princípios que deles derivam, norteando o direito de família da atualidade e
sendo capazes de solucionar situação trazidas ao Poder Judiciário, porém não
enfrentados pelo Poder Legislativo. Discutir-se-á o processo de descodificação e as
críticas inerentes a esse, bem como a importância dos princípios na área em questão.
Palavras-chave: Direito de Família; Princípios Constitucionais; Princípios do Direito
de Família.

Summary: The reflections of the present aim to approach the constitutional principles
and the principles that derive from them, guiding current family law and being able to
solve situations brought to the Judiciary, but not faced by the Legislative Branch. It will
discuss the decoding process and the criticisms inherent in it, as well as the importance
of the principles in the area in question.
Keywords: Family right; Constitutional principles; Principles of Family Law.

1. INTRODUÇÃO

É inegável que o direito caminha para abraçar a todos os indivíduos, lhes


conferindo as liberdades individuais, a igualdade e a tão sonhada dignidade que será
ainda inerente à existência humana.
Importante trazer ao tema a chamada “Crise da Família” e, em concordância
com Maria Helena Diniz, acredita-se que não há de fato tal mencionada crise. Os
defensores desse tema alegam que a crise é baseada em dois pilares: a) a
constitucionalização do direito de família; b) a descodificação do Direito Civil.
Sustentam que a descodificação acabou por trazer insegurança e incerteza,
não havendo mais regras claras sobre os diversos assuntos que vem sendo decididos
com base em princípios abertos, passíveis de qualquer tipo de interpretação. Da
mesma maneira, a constitucionalização acabou, nessa visão, por esvaziar o direito
civil e permitir cada vez mais a intervenção estatal na seara familiar.
Para Maria Helena Diniz, que dá uma visão moderna sobre o assunto ao tratar
da suposta crise:

Na realidade, tal não ocorre; a tão falada crise é mais aparente do que
real. O que realmente ocorre é uma mudança nos conceitos básicos,
imprimindo uma feição moderna à família, mudança esta que atende às
exigências da época atual, indubitavelmente diferente das de outrora,
revelando a necessidade de um questionamento e de uma abertura para
pensar e repensar todos os fatos.1

Desta feita, torna-se inegável a importância dos princípios constitucionais e


subprincípios que dele decorrem para validar ou não as novas formações familiares
que se apresentam no cenário fático da atualidade brasileira.

2. OS PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA


1
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – direito de família. Pg. 39. 2014: Saraiva.
267

O vocábulo “princípio” encontra sua origem etimológica no latim através do


vocábulo principium, podendo ser definido causa primária ou causa de maior valor.
No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio possui força norteadora para fins de
aplicação de qualquer outra norma.
Assim, direcionada pelos ideais pós-modernistas de respeito à dignidade e às
liberdades individuais, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 serve
como parâmetro que filtra as leis a fim de que elas atendam os anseios sociais.
Tendo os preceitos fundamentais constitucionais esta função, acabam por
figurar como princípios basilares norteadores do direito brasileiro. De acordo com
parte da doutrina brasileira, alguns desses princípios se desdobraram em outros
intimamente ligados ao direito de família.
Interessante que na doutrina, cada estudioso costuma adotar divisões distintas
com relação aos princípios e subprincípios existentes, gerando um leque extenso de
possibilidades para os operadores do direito.

2.1 PRINCÍPIO DO RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Deriva do artigo 1º, III da Constituição Federal e figura não apenas como
norteador das relações humanas, mas como base do direito de família que é “o mais
humano de todos os ramos do direito”2. Toda a proteção a entidades familiares não
fundadas no casamento se dá com base nesse princípio, sendo ele intimamente
relacionado ao artigo 226 §§3º ao 8º da Constituição Federal.
Maria Helena Diniz segue no mesmo caminho de Carlos Roberta Gonçalves e
sustenta que tal princípio: “constitui base da comunidade familiar (biológica ou
sócioafetiva), garantindo, tendo por parâmetro a afetividade, o pleno desenvolvimento
e a realização de todos os membros, principalmente da criança e do adolescente (CF,
art. 277)”3.
Maria Berenice Dias, por sua vez, empresta ainda mais força e dedicação à
abordagem do tema ao afirmar que:

É o princípio maior, fundante no Estado Democrático de Direito, sendo


afirmado já no primeiro artigo da Constituição Federal. A preocupação
com a promoção dos direitos humanos e da justiça social levou o
constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor
nuclear da ordem constitucional.4

A doutrinadora vanguardista prossegue afirmando que trata-se do princípio


mais universal existente no ordenamento jurídico do qual decorrem todos os outros e
correlacionando os direitos oriundos das matérias de família aos direitos humanos
quando sustenta: “O direito das famílias está umbilicalmente ligado aos direitos
humanos, que tem por base o princípio da dignidade da pessoa humana, versão
axiológica da natureza humana. O princípio da dignidade da pessoa humana significa,
em última análise, igual dignidade para todas as entidades familiares (...)”5.
Dando outro foco ao tema, Rolf Madaleno ao abordar o assunto dá uma visão
mais individualizada em sua aplicação. O estudioso correlaciona o princípio aos
artigos 227 e 230 da Constituição da República e sustenta que a família deve garantir

2
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – direito de família. Pg. 22. 2012: Saraiva.
3
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – direito de família. Pg. 37. 2014: Saraiva.
4
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9ª ed. rev. at. am. Pg. 65. 2013: Revista dos Trinubais.
5
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9ª ed. rev. at. am. Pg. 65. 2013: Revista dos Trinubais. Pg; 66
268

o mínimo para que cada um de seus membros tenha uma vida digna, dando atenção
especial às crianças, adolescentes e idosos.
Crianças e adolescentes precisam cultura, respeito, liberdade, comunicação,
bem como não serem expostas a violência, crueldade ou opressão. Da mesma
maneira, os idosos precisam ser valorizados como úteis e experientes, e não
marginalizados e deixados de lado como comumente acontece, especialmente
quando esses são desprovidos de posses.
Nessa seara, Rolf Madaleno leciona:

(...) a grande reviravolta surgida no Direito de Família com o advento da


Constituição Federal foi a defesa intransigente dos componentes que
formulam a inata estrutura humana, passando a prevalecer o respeito à
personalização do homem e de sua família, preocupado o Estado
Democrático de Direito com a defesa de cada um de seus cidadãos. E a
família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à
dignidade da pessoa humana, de tal sorte que todas as esparsas
disposições pertinentes ao Direito de Família devem ser focados sob a luz
do Direito Constitucional6.

Há, ainda, por parte dos estudiosos uma dura crítica a esse princípio, sendo
ele apelidado de “princípio guarda-chuva” e comumente usado para justificar qualquer
assunto em que haja interesse da parte. Porém, apesar disso, indubitável é a
importância do princípio e de sua intenção e benefícios aos integrantes de um grupo
familiar.

2.2 PRINCÍPIO DA IGUALDADE JURÍDICA DOS CÔNJUGES E DOS


COMPANHEIROS

Fundado no artigo 226§5º da Constituição Federal que iguala os cônjuges e


conviventes em matéria de sexo, extinguindo juridicamente o patriarcalismo e
conferindo o poder familiar a todos os envolvidos na criação dos filhos e manutenção
do lar.
Trata-se de verdadeiro avanço, tendo em vista que todo o direito de família
tradicional era organizado em cima de uma base patriarcal, sobrepujando a mulher ao
conferir ao patriarca o poder marital. Com o advento da constituição e reconhecimento
desse artigo, ambos os cônjuges tornam-se consortes nas decisões, passando a
existir um poder conjunto e indiviso, não havendo qualquer submissão feminina
imposta por lei.
Maria Helena Diniz traz o “princípio da consagração familiar” que entendeu-se
por melhor neste trabalho categorizá-lo dentro do princípio da igualdade entre os
cônjuges da onde decorreu a efetiva consagração do poder familiar.
O assunto é abordado no Código Civil nos artigos 1630 ao 1638, que
acompanhou legislação estrangeira com visão modernizada sobre o assunto. A
questão do poder paterno ou marital foi deixado de lado e adotou-se o poder familiar,
nos moldes da francesa expressão “autoridade parental” que vigora desde 1970 na
França e da “parental authority” adotada nos Estados Unidos7.
Rolf Madaleno não categoriza esse princípio dessa maneira, mas lhe empresta
especial ao tratar do princípio da igualdade e da vulnerabilidade da mulher.

6
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família – 5ª ed. Pg.46. 2013: Forense.
7
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – direito de família. Pg. 37. 2014: Saraiva.
269

2.3 PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE TODOS OS FILHOS

Consoante o artigo 227§6º da Constituição Federal que remete aos artigos


1596 ao 1692 do Código Civil e garante igualdade dos filhos, independentemente de
sexo, de idade e, principalmente, de ser havido ou não na constância do casamento.
Outra questão interessante é a igualdade entre os filhos adotados ou não. Tal
preocupação também foi trazida pela Lei 8069 de 1990, o Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Assim não há mais qualquer diferenciação entre os filhos havidos ou não na
constância do casamento de maneira biológica quanto ao nome e direitos que
envolvem alimentação e sucessão, sendo vedada qualquer designação
discriminatória a esse.
Maria Helena Diniz acerta ao lecionar: “De modo que a única diferença entre
as categorias de filiação seria o ingresso, ou não, no mundo jurídico, por meio do
reconhecimento; logo só se poderia falar em filho, didaticamente, matrimonial ou não
matrimonial reconhecido ou não reconhecido”8.
Essa foi outra mudança de paradigma trazida pela Constituição Federal de
1988 que deixou para trás a ideia bíblica de filho bastardo tão arraigada na sociedade
tradicional.

2.4 PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL E PLANEJAMENTO FAMILIAR

Princípio trazido por Carlos Roberto Gonçalves e consubstanciado no artigo


226§7º do texto constitucional que sustenta a responsabilidade de ambos os
genitores, companheiros ou cônjuges na educação e sustento dos filhos. Já a questão
do planejamento familiar, antes tão atacado por instituições de ordem religiosa,
passou a ser decisão livre do casal, sendo disciplinado pelo artigo 1565 do Código
Civil e pela Lei 9253 de 1996.
Atualmente, é comum verificar-se nos casais a programação do número de
filhos que desejam e o sucesso dessa programação através dos inúmeros métodos
contraceptivos disponíveis. Torna-se cada vez mais incomum, principalmente nas
classes mais favorecidas, aquelas famílias com elevados números de filhos.

2.5 PRINCÍPIO DA COMUNHÃO PLENA DE VIDA

Decorre do Princípio da Afetividade que se baseia no Princípio da Dignidade


da Pessoa Humana e garante o que vem se nomeando “família sócioafetiva”.
Fundamentam-se essas ideias não apenas no artigo 1º, III do texto constitucional, mas
também no artigo 1511 e 1513 do Código Civil.
Insta pontuar que tal princípio não é categorizado por Maria Helena Diniz e Rolf
Madaleno.

2.6 PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE CONSTITUIR UMA COMUNHÃO DE VIDA


FAMILIAR

Esse princípio abrange uma liberdade mais ampla, no sentido de garantir as


diversas modalidades de formação de família sem intervenção de qualquer pessoa de
direito público ou privado (artigo 1513 do Código Civil). Da mesma maneira, protege
essas várias espécies de família no tocante ao planejamento familiar (artigo 1565 do
8
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – direito de família. Pg. 36-37. 2014: Saraiva
270

Código Civil), liberdade de aquisição e administração do patrimônio familiar (artigo


1642 e 1643 do Código Civil) e a livre escolha do regime de bens (artigo 1639 do
Código Civil).
Esse tópico é denominado apenas “princípio da Liberdade” por Maria Helena
Diniz que sustenta que essa liberdade só é restrita “intervindo o Estado apenas em
sua competência de propiciar recursos educacionais e científicos ao exercício desse
direito (...) respeitando-se a integridade físico-psíquica e moral dos componentes da
família”9.

2.7 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE

Trata-se de princípio de grande importância, tal qual aquele que trata da


dignidade da pessoa humano, e serve de norteador na visão moderna do Direito das
Famílias.
Há a tendência atual de individualizar a figura da família, deixando-se para trás
um modelo fechado e imutável dito tradicional, para cada vez menos se primar por um
conceito menos hierarquizado que passa a se fundar no afeto entre os conviventes.

3. CONCLUSÃO

Conforme observado, os princípios são fundamentais para dar vazão aos novos
relacionamentos, que não são propriamente novidade na vida em sociedade, porém
tem-se tornado socialmente aceitável trazer ao conhecimento de todos aquelas uniões
que se afastam do ideal tradicional de modelo familiar.
Certamente, trata-se de afronta clara aos direitos fundamentais intrínsecos ao
ser humano o fato de ter de esconder um relacionamento ou, ainda que o assumindo
à sociedade, viver às margens da legislação por completa falta de regulamentação.
A família atual, pautada em princípios e não apenas e tão somente em
estruturas pré-concebidas e pautadas em conceitos religiosos de maioria judaico-
cristã. Abre-se, portanto, um cenário capaz de unir os sujeitos através do vínculo
afetivo, sendo este superior a normas que venham a restringir relações pautadas no
amor.
Obviamente, há de se respeitar certos limites, como relações entre certos graus
de parentesco e limites de idade a serem respeitados, porém, no mais, o direito deve
sempre visar acompanhar as mudanças sociais.

4. REFERÊNCIAS

BARBOSA, Águida Arruma. Mediação: um PRINCÍPIO in Novos direitos após seis


anos de vigência do código civil de 2002. Porto Alegre: Juruá, 2009.
CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. São Paulo:
Lexikon, 2012.
DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva – o preconceito e justiça. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – direito de família. São Paulo:
Saraiva
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro – direito de família. São Paulo:
2017.
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família – 5ª ed. São Paulo: Forense., 2012
9
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – direito de família. Pg. 37. 2014: Saraiva
271

TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares.


In:Temas de direito civil. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
272

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: A CELEUMA DA CARACTERIZAÇÃO E DA


ATRIBUIÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
OBSTETRIC VIOLENCE: THE CELEUM OF THE CHARACTERIZATION AND
ALLOCATION OF CIVIL LIABILITY IN BRAZILIAN LEGAL ORDINANCE

Larissa Campos Rubim


Maria Nazareth Vasques Mota

Resumo: A presente pesquisa tem como escopo abordar a problemática da


responsabilidade civil por atos ilícitos caracterizados como violência obstétrica. Este
tema possui relevância jurídica diante do surgimento de novas legislações que
abarcam direitos da gestante ou de proteção à maternidade, bem como projetos de
leis em trâmite que visam tutelar a questão do parto humanizado, ou em condições
dignas às mulheres. A violência obstétrica é um fato social que merece discussão,
tendo em vista a maior visibilidade quanto aos casos ocorridos no país. Diante disto,
abordar-se-ão as seguintes temáticas no decorrer deste artigo: o direito da mulher ao
parto humanizado, a conceituação e caracterização da violência obstétrica e a
dinâmica da responsabilidade civil em decorrência de atos ilícitos decorrentes de
violência obstétrica. A pesquisa foi desenvolvida através do método dedutivo, com
ênfase no tipo metodológico de pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: Parto Humanizado. Violência Obstétrica. Responsabilidade Civil.

Abstract: The present research has as scope to address the problem of civil liability
for illicit acts characterized as obstetric violence. This issue has legal relevance in the
face of the emergence of new legislation that covers the rights of pregnant women or
maternity protection, as well as draft laws that seek to protect the issue of humanized
childbirth or in dignified conditions for women. Obstetric violence is a social fact that
deserves discussion, in view of the greater visibility regarding the cases occurred in
the country. The following topics will be addressed in the course of this article: the right
of women to humanized childbirth, the conceptualization and characterization of
obstetric violence and the dynamics of civil responsibility as a result of unlawful acts
resulting from obstetric violence. The research was developed through the deductive
method, with emphasis on the methodological type of bibliographic research.
Keywords: Humanized birth. Obstetric Violence. Civil responsability.

INTRODUÇÃO

A violência obstétrica, entendida como conduta ilícita que viola o direito de


proteção à maternidade pelos profissionais de saúde, necessita de um constante
debate no que concerne à atribuição da responsabilidade civil a ser aplicada nos casos
ocorridos durante o período de pré-natal, parto e pós-parto, tendo em vista a ausência
de legislação e políticas públicas direcionadas ao combate deste fato.
As sequelas à saúde da mulher são inúmeras, afetando o âmbito físico e
psíquico de quem sofreu quaisquer atos durante o período de espera ou de
nascimento de um filho. Assim, devem-se coibir tais condutas, que afetam a dignidade
da mulher, na condição de paciente e consumidora de um serviço de saúde, o qual
está sendo prestado sem o zelo profissional necessário.
Desta forma, este trabalho se encontra dividido em três partes: a primeira, na
qual se abordará o direito da mulher ao parto humanizado; a segunda, direcionada a
273

esclarecer o que vem a ser a violência obstétrica no Brasil, e a terceira, sobre a


temática central do trabalho, que é a responsabilidade civil em decorrência da
violência obstétrica.
Por fim, o método de pesquisa utilizado para alcançar os resultados deste
trabalho foi o dedutivo, partindo-se de uma análise geral para um contexto específico,
com ênfase em tipo metodológico de pesquisas bibliográficas em livros, revistas, sítios
eletrônicos etc., focados aos ramos do Direito Constitucional, do Direito Civil, do
Direito do Consumidor e do Direito Médico.

1 DIREITO DA MULHER AO PARTO HUMANIZADO

Toda mulher, independentemente de cor, raça, sexo ou etnia, tem direito à


proteção do seu corpo contra atos de violência, bem como o direito à integridade física
e mental, principalmente durante o momento tão delicado de sua vida, que é o
nascimento de seu filho.
A Constituição da República de 1988 garante em seu art. 6º, caput, o direito à
saúde e à proteção à maternidade dentre os direitos sociais fundamentais. O Brasil,
com o objetivo de aumentar seu arcabouço protetivo à mulher, ratificou a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída
em Belém do Pará, em 09 de junho de 1994, através do Decreto nº 1.972/1996, o qual
também engloba como violência contra a mulher, aquela física, sexual e psicológica,
ocorrida no âmbito dos serviços de saúde, segundo art. 2, b, inclusive, à mulher
gestante, nos termos do art. 9 da referida convenção.
Posteriormente, no intuito de viabilizar esta proteção à maternidade e os
direitos da gestante, a Lei nº 11.108/2005, alterou a Lei n o 8.080, de 19 de setembro
de 1990, com o objetivo de garantir às parturientes o direito à presença de
acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do
Sistema Único de Saúde - SUS.
Conforme art. 19-J e seus parágrafos, acrescentado pela referida lei, a
parturiente tem direito a 01 (um) acompanhante, por ela indicado, durante o período
do trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. Assim, cabe ao Poder Executivo
regulamentar a lei e aos hospitais de todo o país afixar em local visível de suas
dependências, a indicação do direito supramencionado, nos termos dos §§2º e 3º do
art. 19-J da Lei nº 8.080/1990.
Em 2008, o Ministério da Saúde editou a Resolução nº 36, a qual dispõe sobre
o regulamento técnico para funcionamento dos serviços de atenção obstétrica e
neonatal. O objetivo desta seria a humanização da atenção e da gestão da saúde,
relacionada aos serviços, públicos ou privados, direcionados à maternidade,
promovendo um ambiente mais acolhedor à mulher e ao bebê.
Diante disto, afirma-se que a proteção à maternidade é uma garantia de que
esta mulher que está em período gestacional, em trabalho parto ou em pós-parto não
sofrerá nenhuma violação à sua dignidade ou integridade física ou psíquica,
decorrentes de atos oriundos da equipe médico-hospitalar de entidades públicas ou
privadas.

2 O QUE É VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA?

“O parto é um período crítico e, por isso, deve ser acompanhado por um


profissional capaz, um médico ou enfermeira obstetra. [...] Na maioria das vezes, as
274

mortes de mães e de bebês acontecem nas primeiras horas ou dias após o parto”
(UNICEF, 2011, p. 41).
“Ao acompanhar um parto, o profissional da saúde deve ter três objetivos:
avaliar e garantir o bem-estar da gestante; avaliar e garantir o bem-estar do bebê;
avaliar se o trabalho de parto está evoluindo bem” (UNICEF, 2011, p. 45). No entanto,
podem ocorrer procedimentos por parte da equipe profissional médica que confrontem
os referidos objetivos e os direitos a um parto em condições dignas e de respeito à
mulher.
A violência obstétrica pode ser caracterizada por condutas abusivas, ou de
desrespeito ao direito da mulher, transcorridas durante o pré-natal, trabalho de parto
ou pós-parto, causando-lhe sofrimentos físicos e psicológicos, além dos já
experimentados neste momento tão delicado da vida humana.

Entende-se por violência obstétrica toda ação ou omissão direcionada à


mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, que cause dor, dano ou
sofrimento desnecessário à mulher, praticada sem o seu consentimento
explícito ou em desrespeito à sua autonomia. Este conceito engloba todos
os prestadores de serviço de saúde, não apenas os médicos (PAES, 2015,
p. 01).

Pode ser perpetrada pelos profissionais de saúde (enfermeiros, anestesistas,


médicos, técnicos de enfermagem e recepcionistas), seja do sistema público ou
particular de saúde, através de violência por negligência; violência física; violência
verbal; e violência psicológica.
Neste mesmo sentido, Sauaia e Serra (2016, p. 133) expõem que a violência
obstétrica pode ser verificada quando:

Negar atendimento à mulher ou ainda impor alguma dificuldade ao


atendimento em postos de saúde onde são realizados o acompanhamento
pré-natal; qualquer espécie de comentários constrangedores à mulher e
relacionados à sua cor, raça, etnia, idade, escolaridade, religião ou crença,
condição econômica, estado civil ou situação conjugal, orientação sexual,
número de filhos, etc; ofender, humilhar ou xingar a mulher ou sua família;
negligenciar atendimento de qualidade; agendar cesárea sem
recomendação baseada em evidências científicas, atendendo
simplesmente aos interesses e conveniência do médico (SAUAIA E
SERRA, 2016, p.133).

No Brasil, o Projeto de Lei nº 7.867/2017 - Câmara, o qual foi apensado ao


Projeto de Lei nº 7.633/2014 que visa instituir o parto humanizado, teria o objetivo de
dispor sobre as medidas de proteção contra a violência obstétrica. Porém, ainda há
ausência legislativa em âmbito federal que regulamente precisamente esta matéria.
O Estado de Santa Catarina foi precursor ao implementar medidas de
informação e proteção à gestante e parturiente contra violência obstétrica, ao aprovar
a Lei nº 17.097/2017, a qual, conceitua violência obstétrica:

Art. 2º Considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo médico,


pela equipe do hospital, por um familiar ou acompanhante que ofenda, de
forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em trabalho de parto ou,
ainda, no período puerpério.

Também se caracterizam como violência obstétrica, os atos descritos no art. 3º


da referida lei, quais sejam:
275

Art. 3º Para efeitos da presente Lei considerar-se-á ofensa verbal ou física,


dente outras, as seguintes condutas:
I – tratar a gestante ou parturiente de forma agressiva, não empática,
grosseira, zombeteira, ou de qualquer outra forma que a faça se sentir mal
pelo tratamento recebido;
II – fazer graça ou recriminar a parturiente por qualquer comportamento
como gritar, chorar, ter medo, vergonha ou dúvidas;
III – fazer graça ou recriminar a mulher por qualquer característica ou ato
físico como, por exemplo, obesidade, pelos, estrias, evacuação e outros;
IV – não ouvir as queixas e dúvidas da mulher internada e em trabalho de
parto;
V – tratar a mulher de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes
infantilizados e diminutivos, tratando-a como incapaz;
VI – fazer a gestante ou parturiente acreditar que precisa de uma
cesariana quando esta não se faz necessária, utilizando de riscos
imaginários ou hipotéticos não comprovados e sem a devida explicação
dos riscos que alcançam ela e o bebê;
VII – recusar atendimento de parto, haja vista este ser uma emergência
médica;
VIII – promover a transferência da internação da gestante ou parturiente
sem a análise e a confirmação prévia de haver vaga e garantia de
atendimento, bem como tempo suficiente para que esta chegue ao local;
IX – impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua
preferência durante todo o trabalho de parto;
X – impedir a mulher de se comunicar com o “mundo exterior”, tirando-lhe
a liberdade de telefonar, fazer uso de aparelho celular, caminhar até a sala
de espera, conversar com familiares e com seu acompanhante;
XI – submeter a mulher a procedimentos dolorosos, desnecessários ou
humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos,
posição ginecológica com portas abertas, exame de toque por mais de um
profissional;
XII – deixar de aplicar anestesia na parturiente quando esta assim o
requerer;
XIII – proceder a episiotomia quando esta não é realmente imprescindível;
XIV – manter algemadas as detentas em trabalho de parto;
XV – fazer qualquer procedimento sem, previamente, pedir permissão ou
explicar, com palavras simples, a necessidade do que está sendo
oferecido ou recomendado;
XVI – após o trabalho de parto, demorar injustificadamente para acomodar
a mulher no quarto;
XVII – submeter a mulher e/ou bebê a procedimentos feitos
exclusivamente para treinar estudantes;
XVIII – submeter o bebê saudável a aspiração de rotina, injeções ou
procedimentos na primeira hora de vida, sem que antes tenha sido
colocado em contato pele a pele com a mãe e de ter tido a chance de
mamar;
XIX – retirar da mulher, depois do parto, o direito de ter o bebê ao seu lado
no Alojamento Conjunto e de amamentar em livre demanda, salvo se um
deles, ou ambos necessitarem de cuidados especiais;
XX – não informar a mulher, com mais de 25 (vinte e cinco) anos ou com
mais de 2 (dois) filhos sobre seu direito à realização de ligadura nas
trompas gratuitamente nos hospitais públicos e conveniados ao Sistema
Único de Saúde (SUS);
XXI – tratar o pai do bebê como visita e obstar seu livre acesso para
acompanhar a parturiente e o bebê a qualquer hora do dia.

Diante de inúmeras formas de incidência não pode a sociedade juntamente


com o Poder Público, eximir-se de sua responsabilidade fiscalizatória, quanto ao
cumprimento do direito a um parto humanizado e demais direitos da gestante e da
276

parturiente, bem como quanto à responsabilidade jurídica aos atos cometidos pelos
profissionais da saúde, durante o trabalho de pré-natal, parto e pós-parto, tendo em
vista o crescimento do número de casos de violência obstétrica neste país.

3 RESPONSABILIDADE CIVIL EM DECORRÊNCIA DE ATOS ILÍCITOS


CARACTERIZADOS COMO VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

No tópico anterior, abordou-se a problemática da violência obstétrica, suas


formas de incidência e sua caracterização. O ordenamento jurídico pátrio é pacifico o
entendimento quanto à responsabilidade civil por violação de direito de outrem,
juridicamente protegido, seja no âmbito patrimonial, seja no âmbito extrapatrimonial.
O art. 927 c/c art. 186 do Código Civil são claros ao disporem sobre a reparação
civil pelos danos causados por ato ilícito, decorrentes de ação ou omissão voluntária,
negligência ou imprudência, ou ainda nos casos especificados em lei, ou devido ao
risco da atividade.

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou


imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem,
fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente
de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza,
risco para os direitos de outrem. (grifado)

A partir da leitura dos referidos artigos, é possível afirmar que as práticas que
incidem em violência obstétrica violam direitos da mulher, causando-lhe danos, ainda
que exclusivamente morais, seja por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, amoldando-se, portanto, ao conceito de ato ilícito.
Interessante ressaltar também que não só profissional médico que está sujeito
à atribuição da responsabilidade civil. O art. 932, inciso III do Código Civil ainda define
que são também responsáveis pela reparação civil, o empregador ou comitente, por
seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir,
ou em razão dele.
Entretanto, no que concerne à atribuição da responsabilidade ao médico, faz-
se necessário, nos termos do art. 186 do Código Civil, a verificação da conduta
omissiva ou comissiva deste profissional, o dano ocasionado à mulher em período
pré-natal, em trabalho de parto ou em pós-parto, o nexo de causalidade, além do
elemento volitivo culpa, para que assim se possa atribuir a Responsabilidade Civil
Subjetiva.
No entanto, se este profissional comete o ato ilícito no interior de unidade
hospitalar, atrai-se a aplicação do texto do art. 933 do Código Civil, que anuncia a
Teoria do Risco Criado, determinando que ainda que não haja culpa de sua parte, o
empregador ou comitente responderão pelos atos praticados pelos terceiros, nos
moldes do art. 932 do CC/02, atraindo assim, a Responsabilidade Objetiva.
Neste mesmo sentido há entendimento consolidado do Supremo Tribunal
Federal (STF), através da Súmula nº 341, que “É presumida a culpa do patrão ou
comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”.
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial nº
774.963/RJ, relatado pela Ministra Maria Isabel Galloti, ac. 06.12.2012, DJe
07.03.2013, define que:
277

A natureza da responsabilidade das instituições hospitalares por erros


médicos deve ser examinada à luz da natureza do vínculo existente entre
as referidas instituições e os profissionais a que se imputa o ato danoso.”
No entanto, “responde o hospital pelo ato culposo praticado por
profissional de sua equipe médica, mesmo que sem vínculo empregatício
com a instituição”.

Nesta senda, em se tratando de erro médico, a responsabilidade civil objetiva


atribuída ao Hospital também se mostra evidente, quando da leitura dos ditames do
art. 14, caput do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 14, CDC. O fornecedor de serviços responde, independentemente da


existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como
por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
(grifado)

Por fim, há de se ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacificou o


entendimento quanto à responsabilidade solidária entre o médico e o hospital,
conforme se pode constatar abaixo:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO (art. 544 do CPC/73). AÇÃO


CONDENATÓRIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO.
HOSPITAL. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. DECISÃO
MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECURSO.
IRRESIGNAÇÃO DA CASA DA SAUDE.
I. Nos termos do art. 14 do CDC, quando houver uma cadeia de
fornecimento para a realização de determinado serviço, ainda que o dano
ocorra da atuação de um profissional liberal, verificada culpa deste, nasce
a responsabilidade solidária daqueles que participam da cadeia de
fornecimento do serviço, como é o caso dos autos. Precedentes. (grifado)
2. Agravo regimental desprovido.

Desta forma, resta-se patente que a violência obstétrica é passível de atribuição


de responsabilidade jurídica na seara cível, desde que comprovados seus elementos
caracterizadores, podendo ser imputada tanto ao médico quanto à instituição
hospitalar na qual exerce seu ofício.

CONCLUSÃO

Através desta pesquisa tornou-se perceptível que a violência obstétrica se


apresenta das mais variadas formas, principalmente, em situações de
constrangimentos, dores e sofrimentos físicos e emocionais da gestante ou da
parturiente.
A condição de vulnerabilidade no momento gestacional a faz aceitar as
referidas condutas como se fossem inerentes ao processo doloroso do parto. No
entanto, em decorrência da maior visibilidade dos casos no país, há uma maior
atenção do legislador no intuito de zelar pelo direito à proteção à maternidade e à vida
humana.
Diante do exposto, conclui-se que a violência obstétrica é um fato social
crescente no país, e que merece tratamento como ato ilícito cometido pelo profissional
médico, passível de responsabilidade civil solidária, inclusive ao hospital, em que este
presta serviço.
278

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de


outubro de 1988.
_______. Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para
a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes e dá outras providências.
________. Lei nº 11.108/05. Lei do Acompanhante. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11108.htm > Acesso
em: 13/10/2018.
_________. Código Civil. Vade Mecum Compacto. São Paulo: Saraiva, 2017.
_________. Código de Defesa do Consumidor. Lei n° 8.078, de 11 de setembro de
1990. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm>.
Acesso em: 13/10/2018.
_________. Decreto nº 1.972, de 01 de agosto de 1996. Ratificou a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída
em Belém do Pará, em 09 de junho de 1994. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm> Acesso em
13/10/2018;
_________. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 7.867/2017. Apensado ao
Projeto de Lei nº 7.633/2014, que dispõe sobre objetivo de dispor sobre as medidas
de proteção contra a violência obstétrica.
SANTA CATARINA. Lei nº 17.097, de 17 de janeiro de 2017. Dispõe sobre a
implantação de medidas de informação e proteção à gestante e parturiente contra a
violência obstétrica no Estado de Santa Catarina. Disponível em:
<http://leis.alesc.sc.gov.br/html/2017/17097_2017_lei.html> Acesso em 13/10/2018;
Correia-Lima, Fernando Gomes. Erro médico e responsabilidade civil. Brasília:
Conselho Federal de Medicina, Conselho Regional de Medicina do Estado do Piauí,
2012.
GOMES, Júlio César Meirelles; DRUMOND, José Geraldo de Freitas; FRANÇA,
Genival Veloso. Erro médico. 3ª ed. rev. atual. Montes Claros: Ed. Unimontes, 2001.
PAES, Fabiana Dal'Mas Rocha. Estado tem o dever de prevenir e punir a violência
obstétrica. Publicado em 07 de dezembro de 2015. Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2015-dez-07/mp-debate-estado-dever-dever-prevenir-
punir-violencia-obstetrica#_ftn1>. Acesso em 18/10/2018.
SAUAIA, Artenira da Silva e Silva. SERRA, Maiane Cibele de Mesquita. Uma dor além
do parto: violência obstétrica em foco. Revista de Direitos Humanos e Efetividade.
Brasília, v. 2, n. 1, p. 128 – 147, Jan/Jun. 2016.
UNICEF, FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA. Guia dos Direitos da
Gestante e do Bebê. São Paulo: Globo, 2011.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. AgRg no AREsp. 209.711/MG. Rel.
Min. Marco Buzzi, ac. 12.04.2016. Dje 22.04.201 (2012/0156489-0). Disponível em:
THEODORO JUNIOR, Humberto, Direitos do Consumidor. 9ª ed. ref. revista e
atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 107;
_____________. 4ª Turma. Recurso Especial nº 774.963/RJ. Relatado pela Ministra
Maria Isabel Galloti, ac. 06.12.2012, DJe 07.03.2013.
279

Grupo de trabalho:

DIREITO CIVIL II
Trabalhos publicados:

A LOCAÇÃO DE ESPAÇOS PARA INSTALAÇÃO DE ANTENAS E A APLICAÇÃO


DA LEI DO INQUILINATO.

A NECESSIDADE DE ANUÊNCIA DO CÔNJUGE PARA ESTERILIZAÇÃO


VOLUNTÁRIA: A AUTONOMIA PRIVADA NO CASAMENTO À LUZ DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A POSSIBILIDADE DA ALTERAÇÃO DO STATUS JURÍDICO DOS ANIMAIS NÃO


HUMANOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA NAS RELAÇÕES
COM OS HUMANOS

A PRIVACIDADE DO INDIVÍDUO NO ÂMBITO FAMILIAR: UMA ANÁLISE ACERCA


DA POSSIBILIDADE DA INTERFERÊNCIA ESTATAL NA FAMÍLIA.

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEUS REFLEXOS NO PODER FAMILIAR: UMA


ANÁLISE DA LEI 13.715 DE 24/09/2018

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMO LOCATÁRIA

O RECONHECIMENTO DA PLURIPARENTALIDADE A LUZ DA


CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA
280

A LOCAÇÃO DE ESPAÇOS PARA INSTALAÇÃO DE ANTENAS E A APLICAÇÃO


DA LEI DO INQUILINATO.
THE RENTAL OF SPACES FOR INSTALLATION OF ANTENNAS AND AN
APPLICATION OF THE TENANT'S LAW

Suellen Araujo Gomes

Resumo: A locação de espaços para colocação de antenas de telefonia móvel é cada


vez mais crescente nos grandes centros urbanos, sendo mais comum a locação do
topo de edifícios em condomínios em virtude de melhor propagação do sinal. Neste
ínterim, há também o interesse por parte do condomínio locatário em ampliar a
arrecadação. No entanto, dada a época da redação da lei 8.245/91, não há previsão
na legislação para essa modalidade de locação, mais comum nas últimas duas
décadas, se tornando um tema controvertido, que tem motivado diversas discussões
judiciais. Deste modo, na ausência de previsão legal, surge o questionamento se a lei
do inquilinato é aplicável a essa espécie de locação, e em caso positivo, importante
entender quais pontos da lei de locação podem ser invocados, como da locação
comercial, das cláusulas contratuais e principalmente do direito ou não a ação
renovatória.
Palavras-chave: Locação; Antenas; Renovatória.

Abstract: The leasing of spaces for the placement of mobile telephone antennas is
increasing in large urban centers, being more common the lease of the top of buildings
in condominiums by virtue of better signal propagation. In this context, there is also the
interest on the part of the renter condominium to increase the collection. However,
given the time of writing of Law 8.245/91, there is no provision in the legislation for this
kind of leasing, more common in the last two decades, becoming a controversial topic
that has motivated several judicial discussions. Thus, in the absence of legal
prediction, the question arises whether the Law of tenancy is applicable to this kind of
lease, anda in positive case, It is important to understand which points of the lease
Law can be invoked, as of the commercial lease, contractual clauses and mainly of the
right or not the action renovating.
Key words: Location; antennas; renovating.

INTRODUÇÃO

Com a crescente onda tecnológica e a popularização do uso dos smartphones,


redes sociais e uso em massa da internet, as empresas de telefonia móvel e de
transmissão de dados se viram diante da necessidade de obter cada vez novos e
melhores locais para instalação das antenas de transmissão. Anteriormente a procura
era muito grande por terrenos, mas com o crescimento urbano, um local para
instalação que passou a ser muito utilizado é o topo de edifícios, o que obviamente se
torna mais uma fonte de arrecadação para o condomínio, sendo necessária a
aprovação em assembléia.
Diante dessa relação locatícia, como em outras surgem questões a serem
solucionadas, e conflitos que podem facilmente chegar à via judicial, pois o contrato
firmado normalmente é um padrão redigido pelas grandes empresas de telefonia, que
incluem cláusulas que visam beneficiá-las exclusivamente, que requerem atenção na
negociação, como exemplo cita -se o prazo, pois que se tratam de contratos longos,
281

acima de dez anos, com índice de reajuste limitado, que com certeza irá defasar o
contrato em pouco tempo.
Apesar de ser uma excelente fonte de renda, como em outras relações surgem
questões que necessitam de solução. Em face destes conflitos, surge a questão da
aplicação da lei 8.245/91 a essa espécie de locação, haja vista não haver previsão
especificamente dessa modalidade de locação na lei do inquilinato. Mesmo diante da
possibilidade de aplicação, onde esse contrato se enquadraria e quais aplicações
seriam possíveis? No tocante aos procedimentos especiais, como por exemplo, a
ação renovatória, seria aplicável a locação em questão? E os demais procedimentos
sofrem alguma alteração pelo entendimento dos tribunais?
Relevante salientar que não se trata de um tema pacificado surge então o
interesse de explorar a aplicação da lei do inquilinato com suas especificidades aos
contratos de locação de espaço para instalação de antenas de telefonia, o que será
demonstrado a seguir.

A LOCAÇÃO DE ESPAÇOS PARA INSTALAÇÃO DE ANTENAS E A APLICAÇÃO


DA LEI DO INQUILINATO
III - COMO É REALIZADA A LOCAÇÃO DE ESPAÇOS PARA INSTALAÇÃO DE
ANTENAS DE TELEFONIA MÓVEL

Quando as empresas de telefonia necessitam ampliar a transmissão de seu


sinal, procuram locais como terrenos ou topo de edifício para realizar a locação. Quem
possui interesse em se tornar locador para estas empresas, deve cadastrar o espaço
em empresas especializadas em realizar essa ponte principalmente entre os
condomínios e as empresas, existe também o sítio virtual my tower que procura
intermediar essa relação e anuncia os imóveis dos interessados em locar seu imóvel.
Tem - se ainda, as tower companys que fornecem as antenas e também realizam essa
ponte entre os proprietários de imóveis, principalmente de terrenos.
Porém, sendo terreno ou um topo de edifício alguns cuidados são necessários
para efetivar a locação sem maiores transtornos: Documentação do Imóvel tem
que estar em dia (Habite-se, Contrato de Compra e Venda, Escritura do Imóvel, IPTU,
Documentação de Água e Luz do Imóvel, Documentos do Locador, entre outros); É
necessário obedecer alguns critérios da prefeitura (como recuamento de calçada,
distância de escolas de ensino infantil/hospitais/postos de saúde/creches (geralmente
tem que estar pelo menos a 50 ou 100 metros de distância); Distância de outras torres
de telefonia móvel (cada município tem uma regra, normalmente são pelo menos 100
metros de distância de cada torre). A infraestrutura é por conta do Locatário, ele tem
que devolver o imóvel no término da locação nas mesmas condições que encontrou. 1
Além dessas questões comuns aos dois locais, quando se tratar de locação em
condomínio outras questões precisarão ser observadas como a aprovação da maioria
dos condôminos (sugere-se dois terços), ou de acordo com a convenção, bem como
laudo de para raios e AVCB em dia, além disso, o condomínio deve requerer da
empresa os seguintes itens: Apólice de seguros da empresa (com cópia da apólice),
cercando o condomínio com todo tipo de cuidados referentes ao cuidado da área
alugada; Atestado de estabilidade estrutural e responsabilidade civil da empresa, com
ART (Anotação de Responsabilidade Técnica); Licença de funcionamento na

1
Fonte: http://mytower.com.br/blog/2016/09/aluguel-de-terreno-para-antena/ acesso em 22/10/2018
282

prefeitura; Laudo Radiométrico ;Licença de Funcionamento de Estação da Anatel e


atestado de impermeabilização do local após instalação.2
Vale dizer que os custos com instalação e manutenção correm por conta da
locatária, se trata de um alto investimento, motivo pelo qual as locações costumam
ser celebradas por períodos longos de dez anos ou mais, e que não há interesse na
empresa locatária em desfazer o contrato, haja vista já ter sido realizado um estudo
prévio de viabilidade do local, bem como realizaram altos investimentos. Porém
apesar do investimento considerável, há um óbvio retorno, bem lucrativo, motivo pelo
qual o aluguel deve ser proporcional, não importando se o local de instalação se dá
em local nobre ou periférico, devendo ser levado em consideração o valor de mercado
praticado. Outrossim, se a empresa optou por aquele imóvel é porque se encontra na
localização ideal que preenche a demanda da empresa naquela região.

IV - O CONTRATO DE LOCAÇÃO

Claramente não se trata de locação residencial, então será que podemos dizer
que se enquadra na parte de locação não residencial, conforme descrito na Lei
8.245/91? Vale dizer que a lei do inquilinato como regra regula as locações urbanas
em geral com as exceções previstas na alínea ‘a’ do artigo 1º, sendo que não há
previsão da locação desses espaços na exceção regulada pelo código civil. Tampouco
seria imóvel rural uma vez que segundo a definição do INCRA :

‘Imóvel rural é uma área formada de uma ou mais matrículas de terras


contínuas, do mesmo detentor (seja ele proprietário ou posseiro), podendo
ser localizada tanto na zona rural quanto urbana do município. O que
caracteriza o imóvel rural para a legislação agrária é a sua “destinação
agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial.” Lei n.º
8.629, de 25 de fevereiro de 1993, artigo 4.º, inciso I). 3

De acordo com Venosa: “A tendência é de ser considerado urbano o imóvel de


acordo com sua destinação e não conforme sua localização. Assim, deve ser
considerado como prédio urbano aquele que embora situado em zona rural destina-
se à habitação ou ao comércio”.4 Deste modo é claro que a legislação aplicável é a
Lei 8.245/91, se tratando de contrato atípico, deste modo, existem cláusulas que
merecem atenção antes de firmar o contrato, pois como já citado em sua vasta maioria
se tratam de contratos “prontos” que visam beneficiar a empresa locatária. Podemos
aqui citar as principais, do prazo, preço, índice de reajuste, renovação e multa por
atraso.
Quanto ao prazo, como já mencionado, o prazo nessa espécie de locação
costuma ser longo de 5 a 10 anos, normalmente com renovação automática,
claramente criando a defasagem no valor do contrato, que só poderia ser alterada de
mútuo acordo ou por ação própria
Em relação ao preço, o valor deve acompanhar o de mercado, não o preço do
m² do imóvel na região de instalação, pois não possui ligação com a atividade
realizada.
No tocante ao índice de reajuste, face ao risco iminente de defasagem do valor,
deve -se optar por um índice que minimize essa ocorrência, acompanhando a
evolução do mercado, tem -se como mais utilizado o IGP-M.O reajuste pode ser
2
Fonte: https://www.sindiconet.com.br/informese/aluguel-do-topo-de-pedios-para-antenas-de-operadoras-dicas-uteis-aluguel-
do-topo-para-antenas em 22/10/2018
3
Fonte: http://www.incra.gov.br/o-que-e-imovel-rural-nos-termos-da-legislacao-agraria
4
VENOSA, Sílvio de Salvo. Lei do Inquilinato Comentada. Editora Atlas. São Paulo. 2012, p. 07
283

renegociado e alterado por vontade das partes, bem como é possível inserir e
modificar cláusulas contratuais. Assim versa o artigo 18 da Lei 8.245/91: É lícito às
partes fixar de comum acordo, novo valor para o aluguel, bem como inserir ou
modificar cláusula de reajuste.
Na questão da renovação, ideal seria coibir a renovação automática, tampouco
permitir que o contrato vigore por tempo indeterminado, condicionando a renovação a
ser firmada por escrito mediante reajuste do valor locatício, que evitaria maiores
aborrecimentos.
Por fim a multa por atraso pode ser modificado, com o intuito de equalizar a
relação em virtude de longo prazo e das peculiaridades citadas, seria interessante a
instituição de multa de 10% não 2%, sendo aceita em nosso ordenamento a majoração
desde que com expressa previsão contratual nos contratos de locação e outros
contratos em geral, com exceção dos regidos pelo CDC.

MULTA MORATÓRIA DE 10% PREVISTA CONTRATUALMENTE


VALIDADE. Inexistindo na lei qualquer limitação ao poder de livre
disposição das partes contratantes, podem eles convencionar o
percentual de multa contratual pelo descumprimento de quaisquer
obrigações pactuadas, devendo se pautar pela legislação própria - Lei do
Inquilinato (Lei nº 8.245/91). Válida, portanto, a multa moratória fixada
contratualmente em 10%. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS
SUCUMBENCIAIS ELEIÇÃO NOS TERMOS DO ART. 20, § 3º, DO CPC
REDUÇÃO PRETENSÃO ACOLHIDA RECURSO NESTE ASPECTO
PROVIDO.
(TJ-SP - APL: 10305145620138260100 SP 1030514-56.2013.8.26.0100,
Relator: Paulo Ayrosa, Data de Julgamento: 11/11/2014, 31ª Câmara de
Direito Privado, Data de Publicação: 11/11/2014).

Após firmado o contrato, em caso de questões controversas, sem


composição amigável, as partes invocarão o poder judiciário para solucionar o
problema. Deste modo veremos a seguir quais procedimentos especiais previstos na
lei do inquilinato poderão ser aplicados a essa espécie de locação.

V - A INCIDÊNCIA DOS PROCEDIMENTOS ESPECIAIS

Diante da confirmação da aplicação da lei do inquilinato, seria aplicável em sua


totalidade? Qual a aplicação dos procedimentos especiais, o que é aceito e qual a
posição da jurisprudência sobre o assunto? Será explanado a seguir, pontos tratar
aqui da ação revisional, ação de despejo e a ação renovatória.
Iniciando pela ação aparentemente mais simples, a Ação Revisional de aluguel,
no caso da locação de espaço para antenas, como já discutidas as peculiaridades,
uma das principais características do contrato é o prazo mais extenso, o que sem
dúvida pode causar defasagem, o que não impede porém, apesar de mais raro, de
fatores externos influenciarem ou prejudicarem o valor de mercado negativamente que
ensejaria uma possível redução. No entanto, mais plausível no caso em tela seria a
majoração do aluguel a fim de ajustá-lo ao preço de mercado. Assim prevê o artigo 19
da Lei do Inquilinato: Não havendo acordo, o locador ou o locatário, após três anos de
vigência do contrato ou do acordo anteriormente realizado, poderão pedir revisão
judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado.
Deste modo, é claramente possível o ajuizamento de ação revisional de aluguel
em um contrato de locação de espaço para instalação de antenas. Sobre a Revisional
assim define Maria Helena Diniz:
284

“O princípio da força obrigatória do contrato ou da fidelidade ao contrato


(pacta sunt servanda) vem perdendo terreno, pois a submissão a essa
norma poderá levar a injustiças e ao desequilíbrio na relação obrigacional,
principalmente se houver alguma alteração ou modificação social ou
econômica na situação fática contemporânea à formação ou celebração
do contrato de locação, que condicionou a vontade negocial dos
contratantes. Se tiver que manter inalterável o contrato, poder-se-á,
devido a certas circunstâncias socioeconômicas, como, p. Ex.,
depreciação da moeda ou valorização do imóvel, ter o fim da relação de
equivalência entre a prestação e a contraprestação devidas pelas partes
e a impossibilidade de consecução dos objetivos perseguidos pelo
contrato, por acarretarem inadequação do valor locativo do imóvel ante o
aluguel pago pelo locatário (RT, 450:278, 473:164). Para evitar isso a lei
admite o reajustamento contratual por via convencional, no art. 18, como
vimos, e, por via judicial, no art. 19, ora comentado, restabelecendo-se
aquela equivalência. [...] Não será admissível a revisão do aluguel, antes
de completado o triênio, ainda que se invoque onerosidade excessiva ou
grande mutação nas condições econômicas (JTA, Ed. Lex, 133:233). Se
tal prazo não se perfez, decretar-se-á a carência da ação, seja por
arguição do réu, seja por iniciativa do magistrado (CPC, arts. 295, III, e
301, § 4º). O locador ou locatário, na falta de acordo depois de três anos
de vigência do contrato ou do acordo anteriormente realizado, poderá
pedir a revisão judicial do aluguel ou a sua atualização para ajustá-lo ao
preço de mercado. Logo, não se tendo acordo, havendo ou não
cláusula de reajuste, após três anos de contrato, poder-se-á pedir
revisão judicial. O magistrado, então, determinará por arbitramento o
aluguel atualizado, fixando-o por sentença.” (grifo nosso). 5

Ademais, o entendimento dos tribunais quanto à revisional, na espécie de


contrato aqui discutido, não faz diferenciação quanto à aplicação para outras espécies
de locação, atuando no mesmo sentido, inclusive com a fixação dos aluguéis
provisórios como estabelece a legislação.

Agravo de instrumento Ação revisional de aluguel contrato de locação de


área para instalação de antena de telefonia de celular - Tutela antecipada
- Indeferimento de liminar em primeiro grau - Fixação dos aluguéis
provisórios Providência que decorre da Lei Possibilidade de revisão após
a citação. O juiz deve fixar o valor do aluguel provisório em razão de ação
revisional se houve pedido na inicial e este está baseado em laudo
elaborado por corretor de imóveis que atua na região Além disso, tendo
em vista a radical diferença entre os valores propostos pelas partes,
razoável, sopesando os interesses e riscos de ambas as partes, fixar-se o
valor dos aluguéis provisórios na quantia mensal de três mil e quinhentos
reais. Agravo provido em parte.
(TJ-SP - AI: 20054535420148260000 SP 2005453-54.2014.8.26.0000,
Relator: Lino Machado, Data de Julgamento: 19/02/2014, 30ª Câmara de
Direito Privado, Data de Publicação: 20/02/2014)

No tocante a ações de despejo nos contratos de locação de espaço para


antenas, é possível inclusive o despejo por denúncia vazia, conforme preceitua a lei
do inquilinato. Entretanto, em virtude da prestação de serviço realizada, atingir uma
coletividade, as decisões caminham no sentido de deferir o despejo, porém com um
prazo maior do que o previsto na legislação a fim de que possa ocorrer da forma mais
tranquila possível a transferência de local.

5
DINIZ, Maria Helena - Lei de Locações de Imóveis Urbanos Comentada - Editora Saraiva 13. Ed. Rev. E atual. São Paulo,
2014. P. 128/130
285

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CAUTELAR ANTECEDENTE –


CONTRATO DE LOCAÇÃO DE ESPAÇO PARA INSTALAÇÃO DE
ESTAÇÃO RÁDIO BASE E MONTAGEM DE ANTENAS DE
TRANSMISSÃO E RECEPÇÃO DO SERVIÇO MÓVEL PESSOAL (SMP)
– DESPEJO POR DENÚNCIA VAZIA – PRAZO CONTRATUAL PARA
DESOCUPAÇÃO DE 60 DIAS – PEDIDO CAUTELAR DE
PRORROGAÇÃO DO PRAZO – RISCO À CONTINUIDADE DA
PRESTAÇÃO DO SERVIÇO QUE SOPESADO COM O DIREITO À
RETOMADA POR DENÚNCIA VAZIA AUTORIZA A EXTENSÃO DO
PRAZO PARA DESOCUPAÇÃO – FIXAÇÃO DO PRAZO DE seis MESES
PARA DESOCUPAÇÃO, A CONTAR DA DATA DA NOTIFICAÇÃO
EXTRAJUDICIAL PROMOVIDA PELA LOCADORA, POIS DESDE
ENTÃO A REQUERENTE SABIA DO INTERESSE NA RETOMADA PELO
SENHORIO E PODERIA TER ADOTADO PROVIDÊNCIAS PARA
LOCALIZAR OUTRO ESPAÇO PARA A MONTAGEM DAS ANTENAS. -
Recurso provido em parte.

(TJ-SP 20522487920188260000 SP 2052248-79.2018.8.26.0000,


Relator: Edgard Rosa, Data de Julgamento: 04/05/2018, 25ª Câmara de
Direito Privado, Data de Publicação: 04/05/2018)

Porém, a decisão também pode ser diferente caso a Locatária tivesse


conhecimento, da intenção do Locador em não renovar o contrato.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESPEJO POR DENÚNCIA VAZIA.


NOTIFICAÇÃO DEVIDAMENTE REALIZADA. SENTENÇA DE
PROCEDÊNCIA DETERMINANDO A DESOCUPAÇÃO VOLUNTÁRIA
EM QUINZE DIAS, NA FORMA DO ART. 63, § 1º, DA LEI 8.245/91.
ALEGAÇÃO DE NECESSIDADE DE DUZENTOS E QUARENTA DIAS
PARA DESMONTE DA ANTENA, SOB PENA DE CAUSAR PREJUÍZOS
AOS USUÁRIOS E AMARGAR PERDAS FINANCEIRAS. CIÊNCIA DA
RECORRENTE QUANTO À FALTA DE INTERESSE DA LOCADORA NA
RENOVAÇÃO DO CONTRATO HÁ MAIS DE QUATRO ANOS.
ARGUMENTO INCONSISTENTE EM FACE DA REGRA LEGAL. ART.
557, DO CPC. RECURSO MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE.
SEGUIMENTO NEGADO.

(TJ-RJ - APL: 00079890620138190064 RJ 0007989-06.2013.8.19.0064,


Relator: DES. EDUARDO DE AZEVEDO PAIVA, Data de Julgamento:
04/11/2014, DÉCIMA OITAVA CAMARA CIVEL, Data de Publicação:
10/11/2014 13:48)

Dentre outras responsabilidades, a locatária deve manter suas licenças em dia,


como já explanado, caso não o faça pode ensejar o despejo por descumprimento,
inclusive porque isso pode ensejar a co responsabilização do locador.

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE DESPEJO – LOCAÇÃO


COMERCIAL – Decretação de despejo após o descumprimento do acordo
firmado entre as partes – Manutenção, porquanto, de fato, a agravante
deixou de regularizar sua situação perante a Prefeitura – Todavia, mostra-
se razoável a concessão de mais trinta dias para a desocupação,
considerando que eventuais prejuízos ao agravado estão cobertos pelo
acordo, bem como levando em conta as dificuldades de transposição da
antena e demais equipamentos – Recurso parcialmente provido.

(TJ-SP - AI: 21329476220158260000 SP 2132947-62.2015.8.26.0000,


Relator: Hugo Crepaldi, Data de Julgamento: 06/08/2015, 25ª Câmara de
Direito Privado, Data de Publicação: 07/08/2015)
286

No que tange a ação renovatória a conclusão não se mostra tão límpida como
nos exemplos anteriores, sequer a posicionamento pacificado neste sentido. Uma vez
que entende-se que a ação renovatória visa proteger o fundo de comércio que seria
inexistente nessa espécie de locação a renovatória não seria possível, por falta de
interesse de agir. Entretanto, o artigo 51 § 4º da Lei do inquilinato estende o direito à
renovação contratual ‘às locações celebradas por indústrias e sociedades civis com
fins lucrativo, regularmente constituída’, nesta diapasão não há questionamento
quanto à constituição e o fim lucrativo das empresas locatárias. Diante dessas
questões a controvérsia é inevitável.

LOCAÇÃO DE ESPAÇO PARA INSTALAÇÃO DE ANTENA DE


TELEFONIA MÓVEL. AÇÃO RENOVATÓRIA. FALTA DE INTERESSE
DE AGIR. A prestadora de serviço de telefonia móvel que loca espaço em
prédio urbano para a instalação de antena de transmissão de sinais não
constitui fundo de comércio no local a justificar a propositura de ação
renovatória (art. 51 da Lei 8.245/91). Falta de interesse de agir que enseja
a carência da ação e, por consequência, a extinção do processo sem
resolução do mérito, nos termos do art. 267, inc. VI, do CPC. Recurso
desprovido.
(TJ-SP - APL: 00146534020108260007 SP 0014653-40.2010.8.26.0007,
Relator: Gilberto Leme, Data de Julgamento: 22/07/2014, 27ª Câmara de
Direito Privado, Data de Publicação: 28/07/2014)

APELAÇÃO – AÇÃO RENOVATÓRIA – LOCAÇÃO DE ESPAÇO PARA


INSTALAÇÃO DE ANTENA DE TELEFONIA MÓVEL – CARÊNCIA DA
AÇÃO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR – NÃO SE VERIFICA O
ENQUADRAMENTO DO CASO AO CONCEITO DE FUNDO DE
COMÉRCIO A SER PROTEGIDO – SIMPLES MUDANÇA DE
LOCALIZAÇÃO DO PONTO DAS ANTENAS DE TRANSMISSÃO NÃO
PREJUDICARÁ A MANUTENÇÃO DOS CONSUMIDORES QUE
UTILIZAM SEUS SERVIÇOS – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO
DESPROVIDO.
(TJ-SP - APL: 10007987820148260510 SP 1000798-78.2014.8.26.0510,
Relator: Cesar Luiz de Almeida, Data de Julgamento: 18/04/2017, 28ª
Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 19/04/2017)

LOCAÇÃO. AÇÃO RENOVATÓRIA. UTILIZAÇÃO DE ESPAÇO PARA


INSTALAÇÃO DE ANTENA DE TELEFONIA MÓVEL. RELAÇÃO
LOCATÍCIA. MATÉRIA SUJEITA À DISCIPLINA DA LEI 8.245/91.
ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA, A IDENTIFICAR A PRESENÇA DO
INTERESSE PROCESSUAL. EXTINÇÃO DO PROCESSO AFASTADA.
DETERMINAÇÃO DE PROSSEGUIMENTO EM RELAÇÃO À CORRÉ
QUE EFETIVAMENTE INTEGRA A RELAÇÃO CONTRATUAL.
DETERMINAÇÃO DE RETORNO AO JUÍZO DE ORIGEM, PARA
POSSIBILITAR A DILAÇÃO PROBATÓRIA. RECURSO PROVIDO. 1. O
contrato estabeleceu a possibilidade de utilização de espaço em imóvel,
destinado à instalação de antenas e equipamentos de telefonia móvel.
Trata-se de relação de natureza locatícia e, como tal, sujeita à disciplina
da Lei 8.245/91. 2. O imóvel integra o conjunto de bens destinados ao
desenvolvimento da atividade da empresa locatária e, como tal, faz parte
do fundo de comércio, o que autoriza o exercício da ação renovatória. 3.
Configurada a adequação da via eleita, inegável é a presença do interesse
processual, o que determina o afastamento da extinção com referência à
ocupante do pólo ativo da relação locatícia. 4. Não estando madura a
causa para a realização do julgamento de mérito, determina-se o retorno
dos autos ao Juízo de origem, para possibilitar a dilação probatória.
(TJ-SP 10178051720158260068 SP 1017805-17.2015.8.26.0068,
287

Relator: Antonio Rigolin, Data de Julgamento: 17/07/2018, 31ª Câmara de


Direito Privado, Data de Publicação: 17/07/2018)

CIVIL E PROCESSO CIVIL. APELAÇÃO CIVEL. LOCAÇÃO


COMERCIAL. RENOVATÓRIA. ANTENAS DE TRANSMISSÃO DE
TELEFONIA MÓVEL. FUNDO DE COMÉRCIO. INTERESSE
PROCESSUAL. 1. Preenchidos os requisitos materiais que ensejam a
propositura da renovação do contrato de locação não residencial
insculpidos no artigo 51 da Lei do Inquilinato, encontra-se presente o
interesse processual. 2. Eventual inexistência de fundo de comércio da
área utilizada para a instalação de antena de telefonia móvel é matéria
atinente ao mérito, impondo-se um debate mais aprofundado. 3. Recurso
provido.
(TJ-DF - APC: 20140111885177 DF 0047631-77.2014.8.07.0001, Relator:
MARIO-ZAM BELMIRO, Data de Julgamento: 25/03/2015, 2ª Turma Cível,
Data de Publicação: Publicado no DJE : 10/04/2015 . Pág.: 145)

Locação. Ação renovatória. Área destinada à instalação de antena de


telefonia. Particularidade que não exclui a proteção legal. O propósito da
lei ao assegurar o direito à renovação de contrato de locação é proteger a
atividade comercial em prestígio ao investimento que o empresário lhe
direcionou, não importando, destarte, que o local não propicie a formação
de fundo de comércio, bastando seja essencial àquela função.
Procedência da ação em concreto autorizada. Apelação improvida
(TJ-SP - APL: 40023068520138260625 SP 4002306-85.2013.8.26.0625,
Relator: Arantes Theodoro, Data de Julgamento: 10/10/2016, 26ª Câmara
Extraordinária de Direito Privado, Data de Publicação: 11/10/2016)

Diante do exposto, acompanhamos o entendimento de que a antena integra o


conjunto de bens e é essencial a função da empresa, não devendo ser obste para a
propositura da ação renovatória a formação de fundo de comércio, amparada ainda
no texto do § 4º do artigo 51 da lei do inquilinato.
Ademais, as demais ações como de consignação de aluguel e acessórios da
locação, não há grande discussão, vez que basta o preenchimento dos requisitos
dispostos na lei do inquilinato, diferentemente da controvérsia existente na ação
renovatória.

CONCLUSÃO

Portanto, podemos concluir pela efetiva aplicação da Lei do inquilinato aos


contratos de locação de espaços para antenas de telefonia, uma vez que não esta
inclusa no rol de exceções reguladas pelo Código Civil e se tratam de contratos de
locação comercial atípicos. Existe a real necessidade de atenção às suas
peculiaridades, verificando documentação e requisitos legais, analisando as cláusulas
normalmente formuladas pelas empresas que visam em demasiado beneficiá-las. Fica
a cargo do locador, se atentar às particularidades da lei do inquilinato incidentes no
contrato,bem como as peculiaridades do instrumento, como reajuste, prazo,
renovação automática e multa, no intuito de equilibrar a relação, visando minimizar
problemas futuros que podem ensejar ações judiciais. Importa salientar que é
prevalente a vontade das partes desde que as clausulas não se tornem nulas por
contrariam o dispositivo legal ( art. 45 Lei 8.245/9)1
Em alguns casos se torna inevitável a propositura de ação judicial, por não se
conseguir uma composição amigável e necessitar de resolução, seja para o reajuste
(ação revisional), e para o despejo seja em qual modalidade for, sendo que deixar o
locatário de obter a licença necessária à sua atividade, também pode ensejar o
288

despejo, caso não o solucione em prazo razoável. Como se tratam de contratos de


prazo extenso, a primeira vista já vislumbra-se a possibilidade de ação renovatória,
porém o Locatário pode ser surpreendido com decisões contrarias a sua pretensão,
haja vista ocorrer grande controvérsia, em se a ausência do fundo de comércio é
impeditivo ou não à renovação. Por outro lado, análise do caso concreto preenchido
os requisitos do artigo 71 da Lei do inquilinato, pode resultar em decisão favorável,
por aplicação em conjunto do § 4º do artigo 51 compreendendo a extensão da ação
renovatória.
Deste modo, apesar de haver no texto legal previsão expressa regulando essa
espécie de locação, até mesmo porque seria inviável regular cada contrato de locação
detalhadamente, é claramente possível a aplicação da locação comercial prevista na
lei do inquilinato com total segurança jurídica, ressalvada a análise das peculiaridades
e o caso concreto.

REFERÊNCIAS

DINIZ, Maria Helena - Lei de Locações de Imóveis Urbanos Comentada - Editora


Saraiva 13. Ed. Rev. E atual. São Paulo, 2014. P. 128/130
VENOSA, Sílvio de Salvo. Lei do Inquilinato Comentada. Editora Atlas. São Paulo.
2012, p. 07
LEI 8.245 de 18/10/1991 – Vade Mecum – Saraiva – 2016 - 21ª Edição
http://www.incra.gov.br/o-que-e-imovel-rural-nos-termos-da-legislacao-agraria,
acesso em 22/10/2018
http://mytower.com.br/blog/2016/09/aluguel-de-terreno-para-antena/ acesso em
22/10/2018
https://www.sindiconet.com.br/informese/aluguel-do-topo-de-pedios-para-antenas-
de-operadoras-dicas-uteis-aluguel-do-topo-para-antenas em 22/10/2018
289

A NECESSIDADE DE ANUÊNCIA DO CÔNJUGE PARA ESTERILIZAÇÃO


VOLUNTÁRIA: A AUTONOMIA PRIVADA NO CASAMENTO À LUZ DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
THE NEED FOR SPOUSE’S CONSENT FOR VOLUNTARY STERILIZATION: THE
PRIVATE AUTONOMY IN MARRIAGE IN LIGHT OF THE FEDERAL
CONSTITUTION

Letícia Christina Moraes Bezerra


Ricardo Tavares de Albuquerque

Resumo: O presente resumo expandido analisa o requisito de consentimento


expresso de ambos os cônjuges para a realização de esterilização voluntária presente
no §5º, artigo 10 da Lei nº 9.263/1996, à luz da Constituição Federal, dos direitos
fundamentais e dos direitos de personalidade. No estudo, foi considerada a garantia
da autonomia privada versus a supremacia do interesse do Estado, bem como a
necessidade de intervenção de terceiros sobre os direitos reprodutivos individuais e a
proteção do direito ao planejamento familiar e ao direito à integridade física. Foram
utilizadas doutrinas, pesquisas e estudos acerca do tema, bem como das demais
questões a respeito da esterilização voluntária.
Palavras-chave: Esterilização voluntária; Autonomia; Constituição Federal.

Abstract: This expanded summary analyzes the requirement of express consent of


both spouses to perform voluntary sterilization, according to §5, article 10 of Law 9.263
/ 1996, in the light of the Federal Constitution, fundamental rights and personality
rights. In the study, the assurance of private autonomy versus the supremacy of state
interest was considered, as well as the need for third party intervention on individual
reproductive rights and protection of the right to family planning and the right to physical
integrity. Doctrines, researches and studies on the subject, as well as other questions
about voluntary sterilization were used.
Key words: Voluntary sterilization; Autonomy; Federal Constitution.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objeto de estudo a Lei nº 9.263/1996, o


planejamento familiar, a liberdade de disposição do corpo, os direitos reprodutivos, a
esterilização humana voluntária, todos à luz da Constituição Brasileira de 1988 e seus
direitos fundamentais. O interesse sobre o tema do trabalho surge com a apreciação
da autonomia privada como garantia de execução do arbítrio sobre o físico de cada
pessoa e a intervenção do interesse do Estado em tal direito.
Ademais, este resumo expandido analisará o propósito da Lei nº 9.263/1996,
os direitos que protegem o planejamento familiar, o direito de liberdade de escolha e
a autonomia privada, à luz dos direitos fundamentais constitucionais, a fim de
apresentar e discutir possíveis empecilhos gerados pela imposição de requisitos à
execução da esterilização voluntária.
Quanto ao objetivo, buscar-se-á encontrar subsídios para a análise da
inconstitucionalidade de exigência de autorização conjugal para a esterilização
voluntária.
A metodologia foi bibliográfica quanto aos meios e, quanto aos fins, foram
analisados os dados obtidos pelo método de abordagem hipotético-dedutivo, tendo
290

sido realizada reflexão crítica sobre o conteúdo escolhido e apresentação de


resultados conclusivos no presente estudo.
No primeiro capítulo se tratará do direito fundamental ao planejamento familiar,
seu embasamento constitucional e sua importância para o desenvolvimento social e
individual de cada pessoa; no segundo capítulo, analisa-se a contraposição entre a
supremacia do interesse do Estado e a autonomia privada na tomada de decisões do
planejamento familiar no que diz respeito à integridade e liberdade física.
Quanto ao terceiro capítulo, será explorada a possibilidade da esterilização
voluntária no Brasil, suas características, requisitos e dados de estudos acerca do
tema; e último capítulo indaga o paradoxo constitucional dos requisitos para
esterilização voluntária e suas consequências no tecido social brasileiro.

DESENVOLVIMENTO

1. O DIREITO FUNDAMENTAL AO PLANEJAMENTO FAMILIAR

O direito fundamental ao planejamento familiar traduz-se na garantia que o


Estado proporciona ao particular de que este poderá reger a ordem de sua família livre
da ingerência de terceiros, sejam estes a sociedade, outros particulares e até mesmo
o próprio Estado. Este direito fundamental é constitucional, estando também
corroborado no Código Civil de 2002, in verbis:

Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade


responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo
ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício
desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições
oficiais ou privadas. (CF/1988, art. 226, §7º).
O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado
propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse
direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas
ou públicas. (CC/2002, art. 1565, §2º).

Mediante a análise das referidas normas, verifica-se que o legislador prezou


pela autonomia de cada cidadão no planejamento da família em que este se insere,
não tendo nem o Estado, nem as instituições privadas, nem a sociedade, liberdade de
estabelecer parâmetros reguladores da ordem familiar. Tal entendimento traduz-se no
Princípio do Planejamento Familiar, devidamente regulamentado pela Lei nº
9.263/1996, que instituiu a regulamentação de políticas e ações públicas que tratem
sobre os meios e procedimentos disponíveis à fecundação, determinou o dever do
Estado de promover condições e recursos informativos, educacionais, técnicos e
científicos que assegurem o livre exercício do planejamento familiar1, bem como
instituiu crimes e as respectivas penas àqueles que desrespeitarem a nova norma.
Segundo o referido texto legal, planejamento familiar é “o conjunto de ações de
regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou
aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”2.
Assim, resta assegurado ao indivíduo, tanto pela Constituição Federal quanto
pelo Código Civil e pela Lei nº 9.263/1996, a certeza de estar este protegido por uma
obrigação negativa por parte do Estado e da sociedade, isto é, por um dever de não
fazer que lhe garante autonomia no que diz respeito à diversos assuntos relacionados

1
Lei nº 9.263/1996, art. 5º.
2
Lei nº 9.263/1996, art. 2º, caput.
291

ao planejamento familiar, principalmente no tocante à questões que envolvem à


fecundidade, o corpo e o seu direito de disposição, tema tão particular de cada pessoa.

2. O PAPEL DO ESTADO VERSUS A AUTONOMIA PRIVADA NA TOMADA DE


DECISÕES DO PLANEJAMENTO FAMILIAR - A INTEGRIDADE FÍSICA

O ordenamento jurídico brasileiro rege-se pelo Princípio da Supremacia do


Interesse Público, uma vez que, segundo José dos Santos Carvalho Filho não é o
indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas sim o grupo social num
todo. Logo, de acordo com tal princípio, havendo um conflito entre o interesse público
e o interesse privado há de prevalecer o interesse público, uma vez que as atividades
administrativas são desenvolvidas pelo Estado para benefício da coletividade (2015,
p. 34).
Desse modo, ainda que se trate de direito fundamental, o planejamento familiar
também é estudado sob a ótica do Direito Público, no que se trata da preponderância
do interesse público sobre o privado em estabelecer políticas de controle de
natalidade e, com isso, evitar a superpopulação diante da finitude de recursos, sendo
esta uma das limitações impostas pela Lei nº 9.236/1996.
Contudo, o planejamento familiar é, essencialmente, um instrumento da
autonomia privada, sobre o qual o Poder Público tem o dever de orientar políticas
públicas de consentimento informado do controle do corpo, no sentido de planejar a
família. Assim, considerando-se que o direito é o principal responsável por proteger
os bens jurídicos fundamentais a cada indivíduo, infere-se que a integridade corporal,
particularmente no que concerne ao direito de disposição do próprio corpo, também é
um bem jurídico a ser protegido pelas leis e pelo Estado.
Observe-se, com grande relevância, que todas as questões supramencionadas
implementam o rol de proteção do direito constitucional à Dignidade da Pessoa
Humana, que baseia o princípio máximo do estado democrático de direito, consoante
art. 1º, III da Constituição Federal de 1988. Tal princípio é a epítome da garantia de
vida digna, conforme Rosa Maria de Andrade Nery: “o princípio da dignidade humana
é o princípio fundamental do direito. É o primeiro. O mais importante. Como não
poderia deixar de ser, é o princípio mais importante do direito privado e é o que rege
todos os outros princípios”(2008, p. 235).
Além de estar respaldado pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o
direito sobre o corpo está também instituído na relação dos Direitos de
Personalidade, que compõem um leque de direitos de proteção da formação e
desenvolvimento do indivíduo. Consoante Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 184),
direitos de personalidade são “a especificação dos [direitos] considerados de maior
relevância”, seja em relação à integridade física, moral ou intelectual.
Segundo Maria Helena Diniz, “Os direitos da personalidade são absolutos,
intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis,
impenhoráveis e inexpropriáveis”(2012, p. 135.), estando neste rol de direitos a
integridade corporal, que se estabelece como o bem estar e a saúde física de um
grupo ou indivíduo, requisito essencial para que esteja salvaguardada a existência em
uma vida digna. Nesse sentido, o controle do corpo é um dos direitos mais básicos
que o ser humano tem na sua busca pela dignidade.
Entende-se, desse modo, que não se tem dignidade no uso forçado do corpo
ou no uso autorizado do corpo por seu titular. A autonomia, aqui tida como insujeição
do indivíduo, respalda a livre disposição do corpo.
292

É nítido que a própria dignidade também respalda a proteção do indivíduo


quando ele mesmo é o violador de sua integridade corporal de maneira permanente e
sem justificativa de saúde, como se pode aduzir da leitura do art. 13 do Código Civil
“Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo,
quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons
costumes”.

3. A POSSIBILIDADE DA ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA NO BRASIL

Esterilização voluntária é um meio contraceptivo adotado por aqueles que


pretendem, de maneira definitiva, não ter filhos. Tal procedimento é realizado
cirurgicamente, a depender do gênero do indivíduo, sendo mais comum a laqueadura
tubária para mulheres e a vasectomia para homens.
No Brasil, a Lei nº 9.236/1996 instituiu, em seu artigo 10, as condições legais
para que uma pessoa possa realizar a esterilização voluntária, como idade,
quantidade de filhos, prazos e riscos à saúde e vida.
A lei inclusive determina quais serão os métodos contraceptivos cirúrgicos
adotados quando da esterilização voluntária: “A esterilização cirúrgica como método
contraceptivo somente será executada através da laqueadura tubária, vasectomia ou
de outro método cientificamente aceito, sendo vedada através da histerectomia e
ooforectomia” (Lei nº 9.263/1996, art. 10, § 4º).
Registre-se que vasectomia trata-se do fechamento dos canais deferentes do
homem, o que impede a chegada dos espermatozóides até as outras glândulas que
produzem o esperma, ao passo em que laqueadura tubária, ou ligadura de trompas,
“é uma cirurgia para a esterilização voluntária definitiva, na qual as trompas da mulher
são amarradas ou cortadas, evitando que o óvulo e os espermatozóides se
encontrem” (RAMOS, 2015).
Da leitura do parágrafo quinto do supramencionado artigo, verifica-se a
imposição de mais uma exigência: a anuência conjugal, in verbis, “§ 5º Na vigência de
sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os
cônjuges”.
Assim, caso o indivíduo opte pela realização da esterilização e esteja em uma
sociedade conjugal, para que alcance o objetivo de dispor de seu próprio corpo,
deverá submeter-se à vênia de outra pessoa: seu cônjuge. Por conseguinte, caso o
consorte discorde do método eleito, ainda que a pessoa cumpra com os requisitos dos
incisos I e II do art. 10, ficará impedida de exercer seu direito.

4. O PARADOXO CONSTITUCIONAL DOS REQUISITOS PARA


ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA

Da análise das exigências legais para a realização da esterilização voluntária,


verifica-se o caráter paradoxal da Lei nº 9.263/1996 quanto aos direitos reprodutivos,
de integridade física, de disposição do corpo e da dignidade humana, previstos na
Constituição Federal.
Tal controvérsia repousa no fato de que, ao impor diversas condições para a
realização dos procedimentos de esterilização voluntária, a norma viola o arbítrio do
indivíduo tanto na esfera social, uma vez que não pode decidir efetivamente sobre seu
planejamento familiar, quanto na esfera pessoal, pois que não pode dispor de seus
direitos reprodutivos.
293

A fim de dirimir a incongruência da lei em estudo, o Partido Socialista Brasileiro


(PSB) ajuizou em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5911) contra as
exigências legais para a esterilização. O partido argumenta que “essas exigências
afrontam direitos fundamentais, contrariam tratados internacionais firmados pelo
Brasil, além de divergir dos principais ordenamentos jurídicos estrangeiros”3.
Na ação, o autor afirma que as imposições são flagrantes violações à princípios
constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a liberdade de escolha, a
autonomia privada, igualdade, liberdade de planejamento familiar e dos direitos
sexuais e reprodutivos4.
Inclusive, segundo estudos realizados pela Pesquisa Nacional de Demografia
e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS), ainda que entre os anos 1980 e 1990 tivesse
havido grande disseminação da realização de laqueadura tubária como método
contraceptivo, a lei do planejamento familiar “gerou empecilhos para a realização
deste procedimento no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)” (CAETANO, André
Junqueira. 2014. p. 310).
A pesquisa revelou que o período entre 1996 e 2006 - momento em que a lei
do planejamento familiar passou a vigorar - foi marcado por um grande decréscimo no
número de mulheres entre 15 e 49 anos que realizaram o procedimento de
esterilização voluntária, passando, neste período, de 40,1% para 29,1%5.
Com efeito, os empecilhos à realização da esterilização voluntária foram
também estudados na pesquisa denominada “Direitos reprodutivos de mulheres e
homens face à nova legislação brasileira sobre esterilização voluntária”, que analisou
o processo pelo qual passam homens e mulheres que buscam a esterilização cirúrgica
junto ao Sistema único de Saúde (SUS) em seis capitais brasileiras - Cuiabá, São
Paulo, Curitiba, Belo Horizonte, Recife e Palmas.
Tal estudo trouxe à tona a realidade de que, após um período por volta de seis
meses, somente 31% dos homens e 25,8% das mulheres que solicitam a intervenção
obtiveram êxito, assim como 8% das mulheres que aguardavam pela realização da
esterilização acabaram por engravidar antes de ter a chance de realizá-la (BERQUÓ
e CAVENAGH, 2006).
Neste diapasão, a Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep),
também ajuizou, no ano de 2014, a ADI 5097, a fim de suspender a eficácia do
parágrafo quinto do artigo 10 da lei de planejamento familiar, que condiciona a
anuência de ambos os cônjuges para a realização de esterilização voluntária.
Na ação, a Anadep argumenta que não obstante a norma tenha objetivado
desestimular a esterilização precoce, “acabou também por desestimular tal prática, o
que vai de encontro ao preceito constitucional (artigo 226, parágrafo 7º, da CF) e aos
tratados internacionais que tratam de direitos humanos”6. A Associação alega ainda
que “Condicionar a realização de cirurgia de esterilização voluntária à anuência de
terceiro constitui ato atentatório à autonomia corporal e ao direito ao planejamento
reprodutivo de forma livre e incondicionada”7.

CONCLUSÃO

O Estado tem o dever de garantir o direito ao planejamento familiar


independente da intervenção de terceiros, da sociedade e do próprio Estado. Com

3
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=375595> Acesso em 16/10/2018.
4
Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=375595> Acesso em 16/10/2018.
5
Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/banco_dados.php> Acesso em 11/10/2018>.
6
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=262712&caixaBusca=N> Acesso em 16/10/2018.
7
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=262712&caixaBusca=N> Acesso em 16/10/2018.
294

efeito, ainda que se considere o princípio da supremacia do interesse público sobre o


privado, verifica-se que o exercício do planejamento familiar, principalmente no que
concerne à autonomia privada de disposição do corpo, dos direitos reprodutivos e da
integridade física de cada indivíduo, é essencialmente de interesse privado.
De fato, tais garantias legais estão respaldadas pela Constituição Federal, uma
vez que encontram-se não só no rol dos direitos de personalidade como também na
esfera do princípio da dignidade da pessoa humana, razão pela qual sua violação
resulta em atentado à autonomia de insujeição do indivíduo e à sua livre disposição
do corpo.
No Brasil, ao regular o art. 226, § 7º da Constituição Federal, a Lei nº
9.263/1996 instituiu requisitos básicos para quem pretende, no âmbito do
planejamento familiar, realizar a esterilização voluntária. Entre outras exigências, a
norma determina que o indivíduo tenha mais de vinte e cinco anos de idade ou dois
filhos vivos, que aguarde o prazo de sessenta dias entre a manifestação de interesse
em realizar o procedimento e a data da cirurgia e que, em se tratando de sociedade
conjugal, ambos os cônjuges apresentem consentimento expresso.
Nesse sentido, percebe-se que, caso uma pessoa eleja a esterilização
voluntária como método contraceptivo e esteja em uma sociedade conjugal, para que
tenha a possibilidade de exercer sua vontade sobre o próprio corpo dependerá da
autorização de terceiro: seu consorte.
Eis de tal imposição surge grande discussão, uma vez que este dispositivo, ao
dispor de diversos requisitos para a execução da esterilização, viola o arbítrio do
indivíduo no âmbito social, dado que este não tem capacidade efetiva de exercer seu
planejamento familiar, e no âmbito pessoal, em virtude da impossibilidade do mesmo
dispor sobre seu próprio corpo.
Assim sendo, considerando-se os direitos fundamentais constitucionais, o
direito de planejamento familiar independente, o direito de reprodutividade, de
disposição do próprio corpo, o direito à integridade física, à dignidade da pessoa
humana; levando em consideração os estudos acerca da realização de esterilização
voluntária; e os reiterados pedidos de declaração de inconstitucionalidade da Lei nº
9.263/1996, no que diz respeito às condições do parágrafo quinto, artigo 10,
corrobora-se a necessidade de reavaliação legislativa da norma em questão, levando
à exclusão do requisito de consentimento de terceiro para o exercício de direitos
fundamentais ou da declaração de sua inconstitucionalidade.

REFERÊNCIAS

BERQUÓ, Elza. CAVENAGHI, Suzana. Direitos reprodutivos de mulheres e


homens face à nova legislação brasileira. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15633-15634-1-PB.pdf>.
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Partido Socialista Brasileiro (PSB). Relator, Ministro Celso de Mello, 08 de março de
2018. Disponível em
<http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5368307>. Acesso em: 18
de outubro 2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de Inconstitucionalidade n. 5097.
Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP). Relator, Ministro Celso de
Mello, 13 de março de 2014. Disponível em
295

<http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4542708>. Acesso em: 18


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mulheres no Brasil. Brasília: Comissão Parlamentar de Inquérito, 1993.
BRASIL. Presidência da República. Lei n. 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Diário
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9263.htm> . Acesso em: 18 de outubro
2018.
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outubro de 1988. Diário Oficial da União, 5 de outubro de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> .
Acesso em: 18 de outubro 2018.
CAETANO, André Junqueira. Esterilização cirúrgica feminina no Brasil, 2000 a
2006. Revista Brasileira de Estudos de População. v. 31, n.2, p. 309-331, jul./dez.
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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro/volume 1: teoria geral do direito
civil. São Paulo: Saraiva, 2012.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de direito administrativo. São Paulo:
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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1 : parte geral / Carlos
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RAMOS, Sérgio dos Passos. Métodos contraceptivos. 2015. Disponível em:
<https://www.gineco.com.br/saude-feminina/metodos-contraceptivos/>. Acesso em:
10 de outubro de 2018.
296

A POSSIBILIDADE DA ALTERAÇÃO DO STATUS JURÍDICO DOS ANIMAIS NÃO


HUMANOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA NAS RELAÇÕES
COM OS HUMANOS
THE POSSIBILITY OF AMENDING THE LEGAL STATUS OF NON-HUMAN
ANIMALS FOR THE CONSTRUCTION OF A NEW PARADIGM IN RELATIONS
WITH HUMANS

Valéria Cristina Ikegami


Marilu Aparecida Dicher Vieira da Cunha Reimão Curraladas

Resumo: Atualmente, no Brasil, o status jurídico dos animais não humanos é de mero
objeto do direito, dentro de uma visão patrimonialista e antropocêntrica do direito
tradicional civilista. Entretanto, depois de largo processo histórico da relação entre
seres humanos e não humanos, denota-se uma alteração paradigmática no
tratamento doutrinário e legal dos animais não humanos sendo que alguns países,
como Àustria, Nova Zelândia, Suíça, Alemanha, França e Portugal, já realizam
alterações em seu status jurídico, em especial, por influência da formação do conceito
de senciência. Neste novo cenário que se descortina, a discussão acerca da
possibilidade no mundo jurídico da mudança do status dos animais não humanos,
elevados a categoria de seres sencientes, revela-se necessária e indispensável para
o estabelecimento de um novo paradigma e, consequentemente, para a formação de
uma nova concepção do tratamento jurídico pátrio a ser aplicado aos animais não
humanos.
Palavras-chave: Animais não humanos; Status jurídico; Senciência.

Abstract: Currently, in Brazil, the legal status of non-human animals is a mere object
of law, within a patrimonialist and anthropocentric view of traditional civil law. However,
after a long historical process of the relationship between humans and non-humans,
there is a paradigmatic change in the doctrinal and legal treatment of non-human
animals. Some countries, such as Austria, New Zealand, Switzerland, Germany,
France and Portugal, already make changes in their legal status, in particular, by
influence of the formation of the concept of sentience. In this new scenario, the
discussion about the possibility in the juridical world of changing the status of
nonhuman animals, elevated to the category of sentient beings, proves to be
necessary and indispensable for the establishment of a new paradigm and,
consequently, for the new conception of the legal treatment of the country to be applied
to non-human animals.
Keywords: Non-human animals; Legal status; Senciência.

INTRODUÇÃO

Partindo da premissa que majoritariamente o nosso ordenamento jurídico se


assenta na filosofia antropocêntrica, a questão de uma possível alteração na natureza
jurídica dos animais não humanos se reveste numa mudança de paradigma na relação
do homem com a natureza como um todo. Recentes alterações na legislação civil em
diversos países do mundo que promoveram a elevação do status jurídico dos animais
não humanos da condição de mero objeto de direito para o de seres sencientes,
afigura-se a construção de um novo paradigma de reconhecimento da dignidade dos
animais não humanos. Neste novo cenário que se descortina, a discussão acerca da
possibilidade no mundo jurídico da mudança do status dos animais não humanos,
297

alçados à categoria de seres sencientes, revela-se necessária e indispensável para o


estabelecimento de um novo paradigma, em especial, para a formação de nova
concepção do tratamento jurídico pátrio a ser aplicado aos animais não humanos.
Diante da importância da análise das implicações jurídicas da questão, para
fins de aprofundamento teórico, serão abordados os autores Lorena Miranda de Sá
Campelo, Lorena Xavier da Costa, César Augusto de Castro Fiuza, Bruno Resende
Azevedo Gontijo, Mateus de Oliveira Fornasier, Ana Lara Tondo, Graciela Froehlich,
Rita Pereira, Adriane Célia de Souza Porto, Amanda Formisano Paccagnella, Thais
Boonen Viotto, Karina Sales Longhini, Neuro José Zambam, Fernanda Andrade, além
de análise de textos legais nacionais e internacionais voltados à proteção dos animais
não humanos.
Nessa linha de pesquisa, o primeiro capítulo apresenta a concepção doutrinária
nacional sobre os animais não humanos e, como objetos de direitos, como se
diferenciam dos sujeitos de direitos. O segundo capítulo trata da tutela jurídica
dispensada aos animais não humanos, fazendo um retrospecto da legislação protetiva
no Brasil. No terceiro capítulo é inserida a condição da senciência que é a capacidade
de animais não humanos sentirem dor e alegria, além de terem um interesse que pode
ser traduzido no interesse de não morrer e de não sentir dor, traçando, também, um
panorama das alterações ocorridas nesse sentido em outros países, tudo com a
finalidade de se questionar e vislumbrar uma possível alteração do status jurídico dos
animais não humanos no direito civilista nacional.

1. O STATUS JURÍDICO DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS NO DIREITO BRASILEIRO

De acordo com o Dicionário Etimológico - Etimologia e Origem das Palavras


(2018), a palavra animal chegou à língua portuguesa através do latim animalis, que
significa “ser vivo” ou “ser que respira”. Por sua vez animalis deriva do termo anima,
que possui o significado de “fôlego vital”, “respiração” ou “sopro de vida”. A seu turno,
para o Dicionário Aurélio (2014) a palavra “animal” significaria o “ser vivo multicelular,
com capacidade de locomoção e de resposta a estímulos, que se nutre de outros
seres vivos. Ser vivo irracional, por oposição ao homem”. Como se nota, esta segunda
definição restringe o termo animal a apenas os animais não humanos, fato que não
existe para a biologia no tocante à classificação dos seres vivos. Para a ciência,
existem cinco reinos que abarcam os seres vivos: Reino Animal, Vegetal, Protista,
Monera e Fungi. Tal classificação existe para diferenciar os seres vivos de acordo com
suas características morfológicas e biológicas. Não existe outro “reino” somente para
os seres humanos que os diferenciem do reino animal, incluindo-se neste reino
milhões de espécies, tão diferentes como um molusco e um canguru (PEREIRA,
2015). Portanto, a ideia de que o homem e animais são duas classes diferentes se
baseia unicamente no antropocentrismo e a tradição antropocêntrica sustenta que os
animais existem apenas para servir aos interesses dos seres da espécie biológica
homo sapiens.
O direito brasileiro tradicionalmente regula a relação entre os seres humanos e
as demais espécies de animais em função da sua utilidade enquanto propriedade,
classificando os animais domésticos ou aqueles inseridos em cadeias de produção
pecuária como bens semoventes e, a seu turno, classifica os animais silvestres como
bem de uso comum do povo, tratados como meros objetos materiais de delito contra
a fauna, considerando a coletividade como sujeito passivo.
Assim, para a teoria civilista tradicional, os animais não humanos são objeto do
direito e, dessa forma, desprovidos de personalidade jurídica, atributo conferido
298

somente a pessoa natural ou jurídica. Porém, há autores que sugerem que não
somente as pessoas sejam sujeitos de direito, uma vez que, ao longo do processo
natural de evolução do Direito, foi concebida a existência de pessoas não humanas,
as chamadas pessoas jurídicas. Nessa linha de pensamento, entendendo que a
personalidade é um atributo jurídico, ou seja, uma ficção jurídica, a “personificação é
uma criação do Direito que responde ao conjunto de fatos e valores advindos da
evolução da sociedade” (FIUZA; GONTIJO, 2014).

2. TUTELA JURÍDICA NACIONAL DISPENSADA AOS ANIMAIS NÃO HUMANOS

O primeiro dispositivo legal que trata da proteção aos direitos dos animais
surgiu em São Paulo, em 1886, o qual determinava uma multa a todo condutor de
carroça ou cocheiro que viesse a maltratar o animal e, pelo Decreto Federal nº 16.590,
de 1924, proibia-se que as casas de diversão públicas maltratassem os animais
(CAMPELO, 2017). A tutela jurídica aos animais não humanos foi incrementada pelo
Decreto nº 24.645, de 1934. Froehlich (2017) relata que “em seu primeiro artigo, o
documento assegura que todos os animais em território nacional são tutelados pelo
Estado, instituindo um modelo de proteção e fiscalização que iria se estender até fins
do século XX”. Esse marco na legislação em defesa dos animais introduziu uma
dimensão ética quanto a seu tratamento, definindo parâmetros que qualificam maus-
tratos a animais e, ainda, conferiu ao Estado a responsabilidade pela guarda, defesa
e proteção dos animais não humanos e deu-lhes representação jurídica através do
Ministério Público e membros de sociedades protetoras de animais (FROELICH,
2017).
O Decreto-lei nº 3.688, de 1941, a chamada Lei das Contravenções Penais,
apresentou a tipificação da conduta da prática de atos cruéis contra animais não
humanos, cominando aos infratores penas de prisão e multa conforme artigo 64 e
seus parágrafos.
Outro marco importante foi o Decreto nº 50.620, de 1961, promulgado pelo
então Presidente Jânio Quadros, que proibia as rinhas de galo e que se tornou
impopular por se tratar de uma atividade muito comum à época.
Em sequência, uma norma pretensamente protetiva foi a Lei nº 5.197, de 1967,
(Lei de Proteção à Fauna) visto que, embora dispusesse em seu artigo 1º que é
proibida a utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha dos animais da fauna
silvestre, em seus artigos seguintes regulam o funcionamento e o exercício da caça
no país.
Somente em 1987, a Lei nº 7.643 veio atender a um clamor social proibindo a
pesca de cetáceos nas águas territoriais brasileiras tornando-se mais um instrumento
de proteção desses animais não humanos com a seguinte redação de seu artigo 1º:
“Fica proibida a pesca, ou qualquer forma de molestamento intencional, de toda
espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras”.
A proteção Constitucional veio a partir de 1988 que, considerando a importância
da fauna para o equilíbrio ambiental e a necessidade de coibir o sofrimento dos
animais não humanos, ampliou a proteção legal a estes conforme disposto no artigo
225, § 1º, incisos I e VII, da Constituição da República Federativa do Brasil.
Um importante marco na proteção dos animais não humanos se deu com o
advento da Lei nº 9.605, de 1998, denominada Lei de Crimes Ambientais, pois
diversas condutas de agressão ao meio ambiente e de crueldade para com os animais
foram tipificadas como crimes sendo a elas cominadas sanções penais e
299

administrativas. Uma novidade foi a responsabilização das pessoas jurídicas que


passaram a responder por práticas lesivas ao meio ambiente.
A Lei nº 10.519, de 2002, que regula a atividade de rodeio, não pode ser
considerada integralmente protetiva visto que a crueldade aos animais não humanos
expostos à prática é inegável, mas, tende a minimizar tais aspectos negativos. Nesse
mesmo sentido, um enorme retrocesso na proteção constitucional aos animais não
humanos foi a aprovação da Emenda Constitucional nº 96/ 2017, de 6 de junho de
2017, que acrescentou o § 7º ao artigo 225 da Constituição, consignando que não se
consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam
manifestações culturais. Esse dispositivo cria uma perspectiva sombria visto que
coloca a pretensa “manifestação cultural” acima dos interesses dos animais não
humanos expostos a essa prática.
No tocante a tratados internacionais, o Brasil é signatário da Declaração
Universal dos Direitos dos Animais, proclamada na sede da UNESCO, na Bélgica, em
1978. Embora se trate de uma carta de princípios sem força legal, esse documento
oficial oferece importante embasamento para estudos e decisões judiciais (PORTO;
PACCAGNELLA, 2018).
A discussão sobre a proteção jurídica dos animais não humanos vem evoluindo
e surgem novos desafios, frutos da realidade concreta de desrespeito ao princípio
básico da dignidade no tratamento dado a eles. Mesmo com a proteção Constitucional
que veda a crueldade ainda se observam práticas cruéis na exploração pecuária,
industrial e nas atividades de diversão dos humanos. A fazer frente a esses novos
desafios, surgem propostas para um novo enquadramento dos animais não humanos
na legislação brasileira, alçando-os a um novo status jurídico. Essa alteração
paradigmática, que já foi levada ao cabo por algumas legislações estrangeiras, toma
por supedâneo a constatação da capacidade de sofrer ou sentir prazer ou felicidade
experimentada em diferentes níveis pelos seres vivos em função de características
morfofisiológicas pertinentes a cada animal não humano, capacidade esta
denominada por senciência.

3. A SENCIÊNCIA E A MUDANÇA DO PARADIGMA NA RELAÇÃO ENTRE OS


ANIMAIS HUMANOS E NÃO HUMANOS

A palavra senciência consta em alguns poucos dicionários como qualidade do


que é senciente. Por sua vez, senciente é um adjetivo que significa “que percebe pelos
sentidos” ou “que recebe impressões”. A etimologia da palavra senciente vem “do
latim sentiens,entis, particípio passado de sentīre que é perceber pelos sentidos,
sentir” (Dicionário Online de Português, 2018).
No dealbar dos estudos de um renomado grupo de neurocientistas, reunidos
com a a finalidade de discutir aspectos biológicos e bioquímicos da consciência,
concluiu-se que os seres humanos não são os únicos a possuir consciência e que
todos os mamíferos, aves, e outros animais não humanos, incluindo os polvos,
possuem consciência. O resultado dessa pesquisa científica foi proclamado
publicamente pela Declaração de Cambridge sobre consciência, realizada em 7 de
julho de 2012 (VIOTTO; LONGHINI, 2015).
Da constatação científica, pode-se dizer, basicamente, que a senciência é a
capacidade de sentir, de ter sensações, como a dor, agonia ou emoções, estando
presente nos animais não humanos assim como nos humanos (VIOTTO; LONGHINI,
2015). A senciência, assim, é entendida como a capacidade de sofrer ou sentir prazer
ou felicidade experimentada em diferentes níveis pelos seres vivos em função de
300

características morfofisiológicas pertinentes a cada animal não humano. A senciência


difere da sensibilidade que é capacidade de perceber sensações físicas; tendência
natural para reagir aos estímulos físicos: sensibilidade à dor. Um ser vivo, como uma
ameba, por exemplo, pode reagir a um meio em desequilíbrio bioquímico sem sentir
dor, sendo que esta reação pode ser devida à sensibilidade e não a senciência. Até o
momento, nem todos os animais não humanos são considerados seres sencientes
por não possuírem sistemas nervosos centralizados, como, por exemplo, bactérias,
arqueobactérias, protistas, fungos, plantas.
No entanto, nosso conhecimento sobre a senciência ainda é limitado diante da
complexidade do estado vital, da sua presença e da sua forma em todos os animais.
Estudos são realizados mundialmente no sentido de embasar cientistas, agentes
políticos e a sociedade em geral a considerar que os animais não humanos
experimentam o sofrimento e a dor tanto quanto experimentam o prazer e a felicidade.
A afirmação científica que sustenta serem alguns animais não humanos
dotados de senciência, impulsionou a corrente que defende a alteração do status
jurídico dos animais não humanos por considerar que eles têm seu valor em si mesmo
e que têm um interesse a ser protegido que é para alguns o direito de não sofrer e
para outros o direito à vida.
Observa-se, no mundo fático, que a tutela do meio ambiente, incluindo a
proteção da fauna, é baseada na proteção do interesse humano de ter um meio
ambiente equilibrado, outra vez dentro de uma visão antropocêntrica. O objetivo desta
proteção, presente na Constituição Federal, seria satisfazer um interesse humano. Em
contraposição a esse entendimento, poder-se-ia defender que a proteção
constitucional se deve ao reconhecimento da condição de ser senciente do animal não
humano ao vedar a crueldade a qualquer animal, buscando proteger a integridade
física do animal, almejando maior proteção aos animais não humanos como seres
sencientes, que possuem direito ao não sofrimento (COSTA, 2013). Com base nesse
último entendimento, os animais devem ser protegidos pelo seu valor intrínseco, ou
seja, a proteção dar-se-ia pelo valor de uma vida que sente dor e experimenta
sensações até então ditas humanas, ou seja, pelo fato de serem sencientes. Nesse
sentido, adotar a senciência como um critério lógico para as mudanças necessárias
no status jurídico dos animais não humanos se reveste de bom senso. Depreende-se
desse entendimento, ainda, que dada a senciência ser uma característica garantidora
de proteção dada a existência de interesses, todo ser vivo senciente deve ser apto a
figurar como sujeito de direito, ou seja, a partir da senciência ocorre a construção do
princípio da “igual consideração de interesses” (SINGER apud ZABAN; ANDRADE,
2016).
A senciência, entendida como a característica dos seres vivos para os quais
importa o lhes aconteça, ou seja, são sensíveis e conscientes desde as alterações no
meio em que vivem até as práticas que lhes são impostas, parece ser o critério mais
adequado para justificar a elevação do status jurídico dos animais não humanos,
assegurando os interesses de um ser na qualidade de sujeitos de direitos, mesmo que
isso não implique em melhores condições de vida dos animais não humanos, mas,
inquestionavelmente, seria importante para que condições ruins pudessem ser
questionadas diante do Judiciário (FORNAZIER; TONDO, 2017). Constata-se que o
critério da “senciência” vem inovando as discussões sobre o status legal dos animais
não humanos e inspirando transformações, e, nesse trilhar, alguns países estão na
vanguarda em relação aos direitos dos animais não humanos no tocante a alteração
do seu status jurídico no sentido de “descoisificá-lo”, incluindo dispositivos que
alteraram a natureza jurídica dos animais não humanos. Os países pioneiros na
301

alteração da natureza jurídica dos animais são a Àustria, Nova Zelândia, Suíça,
Alemanha, França e recentemente Portugal.
Na União Europeia, a Áustria foi um país pioneiro, ao aprovar uma lei federal,
já em 1988, sobre o estatuto jurídico do animal, onde foi reconhecido que os animais
não são coisas embora não expresse a condição de seres sencientes. O Código Civil
da Áustria (ABGB) afasta, no seu art. 285.º- A, a caracterização dos animais como
coisas, determinando a aplicação a estes de legislação especial (PEREIRA, 2015).
Nesse sentido, em 2004, foi aprovada a nova lei de Proteção Animal (Austrian animal
Welfare law) que criar padrões (standardizes) para a proteção animal no país. Ainda
que a questão da senciência não esteja presente nas supracitadas normas, vê-se a
evolução normativa quanto à mudança do status dos animais não humanos.
Em 2015 o governo da Nova Zelândia reconheceu formalmente os animais
como seres "sencientes", alterando a legislação sobre bem-estar animal (Animal
Welfare Act 1999) que já era bastante avançada em termos de proteção animal. A
dessa alteração, agora é necessário "reconhecer os animais como sencientes" e que
os proprietários devem "participar adequadamente do bem-estar desses animais".
Essa norma também altera vários dispositivos da lei de bem-estar animal (Animal
Welfare Act 1999), sendo o mais importante aquele que dispõe sobre o caráter de
animais sencientes. O texto da lei reconhece a senciência e reforça a necessidade do
bem-estar animal. Este avanço confirma a tradição da Nova Zelândia de possuir um
dos quadros legislativos mais abrangentes e progressivos do bem-estar animal no
mundo, e um impacto regulatório significativo no restante do mundo.
Na comunidade internacional destaca-se o pioneirismo suíço na proteção
constitucional aos animais não humanos, quer no seu bem-estar, quer no
reconhecimento de sua dignidade. Por meio de referendo realizado em 1992, a
Constituição suíça elevou a nação ao patamar de primeiro país a expressamente
aludir à “dignidade das criaturas” em sede constitucional. Esta previsão influenciou
decisivamente a legislação civil que, em 2003, modificou seu artigo 641, passando
com isto a determinar que os animais não são coisas, aplicando-lhes tal regime
jurídico apenas na falta de legislação especial. Desta forma contempla-se o
reconhecimento da dignidade dos animais não humanos pela norma maior deste país.
Por sua vez, na Alemanha, desde a década de 1990, o Código Civil Alemão,
em seu artigo 90, inovou ao reconhecer uma nova categoria jurídica dos animais não
humanos, sem definição apenas disposta entre "coisas" e "pessoas”. Isto é
significativamente importante porque mostra o nível de discussão sobre a questão
animal indicando que em alguns países o debate já atingiu um estágio mais avançado,
muito superior ao observado no Brasil. A Alemanha é mais uma nação que, embora
não tenha expressado o termo senciente, avança no sentido de reconhecê-lo, dado o
estágio atual referente às leis protetivas aos animais não humanos.
Recentemente, a França também reconheceu a característica da senciência
como critério para aquisição de direitos aos animais. A partir de 16 de fevereiro de
2015, no artigo 515-14 do Código Civil francês, encontra-se estabelecido que “os
animais são seres vivos dotados de sensibilidade”. O fato de os animais não humanos
não serem mais considerados coisa implica que eles não são mais definidos por um
valor de mercado ou de patrimônio, mas sim pelo seu valor intrínseco como sujeito de
direito.
Por fim, a Lei portuguesa n.º 8/2017, cuja vigência iniciou em 1° de maio de
2017, alterou o Código Civil em vários artigos e, em especial, determinou em seu
artigo 201º -B, que “Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de
proteção jurídica em virtude da sua natureza”. A lei é abrangente e contempla os
302

animais domésticos que usualmente vivem em residências como cães e gatos bem
como aqueles que são utilizados na pecuária. O novo status jurídico dos animais não
humanos os classifica entre uma coisa e um ser humano. Trata-se de um grande
avanço pois a despeito de existirem várias leis protetivas dos animais não humanos,
esta os coloca como seres vivos dotados de sensibilidade reconhecendo a
impossibilidade de serem considerados coisas no mundo atual.

CONCLUSÃO

Considerando que um direito é uma prerrogativa de ter um interesse protegido,


há de se reconhecer que a senciência torna um ser dotado de interesse e, portanto,
merecedor de ter esse interesse protegido. Da atual concepção da senciência, que
traz conscientização de que os animais não humanos sofrem e, por isso, merecem
proteção, observa-se que a determinação legal que insere os animais não humanos
na condição de meros objetos do direito se tornou anacrônica diante dos fatos
científicos e evolução social acerca do tratamento legal a eles dispensado.
O nosso ordenamento jurídico é calcado na corrente filosófica do
antropocentrismo que coloca o ser humano no centro de todo o universo, em um
patamar de superioridade frente a todos os animais, alocando estes no status jurídico
de objeto do direito.
A mudança do status jurídico dos animais não humanos vem sendo discutida e
já ocorreram alterações nas legislações de alguns países, como Àustria, Nova
Zelândia, Suíça, Alemanha, França e Portugal.
Assim, resta-nos abrir frentes de discussão sobre o assunto no Direito
Brasileiro, revelando-se necessária e indispensável tal questionamento para que se
possa vislumbrar o estabelecimento de um novo paradigma e, consequentemente,
para a formação de uma nova concepção do tratamento jurídico pátrio a ser aplicado
aos animais não humanos, operável por uma alteração do status jurídico dos animais
não humanos no direito nacional.

REFERÊNCIAS

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jurídico dos não-homens no direito brasileiro. 2017. Disponível em:
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304

A PRIVACIDADE DO INDIVÍDUO NO ÂMBITO FAMILIAR: UMA ANÁLISE ACERCA


DA POSSIBILIDADE DA INTERFERÊNCIA ESTATAL NA FAMÍLIA.
THE INDIVIDUAL’S PRIVACY IN FAMILY: AN ANALYSIS OF THE POSSIBILITY OF
STATE INTERFERENCE IN FAMILY.

Lara Costa Barroso Andrade de Oliveira


Carolina Silva Porto
Rita de Cássia Barros de Menezes

Resumo: O presente trabalho analisa os direitos da privacidade e da intimidade,


enquanto camadas da personalidade humana, dentro da família, a fim de se verificar
se há possibilidade do Estado de intervir neste núcleo para garantir a dignidade
humana de seus membros em situações de risco. Por meio da revisão bibliográfica de
livros sobre o tema, bem como do exame de legislação pertinente, chegou-se à
conclusão de que a família, por se encontra na camada da vida privada, pode sofrer
interferência do Estado excepcionalmente, apenas para que este garanta a
preservação de bens da vida preponderantes à privacidade, movimento que é
permitido em razão da norma que a institui ser, também, classificada como um
princípio. A Lei Maria da Penha (lei 11.340/06), o Estatuto do Idoso (lei 10.741/03) e o
Estatuto da Criança e do Adolescentes (lei 8.069/90) são leis que apresentam
hipóteses do dever estatal de intervenção no lar.
Palavras-chave: Privacidade. Família. Estado.

Abstract: The present work analyzes the right to privacy and intimacy, while layers of
human personality, inside the family, in order to verify wheter there is a possibility of
State intervening in this nucleos to ensure human dignity to its members in risk
situations. Trough the bibliographical review of books on teh subject, as well as the
examination of relevant legislation, it has been concluded that the family, by being in
the private life layer, can suffer State interference exceptionally, only to ensure the
preservation of life’s goods that are preponderant to privacy, a move that is allowed
because of the rule that institutes the right to privacy is also classified as a principle.
The Maria da Penha’s Law (lei 11.340/06), the Statute of the Elderly (lei 10.741/03)
and the Statute of the Child and Adolescent (lei 8.069/90) are laws that present
hypotheses of state’s duty to intervene in the home.
Keywords: Privacy. Family. State.

1 INTRODUÇÃO

Com o fim do regime militar e a redemocratização do Brasil, houve uma


preocupação especial do legislador constituinte em garantir ao indivíduo os direitos
fundamentais que, durante o período de exceção, foram tão tolhidos pelo Estado.
Desses direitos, pode-se citar o direito à privacidade como um dos mais importantes,
pois permite ao cidadão escolher com quem, o quanto e como quer compartilhar
aspectos particulares da sua vida, sem que o Estado ou terceiros possam ingerir nas
suas decisões.
Nesse sentido, a fim de ampliar a proteção dada a esse direito, a Constituição
Federal em 1988 deu-lhe uma nova configuração, tornando-o gênero de quatro
espécies: o direito à vida privada, à intimidade, à imagem e à honra. Cada um desses
direitos representa uma camada diferente da personalidade, cuja tutela estatal é mais
ou menos rigorosa conforme se aproxima no núcleo intangível do ser humano.
305

Assim, a família, por ser tradicionalmente o local em que o indivíduo forma o


seu caráter e sua personalidade, insere-se nessas camadas e recebe uma proteção
especial da lei e do Estado, sendo defeso a qualquer pessoa, de direito público ou
privado, interferir nas decisões feitas dentro do âmbito familiar, conforme institui o
Código Civil vigente. Contudo, em proveito desse reservado espaço, violações a
dignidade humana ocorrem, provocando a discussão acerca da possibilidade ou não
de o Estado intervir na família.
Destarte, o presente trabalho objetiva, de forma geral, analisar o direito
individual e fundamental à privacidade nas relações familiares, a fim de avaliar se é
possível a interferência estatal nela. De forma específica, pretende estudar as esferas
da personalidade, identificando em qual delas a família se insere; entender a estrutura
normativa do direito à privacidade; e conhecer, se houver algumas das situações nas
quais a lei autoriza a atuação estatal no ambiente familiar. Para tanto, foi realizada
revisão bibliográfica acerca da privacidade e da intimidade, principalmente no que se
refere à constitucionalização desses bens enquanto direitos, bem como foi examinada
a legislação pertinente ao tema.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A teoria das esferas alemã dividiu a personalidade em esferas concêntricas,


compreendendo que existe dentro delas o núcleo intangível e íntimo do ser humano,
impassível de ingerências de terceiros (CAMARGO; WINIKES, 2012, p. 11). No Brasil,
essas camadas estão enumeradas no art. 5º, X, da Constituição Federal de 1988 e se
dividem em vida privada, intimidade, honra e imagem, as quais são espécies do
gênero privacidade (BRASIL, 1988), sendo a intimidade o círculo mais próximo ao
centro, referindo-se as decisões humanas que dizem respeito e afetam somente ao
indivíduo que as tomou (CUNHA JÚNIOR, 2015, p. 573).
José Afonso da Silva, sobre a disposição desses direitos no texto constitucional,
pondera (2013, p. 208):

O dispositivo põe, desde logo, uma questão, a que a intimidade foi


considerada um direito diverso dos direitos à vida privada, à honra e à
imagem das pessoas, quando a doutrina os reputava, com outros,
manifestação daquela. De fato, a terminologia não é precisa. Por isso
preferimos usar a expressão direito à privacidade, num sentido
genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da
esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional
em exame consagrou. (grifo nosso)

Nesse sentido, a vida privada se trata de uma camada intermediária, mais


externa, a qual abarca as decisões individuais inseridas em uma relação interpessoal,
ainda particular, como as que se tem no ambiente de trabalho e da família (MASSON,
2016, p. 218-219). Diferentemente do que ocorre com a intimidade, devido à liberdade
de um trazer consequências aos outros membros do grupo, a doutrina entende ser
possível a interferência de terceiros, até mesmo do Estado, nesses espaços sociais
reclusos, excepcionalmente, para garantir a preservação de outros direitos
fundamentais ligados à dignidade humana.
No que se refere ao núcleo familiar, Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald ensinam (2017, p. 47):

[...] o Direito das Famílias contemporâneo se apresenta como a expressão


mais pura de uma relação jurídica privada, submetida, por conseguinte,
306

ao exercício da autonomia privada dos indivíduos. Nesse quadrante, toda


e qualquer ingerência estatal somente será legitima e justificável
quando tiver como fundamento a proteção dos sujeitos de direito,
notadamente daqueles vulneráveis, como a criança e o adolescente,
bem como a pessoa idosa (a quem se dedica proteção integral).
[...] Em sendo assim, o Estado somente deverá atuar nas relações
privadas para assegurar garantias mínimas, fundamentais ao titular. (grifo
nosso)

Tal entendimento é corroborado pela estrutura normativa do direito à


privacidade, pois este se dispõe no ordenamento jurídico brasileiro tanto como regra,
quanto como princípio (SAMPAIO, 1998, p. 209). Como regra, pode ser aplicado
imediatamente, sem que haja uma deliberação acerca do seu conteúdo antes da
efetivação; como princípio, pode ser confrontado com outros princípios, aplicado a sua
máxima potência, ponderado e até preterido, caso se verifique no sopesamento uma
preponderância entre os outros perante ele (CUNHA JÚNIOR, 2015, p. 132). Assim, o
direito à privacidade, nas suas camadas mais externas, como a vida privada, pode ser
derrotado pela necessidade de se garantir outros direitos, como a integridade física, a
integridade moral e a própria vida.
A família, considerada pela Carta Magna como base da sociedade (BRASIL,
1988), representa desde a Grécia antiga o espaço privado na sociedade. Para os
gregos, tal espaço era distinto e independente da vida pública da polis e guardava em
si o reino da necessidade, cujo líder, chamado de pater reinava tal qual um déspota.
Nas famílias, diferentemente do que ocorria nas relações públicas, o uso da violência
era a forma pré-política, porém cotidiana, de garantir a supremacia do homem no lar
(ARENDT, 2007, p. 35-36).
A visão paternal grega da família foi perpetuada como única hipótese de
formação familiar até meados do século XX, criando uma cultura popular de não
interferência no lar alheio, a qual gera consequências até a atualidade, podendo ser
traduzidas em dizeres populares como “Em briga de marido e mulher não se mete a
colher”. Em decorrência dessa tradição, permitiu-se que situações de violência a
grupos vulneráveis fossem ocultadas do Estado e da lei sob o véu da privacidade,
perenizando violações a dignidade humana dos indivíduos agredidos e a impunidade
dos agressores.
Nesse diapasão, a Lei Maria da Penha, o Estatuto do Idoso e o Estatuto da
Criança e do Adolescente instituem uma proteção especial às mulheres, aos idosos e
aos infantes, estabelecendo como dever da família, da comunidade, da sociedade e
do Estado a guarida e efetivação dos direitos humanos dessas minorias. Destarte,
podem ser citadas, dentre outras, as seguintes hipóteses de ingerência de terceiros
no âmbito familiar: quando existir ação ou omissão, no âmbito familiar ou doméstico,
em razão do gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico,
dano moral ou patrimonial à mulher (BRASIL, 2006); quando houver utilização de
castigos físicos ou tratamento cruel ou degradante aos menores, como forma de
correção, disciplina, educação ou a qualquer outro pretexto pelos familiares e
responsáveis (BRASIL, 1990); quando qualquer direito destinado aos idosos for
violado por falta, omissão ou abuso da família (BRASIL, 2003).

3 CONCLUSÃO

Nesse sentido, conclui-se que, dentre as camadas da personalidade, a vida


privada corresponde àquela na qual as decisões do indivíduo se concretizam numa
relação interpessoal, cuja razão de existir reside, geralmente, em laços de afeto.
307

Assim, diante da possibilidade da liberdade particular de um afetar a vida de outros


membros do grupo, a doutrina compreende ser possível a interferência do Estado e
de particulares na esfera da vida privada excepcionalmente, com o fim único de
garantir proteção a bens da vida prevalecentes à privacidade. Desse modo, o núcleo
familiar, por se incluir nesse conjunto, está sujeito à intervenção estatal em casos
extremos.
Conclui-se, também, que outro fator colaborador desse entendimento reside na
estrutura normativa do direito à privacidade, reconhecendo-a como híbrida, pois tanto
é regra – e tem sua aplicação imediata –, quanto é princípio – e necessita de
ponderação com outros princípios antes de se concretizar. Destarte, ao sopesar a
privacidade com o direito à integridade moral e à integridade física, por exemplo,
observa-se que os dois últimos preponderam sobre o primeiro, sendo, portanto, mais
um motivo permissivo da interferência estatal no âmbito familiar.
Conclui-se, por fim, que a Lei Maria da Penha, o Estatuto do Idoso e o Estatuto
da Criança e do Adolescente são leis que protegem grupos vulneráveis da mulher, do
idoso e dos infantes não só no seu contato com a sociedade, mas também e
principalmente, no seu contato com os outros membros da família. Nessa perspectiva,
apresentam hipóteses nas quais a ingerência do Estado não apenas é uma
possibilidade, mas sim um dever, para certificar a segurança dessas minorias.

4 REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Editora Forense. 10ª ed.,
2007.
BRASIL. Código Civil. Brasília, DF: Senado Federal, 2002.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal, 1988.
BRASIL. Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Senado
Federal, 1990.
BRASIL. Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha. Brasília, DF: Senado Federal, 2006.
BRASIL. Lei 10.741/03 – Estatuto do Idoso. Brasília, DF: Senado Federal, 2003.
CAMARGO, Rodrigo Eduardo; WINIKES, Ralph. A concepção da vida privada e de
intimidade no direito brasileiro. Niterói: XXI Conpedi, 2012, p. 8-29. Disponível em:
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=0da474fc8e382f9c>. Acesso em: 2 de
set. 2017.
CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Ed.
JusPodivm, 9ª ed., 2015.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil –
Famílias. Salvador: JusPodivm. 2017, 9ª ed.
MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. Salvador: JusPodivm. 4ª ed.,
2016.
NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. Salvador: JusPodivm. 11ª
ed., 2016.
SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e à vida privada – uma visão
jurídica da sexualidade, da família, da comunicação e informações pessoais, da vida
e da morte. Belo Horizonte: Del Rey. 1998.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Ed.
Malheiros, 2013.
308

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEUS REFLEXOS NO PODER FAMILIAR: UMA


ANÁLISE DA LEI 13.715 DE 24/09/2018
LA VIOLENCIA DOMÉSTICA Y SUS REFLEXIONES EN EL PODER FAMILIAR: UN
ANÁLISIS DE LA LEY 13.715 DE 24/09/2018

Gabriela de Menezes Santos


Victor Fonseca de Oliveira
Rita de Cássia Barros de Menezes

Resumo: O presente trabalho discute a evolução do pátrio poder até os dias atuais
com a aplicabilidade da Lei 13.715 de 24/09/2018 em relação ao ECA e o Código Civil.
Assim, verificam-se as alterações sofridas pelos institutos legais no que se diz respeito
à destituição do poder familiar nos casos de prática de violência doméstica. Também
busca as transformações do Direito de Família no que tange à evolução do poder
familiar, uma vez que atualmente, deve ser exercido em igualdade por ambos os
genitores, mas prevendo tratamento desigual no caso de prática de violência
doméstica, onde o genitor poderá ser destituído do poder familiar em relação aos filhos
menores. Utiliza-se o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, além
do princípio da igualdade, na proteção da mulher e dos filhos menores, por comporem
o grupo de vulneráveis que integram a família, cabendo ao Estado protegê-los,
resguardando sua integridade.
Palavras-chave: Poder familiar, violência doméstica, famílias.

Resumen: El presente trabajo discute la evolución del patrio poder hasta los días
actuales con la aplicabilidad de la Ley 13.715 de 24/09/2018 en relación al ECA y al
Código Civil. Así, se verifican las alteraciones sufridas por los institutos legales en lo
que se refiere a la destitución del poder familiar en los casos de práctica de violencia
doméstica. Se buscan, también, las transformaciones del Derecho de Familia en lo
que se refiere a la evolución del poder familiar una vez que, actualmente, debe ser
ejercido en igualdad por ambos progenitores, pero previendo tratamiento desigual en
el caso de práctica de violencia doméstica, en que el progenitor podrá ser destituido
del poder familiar en relación a los hijos menores. Se utiliza el principio del mejor
interés del niño y del adolescente, además del principio de igualdad, en la protección
de la mujer y de los hijos menores, por componer el grupo de vulnerables que integran
la familia, correspondiendo al Estado protegerlos, resguardando su integridad.
Palabras-clave: Poder familiar, violencia doméstica, familias.

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca uma retrospectiva histórica do poder familiar, a partir


do “pátrio poder”, que dava ao homem uma suprema autoridade em relação a seus
filhos e sua esposa. Com a Constituição Federal de 1988, através do Princípio da
Igualdade entre homens e mulheres, tal instituto foi substituído pelo poder familiar,
que deve, portanto, ser exercido com igualdade de direitos e deveres pelos pais em
relação aos filhos menores.
Apesar da responsabilidade em relação aos filhos menores dever ser exercida
com igualdade entre os genitores, deve-se observar que tanto a mulher como os filhos
constituem-se em seres vulneráveis dentro do grupo familiar, e, portanto, merecendo
maior atenção do Estado, devendo ser tratados com desigualdade quando o
homem/pai pratica violência doméstica.
309

Portanto, este estudo pretende apresentar uma concepção atual e pertinente


ao Direito de Família, demonstrando que o mesmo deve sempre ser atualizado dentro
do contexto social. Em suma, visa buscar a efetivação, na prática, da proteção da
criança e do adolescente que vivem sob ao poder familiar de seus pais e que em
muitos casos, infelizmente acabam sendo vítimas ou presenciando a violência
doméstica praticada contra sua genitora.
Como metodologia, utilizou-se a técnica bibliográfica documental, analisando a
possibilidade de destituição do poder familiar pela prática de violência doméstica a
partir da Lei 13.715, de 24/09/2018. Para tanto, buscou-se consulta aos sites do
Governo Federal, livros, periódicos e redes eletrônicas, identificando a alteração que
a referida lei trouxe para o direito de Família no que concerne ao poder familiar.

CONTEXTO HISTÓRICO DO PODER FAMILIAR

No que diz respeito ao direito de Família, tendo-se como pilar a evolução da


sociedade, pode-se afirmar que consequentemente esse ramo do direito tem
acompanhado tais mudanças, começando com o seu próprio objeto de estudo: as
famílias, uma vez que estas sofreram transformações significativas, durante o século
XX, por influência das revoluções Francesa e Industrial.
A família era baseada no patriarcalismo, ou seja, a figura paterna era
equiparada a um Deus que chefiava sua casa e tinha como base o princípio da
autoridade e do poder pátrio.
Sendo assim, o pai era o único componente que tinha o poder exclusivo de
controlar e educar seus filhos enquanto que a mãe apenas auxiliava na educação.
Portanto, não havia a participação direta de ambos quanto ao desenvolvimento do
menor, apenas do pai com o auxílio da genitora.
Essa imagem de subordinação e autoridade difere-se dos tempos atuais, onde
tanto o genitor quanto a genitora participam do crescimento da criança, não sendo,
portanto, um dever exclusivo do pai, como em tempos de outrora.
Segundo o jurista Carlos Roberto Gonçalves:

“ O pater exercia a sua autoridade sobre todos os seus descendentes não


emancipados, sobre sua esposa e as mulheres casadas com manus com
os seus descendentes. A família era então simultaneamente, uma unidade
econômica, religiosa, política e jurisdicional” 1.

Por essa razão, o pai tinha o poder de mando e representatividade da sua


família, cabendo às mulheres realizarem os trabalhos domésticos e matriarcais.
A Constituição Federal de 1988 serviu de referência no que se diz respeito ao
poder familiar, uma vez que foi por meio dela que o termo “Pátrio poder” foi alterado
para o conceito de “Poder familiar”, ao qual prevalece desde 1988, sendo ratificado
pelo Código Civil de 2002.
Venosa expôs o seu entendimento em relação à evolução do pátrio poder para
poder familiar:

“De qualquer modo, a noção romana, ainda que mitigada, chega até a
Idade Moderna. O patriarcalismo vem até nós pelo direito português e
encontra exemplos nos senhores de engenho e barões do café, que
deixaram marcas indeléveis em nossa história. Na noção contemporânea,
o conceito transfere-se totalmente para os princípios de mútua

1
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. 15. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
310

compreensão, a proteção dos menores e os deveres inerentes,


irrenunciáveis e inafastáveis da paternidade e maternidade. O pátrio
poder, poder familiar ou pátrio dever, nesse sentido, tem em vista
primordialmente a proteção dos filhos menores. A convivência de todos os
membros do grupo familiar deve ser lastreada não em supremacia, mas
em diálogo, compreensão e entendimento”2.

Segundo Massimo Bianca:

“O poder familiar (potestà genitoria) é a autoridade pessoal e patrimonial


que o ordenamento atribui aos pais sobre os filhos menores no seu
exclusivo interesse. Compreende precisamente os poderes decisórios
funcionalizados aos cuidados e educação do menor e, ainda, os poderes
de representação do filho e de gestão de seus interesses” 3.

Além da alteração de nomenclatura do “pátrio poder” para “ poder familiar” outra


mudança trazida pela Carta Magna foi em relação aos deveres e obrigações dos
genitores que baseado no Princípio da Igualdade permitiu aos mesmos o amparo aos
filhos, bem como a divisão de responsabilidades e direitos entre os genitores.
Voltando-se às mudanças aos quais a sociedade vem percorrendo, e sem
maiores delongas, sabe- se que o direito de família assim como a sociedade vêm
sendo moldados de acordo com a contemporaneidade. Por essa razão, tanto a
Constituição Federal quanto o Código Civil de 2002 se ajustaram com as inovações e
passaram a adotar alguns princípios de extrema relevância que são aplicados nas
relações familiares, a exemplo dos princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da
Afetividade.
Para Paulo Lôbo:

“Com a implosão social e jurídica, da família patriarcal, cujos últimos


estertores se deram antes do advento da Constituição de 1988, não faz
sentido que seja reconstruído o instituto apenas deslocando o poder do
pai (pátrio) para o poder compartilhado dos pais (familiar).4 ”

Assim, a partir da Constituição Federal de 1988, a família passou a ter a


proteção do Estado e, juntamente com o Código Civil, o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) também trata da temática em questão e mudou significativamente
o instituto do poder familiar, tornando- se sinônimo de proteção e não mais de
dominação.
O ECA passou a ser o “guardião” da criança e do adolescente, posto que
demonstra a proteção integral, assim como as responsabilidades executadas pelos
arranjos familiares, no que diz respeito à liberdade, Dignidade da Pessoa Humana
entre outros deveres.
Nos dizeres de Maria Berenice Dias: “O princípio da proteção integral
emprestou nova configuração ao poder familiar, tanto que o inadimplemento dos
deveres a ele inerentes configura infração susceptível à pena de multa (ECA 249) ”.
O dispositivo legal previsto no Estatuto (lei nº 8.069/90) tem como propósito o
dever de proteger as crianças e os adolescentes, bem como as famílias não só as
tradicionais mais também as novas configurações da contemporaneidade, com
prioridade à liberdade, direito à saúde do menor, vida e educação, de modo a oferecer-
lhes pleno desenvolvimento.
2
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.
3
Direito civile: la famiglia- la successioni, p. 237.
4
LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
311

No que tange ao direito material, o Código Civil de 2002 e o ECA convergem


em relação ao desempenho pelo pai e pela mãe, permitindo também o amparo da
autoridade judiciária para buscar solucionar as divergências (LÔBO, 2012).
Sendo assim, depreende-se que não há antítese (cronológica ou de
especialidade) entre os referidos textos legais, visto que o poder familiar é exercido
em condições semelhantes e ainda que o Estatuto tenha o foco voltado para os
deveres dos genitores, o Código Civil o complementa quando restringe o poder
familiar dos filhos enquanto menores de idade.

EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR E SEUS EFEITOS JURÍDICOS

Ao registra-se o filho, um dos efeitos decorrentes do reconhecimento da filiação


é, imediatamente o poder familiar, que surge para os genitores, tendo estes o dever
de cuidar, educar, proteger e entre outros deveres até que o filho atinja a maioridade
civil. Assim, o papel do Estado em relação ao poder familiar é fiscalizar e proteger a
menoridade, para isso, há a necessidade de acompanhamento do desenvolvimento
dos menores, mesmo que de forma indireta, bem como se os pais estão atendendo
ao bem-estar e interesse das crianças.
Com efeito, a jurista Maria Helena Diniz define as características do poder
familiar:

“O poder familiar constitui um múnus público, isto é, uma espécie de


função correspondente a um cargo privado, sendo o poder familiar um
direito-função e um poder-dever,... é irrenunciável, pois os pais não podem
abrir mão dele; é inalienável ou indisponível, no sentido de que não pode
ser transferido pelos pais a outrem, a título gratuito ou oneroso, salvo caso
de delegação do poder familiar, desejadas pelos pais ou responsáveis
para prevenir a ocorrência de situação irregular do menor,... é
imprescritível, já que dele não decaem os genitores pelo simples fato de
deixarem de exercê-lo, sendo que somente poderão perdê-lo nos casos
previstos em lei; é incompatível com a tutela, não podendo nomear tutor a
menor cujo pai ou mãe não foi suspenso ou destituído do poder familiar;
conserva, ainda, a natureza de uma relação de autoridade por haver
vínculo de subordinação entre pais e filhos, pois os genitores têm poder
de mando e a prole o dever de obediência.5”

Ao analisar o artigo 21 da Lei 8.069/90-ECA, pode- se dizer que presente artigo


do Estatuto da Criança e do Adolescente ratifica o pensamento exposto acerca da
titularidade do menor, posto que o dispositivo legal conceitua que:

“O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e


pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a
qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade
judiciária competente para a solução da divergência”.

Assim, entende-se que os pais são responsáveis pela criação dos filhos e essa
responsabilidade é indelegável enquanto estiverem no exercício do poder familiar,
sendo as funções inerentes ao exercício do poder Familiar, descritas no artigo 1.634
do Código civil, ou seja:

5
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de família. 26. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.p. 539.
312

“Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação
conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos
filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral
ou compartilhada nos termos do art. 1.584; III - conceder-lhes ou negar-
lhes consentimento para casarem; IV - conceder-lhes ou negar-lhes
consentimento para viajarem ao exterior; V - conceder-lhes ou negar-lhes
consentimento para mudarem sua residência permanente para outro
Município; VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico,
se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer
o poder familiar; VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16
(dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos
atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VIII - reclamá-
los de quem ilegalmente os detenha; IX - exigir que lhes prestem
obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.”

Verifica-se, contudo, que se tratam de todas as atividades inerentes ao


desenvolvimento sadio e pleno, livre de qualquer risco ou exposição à perigo, que os
genitores devem ter em relação aos filhos, enquanto menores e viverem sob sua
responsabilidade.

DA DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR PELO ABUSO E PRÁTICA DE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA

Independente da configuração familiar que é estabelecida, seja, ela tradicional,


monoparental, ampliada, ou novas configurações familiares contemporâneas, pode
ocorrer que o poder familiar não seja exercido de forma legal, onde muitos menores
são submetidos à situações de risco e exposição a todo tipo de perigo, exploração, e
em muitos casos chegam a presenciar a violência de seus genitores no próprio lar,
que ao invés de ser-lhes sede de abrigo e proteção, tornam-se um lugar de perigo e
terror.
Neste, ínterim, a não proteção aos menores enseja na área cível, a destituição
do poder familiar, uma severa punição que retira a responsabilidade dos pais sob o
menor, e a repassa para o Estado ou para outra família, em casos de adoção, uma
vez que a criança e o adolescente devem ser protegidos por lei, tendo garantida a sua
integridade física e psíquica.
Tendo em vista o poder familiar ser um “múnus público” fiscalizado pelo Estado,
os pais que não o exercerem de modo determinado pelo ECA e pelo Código Civil,
serão afastados do convívio dos filhos, tendo em vista que o artigo 1.638 do Código
Civil previa até 24/09/2018 somente estes casos de perda do poder familiar:

“Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I
- castigar imoderadamente o filho; II - deixar o filho em abandono; III -
praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir,
reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente. V - Entregar
de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção. ”

Devido à importância em se debater veementemente a violência doméstica e


tendo em vista os dados estatísticos alarmantes que demonstram que a mesma vem
aumentando consideravelmente, expondo, não só a mãe, mas também aos filhos que
presenciam cenas de terror dentro de suas casas, a Lei 13.715, de 24/09/2018,
acrescentou às hipóteses já previstas, o Parágrafo único:

“Perderá também por ato judicial o poder familiar aquele que:


I – Praticar contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar:
313

a) Homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida


de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência
doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de
mulher;
b) Estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de
reclusão;

II – Praticar contra filho, filha ou outro descendente:


a) Homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida
de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência
doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de
mulher;
b) Estupro, estupro de vulnerável ou outro crime contra a dignidade
sexual sujeito à pena de reclusão”.

Desta forma, verifica-se que como modo a combater o alto índice de violência
praticada dentro dos lares contra a genitora ou contra o menor, o poder familiar, que
deve ser exercido conjuntamente entre pai e mãe, em comum acordo e igualdade de
deveres e direitos em relação aos filhos menores, pode ser destituído pela prática de
crime que configure violência doméstica, demonstrando um avanço da Lei para
proteger os grupos vulneráveis que compõe as configurações familiares, quais sejam,
os menores e as mulheres.

CONCLUSÃO

Verifica-se que antes da Constituição Federal, o homem exercia com


autoridade exclusiva o poder sobre os filhos, à mulher, sendo considerado o chefe da
casa, responsável pela administração dos bens e da família, o que o colocava em
situação de desigualdade de poder em relação à mulher, que por sua vez era
submissa às suas ordens.
Em atendimento ao Princípio da Igualdade previsto na Constituição Federal, o
Poder Familiar substituiu esta situação, delegando em igual situação de direitos e
deveres o poder e a responsabilidade dos pais em relação aos filhos, como também
entre os Cônjuges no que se refere à administração do lar.
Porém, esta igualdade formal e legal, não garante que na prática, o homem
continue exercendo sua força bruta e aproveitando-se da condição de “ mais forte”
expondo dentro de casa sua mulher e seus filhos á diversas situações de
desigualdade e violência.
Muitas vezes tais atos violentos, embora praticados contra as mães, acabam
sendo presenciados pelos filhos, que com eles residem, causando-lhes traumas
psicológicos irreversíveis.
Diante do exposto, a Lei 13.715, de 24/09/2018, representa um avanço social
significativo, porque embora o poder familiar deva ser exercido em igualdade por
ambos os genitores, não se deve afastar a possibilidade do pai/genitor que venha a
praticar atos que se configurem em violência doméstica ser destituído do exercício do
poder familiar, pois embora tenha iguais direitos e deveres em relação aos filhos
menores, não se pode desprezar sua condição de desigualdade em relação à força e
condição física que tornem a mulher vulnerável em relação á ele, merecendo,
portanto, neste caso, um tratamento diferenciado.
Os filhos menores juntamente com a mulher compõem o grupo de pessoas
vulneráveis que integram a família, daí o dever do Estado em protegê-los e
resguardarem sua integridade, ainda que os atos contra eles praticados ocorram na
privacidade de seus lares, justificando-se plenamente a destituição do poder familiar
314

pelo agente de violência doméstica, ainda que somente contra a genitora da criança
e do adolescente.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Lei Federal n. 8069, de 13 de julho de 1990. ECA _ Estatuto da Criança e


do Adolescente.
CORDEIRO, Marília Nadir de Albuquerque. A evolução do pátrio poder - poder
familiar. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 22 abr. 2016. Disponível em:
<http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.55706&seo=1>. Acesso em: 09
out. 2018.
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Filhos da reprodução assistida. Disponível em:
<http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/209.pdf>. Acesso em: 07 out.2018.
SANTOS, Bruno Aleson Bezerra. A irrevogabilidade da adoção à luz do
ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em:
<https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/24243/1/MONOGRAFIA%20-
%20PDF%20CD%20ok.pdf>. Acesso em: 16.out.2018.
VENOSA, Sílvio de Sávio. Direito Civil: Direito de família. 5. ed. São Paulo: Atlas,
2005.
315

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMO LOCATÁRIA


GENERAL GOVERNMENT AS A TENANT

Thiago Jota

Resumo: Este trabalho foi desenvolvido para introduzir nos regimes jurídicos
aplicados na relação contratual em que o particular contrata a locação de seu imóvel
para a Administração pública. Buscou-se a abordagem dos elementos da
disponibilização do bem da Administração para contratação pelo particular, para que
contrastasse à situação em que o bem do particular é contratado em locação para a
Administração Pública. O estudo se voltou a interpretação das cláusulas oriundas da
lei do inquilinato com menção as circunstâncias de aplicação das cláusulas
exorbitantes, próprias do regime jurídico público cuja análise das características
essenciais que envolvem a Administração Pública que ainda na posição de locatária
numa eficácia horizontal não se despe de sua natureza constitucional a qual lhe
confere o interesse público social como guia de seu interesse. Atribui-se ao particular
a árdua tarefa de buscar o equilíbrio na relação contratual cujo cenário jurídico lidará
com a sobreposição do interesse social.
Palavras-chave: Administração Pública; Preceitos de Interesse Social; Regime
jurídico Privado.

Summary: This dissertation was developed to introduce about the contractual


relationship the right legal system which shall be applied in the relation between private
landlord and the general government, which will feature as the tenant. The elements
approach sought the availability upon the general government property to contract with
the private, by then contrasting with the situation in that the private landlord rent to the
General Government. The assessment search to apply the right interpretation for the
law tenant clauses, contrasting with some circumstances which allow the exorbitant
clauses it come from the public system which yours assessment will enable emphasize
the constitutional elements that turn this peculiar relationship into horizontal validity,
even before the general government as the part in the contract. For the private landlord
was allocated the arduous work to search for the right balance inside the relationship
in which the core legal background ought handle over some social privileges.
Key words: General Government; Precepts of Social Concern; Private Legal System.

1. INTRODUÇÃO

Assim como no âmbito particular, a administração pública também avença


convenções bilaterais, como contratos. Apesar de se submeter à espécie locação a
exegese da Lei 8.245/91, há peculiaridades que envolvem essa relação,
precipuamente ao fato de que uma das partes contratantes é a Administração Pública,
assim como pelo fato de que os princípios que regem a Administração Pública
conflitam, por vezes, com os princípios norteadores da relação privada.
O desafio na relação do particular com a Administração Pública se dá
inicialmente no caráter interpretativo, visto que em uma relação privada a
interpretação de princípios e legislação se aplicam na estrutura de eficácia horizontal,
conquanto naquela envolvendo a administração pública, verticaliza-se tal eficácia,
auferindo a relevância no trabalho em buscar o exato equilíbrio entre a vigência do
regime de Direito Privado com observância dos aspectos de interesse Social
intrínsecos no Regime de Direito Público.
316

2. APLICAÇÃO JURÍDICA AOS CONTRATOS REALIZADOS PELA


ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Extrai-se do artigo 2º da Lei de Licitação a previsão para a Administração


Pública contratar com o particular, de forma que guardando os casos em suas
respectivas peculiaridades, pode haver a criação da relação de contratação, como
uma locação, devido ao estudo in casu, haja vista por vezes constituir o imóvel de
certo particular localização melhor, ou condições de estrutura mais adequada a que
certo serviço de interesse público ou atendimento a sociedade se faça eficaz.
Portanto, à luz do artigo 55, inciso XII da Lei de Licitação, entende-se de que a
Administração Pública pode participar em uma relação com o particular como parte
submissa ao regime da lei de locação, sem a imposição de toda a pujança de seu
regime jurídico administrativo verticalizado.

Art. 2o As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações,


concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando
contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de
licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e
qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e
particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de
vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a
denominação utilizada.
Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam:
II - a legislação aplicável à execução do contrato e especialmente aos
casos omissos;1

Assim, haverá situações em que a Administração preverá a execução do


contrato na submissão ao regime privado, o que trará a discussão na justa medida em
que, ainda que submetida ao regime privado, será tratada em eficácia igualitária com
o particular, ou ainda que no regime da execução legislativa privada, fará valer o
império de suas prerrogativas administrativas.
A Ilustre doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro2, entende que ainda que
sujeitada as regras de direito privado, a Administração não se despe de certos
privilégios e sempre se submete a determinadas restrições, na medida necessária
para adequar ao meio utilizado ao fim publico a cuja consecução se vincula por lei.
Sendo assim, ainda que se submetesse ao regime jurídico contratual privado a
Administração Pública persiste vinculada ao princípio da indisponibilidade do interesse
da coletividade, de forma que mesmo diante das disposições contratuais com menção
à execução da legislação especial ao caso, como de locação, subsistirá o caráter
imponente do regime público, de forma que referidas convenções ajustadas entre
partes deverá guardar a razoabilidade e moderação a fim de assegurar o Poder-dever
do Estado no plano contratual. Ou seja, na prática a Administração não se debruça
integralmente sobre os preceitos contratuais dispostos no plano do regime privado,
que se extrai do entendimento da própria essência da Administração Pública, ser a
sua finalidade constitucional e a sua atividade fim indisponível, de forma que em sendo

1
BRASIL. Lei n.º 8.666, de 16 de julho de 1997. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas
para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8666cons.htm. Acesso em: 18/10/2018.
2
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo.12ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2000, Pg. 64.
317

passível de infração tal preceito de interesse público na eventual contratação, deve a


Administração não se valer de eventual avença negocial.
A essência que se depreende é de que na contratação da Administração no
regime privado, observarão as prerrogativas especiais do artigo 58, incisos I – V da
Lei de Licitações, cuja inserção no contrato deverá ser de tal medida que não
inviabilize o interesse do particular na respectiva contratação, como que não deixe de
trazer os impasses da indicação de tais preceitos diante da atividade fim social
existente no interesse público ao buscar o particular para a avença contratual.

Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta
Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de:
I - modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de
interesse público, respeitados os direitos do contratado;
II - rescindi-los, unilateralmente, nos casos especificados no inciso I do art.
79 desta Lei;
III - fiscalizar-lhes a execução;
IV - aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste;
V - nos casos de serviços essenciais, ocupar provisoriamente bens
móveis, imóveis, pessoal e serviços vinculados ao objeto do contrato, na
hipótese da necessidade de acautelar apuração administrativa de faltas
contratuais pelo contratado, bem como na hipótese de rescisão do
contrato administrativo3.

3. REGIME JURÍDICO EM QUE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FIGURA COMO


LOCATÁRIA

Para o atendimento de sua finalidade constitucional em alcançar necessidades


sociais, a Administração, por vezes, não possui imóveis tantos quantos bastem a esse
fim, de forma que busca no particular essa viabilidade para atender certos segmentos
de interesse público.
Entretanto, o particular, não raramente, receia essa contratação temendo o
exato cumprimento do contrato, haja vista, por vezes e sobretudo, os entes municipais
estarem endividados e fatidicamente podem se voltar ao descumprimento da avença
firmada.
Diante de tais circunstância tem-se por certo que em prosseguindo o particular
com a contratação, terá inicialmente um regime jurídico privado, precipuamente pelo
fato de que a princípio o interesse público não é imediato, subsistindo, contudo, a
aplicação da norma prevista no artigo 55 da Lei 8666/93, cuja peculiaridade se aplica
nas disposições clausulares.
Contudo, presente o fim público na avença com o particular, haverá a
Administração Pública de resguardar as prerrogativas elementares e norteadoras que
primam a relação do direito administrativo como fim ao interesse social, haja vista que
deve sempre se pautar o princípio da indisponibilidade a que os entes se sujeitam
categoricamente na exegese da Lei 8.666/93.
A rigor deve sempre se buscar um equilíbrio entre a normativa da Lei 8.245/91,
mas não se afastando das peculiaridades a que a natureza da Administração exalta,
de forma que torne atraente a contratação pelas partes, pois não raro a licitação se
faz dispensável pela mingua diversidade de imóveis que possam atender ao interesse
do Poder Público, o que nos termos do inciso X do artigo 24 da Lei de Licitações se

3
BRASIL. Lei n.º 8.666, de 16 de julho de 1997. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas
para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8666cons.htm. Acesso em: 18/10/2018.
318

autoriza a contratação de locação sobre tais circunstâncias impares na observância


do procedimento do artigo 26, incisos II e III de mesmo diploma legislativo.

Art. 24. É dispensável a licitação:


X - para a compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das
finalidades precípuas da administração, cujas necessidades de instalação
e localização condicionem a sua escolha, desde que o preço seja
compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia 4.

Todavia, do que se depreende do artigo 53 caput da Lei 8.245/91 as repartições


públicas, dotadas das características contidas no referido dispositivo contarão tão-
somente com as prerrogativas oriundas da legislação civil, beneficiando-se,
primariamente da eficácia de decisão judicial à luz do artigo 63, §3º da Lei do
inquilinato.

Art. 53 - Nas locações de imóveis utilizados por hospitais, unidades


sanitárias oficiais, asilos, estabelecimentos de saúde e de ensino
autorizados e fiscalizados pelo Poder Público, bem como por entidades
religiosas devidamente registradas, o contrato somente poderá ser
rescindido
I - nas hipóteses do art. 9º;
II - se o proprietário, promissário comprador ou promissário cessionário,
em caráter irrevogável e imitido na posse, com título registrado, que haja
quitado o preço da promessa ou que, não o tendo feito, seja autorizado
pelo proprietário, pedir o imóvel para demolição, edificação, licenciada ou
reforma que venha a resultar em aumento mínimo de cinquenta por cento
da área útil.
Art. 63. Julgada procedente a ação de despejo, o juiz determinará a
expedição de mandado de despejo, que conterá o prazo de 30 (trinta) dias
para a desocupação voluntária, ressalvado o disposto nos parágrafos
seguintes
§ 3º Tratando-se de hospitais, repartições públicas, unidades sanitárias
oficiais, asilos, estabelecimentos de saúde e de ensino autorizados e
fiscalizados pelo Poder Público, bem como por entidades religiosas
devidamente registradas, e o despejo for decretado com fundamento no
inciso IV do art. 9º ou no inciso II do art. 53, o prazo será de um ano, exceto
no caso em que entre a citação e a sentença de primeira instância houver
decorrido mais de um ano, hipótese em que o prazo será de seis meses5.

Por este ângulo de análise, o regime jurídico privado prevalecerá diante das
características previstas expressamente no diploma legislativo do inquilinato, haja
vista que a finalidade intentada pela Administração Pública nestas situações previstas
possui regulamentação própria quanto à execução do contrato, bem como do eventual
acatamento de ordem mandamental emanada de decisão Judicial, o que nesse plano
específico, refuta-se da relação contratual todo o império do regime jurídico público.
Ao celebrar com o particular é certo que no que se relaciona aos interesses
econômicos do contrato não se exige o rigor e cautela oriunda do regime de direito
público, mas uma pacífica sujeição ao preceito normativo da lei do inquilinato, o que
diferentemente se observará ao se concernir ao objeto das disposições clausulares
que visem o uso do bem ou a utilidade do serviço final a que suposta avença locatícia

4
BRASIL. Lei n.º 8.666, de 16 de julho de 1997. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas
para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8666cons.htm. Acesso em: 18/10/2018
5
BRASIL. Lei n.º 8.245/91, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre a locação dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas
pertinentes. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8245.htm. Acesso em: 18/10/2018
319

se volte, pois tais avenças estarão intimamente ligadas ao interesse público e como
tal, deverão ter resguardados os interesses atinentes ao regime administrativo.
Certamente que ainda que sujeito em parte ao regime jurídico de direito público
deve a Administração observar as regras de cumprimento do contrato, pois uma vez
inadimplido os termos negocias, haverá a sanção do despejo entre outras eficácias
que decorrem da lei do inquilinato, ainda que guardados os benefícios a cada ente
administrativo, pois o império normativo a que a Administração se fundamenta não
constitui autorização ilimitada para executar o contrato à sua conveniência, do
contrário, são preceitos de elevada estima e imprescindível guarida, mas que como
parte no contrato se faz sujeita as mesmas obrigações e sanções enquanto locatária
(art. 23 da Lei 8.245/91), havendo sobre si, tão-somente e em casos expressos do
Diploma Legislativo locatício, o uso e gozo de benefícios que abrandem a eficácia da
decisão mandamental em virtude do caráter social a que a função dessa estirpe de
contrato se reveste.
Ao particular é dada a árdua tarefa de avaliar as cláusulas que regerão essa
relação contratual com a Administração Pública, haja vista no plano se atentar para
não haver o conflito de eventuais restrições contratuais sobre princípios
indispensáveis ao Poder Público.

Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta
Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de:
§ 1o As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos
administrativos não poderão ser alteradas sem prévia concordância do
contratado6.

4. DAS CLAUSULAS CONTRATUAIS DE NATUREZA PRIVADA APLICADAS NO


CONTRATO COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ENQUANTO LOCATÁRIA

Partindo da análise da estrutura contratual, vislumbra-se que a formação


clausular da negociação entre o particular e Administração Pública, a rigor, seguirá
em obediência primária à lei do inquilinato.
Assim sendo os elementos de formação do contrato de locação seguirá a regra
da legislação do regime de direito privado, com partes, preço, prazo entre outros que
na sua essência constituem os pressupostos de existência, validade e eficácia do
pacto locatício, apenas cuidando de certos detalhes que na estrutura geral do regime
de direito público deve se guiar.
Portanto, a exegese do regime de direito público da Lei 8.666/93,
precipuamente no que se depreende dos artigos 55, 58 a 61, elenca-se as cláusulas
necessárias que devem estar presentes na relação contratual que envolva como um
das partes instrumentárias a Administração Pública.
Assim compreende-se que certas exigências devem ser sensivelmente
tratadas a fim de refutar eventual vício à negociação que se busca entabular com o
Poder Público.
Frisem-se como de importância acentuada as cláusulas de duração do
contrato, cuja observação deve ser guiada sempre diante da necessidade do interesse
público, o que coaduna a necessidade de que o prazo seja determinado, vedando-se,
inclusive cláusula que não delimite o lapso temporal da contratação a guisa da

6
BRASIL. Lei n.º 8.666, de 16 de julho de 1997. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas
para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8666cons.htm. Acesso em: 18/10/2018
320

aplicação do regime jurídico de direito público geral para a execução do contrato (§3º
do artigo 57 da Lei 8.666/93).
Ressalvam-se sobre as demais cláusulas ordinárias da estrutura locatícia
como: cláusula de garantia, de preço, da forma de pagamento, que observarão a
limitação conforme aquela aplicada pela sujeição ao regime da lei do inquilinato,
inferindo em eficácia horizontal sobre os figurantes da relação contratual.
Ainda haveria de se analisar eventuais cláusulas exorbitantes, sendo aquelas
que revelam todo o império presente na relação que envolve o regime jurídico de
direito público.
Entretanto, considerando que na relação contratual cuja figura da
Administração Pública se dá como locatária, referidas cláusulas exorbitantes seriam
passíveis de aplicação em casos extraordinários ou diante de situações que se
caracterizassem por casos fortuitos ou força maior. Situação contratual diversa se
verifica quando da participação da Administração Pública no campo de Locadora ou
de Contratante de serviços ou produtos (art. 23 a art. 26 da Lei 8.266/93), cuja
presença de respectivas cláusulas seriam elementos intrínsecos na estrutura de
formação e execução do contexto contratual.
Imprescindível que a interpretação contratual de relação na qual a
Administração Pública se dá como locatária e, portanto, se despe num primeiro
momento de toda a pujança característica dos preceitos que meandram o regime
jurídico de direito público, será guiada pela normativa de direito privado, regendo as
condições e elementos essenciais aplicáveis a essa classe contratual.
Impera-se que mesmo diante da análise inicial de regência do direito privado,
referida relação conta com a participação de locatário especial, cujas qualidades e
prerrogativas decorrem da lei e portanto, no plano da eficácia do princípio da
legalidade deve o particular observar para que os preceitos de interesse da
coletividade não sejam sufocados, pois diante de circunstância como tal, o caráter
constitucional a que a finalidade da Administração Pública serve se sobreporá ao
interesse privado, tornando em tais momento um sinalagma desequilibrado.

5. CONCLUSÃO

O particular certamente enfrentará dificuldade contratual estrutural ao ingressar


em uma relação jurídica que tenha a Administração Pública figurando como locatária.
De certa feita referida tarefa árdua se dá ao fato de que o Poder Público goza de
preceitos de cunho social, mesmo diante de um contexto contratual arraigado
profundamente de fonte privada.
O exercício de seus preceitos torna a lembrar que a Administração Pública se
sujeita ao regime privatístico, mas não renuncia e, nem poderia, ao caráter de
interesse público que delimita a sua atividade eminentemente constitucional.
Diante do caráter de interesse público que se tem a especialidade dispensada
ao contrato de locação com a Administração no polo locatário. Por este caráter se
vislumbra a possibilidade de interpretações analógicas sobre execuções de ordem de
desocupação do imóvel, sobre caracterização de atividade de certas repartições
públicas a fim de que a função social manifestamente dotada do teor de regime jurídico
público atue sobre a eficácia de cláusula contratual avençada no plano locatício, a
redução de eventual impacto sobre serviço ou atendimento à coletividade.
Em suma, caberá ao particular avaliar as condições e circunstâncias
contratuais que envolverão a relação com referido locatário especial, de forma que a
presença da Administração Pública, ainda que não se posicionando no mesmo plano
321

de igualdade com o particular, que a supremacia de seus preceitos não resulte


eventual desequilíbrio ou interfira através de imposição de prerrogativas das quais
goze, execução do contrato dispare ao que se espera de uma relação contratual
regida pela lei do inquilinato.

6. REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,


DF: 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso
em 18/10/2018.
BRASIL. Lei n.º 8.666, de 16 de julho de 1997. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da
Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração
Pública e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8666cons.htm. Acesso em: 18/10/2018.
BRASIL. Decreto-lei n.º 9.760, de 5 de setembro de 1946. Dispõe sobre os bens
imóveis da União e da outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del9760.htm. Acesso em:
18/10/2018.
BRASIL. Lei n.º 8.245/91, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre a locação dos
imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8245.htm. Acesso em: 18/10/2018.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo.12ª edição. São Paulo: Editora
Atlas, 2000.
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contratos Administrativos. 4ª edição atualizada.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1979.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15ª edição. São
Paulo: Malheiros Editores, 1993.
322

O RECONHECIMENTO DA PLURIPARENTALIDADE A LUZ DA


CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA
THE RECOGNITION OF PLURIPARENTALIDADE THE LIGHT OF
CONSTITUTIONALISATION OF THE FAMILY LAW

Vladimir Gonçalves de Carvalho


Mariana Mendonça Lisboa Carvalho
Rita de Cássia Barros Menezes

Resumo: O presente trabalho tem por finalidade discutir o reconhecimento da


pluriparentalidade como um reflexo da constitucionalização do Direito de Família. Para
tanto, necessário se faz abordar acerca dos avanços ocasionados pela promulgação
da Carta Magna vigente. Também cabe refletir sobre os princípios constitucionais que
legitimam o referido núcleo familiar. Por fim, analisam-se os efeitos derivados da
pluriparentalidade
Palavras-chave: Reconhecimento da Pluriparentalidade; Constitucionalização do
Direito de Família

Resumen: El presente trabajo pretende discutir el reconocimiento de


pluriparentalidade como un reflejo de la constitucionalización del derecho de familia.
Para ello, es necesario if dirección acerca de los avances provocados por la
promulgación de la Constitución vigente. También cabe reflexiona sobre principios
constitucionales para hacer la mencionada familia nuclear. Por último, analiza los
efectos derivados de la pluriparentalidade
Palabras clave: Reconocimiento de Pluriparentalidade; Constitucionalización del
derecho de família.

INTRODUÇÃO

O Direito de Família, face às profundas mudanças ocorridas na sociedade


brasileira, não se manteve inerte. Longe disso, já que se trata da esfera forense em
que as oscilações preponderam-se de modo mais evidente. O ápice, por conseguinte,
desta nova perspectiva sócio-jurídica se deu com a promulgação da Constituição
Federal em 1988.
A Carta Magna de 1988, no que lhe concerne, adquire relevância, a priori, pois
estabeleceu como vetor precípuo do ordenamento jurídico o respeito ao princípio da
dignidade da pessoa humana. Desse modo, aliado ao fato de a Constituição Federal
encontrar-se no topo do ordenamento jurídico, tornou-se vital a observância deste
cânone em toda e qualquer norma do ordenamento, bem como em jurisprudências.
Sob esse ângulo, o Direito Civil, e consequentemente, o Direito de Família,
foram pertinentemente modificados a partir da Consitucionalização do Direito Civil.
Isto é, houve a enumeração de princípios e demais diretrizes das referidas áreas no
próprio texto constitucional. Devendo aquelas, por sua vez, não apenas respeitar a
composição constitucional, mas também reproduzir em suas codificações os valores
emanados pela Carta.
No que se atine ao Direito de Família, o principal avanço proporcionado pela
Lei Maior refere-se à não taxatividade do núcleo familiar. Sendo assim, possibilitou-se
o reconhecimento de famílias que, até então, eram invisíveis aos olhos do Estado,
apesar de enraizadas, historicamente, no tecido social. Dentre elas, a família
multiparental, objeto da presente pesquisa.
323

Este trabalho pretende apresentar contribuições para o Direito de Família e


para o Direito Constitucional. Ademais, permite-se, a partir de sua análise, a
efetivação de princípios constitucionais atinentes aos núcleos familiares
contemporâneos. Utilizou-se como metodologia a técnica bibliográfico-documental,
analisando a constitucionalização do Direito de Família no ordenamento jurídico
pátrio. Para isso buscou-se consulta aos sites do Governo Federal, livros, periódicos
e redes eletrônicas, identificando os princípios do Direito de Família presentes na
Constituição Federal.

1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DAS FAMÍLIAS

A promulgação da Constituição Federal representou um importante avanço,


segundo uma perspectiva inclusiva, a partir da composição do afeto como elemento
identificador das entidades familiares,que passou a servir de parâmetro para a
definição dos vínculos parentais.
Valéria Silva Galdino e Letícia Carla Baptista (2014, p.4) ao discorrerem acerca
do tema afirmam:

Nesse sentido, a constitucionalização do direito de família intensificou os


laços de afeto, viu a família como o lugar em que as pessoas podem se
refugiar do mundo moderno e das suas consequências, tornando-se esta
uma irmandade onde os seus membros buscam a afetividade, o apoio, a
ajuda e o suporte emocional uns dos outros.

Referente a essa vicissitude, houve o sobrepujamento da família dita como


tradicional. De tal modo, este núcleo alicerçado no casamento e tendo o homem como
chefe de família não mais correspondia à realidade da sociedade, uma vez que
consistia num modelo desigual, privilegiando uns membros em detrimento de outros.
Soma-se a isso o fato de a característica principal da família encontrar-se,
outrora, baseada no contexto matrimonial. Sendo assim, somente possuía validade e
estava, por consequência,amparado sobre a lei, o núcleo familiar cujos progenitores
estivessem, necessariamente, unidos pelo laço matrimonial.
Ademais, a primazia deste conceito baseava-se em adicional elemento, a
consanguinidade. De modo que, privilegiava-se uma entidade puramente biológica em
detrimento de uma concepção sentimental. Pautava-se, portanto, numa acepção
essencialmente rígida e restritiva, com o intuito de impedir o reconhecimento de outras
realidades familiares.
Ultrapassada essaconcepção, proporcionou-se a efetivação da família
eudemonista, cujo elemento formador baseava-se não apenas no afeto, mas também,
no companheirismo, na solidariedade e na ajuda mútua, buscando-se assim a
realização de cada um dos membros familiares.
Nas palavras de Marlene Pelegrina:

A família contemporânea transcende a instituição tradicional, concede ao


integrante um caráter personalíssimo, permite laços de afeto e de amor,
recebendo da Constituição pilares da repersonalização familiar,
norteadores do Direito de Família brasileiro. A partir da provocação
Constitucional, surgiram muitas outras entidades familiares que
receberam a mesma guarida da Carta Magna, estudadas pelos
doutrinadores e apreciadas pelos tribunais. (PELEGRINA, 2014, p.11)
324

O referido conceito encontra-se firmado nas garantias constitucionais


referentes à temática. Isto posto, a atual Constituição Federal ampliou o conceito de
família ao reconhecer outros arranjos familiares, como a união estável, a família
monoparental, além da oriunda do matrimônio. Possibilitou-se a inclusão de
considerável parcela da sociedade brasileira, a partir do recognição de que não
apenas um modelo único deveria ser apontado como detentor da genuinidade familiar.
Sob essa perspectiva, Cristiano Chaves de Farias, Felipe Netto e Nelson
Rosenvald (2016, p.108) dissertam:

Não mais a família. Mas as famílias. Não mais aquela família patriarcal,
formada exclusivamente pelo casamento. Mas sim a existência de núcleos
familiares distintos e plurais, preferencialmente permeados pelo poderoso
elemento afetivo. Talvez o direito de família tenha sido – a escolha é difícil,
tantas são as mudanças – a parte do direito civil que mais de modificou
nas últimas décadas. Pouco ou nada, hoje, é como era há algumas
décadas. Lembramos que quando o Código Civil de 1916 foi editado – e
isso durou muitas décadas, no século passado – a mulher casada era
incluída no rol dos relativamente incapazes.

Visto isso, impede-se que haja, em respeito ao Princípio da liberdade de


constituir uma comunhão de vida familiar, qualquer imposição ou restrição de pessoa
jurídica de direito público ou privado. Os indivíduos encontram-se, portanto, livres
para arbitrarem a respeito do núcleo familiar que melhor se adéqua as suas
necessidades, desfrutando para tanto, de abono legal.
Distinto elemento a ser ressaltado refere-se à perda do caráter meramente
patrimonial, a que se inseria em um ambiente altamente hierarquizado. Possuindo
protagonismo, por sua vez, o homem que além de caracterizar o responsável legal
pela instituição familiar, consiste no provedor econômico.
Assim aborda Rita de Cássia Menezes:

Assim pode-se dizer que a mudança da família como entidade econômica


e reprodutiva para uma entidade personificada, caracterizada pelo afeto e
pela valorização do ser humano, promoveu um desenvolvimento da
personalidade de seus membros, que passaram a se completar e a
prestarem assistência entre si. (MENEZES, 2017, p.62)

Vislumbra-se, nesse sentido, a introdução do vínculo parental afetivo, isto é,


formado, puramente, pelo elemento sentimental entre os seres, independente de
qualquer ligação biológica. A partir de então, surge para o Estado o dever não apenas
de garantir o reconhecimento de tal elemento, mas também, o de equipará-lo ao
vínculo parental biológico, visto que não há outra forma de preservar os direitos
fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo no que diz com o respeito à dignidade
e à afetividade.
No entendimento de Flávio Tartuce:

Em suma, juridicamente, todos os filhos são iguais perante a lei, havidos


ou não durante o casamento. Essa igualdade abrange também os filhos
adotivos havidos por inseminação artificial heteróloga (com material
genético de terceiro). Diante disso, não se pode utilizar as odiosas
expressões filho adulterino ou filho incestuosos que são discrimantórias.
Igualmente, não podem ser utilizadas, em hipótese alguma, as expressões
filho espúrio ou filho bastardo, comuns em passado não tão remoto.
(TARTUCE, 2014, p.15)
325

Em suma, a evolução histórico-social do respectivo conceito familiaraliadasaos


avanços alcançados com a promulgação da Constituição Federal possibilitou a
efetivação da dignidade da pessoa humana, à medida que as restrições, que até então
vigiam, foram dissipadas. Culminando, portanto, numa nova perspectiva, cujo principal
beneficiado é o próprio indivíduo, que passou a ter seus sentimentos e valores
preponderados.
Propiciou-se, diante de um contexto mais igualitário e plural, a legitimação da
pluriparentalidade, que consiste no reconhecimento jurídico de mais de um pai ou
mais de uma mãe: um biológico e outro afetivo.

2 CONCEITUAÇÃO DE PLURIPARENTALIDADE

Famílias pluriparentais conhecidas, também como mosaicos familiares,


referem-se aos vínculos familiares surgidos a partir da reconstituição de vínculos pré-
existentes. Formam-se, portanto, a partir dos laços de afeto criados entre indivíduos
e os filhos de seus conjugues de relações matrimoniais pretéritas. Sendo a afetividade
responsável por esta união.
Nas palavras de Rita de Cássia Menezes (PAG. 85):

São na grande maioria entidades familiares formadas por pessoas


divorciadas ou que já constituíram outras famílias anteriormente e que ao
formar novos arranjos familiares, vivem juntos, felizes, respeitando-se uns
os outros, formando um novo e grande grupo familiar, pautado no afeto.
(MENEZES, 2017, p.85)

Destaca-se que, diferentemente da adoção, não há a perda do vínculo familiar


anterior, existindo dois vínculos complementares. Sendo estes manifestados na figura
dos pais biológicos e dos pais afetivos, atinentes àmadrasta e ao padrasto.
Valéria Cardin e Letícia Cara (2014, p.13) afirmam:

Portanto, ao se falar em pluriparentalidade ou multiparentalidade


relaciona-se a possibilidade de constar no registro dessa criança, uma
dupla maternidade ou paternidade, gerando-se a partir desse momento
todos os efeitos decorrentes do exercício do estado de filiação, ou seja, o
poder familiar, a guarda, o direito de visitação, o dever de assistência, o
direito sucessório, dentre outros.

Trata-se, por sua vez, de uma relação de parentesco civil, na espécie atinente
à socioafetividade. Sendo este manifestado, preponderantemente, a partir da
convivência entre os indivíduos que, apesar da ausência de reconhecimento científico,
procedem segundo uma concepção familiar.
Há, nesse sentido, a existência da posse de estado do filho. Sendo esta, no
posicionamento de Maria Sanches e Silvia Arantes (2014, p.87) baseada na
convivência familiar, instituindo pela paternidade exercida pelo genitor, que em sua
guarda, se dedica ao desenvolvimento do indivíduo, independente de fator biológico
ou presunção de paternidade.
Ademais, o reconhecimento da pluriparentalidade encontra-se, de modo claro
e evidente, embasado no texto Constitucional. Primeiramente, conforme já
mencionado, pela não taxatividade dos núcleos familiares. Sendo assim, mesmo
inexistindo qualquer menção a ela seja na Constituição Federal seja nas codificações
específicas, é imperativo ao Estado, enquanto jurisdição, aboná-la.
326

Acrescenta-se a isso a impossibilidade de haver diferenciações em detrimento


dos filhos oriundos de uma relação familiar pluriparental. Caso contrário, atentar-se-á
contra o princípio da igualdade, no que concerne aos filhos, e consequentemente,
contra própria Constituição Federal. Desse modo, é imprescindível que os direitos
concedidos às famílias, que estão expressamente mencionadas nas legislações,
sejam os mesmos concedidos ás famílias pluriparentais.
Consequentemente ao abono de tal vínculo familiar, é de relevo destacar o
advento de obrigações e deveres jurídicos que se impõem. Desse modo, surgirá para
os indivíduos e seus parentes em linha reta, a necessidade de obrigação de alimentos,
bem como o estabelecimento de direitos sucessórios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O novo papel exercido pela Constituição Federal no que se refere ao Direito de


Família possibilitou a introdução de inéditos elementos para a classificação de família.
Desse modo, supera-se um conceito meramente consanguíneo e sacramental e
engloba um entendimento pautado no afeto e acima de tudo na liberdade e igualdade
dos indivíduos.
Surgem, sob essa perspectiva, novos modelos familiares, que apesar de
estarem presentes, do ponto de vista fático, somente, doravante, passaram a ter os
mecanismos legais para postular reconhecimento jurídico. Nesse sentido, o Estado,
enquanto jurisdição, adquire um papel vital na defesa do Estado Democrático de
Direito. Haja vista este possuir como cânone norteador o princípio da dignidade da
pessoa humana.
Dentre os núcleos familiares que se encontram, hodiernamente, hábeis a ser
legitimados, sobressai a pluriparentalidade, objeto precípuo do presente de trabalho.
Esta, no que lhe concerne, refere-se aos vínculos formados pela convivência entre
indivíduos que apresentam laços familiares. Sendo que este se mantém, constituindo
como singularidade o acrescentamento de um novo vínculo, o afetivo.
Enfim, negar o reconhecimento à família multiparental e impedir a garantia de
direitos a este grupo consiste em uma pertinente violação não apenas aos ditames do
novo ordenamento jurídico, mas também aos pilares da Constituição vigente. Cabe
ao Estado – em especial, o Poder Judiciário- acompanhar as evolução e adaptações
do mundo contemporâneo, à medida que, somente deste modo, poderá de fato,
corresponder aos anseios da sociedade.

REFERÊNCIAS:

CARDIN, Valéria Silva Galdino; ROSA, Letícia Carla Baptista. Do reconhecimento


jurídico da pluriparentalidade como conseqüência do afeto. In: Iara Rodrigues de
Toledo; Daiane Cristina da Silva Mendes; Sarah Caroline de Deus Fereira. (Org).
Estudos Acerca do Princípio da Afetividade no Direito das Famílias: Construção
do Saber Jurídico & Crítica aos Fundamentos da Dogmática Jurídica. 1ª ed. São
Paulo-SP: Letras Jurídicas, 2014, v.1, p.193-212
FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felpe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manuel
de Direito Civil. 3ª ed. Salvador: JusPodivim, 2018
PELEGRINA, Marlene Elizabeth Rossi. A família da atualidade. Revista Científica
Virtual da Escola Superior de Advocacia da OAB, São Paulo (SP), n 18, p.8-31, jun-
set, 2014.
327

MENEZES, Rita de Cássia Barros de. Pluriparentalidade: Uma visão


contemporânea do Direito de Família. 1ª Ed. João Pessoa: Sal da Terra, 2017.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil 5. Direito de Família. 9ª ed. São Paulo: Método, 2014.
SANCHES, Maria Isabel Duarte de Souza Sanches; ARRANTES, Sílvia Gelli Arantes.
Reconhecimento da Paternidade Socioafetiva e a impossibilidade de
desconstituição posterior. Revistas Linhas Jurídicas (UNIFEV), Votuporanga, n 8,
p. 77 - 99, jun. 2014.
328

Grupo de trabalho:

DIREITO CONSTITUCIONAL,
DEMOCRACIA E
CIBERDEMOCRACIA I
Trabalhos publicados:

A APARENTE CONTRADIÇÃO ENTRE O FENÔMENO DA POLÍTICA DA


PÓSVERDADE (“FAKE NEWS”) E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

ADPF 153 (LEI DE ANISTIA): UMA LEITURA SOBRE O USO DOS PRECEDENTES
ESTRANGEIROS PELO TRIBUNAL SUPERIOR FEDERAL

CANDIDATURAS-FANTASMA DE MULHERES: UMA ANÁLISE DA INEFICÁCIA DO


SISTEMA DE COTAS ELEITORAIS

CIBERDEMOCRACIA: REDES SOCIAIS COMO FORMA DE INTERAÇÃO


HORIZONTAL

FEDERALISMO E O PACTO FEDERATIVO BRASILEIRO

NEGLIGÊNCIA DO ESTADO NA EFETIVAÇÃO DE MEDIDAS PREVENTIVAS


DESTINADAS Á VIOLÊNCIA DE GÊNERO
329

A APARENTE CONTRADIÇÃO ENTRE O FENÔMENO DA POLÍTICA DA


PÓSVERDADE (“FAKE NEWS”) E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO.
LA APARENTE CONTRADICIÓN ENTRE EL FENÓMENO DE LA POLÍTICA DE LA
POST-VERDAD ("FAKE NEWS") Y LA LIBERTAD DE EXPRESIÓN.

Vinícius da Costa Gomes

Resumo: As expressões política da pós-verdade e fake news suscitam relevantes


discussões, já que privilegiam um discurso falso e com apelos à emoção e à crença
pessoal em detrimento de fatos objetivos devidamente comprovados. Sendo assim,
debate-se a aparente contradição entre estes fenômenos e à liberdade de expressão.
A pesquisa concluiu que a pós-verdade e o fake news estão protegidos pela liberdade
de expressão. Contudo, infere-se que os limites constitucionais à liberdade de
expressão impedem o discurso sem identificação e/ou que veicule uma mensagem de
ódio, mas não poderão unicamente impedir a fala sob a perspectiva de eventuais
consequências sociais danosas.
Palavras-chave: Pós-verdade; Fake news; Liberdade de expressão; Discurso do
ódio; vedação do anonimato.

Resumen: Las expresiones políticas de la post-verdad y fake news suscitan


relevantes discusiones, ya que privilegian un discurso falso y con llamamientos a la
emoción ya la creencia personal en detrimento de hechos objetivos debidamente
comprobados. Así, se discute la aparente contradicción entre ellas y la libertad de
expresión. La investigación concluyó que esos fenómenos están protegidos por la
libertad de expresión. Sin embargo, se desprende que los límites constitucionales a la
libertad de expresión impiden el discurso sin identificación y/o que transmite un
mensaje de odio, pero no podrán impedir el habla desde la perspectiva de eventuales
consecuencias sociales perjudiciales.
Palabras clave: Post-verdad; Fake news; La libertad de expresión; discurso del odio;
sellado del anonimato.

1 INTRODUÇÃO

As eleições presidencias norte-americanas de 2016 e o referendo do Brexit 1


sobre a permanência ou não da Grã-Bretanha na União Européia possuem um
aspecto em comum: a expressão “política da pós-verdade”. O termo é um adjetivo que
significa aquilo que se relaciona a algo ou denota circunstâncias em que fatos
objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à
emoção e à crença pessoal2.
A repercussão desta expressão se deu exatamente porque foi possível verificar
a grande repercussão de notícias falsas que influenciaram (e influenciam) diretamente
nos resultados destes pleitos especialmente nos meios digitais. A revista britânica The
Economist, por exemplo, no artigo “Política pós-verdade: Arte das Mentiras” cita como
exemplo desse fenômeno a informação comprovadamente falsa de que a campanha
do Brexit “custava 350 milhões de libras por semana aos cofres públicos” e que o
dinheiro - após a eventual saída do bloco - seria destinado ao serviço público de
saúde. A revista afirma ainda que o presidente dos EUA Donald Trump é o “expoente
1
Palavra-valise originada na língua inglesa resultante da junção das palavras Britain (Grã-Bretanha) e exit (saída). Acessado em
16/04/18 no site:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Sa%C3%ADda_do_Reino_Unido_da_Uni%C3%A3o_Europeia#cite_note-1>
2
Acessado em 06/04/18 no site: <https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016>
330

máximo da política pós-verdade”, já que ele foi beneficiado por diversos exemplos
desse fenômeno durante as eleições. O artigo jornalístico cita como exemplo as
afirmações de Donald Trump (ao replicar histórias não comprovadas publicadas por
tabloides americanos) de que o certificado de nascimento de Barack Obama seria
falso, de que o ex-presidente seria o fundador do Estado Islâmico (IS – Islamic State),
de que os Clintons teriam matado seus pais e de que o pai de seu rival republicano
Ted Cruz teria estado com Lee Harvey Oswald antes do assassinato de John
Kennedy3.
O fenômeno contemporâneo da pós-verdade está ainda diretamente ligado ao
“fake news” (notícias falsas). O historiador Robert Darnton, professor emérito da
Universidade Harvard, em entrevista a Folha de São Paulo conta que as notícias
falsas são relatadas pelo menos desde a Idade Antiga, do século VI. O autor explica
que Procópio, um historiador bizantino, ficou famoso por escrever a história do império
de Justiniano, mas, ele também escreveu um texto secreto, chamado “Anekdota”, e
ali ele espalhou um “fake news”, arruinando completamente a reputação do imperador
e de outros. O autor afirma que tal fato é bem similar ao que aconteceu na campanha
eleitoral americana4. A repercussão das notícias falsas é tão elevada que
recentemente o vice-presidente de notícias da rede social Faacebook, Alex Hardiman,
informou que a empresa iria alterar o seu algoritmo com o objetivo de minimizar a
profusão de notícias falsas e sensacionalistas na rede5. A explicação foi uma resposta
às diversas críticas à atuação crucial da rede social na divulgação das fake news que
influenciaram diretamente as eleições americanas. Posteriormente, o prório CEO da
empresa, Mark Zuckerberg, estabeleceu como meta para 2018 o combate ao discurso
do ódio e o uso indevido do Facebook6. Ele, inclusive, foi chamado a depor no
Congresso Americano sobre questões relacionadas a utilização de dados que
influenciaram nas eleições presidenciais e no Brexit7. Sendo assim, durante o
desenvolvimento da pesquisa, será feita uma conceituação do fenômeno da pós-
verdade para, posteriormente, compará-lo aos limites constitucionais da liberdade de
expressão.

2 POLÍTICA DA PÓS-VERDADE E FAKE NEWS (NOTÍCIAS FALSAS)

Anualmente a Oxford Dictionares da Universidade Oxford/Inglaterra elege a


palavra do ano. A ideia da eleição é indicar no ano seguinte àquele termo que
representa um fato de grande importância no ano anterior. No ano de 2017 a
Universidade escolheu como a principal palavra de 2016 o termo pós-verdade (post-
truth)8. Pós-verdade é um adjetivo definido como: “relacionado a ou denotando
circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião
pública do que apelos à emoção e à crença pessoal”. A Universidade passou então a
explicar a sua escolha. Inicialmente informou que o termo existe desde a década
passada, mas, que a sua utilização teve um aumento significativo em virtude do
referendo da União Européia no Reino Unido e nas eleições presidenciais americanas.

3
Acessado em 16/04/18 no site: < https://www.economist.com/news/leaders/21706525-politicians-have-always-lied-does-it-
matter-if-they-leave-truth-behind-entirely-art >
4
Acessado em 16/04/18 no site: < http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859726-noticias-falsas-existem-desde-o-
seculo-6-afirma-historiador-robert-darnton.shtml>
5
Acesado em 16/04/18 no site: < https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/facebook-reforca-luta-contra-o-fake-news-e-
diz-que-mudanca-no-algoritmo-e-so-o-comeco.ghtml >
6
Acesado em 16/04/18 no site: < https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/meta-para-2018-e-combater-discurso-de-
odio-e-uso-indevido-do-facebook-diz-zuckerberg.ghtml >
7
Acesado em 16/04/18 no site: <https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/zuckerberg-ceo-do-facebook-testemunha-
diante-do-congresso-dos-eua-pela-1-vez.ghtml>.
8
Acessado em 06/04/18 no site: <https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016>
331

Segundo a Oxford Dictionares o termo deixou de ser periférico e passou a se tornar


tema principal, tanto que foi utilizado nas principais publicações sem necessidade de
esclarecimentos e definições9. A Oxford Dictionares explica que o prefixo “pós” não
se refere apenas ao tempo seguinte a uma situação ou evento, mas quer significar
àquele momento em que o conceito específico se tornou irrelevante ou deixou de ser
importante. Sendo assim, a pós-verdade seria aquele momento em que a verdade
deixa de ser importante, ou seja, opta-se pela não aceitação dos fatos objetivos em
detrimento de um apelo a emoção ou a crença pessoal. Uma frase da jornalista
Soledad Gallego-Díaz do jornal EL PAÍS no artigo intitulado “A era da política pós-
verdadeira” define bem o que seria a política da pós-verdade. Ela afirma que “uma
coisa é exagerar e ocultar, outra é mentir descarada e continuadamente sobre os
fatos”. Conclui-se que a política da pós-verdade é o fenômeno no qual nos debates
políticos os participantes optam por um discurso emotivo ou relativo a crenças
pessoais em detrimento de fatos objetivos comprováveis ou já comprovados. É neste
momento que o conceito de pós-verdade se alia a ideia das notícias falsas (fake
news).
Inicialmente, cabe ressaltar que teoricamente os termos pós-verdade e fake
news não são coincidentes. Isto porque a pós-verdade se refere a uma tomada de
decisão da opinião pública em aceitar crenças e apelos emocionais em detrimento de
fatos objetivos. Ou seja, na política da pós-verdade há uma escolha em aceitar no
debate argumentos irracionais. Já o fake news se refere a um discurso sabidamente
inverídico que é repassado a fim de desinformar o ouvinte. Neste sentido é possível
concluir que apesar dos conceitos não serem coincidentes, há um “ciclo vicioso” entre
eles. Por meio do fenômeno da pós-verdade está-se diante de um público que opta
por aceitar um discurso por sua carga emotiva ou pela aceitação de uma crença, ou
seja, os ouvintes não se importam se os fatos são objetivos ou não. Diante dessa
situação há a ampliação de um espaço para proliferação dos fake news, já que os
ouvintes não se importam se o discurso é verdadeiro ou não. O debate fica ainda mais
intenso se considerado os avanços tecnológicos como um espaço que favorece a
disseminação dessas notícias falsas, assim, há uma certa dificuldade de reparação
das consequências do discuso falso.
No âmbito do debate político eleitoral há diversos fatores a se discutir como,
por exemplo: potencialização da polarização, favorecimento ao discurso do ódio e
(im)possibilidade de responsabilização dos falantes. No trabalho em lide, optou-se por
verificar se esses fenômenos no âmbito das ferramentas tecnológicas disponíveis
(redes sociais como Facebook e Twiter ou instrumentos de comunicação como o
Whatsapp) estão protegidos ou não pelo direito fundamental a liberdade de expressão
e manifestação do pensamento.

3 LIBERDADE DE EXPRESSÃO (MANIFESTAÇÃO)

A liberdade é um atributo intríseco ao próprio ser humano, ou seja, não existe


ser humano que não àquele que é livre. Sócrates, por exemplo, afirma que a liberdade
se relaciona a uma ideia de autodomínio. Ele afirma que o autodomínio significa
justamente o domínio da racionalidade sobre a sua própria animalidade, ou seja,
tornar a alma senhora do corpo e dos instintos ligados ao corpo. Assim, para o autor,
o verdadeiro homem livre é aquele que sabe dominar os seus instintos, já o escravo
é àquele que não sabendo dominar seus instintos torna-se vítima deles (REALE, 1990,
p. 91). Já a liberdade de expressão é um direito fundamental (artigo 5º, IV da CR/1988)
9
Acessado em 06/04/18 no site: <https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016>
332

derivado do princípio fundamental da liberdade. Bernardo Gonçalves Fernandes


afirma que toda mensagem passível de comunicação é protegida por este direito
fundamental. O autor explica que independente se a a opinião, convicção, comentário,
avaliação ou julgamento é relevante ou não ao interesse público (FERNANDES, 2017,
p. 426).
Ronald Dworkin traz em sua obra duas justificativas para a liberdade de
expressão: a instrumental e a constitutiva. Na primeira ele afirma que a liberdade de
expressão “não é importante porque as pessoas têm o direito moral intrínseco de dizer
o que bem entenderem, mas porque a permissão de que elas o digam produzirá
efeitos benéficos para o conjunto da sociedade” (DWORKIN, p.318 e 319). O autor
explica que com a liberdade de expressão a discussão política fica livre e desimpedida
possibilitando aos indivíduos descobrir a verdade e a falsidade na política e,
consequentemente, optam por ações públicas com maiores benefícios sociais em
longo prazo. Ronald Dworkin conclui com uma citação de James Madison que diz que
a liberdade de expressão ajuda a proteger o poder do autogoverno do povo. Ele
explica que um dos objetivos deste aspecto é garantir que a democracia funcione bem,
que as pessoas tenham informações para votar, para se proteger de usurpadores
tirânicos e para evitar a corrupção e a incompetência (DWORKIN, p. 319). Sobre a
justificação constitutiva Ronald Dworkin diz que “o Estado deve tratar todos como
adultos, como agentes morais responsáveis, sendo este um traço essencial ou
constitutivo de uma sociedade política justa” (DWORKIN, p. 319). Ele anuncia que
esta justificação deve ser analisada sob duas dimensões: uma da responsabilidade
pela convicção própria de cada indivíduo e uma pela responsabilidade de convicção
coletiva. Na responsabilidade própria cada cidadão como pessoa moralmente
responsável que o é deve fazer questão de tomar sua própria decisão sobre o que é
bom ou mal, verdadeiro ou falso na vida política. Trata-se de uma ofensa do Estado
negar o direito das pessoas de escutar opiniões perigosas ou desagradáveis, logo, a
dignidade individual só é devidamente garantida quando ninguém (Estado ou
particular) impede um indivíduo de ouvir uma opinião por medo de que ele não possa
ouvi-la ou pondera-la. Sobre a responsabilidade coletiva Ronald Dworkin declara que
se trata de um aspecto mais ativo, já que não permitir que um sujeito se expresse
livremente, sob a alegação de que suas convicções lhe desqualificam, ofende o
respeito para com as outras pessoas, afinal, (pois) a verdade deve ser conhecida por
todos. Os cidadãos têm o direito de participar da política e também de contribuir para
a formação dela, negar a sua fala é impossibilitar que eles colaborem com a vontade
coletiva. O autor ressalta que estas duas dimensões não se excluem, mas na verdade
se complementam, e, diz ainda, que nenhum destes pontos de vista permite um
caráter absoluto da liberdade de expressão (DWORKIN, p.319 e 320). Posteriormente
Ronald Dworkin cita Isaiah Berlin para afirmar que a liberdade possui um conceito
negativo e outro positivo. No sentido negativo a liberdade de expressão traz um dever
para que o Estado e os particulares não impeçam que uma pessoa faça aquilo que
ela deseja fazer. Já no sentido positivo obriga-se o Estado a atuar para garantir que
todos os cidadãos possam participar das decisões políticas e controlá-las. Ele conclui
que o cidadão deve se governar, mas que cada um é senhor soberano igualmente ao
outro (DWORKIN, p. 345).
Conclui-se que a liberdade de expressão visa a uma proteção do discurso em
si, independente de sua valoração para a opinião pública. Contudo, é necessário
observar que nenhum direito fundamental é absoluto, logo, a liberdade de expressão
também possui limites. Bernardo Gonçalves Fernandes afirma que a corrente
brasileira majoritária de cunho axiológico afirma que a liberdade de manifestação é
333

limitada por outros direitos e garantias fundamentais (FERNANDES, 2017, p. 427).


Assim, é possível notar algumas limitações a manifestação no próprio texto
constitucional como a vedação ao anonimato, traz o direito de resposta e a
possibilidade de indenização por danos morais e materiais (art. 5º, IV e V). A doutrina
majoritária afirma ainda que a liberdade de expressão não ampara o chamado
discurso do ódio. Bernardo Gonçalves Fernandes afirma que fundamentada na
dignidade da pessoa humana e no princípio da igualdade há uma proibição do
discurso do ódio. O autor explica que esse discurso consiste na manifestação de
ideias que incitem a discriminação racial, social ou religiosa a determinados grupos
(FERNANDES, 2017, p. p. 437). Samantha Ribeiro Meyer-Pflug explica que o discurso
do ódio pode causar o efeito inibidor ou silenciador. Este efeito ocorre quando o
discurso do ódio impede que os grupos atingidos pela manifestação deixem de ter
plena participação em diversas atividades sociais em virtude da desqualificação
sofrida (MEYER-PFLUG, 2009, p. 97-98).

4 CONCLUSÃO

Após conceituar as expressões pós-verdade e fake news e de efetuar uma


breve explanação dos limites constitucionais à liberdade de expressão é possível
responder a hipótse que guia o presente trabalho: estes fenômenos estão protegidos
ou não pela liberdade de expressão?
Inicialmente cabe observar que a liberdade instrumental se coaduna
exatamente com a discussão sobre a política da pós-verdade e aos fake news. Afinal,
se a liberdade instrumental visa possibilitar uma discussão política livre e desimpedida
com a finalidade de possibilitar aos indivíduos descobrir a verdade ou a falsidade da
manifestação, conclui-se que a priori não é possível impedir o discurso. Se a pós-
verdade se liga a idéia de uma escolha dos ouvintes em aceitar um discurso fundado
em crenças e emoções (mesmo que contrário a fatos objetivos) garante-se a liberdade
instrumental. Ou seja, garantiria-se a liberdade de fala justamente para possibilitar a
avaliação do ouvinte. Sobre o fake news tem-se inicialmente a mesma premissa, qual
seja: assegura-se o discurso desimpedido e incumbe-se ao ouvinte efetuar a
avaliação da fala. Assim mesmo que o fake news dispõnha sobre manifestações
sabidamente falsas, opta-se por garantir o debate e possibilitar ao falante a avaliação
do mesmo. Sobre a constitutiva há necessidade de analisar as duas dimensões: a da
responsabilidade pela convicção própria de cada indivíduo e a da responsabilidade de
convicção coletiva. Considerando que o cidadão é pessoa moralmente responsável
cabe a ele tomar sua própria decisão sobre o que é bom ou mal, verdadeiro ou falso.
Neste sentido, o Estado não pode impedir o fake news mesmo que ele se trate de
uma opinião perigosa ou desagradável. Afinal, a dignidade individual só é
devidamente garantida quando ninguém (Estado ou particular) impede um indivíduo
de ouvir uma opinião por medo de que ele não possa ouvi-la ou pondera-la. O
fenômeno da política da pós-verdade em si é uma consequência da conviccção
própria, já que é o indivíduo quem julga o discurso. No aspecto coletivo mantém-se a
idéia de permitir o fake news, já que cabe aos cidadãos ouvirem e escolherem
livremente para assim colaborar com a vontade coletiva. Sobre a política da pós-
verdade há a mesma conclusão, ela em si é exatamente essa colaboração dos
indivíduos a vontade coletiva, apesar de uma evidente participação ruim.
Num segundo momento, cabe então analisar as limitações constitucionais a
liberdade. A primeira limitação é a da vedação do anonimato. Neste item, há uma
restrição ao fake news, já que o disurso, verdadeiro ou falso, só será protegido se
334

manifestado com identificação do autor. Aqui cabe ressaltar que a CR/88 vedou o
anonimato para possibilitar eventual responsabilização do falante, ou seja, o indivíduo
se manifesta livremente, mas responde por sua fala. Conclui-se que o discurso deve
ser necessariamente proferido com identificação, logo, pode o Estado e o particular
impedir o fake news anônimo. Sobre a pós-verdade em si a influência da vedação do
anonimato é que o ouvinte tem direito a saber quem proferiu o discurso para
possibilitar a responsabilização de quem o externou. O direito de resposta e a
possibilidade de indenização são limitações derivadas da vedação do anonimato, uma
vez que só é possível falar nelas se houver possibilidade de identificação do falante.
A limitação do discurso do ódio também limita a pós-verdade e o fake news. Neste
sendito, se o discurso consiste na manifestação de ideias que incitem a discriminação
racial, social ou religiosa a determinados grupos há possibilidade de
responsabilização do falante e/ou da entidade que veiculou a mensagem. Nota-se que
a pós-verdade diz respeito ao julgamento dos ouvintes sobre as mensagens, mas
neste caso não se protege a mensagem de ódio, assim, impedir esse discurso impede
necessariamente a avaliação irracional.
Conclui-se que os limites constitucionais à liberdade de manifestação
(expressão) podem impedir o discurso sem identificação e/ou que veicule uma
mensagem de ódio, mas não poderá unicamente impedir a fala sob a perspectiva de
eventuais consequências sociais danosas.

5 REFERÊNCIAS

DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-


americana. Trad. Marcelo Brandão Cipolla; revisão técnica Alberto Alonso Muñoz. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves Fernandes. Curso de Direito Constitucional. 4ª
Ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2012.
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
PEREIRA, Rodolfo Viana. Ensaio sobre o Ódio e a Intolerância na Propaganda
Eleitoral. In: NORONHA, João Otávio de e KIM, Richard Pae (Orgs.). Sistema Político
e Direito Eleitoral Brasileiros: estudos em homenagem ao Ministro Dias Toffoli. São
Paulo: Atlas, 2016. p.673-694
REALE, Giovanni. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. São paulo:
PAULUS, 1990.
335

ADPF 153 (LEI DE ANISTIA): UMA LEITURA SOBRE O USO DOS PRECEDENTES
ESTRANGEIROS PELO TRIBUNAL SUPERIOR FEDERAL
ADPF 153 (AMNESTY LAW): THE ANALYSIS ON THE USE OF FOREIGN
PRECEDENTS BY THE FEDERAL SUPERIOR COURT.

Samira Rodrigues Pereira Alves


Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci

Resumo: Este artigo visa refletir sobre o uso do direito internacional e direito
estrangeiro pelos juízes do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153). Para identificar a forma como
o Direito Estrangeiro e Internacional auxiliaram na fundamentação das teses,
analisaram-se os votos a partir de três quesitos: Anterioridade, Imprescritibilidade e
Legitimidade da Lei. No método, realizou-se uma análise documental de tratados
internacionais de direitos humanos e jurisprudência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, além de consultas a legislação brasileira e estrangeira, e revisão
bibliográfica de obras essenciais sobre o tema.
Palavras-chave: anistia, precedentes estrangeiros, direito internacional, direito
estrangeiro, direitos fundamentais, direitos humanos

Abstract: This article aims to reflect on the use of international law and foreign law by
the judges of the Federal Supreme Court, in the judgment of the ADPF 153. In order
to identify the way in which Foreign and International Law assist in the foundation of
the theses, the votes were analyzed from three points: Previousness,
Imprescritibilidade and Legitimacy of the Law. In the method, a documentary analysis
of international human rights treaties and jurisprudence of the Inter-American Court of
Human Rights, in addition to consulting brazilian and foreign legislation, and
bibliographical review of essential works on the subject.
Keywords: amnesty, foreign precedents, international law, foreign law, fundamental
rights, human rights

1. INTRODUÇÃO

Após quinze anos de regime militar, inicia-se o processo de anistia, em 1979


através da Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979, que possibilitava a reinserção dos
oposicionistas na sociedade, bem como permitia que os militares deixassem o poder
sem maiores consequências e previa a concessão de anistia para quem cometeu
crimes políticos ou conexos praticados de 1961 a 1978, para os que tiveram seus
direitos políticos suspensos e para os servidores da administração pública, de
fundações vinculadas ao poder público, aos poderes Legislativo e Judiciário e aos
militares, punidos com fundamentos em Atos Institucionais e complementares.
Diferente de outros Estados latino americanos, no Brasil houve um tímido
embate judicial para processar e julgar os agentes públicos que participaram de
violações de Direitos Humanos durante o regime de exceção. São recentes as
demandas que buscam responsabilização civil ou criminal de alguns envolvidos, e a
Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF 153)1, proposta pelo Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil no Superior Tribunal Federal (STF), está

1
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf153.pdf acessado em 28/06/2018
336

entre as principais, juntamente com o caso “Gomes Lund e outros” (Caso Guerrilha
do Araguaia), estes, julgados na Corte Interamericana de Direitos Humanos2.
Sendo assim, o objetivo deste artigo é analisar a forma como os precedentes
estrangeiros citados na ADPF 153 são utilizados, observando se há conexão histórica
e semelhança nos casos concretos, e como se dá interlocução e análise das
experiências jurídicas não nacionais nas teses dos ministros.

2. ANÁLISE DA ADPF 153

2.1 PETIÇÃO INICIAL

Na Petição Inicial a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) afirma não ser
válida a interpretação de que a Lei 6.683/79 anistiaria vários agentes públicos
responsáveis pelo cometimento de atrocidades durante o regime militar, à luz dos
preceitos fundamentais da Constituição de 1988, assim, solicita, ao STF, que seja
dada uma interpretação conforme à Constituição do artigo primeiro desta lei, de
maneira que a anistia concedida aos autores de crimes políticos e seus conexos (de
qualquer natureza) não se estenda aos crimes comuns praticados por agentes
públicos acusados de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade,
lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor.
Após a admissão da ADPF, a relatoria ficou a cargo do Minstro Eros Graus, que
utilizou como principal argumento o de que em um Estado Democrático de Direito o
Poder Judiciário não está autorizado, a alterar, a dar outra redação diversa da nele
contemplada a texto normativo, cabendo a tarefa de revisão ao Poder Legislativo
porque a anistia integrou-se à nova ordem constitucional inaugurada no país pela
Emenda Constitucional no 26, de 27 de novembro de 1985, que convocou a
Assembleia Nacional Constituinte.

3. OS CRITÉRIOS ESTABELECIDOS PARA ANÁLISE DOS VOTOS DOS


MINISTROS

Para este estudo, foram elencados três quesitos: Anterioridade,


Imprescritibilidade e legitimidade da Lei, por terem sido empregado durante os votos
dos ministros e pela utilização de precedentes e fontes estrangeiras na suas
argumentações.

3.1 A ANTERIORIDADE DA LEI

O caso Arellano X Chile3, é citado pelo Ministro Relator Eros Grau, para
discutir a anterioridade da Lei da Anistia. Neste Caso, o Chile, ao apresentar suas
preliminares de constetação à Corte Interamericana de Direitos Humanos, alega que
a incompetência da CIDH, uma vez que os atos praticados contra Arellano
precederam a assinatura da Convenção Americana de Direitos Humanos.

2
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf, acessado em 20/07/2018
3
O caso Arellano vs Chile foi submetido a Corte Interamericana de Direitos Humanos e se refere a responsabilidade internacional
do Estado por falta de investigação e sanção dos responsáveis pela execução de Luis Alfredo Almonacid Arellano, assim como
a falta de reparação adequada a favor dos familiares.
http://www.corteidh.or.cr/cf/Jurisprudencia2/ficha_tecnica.cfm?nId_Ficha=335&lang=e acessado em 02/08/2018
337

Eros Grau arguiu que a Lei 6683/79 precedeu a Convenção Americana de


Direitos Humanos contra a tortura e Tratamento ou Penas Cruéis, Desumanos e
Degradantes, adotada pela Assembléia da ONU em 1984, a Lei de 9455/97, que
define o crime de tortura, assim como o preceito do artigo 5 o, XLIII da Constituição
Federal, que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática de tortura. Deste modo,
como a anistia antecede essas normativas, ela não é alcançada.
Cabe discutir a argumentação do Ministro, uma vez que, o Brasil é um dos
cinquenta e um países criadores da Organização das Nações Unidas e poderia ter
sido adotadas outras convenções e documentos internacionais como a própria
Declaração dos Direitos Humanos, Convenção para prevenção a Repressão do Crime
de Genocídio ambos de 19484 e a Convenção de Genebra, documentos relativos aos
Direitos Humanos e vigentes no país já na época da anistia5.
As três convenções citadas possuem os primeiros quatro artigos comuns e
muito além do de um direito de guerra entre estados, são regras aplicada em pessoas
em poder para resguardar a parte adversa.
A Convenção de Genebra, obriga, as partes no conflito armando, que não
apresente caráter internacinal a cumpriem algumas disposições que protejam a
intergridade física, assimo como proíbe ofensa a dignidade das pessoas, assim como
condenações proferidas e as execuções efetuadas sem prévio julgamento.6
Nesse caso, parece não haver dúvida e nem é incontroverso que a Convenção
poderia ser invocada uma vez que o Estado estaria a parte do documento.
Rothenburg (2013) afirma que havia parâmetros internacionais do Direito
positivo em vigor no Brasil que poderiam infirmar a validade da Lei 6683/79, como a
Resolução 95, editada na primeira Assembleia Geral da ONU, que confirmava os
princípios do Direito Internacional reconhecido pelo Estatuto do Tribunal de
Nuremberg. Devendo STF reconhecer a força cogente do costume internacional que,
mesmo não ratificada poder ser aplicada em conjunto com o direito interno.
O minstro Lewandovski, faz o voto mais expressivo e alinhado ao Sistema
Internacional de Direitos Humanos, rechaçando os crimes de lesa humanidade,
considerados imprescritíveis e insuscetíveis de graça ou anistia sem necessidade de
tipificação prévia para persecução penal,7 menciona os conteúdos normativos, mas
não desenvolve.

3.2 SOBRE A (IM)PRESCRITIBILIDADE PENAL

O voto do relator, que foi favorecido majoritariamente pelo plenário do Tribunal,


rechaça o tratamento dos delitos como crime contra humanidade, e considera
inexistente a obrigação internacional do Brasil em processar e julgar os crimes, e a
impossibilidade de fazê-lo por força do princípio constitucional da prescrição.
O Ministro Celso de Mello fundamenta em seu voto que, a imprescritibilidade
de crime de lesa humanidade ingressou no ordenamento jurídico brasileiro, quando
ratificado, em 2002, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, não podendo conceder
ao costume internacional, eficácia incriminadora por conta do princípio da legalidade.

4
A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília. Disponível
http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/a_pdf/livro_mj_anistia_comparada.pdf. Acesso 01/08/2018
5
Ventura, Dayse. A Intepretação judicial da Lei de Anistia Brasileira e do Direito Internacional Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/tablas/r30001.pdf Acessado: 28/07/2018
6
Convenção de Genebra. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Convenção-de-Genebra/convencao-de-
genebra-i.html. Acessado: 28/07/2018
7
ADPF 153 p. 115
338

Cezar Peluso, alega que a imprescritibilidade, com base na Convenção dos


crimes de Guerra e dos crimes contra a humanidade, não se ampara, uma vez que
essa convenção não foi assinada pelo Estado brasileiro.
De qualquer forma, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos crimes de
Guerra e dos crimes contra a humanidade, é um documento oficial já existente no
período da Lei da Anistia, pode-se dizer que atende ao critério de anterioridade.
O artigo 4o da referida Convenção estabelece que os a partir da ratificação do
documento deverão ser estabelecidos nos ordenamentos jurídicos nacionais,
métodos apara que a prescrição penal não atinja os crimes previstos nos artigos 1 o e
2o da Convenção.8
E à luz dos costumes do Direito Internacional, entende-se que os documentos
internacionais embora não tenham força obrigatória, podem ter valor normativo, ao
fornecer elementos de prova importantes para estabelecer a existência de uma regra
ou emergência de um ponto de vista do Direito. (Ventura, 2010).
Piovesan (2009), faz a mesma análise sobre o valor normativo das normas
internacional, enquanto costume. A Lei de Anistia brasileira, embora recebida pela
Constituição de 1988, é inconvencional por violar as convenções de direitos humanos
ratificadas pelo Brasil e inválida por contrariar o jus cogens.
A imprescritibilidade dos crimes de guerra contra a humanidade resultou de
intensos períodos históricos de guerra, após a Segunda Guerra Mundial e
considerando o apelo humanitário da Convenção ela é totalmente aplicável, no
entanto, poderia ser uma atitude ilógica exigir que um regime de exceção,
reconhecesse normas do Direito Internacional que poderiam lhe comprometer, e
talvez exista uma incoerência o STF condicionar, a imprescritibilidade dos crimes
contra a humanidade, à ratificação de uma convenção internacional por um governo
adepto ao autoritarismo.

3.3 A LEGITIMIDADE DA LEI

Um pressuposto de validade da Lei de Anistia é a sua promulgação e


interpretação, no entanto, um lei advinda de um regime de força, com baixa
participação popular e com um congresso com pouca possibilidade de manifestação
pode ter sua legitimidade questionada, principalmente quando existe uma
condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos9, que apesar
de ser posterior ao julgamento da ADPF 153, e o caso não ter sido invocado em
nenhum momento durante o julgamento da arguição, a divergência entre as
sentenças pode colaborar para reforçar os questionamentos.
A CIDH, no caso Gomes Lund vs Brasil, condenou o Estado Brasileiro por
unanimidade, arguindo que a Lei de Anistia impedia a investigação das violações de

8
São imprescritíveis, independentemente da data em que tenham sido cometidos, os seguintes crimes:
§1. Os crimes de guerra, [...]
§2. Os crimes contra a humanidade, sejam cometidos em tempo de guerra ou em tempo de paz, como tal definidos no Estatuto
do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg [...] a evicção por um ataque armado; a ocupação; os atos desumanos resultantes
da política de "Apartheid"; e ainda o crime de genocídio, [...]
ARTIGO 2º
Sendo cometido qualquer crime mencionado no "Artigo 1º" as disposições da presente Convenção aplicar-se-ão aos
representantes da autoridade do Estado e aos particulares que nele tenham participado como autores ou como cúmplices, ou
que sejam culpados de incitamento direto à sua perpetração, ou que tenham participado de um acordo tendo em vista cometê-
lo, seja qual for o seu grau de execução, assim como aos representantes do Estado que tenham tolerado a sua perpetração.
Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Sistema-Global.-Declarações-e-Tratados-Internacionais-de-
Proteção/convencao-sobre-a-imprescritibilidade-dos-crimes-de-guerra-e-dos-crimes-contra-a-humanidade.html. Acessado em
29/07/2018
9
Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil. sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em 01/08/2017 .
339

direitos humanos, sendo incompatível com a Convenção Americana, e um obstáculo


para investigar os fatos, para identificar e punir os responsáveis.
A partir desses desacordos, não há de se fazer uma crítica a posição do STF,
mas uma reflexão para que no futuro possa haver um alinhamento entre a decisão do
tribunal nacional e a decisão da Corte Interamericana.
Como esclarece Rothenburg (2013), os juízos de constitucionalidade e
convencionalidade são circuitos diversos e independentes, sendo possível que o
Superior Tribunal Federal afirmar a compatibilidade da Lei de Anistia com a
Constituição Federal de 1988 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos afirme
incompatibilidade da Lei com a Convenção Americana.
Existem diferentes interpretações das decisões sob o prisma constitucional.
Sabe-se que o artigo 5o, parágrafo 3o da Constituição Federal determina que:

§3o Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que


forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais.

Os tratados aprovados que não possuem quórum, o STF reconhece o status


de supralegal, caso este da Convenção Interamericana de Direitos Humanos,
ratificado no Pacto de São José da Costa Rica. Inobstante, a convenção que não
possui status de emenda constitucional pela ausência de quórum qualificado, sua
carga normativa eleva-se a lei ordinária, tal como a lei da Anistia.10
A primeira interpretação, parte do entendimento de Filho (2013), a lei de anistia,
como obtém guarida pela Emenda Constitucional 26/85, possui mais força normativa
que o Pacto São José da Costa Rica. E este como tem valor normativo inferior fará
com que a sentença da Corte Interamericana não prevaleça sobre a sentença da Corte
Brasileira. Nesse sentido, o argumento, sustentado pelo pelo Ministro Eros Grau, que
caberia ao Congresso Nacional solucionar a controvérsia sobre a Lei 6.683/79 não
procede, uma vez que a legitimidade da Lei está fundamentada e prevista na Emenda
Constitucional.
Rothenburg (2013) confere uma segunda intepretação à legitimidade da lei, a
qual pode ter a validade questionada por causa da sua origem espúria, por ter sido
produzida por detentores de um poder político de forma imposta. Isso suscitaria um
vício de ilegitimidade uma vez que o Congresso não expressa livremente a vontade
dos parlamentares.
Comete uma interpretação a respeito da vigência da Emenda Constitucional
26/85. Entende que a EC foi revogada com o advento da Constituição de 1988, isto
porque diferente da Carta Constitucional de 1969 que previa a federação e a república
como cláusulas pétreas subordinando a emenda constitucional, mas foram ignoradas
pela Assembléia Constituinte e pela previsão de um plebiscito sobre a forma de
governo ( art. 2o dos Atos da Disposições Transitórias da Constituição de 1988). Com
o resultado mantendo a república presidencialista, acredita ser possível, sustentar que
a Carta Magna de 1988 representou uma ruptura do ponto de vista jurídico e
desvinculou-se do ato convocatório.
A sucessão de normas, levaria a concluir que a Lei de Anistia teria sido
revogada pela EC 26/85 e também pela Constituição atual, no entanto não foi esse

10
Em 03.12.08, o STF através do HC 87858-TO e RE 466.343-SP reconhece que os tratados de direitos humanos valem do que
a lei ordinária. Gilmar Mendes, sustentava o valor supralegal e o Ministro Celso de Mello que lhe conferia valor constitucional.
Sendo a tese a primeira tese a vencedora. GOMES, Luiz Flávio. Controle de legalidade, de convencionalidade e de
constitucionalidade . Disponível em <http://www.lfg.com.br> Acesso em: 01.08.2018.
340

entendimento que prevaleceu no julgamento da ADPF 153, mas sim de que a lei se
manteve sobre a vigência da Emenda Constitucional. Para Rothenburg, a leitura de
que a anistia atingira tanto opositores do regime quanto os agentes públicos da
repressão, foi uma leitura imposta.
Os pressupostos acima fazem perceber como é delicado afirmar posições
concretas sobre a lei, já que o próprio Direito implica em diferentes interpretações. As
divergências devem contribuir para o aperfeiçoamento sem impedir novas
perspectivas de análise da lei. Rever a lei e criar leis adequadas fazem parte da
experiência democrática, não há uma verdade absoluta, mas uma busca por
informações, avaliações e compromisso para reparar as injustiças.
Embora as conclusões jurídicas se situem em múltiplos pontos, é preciso
compatibilizar as divergências e talvez a melhor maneira para isso ocorrer é acatar a
decisão da Corte Interamericana, invalidando a Lei de Anistia, uma vez, que pela
perspectiva dos Direitos Humanos o conteúdo da lei viola os direitos fundamentais
que caracterizam-se como crimes contra a humanidade, e que em nenhum momento
deixaram de representar um mínimo ético.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. A partir deste estudo, particularmente neste julgado, verifica-se que o


STF busca legislação ou norma estrangeira para soluções de caso, no entanto ainda
não desenvolveu uma sistemática jurídica própria para usar estas fundamentações;
2. A ratificação de tratados posteriores a lei da Anistia foi uma justificava
para não se dar como procedente a ação, no entanto, numa breve pesquisa
encontramos algumas convenções relativas aos Direitos Humanos, vigentes, que
estão incorporadas formalmente a ordem jurídica interna, mas que não foram
empregadas, como exemplo: Convenção de Genebra, Convenção para prevenção de
repressão de crime de genocídio, assim como a própria Declaração Universal dos
Direitos Humanos;
3. A constituição Federal de 1988 dá ênfase aos dispositivos que
reconhecem os direitos humanos o status de norma fundamental, no entanto ao
declarar a constitucionalidade da Lei de Anistia o STF não prestigia essa
possibilidade.
4. Ainda que os regimes ditatóriais na América Latina tenha semelhanças
e algumas conexões, o STF não conseguiu fazer com que se estabelecesse essas
conexões, mesmo recorrendo aos precedentes estrangeiros e as leis estrangeiras;
5. Os tratados internacionais, independentes de aprovação ou não, com
quórum qualificado, possuem nível de supra legal, o STF poderia ter realizado o
controle de convencionalidade, que é uma forma de garantir a aplicação interna das
convenções internacionais.
6. O STF fez uma leitura mais voltada a justificar sua decisão voltando
reiteradamente ao argumento da busca pela pacificação e conciliação da sociedade
naquele momento histórico, colocando esse valor acima das violações de direitos da
parte contrária ao regime ditatorial.

REFERÊNCIAS

Caso Gomes Lund e Outros vs.Brasil. sentença de 24 de novembro de 2010.


Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf.
Acesso em 01/08/2017 .
341

Convenção de Genebra. Disponível em:


http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Convenção-de-Genebra/convencao-
de-genebra-i.html. Acessado: 28/07/2018
Chile. Disponível em https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/4.-
DAUER-Gabriel-Roberto-Marcas-da-Memória-justiça-de-transição-no-Brasil-e-no-
Chile.pdf. Acessado em 07/08/2018
Filho, Fernando Torqueto. Constitucionalidade e a incompatibilidade da Lei
6.683/79. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/L6683.htm.
Piovesan, Flávia. Direito internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o
caso brasileiro. Revistada Faculdade de Direito da FMP, n.º 4, Porto Alegre: FMP,
2009, p. 117.
Rothenburg, Walter Claudius Constitucionalidade e convencionalidade da Lei de
Anistia brasileira. Rev. direito GV [online]. 2013, vol.9, n.2, pp.681-706. ISSN 2317-
6172. http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322013000200013 Acessado em
24/07/2018
__________________________, Diálogo internacional entre juízes: a influência
do direito estrangeiro e do direito internacional na solução de casos de direitos
fundamentais.. O Diálogos entre juízes. Brasília : UniCEUB, 2014. p. 57-75.
Disponível em:
http://repositorio.uniceub.br/bitstream/235/5748/1/Diálogos%20entre%20ju%C3%AD
zes.pdf Acessado em 24/07/2018
Ventura, Dayse. A Intepretação judicial da Lei de Anistia Brasileira e do Direito
Internacional Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/r30001.pdf Acessado:
28/07/2018
342

CANDIDATURAS-FANTASMA DE MULHERES: UMA ANÁLISE DA INEFICÁCIA DO


SISTEMA DE COTAS ELEITORAIS
WOMEN’S PHANTOM CANDIDATURES: AN ANALYSIS OF THE
INEFFECTIVENESS OF THE ELECTORAL QUOTA SYSTEM

Larissa Martins Silva


Thayná Monteiro Rebelo
Yasmin Dolores de Parijos Galende

Resumo: O presente trabalho problematiza o sistema de cotas eleitorais para


candidaturas políticas de mulheres no sistema jurídico brasileiro, analisando sua
ineficácia na promoção da igualdade de gênero, e tendo como enfoque uma de suas
principais consequências nocivas: as fraudes conhecidas como candidaturas-
fantasma. Ademais, pretende-se questionar a carência de candidaturas femininas no
Brasil, partindo da hipótese de que a quase exclusividade dos homens nos espaços
públicos decorre de uma dominação patriarcal que reforça o conceito de feminino,
reduzindo as mulheres a trabalhos e posições socialmente secundários em relação
aos homens, e que derivam da imagem convencional da feminilidade. Foi utilizado o
método de revisão bibliográfica e análise de dois casos concretos decididos por
Tribunais Eleitorais.
Palavras-chave: Cotas eleitorais; Candidaturas-fantasma; Ineficácia.

Abstract: This research questions the electoral quota legislation for women’s political
candidatures in the Brazilian legal system, analyzing its ineffectiveness on promoting
gender equality, and focusing on one of its main and most harmful consequences: the
frauds known as phantom candidatures. In addition, we intend to question the shortage
of female candidatures in Brazil’s elections, starting from the hypothesis that the almost
exclusivity of men in public spaces results because of a patriarchal domination that
reinforces the concept of femininity, reducing women to secondary works and social
positions in comparison to men. We used bibliographical research and the analysis of
two legal cases decides by Electoral Courts.
Key words: Electoral quota system; Phantom candidatures; Ineffectiveness.

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, a luta pelo voto feminino iniciou em 1910 quando foi fundado, no Rio
de Janeiro, o partido Republicano Feminino, com o objetivo de debater sobre o
assunto no Congresso Nacional. Em 1928, o governador Juvenal Lamartine de Faria,
apresentou um projeto de Lei Estadual que garantiria o voto feminino no Rio Grande
do Norte, sendo este aprovado no mesmo ano. Durante o período eleitoral, Alzira
Soriano foi eleita prefeita da cidade de Lages, entretanto, a comissão de Poderes do
Senado Federal anulou os votos femininos do Estado e a posse de Alzira, alegando a
necessidade de uma lei especial que fornecesse as mulheres o direito ao voto.
Somente em 1932 Getúlio Vargas promulgou, mediante um decreto-lei, o direito de
sufrágio das mulheres (ALVES; PITANGUY, 1985).
A conquista da participação política das mulheres por meio do voto resultou em
reivindicações por mais candidaturas femininas, tendo em vista que tanto a
participação quanto a representação são fundamentais para que haja uma política
plenamente democrática. Todavia, os direitos legais básicos relacionados ao voto e à
representação política não têm sido suficientes para reverter o quadro de carência de
343

mulheres nos espaços políticos, logo, criaram-se ações afirmativas – cotas eleitorais
– para as instâncias parlamentares, estando previstas no ordenamento jurídico pátrio
pela Lei nº 9.100/95.
Essas cotas eleitorais, porém, podem ser consideradas um instrumento de
violência de gênero, tendo em vista que a figura da mulher é utilizada como um objeto
para preencher o mínimo legal de candidaturas, para que assim haja um
fortalecimento de campanhas masculinas já consolidadas. Ademais, também são
mecanismos de violação do sistema eleitoral por serem usadas a fim de burlar o
sistema jurídico e alcançar o mínimo partidário sem efetivamente promover a defesa
dos interesses políticos das mulheres, o que ocorre por meio das candidaturas-
fantasma. Ante o exposto, esse trabalho se propõe a responder o seguinte
questionamento: em que medida as cotas eleitorais para mulheres enquanto
possibilitadoras das candidaturas-fantasma não promovem a equidade política de
gênero?
A pesquisa utiliza de revisão bibliográfica das obras de Luís Felipe Miguel,
Flávia Biroli, e Iris Young, que tratam sobre o sistema de cotas eleitorais e a
representaçãopolítica de minorias. Acrescenta-se a análise das Leis nº 9.100/95 e nº
9.504/97 e da Lei da reforma do código eleitoral de 2009, bem como de dois casos
concretos – o Recurso Especial Eleitoral n-495-85.2016.6.21.0003, do Tribunal
Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, e o Recurso Especial Eleitoral nº 243-
42.2012.6.18.0024 decidido pelo Tribunal Regional Eleitoral do Piauí. O trabalho se
conclui no sentido de que além de serem mecanismos de violação do sistema eleitoral,
em razão das candidaturas-fantasma, e de violência de gênero, as cotas também são
ineficazes na promoção de representação de mulheres na política.

2 COTAS ELEITORAIS: A INEFICAZ TENTATIVA DE AMENIZAR A CULTURA


PATRIARCAL DO BRASIL

A Constituição Federal Brasileira de 1988 aborda, em seu art. 14, o sufrágio


universal pelo voto direto e secreto enquanto sendo um mecanismo de exercício da
soberania popular, com valor igual para todos os cidadãos. Posteriormente, os
parágrafos do referido artigo expõem os requisitos necessários para a elegibilidade,
não fazendo quaisquer distinções de natureza de gênero, ou seja, o ordenamento
pátrio evidencia a possibilidade de candidaturas eleitorais de mulheres, em condições
iguais às dos homens.
Ocorre que a inserção da mulher nos espaços políticos tende a ser
acompanhada de obstáculos estruturais decorrentes de diferenças entre os sexos,
que se traduzem em uma hierarquia social dos homens sobre as mulheres, e que são
anteriores à inserção partidária destas. A acessibilidade da mulher ao sistema político
acaba sendo restrita, por este sistema privilegiar indivíduos que possuem
determinadas características que tendem a se aproximar do que se considera
“masculino”, como a crueza da disputa pelo poder, ganância, submissão dos meios
aos fins, entre outros (MIGUEL, 2000, p. 11), e que diferem do que se compreende
enquanto uma postura “feminina”, que é vista como doce, submissa e amável. Assim,
perpetua-se na política a figura do homem nos papéis sociais de liderança e poder,
reforçando a dominação masculina que exclui a mulher dos espaços decisórios.
Diante deste cenário, tem-se que a igualdade prezada formalmente pela
Constituição Federal não se concretiza na medida em que as mulheres não são
inseridas de maneira igualitária nos espaços políticos, tendo, inclusive e em razão
disso, ínfima representação numérica nas Casas Legislativas, o que levou os
344

legisladores a crerem na necessidade de um mecanismo legal de equiparação


numérica das mulheres em relação aos homens nas candidaturas, conhecido pelo
nome de cotas eleitorais.
Nas democracias representativas, essas ações afirmativas são inseridas por
meio de leis que visam incentivar a presença das mulheres no cenário político,
garantindo um número mínimo de candidaturas ou de assentos nos Parlamentos e em
instâncias dos Poderes Executivo e Judiciário (MIGUEL,2000, p.1). No Brasil, as cotas
surgiram em 1995, por meio da Lei nº 9.100/95, proposta pela deputada Marta Suplicy
como resultado das mobilizações sociais dos movimentos de mulheres. Desta feita,
no segundo semestre de 1995 tem-se a aprovação do sistema de cotas, estando
prevista de forma explícita no ordenamento jurídico, visando as eleições para as
câmaras municipais em 1996. Ela assim dispõe:

Artigo 11. Cada partido ou coligação poderá registrar candidatos para a


Câmara Municipal até cento e vinte por cento do número de lugares a
preencher. § 3º Vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou
coligação deverão ser preenchidas por candidaturas de mulheres.

Posteriormente, houve uma alteração legislativa, surgindo então a Lei nº


9.504/97, que expressamente aumentava a cota de vagas de 20% para 30%, em seu
art. 10,§3° “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada
partido ou coligação deverá reservar o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo
de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”. Todavia, o resultado das
eleições em 1998 demonstrou que o grande problema das cotas eleitorais é a sua
falta de efetividade, tendo em vista que o número de mulheres eleitas para a Câmara
Federal ainda diminuiu. “Em 1998, com uma única exceção (a lista para a Câmara
Federal do Estado de Tocantins), em nenhuma unidade da Federação o número de
candidatas chegou de fato a 25% do total” (MIGUEL, 2000, p. 1).
Propagou-se em relação às candidaturas de mulheres uma política de
“desvelo”, que tem como pressuposto uma maior preocupação com os outros do que
com seus próprios interesses, e se opõe à política de interesses, ou seja, isso significa
que a inserção da mulher no âmbito político teria o intuito de abrandar o caráter
agressivo dessa atividade, trazendo amor e solidariedade, tendo em vista que as
mulheres seriam propícias a cuidar dos indefesos.
O reducionismo da mulher a tal figura da mãe que se sacrifica pelos filhos
retrata o cenário da estrutura patriarcal da política. A socialização das mulheres,
dentro da esfera privada e familiar, é feita para que estas desde a infância aprendam
e normalizem em si a atribuição de um papel de inferioridade e de submissão,
vinculado predominantemente às tarefas domésticas e à ideia de maternidade
compulsória (BEAUVOIR, 1967). Essa estrutura de dominação foi espelhada na
esfera pública, quando perante o Estado as mulheres não são vistas com condições
iguais às dos homens para gerirem a vida coletiva e para representarem seus próprios
interesses políticos enquanto grupo.
Dentro desse cenário, mantem-se o quadro de que as mulheres ocupam
espaços subalternos, cabendo a elas a sub-representatividade em uma política
conservadora, em que homens falam e decidem sobre pautas femininas,
desconsiderando os interesses especiais e legítimos relacionados ao gênero feminino.
“Há, em primeiro lugar, uma questão de justiça intuitiva: não pode estar certo que
metade da população seja representada por apenas 5% dos membros do Congresso”
(MIGUEL, 2000, p. 1). Iris Young afirma que o acesso das mulheres e de outros grupos
politicamente excluídos às esferas de deliberações públicas, faz-se necessário porque
345

partem de uma mesma perspectiva social, com certos padrões de experiência de vida,
ainda que não compartilhem das mesmas opiniões ou interesses (YOUNG, 2000),
portanto a representação demanda a presença de mulheres na política.
Vale ressaltar que, quando as mulheres são eleitas, tendem a apresentar sua
atuação em áreas distintas do homem, como por exemplo, cuidados com a infância,
educação, pobreza, meio ambiente, em contrapartida, assuntos relacionados à crise,
economia, violência, estão inteiramente ligados ao sexo masculino, o que evidencia
que existem espaços próprios dentro do âmbito político, que são outorgados aos
sexos devido a uma construção social. Ademais, as candidatas ressaltam que suas
campanhas políticas são fortalecidas quando tratam sobre temáticas femininas,
todavia são enfraquecidas quando tendem a tratar de assuntos masculinos. “Ao
contrário dos homens na política, as mulheres precisam escolher entre enfrentar os
estereótipos, sofrendo os ônus desse enfrentamento, ou se adaptar a eles,
conformando-se com um papel secundário no jogo político” (BIROLI, MIGUEL, 2010,
p. 22). Ou seja, a defesa dos direitos das mulheres seria uma pauta específica, em
contrapartida, apenas os homens estariam aptos a falar pela coletividade em geral.
Outrossim, a diferença entre a representação feminina e masculina nos
espaços decisórios decorre de um modelo estrutural de política que não foi criado para
mulheres. Estas encontram constrangimentos para gerenciar suas carreiras, já que as
obrigações domésticas, que são exercidas concomitantemente com seus trabalhos
remunerados, lhes são impostas enquanto obrigações quase exclusivas e impedem
que haja uma dedicação à vida política similar a dos homens, haja vista que a mulher,
de uma era histórica a outra, tem sido associada ao ambiente doméstico (DAVIS,
2016, p. 228). Logo, as mulheres possuem um ônus excessivo ao assumirem cargos
políticos, e em sua maioria tendem a renunciar a vida parlamentar em prol da família,
o que não é demandado dos homens.
Em 2009, a Lei nº 12.034/09 estabeleceu que “cada partido ou coligação
preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento)
para candidaturas de cada sexo”,substituindo as palavras “deverá preencher” por
“preencherá”, logo, incluindo obrigatoriedade na porcentagem de mulheres nas
candidaturas. No entanto, apesar desta vinculação legal, segundo o livro “Mais
Mulheres na Política”, onde se aborda a porcentagem de candidaturas femininas no
Brasil em 2016, foram eleitas 13,51% de mulheres para as câmaras municipais, e em
relação às prefeituras, foram eleitas 641 mulheres, totalizando 11,57% (SENADO
FEDERAL, 2016), o que demonstra que não há uma efetivação das cotas
parlamentares no tocante ao aumento de representação numérica de mulheres.
Dessa forma, o fato de haver um sistema de cotas eleitorais que tenha o intuito
de ampliar as candidaturas femininas não implica em efetividade e respectivas posses
tendo em vista que o modelo de política é excludente e desfavorece a mulher no seu
sistema competitivo. Todavia, faz-se mister ressaltar que a presença obrigatória de
candidatas estimula a formação de lideranças políticas femininas, tendo em vista que
a representação, anterior a participação inclusiva, é necessária para um processo
mais democrático.

3 CANDIDATURAS FANTASMAS COMO CONSEQUÊNCIA DA INEFICÁCIA DO


SISTEMA DE COTAS ELEITORAIS

O cenário alarmante das eleições de 2016 resultou que das 16.131


candidaturas que não computaram nenhum voto, 14.417 eram de mulheres, sendo
14.413 candidaturas femininas ao cargo de vereador (SENADO FEDERAL, 2016).
346

Isso propiciou dois novos entendimentos em Tribunais em relação à legislação das


cotas eleitorais. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) mudaram o entendimento em relação ao fundo eleitoral para as candidatas
mulheres.
O STF, em março de 2016, estipulou em Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) que o fundo eleitoral para as campanhas de mulheres deve ser de 30% e não
mais o mínimo de 5% e máximo de 15%, como previa a Lei nº 13.165/2015. Nessa
sintonia, o TSE decidiu, em maio de 2018, que 30% do fundo eleitoral de cada partido
deve ser destinado às suas candidatas mulheres, bem como destinou o tempo mínimo
de 30% para a propaganda eleitoral, como meio de equilíbrio para a visibilidade entre
homens e mulheres, sendo essa decisão de relatoria da única mulher que compõe e
preside o tribunal, Rosa Weber.
Nesse contexto, de tentativas de mudanças benéficas àpresença da mulher
dentro da política, o sistema de cotas eleitorais apresenta-se como um instrumento
com diversas falhas, acabando por propiciar formas de violação ao sistema eleitoral,
bem como, de forma mais prejudicial, de violação de gênero. Uma dessas falhas são
as candidaturas-fantasma de mulheres, as quais evidenciam a ineficácia da política
da ação afirmativa em questão. Estas consistem em uma burla eleitoral como forma
de o partido político alcançar o patamar mínimo das candidatas mulheres como suas
elegíveis, mas sem, de fato, essas estarem como verdadeiras disputáveis. Isso porque
não recebem investimento em sua campanha, não recebem voto, e assim são usadas
como meio para que os partidos políticos alcancem a porcentagem legal obrigatória
de mulheres. Essa realidade está sendo enfrentada pelo TSE, havendo diversos
casos sendo investigados das eleições de 2014 e de 2016.
Nesse contexto, torna-se facilitado para o partido político a burla em relação ao
cumprimento da determinação legal do mínimo em relação às cotas eleitorais
femininas no momento em que não há obrigatoriedade em relação aos cargos no
poder, mas sim nas candidaturas em cada partido. Nesse viés, é interessante analisar
dois casos concretos que versam sobre fraudes de candidaturas-fantasma,
recentemente julgados em Tribunais Eleitorais. O primeiro é o Recurso Especial
Eleitoral n-495-85.2016.6.21.0003 decidido pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do
Rio Grande do Sul. Ele aborda a investigação de três candidaturas de mulheres ao
cargo de vereadoras na eleição de 2016.
O Ministério Público Eleitoral (MPE) propôs Ação de Impugnação de Mandato
Eletivo contra todos os vereadores da coligação investigada – coligação Unidos por
Viadutos –, estabelecida entre o Partido Progressista (PP), Partido Trabalhista
Português (PTB), Movimento Democrático brasileiro (PMDB), Partido Popular
Socialista (PPS), Partido da Social Democracia brasileira (PSDB) e Partido Socialista
brasileira (PSB). O caso centrou-se na investigação das candidaturas de Dirce Coser
Zonin, Ivanate Terezinha Gonçalves Demarco e Shirlei Terezinha Veroneze Bet. A
coligação em questão apresentou, em tese, o mínimo legal em relação às cotas, no
momento em que se candidataramseis mulheres e doze homens para o cargo
municipal na eleição proporcional. No entanto, o que despertou a atenção do MPE foi
a reduzida quantidade de votos das três candidatas supracitadas, o que legitimou a
investigação, sob a possibilidade de serem candidatas-fantasma.
A fraude foi comprovada somente na candidatura de Dirce Coser Zonin, a qual
não recebeu nenhum voto, uma vez que na instrução probatória foi analisado um áudio
em que a própria candidata alega não saber se irá votar em si mesma, assim como
fala que estava se candidatando somente para cumprir a legenda necessária. Além
347

disso, nos autos, restou provado em áudio que na mesma coligação candidatou-se o
cunhado de Dirce, tendo incluído o relato que a mesma votaria nele.
As demais candidatas investigadas não foram consideradas fantasmas, pois foi
comprovado que desistiram da campanha eleitoral, mas chegaram a realizá-la por
certos dias. Além disso, relataram que não estavam preparadas para a concorrência,
o que as desestimulou a continuarem como disputáveis ao cargo de vereadoras,
preferindo ambas voltaremà sua vida profissional anterior. Todos esses fatores
convergiram para que a fraude eleitoral em relação às cotas para o percentual de
participação feminina se comprovasse na candidatura de Dirce, o que legitimou a
cassação dos eleitos ao cargo em questão nessa eleição, na decisão unânime em
dezembro de 2017, sob relatoria de Eduardo Augusto Dias Bainy.
O segundo caso analisado é o Recurso Eleitoral n° 243-42.2012.6.18.0024,
proposto pela coligação Vitória que o Povo Quer, contra a coligação Por um Novo
Tempo, etratou sobre o indeferimento da Ação de Investigação Eleitoral que tinha
como objeto o oferecimento de empregos em troca de votos e o registro de
candidaturas femininas de forma fraudulenta; o vício de consentimento de três filiadas
que desconheciam o fato de terem sido lançadas como candidatas e, assim que
souberam das candidaturas, renunciaram-nas; a apresentação de registro de
candidatura de filiada analfabeta, tendo a assinatura sido feita pelo presidente da
coligação e, por fim, as únicas duas candidatas restantes da coligação obtiveram,
respectivamente, nenhum voto e um voto, o que demonstrou que ambas não tinham
a intenção de concorrer e suas candidaturas foram lançadas para permitir o registro
de quatorze candidatos – alcançando o mínimo legal. Todavia, a decisão do
magistrado não considerou fraude eleitoral, o que gerou a impugnação parcial do
referido Recurso.
O relatordo caso, Henrique Neves, alega que o registro de candidaturas de
acordo com os percentuais mínimos previstos no ordenamento jurídico não se limita
ao mero lançamento de candidatas, pois a ação afirmativa, em regra, pretende que
haja uma efetividade do seu conteúdo jurídico. Dessa forma, eventuais vícios que
pudessem anular essa regra e a definitiva existência de candidaturas para cada
gênero previsto na legislação devem ser examinadas pela Justiça Eleitoral a fim de
atender ao comando legal durante as campanhas eleitorais, verificando se realmente
existem mulheres nos partidos políticos.
O ministro Henrique Neves decidiu conceder parcialmente o pedido, a fim de
que os autos retornassem ao juiz para serem julgados, de forma detalhada, a questão
das fraudes eleitorais. Por unanimidade, os ministros concordaram, nos termos do
voto do relator, em dar parcial provimento ao Recurso Especial, ou seja, o retorno dos
autos ao TRE/PI para analisar as alegações sobre existência de fraude em relação ao
sexo feminino, todavia julgaram improcedente o pedido quanto ao recebimento de
recursos financeiros indevidos pelo partido e quanto às ofertas de emprego efetuadas
pelos candidatos João de Deus Moreira Lima e Manoel Pereira das Neves, alegando
que as provas são frágeis, especialmente a testemunhal.
Nos sistemas políticos de sociedades patriarcais, as mulheres ocupam uma
pequena proporção dos cargos públicos, assim como estão relativamente ausentes
nas posições de poder e influência. Isso decorre do fato de que grupos que estão
inseridos em um contexto de minorias políticas tendem a carecer de voz pública
efetiva, ainda que se insiram em posições de relevância.Visualiza-se essa questão na
decisão do Recurso Eleitoral do Piauí, onde o juiz de primeiro grau não considerou a
fraude eleitoral, tendo em vista que os partidos incluíram mulheres nos seus quadros
de candidatos, portanto não se analisou a efetividade da representação, mas o mero
348

quantitativo de mulheres. No entanto, propiciar a inclusão efetiva dos grupos sociais


sub-representados pode contribuir para que a sociedade reduza a desigualdade social
estrutural (YOUNG, 2000, p. 32).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista as legislações em relação ao sistema de cotas eleitorais para


as candidaturas de mulheres, o qual vem se mostrando infelizmente um sistema falho
e excludente, e resultando a sua ineficácia nas candidaturas-fantasma, o trabalho teve
como intuito questionar esse mecanismo que tentou promover uma equiparação de
gênero na política, e analisar uma de suas consequências mais prejudiciais à
representação de mulheres.
As reivindicações pela participação política das mulheres tiveram início com a
movimentação em prol da garantia do voto às cidadãs, todavia bem destaca Luís
Felipe Miguel (2014, p. 93) que “as décadas seguintes à obtenção do sufrágio feminino
mostraram que era perfeitamente possível a conivência entre o direito de voto das
mulheres e uma elite política formada quase exclusivamente por homens”, de sorte
que os aparelhos do Estado já teriam incorporado enraizadamente o ponto de vista
dominante e masculino, e a partir disso criado uma estrutura de normas, formas e
interesses que servem apenas para legitimar a ordem de hierarquia e dominação
social masculina. Foi nesse contexto que a legislação de cotas eleitorais se mostrou
uma medida necessária, mas que por si só representa um instrumento que sinaliza a
marginalização feminina na política, e que resultou ineficaz.
Assim se desenvolve o cenário de ineficácia das cotas eleitorais, visto a partir
da possibilidade de fraude do sistema jurídico, sendo uma dessas fraudes as
candidaturas-fantasma de mulheres. Considerando que o número de candidatos
homens é maior que o número de candidatas mulheres, torna-se ainda mais alarmante
o resultado de que estas não encontram apoio igualitário dentro de seus partidos para
serem consideradas candidatas disputáveis, votáveis e elegíveis, sendo apenas
coisificadas enquanto números.
Desta feita, as cotas eleitorais, além de um instrumento de violência de gênero
por fazerem uso da figura da mulher enquanto objeto de favorecimento de campanhas
masculinas, também são mecanismo de violação do sistema eleitoral por serem
usadas a fim de burlar o sistema jurídico e alcançar o mínimo partidário sem
efetivamente promover a defesa dos interesses políticos das mulheres, recaindo na
nefasta figura das candidaturas-fantasma, e enfim um instrumento que não propicia a
representação mais adequada das mulheres na política, pois trata apenas de uma
esfera quantitativa da representação, enquanto a inclusão social efetiva de grupos
sociais marginalizados demanda participação ativa e defesa de interesses. Nesta
senda, faz-se necessário que haja não somente uma inclusão numérica da mulher
nos sistemas eleitorais, mas também uma mudança na estrutura patriarcal que impera
nos espaços de poder, promovendo nestes a inserção de pautas efetivamente
representativas.

REFERÊNCIAS

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. 1. ed. São


Paulo: Editora brasiliense, 1985.
BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: limites da democracia no Brasil. 1.ed. São
Paulo: Boitempo, 2018.
349

BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral n-495-


85.2016.6.21.0003. Rio Grande do Sul, 2017. Disponível em:
http://www.mpf.mp.br/regiao4/sala-de-imprensa/docs/20171213_acordao-RE-
49585.pdf
BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral n° 243-
42.2012.6.18.0024. Piauí. Disponível em: https://www.tre-
sc.jus.br/site/fileadmin/arquivos/jurisprudencia/clipping/20_16/01.pdf
BRASIL. Lei 9.100/95. Brasília, 1995. Disponível em:
https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/111051/lei-9100-95>. Acesso em:
08/10/2018.
BRASIL. Lei 9.504/97. Brasília, 1997. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9504.htm>. Acesso em: 08/10/2018.
BRASIL. Mais Mulheres na Política: retrato da sub-representação feminina no poder.
Brasília: Senado Federal, Procuradoria Especial daMulher, 2016.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 1ªed, 2016.
MIGUEL, Luís Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e Política: uma introdução. 1.ed.
São Paulo: Boitempo, 2017.
________.Teoria política feminista e liberalismo: o caso das cotas de
representação.RevistaBrasileira de Ciências Sociais.Vol. 15, n. 44, 2000.
________. Práticas de gênero e carreiras políticas: vertentes explicativas. Revista
Estudos Feministas, Florianópolis, Setembro/Dezembro, 2010.
________. Política de interesses, política do desvelo: representação e “singularidade
feminina”.Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 2000.
YOUNG, Iris Marion. Representação política, Identidade e Minorias.Original do livro
Inclusionanddemocracy, cap. 4, 2000. Tradução de Alexandre Morales. São Paulo:
Lua Nova,2006.
350

CIBERDEMOCRACIA: REDES SOCIAIS COMO FORMA DE INTERAÇÃO


HORIZONTAL
CIBERDEMOCRACIA: SOCIAL NETWORKS AS A FORM OF HORIZONTAL
INTERACTION
Rafael Brito de Souza
Eudes Vitor Bezerra

Resumo: Este resumo expandido visa abordar um tema de extrema importância no


contexto atual, a análise das redes sociais, visto que essas tem impactado
diretamente a sociedade. Esse tema vem ganhando destaque em diversas áreas do
conhecimento, em especifico as ciências jurídicas e sociais. Outrossim, a análise de
como as redes sociais impactam nas decisões políticas e sociais, bem como a forma
como ela acontece e sua interação horizontal proporcionada pelas tecnologias de
comunicação traz a lume uma nova forma de participação cidadã/e-cidadã. Assim,
por meio do método Hipotético-dedutivo, analisaremos como se desenvolveu essa
interação horizontal através das redes sociais e suas contribuições para o estado
democrático.
Palavras-chave: Ciberdemocracia; Redes sociais; Interação horizontal

Abstract: This expanded summary aims to address a topic of extreme importance in


the current context, the analysis of social networks, since these have directly impacted
society. This topic has been gaining prominence in several areas of knowledge,
especially the legal and social sciences. In addition, the analysis of how social
networks impact the political and social decisions, how they occur and their horizontal
interaction provided by communication technologies, brings to light a new form of
citizen / e-citizen participation. Thus, through the Hypothetical-deductive method, we
will analyze how this horizontal interaction developed through social networks and their
contributions to the democratic state.
Keywords: Ciberdemocracia; Social networks; Horizontal interaction.

INTRODUÇÃO

A democracia tem se modificado ao longo do tempo, desde a Grécia antiga,


onde havia uma participação direta dos cidadãos até a contemporaneidade onde na
maioria das vezes é exercida de forma indireta.
Esse instituto faz parte do processo civilizatório, do desenvolvimento das
sociedades e, no tocante a seara dos direitos fundamentais, contribuiu, assim,
enormemente para que a liberdade (em sentido lato senso), fosse hoje uma realidade;
surge dessa liberdade as manifestações de pensamentos contra abusos de
autoridade, governos corruptos dentre outros.
Nesse sentido, as redes sociais se mostram hoje uma ferramenta poderosa que
o e-cidadão tem em suas mãos, porquanto esse mecanismo tem mobilizado governos
a se mostrarem mais eficientes e flexíveis, caracterizando dessa forma uma inversão
na interação do cidadão com o Estado, assim, analisar esse mecanismo é de suma
importância.
Para tanto, com base no método hipotético-dedutivo, tendo como base a tese
de doutorado do Professor Eudes Vitor Bezerra e outras bibliografias, ter-se-á no
primeiro capitulo uma abordagem superficial das redes sociais e a origem da
comunicação.
351

No segundo capitulo abordar-se-á as redes sociais e seu impacto no estado


democrático de direito, bem como a inversão da forma de interação entre cidadão
agora e-cidadão com o Estado.
Posto isto, o objetivo fim deste resumo é deixar evidente que as relações entre
particulares e Estado, com o advento das tecnologias, tem impactado de forma
positiva o estado democrático, permitindo uma maior participação dos populares.

1. REDES SOCIAIS

Com a evolução constante das tecnologias, em especial as tecnologias da


informação e comunicação, tivemos mudanças significativas que impactaram a forma
de participação cidadã frente ao governo. Nesse ponto a democracia vem sendo o
alvo dessas mudanças proporcionadas pela evolução supracitada, visto que os meios
de comunicação via rede de internet possibilitaram uma nova forma de interação, não
mais vertical, mas sim horizontal.
É notável, nesse sentido, que as sociedades evoluíram em um sistema
verticalizado, ou seja, uma minoria decidindo os rumos sociais e em contrapartida a
população submetida aos desejos destes.
Ao analisarmos a democracia, no que pese sua evolução, percebe-se que com
o avanço das tecnológias houve em sua forma modificações, desde sua gênese na
Grécia, onde havia uma participação direta de cidadãos até chegarmos na
participação virtual através do e-cidadão. Temos que salientar que esses avanços não
tiveram impactos negativos, pelo contrário há notável avanço social democrático, e.g,
o voto de todos os cidadãos, independentemente de raça, origem, sexo ou cor.
Nesse sentido as redes sociais ganharam destaque, uma vez que proporcionou
aos cidadãos uma forma de participação virtual, inibindo, assim, a questão geográfica.
Todavia, antes de adentrarmos em como as redes socias proporcionaram uma
interação horizontal, é importante conhecer como se deu o processo comunicacional
do ser humano.

1.1 DA ORIGEM COMUNICACIONAL AS REDES SOCIAIS

Hoje é fácil pensarmos em comunicação, podemos usar smartphones,


computadores, notebooks entre tantos outros aparelhos eletrônicos utilizados para
nos comunicarmos, todavia nem sempre foi assim, o processo de comunicação está
ligado a evolução humana, a fala como conhecemos hoje é apenas um dos meios
mais utilizados. No entanto antes de se utilizar a fala os seres humanos se
comunicavam por sinais, gestos, expressões faciais dentre outros meios, sendo certo
que com o passar do tempo e com o aumento dos povos, se fez necessário o
aprimoramento da comunicação entre os indivíduos, surgindo, assim, a fala
(linguagem- maneira de exprimir-se)1.
A evolução da raça humana contou com diversos meios, além da comunicação,
para o processo civilizatório, como a criação de ferramentas para caça, a pictografia,
o cultivo de ervas e a domesticação de animais.

Os historiadores chamaram o período inicial da vida humana de Idade da


Pedra Lascada ou Paleolítico, um termo que significa ‘pedra antiga’. Mas

1
BEZERRA, Eudes Vitor. Redes sociais na participação democrática: desafios
contemporâneos na efetivação dos direitos do e-cidadão - Programa de Estudos Pós- 148 Graduados em Direito / Eudes
Vitor Bezerra. São Paulo, 2016. p. 17.
352

o ser humano fez muito mais do que lascar pedra. Ele usou também osso,
fabricou ferramentas e armas eficientes, descobriu técnicas de caça e
pesca, aprendeu a reconhecer vegetais comestíveis, produziu artes,
construiu tendas etc. Por milhares de anos, pequenos grupos paleolíticos
se espalharam por todos os continentes, lutando para suprir suas
necessidades básicas de sobrevivência.2

Na esteira do desenvolvimento comunicacional, há em um dado momento que


apenas saber criar ferramentas, transmitir mensagens através de desenhos em
rochas ou ate mesmo conhecer ervas não foi o ponto crucial para a evolução da
espécie, mas sim a organização do pensamento que se dá por meio da lógica, em
especial na linguagem, quando o ser humano aprende a organizar o pensamento para
formar signos que resultam em sons. Assim a lógica foi a base para a criação da
civilização ocidental, ocasionando, assim, a organização do Estado.
A lógica, portanto, é um instrumento para se pensar corretamente, ou seja, a
ferramenta do bem pensar, da qual afirmamos que somente podemos pensar e falar
sobre algo, porque existe a correlação entre a linguagem e a lógica3.
Nesse sentido Aristóteles afirma:

Como costumamos dizer, a natureza nada sem um propósito, e o homem


é o único entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples
voz pode indicar a dor e o prazer, e outros animais possuem (sua natureza
foi desenvolvida somente até o ponto de ter sensações do que é doloroso
ou agradável e extremá-las entre si), mas a fala tem a finalidade de indicar
o conveniente e o nocivo, e portanto também o justo e o injusto; a
característica especifica do homem em comparação com os outros
animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e
do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com
tal sentimento que constitui a família e a cidade. 4

Aprimorado, portanto, a comunicação com a lógica, temos um grande avanço


em todas as áreas do pensamento, ou seja, a criação de diversas ciências se deu
através do pensamento lógico. Não obstante o processo de comunicação seguiu em
constante evolução, proporcionando assim uma comunicação mais coerente e
racional.
O processo evolutivo da comunicação que passou dos signos, sons, escrita,
tipografia móvel após a revolução industrial; publicação em massa; e-mails, chega
finalmente as redes socias no século XXI.
A revolução tecnológica argumenta Eudes Vitor Bezerra:

[...]a revolução tecnológica mudou expressivamente os padrões culturais


relacionados à comunicação, mudando, também, a forma como as
pessoas manifestam suas insatisfações, pois voltam contra o injusto,
insurgem-se com a norma arbitraria.5

Assim, desde sua gênese o processo comunicatório foi base para as mudanças
que acompanharam os seres humanos ao longo dos séculos, pilar para o processo
2
LIMA, 1989, p. 9 apud BEZERRA, 2016, p.16.
3
BEZERRA, op. cit., p.18.
4
ARISTÓTELES. Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1995. p. 1253a.
5
BEZERRA, Eudes Vitor. Redes sociais na participação democrática: desafios
contemporâneos na efetivação dos direitos do e-cidadão - Programa de Estudos Pós- 148 Graduados em Direito / Eudes
Vitor Bezerra. São Paulo, 2016. p.87
353

civilizatório é parte da história da humanidade, bem como a revolução tecnologia, que


proporcionou as novas formas de manifestações através das redes sociais pelos e-
cidadãos.

2. REDES SOCIAIS E A INTERAÇÃO HORIZONTAL

As redes sociais como o processo de comunicação acima exposto, sofreu


processo evolutivo. Nos anos 80 aconteceu o primeiro envio de e-mail, a criação do
primeiro telefone celular nos EUA, sendo que já em 1965 foram lançados os primeiros
satélites de comunicação, inaugurando uma nova era de transmissão de dados
eletrônicos.
Esse movimento proporcionou uma amplitude nos meios de informação nunca
antes vistos, agora com um apertar de teclas você se comunicava com pessoas de
outras partes do mundo e, tudo isso afetou significativamente, e.g, a economia que se
beneficiou enormemente com a revolução tecnológica; proporcionando a expansão
de mercados internacionais, marcas e logotipos que se instalaram pelo mundo.
Nesse diapasão, Eudes Vitor Bezerra conceitua redes sociais como:

[...]conjunto de sistemas digitais, utilizados por indivíduos de maneira


centralizada, o que permite uma significante interação interpessoal, já que
compartilham ideias, divergências, fotos, vídeos, dentre outros conteúdos.

Posto isto, não fica difícil perceber que as redes socias serviram como
ferramenta para a participação popular poder ganhar um novo meio de participação,
através desta os usuários compartilham seus sentimentos, angustias, felicidades e
opiniões a respeito de movimentos sociais e políticos.
Plataformas virtuais de comunicação e interação em massa como o Facebook,
Instagram e o Twitter propagam informações em tempo real, esses sites de
comunicação são instrumentos poderosos na mão da população, visto que no estado
democrático de direito a principal forma de participação é através do voto e, esse
movimento que resulta na criação das redes sociais é a oportunidade que o cidadão
agora e-cidadão precisava para se manifestar contra as decisões do governo, houve,
portanto, uma revolução na forma participativa, qual seja a interação horizontal.
Percebe-se, portanto, que com a chegada das “social networks”6 o, então, e-cidadão
tem a possibilidade de participar e acompanhar ativamente as propostas e rumos
políticos do seu país.
Está, assim, desmoronando a relação verticalizada, ou seja, uma minoria
decidindo os rumos sociais e em contrapartida uma grande massa submetida aos
desejos destes.
O acesso a internet modificou substancialmente a forma com que as pessoas
interagem umas com as outras, surgem com as novas tecnologias a Geração Z, onde
a grande sacada dessa geração é zapear. Daí o Z7 . A característica dessa geração é
a facilidade com que se movimentam entre as tecnologias, da internet para o celular,
do celular para o tablet e PC, bem como a fluidez em sua visão de mundo que muda
em pouco tempo influenciados pelas redes sociais.
Essa geração é diferente da geração do seus pais que cresceram em um
ambiente onde a comunicação se dava através da fala ou escrita, hoje os Z com
facilidade manuseiam televisão, internet, radio, telefone e música sem dificuldades,

6
Redes Sociais.
7
BEZERRA, Eudes Vitor. Redes sociais na participação democrática: desafios contemporâneos na efetivação dos
direitos do e-cidadão - Programa de Estudos Pós- 148 Graduados em Direito / Eudes Vitor Bezerra. São Paulo, 2016. p.94
354

não existe assim barreiras para essa geração, pois as redes sociais proporcionaram
acesso global.
A grande conquista que essa geração obteve foi na forma como se manifestam,
imaginava-se que ficariam atrás de telas de computadores e smartphones
desapegados de interesses sociais e políticos. Todavia, provaram que com apenas
alguns clicks enviam mensagens instantâneas através do Facebook, Instagram ou
Twiter e marcam manifestações nas avenidas e ruas de todas as cidades do Brasil;
em são Paulo o lugar onde mais acontecem esses encontros são na Avenida Paulista
(polo econômico do país).
O que se observa é como essa relação e-cidadão e redes socias tem provocado
mudanças de cunho político no país, e.g, o impeachment de Dilma Roussef em 2016
que mobilizou milhões de pessoas através das redes sociais a comparecem às ruas
para se oporem ao governo do PT8.
Evidente, pois, que as redes socias inflaram as manifestações, contribuíram
para a mudança de políticos e, tudo isso através de um processo democrático.
Outro movimento importante que surge através das redes sociais são os Smart
Mobs, pessoas que cooperam entre si mesmo não se conhecendo para fazerem
manifestações de cunho político.

Smart mobs é o termo criado por H Rheingold (2002) para descrever as


“novas” formas de swarming usando tecnologias móveis como celulares,
com voz e SMS, pages, internet sem fio, blogs, etc. Os objetivos são os
mais diversos. Para Rheingold, as Smart Mobs “consist of people who are
able to act in concert even if they don´t know each other. The people who
make usp smart mobs cooperate in ways never before posssible because
they carry decives that possess both communication and computing
capabilities” (Rheingold, 2002, p. xii). 9

Nesse sentido, há tantas outras manifestações que surgiram como e.g, a


“jornada de 2013” que resultou na mobilização de milhões de pessoas que sairam nas
ruas em um só clamor, para reivindicar o aumento abusivo dos transportes públicos.
Todavia, o importante não está no motivo das manifestações, mas sim em como as
redes sociais impactaram nessas manifestações e como a relação entre e-cidadão e
Estado tem mudado.
O tema principal em questão está em saber o verdadeiro e principal papel das
redes sociais como agente de democratização, em como a interação entre e-cidadão
e Estado tem se alterado.

Boa parte da literatura sobre democracia digital reconhece o potencial de


interação horizontal em massa das novas tecnologias da informação e
comunicação (TICs). Esse otimismo faz com que pesquisadores vejam a
internet como oportunidade para a revitalização da democracia (ciber-
democracia/democracia-participativa/), horizontal, independentemente
das grandes estruturas políticas e organismos de comunicação de
massas, tornando o Estado mais ágil, transparente e próximo do cidadão 10

Observa se, portanto, que as redes socias desempenham papel fundamental


nos dias atuais, que com as tecnologias de comunicação em massa o Estado tende a

8
Partido dos Trabalhadores
9
LEMOS, André. Cibercultura e Mobilidade: a Era da Conexão. Revista Razón y Palabra. Disponivel em:
http://www.razonypalabra.org.mx/ateriores/n41/alemos.html>. Acesso em: 30 set. 2018.
10
CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003. p. 104
355

ser mais flexível em suas tomadas de decisões, mostrando, desse modo, que a
interação cidadão/e-cidadão e Estado, torna-se horizontal.

CONCLUSÃO

A democracia está em constante evolução, assim é certo que ao longo desses


anos ela vem se aperfeiçoando e proporcionando aos cidadãos direitos que hoje são
fundamenteis.
Em conjunto com o estado democrático de direito, evolui as tecnologias,
permitindo uma interação entre cidadão/e-cidadão e o Estado, sendo que essa
aproximação é possível graças as redes socias que permite uma comunicação
instantânea.
Esse mecanismo que aproximou o popular do Estado tem pressionado os
governos a serem mais flexíveis, visto o poder de propagação a rede de internet
proporciona. Esse poder que hoje é uma realidade tem possibilitado a inversão na
forma de interação, que hoje, podemos dizer ser horizontal.
A importância dessa mudança é visível, já que as manifestações acontecem
em diversas partes do país, mostrando que as tecnologias de comunicação não só
vieram para ficar, como para mudar o sistema político participativo.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Política: os pensadores. São Paulo: Nova Cultura. 1999.


BEZERRA, Eudes Vitor. Redes sociais na participação democrática: desafios
contemporâneos na efetivação dos direitos do e-cidadão - Programa de Estudos
Pós-
148 Graduados em Direito / Eudes Vitor Bezerra. São Paulo, 2016. Disponível em:
https://tede2.pucsp.br/handle/handle/19403. Acesso em: 30 set. 2018.
CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios
e a
sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LEMOS, André. Cibercultura e Mobilidade: a Era da Conexão. Revista Razón y
Palabra. Disponível em:
http://www.razonypalabra.org.mx/ateriores/n41/alemos.html>. Acesso em: 30 set.
2018.
356

FEDERALISMO E O PACTO FEDERATIVO BRASILEIRO


FEDERALISM AND THE BRAZILIAN FEDERATIVE PACT

Thiago Henrique da Silva Barros

Resumo: Aos trinta anos de existência, a Constituição da República Federativa do


Brasil ainda enfrenta diversos ataques, especialmente em relação ao pacto federativo.
No entanto, para entender a crise protagonizada por esta clausula pétrea é necessário
compreender como o federalismo surge e, após, analisar a construção do modelo
federalista brasileiro a fim de nortear as discussões do cenário atual quanto às
violações ao pacto federativo. Em tempo, no atual cenário de violação ao pacto,
discute-se um projeto de emenda constitucional que visa congelar os gastos públicos,
medida que iria de encontro à autonomia dos entes federativos, a repartição de
competência e aos limites do poder central.
Palavras-chave: Pacto Federativo; Federalismo; Constituição da República de 1988.

Abstract: Thirty years of existence, the Constitution of the Federative Republic of


Brazil still faces several attacks, especially in relation to the federative pact. However,
in order to understand the crisis carried out by this stony clause, it is necessary to
understand how federalism arises and then analyze the construction of the Brazilian
federalist model in order to guide the discussions of the current scenario regarding
violations of the federative pact. In time, in the current scenario of violation of the pact,
a draft constitutional amendment is discussed that aims to freeze public spending, a
measure that would meet the autonomy of the federative entities, the distribution of
competence and the limits of central power.
Keywords: Federative Pact; Federalism; Constitution of the Republic of 1988.

INTRODUÇÃO

Aos trinta anos de existência, a Constituição da República Federativa do Brasil


ainda enfrenta diversos ataques, especialmente em relação ao pacto federativo.
Apesar de em sua origem possuir raízes norte-americanas, o federalismo
brasileiro possui uma sistemática exclusiva. A organização dos seus entes e a
distribuição de competências corroboram para um modelo específico de federalismo.
Para entender a crise protagonizada pelo pacto federativo é necessário
compreender como o federalismo surge e, após, analisar a construção do modelo
federalista brasileiro a fim de nortear as discussões do cenário atual quanto às
violações ao pacto federativo.

FEDERALISMO: CONCEITO E ORIGEM

O termo federação se origina na palavra latina foedus, que significa aliança,


pacto, união. Por Federação compreende-se a forma de organização de Estado
politicamente descentralizada (PUCCINELLI JÚNIOR, 2013, p. 245).
Se fossemos recorrer ao dicionário, federalismo é tido como "uma forma de
governo em que vários estados se reúnem numa só nação, sem perda de sua
autonomia fora dos negócios de interesse comum" (AURÉLIO, 2018).
Em regra, a Federação é uma forma de organização do Estado que se origina
pela união indissolúvel de vários Estados diferentes que renunciam sua soberania em
prol de um Estado central, dotado de soberania e personalidade política internacional.
357

Ingressar em uma Federação é um ato de soberania que os Estados podem


praticar, mas, quando isso ocorre, pode-se dizer que essa é a última decisão soberana
do Estado (DALLARI, 2011).
Não há como falar de Federalismo sem tratar sobre o pioneiro deste modelo de
Estado, os Estados Unidos da América.
A ideia de Federalismo teve sua gênese no século XVIII, após a Guerra da
Independência (1775-1783), travada pelas treze colônias americanas em face da
coroa britânica. Findada a Guerra dos Sete Anos, protagonizada por franceses e
ingleses, estes iniciaram um arrocho ao pacto firmado com as treze colônias, pois
precisavam cobrir as despesas da guerra. Tal ato abalou a relação entre a coroa
britânica e as colônias, ensejando a realização da Convenção da Filadélfia, em 1774,
onde foram discutidas medidas para frear os abusos ingleses. Neste primeiro encontro
decidiu-se pelo fechamento do comércio com a coroa britânica.
As tensões não cessaram, sendo necessária a realização da segunda
Convenção da Filadélfia, em 1775, na qual o colono Thomas Jefferson apresentou
uma proposta de separação da metrópole, redigindo a declaração da independência.
Em 1776 as treze colônias vieram a conquistar efetivamente sua independência,
tornando-se Estados soberanos, mas só em 1781 foi assinado um tratado que
institucionalizou a união sólida entre eles. Surge assim a "Confederação dos Estados
Americanos" (PUCCINELLI JÚNIOR, op. cit., p.448).
Entretanto, a Confederação mantinha o caráter de soberania dos Estados, sob
esta garantia estes entes não se sujeitavam às decisões emanadas do poder central,
recebendo-as como meras sugestões.
Neste período políticos de expressão como Alexandre Hamilton, James
Madison e John Jay começaram a idealizar o modelo Federativo como forma de
organização estatal, mediante o iminente fracasso do modelo confederativo.
Os "Federalistas", como eram conhecidos os políticos supracitados,
acreditavam que apenas um poder central soberano, gerido por um governo popular,
poderia alcançar os anseios da união. Seus ideais foram propagados por meio de
artigos publicados em jornais no Estado de Nova Iorque.
Para melhor ilustrar os objetivos defendidos pelos federalistas, pede-se vênia
para transcrever um breve excerto colhido do livro O Federalista, de autoria de
Alexandre Hamilton (2005):

Proponho-me a discutir, em uma série de artigos, os seguintes temas de


grande interesse: A utilidade da União para a vossa prosperidade política;
A insuficiência da atual confederação para preservar essa União; A
necessidade de um governo pelo menos com vigor similar ao do proposto
para atingir tal objetivo; A conformidade da Constituição proposta com os
verdadeiros princípios do governo republicano; Sua analogia com a
Constituição de vosso próprio estado-membro; e, finalmente, a segurança
adicional que a sua adoção propiciará à preservação desta forma de
governo, à liberdade e à prosperidade.

Estas publicações sedimentaram as bases do primeiro Estado Federal do


mundo, cuja institucionalização se deu na terceira Convenção da Filadélfia, em 1787,
convocada com o objetivo de rever os "Artigos da Confederação", acabou resultando
na criação da primeira e única Constituição dos Estados Unidos da América,
estruturada sobre os pilares do sistema federalista.
Cabe destacar algumas diferenças entre o modelo de Confederação e
Federação, a primeira delas se deve a sua forma de constituição, aquela se dá por
meio de um tratado, já está se institui através de uma constituição. Outra importante
358

diferença destaca-se sobre as características dos estados-membros, na confederação


os estados são autônomos e soberanos, em contrapartida na federação os estados-
membros abdicam da sua soberania, sendo esta exercida por um Estado central, no
entanto continuam sendo autônomos. Devida à soberania dos estados-membros, no
modelo confederativo permite-se a dissolubilidade do pacto, em contrário no modelo
federativo o pacto é indissolúvel, em detrimento da renúncia da soberania dos entes
federativos.
Atualmente, inúmeros Estados adotam a forma federativa, como exemplos têm:
Argentina, Canadá, Alemanha, México e Brasil, sendo este um modelo de federalismo
com características singulares e excepcionais.

FEDERALISMO BRASILEIRO

A formação por agregação ocorrida nos Estados Unidos da América diferencia-


se da ocorrida no Brasil, em que o Estado Unitário subdividiu-se, caracterizando um
modelo de desagregação. Outros fatores que distanciam os dois modelos federalista
são quanto à concentração de poder e a sistematização da repartição de
competências, o Federalismo Norte-Americano estabelece um modelo centrípeto de
concentração de poder, junto ao modo assimétrico de repartição de competências. O
Brasil adota um modelo centrífugo de concentração de poder, promovendo mais
autonomia aos estados, tal meio possibilita uma distribuição de competências
simétrica.
Os ideais federalistas chegaram ao Brasil no século XIX, trazidos pelo jurista
Rui Barbosa.
Em 1889, por meio do decreto nº 1, o federalismo registrou sua primeira
aparição na Carta Brasileira, posteriormente a Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, trouxe uma tríplice
mudança: "[...] a forma de Estado passa de unitária a federal, a forma de governo de
monarquia a republicana, o sistema de governo transforma-se de parlamentar [...] em
presidencial. [...]" (BITAR, acesso em: 24 set. 2018).
Em primeiro momento o Estado adotou o modelo federal dualista clássico, em
que havia pouca ou nenhuma cooperação entre os entes federados. No entanto, a
Constituição de 1934 ampliou a cooperação entre os entes federativos, dando uma
maior ênfase á solidariedade entre a União e os Estados-membros.
A Carta Política de 1937, outorgada pelo Presidente Getúlio Vargas, trazia um
federalismo meramente nominal, onde o Presidente tinha em suas mãos os poderes
Executivo e Legislativo, além da prerrogativa de reformar decisões judiciais que não
fossem do seu agrado. Assim, embora formalmente federal, a forma de Estado foi,
realmente, unitária (TEMER, 2008).
Em 1946, com o fim do Estado Novo, deu-se ensejo á promulgação de uma
nova Constituição que concernente ao tema do federalismo, adotou-se o tipo
cooperativo, confirmando a tendência estabelecida pela Constituição de 1934.
A Constituição de 1946, entretanto, teve vida curta. Com o golpe de 1964,
iniciou-se um processo que culminou com a outorga, pelo regime militar, da Carta de
1967, e posteriormente da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, as quais mantinham
o federalismo apenas de forma nominal, centralizando, novamente, o poder na União
(SILVA, 2005).
Nota-se que o Brasil teve sérias dificuldades para aplicar o modelo de Estado
idealizado pelos norte-americanos, sofrendo ao longo da sua história e,
principalmente, em suas Cartas Políticas, momentos de centralização e
359

descentralização de poder que escora-se nos resquícios do imperialismo que ainda


permeavam os costumes desta nação.
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro
de 1988, superou a rotulada "crise do federalismo brasileiro". Esta Carta Política
representou a volta do regime democrático e a cristalização do modelo federalista,
conforme dispõe seu artigo 1º: "A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito [...]" (CF/88).
Constata-se neste artigo uma particularidade referente ao conceito lógico-
jurídico de federação, esta reside na inclusão do Município na Federação1.
Outra característica dos Municípios é que estes não possuem
representatividade no Poder Central, uma vez que o sistema é bicameral, sendo a
Câmara dos Deputados formada por representantes do povo, eleitos conforme a
proporção de habitantes em cada Estado, e o Senado Federal, por representantes,
somente, dos Estados e do Distrito Federal.
Conforme orientação do Supremo Tribunal Federal, a Constituição do Brasil,
ao institucionalizar o modelo federal de estado, perfilhou, a partir das múltiplas
tendências já positivadas na experiência constitucional comparada, o sistema de
federalismo de equilíbrio, cujas bases repousam na necessária igualdade político-
jurídica entre as unidades que compõem o Estado Federal2.
Todavia, os Municípios recebem competências próprias, possuem autonomia e
podem se auto-organizar-se por meio de lei orgânica, características comuns do
federalismo. Logo, o fato de ser representado no Senado Federal não podem afastá-
los da integração federativa.
Consolidando este entendimento, o constituinte de 1988 ratificou o caráter
federativo dos Municípios, bem como a autonomia entre os entes, ao estabelecer a
organização político-administrativa da República Federativa do Brasil3.
Impende analisar que o modelo federativo possui características essenciais
como a rigidez constitucional; descentralização política ou repartição de
competências; possibilidade de auto-organização por uma constituição própria;
indissolubilidade do vínculo; participação da vontade dos membros e a existência de
um tribunal constitucional, que proporcionam sua conceituação e aplicação.
Para o exercício de um modelo federativo de Estado não basta só a existência
de uma Constituição, é necessário que esta seja escrita e rígida, de modo que evite
mudanças de critérios estabelecidos pelo pacto federativo.
Entende Michel Temer que essa rigidez deva chegar ao seu grau máximo, de
modo a clausular o pacto federativo em uma cláusula pétrea, impedindo que quem
exerce a competência reformadora venha a abolir o sistema federalista (TEMER. op.
cit. p. 64).
Este requisito é garantido pela Constituição de 1998, como se verifica no artigo
60, § 4, inciso I.
Outra característica do Estado Federal está em sua indissolubilidade, aspecto
que o distancia de uma confederação, conforme nos ensina Sampaio Dória:
1
Referente à inclusão dos Municípios no rol de entes federativos, existem divergências doutrinárias. José Afonso da Silva anota
que o Município integra a Federação brasileira, mas não é parte essencial desta (SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo. 24 ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 409). De outro vértice, Luiz Alberto Davis Araujo defende que o
município é sim um ente federativo, visto que "recebe competências próprias, tem autonomia e pode auto-organizar-se por meio
de lei orgânica. De todas as características comuns do Federalismo, o Município só não possui a faculdade de fazer-se
representar junto ao Senado Federal, mas tal traço não pode afastá-lo da integração federativa" (ARAUJO, Luiz Alberto David;
JUNIOR NUNES, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 20ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Verbatim, 2016, p. 335).
2
verbi gratia o voto do Min. Celso de Melo, veiculado na Ação Direta nº 939-7-DF, publ. DJU de 18.03.1994.
3
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. (CF/88).
360

A soberania, sendo, como é, poder supremo, comporta o direito de


secessão, e, pois, o desmembramento da pátria comum, ou da União,
agrado dos estados associados. A autonomia, não. Na federação, os
estados-membros são autônomos, jamais soberanos.

A respeito da participação da vontade dos membros, o Brasil apresenta uma


anomalia ao modelo federativo, já abordada no presente estudo. Todavia, cabe
ressaltar que adotou-se o modelo bicameral no poder legislativo, onde temos os
representantes do povo compondo a Câmara dos Deputados e os representantes dos
membros federativos compondo o Senado Federal, com exceção do município.
A repartição de competências é um elemento basilar de um Estado Federal,
segundo Raul Machado Horta "[...] é encarada como a 'chave da estrutura do poder
federal', 'o elemento essencial da construção federal', a 'grande questão do
federalismo', o 'problema típico do Estado Federal'.", preceitua ainda que "A
importância da repartição de competências reside no fato de que ela é a coluna de
sustentação de todo o edifício constitucional do Estado Federal." (HORTA, 2003).
Umas das principais mudanças trazidas pela Carta de 1988 foi em relação ao
modelo de repartição de competências, aspecto elementar do modelo federalista, que
caracteriza um modelo. O atual sistema de repartição de competências é um tanto
quanto complexo, pois reúne critérios horizontais e verticais de partilhas, cabendo
ainda a delegação de competências pela União aos Estados-membros.
O critério horizontal trata das competências privativas, quando enumerada
como própria de uma entidade com possibilidade de delegação ou competência
suplementar, e exclusivas, quando são atribuídas a uma entidade com exclusão das
demais. O legislador optou pela enumeração das competências federais e municipais,
sendo as residuais de competências dos demais membros.
Basicamente, as competências privativas da União estão enumeradas nos
artigos 21 e 22, as municipais encontram-se arroladas no artigo 30 e as estaduais no
artigo 25, todos da Constituição Federal de 1988.
O critério vertical diz respeito à possibilidade de certas competências serem
exercidas por mais de um ente federativo. Neste critério encontramos duas formas de
partilha de competências, a primeira, competência comum, admite que todos os entes
exerçam indistintamente a competência que lhes foi simultaneamente atribuída, a
segunda, competência concorrente, especifica o nível de intervenção de cada ente.
Estas competências estão previstas nos artigos 23 e 24, respectivamente.
Um problema que está intimamente ligado à repartição de competências é a
repartição constitucional de renda. Sobre o dilema, discorrem Luiz Alberto David
Araújo e Vidal Serrano Nunes Junior (2016):

Muitas vezes, a carta Magna defere aos entes federados tarefas


consubstanciadas nas mais variadas competências. São encargos que
devem ficar sob a responsabilidade dos Estados-membros. A entrega de
tais tarefas deve vir acompanhada de renda suficiente para que os
Estados-Membros possam desempenhar os encargos recebidos. O
mesmo ocorre com a União, se tem encargos, deve ter renda própria.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho corrobora o entendimento supracitado (2012):

[...] a existência real da autonomia depende da previsão de recursos,


suficientes e não sujeitos a condições, para que os Estados possam
desempenhar suas atribuições. Claro que tais recursos hão de ser
correlativa a extensão dessas atribuições. Se insuficientes ou sujeitos a
361

condições, a autonomia dos Estados-membros só existirá no papel em


que estiver escrita a Constituição. Daí o chamado problema da repartição
de rendas.

Neste sentido, temos uma evolução na Constituição de 1988, esta elencou as


competências tributárias e os orçamentos de cada ente federativo, a partir do artigo
145. Além das competências, a referida Carta trata da capacidade de todos os
entes para instituir impostos, taxas e contribuições de melhoria, discriminando,
também, os impostos referentes a cada ordem federativa, artigos 153 a 156,
estabelece ainda um sistema de repartição das receitas tributárias, artigos 157 a 162,
onde foi criado um mecanismo de cooperação financeira entre as ordens federais.
A Carta vigente também ratifica alterações feitas por outras Cartas Políticas ao
Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal (FPE), e ao Fundo de
Participação dos Municípios (FPM), que constituem meios de transferência de
recursos financeiros da União para os estados e municípios, previstos no artigo 159
da Constituição Federal de 1988.
A repartição de competências é um aspecto do Estado Federal que visa
fomentar a igualdade entre os entes, todavia, com fulcro na análise sobre o modelo
federalista adotado pelo Brasil, concluímos que a aludida premissa não só é
relativamente ignorada, mas também fere o princípio da dignidade da pessoa humana.
Ao explorar a Constituição, notamos que a “divisão” de competências e rendas
ao invés de proporcionar a isonomia entre os entes confere uma supremacia relativa
a União. Em detrimento desta, os entes mais próximos dos anseios da sociedade
sofrem problemas maiores por não possuírem recursos.
Consequentemente, a má distribuição de renda e de competências fere de
forma grosseira os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais
sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento
nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Por fim, a Constituição da República Federativa do Brasil institui um modelo de
federalismo excepcional, com suas particularidades e anomalias. Nestas, temos entes
federativos relativamente autônomos, que podem se auto-organizar e terem
constituição própria, no entanto são reféns de uma distribuição desigual de renda e
competências, onde aquelas os tornam prisioneiros de tributos no qual seu
inadimplemento ameaça sua autonomia.

CONCLUSÃO

A Constituição Federal de 1988 adotou o modo cooperativo de repartição de


competências. Este modo pressupõe uma atuação conjunta entre os entes federados,
um aspecto sine qua non para a caracterização do modelo federalista.
No entanto, o maior questionamento ao Pacto Federativo refere-se a
concentração de poder. Após a "crise federalista" (1891-1988), a presente Carta
Magna idealizou um federalismo de equilíbrio, estabelecendo competências e
garantias tributárias aos entes, proporcionando assim uma forma de Estado
harmônica.
Todavia, tem-se um novo cenário de violação ao pacto, em que se discute um
projeto de emenda constitucional que visa congelar os gastos públicos, medida que
iria de encontro à autonomia dos entes federativos, a repartição de competência e aos
limites do poder central.
362

Assim, resta claro que o pacto federativo, ora protegido como clausula pétrea,
não possui segurança jurídica solida. Tal situação comprova-se pelos inúmeros
projetos de lei, atos administrativos e medidas diversas que contribuem para a
deturpação do nosso modelo federativo.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Luiz Alberto David; JUNIOR NUNES, Vidal Serrano. Curso de Direito
Constitucional. 20ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Verbatim, 2016.
HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4ª ed. rev. e atual. Belo Horizonte:
Editora DelRey, 2003.
CHEVALLIER, Jacques. O Estado de Direito. Trad. Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo
e Augusto Neves Dal Pozzo. Col. Fórum Brasil - França de Direito Público; 2. Belo
Horizonte: Editora Fórum, 2013.
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 22ª ed. 2ª tiragem. São Paulo:
Malheiros Editores LTDA, 2008.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
PUCCINELLI JÚNIOR, André. Curso de Direito Constitucional. 3ª. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013.
HAMILTON, Alexandre; JAY, John; MADISON, James. O Federalista. 2. ed. São
Paulo: Russel, 2005.
DÓRIA. Antônio de Sampaio. Direito Constitucional. 5ª. ed. São Paulo: Max Limonad,
1962.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38. ed. rev. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 30. ed. Saraiva: São
Paulo, 2011.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24 ed. São Paulo:
Malheiros, 2005.
363

NEGLIGÊNCIA DO ESTADO NA EFETIVAÇÃO DE MEDIDAS PREVENTIVAS


DESTINADAS Á VIOLÊNCIA DE GÊNERO
NEGLIGENCE OF THE STATE IN THE EFFECTIVENESS OF PREVENTIVE
MEASURES FOR GENDER VIOLENCE

Lídia Megale Campi Rossi Leitoguinho


Isabela Arcanjo Teixeira

Resumo: O presente trabalho tem como objeto criticar a conduta do Estado na


realização de medidas punitivas no âmbito da violência contra mulher. Pela
perspectiva do Direito Constitucional, tendo foco em Direitos Fundamentais, é
necessário ressaltar a falta de efetivação de medidas preventivas, considerando
encadeamento histórico que gera a violência de gênero. Além disso, a abordagem na
matéria de Direito Penal deverá levar em consideração o seu real objetivo, que é trazer
uma igualdade material nas relações de gênero, sendo dever do Estado cientificar e
introduzir na sociedade o motivo de criações das leis, não omitindo o contexto atual e
contínuo de violência contra mulher.
Palavras-chave: Igualdade; Violência de gênero; Mulher.

Resume: This article’s object is to criticize the State’s behavior about the effectiveness
of preventive measures for gender violence. Through the perspective of the
Constitutional Law, focusing in the Human Rights, it’s imperative to emphasize the lack
of effective preventive measures, considering the historical chaining that leads to
gender violence. Furthermore, the approach in Criminal Law must consider its real
goal, which is to bring material equality into gender relationships, being State’s duty to
notify and introduce the law’s reason of creation, in the society, not neglecting the
actual and continuous context of gender violence.
Keywords: Equality; Gender violence; Woman.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A mulher sempre foi tratada na história como uma figura secundária da


composição social, tornando-se alvo de distintas opressões, devido a uma sociedade
dominada por pensamentos patriarcais, sendo estes definidos por um protagonismo
masculino e a necessidade de dominação do sexo oposto.
O patriarcalismo, embora nada comprovado, mostra-se forte e incidente desde
os tempos bíblicos, no qual as mulheres passaram por constantes privações dos seus
direitos, de sua liberdade. A religião, com o forte poder e incidência da Igreja Católica
nos Estados, fez a imagem da mulher como o espelho do homem, devendo ser
submissa e respeitar os seus desejos por ser o chefe da casa.
Angela Yvonne Davis, professora e filósofa, acredita que a ideologia dominante
do homem em relação a mulher tem-se pela visão da figura feminina como sinônimo
de "mãe", "dona de casa", na qual criava-se um mito e uma hierarquia de gênero em
que ela era tida como inferior. Além do que, a filósofa aponta que tais características
reconhecidas na mulher são, de fato, um processo histórico de hierarquização e não
uma condição física, especificamente.
Na sua obra "Mulheres, Raça e Classe", Davis, retrata o período da escravidão
e aponta a objetificação da mulher negra de acordo com a conveniência. Para os
senhores, quando o assunto era mão de obra, elas exerciam as mesmas funções que
os homens, portanto eram desprovidas de gênero. Em contrapartida, quando se
364

tratava de punição, elas sofriam os mesmos castigos que os homens e depois eram
estupradas, para serem reduzidas a posição de fêmeas. Isto demonstra, de forma
clara, a mulher como objeto de dominação.
Em suma, mulheres sempre foram sexualizadas e vistas como mera extensão
do homem, e esta imagem, por mais retrógrada que pareça ser, uma vez que o gênero
feminino esteja ocupando o seu lugar na sociedade, ainda está longe de ser
desconstruída. Analisando a atual conjuntura social, é notório a luta incessante pela
visibilidade feminina, visto que, a ideologia patriarcal não reconhece a mulher como
ser capaz de realizar as mesmas condutas que o homem.
Portanto, mulheres só são vistas quando a voz destas ecoam por meio de
índices de violência altíssimos por conta de uma sociedade crescida em cima de
oportunismos. Ademais, toda a trajetória pela emancipação feminina gerou
consequências fortes, como o direito ao voto, que foi uma das suas maiores
conquistas; a lei do divórcio; e a separação do CPF, os quais são os maiores marcos
da saída da mulher do estado de tutela do sexo masculino.
É dever do estado interferir nas relações sociais para prevalecer a igualdade
de gênero e fazer valer dignidade humana, que é a base dos direitos fundamentais
previstos na Constituição da República do Brasil. Entretanto, esta imagem se distorce
no momento que o Estado realiza leis de caráter punitivo, mas não buscar instruir a
população sobre os motivos destas leis estarem sendo necessárias.
Por mais que seja evidente a opressão que a mulher sofre, a violência está
acentuadamente institucionalizada que a população não consegue identificar que se
fazem necessárias medidas direcionadas, apenas, às mulheres. Não obstante, é
necessário que o Estado assuma uma posição crítica e passe a estabelecer medidas
preventivas e não somente punitivas para instruir e remediar o nível de casos e
restruturar a sociedade para enxergar a mulher como sujeito absoluto de direito
passível de ocupar qualquer lugar na sociedade.
Diante disso, esse resumo pretende demonstrar que, na sociedade brasileira
atual, mesmo com leis especiais e tentativa no judiciário de agravar penas e punir
crimes de gênero, a causa deve vir antes da consequência, sendo fundamental maior
prática de políticas públicas e medidas que atenuem o número de casos de violência
de gênero.

2. NOÇÕES GERAIS

O Brasil, fazendo uma análise a partir da evolução histórica, desenvolve-se


como um país violento e intolerante, onde todo e qualquer problema deva ser resolvido
de maneira judicial. Percebe-se tal costume pelo extenso número de leis destinadas
aos mais diversos problemas sociais, como tentativa de solucionar impasses diários.
A violência de gênero se perpetua de inúmeras maneiras, podendo ser física,
psicológica, sexual, institucional, ocorrendo em âmbitos públicos ou familiares.
Como resultado de um longo processo histórico feminino de luta em relação à
violência contra as mulheres, no Brasil, reivindicações constantes pela igualdade de
gênero, tendo como base o proposto na Constituição Federal, levaram à criação de
leis específicas pelo Legislador, como uma tentativa de responder à sociedade. Leis
como Maria da Penha e Lei do Feminicídio, trazem em seu texto marcas de embates
constantes e tentativa de diminuir a insegurança diária, da mulher.
Analisando, especificamente, a violência contra a mulher e trechos da Lei Maria
da Penha, nota-se que, esta prevê medidas integradas de proteção, "por meio de um
conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
365

Municípios e de ações não-governamentais", porém não são, de fato, colocadas em


prática. A mera criação de uma lei visando a proteção da mulher, não atinge tal
resultado.

2.1. VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL

A figura desigual de Estado e cidadão, estando aquele acima de tudo e todos,


detendo todo o poder de controle e organização, construída no país, leva a uma das
formas mais graves de violência: a violência institucional. Esta, praticada e cometida
em âmbito das instituições e órgãos públicos, ocorre, frequentemente, mas é vista
como algo comum.
Todavia, esta violência institucional acontece de maneira implícita e ratifica os
traços das desigualdades presentes na estrutura social. É necessário fazer um
recorte e ressaltar a disparidade entre os gêneros. A figura feminina é vista como
papel secundário nos espaços de poder, quando decide atravessar este obstáculo, se
tornando protagonistas e parte dos espaços institucionais, elas precisam lidar com a
constante prova sobre a eficácia de sua participação.
No livro “O Segundo Sexo”, tem-se determinada análise:

O termo ‘fêmea” é pejorativo não porque enraíza a mulher na Natureza,


mas porque a confina no seu sexo. E se esse sexo parece ao
homem desprezível e inimigo, mesmo nos bichos inocentes, mesmo nos
bichos inocentes, é evidente por causa da inquieta hostilidade que a
mulher suscita no homem; entretanto, ele quer encontrar na biologia uma
justificação desse sentimento. (DE BEAUVOIR, 2016, p.31)

Como ressaltado pela Simone de Beauvoir no trecho acima, como reflexo da


violência institucional, até o uso de palavras auxiliam na desvalorização da mulher,
em que demonstra a ressignificação das palavras como uma forma de ofender e
diminuir sua posição nos espaços que ela ocupa.
Analisando a formação da mulher desde o seu nascimento, é visível todos os
mecanismos utilizados para fomentar a figura idealizada por uma sociedade misógina,
em que ela não deve ocupar todos os espaços sociais, apenas aqueles permitidos,
todos os outros são proibidos indiretamente.
Historicamente falando, quando as mulheres, dentro do poder público,
começaram a ter voz e tentaram instaurar medidas que as ajudassem em situações
de vulnerabilidade, surgiu o LIGUE 180, em 2005, um canal direto de orientação dos
direitos e serviços públicos para a população feminina em todo o país. Atualmente,
ele é um disque-denúncia, com capacidade de envio das denúncias para a Segurança
Pública.
A denúncia, seja por meio do disque-denúncia ou por meio de Delegacias de
Atendimento à Mulher, se faz eficaz e configura-se como um primeiro passo para
aplicação de medidas punitivas ao agressor e medidas protetivas à vítima. Porém,
além do medo de ser agredida novamente, a vítima, muitas vezes, deixa de denunciar
pela falta da celeridade e por ser algo improfícuo.
As mulheres vítimas de violência, seja sexual, física, verbal, sofrem, ainda,
violência institucional, sendo elas constrangidas ao serem ouvidas inúmeras vezes,
ao denunciar, além de, muitas vezes, tendo sua palavra colocada em cheque, levando
à desistência de um procedimento favorável. "Às vezes, o processo de denunciar
acaba sendo mais violento pra essas mulheres do que a própria violência", disse à
BBC Brasil Silvia Chakian, promotora de Justiça e coordenadora do GEVID (Grupo de
366

Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica). Isso só demostra a falha


grosseira do sistema, em reconhecer a violência de gênero e suas especificidades,
pois ao tratar como uma situação de violência comum, coloca a mulher em uma
posição vulnerável perante as autoridades responsáveis por resguardar a ordem, por
meio de perguntas que gera uma coação à vitima que passa a se sentir constrangida
por denunciar.
Pode-se perceber, como origem do problema do mau atendimento das
delegacias da mulher, no país, a falta de treinamento de policiais que atuam nas
delegacias da mulher. Não há curso específico preparando, especificamente, para
esse trabalho. Com isso, muitos, ali dentro, reproduzem preconceitos e atitudes do dia
a dia machista e misógeno, da sociedade. “Eu vejo isso como um reflexo da própria
visão machista da sociedade”, diz a delegada Laura de Castro Teixeira, da primeira
DEAM de Goiânia.
A lei 11.340/06 determina a criação dos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher; Centros de Atendimento Integral e Multidisciplinar para
Mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar;
Casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de
violência doméstica e familiar; Núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e
centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação
de violência doméstica e familiar; Programas e campanhas de enfrentamento da
violência doméstica e familiar; e Centros de educação e de reabilitação para os
agressores, como medida para erradicar a violência institucional enraizada, no Brasil,
sendo algo longe de ser alcançado e que seria, de fato, medidas eficientes e eficazes
para diminuir, consideravelmente, o índice de violências de gênero.

2.2. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E LEI MARIA DA PENHA.

A violência doméstica não se configura como um tipo de violência, mas, um


meio no qual violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral perpetuam.
Analisando o caput do artigo 5º, da lei 11.340/2006, tem-se o significado tipificado de
violência doméstica, sendo: "Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica
e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial."
(BRASIL, 2006).
Na cartilha "Viver sem violência é direito de toda mulher", no Brasil, uma em
cada cinco mulheres já sofreu violência doméstica e cerca de 80% dos casos de
agressão, independente do tipo, foram cometidos por parceiros ou ex-parceiros.
A Lei 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha, não foi algo de fácil
resolução. Até o momento de criação, há uma história nebulosa por trás, de
constantes agressões e denúncias ignoradas, em virtude de uma sociedade com
machismo enraizado e violência institucional gritante. De fato, a lei produziu uma
grande revolução no combate à violência de gênero, por dar voz ativa, de certo modo,
às vítimas, porém, infelizmente, não foi eficaz para prevenir tais crimes.
A Lei rompeu com a divisão de âmbito público e privado evidenciada pelo ditado
"Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher". Tinha-se a sensação que tudo
que acontecesse dentro do ambiente doméstico não era de interesse de ninguém,
mas, devido às estatísticas alarmantes como, o risco de uma mulher sofrer agressão,
em casa, ser maior do que na rua ou local de trabalho e, na maioria dos casos, as
agressões físicas ocorridas no lar, o cônjuge ser apontado como o agressor mais
367

frequente, percebe-se que é necessária uma intervenção e proteção a parte menos


favorecida da relação.
O Banco Mundial, juntamente com a ONU Mulheres e o Fundo de População
das Nações Unidas, lançou, em 2017, um relatório chamando "Fechando a Brecha:
Melhorando as Leis de Proteção à Mulher Contra a Violência", o qual busca examinar
lacunas legislativas sobre a violência contra às mulheres. Tendo em vista a violência
doméstica, há o seguinte trecho presente:

Quando uma mulher sofre abuso do marido, sua saúde e bem-estar


psicológico são ameaçados e sua capacidade de trabalhar e funcionar
socialmente é restringida. Se ela não pode trabalhar, é forçada a aceitar
uma posição subalterna, psicológica e economicamente, e o ciclo de
violência se perpetua. (BANCO MUNDIAL, 2017).

Com essa situação, se faz, cada vez mais necessária, a existência de leis
destinadas às mulheres para garantia de uma igualdade material, na sociedade. Mas,
deve-se perceber que, necessita-se, no Brasil, de um posicionamento mais forte e
amplo em relação a todos os tipos de agressão, contra a mulher, para evitar tamanha
insegurança e ineficácia de proteção e punição.
É preciso, portanto, que o legislador considere o desejo da vítima de ser
protegida e seu agressor punido, levando em consideração as inúmeras maneiras de
uma mulher ser agredida, a frequência dos fatos e a veracidade de seus depoimentos,
sem decidir, patriarcalmente, o que acredita ser melhor para elas.

2.3. LEI DO FEMINICÍDIO

A desconstrução da ideia de que a mulher é uma mera extensão masculina é


contínua. Após inúmeros movimentos feministas, foi sendo possível observar o
tratamento pejorativo ao qual a mulher era submetida, e suas consequências,
principalmente, no âmbito penal. Além disso, a incidência alarmante de violência
contra mulher encontrou, em casos concretos, padrões de comportamento em que
homens se colocavam na posição do opressor para praticar atos de tamanha
selvageria contra a mulher. Relação esta, marcada por uma dominação violenta e
explícita entre agressor e agredido, homem e mulher, respectivamente.
Ademais, o Brasil é o quinto país com maior taxa de feminicídio do mundo. O
Mapa da Violência de 2015 demonstra que, no período entre 1980 e 2013, 106.093
mulheres morreram por sua condição de ser mulher. Contudo, foi necessário a criação
de uma lei especifica que tratasse do homicídio de mulheres, simplesmente, por
serem do sexo feminino. A lei nº 13.104, mais conhecida como Lei do feminicídio,
altera o art. 121 do Código Penal, acrescentando uma qualificadora ao homicídio de
mulheres em situações de violência doméstica e familiar e menosprezo ou
discriminação à condição de mulher.
Em contrapartida, há correntes que defendem que a existência da lei do
feminicídio é contrária ao exposto na Constituição da República de 1988, em seu art.
5º, que defende: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL,
1988), uma vez que, segundo esta corrente, considerar o gênero ao criar uma lei só
reforça a desigualdade e o estereótipo da mulher como uma figura subsidiária na
sociedade.
368

Se faz necessário expandir a percepção de igualdade para se obter uma


sociedade democrática e coerente. O princípio da isonomia constitucional reafirma o
que está exposto no caput. do art 5° da Constituição, como apresentado acima, visto
que fala sobre uma igualdade entre todos os cidadãos, portanto, uma igualdade
formal.
Mas, analisar esse princípio de maneira literal é uma deslealdade com a
realidade, visto que a sociedade está desnivelada e com oportunidades desiguais. É
indispensável adotar uma igualdade material, que tem como objetivo de igualar os
indivíduos, principalmente os desiguais, por meio de ações afirmativas. Como, neste
caso, preservar integridade física e moral da mulher por meio da Lei do Feminicídio,
visto que as mulheres passam de forma coercitiva a serem reconhecidas como
sujeitos de direito e não meros objetos de dominação do sexo masculino, mostrando-
se, assim, a imprescindibilidade do amparo pelo Estado.
Portanto, precisa-se considerar que o silêncio estatal sobre a desigualdade de
gênero nunca fez com que diminuísse a violência contra mulher, pelo contrário, só
reforça ainda mais este estigma. Este tipo de ideal, tem como causa uma falta de
instrução e educação base sobre os espaços ocupados na sociedade e violência
institucional.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando o texto constitucional, mais especificamente, o artigo 5º, “Todos


são iguais perante a lei” e “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”,
percebe-se o quão contraditório se torna a necessidade de criar-se leis direcionadas
para a violência de gênero. Tal igualdade é utópica e passa a ser, minimamente,
alcançada com leis que protegem às mulheres em uma escala maior.
Uma sociedade patriarcal e machista, historicamente falando, faz com que a
igualdade material sobreponha a igualdade formal. Esta tendo como forma de
tratamento a todos uma maneira idêntica, e aquela, na qual grupos específicos
necessitam de tratamento diferenciado. Busca-se, então, um tratamento isonômico e
não igual. “Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (NERY
JUNIOR, 1999, p. 42).
Como exposto nos parágrafos acima, a mera criação de leis destinadas à
segurança da mulher no âmbito social e familiar não são de grande utilidade pelo fato
de não serem, efetivamente, colocadas em prática. A violência de gênero não se
reduz pela simples prisão, processos judiciais e medidas protetivas. É necessário algo
a mais.
As mulheres estão entre as maiores vítimas de violência do mundo. Tomando
como ponto de partida a tentativa de atenuar situações traumáticas à mulher,
seja psicológica ou fisicamente, o primeiro passo a ser dado para alcançar uma
suposta segurança seria uma educação mais igualitária. De acordo com a
representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, “Homens e mulheres não
são educados como iguais. Ainda vivemos uma desigualdade de gênero muito forte.
Se a mulher não corresponde aos desejos do homem, ele pode discipliná-la".

REFERÊNCIAS

DE BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora Nova


Fronteira, 2016.
369

DAVIS, A.Y., Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.


BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 15 out.
2018.
BRASIL, Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso
em: 08 out. 2018.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Expressão
Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015.
BANCO MUNDIAL. Fechando a brecha: Melhorando as Leis de Proteção à Mulher
Contra a Violência. 2017. Disponível em: <
http://pubdocs.worldbank.org/en/200461519938665165/Topic-Note-Protecting-
Women-from-Violence-POR.pdf>. Acesso em: 12 out. 2018.
MELLO, Adriana Ramos de. Comentários à Lei de violência doméstica e familiar
contra a mulher, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 5.
ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
370

Grupo de trabalho:

DIREITO CONSTITUCIONAL,
DEMOCRACIA E
CIBERDEMOCRACIA II
Trabalhos publicados:

A POSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS


INCLUÍDOS POR MEIO DE EMENDA NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

A PRIVACIDADE DO CANDIDATO A MANDATO POLÍTICO E O DIREITO


COLETIVO DA LIBERDADE DE INFORMAÇÃO

A VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PESSOAS EM SITUAÇÃO DE


RUA

ATIVISMO JUDICIAL: INSTRUMENTO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADO A


CONCRETIZAR NORMAS CONSTITUCIONAIS OU MAIS UMA AFRONTA À
DEMOCRACIA?

CASAMENTO HOMOAFETIVO: UMA DECISÃO CONTRAMAJORITÁRIA

CIBERDEMOCRACIA E OS MÉTODOS COADJUTORES NA PREVENÇÃO DO


SUICÍDIO

DECISÕES JUDICIAIS E MANIPULAÇÃO DE ORÇAMENTOS PÚBLICOS DE


MANEIRA DIRETA

FAKE NEWS E DEMOCRACIA: A VIOLAÇÃO DO PROCESSO DEMOCRÁTICO


PELA PROPAGAÇÃO DE FAKE NEWS

JUSTIÇA E EQUIDADE EM AMARTYA SEN COMO CONCRETIZAÇÃO DOS


DIREITOS FUNDAMENTAIS

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ABANDONO DIGITAL DO ABSOLUTAMENTE


INCAPAZ, EM ESPECIAL OS MENORES DE 12 ANOS (INCOMPLETOS)
371

A POSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS


INCLUÍDOS POR MEIO DE EMENDA NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988
THE POSSIBILITY OF EXCLUSION OF FUNDAMENTAL SOCIAL RIGHTS THAT
WERE INCLUDED BY MEANS OF CONSTITUCIONAL EMENDMENT IN THE
CONSTITUCION OF THE FEDERATIV REPUBLIC OF BRASIL FROM 1988

Flavio Augusto de Oliveira Santos


Veronica Calado

Resumo: O tema dos direitos fundamentais sociais suscita debates doutrinários que
incluem a jusfundamentalidade desses e sua tutela pelo regime jurídico dos direitos
fundamentais na Constituição de 1988, tendo como característica a aplicabilidade
imediata e a limitação material ao poder reformador, constituindo estes direitos em
cláusulas pétreas. A condição pétrea, no entanto, é tema de discórdia no que diz
respeito aos direitos inclusos nesse rol por meio de Emenda Constitucional, posto que,
se estes direitos foram criados pelo Legislador Constituinte Derivado, deveriam poder
também, por meio do mesmo instrumento criador, ser excluídos do ordenamento. Este
é o entendimento de balizada doutrina. Este resumo, no entanto, apresenta uma
conclusão diferente, defendendo que os direitos fundamentais incluídos por emenda
passam a gozar da proteção de imutabilidade típica das cláusulas pétreas imaginadas
pelo Legislador Constituinte Originário, adotando, para tanto, o método dedutivo de
pesquisa, e a leitura analítico crítica de doutrina sobre o tema.
Palavras-chave: Direito Constitucional; Regime Jurídico dos Direitos fundamentais
sociais; Cláusulas Pétreas.

Abstract: The fundamental social rights excite debates that include their
fundamentability and its protection by a set of rules specifically applied to fundamental
rights in the Constitution from 1988 that has as main characteristics the immediate
applicability and the limitation to changes prevenient from the legislative power.
However, it is on debate the immutability protection, even when recognized as
fundamental, of rights included by means of a constitutional amendment, which is
controversial doe to the fact that part of the jurisprudence understands the rights
created by the ordinary legislator can also be excluded from de juridical order by the
same means. This essay presents a different possibility. A constitutional reading
suggesting that the fundamental rights included by means of an amendment can
possess the immutability protection that fundamental rights listed by the original
constituent legislators have, adopting, for this, the deductive methodology and the
analytical critical reading of the available literature.
Key words: Constitutional Rights; Legal Regime of the fundamental social rights;
Immutability Clause.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) possui,


em seu Título II, um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, individuais e
coletivas. Estes estão sujeitos a um regime jurídico diferenciado, disciplinado pela
própria CRFB/88, que, por força do artigo 5º, parágrafo 1º, tem aplicabilidade imediata
e, por força do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, não podem ser objeto de Emendas
Constitucionais (EC) que tendam a aboli-los.
372

Inseridos no citado Título estão os direitos sociais previstos no artigo 6º, que,
originalmente, elencava educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência
social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Este
rol foi aumentado pela EC 26/2000, que acrescentou a moradia, pela EC 64/2010, que
acrescentou a alimentação e, por último, pela EC 90/2015, que incluiu o transporte.
No presente resumo, dois problemas serão abordados. O primeiro, diz respeito
à condição de direitos fundamentais dos direitos sociais, o que é essencial para
afirmar que os direitos do artigo 6º da CRFB/88 estão sujeitos ao mesmo regime
jurídico, posto que da mesma natureza, que os direitos previstos no artigo 5º da
CRFB/88. O segundo problema diz respeito à possibilidade de alteração do artigo 6º,
por meio de EC, para a exclusão de direitos que foram incluídos no rol ali previsto
também por meio de EC.
O primeiro problema se justifica pela terminologia adotada pela CRFB/88 no
artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, que prevê que não será objeto de deliberação a
proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais
o que, em um primeiro momento, da margem para uma interpretação literal do texto,
excluindo direitos e garantias de caráter coletivo da proteção criada pelo dispositivo,
bem como os direitos sociais.
Já o segundo problema deriva da compreensão doutrinária de que é faculdade
do legislador extirpar do ordenamento jurídico, por meio de EC, aquilo que foi
acrescentado da mesma forma, ou seja, se direitos foram inseridos no rol de direitos
e garantias fundamentais por meio de EC, também por este caminho é possível retirá-
los.
Postos os dois problemas, o resumo será dividido em dois tópicos. O primeiro
apresentará uma leitura que permite compreender direitos sociais como direitos
fundamentais e, portanto, sujeitos ao regime jurídico destes. O segundo tópico tratará
de analisar se é possível falar em exclusão dos direitos sociais fundamentais do rol
do artigo 6º da CRFB/88, mais especificamente aqueles que foram acrescentados
pelas EC 26/2000, 64/2010 e 90/2015.

2. DIREITOS SOCIAIS COMO DIREITOS PLENAMENTE FUNDAMENTAIS NA


CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

Topograficamente, não há dúvidas sobre a inclusão dos direitos sociais no


catálogo de direitos fundamentais da CRFB/88, o que “implica reconhecer pelo menos
a presunção em favor da fundamentalidade também material desses direitos e
garantias1”, além da fundamentalidade formal. Ademais, “a concepção mais afinada
com a sistemática constitucional brasileira vigente (...) é a de que os direitos sociais
são autênticos direitos fundamentais, integralmente submetidos ao regime jurídico
destes2”, É, por sinal, característica marcante da CRFB/88, em comparação com as
Constituições brasileiras anteriores, uma significativa inflação de direitos
fundamentais, o que assegurou “aos brasileiros, a titularidade de uma série de
posições jurídicas até então não garantidas pelo sistema jurídico pátrio 3”.
1
SARLET, Ingo Wolfgang, Os direitos sociais como direitos fundamentais: contributo para um balanço aos vinte anos da
Constituição federal de 1988, in SARMENTO, Daniel (Coord.), Direitos Sociais, Fundamentos, Judicialização e Direitos
Sociais em Espécie, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 417.
2
HACHEM, Daniel Wunder. Tutela Administrativa efetiva dos direitos fundamentais sociais: por uma implementação
espontânea, integral e igualitária, Tese (Doutorado) Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa
de Pós Graduação em Direito, Curitiba, 2014.
p. 81.
3
HACHEM, Daniel Wunder. A maximização dos direitos fundamentais econômicos e sociais pela via administrativa e a
promoção do desenvolvimento. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, v. 13, n. 13, Curitiba, UniBrasil, p. 340-399,
jan./jun. 2013, p.345.
373

Jorge Reis Novais, ao tratar desse tema em análise da Constituição portuguesa


identifica três objeções dogmáticas ao reconhecimento dos direitos sociais como
direitos fundamentais. São elas: a) a reserva do financeiramente possível, b) a
estrutura positiva dos direitos sociais, em oposição à estrutura negativa dos direitos
de liberdade e c) a indeterminabilidade do conteúdo constitucional dos direitos
sociais.4
Desta forma, ou pelo conjunto dos três fatores acima citados, ou por qualquer
um deles individualmente, seria impossível considerar os direitos sociais como
“verdadeiros direitos fundamentais”, ou então, seria necessário que estes não
estivessem tutelados pelo mesmo regime jurídico dos direitos fundamentais
propriamente ditos, o que, na prática tornaria a atribuição da nomenclatura “direitos
fundamentais” aos direitos sociais, inócua5.
Daniel Wunder Hachem identifica na doutrina pátria críticas muito semelhantes,
embora observe que o custo financeiro e a característica prestacional destes direitos
constituem um mesmo ponto de crítica6.
Quanto ao primeiro ponto identificado, qual seja, a reserva do financeiramente
possível, essencialmente o que se argumenta é que direitos fundamentais são de
tamanha importância que não podem estar disponíveis ou relegados a decisões
políticas por parte do legislador e, portanto, como os direitos sociais dependem
justamente destas decisões políticas, que determinam a distribuição de recursos, que
podem enfrentar severa escassez, os direitos sociais não atenderiam características
elementares dos direitos fundamentais7.
Há dois principais aspectos para defender a posição dos direitos sociais como
direitos fundamentais que serão apresentadas neste ensaio. A primeira é a de que os
direitos de liberdade também possuem custos análogos aos custos dos direitos
socais. Ou seja, não se nega que os direitos sociais implicam em custos e que é sim
possível arguir que a escassez de recursos é fator impeditivo de uma plena efetivação
dos direitos sociais, ocorre que o mesmo é verdadeiro para outros direitos
fundamentais.8
Conforme escólio de Jorge Reis Novais, “(...) não haveria, em grande medida,
efectividade dos direitos de liberdade negativos sem as prestações estatais positivas
destinadas a garanti-los institucionalmente e, desde logo, a defende-los de ameaças
ou de agressões provindas de outros particulares”9.
É o caso, por exemplo, do direito à propriedade, que, para sua proteção, exige,
minimamente, a manutenção de funcionários públicos, registros públicos, policiais e
todo um sistema judiciário10, que, especificamente no caso brasileiro, é um dos mais
caros do planeta. Não menos importante, ou menos custoso, é o exemplo da garantia
do exercício de direitos políticos, dado o “extraordinário esforço financeiro requerido
(...) para a realização de eleições livres”11.
Fica claro, portanto, que há uma faceta prestacional nos direitos negativos de
liberdade, e esta tem custos elevados, análogos aos custos da faceta prestacional dos
direitos sociais, que, por sua vez, também possuem uma faceta negativa 12. A título de
exemplo, uma vez efetivados direitos como trabalho ou quaisquer outros do catálogo
4
NOVAIS, Jorge Reis, Direitos sociais: Teoria Jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais, 1 Ed, Coimbra,
Coimbra Editora, 2010, p. 87
5
NOVAIS, Op. cit., 2010, p. 87.
6
HACHEM, Op. Cit, 2014, p. 80.
7
NOVAIS, Op. Cit, p. 90-2
8
Id., p. 93
9
Id., p. 94
10
Id., p. 94-5
11
NOVAIS, Op. Cit., p. 95.
12
SARLET, Op. Cit., 2010, p. 63-5.
374

do artigo 6º da CRFB/88, o estado deve se abster de atitudes que possam


comprometer a manutenção deste status quo.
De forma semelhante, Daniel Wunder Hachem afirma que “não se pode
associar automaticamente direito de liberdade com direito de defesa e direito social
com direito de prestação. É preciso compreende-los como um todo, que investem o
seu titular de várias posições jurídicas: de defesa(...) de proteção (...) e de prestação
(...)”13.
Assim sendo, “parece, de facto, irrecusável a ideia de que a realização dos
direitos fundamentais globalmente considerados implica custos, na medida em que o
próprio Estado de Direito e o regime democrático, em si mesmos, tem custos.”14
Um segundo ponto de defesa diz respeito à garantia dos direitos sociais como
pressuposto de garantia dos direitos de liberdade15, posto que, nas palavras de Jorge
Reis Novais: “(...) na ausência de um conjunto mínimo de condições matérias, o
exercício dos direitos de liberdade fica esvaziado”16.
Cabe ressaltar que a CRFB/88 tem como um de seus fundamentos a dignidade
da pessoa humana e, portanto, se protege a vida, um direito fundamental de primeira
dimensão, cuja concepção clássica lhe atribui somente um aspecto negativo de
abstenção do Estado de tomar a vida dos cidadãos, no ordenamento brasileiro, a vida
deve ser adjetivada com a ideia de dignidade e, para tanto, é preciso que haja
condições mínimas de saúde, moradia, alimentação, etc., todos direitos previstos no
artigo 6º, da CRFB/88 e, portanto, de cunho social.
Pelo menos um dos argumentos anteriores parece servir também para rebater
a crítica de diferença estrutural. Mas, é preciso tecer breves comentários sobre a
suposta dificuldade de determinar a existência de violação, posto que, quando se trata
de um direito negativo, há flagrante violação se o Estado intervém em uma esfera da
qual deveria se abster, mas, se o Estado deve fornecer determinada prestação, só
seria possível determinar uma violação se fosse possível determinar exatamente o
conteúdo da prestação exigível do Estado, ou se, mesmo tendo recursos, o Estado
deixasse de agir por completo17.
O argumento não prospera ainda à luz do escólio de Daniel Wunder Hachem
que afirma que há uma unidade de direitos fundamentais, sendo que todos possuem
características negativas, positivas e de proteção, e, assim sendo, todos os direitos
fundamentais, em uma de suas facetas, estão sujeitos a maior dificuldade de
judicialização, ou de identificação de violação18.
Ademais, conforme leciona Robert Alexy, “as normas de direitos fundamentais
são não raro caracterizadas como princípios”19 e, os princípios são, ainda segundo o
jurista alemão, “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida
possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. (...) são
caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados(...)” 20, ou seja,
eventuais dificuldades para a realização de direitos fundamentais, especialmente no
que diz respeito ao seu aspecto prestacional (possibilidades fáticas), não
comprometem sua condição de direito fundamental, da mesma forma que eventuais

13
HACHEM, Op. Cit., 2014, p. 135.
14
NOVAIS, Op. Cit., p. 96.
15
NOVAIS, Op. Cit., p. 109.
16
Id., p. 109.
17
Id., p. 124/125.
18
HACHEM, Daniel Wunder. A dupla titularidade (individual e transindividual) dos direitos fundamentais econômicos, sociais,
culturais e ambientais. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, v. 14, n. 14, Curitiba, p. 618-688, jul./dez. 2013, p.
622.
19
ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, Tradução de Virgílio Afonso da Silva, São Paulo, Malheiros, 2008, p.
86.
20
Id., p. 90.
375

variações em grau de satisfação por contingências de natureza jurídica também não


o fazem.
Por fim, a última crítica funda-se em uma indeterminabilidade de conteúdo
constitucional dos direitos sociais, e, aqui, assim como a segunda crítica possui
relação com a primeira, visto o mito dos elevados custos dos direitos sociais, está
terceira crítica possui relação com a dificuldade de determinação de eventuais
violações a direitos positivos ou prestacionais e, portanto, também se aproveitam os
argumentos contrários acima expostos.
Em essência, “o conteúdo dos direitos sociais enquanto direitos constitucionais
seria caracterizado por uma indeterminabilidade congênita21”, o que tornaria
impossível a atribuição de uma aplicabilidade imediata e da vinculação plena dos
Poderes do Estado, o que, por consequência, afastaria os direitos sociais da categoria
dos direitos fundamentais.
Mais uma vez, no entanto, as respostas à crítica formulada apontam para uma
semelhança entre direitos fundamentais de liberdade e os direitos sociais. Se há
incerteza quanto ao conteúdo de alguns direitos sociais, o mesmo pode ser dito de
direitos individuais como o direito de liberdade religiosa, especialmente quando se
pensa em exemplos como o da transfusão de sangue para testemunhas de Jeová, ou
ainda quanto ao conteúdo preciso da liberdade de expressão, especialmente quando
expressam-se opiniões de caráter preconceituoso.22
Em verdade, conforme lecionam Jorge Reis Novais23 e Daniel Wunder
Hachem24, uma tentativa de excessiva determinação do conteúdo dos direitos sociais
poderia, mesmo que aparentemente adequada em um dado momento histórico,
engessar estes direitos, isto em um campo suscetível a mutações, e necessariamente
aberto aos eventuais debates de cunho democrático inerentes às matérias tratadas,
como saúde, educação, segurança, e moradia.
Se este argumento de vagueza caminha para demonstrar que os direitos
sociais carecem de fundamentalidade por impossibilidade de aplicação da regra do
artigo 5º, parágrafo 1º da CRFB/88, posto que todos exigiriam regulamentação
infraconstitucional para aplicação, não é possível garantir a fruição do direito de
propriedade sem regras constantes da lei de registros públicos, ou do código civil,
embora não se discuta que o direito à propriedade é fundamental e sujeito ao regime
jurídico dos direitos fundamentais, o que inclui a aplicabilidade imediata.
Por último, é necessário destacar que, especificamente no caso brasileiro, é
possível extrair significativa quantidade de conteúdo dos direitos sociais do próprio
texto constitucional, além do extenso número de leis infraconstitucionais que
compõem o conteúdo material de cada um dos direitos elencados no artigo 6º da
CRFB/88.
Concluídas estas questões, surge a última pergunta proposta na introdução
deste ensaio, qual seja, dentro do panorama traçado até aqui, é possível afirmar que
direitos sociais fundamentais, inclusos no artigo 6º da CRFB/88, por terem sidos
incluídos neste rol por meio de EC, estão disponíveis para serem retirados por seu
criador, o legislador reformador, também por meio de EC?

3. DA (IM)POSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


SOCIAIS INCLUÍDOS NA CRFB/88 POR MEIO DE EMENDA CONSTITUCIONAL.

21
NOVAIS, Op. Cit., p. 139.
22
HACHEM, Op. Cit. 2014, p. 139.
23
NOVAIS, Op. Cit. p. 144.
24
HACHEM, Op. Cit. 2014, p. 139.
376

Embora não se tenha falado, até o presente momento, sobre eventual diferença
entre direitos fundamentais provenientes do poder constituinte originário, e de direitos
fundamentais provenientes do poder constituinte derivado, acrescentados ao catálogo
por meio de emenda, caso não só dos direitos à moradia, alimentação e transporte no
artigo 6º da CRFB/88, mas também do direito ao processo célere, do artigo 5º, inciso
LXXVIII, também da CRFB/88, acrescentado pela EC 45/2004, há balizada doutrina
que defenda que não há que se falar em cláusulas pétreas provenientes de legislador
constituinte derivado.
Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco defendem que as
cláusulas pétreas fundamentam-se na superioridade do poder constituinte originário
frente ao poder constituinte derivado, o que permite, ao primeiro, limitar a atividade do
segundo. Entendem, os autores, no entanto, que o poder constituinte derivado não
pode limitar a si mesmo, posto que, como é o mesmo poder, não faz sentido que este
não possa alterar, disposições, ou mesmo excluir disposições às quais seriam fruto
de sua própria criação25.
Ainda, segundo os autores, “se o poder constituinte de reforma não pode criar
cláusulas pétreas, o novo direito fundamental que venha a estabelecer – diverso
daqueles que o constituinte originário quis eternizar – não poderá ser tido como um
direito perpétuo, livre de abolição por uma emenda subsequente”26.
Ocorre que, embora leve em consideração a importância singular do poder
constituinte originário, a conclusão dos citados autores parece não favorecer a
evolução histórica das dimensões de direitos fundamentais.
O rol de direitos constitucionais da CRFB/88, inegavelmente generoso, não
pode ser considerado definitivo, posto que imaginado em um momento histórico
passando, quando somente os direitos historicamente consolidados até aquela data
poderiam ser positivados pelo constituinte originário. Outros direitos hoje
considerados fundamentais por força do artigo 5º, parágrafo 2º da CRFB/88, não se
encontram topograficamente no Título II da carta política brasileira. Cabe ressaltar que
o artigo 225 da CRFB/88 que prevê o direito fundamental a um meio ambiente
equilibrado revela uma preocupação que ganhou força em um momento histórico
posterior à promulgação da CRFB/88.
A primeira crítica, portanto, a parte da doutrina que entende não serem
tutelados pelo disposto no artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da CRFB/88 os direitos
fundamentais incluídos por meio de EC, é a de que a história da evolução destes
direitos não se tornou estanque em 5 de outubro de 1988. Aliás, pela própria natureza
destes direitos, bem como por sua estrutura normativa de mandamento de otimização,
a tendência é, sempre, a do reconhecimento de outros aspectos fundamentais, que
podem ser positivados pelo poder constituinte derivado, que refletem seu próprio
momento histórico.
Esta posição parece fragilizar eventuais direitos fundamentais reconhecidos e
positivados pelo poder constituinte derivado, que comporiam um rol enfraquecido, por
não estarem sujeitos ao regime jurídico dos direitos fundamentais e, portanto,
estariam sujeitos à exclusão do ordenamento o que poderia, em última análise, gerar
significativos retrocessos sociais.
Em favor da extensão da proteção do regime jurídico de direitos fundamentais
aos provenientes de exercício legislativo posterior à promulgação da CFRB/88,
empresta-se, mais uma vez, o escólio de Jorge Reis Novais, embora o autor esteja

25
MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; Curso de Direito Constitucional, 7 Ed, São Paulo, Saraiva,
2012, p. 192.
26
Id., p. 192.
377

tratando de legislação ordinária como parte integrante do conteúdo material de direito


fundamental, quando este afirma que a norma de direito fundamental “não só admite,
como exige, a respectiva abertura à integração dinâmica com as normas ordinárias
que procedem à acomodação efectiva dos direitos fundamentais na vida jurídica
real”27.
Isto posto, já é possível tecer algumas considerações finais acerca dos
problemas apresentados na introdução.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente ensaio, duas perguntas, ou objetivos, motivaram as colocações


formuladas. A primeira indagava sobre a condição de direitos fundamentais dos
direitos sociais e a segunda sobre a proteção pétrea de direitos dessa natureza
acrescentados por Emenda Constitucional.
Uma leitura constitucional parece responder ambas as perguntas de maneira
positiva, ou seja, os direitos sociais são direitos fundamentais sujeitos ao regime
jurídico constitucional reservado para a tutela dessa categoria e, consequentemente,
os direitos acrescentados por EC, embora fruto do trabalho do Poder Constituinte
Derivado, gozam do status de cláusulas pétreas, estando imunes a quaisquer projetos
de EC tendentes a aboli-los.
Os argumentos postos podem ainda ser reforçados pela noção de que os
direitos fundamentais, especialmente os de cunho social, devem gozar de especial
proteção ao retrocesso, garantindo, assim, uma continua e crescente evolução no
patamar civilizatório. Assim, embora a totalidade das políticas públicas, e de quaisquer
outras ferramentas destinadas a garantir a efetivação de direitos e garantias
fundamentais, estejam sujeitas à reserva do possível, à escassez de recursos, ou
mesmo a absoluta ausência desses, o mandamento de otimização não estará
ameaçado, não será perdido por meio de uma Emenda, estará sempre demandando
soluções.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, Tradução de Virgílio Afonso da


Silva, São Paulo: Malheiros, 2008.
FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Coord.). Direito público no
Mercosul: intervenção estatal, direitos fundamentais e sustentabilidade. Belo
Horizonte: Fórum, 2013.
HACHEM, Daniel Wunder. A dupla titularidade (individual e transindividual) dos
direitos fundamentais econômicos, sociais, culturais e ambientais. Revista de
Direitos Fundamentais e Democracia, v. 14, n. 14, Curitiba, p. 618-688, jul./dez.
2013.
_____. A maximização dos direitos fundamentais econômicos e sociais pela via
administrativa e a promoção do desenvolvimento. Revista de Direitos Fundamentais
e Democracia, v. 13, n. 13, Curitiba, UniBrasil, p. 340-399, jan./jun. 2013.
_____.Tutela Administrativa efetiva dos direitos fundamentais sociais: por uma
implementação espontânea, integral e igualitária, Tese (Doutorado) Universidade
Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós Graduação em
Direito, Curitiba, 2014.

27
NOVAIS, Op. Cit. p. 161.
378

MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; Curso de Direito


Constitucional, 7 Ed.. São Paulo: Saraiva, 2012.
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais: Teoria Jurídica dos direitos sociais enquanto
direitos fundamentais, 1. Ed.. Coimbra, Coimbra Editora, 2010.
SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral
dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. Ed., Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2010.
_____. Os direitos sociais como direitos fundamentais: contributo para um balanço
aos vinte anos da Constituição federal de 1988, in SARMENTO, Daniel (Coord.),
Direitos Sociais, Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie, Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
379

A PRIVACIDADE DO CANDIDATO A MANDATO POLÍTICO E O DIREITO


COLETIVO DA LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
THE CANDIDATE'S PRIVACY TO THE POLITICAL MANDATE AND THE
COLLECTIVE RIGHT OF FREEDOM OF INFORMATION

Miguel Angelo Aranega Garcia


Valter Moura do Carmo

Resumo: O presente resumo tem por objetivo central propor inicial discussão sobre a
privacidade do candidato a mandato político e o direito coletivo da liberdade de
informação, adjudicando ênfase na concepção de garantia fundamental. Nesse
contexto, observa-se o cerceamento do direito à privacidade, uma vez que os meios
de comunicação acabam por invadi-lo, sob o pretexto de informar a população. Pauta
o estudo por uma moldura analítico-crítica. A ideia é ultrapassar as barreiras da
dogmática estabelecida a fim de formular uma alternativa à problemática, com adoção
do princípio da proporcionalidade, responsável por resolver o conflito entre duas
garantias constitucionais, pautando a harmonia e o equilíbrio entre os direitos
fundamentais, de modo a buscar a melhor medida para todos os envolvidos.
Palavras-chave: Direito de informação. Privacidade. Candidato político.

Abstract: The main objective of this abstract is to propose an initial discussion about
the privacy of the candidate for political mandate and the collective right of information
freedom, emphasizing the concept of a fundamental guarantee. In this context, the
privacy right is controlled and reduced, as the media end up invading it, under the
pretext of informing the population. This paperwork, then, guides the study through an
analytical-critical frame. The idea is to overcome the barriers of established dogmatic
to articulate an alternative to the problematic, adopting the principle of proportionality.
Considering the mentioned principle, it is important to say that it is responsible for
resolving the conflict between two constitutional guarantees, guiding the harmony and
the balance between fundamental rights, aiming to seek the best measure for all the
parts involved.
Keywords: Right to information. Privacy. Political candidate.

INTRODUÇÃO

A proteção da vida privada e a liberdade de informação repercutem diretamente


no contexto da sociedade atual. O interesse da coletividade em ser informada
encontra limites a partir do momento em que a divulgação dos fatos vier a ferir a
pessoa humana em sua dignidade, haja vista que cada pessoa tem o seu espaço
exclusivo e que deve ser respeitado.
As pessoas públicas, em particular, aqueles que se desafiam como candidatos
a mandato político perdem, por assim dizer, grande parte de sua vida privada, como
se os limites de sua vida reservada recuassem para fronteiras mínimas e
incomprimíveis, quando cotejadas suas vidas com as vidas do homem comum, em
ordinárias circunstâncias.
Nesse contexto, a importância do princípio da proporcionalidade, o qual será
responsável por resolver o conflito entre duas garantias constitucionais: quando os
direitos fundamentais, nesse caso o direito à informação e à liberdade de imprensa e
o direito à intimidade, estiverem em conflito, um deles se sobrepujará sobre os demais.
380

Na elaboração do trabalho utilizou-se do método lógico-dedutivo, baseando-se


em pesquisa bibliográfica e análise legislativa, fundamentada nos problemas
destacados e nos seus desdobramentos.

DESENVOLVIMENTO

Comumente o interesse por informações relacionadas às personalidades


notórias, especialmente autoridades públicas e com pretensão política, tem se tornado
muito latente na sociedade. Nesse último caso, a população se apega ao fato de existir
tantas irregularidades no Poder que se debruçam sobre esse fato para sempre
requerer acesso a informações de cunho coletivo, muitas vezes, acerca da própria
vida da autoridade pública em questão.
Assim, observa-se que as linhas divisórias das esferas da vida privada não
deverão ser rígidas e sim flexíveis, de maneira que sua maior ou menor amplitude
dependa basicamente da categoria social à qual pertençam os respectivos titulares.
Em suma, o diâmetro da vida particular depende do modo de ser do indivíduo que a
ela se integra. Varia conforme o status do indivíduo, que é a forma pela qual ele se
insere no agrupamento social. Logo, ao se tratar de pessoa pública, o âmbito de sua
vida privada se reduzirá.
Este é o ônus, portanto, de quem goza uma vida predicada por aspiração de
mandato político, exibindo-se como o campo de privacidade mais restrito de todos o
dos chamados homens públicos, cujas vidas podem ser uma referência, ou uma
advertência, para toda a sociedade. Sendo assim, fato é que, “quando alguém busca
uma função inerente ao que se pode chamar de homem público está automaticamente
abdicando do direito de manter certas reservas que a qualquer dos simples mortais é
conferido” (GUSHIKEN; AMARAL, 2010, p. 1).
A relevância do acesso à informação do que acontece na vida dos candidatos
tem se mostrado cada vez mais latente para a sociedade, haja vista que é por meio
desse acesso que opiniões políticas são formadas, prestação de contas são
realizadas, e diferenciais de postura são conjeturados. Isso para a população é muito
importante; os indivíduos se sentem no direito de tomar conhecimento dos feitos de
pessoas que eles próprios contribuíram para que chegassem aonde chegaram. É o
direito da coletividade.
Sob a epígrafe da informação pública e sob a ótica do interesse público em
detrimento do direito da coletividade, denota-se que a mídia se amolda aos limites de
um conceito estrito de interesse científico e cultural, dirigindo-se a informar o grande
público sobre acontecimentos que ordinariamente despertam o interesse das massas.
A grande maioria do horário de rádios e televisões,

bem como o espaço de jornais e revistas, é dedicado ao noticiário em


geral. Há, inclusive, hoje em dia, redes de radio e de televisão dedicando
praticamente toda a sua programação, às vezes ininterrupta, à divulgação
de notícias. O ciclone, o raio, o desfile de moda, a eleição da diretoria do
clube de futebol, a guerra da Bósnia, os jogos, os eventos criminais, os
bastidores do cinema e da telenovela, a vida dos artistas, os fatos
políticos, as crises internacionais, a previsão do tempo, como moram e
vivem os governantes, enfim, tudo que possa despertar o interesse das
pessoas, via noticiosos (CALDAS, p. 1997, 102).

Muito se tem escrito acerca da informática e os problemas jurídicos que


suscitam em variadas áreas por sua universalização e pelo fato de, no mais das vezes,
o fenômeno legal ser um fenômeno nacional e, portanto, de pouca abrangência para
381

a regulação do novo campo de comunicação. Percebe-se que um mundo novo tem


emergido, com novas demandas tecnológicas e informativas, assim como novos
paradigmas de informação.
Nesse contexto, é fato que:

os veículos de comunicação de massa chamados de “imprensa” devido à


criação da prensa por João Gutenberg, representam um papel importante
na formação da opinião pública, que elege dois dos chamados três
“poderes” da União, Estado e Município. Além disso, as denúncias dos
jornalistas são uma forma de controle do Estado Democrático, que precisa
de acompanhamento dos detentores do “poder”, ou seja, o povo
(GUSHIKEN; AMARAL, 2010, p. 05).

Portanto, qualquer que seja a espécie e a forma da informação o seu objetivo


será sempre o de atender uma necessidade humana que é de todos: o
compartilhamento de conhecimentos para igualizar os homens, com o fim de melhorá-
los e com isso, alavancar o progresso social. No entanto, há que se atentar aos
princípios constitucionais tangentes à intimidade, à honra e à proteção da vida privada,
para não ferir em excesso a tutela desses direitos, inerentes também às pessoas
públicas, em nome da coletividade simplesmente.
O interesse público aqui articulado não diz respeito aquele relacionado à
curiosidade da sociedade, contudo representa aquele que concerne relevante
importância à sociedade. Assim,

[...] o casamento entre duas pessoas famosas, embora desperte o


interesse de muitas pessoas, carecerá de interesse público; haverá
interesse público, porém, quando um Deputado Federal viaja em lua de
mel com sua recém esposa para lugares onde as despesas são
incompatíveis com o seu patrimônio declarado (GUSHIKEN; AMARAL ,
2010, p. 10).

Sob tal aspecto, é possível dizer que a intimidade pertinente aos políticos não
é relativa, porém deve ser analisada de maneira diferente, como, por exemplo, as
pessoas famosas, artistas e esportistas, as quais vivem de manifestações públicas
como propagandas e publicidades.
Dessa feita, ao desvelar o mecanismo doutrinário, o qual envolve a
problemática do direito à informação, liberdade de expressão e resguardo da vida
privada e seu respectivo direito de intimidade ligado às autoridades, identifica-se que
muitas vezes ocorre a hipocrisia capitalista ao encarar a vida privada como uma
mercadoria, cuja venda pode proporcionar muito dinheiro. No entanto, “esta venda
exige, como todo contrato, consentimento do vendedor” (GIANNOTTI, 1987, p. 60).
Com o advento tecnológico, existe a necessidade com extrema urgência, de se
encontrar um contraponto nesse tipo de situação, o direito de divulgar e o direito de
preservar a privacidade. E na ausência de normas específicas para este problema,
aplica-se o princípio da proporcionalidade, que proporciona uma interpretação
equilibrada e coerente na solução desses conflitos, tendo em vista que nenhuma
garantia constitucional possui valor absoluto.
Nesse método, a ponderação de interesses aplica-se somente quando
caracterizado de fato o conflito de direitos, uma vez que um direito não é mais
importante que o outro. Apenas em determinada situação, em virtude da importância
no caso em questão, um será preterido em relação ao outro.
Assim, sempre que houver conflitos entre direitos, é primordial a aplicação do
382

princípio da proporcionalidade, como o princípio da justa-medida. Se assim não for,


como saber se a privacidade tem maior peso que a informação? Sem a ponderação,
não existe forma de se resolver essa questão.
Sendo assim, é importante buscar a constante harmonia entre os direitos para
que não se tornem inaplicáveis e sem efetivação. Afinal, “poderá em certos casos ter
maior peso a honra e a vida privada e, em outros a liberdade de expressão. Como
saber? Não há. Porque somente diante de um caso concreto, de uma hipótese fática
e real é que se poderá dizer qual prevalecerá” (CAMPOS, 2004, p. 28). Não existe
uma fórmula, existe a necessidade de analisar e equilibrar cada um destes casos.
Sobre isso, Gushiken e Amaral (2010, p. 10) lecionam que:

As pessoas que ocupam cargo em razão de concurso público podem ter


sua intimidade invadida em razão da função que exercem desde que haja
um interesse público nisso. Vale ressaltar que se as atividades envolvem
questões atinentes à função pública, não há de se falar em violação. Se o
deputado ou senador usa o dinheiro público da sua cota de passagens
para gastar com amigos ou a namorada, não se pode falar em intimidade.

Geralmente baseiam-se no interesse público da informação. Se a notícia


divulgada sobre determinado fato for de interesse público, for relevante a coletividade,
“vence” o direito à informação. No entanto, se ocorrer o prejuízo do indivíduo em
decorrência a invasão de sua privacidade, existe a possibilidade de obter indenização
por ofensa à honra ou intimidade. Portanto, o direito à informação não é absoluto.

CONCLUSÃO

Diante do cenário imposto, em especial considerando que a temática exposta


é deveras complexa, pois engendra um sem-número de nuances possíveis, a
proposta de pesquisa ora apresentada, em linhas gerais, consubstanciou-se na
investigação de que o homem sendo ele um candidato de mandato político, ou não
dispõe do direito à vida privada, mas ao assumir posição de tal autoridade, essa
intimidade é substancialmente reduzida, configurando certos impasses no que tange
à exposição de sua vida a público.
Nesse pensamento, verifica-se que limites à privacidade podem ser impostos,
quando atingem interesses coletivos diferentes do direito à informação e de maior
relevância numa avaliação conjunta do interesse geral. A predominância do interesse
coletivo sobre o particular requer, em cada caso, a verificação do alcance respectivo.
O indivíduo que possui uma vida pública, em geral, é foco de notícias, pois seus
passos são acompanhados de perto pela imprensa e sociedade. E sob o argumento
do direito à liberdade de informação, justifica-se revelar tais fatos, mesmo sem o
consentimento daquele. Argumenta-se também em vista desta notoriedade, reduz-se
espontaneamente sua privacidade.
Tal fato não é verdade, pois o limite de privacidade, confidencialidade deve ser
preservado, pois é ilícita a divulgação de fatos íntimos, familiares ou particulares de
um indivíduo, caracterizando a violação do direito à sua intimidade. Revelar tais fatos,
provocando transtornos, constrangimentos e, consequentemente, sofrimento só se
justifica para o entendimento de momentos históricos, salvo isso, demonstra total falta
de ética, é puro sensacionalismo, e não informação.
Ao se utilizar o método da ponderação, o princípio da proporcionalidade será
aplicado com o objetivo de resolver o conflito, respeitando o fato que nenhum direito
é superior a outro, portanto, deve-se buscar o equilíbrio, harmonia, evitando-se o
383

prejuízo de qualquer dos direitos envolvidos na contradição. Assim, esse princípio é


utilizado como um princípio da justa-medida.

REFERÊNCIAS

CALDAS, Pedro Frederico. Vida Privada, Liberdade de Imprensa e Dano Moral. São
Paulo: Saraiva, 1997.
CAMPOS, Helena Nunes. Princípio da proporcionalidade: a ponderação dos direitos
fundamentais. Cadernos de Pós-Graduação em Dir. Político e Econômico São Paulo,
v. 4, n. 1, p. 23-32, 2004.
GIANNOTTI, Edoardo. A tutela Constitucional da Intimidade. Rio de Janeiro: Forense,
1987.
GUSHIKEN, Haroldo Tayra; AMARAL, Sérgio Tibiriçá. Direito à Intimidade das
Pessoas Públicas. 2010. Disponível em:
<intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/.../2193>. Acesso em: 25 fev.
2018.
384

A VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PESSOAS EM SITUAÇÃO DE


RUA
THE VIOLATION OF FUNDAMENTAL RIGHTS OF PEOPLE IN SITUATION OF
STREET

Maria Lenir Rodrigues Pinheiro


Heyller Diego Pinto de Melo

Resumo: O presente trabalho visa apresentar a violação dos direitos fundamentais


de pessoas em situação de rua, visto que a nossa Carta Magna assegura à pessoa
humana as garantias fundamentais como o direito à propriedade, à moradia e após
30 anos da sua promulgação, ainda encontramos pessoas com esses direitos lesados.
Esses indivíduos são conhecidos como “pessoas em situação de rua”, de diferentes
origens, em risco social, excluídas pela sociedade e abandonadas pelo Estado,
violadas em sua dignidade e que necessitam de programa de Políticas Públicas por
parte do Estado e uma maior participação da sociedade a fim de dar oportunidade
para que se sintam valorizadas, parte integrante da comunidade e com a sua
dignidade restabelecida. A Metodologia empregada, na fase de investigação foi o
método indutivo, com tratamento dos dados cartesiano e foram acionadas as técnicas
da pesquisa bibliográfica e do fichamento.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais; Pessoas em Situação de Rua; Estado.

Abstract: The present work aims to present the violation of the fundamental rights of
street people, since our Constitution guarantees the fundamental human rights such
as the right to property, housing and after 30 years of its promulgation, we still find
people with rights. These individuals are known as "street people", from different
backgrounds, at social risk, excluded by society and abandoned by the State, violated
in their dignity and who need a State Public Policy program and a greater participation
of the State. society in order to give them the opportunity to feel valued, an integral
part of the community and with their restored dignity. The Methodology employed in
the Investigation Phase was the Inductive Method, with Cartesian Data Processing,
and the techniques of bibliographic research and of the file were triggered.
Keywords: Fundamental Rights; People in Situation of Street; State

INTRODUÇÃO

Historicamente, é nítido o surgimento e evolução de um conjunto de direitos


fundamentais inerentes ao homem. A Constituição de 1988, conhecida como a
constituição cidadã, trata de direitos e garantias fundamentais promovendo uma
profunda modificação do Estado brasileiro como nenhuma outra anterior a ela.
Dentre os direitos assegurados estão o direito à vida, direito ao trabalho, direito
à propriedade e direito à habitação, moradia, surrupiados das pessoas que vivem em
situação de rua. Observa-se, ao longo da história, que o surgimento dos direitos
decorre de uma consequência lógica, por uma necessidade de proteção aos
indivíduos contra o abuso de poder pelos seus detentores.
Constata-se ainda, no presente trabalho, a necessidade de implementação e
implantação de Programa de Políticas Públicas e uma maior participação da
sociedade com o fito de oportunizar às pessoas que vivem em situação de rua, a sua
inclusão no seio da sociedade, a fim de que se sintam valorizadas, parte integrante
385

da comunidade, com a sua dignidade restabelecida e a restauração dos laços


familiares.
A Metodologia empregada, na fase de investigação foi o método indutivo, com
tratamento dos dados cartesiano e foram acionadas as técnicas da pesquisa
bibliográfica e do fichamento.

1. A SOCIEDADE SOB A ÓTICA CONSTITUCIONAL

Sociedade é definida por Dallari (2013, p. 23) como “o produto da conjugação


de um simples impulso associativo natural e da cooperação da vontade humana.” Para
chegar a este conceito, foram levados em consideração três aspectos: o
conhecimento de como a sociedade se organiza; como conhecer os seus problemas
e propor resoluções; e não avaliar apenas o aspecto jurídico, pois abrange muitas
outras ciências que deverão ser sabidas para ter uma avaliação mais próxima da
realidade.
Fazer parte de uma sociedade traz inúmeros benefícios e algumas limitações,
pois o exercício de direitos de um indivíduo não pode lesar direitos de outrem, afinal ,
como diz o conhecido ditado, “o Direito de um termina quando o do outro começa”.
Até chegar ao panorama atual, a sociedade evoluiu através dos tempos de
modo que poucas pessoas tem consciência de como ela está estruturada e qual seu
papel junto a ela, dada a sua complexidade. Contudo, não é qualquer grupo de
pessoas que forma uma sociedade.
Segundo Dallari (2013, p. 45) “mesmo que seja muito grande o número de
indivíduos e ainda que tenha sido motivada por um interesse social relevante, não é
suficiente para que se possa dizer que foi constituída uma sociedade”. Para ele, são
três os elementos que são comuns a todas as sociedades: uma finalidade ou valor
social; manifestações de conjunto ordenadas; e o poder social.
A doutrina finalista, ainda que reconheça a existência de uma necessidade
inata de associar-se, não nega a existência da inteligência e da vontade humana neste
processo. Não obstante os desejos pessoais de cada indivíduo que faz parte da
sociedade sejam distintos, a finalidade deverá ser algo comum, que de forma geral
todos busquem. Esta finalidade social é o bem comum.
Este ponto do pensamento é bem relevante, é o indício de uma sociedade
desorganizada e que não cumpre os seus objetivos, em primeiro plano o bem comum.
O mesmo bem comum que deveria refletir na vida das pessoas que vivem em situação
de rua ao adentrar nas esferas individuais dos componentes da sociedade.
Em um viés jurídico, ao analisar a Constituição Federal de 1988, é possível
verificar em vários dispositivos que o constituinte originário tinha intenção, não apenas
de responsabilizar o Estado, mas também de instigar a sociedade a ter um papel mais
ativo na resolução dos problemas de seus indivíduos, como segue:

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações


de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar
os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de
forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes
dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
386

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à


criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as
pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,
defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

Resta claro a responsabilidade atribuída à sociedade e ao Estado diante das


suas limitações na persecução das demandas individuais de seus próprios
componentes, em diferentes aspectos da vida. Um papel que tem caráter fundamental
na realização do bem comum.

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS E PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

Muitos foram os doutrinadores que tentaram conceituar direitos fundamentais.


Contudo, o único consenso entre os estudiosos é relativo a falha na tentativa de definir
de forma aceitável o que são direitos fundamentais. De qualquer forma, será analisado
a partir da reunião de alguns pontos convergentes referente ao tema, de acordo com
Mello (2015, p. 25):

Os direitos fundamentais são prerrogativas/instituições (regras e


princípios) que se fizeram e se fazem necessárias ao longo do tempo, para
formação de um véu protetor das conquistas dos direitos do homem (que
compreendem um aspecto positivo, a prestação, e um negativo, a
abstenção) positivados em um determinado ordenamento jurídico,
embasados, em especial, na dignidade da pessoa humana, tanto em face
das ingerências estatais, quanto, segundo a melhor doutrina, nas relações
entre particulares (...). (MELLO, 2015, p. 25)

Dentre o vasto rol de direitos previstos como fundamentais, neste estudo será
dada uma particular atenção, por se entender que estes direitos estão mais
intimamente ligados ao problema, ao direito à vida, à moradia e ao trabalho. Ao se
efetivar o exercício destes direitos, a incidência dos casos de pessoas que vivem em
situação de rua seria menor e estas pessoas poderiam exercer todos os outros que
são seus, mas que dada suas realidades era inviável a prática.
O direito à vida é o primeiro direito expresso no caput do art. 5º da CRFB/88,
por razão evidente, pois sem ela não há de se falar em direitos, pois dela decorrem
todos os outros direitos.
Este direito não se restringe ao direito de estar vivo, de se manter vivo, mas
abarca o direito de ter uma vida digna. Sendo assim, para se tornar efetivo, é
necessário garantir as necessidades vitais básicas do indivíduo e proibindo tratamento
que desmereça o valor que toda pessoa tem apenas pelo simples fato de ser humano.
Neste aspecto do direito à vida, Mello (2015, p. 118) leciona:

Outro sentido do direito à vida, este mais pautado em questões


existenciais, valorativas e fincadas em um viver (existir) digno, nesta
acepção devemos entender como vida o existir com o mínimo necessário
para o homem sentir-se e ser digno, que lhe proporcionem, por exemplo,
moradia, alimentos, saúde, segurança, lazer, educação, etc.
387

Este viés do direito à vida tem sido tão discutido em detrimento a outros como
no que se relaciona aos estudos de célula-tronco, eutanásia, aborto. Entretanto, esta
é uma questão tão relevante quanto as outras e até mais presente do que os outros,
uma vez que ao seguir para os compromissos cotidianos, trabalho, faculdade ou
qualquer outra tarefa, podemos nos deparar com esta realidade.
Delongamo-nos um pouco mais no direito à moradia. Este é um direito que foi
inserido de modo expresso como direito social através da Emenda Constitucional nº
26/2000. A moradia deve ser o ambiente em que o indivíduo poderá exercer de forma
plena seus direitos à intimidade e à privacidade. Por isto, constitucionalmente previsto
como asilo inviolável.
Sobre o direito à moradia, Pedro Lenza discorre:

O direito à moradia busca consagrar o direito à habitação digna e


adequada, tanto é assim que o art. 23, X, estabelece ser atribuição de
todos os entes federativos combater as causas da pobreza e os fatores de
marginalização, promovendo a integração social dos setores
desfavorecidos. (LENZA, 2014, p. 1078)

A moradia deve oferecer condições mínimas para que se desenvolva uma vida
saudável, não apenas em sentido físico, mas também mental e social. Neste sentido,
Ingo
Wolfgang Sarlet (2008, p.12) se manifesta

De fato, sem um lugar adequado para proteger a si próprio e a sua família


contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e
privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de
saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua
dignidade (...)

Este direito é então elevado a um grau de pressuposto da dignidade, de tal


sorte que uma pessoa sem um lugar para morar tem ferida sua dignidade, pois afeta
diretamente sua saúde física e mental, seu bem estar, sua segurança. A melhoria da
qualidade de vida, da qual faz parte a habitação, está relacionada diretamente com a
compreensão de saúde da população e o desenvolvimento social mais justo e
adequado (MELLO, 2015)
Faz-se necessário, portanto, a realização de uma política adequada, que se
volte para a moradia, alcançando a finalidade e metas constitucionalmente
estabelecidas pelo programa, em atenção à vida e esta, com dignidade.
Os direitos fundamentais elencados no rol constitucional asseguram o direito à
propriedade, à habitação, trabalho, entre outros. Quando esse resguardo falha, as
consequências entre tantas, são as pessoas que entram no processo de rualização
que para ser interrompido, necessita de ações preventivas ou ainda intervenções
quando o tempo de estada na rua dos sujeitos é ainda curto, potencializando assim a
efetividade das ações para sua reversão (PRATES; PRATES; MACHADO, 2011).
Até a presente data, a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de
Rua foi realizada entre o período de agosto de 2007 a março de 2008 ( acordo entre
o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS e a Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) é o maior e
mais atual levantamento de informações sobre pessoas em situação de rua, a partir
de 18 anos, em 48 municípios com mais de 300 mil habitantes e ecom este grupo
populacional no Brasil até o momento. O público alvo foram pessoas a partir de 18
388

anos, residentes 23 capitais, e em mais 48 municípios com mais de 300 mil sendo
identificadas cerca de 31.922 (BRASIL, 2008).
Respeitante ao estar em situação de rua, o maior índice, cerca de 35,5%,
afirmam que passaram a viver e morar na rua por problemas relacionados ao uso de
álcool e/ou outras drogas, 29,8%, pela situação de desemprego, e 29,1% por
desavenças com pai/mãe/irmãos, sendo que 71,3% do total de entrevistados citaram
pelo menos um dos três motivos. A grande maioria, 69,6% costuma dormir na rua,
22,1% dormem geralmente em albergues e outras instituições, e somente 8,3%
alternam entre a rua e essas instituições acolhedoras e 48,4% estão há mais de dois
anos dormindo na rua ou em albergues (BRASIL, 2008).
As motivações, dentro do processo de rualização, são diversos, destacando-
se: a) os rompimentos familiares advindos das experiências de violências domésticas
(psicológicas, física, sexual), direcionadas principalmente às mulheres, idosos,
crianças e deficientes; b) o desemprego, é outro fator pois muitas pessoas ao não
conseguirem gerar renda o suficiente para suas necessidades de moradia,
ocasionado pela não ocupação de um posto de trabalho, ou mesmo pela realização
de trabalhos informais e/ou precários, muitos acabam por morar nas ruas, não tendo
condições de retornar para suas casas devido as distâncias ou para não lidar com o
fracasso perante seus familiares; c) pessoas que sofrem com doenças de difícil
aceitação social por parte das famílias como a Aids, hansieníase e os diversos
transtornos mentais, e mesmo as deficiências físicas e/ou mentais e as instituições
públicas ou mesmo a rua são, portanto, os possíveis destinos de muitos (Ferreira e
Machado, 2007).
Observe-se a diversidade de fatores que levam ou contribuem para que os
sujeitos se constituam como pessoas em situação de rua. Para retirá-los dessa
condição, mister que o Estado implemente programas de Políticas Públicas que
retirem essas pessoas da situação na qual se encontram e promova a sua inclusão
na sociedade e se possível, em suas famílias, devolvendo, desta forma, a dignidade
a essas pessoas e fazendo valer seus direitos fundamentais.

CONCLUSÃO

Partindo de dois dos elementos para conceituação de sociedade,


conhecimento de como a sociedade se organiza e como conhecer seus problemas e
propor soluções, deve-se buscar sua finalidade social, que é formada pela conjugação
de todos os interesses individuais, que está relacionada a ideia de bem comum, onde
na sociedade todos os seus componentes deverão poder e exercer os seus direitos
respeitando os direitos dos outros. Por isto, a existência de pessoas em situação de
rua seria o motivo que pelo qual se conclui quanto a
desorganização da sociedade e do Estado, pois tais pessoas estariam privadas
de direitos e são alvo de desprezo do outro, aquele outro por quem sentimos a
necessidade de nos relacionar. Não alcançando estes fins particulares está
comprometida a realização do bem comum.
É evidente a responsabilidade que sociedade tem por todos os seus
integrantes. É um dever que exige uma postura ativa, diversa da postura da maioria.
A falta da moradia para a pessoa em situação de rua a torna mais vulnerável
na sua dignidade. Nesta situação, ela se torna marginalizável, pois começa a carregar
o estigma de alguém que a sociedade deve isolar, ou um problema que a sociedade
aprendeu que se resolve ignorando, seja aquele que pede uma moeda no sinal de
trânsito ou o que do chão pede uma esmola.
389

O que nos leva à conclusão de que alguns problemas relacionados aos direitos
explanados possuem um caráter mais urgente que os outros. É preciso definir
prioridades dentre as necessidades que deverão ser atendidas, dentre eles a
implantação e implementação de Programas de Políticas Públicas que retirem do
ambiente das ruas essas e promova a sua inclusão social e restabeleça os laços
familiares, devolvendo, desta forma, a dignidade a essas pessoas e fazendo valer
seus direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:


promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 20
Set. 2018.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Meta Instituto de
Pesquisa de opinião. Pesquisa Nacional sobre a População em situação de rua, 2008.
Disponível em:
http://www.mds.gov.br/backup/arquivos/sumario_executivo_pop_rua.pdf. Acesso em:
25/05/2015.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. Política
Nacional de inclusão social da população em situação de rua, 2008a, 25p. Disponível
em http://www.recife.pe.gov.br/noticias/arquivos/2297.pdf. Acesso em 05/05/2015
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 32.ed. São Paulo:
Saraiva, 2015.
FERREIRA, F. P. M.; MACHADO, S. C. C. Vidas privadas em espaços públicos: os
moradores de rua em Belo Horizonte. Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Editora
Cortez, n. 90, ano XXVII, junho, 2007.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 18.ed. São Paulo: Saraiva,
2014.
MELLO, Cleyson de Moraes. Direitos Fundamentais e Dignidade da Pessoa
Humana. Rio de Janeiro: Freiras Bastos, 2015.
PRATES, J. C.; PRATES, F. C.; MACHADO, S. Populações em situação de rua: os
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Temporalis, Brasilia (DF), ano 11, n.22, p.191-215, jul./dez. 2011.
SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia aos Vinte Anos Da
Constituição Federal De 1988: Notas a Respeito da Evolução em Matéria
Jurisprudencial, com Destaque para a Atuação do Supremo Tribunal Federal.
Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32734-40344-
1PB.pdf . Acesso em 19 Out. 2018.
390

ATIVISMO JUDICIAL: INSTRUMENTO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADO A


CONCRETIZAR NORMAS CONSTITUCIONAIS OU MAIS UMA AFRONTA À
DEMOCRACIA?
JUDICIAL ACTIVISM: INSTRUMENT CONSTITUTIONALLY SUITABLE TO
IMPLEMENT CONSTITUTIONAL RULES OR MORE AFTER DEMOCRACY?

Carla Vanessa Prado Nascimento Santos


Lucas Gonçalves da Silva

Resumo: O presente trabalho visa relacionar as ideias da teoria constitucional


contemporânea: a Constitucionalização Simbólica e o Ativismo Judicial relacionado a
proteção da aplicabilidade das normas constitucionais. Entende-se que a hipertrofia
da função político simbólica da Constituição Federal de 1988 foi um fator para o
Ativismo Judicial no Brasil. O objetivo geral é abordar os variados aspectos ligados a
inexpressiva aplicabilidade de vários dispositivos constitucionais e legais que reflete
nesse caráter simbólico, pontuando os problemas na ausência de sua concretização.
Conclui-se afirmando que o Ativismo Judicial, em matéria de direitos fundamentais,
quando utilizado de maneira responsável e de subsidiária, é, nos tempos atuais, o
meio constitucionalmente adequado de ser ver protegido o Estado Democrático de
Direitos e os valores a ele inerentes.
Palavras- chaves: normas, constitucionalização simbólica, ativismo judicial.

Abstract: This paper aims to relate the ideas of contemporary constitutional theory:
Symbolic Constitutionalism and Judicial Activism related to the protection of the
applicability of constitutional norms. It is understood that the hypertrophy of the
symbolic political function of the Federal Constitution of 1988 was a factor for Judicial
Activism in Brazil. The general objective is to address the various aspects related to
the inexpressible applicability of various constitutional and legal devices that reflects
in this symbolic character, punctuating the problems in the absence of their
concretization. Conclui-se afirmando que o Ativismo Judicial, em matéria de direitos
fundamentais, quando utilizado de maneira responsável e de subsidiária, é, nos
tempos atuais, o meio constitucionalmente adequado de ser ver protegido o Estado
Democrático de Direitos e os valores a ele inerentes.
Key words: norms, symbolic constitutionalisation, judicial activism.

INTRODUÇÃO

Embora há muito tempo se discuta acerca da efetividade e aplicabilidade das


normas constitucionais esse tema ainda encontra-se atual no Brasil e muitos outros
países. Nesse artigo será feita uma analise sobre a problemática da inexpressiva
concretização das normas constitucionais e o fenômeno da Constitucionalização
simbólica proposta por Marcelo Neves.
O trabalho inicia-se fazendo uma análise dos direitos fundamentais como
normas jurídicas, previstos Constituição Federal de 1988 e a importância da sua
implementação. Mas, infelizmente, muitos desses dispositivos constitucionais
carecem de eficácia muito embora a própria constituição trazer de forma expressa que
as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais são dotadas de aplicação
imediata.
391

E, é neste contexto de baixa, ou até mesmo ausência, na concretização de


direitos fundamentais, que se adentra na análise do forte simbolismo presente no texto
constitucional e legal do nosso ordenamento jurídico.
Diante dessa constante inércia do Estado, no tocante à garantia real dos
direitos fundamentais e promoção de políticas públicas, gera-se na população a
sensação de que o texto constitucional é algo irrealizável, surgindo o papel do poder
Judiciário na concretização desses direitos.
Com esse artigo, pretende-se mostrar que o problema da falta de eficácia das
normas constitucionais é algo real e precisa ser combatido com um instrumento
constitucionalmente adequado. A atuação do Poder Judiciário, quando provocado e
agindo apenas na omissão ou inércia dos outros poderes, é um meio legítimo de se
buscar a concretização dos direitos fundamentais e trazer uma aplicabilidade
satisfatória de nossos diplomas normativos.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para fins desse trabalho é mister definir no que consiste direitos fundamentais.
Uma série de conceitos e definições acerca do tema é encontrada em nossa doutrina.
Devido complexidade do tema optou por tomar como base o conceito de George
Marmelstein, muito embora ter consciência de que esse tema não pode ter sua
conceituação exaurida em alguma linhas. Nas palavras de Marmelstein:

Os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à


idéia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas
no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito,
que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o
ordenamento jurídico. (MARMELSTEIN, 2008, p. 20)

Também se faz necessário pontuar as duas funções cruciais dos direitos


fundamentais. Eles garantem aos cidadãos a não ingerência arbitraria do Estado, ou
seja, são mecanismos de limitação do poder estatal e asseguram aos indivíduos
liberdade e autonomia. Além disso, os direitos fundamentais trazem um série deveres
e diretrizes que devem ser executadas pelo Estado, com intuito de garantir aos
indivíduos uma vida digna, como forma de se exercer efetivamente a liberdade.
A Constituição Federal de 1988 trouxe um rol extenso de direito fundamentais
e garantias para sejam implementados e não passem apenas de dispositivos sem
eficácia. Isso é constatado em nosso ordenamento jurídico por meio de vários artigos
constitucionais, a exemplo do artigo que prevê que as normas definidoras dos direitos
e garantias fundamentais são dotadas de aplicação imediata. E, diante da inércia do
Poder Executivo, podem os direitos fundamentais serem implementados mediante
atuação do Poder Judiciário, quando este for provocado.
A adoção do Estado Democrático de Direito pelo Brasil é uma marcante escolha
e está alinhado com os anseios dos tempos atuais. Em razão disso, os direitos
fundamentais sociais, que embora já foram previstos em textos constitucionais
anteriores, ganham um novo destaque e robustez. O constitucionalismo perpetrado
nesse modelo de Estado traz a esperança de que os direitos sociais positivados
venham a ganhar concretude. Esses direitos nascem para inteirar as liberdades
públicas, pois é por meio dos direitos sociais, que busca-se atingir a liberdade e
igualdade não apenas em sentido formal mas, também, em assegurando a sua
efetividade material. São direitos que, ao contrário da liberdade, exigem uma atuação
positiva por parte do Estado para que haja concretização. São os direitos sociais que
392

assumem o papel de reforçar os direitos individuais e permitir que seja feita uma
releitura completa capaz de produzir alterações no significado destes últimos.
Faz-se necessário que haja a concretização dessas normas constitucionais. Ou
seja, a positivação isolada, desprovida de efetividade, não é o suficiente para
promoção dessa inclusão social pretendida pelos direitos sociais.
É neste cenário de baixa inexpressiva na concretização de direitos
fundamentais, muitas das vezes representada pela falta de efetividade prática dos
direitos prestacionais. Essa constante inércia Estado quanto à garantia real de tais
direitos gera na população a sensação de que o texto constitucional é algo irrealizável
tornado possível falar, no Brasil, do que Marcelo Neves denominou de
Constitucionalização Simbólica.
Tomando como base Harald Kindermann, Marcelo Neves apresenta uma
tipologia tricotômica que, em seu entendimento, seria expressiva de seu conteúdo.
Nesse diapasão, a legislação simbólica serviria aos seguintes propósitos: a) fórmula
de compromisso dilatório (adiamento de solução dos conflitos); b) confirmação de
valores sociais; c) demonstração da capacidade de ação do Estado (legislação-álibi):
A) Fórmula de compromisso dilatório: nesse tipo a legislação simbólica
serve para postergar a solução de conflitos socais.
B) Confirmação de valores sociais de um grupo sobre outro grupo: nesse
caso, exige-se do legislador, a confirmação da prevalência de determinados valores
sociais de um grupo em detrimento de outro.
C) Legislação álibi [ demonstração de capacidade de atuação do Estado]: é
aquela que ocorre quando há uma comoção pública, quando há problemas relevantes
na sociedade que choca e, diante da exigência do público aflito, o Estado reage para
tranqüilizar, para acalmar os ânimos do público.
Como conseqüência dessa constituição simbólica, Marcelo Neves chama
atenção para o fenômeno da corrupção sistêmica, que implica na relação de exclusão
e inclusão. Aqueles que precisam de saúde, de educação, ou seja, têm uma
dependência e em contra partida têm garantido pelo Estado o acesso, são abrangidos
pela relação de inclusão. Já a exclusão não significa o isolamento, mas, sim, a falta
de um dos dois lados , em outras palavras, aquele indivíduo tem a dependência porém
não tem acesso aquele direito (exclusão por baixo) , ou ainda, no caso de conseguir
ter acesso, caso deseje, porém não existe uma dependência daquela prestação
estatal (exclusão por cima). Essa relação exclusão/ inclusão gera a figura do
subincluido e o sobreincluido. No campo social isso irá resultar na sobrecidadania e
na subcidadania. O sobrecidadão se apresenta como aquele que possui certas
prerrogativas, certas regalias, porém, ele tem certa a garantia diante dos subcidadãos
e da estrutura estatal, de que não contará com as restrições dos direitos e deveres
estatais. Já o subcidadão não tem acesso às prestações do Estado, mas possui a
garantia de que o sistema funciona rigidamente contra ele.
Desse modo, com uma função político-simbólica mais forte do que a função
normativo-jurídica, resta na implosão da constituição. Com a conseqüência é a
impossibilidade de grande parte dos cidadãos terem acesso às prestações estatais e
de usufruírem da série de direitos previstos na constituição. O Estado é ineficiente na
momento de efetivar as prestações e direitos que ele mesmo se comprometeu por
meio do poder constituinte. Como exemplos podemos citar as políticas públicas
relacionadas ao direito à saúde e ao direito à moradia, dentre muitos outros, como
segurança e educação. Essas dificuldades de efetivação a políticas públicas
relacionadas à saúde, que implicam diretamente no direito a vida do indivíduo,
393

escancara a insubsistência das políticas públicas. Nesse momento, nasce a


necessidade de se provocar a atuação do Poder Judiciário.
Tomando como premissa que cabe ao Judiciário a fiscalização e aplicação das
normas, dentro de um Estado Democrático de Direito, a ele é incumbida a
interpretação da constituição e dos demais diplomas normativos . Com previsão
expressa no texto constitucional, é papel dos órgãos judiciais assegurar e exigir a
cumprimento do ordenamento jurídico. Diante dessa responsabilidade de fazer valer
o texto constitucional e legal surge o papel do judiciário em trazer concretização aos
direitos.
Nesse cenário de ínfima efetividade normativo-jurídica de alguns dispositivos
da Constituição o fenômeno do Ativismo Judicial surge de forma expressiva. O
Ativismo Judicial, bem com a Judicialização, estão a aflorar, incontestavelmente, no
Brasil e em outros países. Esses dois fenômenos ensejam sempre grandes debates
e têm sido palco para muitas críticas ou enaltecimento do Poder Judiciário.
O ativismo Judicial possui origens na jurisprudência estadunidense quando a
sociedade buscou na Suprema Corte amparo por meio de uma atuação proativa para
solução de questões mais sensíveis e reacionárias. O Ativismo Judicial consiste em
uma forma proativa de lidar com situações que inevitavelmente batem a porta do
Judiciário. O próprio texto legal assegura aos indivíduos a garantia da apreciação pelo
Judiciário, confirmando seu papel na democracia e concretização dos direitos
perpetrados na Constituição.
Em um contexto social onde políticas públicas de inclusão e desenvolvimento
deixam a desejar, a prática judicial passou a fazer parte da realidade brasileira. Sendo
a maioria dos direitos fundamentais realizados mediante a atuação dos poderes
representativos, e estes de forma recorrente se mostram ineficientes na
implementação, e sobre a influencia do neoconstitucionalismo, a atuação dos órgãos
judiciais é necessária e legítima. Vem se entendendo que as decisões quanto ao
cumprimento dos direitos sociais mediante políticas públicas não estão em à
disposição da Administração Pública, mas decorrem imediatamente da normatividade
constitucional e, por isso, podem e devem ser controladas pelo Poder Judiciário
(KRELL, 2002, p. 100). Afirma-se que a função da política pública é diferenciar e definir
as formas adequadas de distribuição de recursos disponíveis. Quando os órgãos
prioritariamente responsáveis falham os juízes e tribunais têm a função de correção
(KRELL, 2002, p. 101). Este raciocínio está embasado na ideia de que os direitos
sociais não podem ficar a mercê da inércia legislativa ou de uma momentânea ou
crônica ausência de fundos (KRELL, 2002, p. 102).
Uma das críticas mais recorrentes que surge é o postulado da reserva do
possível. Para Andreas Krell “o argumento da reserva do possível é uma falácia e
trata-se de uma má incorporação de categoria do direito comparado ao Brasil. Afirma
que o Executivo não pode fazer escolhas entre atender uns ou outros cidadãos tendo
como base as limitações orçamentárias disponíveis (KRELL, 2002, p. 51-59) .
Segundo Krell, se o for caso de inexistência de recursos, principalmente se disser
respeito ao direito à saúde, deve-se haver o remanejamento dos recursos de outros
setores, como transporte e remanejamento da dívida. Conclui afirmando que “a
escolha do que é possível ou não com base no orçamento tem que ser revista”
(KRELL, 2002, p. 53).
Flávia Piovesan expressa sua crítica à cláusula da reserva do possível ao
afirmar que o orçamento público não pode servir como limitador da constituição, mas
em verdade: é o orçamento que, “a partir da preferência constitucional que se deu aos
direitos fundamentais, merecem reformulação, caso os recursos financeiros sejam
394

escassos à cobertura geral da demanda financeira do Estado” (PIOVESAN; VIEIRA,


2006, p. 9). Assim, os agentes públicos não estão assistidos de uma “liberdade de
conformação quando o assunto é a “devida” alocação de recursos para satisfação dos
direitos sociais”(PIOVESAN; VIEIRA, 2006, p. 9).
De fato, o Judiciário não é o responsável original pela implementação de
políticas públicas e este trabalho também nem defende a usurpação de atribuições
entre os poderes. O Ativismo Judicial deve ficar restrito a atuar apenas nos casos em
que os demais poderes falharam na concretização das normas constitucionais. Deve-
se priorizar a resolução por meio de medidas não coercitivas e sem a imposição de
obrigações unilaterias, prestigiando sempre o diálogo entre os órgãos políticos,
judiciário e sociedade.

CONCLUSÃO

Os direitos fundamentais estão expressos no texto constitucional e


inegavelmente constituem pilares do Estado Democrático de Direito. As normas
constitucionais são dotadas de imperatividade, e, em razão disso o descumprimento
dessas normas permite a deflagração de mecanismos próprios para garantir a sua
aplicabilidade. Infelizmente o que se assiste corriqueiramente é o a falta de
concretização de vários dispositivos constitucionais. Diante disso, faz-se necessário
que haja a concretização dessas normas, ou seja, a positivação isolada, desprovida
de efetividade, não é o suficiente para promoção dessa inclusão social pretendida pela
constituição.
Assim, sendo, observa-se no Brasil, a presença de um fenômeno chamado por
Marcelo Neves de Constitucionalização Simbólica. Presente em nosso universo
jurídico, conseguimos identificá-lo nas normas que são hipertroficamente político
simbólicas em detrimento da sua dimensão normativo-jurídica. A partir de uma
tipologia tricotômica a legislação simbólica serviria aos seguintes propósitos: a)
fórmula de compromisso dilatório (adiamento de solução dos conflitos); b) confirmação
de valores sociais; c) demonstração da capacidade de ação do Estado (legislação-
álibi). Quando se passa para a constitucionalização álibi, tem-se uma modificação.
Enquanto a legislação álibi é específica, a constitucionalização simbólica é
abrangente, tendo alcance nos diversos âmbitos de validade do direito, seja pessoal,
material e/ou temporal. Portanto, ela tem efeito em todo o sistema jurídico, pois a
constituição serve como auto-fundamentação do sistema jurídico estatal. Nos tipos de
constitucionalização simbólica, é a constitucionalização álibi que vem para responder
a exigência de um público, normalmente depois de regimes ditatoriais, como é o caso
da nossa Constituição de 1988.
Desse modo, com uma função político-simbólica mais forte do que a função
normativo-jurídica, resta na implosão da constituição. Com a conseqüência é a
impossibilidade de grande parte dos cidadãos terem acesso às prestações estatais e
de usufruírem da série de direitos previstos na constituição. O Estado é ineficiente na
momento de efetivar as prestações e direitos que ele mesmo se comprometeu por
meio do poder constituinte. Como exemplos podemos citar as políticas públicas
relacionadas ao direito à saúde e ao direito à moradia, dentre muitos outros, como
segurança e educação. Essas dificuldades de efetivação a políticas públicas
relacionadas à saúde, que implicam diretamente no direito a vida do indivíduo,
escancara a insubsistência das políticas públicas. Nesse momento, nasce a
necessidade de se provocar a atuação do Poder Judiciário.
395

Em um contexto social onde políticas públicas de inclusão e desenvolvimento


deixam a desejar, a prática judicial passou a fazer parte da realidade brasileira. Sendo
a maioria dos direitos fundamentais realizados mediante a atuação dos poderes
representativos, e estes de forma recorrente se mostram ineficientes na
implementação, e sobre a influencia do neoconstitucionalismo, a atuação dos órgãos
judiciais é necessária e legítima.
Com essa procura constante pelo Judiciário para se verem efetivadas as
normas constitucionais este passa a atuar em conflitos que tanto poderiam, como
deveriam ser resolvidas pelo Poder Executivo ou Legislativo. Sendo assim, é
necessário encontrar o ponto de equilíbrio, resguardando a atuação dos órgãos
judiciais quando os demais poderes forem omissos ou falharem, evitando, assim,
eventuais violações ao princípio da separação dos poderes.

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício. Adeus à separação de poderes?. In: ______. A retórica


constitucional. Sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos do direito
positivo. São Paulo: Saraiva, p. 155-165, 2009.
ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o
“direito da ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE). Salvador,
Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 17, jan./fev./mar., 2009.
BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: Os
conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3º Ed. São Paulo.
Saraiva, 2011 p. 105
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Mendes. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha.
Os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2002.
MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008.
NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. 3. ed. São Paulo: Martins
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NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. O Estado Democrático
de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2008.
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
PIOVESAN, Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. Justiciabilidade dos direitos sociais
e econômicos no Brasil: desafios e perspectivas. Revista Iberoamericana de
Filosofía, Política y Humanidades. Año 8, Nº 15: Primer semestre de 2006. Disponível
em: . Acesso em: 20 junho 2018.
396

CASAMENTO HOMOAFETIVO: UMA DECISÃO CONTRAMAJORITÁRIA


SAME SEX MARRIAGE: A CONTRAMAJORITARY DECISION

Paulo César Bernardes Filho

Resumo: A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 teve por objetivo o


reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, mas
teve como pano de fundo uma questão até então pouco tratada pelo Supremo, as
decisões contramajoritárias. Esta questão acaba por fazer sentido, pois, ao se ter uma
leitura mais atenda do caso, e ao se comparar com decisões anteriores e posteriores
do STF pode-se claramente se verificar uma preocupação do Tribunal em privilegiar
a Constituição em sua forma mais simples, a proteção dos direitos das minorias diante
do arbítrio ou do descaso das maiorias. Neste artigo pretende-se dar destaque à
questão da decisão contra majoritária e sua importância na questão específica dos
direitos aos homossexuais, destacando a importância e extensão de uma decisão
dessa natureza.
Palavras chave: decisões contramajoritárias, casamento gay, judicialização, ativismo
judicial.

Summary: The Direct Action of Unconstitutionality No. 4277 had as its objective the
recognition of the same-sex union as a family entity, but had as its background an
issue that until then had not been dealt with by the Supreme Court, the countermajority
decisions. This question ends up making sense, since a closer reading of the case,
and when comparing with previous and subsequent decisions of the STF, it can clearly
be seen that the Court's concern is to privilege the Constitution in its simplest form, the
protection of the rights of minorities in the face of arbitrariness or the neglect of
majorities. This article aims to highlight the issue of the majority decision and its
importance in the specific issue of the rights of homosexuals, highlighting the
importance and extent of a decision of this nature.
Key words: countermajority decisions, gay marriage, judicialization, judicial activism.

Introdução

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 (0006667-55.2009.0.01.0000,


2009), foi proposta em 22 de julho de 2009 pela Procuradoria Geral da República, e
teve por objetivo o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como
entidade familiar, e a concessão dos mesmos direitos e deveres dados às uniões
heteroafetivas.
No que concerne aos argumentos trazidos no julgamento da ADI nº 4.277,
principalmente na argumentação desenvolvida pelo relator da ação, Ministro Ayres
Brito, e pelos votos dos demais ministros do STF que fundamentam a decisão, entendi
como primordial a questão da ausência de vedação na CRFB/88; a compatibilidade
com os fundamentos constitucionais e a aproximação de outras formas de entidades
familiares.
Esta questão acaba fazendo todo sentido, pois, ao se ter uma leitura mais
atenda do caso, e ao se comparar com decisões anteriores e posteriores do STF pode-
se claramente se verificar uma preocupação do Tribunal em privilegiar a Constituição
em sua forma mais simples, a proteção dos direitos das minorias diante do arbítrio ou
do descaso das maiorias.
397

Neste artigo pretende-se dar destaque à questão da decisão contra majoritária


e sua importância na questão específica dos direitos aos homossexuais, destacando
a importância e extensão de uma decisão dessa natureza.
Aqui, resta importante destacar que não é pretensão deste trabalho discutir em
qual medida está sendo exercido o ativismo judicial no Brasil e seus impactos na
ordem jurídica e política ou mesmo debater acerca da competência da Suprema Corte,
mas tão somente construir uma linha de raciocínio que justifica a atuação da Suprema
Corte com vistas a resguardar os direitos fundamentais de todos nós cidadãos
brasileiros.

REGIME REPRESENTATIVO X DECISÕES CONTRAMAJORITÁRIAS

Para iniciarmos o tema necessário se faz entender como funciona o nascimento


de nossa legislação, nossa forma de governo, nosso entendimento de democracia
para, enfim, chegarmos às decisões contramajoritárias, pois, sem esse prévio
entendimento não se terá a real importância de uma decisão que contraria, em tese,
a maioria da população.
Do art. 1º da Constituição Federal de 1988 constam os fundamentos da
República Federativa do Brasil: soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa
humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
No parágrafo único do mesmo artigo proclama-se que todo poder político
emana do povo e que este o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente
nos termos da Constituição.
Já o artigo 2º estabelece a independência e harmonia dos Poderes, isto quer
dizer que o poder do Estado na pessoa de seu titular é indivisível – do ponto de vista
jurídico, o Estado não é uma nem várias pessoas físicas, mas sempre uma pessoa
jurídica. A divisão se faz no exercício do poder, distribuídas quanto ao exercício das
funções do Estado uno: legislativo, executivo, judiciário. Essa divisão de funções visa
evitar a concentração do poder numa única pessoa. Nesse caso, não há divisão do
poder do Estado, mas do exercício de suas diferentes funções.
Já no artigo 3º são enumerados os objetivos fundamentais do sistema
republicano, assim enunciados: construir uma sociedade livre, justa e solidária,
garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir
as desigualdades sociais e regionais e promover o bem comum, sem a eiva
preconceituosa das discriminações injustas, derivadas da origem, da raça, do sexo,
da cor e da idade.
Com todos esses ditames constitucionais, por certo, é a democracia a forma de
governo escolhida pelo povo brasileiro como sendo a melhor forma de gestão do país.
Conceitua-se esta, por ser um regime político em que a soberania pertence ao povo,
que a exerce direta ou indiretamente, por meio de representantes eleitos.
Alexandre de Morais (Moraes, 2011) afirma que a defesa de um Estado
Democrático pretende, precipuamente, afastar a tendência humana ao autoritarismo
e concentração de poder. Como ensina, citando Giuseppe de Vergottini, o Estado
autoritário, em breve síntese, caracteriza-se pela concentração no exercício do poder,
prescindindo do consenso dos governados e repudiando o sistema de organização
liberal, principalmente a separação das funções do poder e as garantias individuais.
Uma democracia é representativa no duplo sentido de possuir um órgão no qual
as decisões coletivas são tomadas por representantes, e de espelhar, através desses
representantes, os diferentes grupos de opinião ou de interesse que se formam na
sociedade.
398

Constituição Federal de 1988 sem dúvida refletiu legitimamente a vontade do


povo brasileiro, por esta razão costuma ser denominada "Constituição Cidadã".
Os doutrinadores entendem que ela é representativa do povo por elencar um
vasto conjunto de garantias a direitos e liberdades individuais numa amplitude sem
precedentes na história constitucional do país.
Isto porque, como defende Moraes (Moraes, 2011), o problema da legitimação
democrática possui dimensão mais elástica e, por isso mesmo, nem sempre se
resolve singelamente pela regra majoritária, a qual se presta, no mais das vezes, a
justificar apenas o acesso ao poder.
Nesse cenário, em regra, é o Poder Judiciário - e não o Legislativo – que exerce
um papel contramajoriário, exatamente por não ser compromissado com as maiorias
votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção
dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias.
Nos últimos anos, tem se percebido uma atuação cada vez mais incisiva do
Supremo Tribunal Federal, suscitando o debate institucional entre os três Poderes,
especialmente ante a mudança paradigmática que atribuiu supremacia às normas da
Constituição, sendo clara a influência do neoconstitucionalismo.
Como se vê até aqui, a regra da maioria fundamenta o regime democrático,
uma vez que os representantes do povo são escolhidos através da maioria eleitoral,
designadamente nos Poderes Legislativo e Executivo.
Mas a Constituição Federal de 1988, por sua vez, declara expressamente, logo
em seu art. 1º, parágrafo único, que o poder pertence ao povo e é exercido por meio
de seus representantes eleitos, em regra, pelo voto da maioria.
É possível, então, extrair que a vontade da maioria não pode ser absoluta, sob
pena de desrespeitar as chamadas condições democráticas.
Ou seja, quando há impedimento ao exercício dos direitos políticos, resta ferida
a garantia de participação de todos, o que decorrente da regra da maioria, mormente
a valorização do interesse geral e resguardo da igualdade e da liberdade advindo do
princípio democrático.
É claro que o Princípio da Maioria é imprescindível no processo decisório
democrático, que ocorre na esfera Legislativa e Executiva, por se tratarem de uma
forma de governo democraticamente legitimado.
Ocorre que, o Princípio da Maioria com representatividade legitimada pelo
poder do povo, não se habilita a justificar a ofensa aos direitos fundamentais das
minorias ou não concretização de direitos fundamentais, pois isso poria em risco a
própria característica essencial do Estado de Direito Democrático.
No que concerne à indisponibilidade dos direitos fundamentais, devemos
considerar que o constitucionalismo aparece como fronteira insuperável imposta ao
poder democrático, ainda que se condicione a existência do Estado de Direito à
democracia.
Neste ponto, que se apresenta fundamental a ação judicial validando as
posições contramajoritárias, pois, estas ações importam em estabelecer limites às
maiorias; e o poder democrático representativo em atenção às necessidades
recorrentes das minorias não atendidas em seus pleitos, ou mesmo desrespeitadas,
pela dominante maioria.
A defesa de uma posição contramajoritária, em tese, consiste em dar uma
resposta às demandas sociais não satisfeitas pelas instâncias políticas tradicionais,
ou seja, o poder representativo majoritário.
A regra da decisão pela maioria pode representar uma ameaça aos direitos das
minorias, uma vez que as representações majoritárias, em especial no Brasil, estão
399

arraigadas em conceitos morais e religiosos, com destaque ao populismo extremo dos


representantes do Legislativo e Executivo.
Estes poderes representativos, e sim, com total eficácia e legitimação popular,
controlam o poder e tem a tendência natural ao abuso enquanto não encontrassem
freios diante de si. Podemos, nestes termos considerar que o problema da democracia
representativa da maioria, então, com sua grande virtude: é o domínio da maioria a
despeito dos interesses dos grupos minoritários.
Sob este prisma, que se mostra a importância de uma posição
contramajoritária. Mas afinal, como uma posição contramajoritária pode se
apresentar? Não por outra forma que pelo poder judiciário, em decisões objetivas em
casos concretos, o que a doutrina vem chamando de judicialização das questões
políticos sociais, e no ativismo judicial que o STF vem desempenhando nos últimos
anos de forma frequente.
Sem qualquer sombra de dúvidas a Judicialização e o ativismo judicial é tema
de extrema relevância entre aqueles que operam o Direito na atualidade. Isso se dá
devido ao fato de, com o fortalecimento da justiça constitucional e o consequente uso
de novos métodos de interpretação, aliado, ainda que longe do consenso, ao
reconhecimento da força normativa principiológica da Constituição.

O CASAMENTO HOMOAFETIVO: UMA DECISÃO CONTRAMAJORITÁRIA


IMPORTANTE

Caso emblemático para retratar a problemática aqui debatida se dá no tocante


à questão da união dos homoafetivos e a possibilidade de igualar seus direitos aos
heteronormativos. Este tema causou uma série de debate por anos na sociedade e
no Legislativo e apenas se tornou uma realidade no país graças a atuação do STF em
uma decisão contramajoriária que vem sendo discutida há um longo tempo no cenário
político e jurídico nacional, senão vejamos.
Barroso (Barroso, 2009) compreendeu bem esta questão e entende que “os
atores políticos, muitas vezes, para evitar o desgaste, preferem que o Judiciário
decida questões controvertidas, como aborto e direitos dos homossexuais”
Ante a inércia do Legislativo a Procuradoria Geral da República em Ação Direta
de Inconstitucionalidade nº 4277, foi proposta em 22 de julho de 2009, judicializou a
questão que teve por objetivo o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo
sexo como entidade familiar, e a concessão dos mesmos direitos e deveres dados às
uniões heteroafetivas.
Diante da realidade representada pelas uniões homoafetivas, o STF, na
ausência de lei específica, viu-se na contingência de reconhecer e disciplinar – à luz
dos princípios constitucionais – uma quarta forma de família, que não havia sido
prevista, ou seja, a família formada pelos homoafetivos que culminou no
reconhecimento do chamado “casamento gay”.
Na decisão inicialmente, pontuou-se que o tratamento normativo dado pela Lei
Maior em relação à diversidade de gênero não a coloca como fator de diferenciação
jurídica. Há, nesse sentido, a proibição constitucional de discriminação das pessoas
em razão do sexo, seja no nível de gênero, seja quanto à orientação sexual de cada
um. Dessa feita, esclareceu-se que nas quatro vezes em que o vocábulo “sexo”
aparece na Constituição de 88 (inciso IV, art. 3º; XLVIII, art. 5º; XXX, art. 7º; II, §7º,
art. 201) objetiva-se a mera distinção entre as duas espécies do gênero humano,
masculina e feminina.
400

Dessa forma, as normas constitucionais não excluiriam qualquer modalidade


do uso concreto da sexualidade de cada um, antecipando a licitude da conduta
referente à preferência sexual, seja ela qual for.
Em seu voto o Ministro Fux afirmou que “poder-se-ia dizer que os inúmeros
princípios constitucionais, quase a Constituição como um todo, conspiram em favor
dessa equalização” e que o reconhecimento da união homoafetiva seria uma
emanação do princípio da dignidade da pessoa humana (III, art. 1º, CRFBB/88), em
especial o direito à liberdade (art. 5º, II, CRFB/88), à intimidade e vida privada (art. 5º,
X, CRFB/88).
Ainda como emanação da dignidade da pessoa humana, citou-se o princípio
do reconhecimento, especialmente aplicado às minorias que não possuem posição
majoritária, como os homossexuais hodiernamente. Nesse ponto, destacou-se o
caráter tipicamente contramajoritário dos direitos fundamentais, que podem, inclusive,
restringir a soberania popular. O Supremo, ao confirmar a prevalência desses direitos,
mesmo contra a visão da maioria, exerce seu papel de guardião da Constituição
Federal.
A Ministra Carmem Lúcia afirmou que “seria impensável assegurar
constitucionalmente a liberdade e igualdade e, no mesmo diploma, trazer regra
contraditória em que se tolha a liberdade e se desiguale sua cidadania em função da
opção sexual”.
Por fim, no entender dos Ministros, a própria Constituição entende o rol de
direitos fundamentais como não limitativo aos expressamente elencados (art. 5º, §2º,
CRFB//88), podendo-se prever outros a partir do regime e dos princípios
constitucionais ou de tratados internacionais assinados pelo Brasil.
A respeito do tratamento constitucional do instituto “família”, defendeu-se uma
interpretação não reducionista do mesmo. Nos diversos dispositivos constitucionais
que se referem à família (como o art. 7º, IV ou XII, art. 5º), pressupõe-se apenas um
conjunto doméstico autônomo, sem distinção em razão do gênero dos casais ou de
qualquer formalidade. O amor seria, assim, elevado a principal elemento formador da
entidade familiar, a qual não estaria mais vinculada a um critério biológico.
É claro, portanto, o deslocamento da proteção constitucional do casamento
para as relações familiares em si. A partir dessa perspectiva, deve-se interpretar os
institutos contidos no art. 226 da Constituição de 1988.
Com base nos argumentos expostos, fez-se à análise da constitucionalidade
do art. 1.723 do CC/02, objeto da ADI em comento. Por reproduzir o texto
constitucional do §3º do art. 226 da CRFB/88, interpretou-se primeiramente a própria
norma do dispositivo constitucional para concluir sobre a aplicabilidade do art. 1.723.
Ademais, como demonstrando ao longo da decisão, os princípios
constitucionais apontam para uma igualdade entre os gêneros, os quais,
independente de seu modo de vida, tem direito fundamental à liberdade, em todos os
seus aspectos, incluindo a escolha sexual, sentimental e de convivência com outrem.
Como afirmado pela ministra Carmem Lúcia, “Para ser digno há que ser livre”, e o que
é indigno levaria ao sofrimento imposto, o que é antidemocrático.
A mesma lógica se estende ao art. 1.723, CC/02, o qual também traz a
referência de “homem e mulher” para conceituar a união estável. Frente à
possibilidade de interpretação discriminatória, o STF concedeu interpretação
conforma a Constituição, para o reconhecimento da união homoafetiva como
“entidade familiar”. Exclui-se, assim, qualquer significado que impeça o
reconhecimento da mencionada união, que deve se submeter as mesmas regras da
união heteroafetivas.
401

Anota-se que nesse ponto houve divergências laterais dos Ministros Ricardo
Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso, os quais manifestaram-se pela
impossibilidade do enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família
estabelecidas pela Constituição. Apesar do desacordo, reconheceram a união entre
pessoas do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Sobre o impasse,
o relator observa que a matéria é aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do
reconhecimento da imediata auto- aplicabilidade da Constituição.
Observou-se ainda que as uniões estáveis homoafetivas possuiriam não só os
mesmos benefícios das uniões heteroafetivas, mas também os mesmos ônus,
havendo a necessidade de comprovação da convivência continua, duradoura e com
o escopo de constituição de uma entidade familiar; além da publicidade (requisito que
pode ser temperado, vez que é compreensível o segredo de muitos relacionamentos).
Inegável que esta decisão foi um avanço para a sociedade civil. É o estado
reconhecendo uma situação, que até então estava na invisibilidade e marginalidade,
para lhe dar legitimidade.
Importante reconhecer que esta decisão não seria tomado pelo Legislativo, a
questão já é abordada há muitos anos no congresso sem qualquer perspectiva de ser
pautada e votada. Pois, como disse Barroso (Barroso, 2009) “os atores políticos,
muitas vezes, para evitar o desgaste, preferem que o Judiciário decida questões
controvertidas”.
Tramita no STF outras questões importantes que terão que ser decididas com,
ou não, apoio da sociedade. São questões que por ser de cunho “eleitoreiro” não serão
pautadas no Legislativo, como dizem: “casamento gay” não dá voto! Bem como o
aborto, regularização das drogas ilícitas e até mesmo o uso de banheiros – já está em
julgamento no STF ação que pretende autorizar os transexuais a usarem o banheiro
a qual se identificam (masculino ou feminino) - entre outros temas relevantes.
Não há como negar a importância da suprema corte na vida cotidiana das
pessoas, até mesmo porque o STF já chegou aos banheiros dos centros comerciais
e não pode, como o Legislativo, deixar de analisar as questões, mesmo que isso
pareça ser contrária ao poder que emana do povo.

REFERÊNCIAS

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194.
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Janeiro: Paz e Terra.
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MACEDO, D. (s.d.).
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402

MÜLLER, F. (2011). Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. São


Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
NOVAIS, J. R. (2006). Direitos Fundamentais: Trunfos contra a maiori. Coimbra:
Editora Coimbra.
VIEIRA, O. V. (2008). Supremogracia. Revista Direito GV, 441-464.
Site: STF
0006667-55.2009.0.01.0000, A. -A. (20 de julho de 2009). STF. Fonte: STF:
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20/07/2018.
0057248-27.2013.8.24.0000, R. E. (20 de julho de 2013). STF. Fonte: STF:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=845779&c
lasse=RE&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M - acessoado em 20/07/2018
403

CIBERDEMOCRACIA E OS MÉTODOS COADJUTORES NA PREVENÇÃO DO


SUICÍDIO
CYBERDEMOCRACY AND COADJUTOR METHODS IN SUICIDE PREVENTION

Mélody Higino do Bonfim


Giovanna Hingreadh do Nascimento Oliveira
Eudes Vitor Bezerra

Resumo: O suicídio é um grave problema de saúde pública em debate em todo o


mundo. O aumento do uso de tecnologias digitais coincidiu com o crescimento de
tentativas de suicídio nos últimos anos. E com base nesse pressuposto, este trabalho
buscou investigar através do método dialético, qualitativo e quantitativo, por
intermédio dos dados publicados pela OMS (Organização Mundial de Saúde)
coadjutores no mundo virtual que buscam prevenir e sensibilizar adolescentes mais
expostos a dispositivos eletrônicos, bem como os estímulos que provocam a
automutilação e o suicídio por meio de diversas formas de atividades on-line, com foco
em como a internet tornou-se ferramenta central em uma realidade que se busca
liberdade de expressão e independência virtual, demonstrando a importância de
reconhecer a potencialidade da internet, mas também suas limitações na efetivação
da ciberdemocracia em relação ao suicídio na esfera digital, confrontando assim a
cautela do estado.
Palavras-chave: Democracia; internet; suicídio.

Abstract: Suicide is a serious public health problem being debated around the world.
The increase in the use of digital technologies coincided with the growth of suicide
attempts in recent years. Based on this assumption, this work sought to investigate
through the dialectic method, qualitative and quantitative, through data published by
the World Health Organization (WHO) coadjutors in the virtual world that seek to
prevent and sensitize adolescents more exposed to electronic devices, as well as the
stimuli that provoke self-mutilation and suicide through various forms of online
activities, focusing on how the internet has become a central tool in a reality that seeks
freedom of expression and virtual independence, demonstrating the importance of
recognizing the potential of the Internet, but also its limitations in the effectiveness of
cyberdemocracy in relation to suicide in the digital sphere, thus confronting the state's
caution.
Keywords: Democracy; internet; suicide.

INTRODUÇÃO

A democracia trouxe grandes mudanças a sociedade, visto que, esse regime


possibilitou a conquista pelos direitos que pertence a todos atualmente, e através da
tecnologia a democracia vêm se efetivando cada vez mais através das redes sociais.
A metodologia que será utilizada ao longo deste projeto, por melhor se amoldar
ao estudo, é a dialética, de forma, a investigar através da contraposição de elementos
conflitantes a compreensão da necessidade de falar sobre suicídio, seja em esfera
virtual ou não. Empregada em pesquisa qualitativa e quantitativa por intermédio de
dados e pesquisas publicados pela Organização Mundial de Saúde.
No primeiro capítulo será apresentado um breve conceito sobre a Democracia,
e a internet como maior auxiliadora nos avanços sociais atuais. Sendo hoje, a internet
o meio de comunicação mais usado no mundo, de forma que se entenda, que acessar
404

os meios digitais atualmente, é fazer parte da democracia, ou melhor,


ciberdemocracia. E estando ativamente participando das redes virtuais, um e-cidadão,
é personagem imprescindível para efetivação da ciberdemocracia.
No decorrer do trabalho, será abordado sobre o que se entende por suicídio e
suas transições na vida de um adolescente, mostrando a importância das limitações
interpostas pelos pais ou responsáveis. E como é necessário dar espaço a esse
assunto extremamente urgente e importante no mundo virtual.
Após os itens elencados acima, apresentar-se-á uma análise conclusiva do
estudo realizado, de forma, a confrontar a cautela do estado sobre o respectivo
assunto, demonstrando assim, a necessidade de quebrar o tabu pessoal e virtual, e
levar orientação eficiente há quem necessita, e só encontra na internet influenciadores
que são a favor do suicídio, transformando as ideações suicidas de um adolescente
em tentativas até que se alcancem a consumação.

DEMOCRACIA, E A INTERNET COMO BASE PARA OS AVANÇOS SOCIAIS


CONTEMPORÂNEOS, “CIBERDEMOCRACIA”

O conceito de democracia surgiu na Grécia, uma ideia que se aprimorou e foi


acolhida por defender a liberdade, igualdade e a livre expressão, ou seja, existe um
poder soberano, "poder maior", que é patrimônio coletivo, pertencente a todos.
Segundo Eudes Vitor Bezerra a democracia visa garantir direitos e preservá-
los contra um regime que se efetiva a partir da participação do povo, sendo este, o
regime tirano. "[...] A democracia se concretiza quando se tem por finalidade criar um
ambiente político [...]", ou seja, um ambiente onde haja participação integral de todos
os que façam parte. O mesmo complementa dizendo que o sistema se regula no poder
dos "demos", ou seja, o "povo". (Bezerra, E.V., 2016, pg.30).
E através desses avanços tecnológicos, se propagaram os conceitos sobre o
espaço virtual, dispondo de participação econômica, social e política, denominada
Ciberdemocracia, e nesse contexto surge o personagem do e-cidadão, sujeito que
participa do processo popular através das redes sociais. “A figura do e-cidadão torna-
se imprescindível para efetivação do processo democrático, tendo as redes sociais
importante papel nesse feito” (Bezerra, E.V. 2016, pg.41).
E entre todas as evoluções democráticas ao longo dos anos, o maior destaque
foi o surgimento da internet, meio que possibilitou o acesso a infinidade de
informações, e indiretamente nos instigou a pensar criticamente sobre a
ciberdemocracia que almejamos e a tecnologia que hoje necessitamos para atingir
novas oportunidades e finalidades para efetivar a democracia.
Ou seja, através da rápida propagação da internet e do uso generalizado na
sociedade atual, os cidadãos têm necessidade de acesso a esses novos mecanismos
digitais. E os jovens estão cada vez mais conectados a era digital e a assuntos cada
vez mais peculiares, que causam cada vez mais efeitos negativos na vida de cada um
deles, se continuar a existir um tabu sobre o assunto, conforme será estendido no
próximo tópico.

O AVANÇO TECNOLÓGICO SEM LIMITES NA EFETIVAÇÃO DEMOCRÁTICA DE


JOVENS NA ATUALIDADE, “DECRÉSCIMO DE DESEMPENHO”,

Como explicado anteriormente, a internet no mundo atual é de grande


importância no cotidiano de cada ser humano, sendo hoje utilizada como principal
405

fonte de trabalho. Porém, o uso excessivo e inadequado da internet entre jovens tem
se tornado um grande problema para o desempenho da sociedade.
Estudos apontam que os jovens da atualidade vivem, de certa forma, isolados,
por passarem maior parte de seu tempo conectados as redes sociais. Se tornando
assim, as redes sociais um dos principais fatores de decréscimo de desempenho.
Há quem diga, que a rede está revolucionando a democracia e sua efetivação,
tornando-se assim, a internet ferramenta central em uma sociedade que busca
liberdade de expressão, pluralidades de informações e independência virtual. Porém,
é imprescindível, quando se fala de adolescentes que apesar de deixá-los explorar a
potencialidade do mundo da informação, se conheça os limites das redes virtuais e
sites que integram a parte obscura da internet.
Segundo Sérgio Amadeu da Silveira, as novas tecnologias estão reinventando
o fazer democrático, com o surgimento de novas e eficazes ferramentas de
participação popular, inclusive na possibilidade da figura do e-cidadão colaborar com
o Poder Público e acompanhar suas ações, com a transparência proporcionada
pela internet (SILVEIRA, 2002).
É necessário então, o investimento na literacia digital desde os primeiros anos,
para efetivação da democracia entre todos, mas nunca deixar de observar os riscos
eminentes, tendo assim, que haver cada vez mais mecanismos para sensibilizar e
alertar estas temáticas, como em especial o suicídio entre jovens, , para que assim, o
acesso ao mundo virtual não gere desvantagens emocionais e acarrete em ideações
suicidas, conforme será abordado nos próximos tópicos.

SUICÍDIO, “SUI CAEDERE, MATAR-SE”,

A palavra suicídio foi criada por Desfontaines em 1937, com origem no latim
“sui (si mesmo) e caederes (ação de matar). O suicídio é uma prática efetiva que
envolve sempre uma grande dose de sofrimento, angústia, tensão e desespero.
É uma ação de buscar a morte como refúgio para um sentimento oprimido que
se torna insuportável viver com ele. Essa dor poderá ser real ou ser uma consequência
de uma crise de natureza efetiva, como por exemplo, uma depressão com sintomas
delirantes ou uma psicose em seu grau mais agudo.

SUICÍDIO ENTRE ADOLESCENTES, “A IDEAÇÃO, A TENTATIVA E A


CONSUMAÇÃO”,

Segundo a OMS, a adolescência é o período entre 10 e 19 anos, a transição


da infância para fase adulta. E por se encontrar nessa fase de transição, o adolescente
se encontra mais suscetíveis a sentimentos de angustias e incertezas, geralmente
ligados a autoimagem, por estarem mais vulneráveis ao mundo e ao estimulo social,
conforme explica (Figueiredo, 2015).
Sendo assim, o suicídio se divide em três etapas: a ideação suicida, que pode-
se descrever como pensamentos sobre suicídio e planejamentos detalhados sobre a
pratica do ato; a tentativa, que é o ato de autoagressão com a intenção morrer, porém,
sem o alcance do pretendido; e a consumação, que é a junção dos pensamentos
suicidas com o planejamento e a tentativa com o resultado morte.
Os adolescentes cometem com mais frequência as duas primeiras etapas. E
na maioria dos casos, existem situações estimuladoras a essa prática, que são por
exemplo: o uso de substâncias psicoativas, álcool, exposição a violência, seja
406

doméstica ou virtual, histórico de abuso sexual. Essas situações se tornam geradores


de transtornos mentais, depressão e ansiedade como estenderei no próximo tópico.

CARACTERÍSTICAS DE UM ADOLESCENTE SUICIDA, “COMPORTAMENTOS


SUICIDA”,

Apesar de existir dificuldades em uma relação aberta com adolescentes, é


possível identificar indícios de sofrimento através da mudança do comportamento
pessoal e social.
O suicida deixa sinais e pistas de que está passando por um grave sofrimento
mental. E existe duas formas de como a pessoa agirá nessa situação.
O jeito introvertido, que é o isolamento, se antes a pessoa era mais aberta e
comunicativa, passará a se desfazer de seus laços afetivos e de seus valores
pessoais. E o jeito extrovertido, que provavelmente conseguirá falar sobre seus
medos, dificuldades, sobre a morte e a falta de sentido na vida, e posteriormente
passará a ser mais calado e com menor envolvimento pessoal.
Pode-se considerar também, como um dos comportamentos suicidas o uso
inesperado e abusivo de drogas, que podem ser considerados pelos adolescentes um
refúgio do mundo real.
Outra característica importante, é a falta de compromisso com o trabalho,
escola, faculdade de acordo com as responsabilidades de cada um e o uso
compulsivo, ou seja, sem descanso ou pausas de aparelhos eletrônicos. A dor se torna
tão intensa, que o indivíduo escolhe se isolar de tudo. E desta forma, o suicídio na era
digital desperta cada vez mais medo, pelo lado obscuro do mundo digital, conforme
será discorrido a seguir.

SUICÍDIO NA ERA DIGITAL, “JOVENS CONECTADOS, REDES QUE GERAM


DORES”,

Através das ferramentas de busca na internet, é possível identificar uma gama


de termos e pesquisas relacionados ao suicídio, buscas de pessoas que tentaram se
suicidar e pessoas que se suicidaram.
Segundo (Wendt e C.S.Macedo Lisboa, 2013) o destaque entre os pesquisados
reside nos métodos de suicídio, que incluem, facilitação e encorajamento ao suicídio.
E quando o assunto é a busca de conteúdos abordando suicídio, o Brasil desponta
como líder entre os países da América Latina.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o oitavo país em
número absoluto de suicídio no mundo. Em 2012 o Brasil registrou cerca de 30 mortes
por dia, resultando em 11.821 suicídios neste ano. Suicídios, que em grande parte,
havia possibilidade de ser evitado ou interrompido.
E é submundo da internet, onde se desenrolam os assuntos mais grotescos e
bárbaros, como a Deep Web, onde se encontra livremente fóruns com vídeos
criminosos, como estupros, assassinatos, torturas, suicídio e muitas outras. A Surface
Web, o qual você acessa diariamente uma porção “legalizada”, que pode gerar trilhas
mal iluminadas na vida de um jovem.
Essas entradas guardam riscos potenciais à jovens, mesmo sem qualquer
transgressão aparente. Existem, por exemplo, comunidades nas redes virtuais que
alimentam a morbidez humana, divulgando pessoas que se automutilaram até chegar
a consumação do suicídio, deixando explicito, que a morte é a solução para felicidade,
e consequentemente assim, fazendo com que jovens tenham ideações suicidas.
407

De tão delicado que é o tema, tornou-se pouco debatido. A ONU, por sua vez,
por este motivo oferece capacitação para que jornalistas escrevam sobre o tema sem
remeter o efeito contágio.
E mesmo estando nítido os riscos que os jovens correm estando expostos ao
mundo digital sem preparação, é fundamental a utilização das mídias sociais para a
sociedade civil em que todos se encontram atualmente, conforme será discorrido no
próximo tópico.

INTERNET AUXILIANDO MOVIMENTOS SOCIAIS DE PREVENÇÃO AO SUICÍDIO,


“DEMOCRACIA NA ERA DIGITAL”,

A atuação de ferramentas auxiliadoras na prevenção do suicídio em rede digital


é o ponto de partida de mais extrema importância, pelo fato, dos jovens
comunicadores disporem quase que o tempo todo seu tempo em redes sociais.
Com o avanço tecnológico e a privatização dos espaços virtuais onde se
realizam os debates democráticos e manifestações populares, as discussões sobre
assuntos influentes ficou para as redes sociais, como instagram, facebook e twitter,
de forma que cada cidadão deixou de ser apenas expectador das decisões populares
e passou a fazer parte da ciberdemocracia.
Os programas de prevenção ao suicídio são fundamentados, na relação entre
fatores de risco e fatores de proteção a pessoa. Isso significa que identificar os fatores
de risco permite ações de intervenções junto aos fatores de proteção.
Desta forma, a atuação nas redes em combate ao suicídio tornou-se ainda
maior, com a participação de organizações não-governamentais (ONGS), entidades
religiosas, órgãos públicos, comunidades virtuais e ferramentas auxiliadoras na
prevenção do suicídio criadas pelas redes virtuais.
Sendo algumas delas, a equipe de saúde interdisciplinar de um Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS), que atuam em Saúde Mental e, por conseguinte,
trabalham no manejo de casos relacionados ao suicídio. A Associação Brasileira de
Estudos e Prevenção do Suicídio (ABEPS), que possui o intuito de desenvolver
projetos que envolvam o poder público. O Centro de Valorização da Vida (CVV) realiza
apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas
as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, e-mail e
chat 24 horas todos os dias.
E atualmente, existe o mundo virtual que está acompanhando as necessidades
da sociedade atual e criando formas de combater o suicídio, conforme será abordado
no próximo tópico.

REDES VIRTUAIS E SUAS FERRAMENTAS AUXILIADORAS NA PREVENÇÃO DO


SUICÍDIO,

No mundo virtual o Facebook, uma das redes sociais comunicadoras mais


usadas no mundo, criou recentemente ferramentas que permitem que os usuários
alertem a rede social e sejam orientados quando detectarem algum amigo com
tendências suicidas.
Segundo, Leila Herédia, vice coordenadora do posto de Brasília do CVV, a
ferramenta permite que usuários identifiquem, pelos posts, amigos que estejam
passando por problemas ou depressão e possam precisar de ajuda. "A pessoa poderá
clicar e denunciar uma publicação. O usuário deve indicar que a publicação não
408

deveria estar no Facebook e seguir o passo a passo", explica. "O Facebook tem uma
equipe que fica 24 horas por conta desse tipo de notificação", conta.
Em fevereiro de 2018, o Facebook em parceria com a Unicef lançou uma
parceria para ajudar adolescentes que tiveram vídeos ou fotos íntimas expostas na
internet, ou seja, foram alvos da chamada pornografia de vingança, e que
consequentemente gera ideações suicidas.
A rede social e o braço da ONU para criança e adolescente criaram um robô
que usa o Messenger para conversar sobre o compartilhamento de imagens íntimas
sem consentimento, e deram rosto e nome para o robô: Fabi Grossi. Ela também é
uma adolescente e tem uma história para contar: aos 21 anos, acabou de descobrir
que o ex-namorado, com quem se relacionou por dois anos, vazou um vídeo íntimo
dos dois.
A conversa com a personagem fictícia, conta com toda uma situação em que
muitas adolescentes atualmente se encontram “revenge porn”, ou seja, exposição
erótica e pessoal por vingança. Com áudios, imagens, prints, tornando a experiência
o mais real possível.
E o mais especial dessa comunidade é o fato de colocar os adolescentes na
qualidade de orientadores, trazendo uma reflexão que os faça questionar “E se fosse
comigo?”, “Eu seguiria as minhas próprias orientações?”
Já o twitter no dia 10 de setembro de 2018, no Dia Mundial de Prevenção ao
Suicídio, anunciou uma nova parceria com Centro de Valorização da Vida (CVV), com
o intuito de ajudar e propiciar informações a pessoas que demonstrem estar
propensas ao suicídio.
O serviço que o twitter e a CVV proporcionou #ExisteAjuda busca por termos
relacionados ao suicídio ou automutilação, e desta forma, envia ao usuário com essas
características informações sobre como contatar o CVV e ajuda.
"Você pode obter ajuda. Se você ou alguém que você conhece está passando
por um momento difícil ou em crise, vocês não estão sozinhos. Nosso parceiro CVV
pode ajudar. Ligue gratuitamente 188 de qualquer lugar do Brasil", diz a mensagem,
que tem um botão para contatar diretamente o serviço.
No instagram, os usuários que visualizarem posts de amigos que pareçam estar
passando por dificuldades e com ideações suicidas, poderão enviar u aviso anônimo
para a rede social, de forma, que a pessoa, será aconselhada, além disso, algumas
hashtags suspeitas também poderão ativar avisos automáticos da rede.
Qualquer usuário poderá usar a opção denúncia e enviar o relato para
companhia. Assim, o instagram será acionado, e uma mensagem será enviada ao
usuário “alguém viu o post e pensa que você pode estar passando por momentos
difíceis. Se precisar de suporte, podemos ajudar”.
É visível, a preocupação dos meios digitais crescendo a cada ano em relação
a esse tema, no entanto, ainda há grande resistência em abordar esse assunto dentro
dos parâmetros da democracia digital, de maneira, que seja possível uma interação
social por todos os lados, como será estendido no próximo e último tópico.

CONCLUSÃO, “CIBERDEMOCRACIA E OS MÉTODOS COADJUTORES NA


PREVENÇÃO DO SUICÍDIO”,

Através deste trabalho entende-se o quão importante e positivo foi a evolução


da democracia, e como a era digital está a cada dia facilitando cada vez mais a vida
dos cidadãos. E que da mesma forma que como toda evolução traz coisas boas,
também trouxe um lado obscuro a realidade de alguns jovens.
409

Falar sobre suicídio, é falar sobre democracia, é falar sobre vidas, é querer
cidadãos informados, com responsabilidade e respeito, é estar efetivando a
democracia. Para Durkheim, o Estado não era o resumo do pensamento popular, mas
um pensamento mediato e separado do coletivo, ou seja, não é porque alguns órgãos
acreditam que falar sobre suicídio causará efeito inverso, que não podemos pensar e
agir de forma diversa. Mas, é necessário a quebra desse tabu.
Durkheim, seguindo nessa mesma linha de pensamento, defendia a criação de
subgrupos, responsáveis por atuar como intermediários dos “demos”, povo. Ou seja,
desta forma o povo está efetivando a democracia exercida entre os cidadãos e
subgrupos e entre grupos e estado.
Trazendo a ideia de Durkheim para Era digital, entende-se, que mesmo que o
estado pense de forma diversa, o cidadãos possuem o dever e direito de abordar
pensamentos e temas que convém a integridade física e moral de cada um, e que é
importante para o avanço democrático e social. Demonstrando que o pensamento
coletivo é importante, e que através do espaço digital que hoje é atribuído a cada
cidadão se pode opinar sobre tudo, e que isso é a mais completa e correta forma de
participar e efetivar a democracia digital, a ciberdemocracia.
Acoplando ainda mais o ponto de vista que este trabalho buscou investigar e
esclarecer, Durkheim também expõe que o suicídio é um fato social e está ligado as
motivações individuais e influencias de natureza coletiva que cercam o indivíduo, ou
seja, as taxas de suicídio devem ser explicadas de acordo com as características da
sociedade em que os indivíduos se encontram.
Ficando assim, explicito a necessidade e urgência da inclusão de debates
sobre suicídio na era digital. Abordando, tudo sobre esse tema, como os geradores
de ideações suicidas, a influência das redes, a influência da sociedade atual, a
obscuridade do meio digital, os cuidados que devem ser tomados, e a forma de
identificar uma pessoa com característica suicida e entre muitos outros.
Explorando não apenas os aspectos biológicos e psicológicos como faz a
sociedade atual, mas também a sociedade e o mundo digital em que os indivíduos se
encontram, dentro de um extenso mundo virtual.

REFERÊNCIAS

ABERASTURY, A & KNOBEL, M. Adolescência Normal. 10 ed. Porto Alegre: Artes


Médicas, 1992. ABREU, C.N.;
BEZERRA, Eudes Vitor. Redes sociais na participação democrática: desafios
contemporâneos na efetivação dos direitos do e-cidadão. 2016.185 f. Tese
(Doutorado em Direito) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em:
https://tede2.pucsp.br/handle/handle/19403. acesso em: 30 de set. de 2018.;
BORGES, V. R. & WERLANG, B. S. G.Estudo de ideação suicida em adolescentes
de 15 a 19 anos. Estudos de Psicologia, v. 11, n. 3, p. 345-351, 2006.;
CALHEIROS, A., colaboradora do Blog do CVV - www.cvv.org.br. O uso das redes
sociais na prevenção do suicídio.;
DURKHEIM, Émile. O suicídio, 1897- Abril Cultural, 1982.;
DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia – a Moral, o Direito e o Estado, 1969 -
Editora da Universidade de São Paulo, 2ª edição.;
SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Governo Eletrônico e Inclusão Digital. In: HERMANNS,
Klaus (org). Governo Eletrônico: Os Desafios da Participação Cidadã. Fortaleza:
Fundação Konrad Adenauer, 2002, p. 69-81.
410

DECISÕES JUDICIAIS E MANIPULAÇÃO DE ORÇAMENTOS PÚBLICOS DE


MANEIRA DIRETA
JUDICIAL DECISIONS AND DIRECT MANAGEMENT OF PUBLIC BUDGETS

Lidiana Costa de Sousa Trovão


Beatriz Rubira Furlan
Valter Moura do Carmo

Resumo: O presente estudo está voltado para a análise da efetivação dos direitos
fundamentais por meio de decisões judiciais e a eventual manipulação de recursos
públicos de maneira direta. O ativismo judicial aos poucos toma proporções, no
instante em que acende a discussão acerca da separação dos poderes e da
ingerência de um poder sobre o outro, provocando questionamentos acerca de sua
legitimidade. Utilizou-se o método dedutivo, com pesquisa bibliográfica,
principalmente em artigos científicos nacionais, como forma de embasar a pesquisa e
expor os diversos questionamentos acerca do assunto. A pesquisa, portanto, pretende
analisar a discussão do alcance dessas decisões e de que modo podem interferir nos
orçamentos públicos, causando desequilíbrio nas contas públicas.
Palavras-chave: Decisões judiciais. Ativismo Judicial. Direitos Humanos.

Abstract: This study is focused on the analysis of the establishment of fundamental


rights through judicial decisions and the potential manipulation of public resources in a
direct way. Judicial activism gradually escalates, according to the increase in the
discussion about the separation of powers and the interference of one power over the
other, provoking questions about its legitimacy. The deductive method was used, with
bibliographical research, mainly in national scientific articles, as a way to substantiate
the research and expose the various questions on the subject. The research, therefore,
intends to analyze the discussion of the reach of these decisions and how they can
interfere in the public budgets, by causing imbalance in the public accounts.
Keywords: Judicial Decisions. Judicial Activism. Human Rights.

INTRODUÇÃO

Judicialização de direitos fundamentais e ativismo judicial são expressões que


ao longo do tempo estão sendo largamente utilizadas para designar as atuações do
Poder Judiciário frente a situações que envolvem a inexecução de medidas que
beneficiem a população de um modo geral, seja individualmente, seja coletivamente.
Ao tratar-se da incursão do Judiciário através de suas decisões em esferas que
primitivamente deveriam ser planejadas, tratadas, decididas e implementadas por
outros poderes, conduz ao reconhecimento de que essa falência verificada no âmbito
da saúde pública do nosso país está relacionada ao modelo institucional brasileiro.
Contudo, a discussão não se resume apenas ao fato de que o estado não
possui a capacidade de cumprir o que dita a Constituição – ela perpassa essa
constatação e envolve uma crise extensa e perene no que tange à aplicação de
recursos públicos. A inércia dos demais poderes eleva a cada dia a quantidade de
demandas judiciais nas quais se devam tomar decisões que deem efetividade a esses
direitos e, nessa esfera, acabam por ser duramente criticadas.
Porém, a manipulação de recursos públicos por meio dessas decisões faz com
que o Estado, por intermédio do poder executivo, levante opiniões contrárias, tendo
em vista a máxima de que não se pode oferecer a totalidade dos direitos em face do
411

princípio da reserva do possível. Entretanto, nem mesmo o mínimo existencial,


principal fundamento que sustenta esse princípio, tem sido oferecido pelo Estado. Os
questionamentos que permeiam as violações massivas de direitos fundamentais
escoam num único entendimento: quais as ferramentas que a população possui para
fazer valer os seus direitos constitucionalmente tutelados? São essas e outras
questões que serão tratadas a seguir.

1 ATIVISMO JUDICIAL E JUDICIALIZAÇÃO

No Brasil, o ativismo judicial surgiu em decorrência da redemocratização do


país, realinhada pela Constituição Federal de 1988. A partir daí surgiram duas teorias
doutrinárias acerca do tema que, embora reconheçam que a judicialização tenha
causas múltiplas, procuram desenvolver seu raciocínio de acordo com cada um dos
posicionamentos. Uma delas é contrária à atuação do Poder Judiciário, sob o
argumento de que as pessoas não têm o direito de lhe exigir, por meio de decisões, a
garantia de efetividade daquilo que a própria lei prevê e sua implementação é de
competência do estado por meio dos demais poderes.
Luís Roberto Barroso (2012, p. 27) não reconhece judicialização e ativismo
jurídico no contexto brasileiro como sendo expressões sinônimas, como na maioria da
doutrina, e sobre o assunto, revela que “[...] judicialização e o ativismo judicial são
primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não
têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas.”
A própria Constituição traz essa prerrogativa, e, desse modo, “a judicialização, no
contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional
que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política.” Em relação ao
ativismo, consoante o mesmo autor, “[...] é uma atitude, a escolha de um modo
específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e
alcance.” O conflito entre princípios e a necessidade de sopesamento entre eles,
auxilia no entendimento acerca da matéria. Em outro passo, o mesmo autor manifesta
seu pensamento de modo contrário ao ativismo judicial, pois acredita que seja
prejudicial, uma vez que relega ao juiz a tarefa de representar a primazia das
concepções subjetivas de justiça e de bem do próprio julgador. Lima (2006, p. 189)
esclarece que:

Parte considerável da doutrina sobre defender a proeminência do Poder


Judiciário, hoje em dia, consolida a licença para atuação deste Poder na
própria constituição, o que tornaria resolvido o problema da legitimidade
para o agir do Poder Judiciário. Desta forma, a legitimidade da jurisdição
constitucional decorrente da própria constituição não se renovaria, como
aquela dos demais poderes, ou pelo menos não ocorreria renovação da
legitimidade na sua versão direta, já que os integrantes do Poder Judiciário
não se submetem a nenhum tipo de controle popular [...].

As decisões judiciais de um modo geral, nos últimos anos, têm sido num sentido
claramente ativista. E aqui não se fala apenas de questões relativas referentes a uma
esfera de direitos fundamentais, mas aos diversos segmentos em que a efetividade
desses direitos fundamentais se encontra ameaçada.
Portanto, o ativismo judicial é uma decorrência da má gestão dos recursos
públicos, que não garantem o mínimo existencial à população e acabam
transformando questões políticas em questões de direito. Essas tais questões acabam
por receber do Judiciário medidas drásticas que se revertem de extrema violação
massiva de direitos fundamentais, ou seja, um quadro endêmico, perene, grave e de
412

abandono total por parte do Estado, que mesmo sendo chamado a dialogar (ativismo
judicial dialógico), não consegue alcançar sequer mínima efetividade.
É importante ressaltar que as questões levadas ao conhecimento do Judiciário,
como bem se sabe, só podem ser decididas no limite do que se pede. A expressão
ativismo judicial é uma cunhagem que, à primeira vista pode parecer que o Judiciário
se lança à corrida antes mesmo dos competidores, mas na verdade, reflete o contrário,
o Judiciário é apenas o convidado, chamado a se manifestar.

2 MANIPULAÇÃO DE RECURSOS PÚBLICOS DE MANEIRA DIRETA

Acerca das decisões judiciais que manipulam recursos públicos de maneira


direta, existem posicionamentos contrários e favoráveis. Os que entendem ser
desarrazoado que juízes manipulem orçamentos públicos, a principal queixa reside
no fato de que esses orçamentos possuem peculiar complexidade e modo que simples
decisão de bloqueio de recursos públicos pode pôr em risco um planejamento feito
anos antes e que se constitui como um feixe de medidas que devem ser executadas
concatenadamente. Sustenta-se, ainda, que esses recursos bloqueados das contas
públicas ensejam a realocação de recursos que muitas vezes não podem ser
deslocados, colocando o gestor público em posição extremamente difícil, podendo
sofrer sanções quanto a sua responsabilidade fiscal.
A manipulação de recursos públicos de maneira direta, sem dúvida, interfere
diretamente nas ações governamentais baseadas nos orçamentos públicos que
decorrem de um estudo pormenorizado, os quais dão origem às leis orçamentárias
anuais. Diante da grande quantidade de ações, surgiram diversas críticas a esse
respeito, que apontam que essas decisões judiciais são tomadas sem que os juízes
conheçam a política pública desenvolvida pelo Estado, bem assim, a dinâmica dos
gastos insertos nas leis orçamentárias.
Importante mencionar que existem normas constitucionais que estabelecem
obrigações que individualizam as diferentes pessoas políticas e que, além disso, não
podem ser afastadas. É nesse sentido o artigo 23, II da Constituição Federal de 1988,
que dispõe sobre a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios e, adiante, o art. 196. Acerca do assunto, discorrem Zagurski e
Pamplona (2016, p. 109):

A inobservância dos preceitos constitucionais, independentemente dos


argumentos de impossibilidade financeira, deve ser repelida, sob pena de
manutenção de um estado de ilegalidade e negativa de direitos aos
cidadãos que necessitam da prestação gratuita dos serviços de saúde. Há
ainda que ser refutado o argumento de que há invasão, pelo Poder
Judiciário, do âmbito de ação reservado ao administrador pela
discricionariedade administrativa. […]

As autoras argumentam ainda que “[…] a questão orçamentária deve ser vista
com ressalvas. Se é certo que o Poder Judiciário, […] por outro lado, não poderá, por
determinação constitucional, se calar diante da omissão ou ineficiência dos demais
poderes.”
O que se vê, na verdade, é que o poder público deixa de cumprir uma série de
exigências constitucionais que acabam por afastar a possibilidade de alegar a
incidência do princípio da reserva do possível, pois essa, embora absurda, é
constantemente invocada para afastar a “responsabilidade” diante de violações
massivas de direitos fundamentais em matéria de saúde. Na verdade, não se cumpre
413

o mínimo necessário, e quando isso acontece, não se pode invocar o “mínimo do


mínimo”. Portanto, diante de tantas digressões, a realidade brasileira só tende a
piorar, pois as sanções, quando ocorrem, demoram a ser aplicadas e efetivadas,
deixando a população carente dos mais diversos serviços, que se agravam e se
multiplicam.

CONCLUSÃO

Estado Democrático de Direito significa, de toda sorte, que cada cidadão tem
direito a ter direitos, e esses, por sua vez, são direitos iguais. A relação entre o
exercício desse direito e o Estado, como principal responsável por suprir essa
necessidade, ainda se encontra permeado de diversos problemas e as soluções estão
longe de ser alinhadas aos interesses das partes. Essa inquietação foi constatada ao
longo da pesquisa, em que se observou que as violações massivas de direitos
fundamentais estão longe de ser contidas por total descaso do Estado.
Esses reflexos são fruto das mesmas manifestações feitas pelo poder público
na resposta às demandas judiciais: que o Estado não tem capacidade orçamentária
para dar efetividade à cobertura integral e irrestrita no campo da saúde pública. As
políticas públicas não podem ser seletivas. As leis orçamentárias devem contemplar
toda a população, sem seletividade, e a alegação do princípio da reserva do possível
quando não atingida como mínima existencial, acaba por ser mais que seletiva,
segregatória.
Difícil imaginar como ficaria a situação da população se esta não pudesse bater
à porta do Judiciário, estando à mercê dos gestores públicos. A ingerência do
Judiciário na esfera de atuação dos demais poderes, além de legitimada por meio do
dever de fiscalização entre eles, há inafastabilidade da prestação jurisdicional.
Portanto, quando o Judiciário chama ao diálogo os demais poderes, seja
homologando termos de ajustamento de condutas, seja julgando ações levadas a seu
conhecimento, está além de cumprir seu papel constitucional originário.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.


[Syn]Thesis, Rio de Janeiro, v. 5. n. 1, p. 23-32, jan./jun. 2012. Disponível em:
<https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/synthesis/article/view/7433/5388>.
Acesso em: 24 out. 2018.
LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Judiciário versus executivo/legislativo: o dilema
da efetivação dos direitos fundamentais numa democracia. Revista Pensar,
Fortaleza, v. 11, n. 1, p. 185-191, fev. 2006. Disponível em:
<http://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/790>. Acesso em: 24 out. 2018.
ZAGURSKI, Adriana Timoteo dos Santos; PAMPLONA, Danielle Anne. Judicialização
da saúde e orçamento público. Revista do Direito: Revista de Pós-graduação do
Mestrado e Doutorado em Direito, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 48, p. 92-117, jan./abr.
2016. Disponível em:
<https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/article/view/6498/4665>. Acesso em: 22
out. 2018.
414

FAKE NEWS E DEMOCRACIA: A VIOLAÇÃO DO PROCESSO DEMOCRÁTICO


PELA PROPAGAÇÃO DE FAKE NEWS
FAKE NEWS AND DEMOCRACY: VIOLATION OF THE DEMOCRATIC PROCESS
BY THE SPREADING OF FAKE NEWS

Luiza Pessoa Oliveira de Souza

Resumo: O presente trabalho possui como objetivo demonstrar em que medida as


fake news constituem objeto de violação ao processo democrático a partir da
mitigação do entendimento esclarecido, proposto por Robert Dahl como um dos
requisitos do mencionado processo. Para tanto, deve ser analisado, em primeiro
plano, o conceito e a motivação das fake news, além de sua incidência no cenário
político mundial atual. Outrossim, o requisito do entendimento esclarecido deve ser
analisado sob a perspectiva apresentada por Dahl, em conjunto com a observação
dos processos de informação e suas falhas, estas conforme expostas por Giovani
Sartori. Logo, a importância da pesquisa se dá na medida em que busca relacionar o
atualíssimo fenômeno das fake News com o processo democrático e o contexto
político, ressaltando suas consequências negativas à sociedade democrática a partir
da mitigação do entendimento esclarecido.
Palavras-chaves: Fake News. Democracia. Entendimento esclarecido.

Abstract: The following essay has the goal of demonstrating how fake News represent
a kind of violation of the democratic process as it mitigates the enlightened
understanding, as proposed by Robert Dahl as one of the aspects of said process. For
this purpose, foremost, the concept and motivation on the fake news must be analyzed,
as so as its occurrence in the global political outlook. Likewise, the enlightened
understanding must be analyzed from the perspective presented by Dahl, together with
the observation of informational processes and its defects, those being exposed by
Giovani Sartori. Therefore, the present research is important inasmuch as it attempts
to link the recent phenomenon of fake news with the democratic process and the
political context, highlighting fake news negative consequences to democratic
societies through the mitigation on enlightened understanding.
Keywords: Fake News. Democracy. Enlightened understanding.

1 INTRODUÇÃO

Muito se fala, atualmente, na estrondosa propagação de fake news – isto é,


notícias inverídicas, sem fontes confiáveis e com teor sensacionalista. Em razão da
facilidade de difusão de notícias na era virtual, incontáveis são os casos de notícias
falsas, que ganham notoriedade através do amplo compartilhamento realizado,
principalmente, em redes sociais.
Convém salientar que a propagação de boatos e notícias exageradas não é
exatamente nova, e a História contém uma diversificada gama de episódios ligados à
repercussão deste tipo de notícia. O que ocorre é que, atualmente, as fake news
encontram nas redes sociais um “campo fértil para se proliferar mediante
compartilhamentos, sem qualquer atitude reflexiva” (PIRES, PIRES, 2018).
Percebe-se, portanto, que a facilidade de disseminação de conteúdos diversos,
principalmente dentro do espaço cibernético, encontra como aliado o comportamento
dos indivíduos no sentido de que estes parecem acreditar muito facilmente naquilo
415

que leem, sem de fato de preocuparem com as fontes das informações ou notícias
veiculadas.
As eleições gerais de 2018 no Brasil são exemplo recentíssimo disso. Pessoas
e grupos políticos tentam sobremaneira desqualificar outros candidatos a partir da
propagação de informações sem quaisquer fontes verídicas e concretas, o que, além
de criar um cenário tenso da perspectiva política, viola determinações constitucionais
e fere preceitos da própria democracia. E é à vista disso que se faz necessária a
compreensão das consequências acarretadas pelas fake news no bojo do processo
democrático.

2 FUNDAMENTAÇÃO

Para Dahl (2001), a democracia se perpetua ao satisfazer cinco critérios


básicos do processo democrático, quais sejam: participação efetiva dos membros;
oportunidades iguais e efetivas de voto; entendimento esclarecido; controle do
programa de planejamento; e inclusão dos adultos.
O processo democrático inexiste se ausente um dos cinco critérios
apresentados pelo autor. Para os fins da presente pesquisa, o aspecto do
entendimento esclarecido afigura-se como o principal a ser analisado diante da
propagação das fake news.
O entendimento esclarecido, em conjunto com os demais requisitos do
processo democrático, garante não apenas que o referido processo alcance seu fim,
mas para que este fim tenha qualidade por excelência. Isso porque “as oportunidades
de adquirir uma compreensão esclarecidas das questões públicas não são apenas
parte da definição de democracia. São a exigência para se ter uma democracia”.
(DAHL, 2001).
Vale ressaltar que o requisito do entendimento esclarecido não se limita apenas
ao mero acesso à informação. Muito mais que isso, o entendimento esclarecido se
concretiza no acesso a uma gama diversificada de informações verdadeiras, que
auxiliem na construção do convencimento do cidadão democrático e no próprio
conhecimento dos fatos, sem que haja qualquer tipo de exclusão do indivíduo por meio
dos processos de informação e troca de ideias.
Ora, não há que se falar em excelência do processo democrático se aos
cidadãos democráticos não é disponibilizada informação qualificada que atenda às
necessidades de construção do convencimento dos membros da sociedade
democrática.
Nesse sentido, Sartori (1994) aponta que os processos de informação “são
acusados de três pecados: (a) insuficiência quantitativa; (b) tendenciosidade; e (c)
pobreza qualitativa”.
A primeira acusação cai por terra na medida em que observamos que a
globalização permite um fluxo muito mais intenso e rápido de informações a cada
momento. Isto é, não se sofre, exatamente, com a falta de informações, em termos
quantitativos – uma vez que as informações são difundidas como nunca ocorrera
anteriormente, e a tendência é que o fluxo aumente cada vez mais.
A seu turno, a segunda acusação, de que as informações propagadas são
altamente tendenciosas, tem por base a análise de que não parece haver mídia
completamente imparcial quando da propagação de notícias, eis que a mídia atua,
“concebida como ator político/ideológico, é ‘(...) fundamentalmente como instrumento
de manipulação de interesses e de intervenção na vida social’” (FONSECA, 2011).
Significa dizer, portanto, que muitas das informações que chegam ao cidadão
416

democrático já vêm carregadas de parcialidade, com objetivo de desqualificar opiniões


contrárias.
A própria tendenciosidade das informações nos leva à terceira acusação
pontuada por Sartori, qual seja, a pobreza qualitativa dos processos informativos.
Significa dizer que as informações que chegam ao cidadão democrático possuem
baixa qualidade, sem um verdadeiro corpo sólido no qual os indivíduos possam
realmente confiar.
A intensa difusão de fake news é apenas mais um indicativo da qualidade dos
processos de informação atuais, ressaltando que essa qualidade é apontada por
Sartori como uma das motivações da forte apatia política vivenciada pelo cidadão
democrático contemporâneo.
Vale frisar que as fake news “são textos noticiosos que assumem a forma de
matérias jornalísticas e são geralmente produzidos para se propagar em um contexto
de disputa política – seja com objetivos políticos, seja para se beneficiar
economicamente da guerra política” (SORJ et al, 2018). Isto é, as fake news fundam-
se em motivações políticas e mesmo econômicas, devendo-se, ainda, compreender
que existem graus de falsidade nas informações veiculadas sob a natureza de fake
news.
É válido apontar, no entanto, que a existência de certas informações inverídicas
auxilia na compreensão do porquê a verdade vem a ser, de forma redundante,
verdade. Isto é, a adoção de verdades absolutas sem questionamentos, ante a
comprovação cabal da veracidade, acaba por transformá-las em verdades
dogmáticas. O dogma traz consigo o perigo da ablepsia e a ignorância dos motivos
que levaram a verdade a ter tal status. Posteriormente, a verdade pode vir a ser
questionada com fulcro nos mais diversos e ilógicos fundamentos – mas justamente
porque uma hora deixou-se de se explicar o porquê da veracidade dos fatos.
Exemplo disso é o recente ressurgimento dos terraplanistas, isto é, pessoas
que acreditam que a Terra é plana. Ora, há muito se sabe que a Terra não possui um
formato plano, e esta é uma verdade que se tornou inquestionável – um dogma. Não
mais se explicando o porquê de a Terra ser redonda (ou ovalada, mais exatamente),
abriram-se as margens para o questionamento de uma verdade que parece óbvia.
Feita esta digressão, contudo, torna-se talvez necessária a diferenciação de
certas verdades (como o fato de a Terra não ser plana) de outras verdades e fatos
que ocorrem diariamente – notícias, informações corriqueiras, acontecimentos de
forma geral. Isso porque é muito mais fácil deturpar a veracidade de informações
contidas em um noticiário ou em mídias digitais do que de fatos há muito
comprovados.
Pode-se observar, portanto, que por mais que o questionamento de verdades
ditas “dogmáticas” importe na medida em que nos ajuda a rememorar os motivos que
levam à veracidade dos fatos, não se pode dizer o mesmo das fake news que rondam
os cenários políticos mundiais, enquanto revestidas de má-fé.
Não se busca, por ora, discutir o binômio liberdade de expressão e democracia
na presente obra, no que tange especificamente à propagação de fake news.
Contudo, deve restar claro que “as expressões de falsidade fabricadas com intenção
de enganar não possuem valor para a autodeterminação política dos indivíduos,
porque não constituem um engajamento íntegro das crenças ou convicções daquele
que se expressa” (GROSS, 2018).
Dessa forma, não se pode dizer que as notícias falsas veiculadas em
determinado contexto sociopolítico traduzem grande benefício à população, eis que
propagadas com fulcro em motivações meramente ligadas a favorecimentos políticos
417

e econômicos, jamais com a finalidade de realmente informar o cidadão democrático


acerca da realidade.
Assim, as fake news acabam por serem instrumentos de polarização política,
ao mesmo tempo em que apatizam e mitigam o entendimento esclarecido necessário
ao cidadão democrático no contexto político.
Atualmente, vivenciamos uma grande crise de identificação política, gerada
pelo descrédito nas instituições do Estado e nas mídias de informação. Daí decorre
desinteresse geral quanto aos aspectos políticos que regem a sociedade, o que leva
a uma baixíssima participação efetiva do povo no processo democrático. Essa apatia
política é agravada pela intensa propagação de fake news, eis que o cidadão
democrático se vê perdido no meio de múltiplas informações acerca de um mesmo
evento, sem saber qual é, de fato, a realidade.
Ao mesmo tempo em que as fake news acentuam a crise de representatividade,
elas são capazes de fortalecer a polarização política através da formação de bolhas e
do desmerecimento daqueles que partilham visões diferenciadas, “sendo a verdade
dos fatos algo secundário em relação à afirmação narcisista de sua visão de mundo
em rede” (NOHARA, 2018). Outrossim, a mera opinião diversa (ressalte-se a natureza
de opinião, e não de fato) jamais deve ser encarada como fake news apenas porque
não coaduna com aquilo em que um indivíduo acredita. Encarar sumariamente o outro
lado do debate como falso é fechar-se em uma bolha de convencimento obstinado
extremamente danosa ao saudável debate democrático.
Ademais, as fake news mitigam o entendimento esclarecido, na medida em que
notícias falsas ou extremamente tendenciosas em nada auxiliam na compreensão da
realidade fática que leva à construção do livre convencimento do cidadão democrático.
Nesse sentido, pode-se observar que o requisito do entendimento esclarecido
acaba por não ser integralmente preenchido, levando-se em conta sua aplicabilidade
nas democracias reais. Contudo, não há que se falar na inviabilidade de alcançarmos
pleno entendimento esclarecido, uma vez incessante a busca pela democracia ideal.
Mesmo porque, conforme abrilhanta Sartori (1994), “o que a democracia é não pode
ser separado do que a democracia deve ser. Uma democracia só existe à medida que
seus ideais e valores dão-lhe existência”.
Dessa forma, aclara-se a essencialidade do entendimento esclarecido como
um dos requisitos básicos da democracia, eis que permite ao cidadão democrático a
compreensão dos aspectos políticos e socioeconômicos da sociedade em que está
inserido, de modo a facilitar seu livre convencimento quanto as questões pertinentes
a res publica¸ garantindo, também, não apenas mera participação no processo
democrático, mas uma participação efetiva a partir da perspectiva da democracia
ideal.

3 CONCLUSÃO

Se, por um lado, vivemos em plena Era da Informação – afinal o fluxo


informacional nunca fora tão intenso quanto atualmente –, vivenciamos também o
engendramento da Era da Desinformação, ante a propagação de notícias falsas e
tendenciosas que perturbam o processo de esclarecimento e auxiliam na perpetuação
de um estado de ignorância da realidade.
No que tange à promoção de um saudável debate democrático, com o mínimo
de qualidade para que se preencha o requisito do entendimento esclarecido, as fake
news em nada acrescentam – pelo contrário, anuviam a compreensão daquilo que é
418

real, amplificando sentimentos de apatia política, crise de representatividade e


ignorância da realidade, todos sinais de uma democracia que agoniza.
Logo, torna-se possível inferir que as fake news mitigam o entendimento
esclarecido, requisito do processo democrático, na medida em que impedem o acesso
fácil à verdade, além de caotizarem os processos de informação, tornando-se claras
as suas consequências negativas no bojo do processo democrático.

REFERÊNCIAS

DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo:


Malheiros, 2014.
DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001.
FONSECA, Francisco. Mídia, poder e democracia: teoria e práxis dos meios de
comunicação. Brasília: Revista Brasileira de Ciência Política, nº 6, julho-dezembro de
2011.
GROSS, Clarissa Piterman. Fake News e democracia: discutindo o status normativo
do falso e a liberdade de expressão. In: RAIS, Diogo, coord. Fake News: a conexão
entre desinformação e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
NOHARA, Irene Patrícia. Desafios da ciberdemocracia diante do fenômeno das fake
News: regulação estatal em face dos perigos da desinformação. In: RAIS, Diogo,
coord. Fake News: a conexão entre desinformação e o direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2018.
PIRES, A.C.M.; PIRES, L.R.G.M. Desinformação: atuação do Estado, da sociedade
civil organizada e dos usuários de internet. In: RAIS, Diogo, coord. Fake News: a
conexão entre desinformação e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
SARTORI, Giovani. Teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994.
SORJ, B. et al. Sobrevivendo nas redes – Guia do Cidadão. Coleção: Ensaios
Democracia Digital. Texto nº 3, março de 2018. Disponível em:
<www.plataformademocratica.org>
419

JUSTIÇA E EQUIDADE EM AMARTYA SEN COMO CONCRETIZAÇÃO DOS


DIREITOS FUNDAMENTAIS
JUSTICE AND EQUITY IN AMARTYA SEN AS A CONCRETION OF
FUNDAMENTAL RIGHTS

Lucio Flavio Joichi Sunakozawa


Luciani Coimbra de Carvalho

Resumo: O presente trabalho visa empreender a importância dos estudos das teorias
de Amartya Sen, no tocante à equidade e justiça, muito embora o referido autor seja
oriundo da Economia, mas, é muito reconhecido, também, por grandes escolas
mundiais jurídicas, pela sua forte percepção sobre a questão da igualdade, equidade
e justiça, e que merecem uma análise sobre possibilidade dialógica de seus estudos
com a concretização dos Direitos Fundamentais no Brasil. A pesquisa é bibliográfica,
com uma abordagem metodológica qualitativa, de cunho dedutivo, a partir de alguns
de seus pensamentos principais envolvendo a temática anunciada, à luz de uma
argumentação racional. Os Direitos Fundamentais, assim como os pensamentos de
Amartya Sen, ganharam grande relevo no pensamento ocidental contemporâneo, o
que torna este estudo relevante e atual. Enfim, de natureza crítica, este trabalho busca
extrair um resultado analítico para reflexões sobre possível interação entre o modelo
de constitucionalismo, sobretudo, quando se trata dos Direitos Fundamentais sob
uma possível perspectiva “seniana”, de aplicação crítica, justa e equitativa.
Palavras-chave: equidade, justiça, direitos fundamentais.

Abstract: This paper aims to study the importance of the studies of Amartya Sen's
theories regarding equity and justice, even though the author originates from
Economics, but is also well known by major world legal schools for their strong
perception on the issue of equality, equity and justice, and that deserve an analysis on
the dialogical possibility of their studies with the realization of Fundamental Rights in
Brazil. The research is bibliographical, with a qualitative methodological approach, of
deductive nature, based on some of its main thoughts involving the announced theme,
in the light of a rational argumentation. Fundamental Rights, as well as the thoughts of
Amartya Sen, have gained prominence in contemporary Western thought, which
makes this study relevant and current. Finally, critically, this work seeks to extract an
analytical result for reflections on possible interaction between the model of
constitutionalism, especially when it comes to Fundamental Rights under a possible
"SEN" perspective, of critical, just and equitable application.
Keywords: equity, justice, fundamental rights.

INTRODUÇÃO

Ao destacar uma obra escrita por Charles Dickens, “Great Expectations”,


destaca Amartya Sen, que no pequeno mundo imaginário onde as crianças se
encontram, “não há nada que seja percebido e sentido tão precisamente quanto a
injustiça” (SEN, 2011, p. 9). De igual sorte, esse dissabor humano ocorre na sociedade
contemporânea, fruto dos seus próprios modos de produção cada vez mais veloz,
globalizado (IENSUEN e CARVALHO, 2017, p. 77), sob várias perspectivas de
mudanças sociais e econômicas, previsíveis ou não, que ocorrem de forma
simultaneamente, provocando não somente progressos, mas, sobretudo, índices
graves de desigualdades e injustiças.
420

Assim, também, novas questões são levantadas a todo instante no campo


jurídico que, dessa forma, acabam por permitir a requisição de uma dinamicidade,
contínua e sucessiva, que também deve ser implementada nos estudos jurídicos
voltados para uma efetiva aplicação constitucional, exigindo soluções igualmente
céleres, com interpretações abertas e dinâmicas (HÄBERLE, 2002, p. 14)1. Esse não
distanciar do direito, em relação à preservação da ordem jurídica no Estado
Democrático de Direito, é assim lecionada, vez que “a identidade da Constituição não
significa a continuidade ou permanência do ‘sempre igual’, pois num mundo sempre
dinâmico a abertura à evolução é um elemento estabilizador da própria identidade”
(CANOTILHO, 2002, p.1057).
Logo, o objetivo geral é analisar a concretização dos direitos fundamentais à
luz da equidade e justiça, através de pesquisa bibliográfica, sob uma abordagem
dedutiva, na construção dos direitos humanos fundamentais, a sua evolução diante
de suas três clássicas gerações ou dimensões (LUÑO, 2013, p. 163-196), ou ainda
admitidas por alguns doutrinadores, com as suas quarta, quinta e sexta edições
(SARLET, 2016, p. 505-506), no contexto da compreensão de uma dinamogenesis,2
no âmbito do direito internacional dos direitos humanos (SILVEIRA, 2010, p. 184), aos
dias atuais.
Destarte, como uma metodologia para inovar na aplicação dos Direitos
Fundamentais no Brasil, buscou-se estudar a teoria de Amartya Sen, no tocante às
suas obras mais destacadas no campo da justiça e equidade: “Desenvolvimento como
Liberdade” (2000) e a “A Idéia de Justiça” (2011). Sen, assim, foi escolhido pela sua
contemporaneidade, bem como pela relevância de suas ideias plurais e
interdisciplinares que permitem e se tornam extremamente dialógicas entre os
diversos campos do conhecimento, tais como o direito, filosofia, sociologia, política e
economia. O autor, de origem indiana, um dos mais laureados economistas, inclusive,
foi o vencedor do Prêmio Nobel de 1998.
Portanto, o presente estudo não pretende esgotar os debates, mas, ousa
provocar a racionalidade sobre a legitimação do Estado Democrático de Direito,
aliando-se os clássicos dos pensamentos dos direitos fundamentais, por óbvio, cada
qual com as suas características peculiares marcantes, mas que possibilitem o
necessário caminhar dentre as teorias igualitárias e libertárias. O que interessa muito,
para gáudio das ciências jurídicas e direito do estado, com um pensamento “cada vez
mais permeável, o sistema jurídico contemporâneo está sujeito a critérios que vêm de
outras áreas de conhecimento e que, ao lado da técnica, incorporam valores,
princípios, e conceitos indeterminados” (BOITEUX, 2010, p. 514) para serem
confrontados com o ideal de uma efetividade3 (SILVA, 2017, p. 228) ou concretização
dos direitos fundamentais.

1
Peter Härbele (2002, p. 14) admite que a constituição não seja interpretada, exclusivamente, por juristas, mas, sim, que o
processo hermenêutico seja feita por qualquer membro da sociedade, por isso, ele defende a idéia de uma interpretação aberta,
assim: “Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo
diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor
tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma,
não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição”.
2
“No processo da dinamogenesis, a comunidade social inicialmente reconhece como valioso o valor que fundamenta os direitos
humanos. Reconhecido como valioso, este valor impulsiona o reconhecimento jurídico, conferindo orientação e conteúdos novos
(liberdade, igualdade, solidariedade etc.) que expandirão o conceito de dignidade da pessoa. Essa dignidade, por sua vez, junto
ao conteúdo dos direitos humanos concretos, é protegida mediante o complexo normativo e institucional representado pelo
direito.” (SILVEIRA, ROCASOLANO, 2010, p. 199)
3
Cfe. Leciona Virgilio Afonso da Silva, sobre a efetividade e eficácia, esclarece que: “Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., eficaz
é a norma (a) que tem condições fáticas de atuar, por ser adequada em relação à realidade, e (b) que tem condições técnicas
de atuar, por estarem presentes os elementos normativos para adequá-la à produção de efeitos concretos. A primeira das
acepções de Ferraz Jr. dá à eficácia corresponde àquilo, no âmbito do debate constitucional sobre o tema, se convencionou
chamar de efetividade. O próprio José Afonso da Silva parece definir o conceito nesse sentido, a comentar o objeto de outra
monografia, de autoria de Luís Roberto Barroso. Segundo José Afonso da Silva, a análise da real efetivação da norma não é
421

JUSTIÇA E EQUIDADE EM AMARTYA SEN

Amartya Sem, nasceu em Santiniketan, Bengala Ocidental, na India, no dia 3


de novembro de 1933. É professor de economia e filosofia da cátedra Thomas W.
Lamont, na Universidade Harvard. Foi, até 2004, o Master of Trinity College, em
Cambridge. Também é membro sénior da Harvard Society of Fellows. Também, já foi
professor de Economia na Universidade Jadavpur de Calcutá, na Escola de Economia
de Delhi e na London School of Economics, Drummond e Professor de Economia
Política na Universidade de Oxford. Foi o mentor pela criação, em 1993, junto com o
economista paquistanês Mahbub ul Haq, do Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) que é utilizado pela ONU em suas políticas públicas e decisões. É ganhador do
prêmio Nobel de Ciências Econômicas (1998). Dentre várias publicações em vários
continentes, as suas obras fundamentais são: Desigualdade Reexaminada (1992),
Desenvolvimento como Liberdade (2000) e A ideia de Justiça (2011).
Em detida análise, em relação ao marco teórico de uma idéia de justiça, revela-
se Sen como uma aproximação da interpretação aberta de Peter Härbele, vez que
muito enfatiza em suas idéias no campo da justiça e equidade, plenamente aplicáveis
para as realidades atuais nas sociedades ocidentais, ao utilizar “...uma argumentação
racional pública, em lugar de uma rejeição sumária das opiniões contrárias, por mais
implausíveis que estas possam parecer (...) os protestos crus e grosseiros. Um
engajamento aberto na argumentação racional pública é absolutamente fundamental
na busca da justiça.” (SEN, 2011, p. 425)
Amartya Sen se aprimorou nos estudos de vários clássicos, mas, em especial,
dedicou-se a analisar a obra Uma Teoria da Justiça, de 1971, proposta por John
Rawls, um dos maiores filósofos da política contemporânea, onde se observa em
muitas de suas passagens, o exercício crítico na tentativa de apresentar outras
opções que a racionalidade permitem, até por conta da sua forma de pensar que prega
a necessidade de acatar várias vertentes de pensamentos e posicionamentos, vez
que “não precisa, portanto, buscar a unanimidade ou o acordo total da mesma maneira
que a camisa de força institucional da teoria rawlsiana da justiça exige.” (SEN, 2011,
p. 165).
Doravante, como uma teoria emergente, mas, com muita profundidade, a ideia
de justiça de Sen tenta provocar rupturas na teoria de justiça de Rawls. É o que se
percebe das análises dos textos em confronto dos referidos autores. Todavia, “o mais
importante é observar que a totalidade dessas novas contribuições ajudou a trazer o
reconhecimento geral de que os pontos centrais de uma compreensão mais ampla da
democracia são a participação política, o diálogo e a interação pública.” (SEN 2011,
p.360).
A primeira nítida afirmação, entre tais teóricos norte-americano e indiano,
reside na liberdade, quando a perspectiva positiva de desenvolvimento é “seniana”,
pois, para Amartya Sen, essas liberdades são “... por exemplo, ter condições de evitar
privações como a fome, a subnutrição, a morbidez evitável e a morte prematura, bem
como as liberdades associadas a saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter
participação política e liberdade de expressão, etc..” (SEN, 2000, p.55), ou seja, o
exercício pleno da liberdade de escolher o futuro de cada um.
O ponto fulcral é, pois, a liberdade diante da formulação dos conceitos e nos
processos de oportunidades que cada individuo possa ter, inclusive para decidir se

uma questão de eficácia jurídica, mas de efetividade. (....). E é o próprio Barroso que define a ideia de efetividade, nos seguintes
termos: “Efetividade significa (...) a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social.”.
422

concordam ou não, pois a “privação da liberdade pode surgir em razão de processos


inadequados (como violação do direito ao voto ou de outros direitos políticos e civis),
ou de oportunidades inadequadas que algumas pessoas têm para realizarem o
mínimo que gostariam” (SEN, 2011, p.32).
Amartya Sen, habituado a utilizar-se de parábolas, relata que para a
compreensão da tensão que pode surgir entre igualdade e liberdade, quando existem
três crianças e apenas uma flauta. Dessas crianças, uma sabe tocar a flauta. A
segunda, é a mais pobre do grupo e não possui condições de comprar uma flauta. A
terceira, foi quem fabricou artesanalmente a flauta. Quem deve ganhar a flauta?
Então, Sen propõe um acordo, sob vários e diferentes argumentos, aduz que
igualitaristas dariam a flauta a segunda criança para corrigir distorções e
desigualdades. Os libertários, baseando-se na propriedade, deixaria a flauta com a
terceira. E, assim, os utilitaristas não teria dúvida em dar a flauta para a primeira, vez
que é a única que sabe toca-la. Para uma idéia de justiça, Sen afirma que “pode de
fato não haver nenhum arranjo social identificável que seja perfeitamente justo e sobre
o qual surgiria um acordo imparcial” (Sen, 2011, p.45).
Sen prega uma participação política, numa argumentação pública diante de
demandas sociais participativas, pois “é fundamental não apenas para o desafio
prático de tornar a democracia mais efetiva, mas também para o problema conceitual
de basear uma ideia devidamente articulada de justiça social nas exigências da
escolha social e de equidade” (SEN, 2011, p. 143). E, ainda, pela sua própria
formação, atrai os subsídios da economia clássica smithiana, para que haja juízos de
terceiros desinteressados que não façam parte do grupo de interessados, mas que
podem ajudar em muito a obtenção de uma compreensão maior que rumará para uma
justa decisão (SEN, 2011, p. 161).
Aí está um ponto nodal para Sen, ao atribuir uma visão da justiça focada em
realizações e não em arranjos, ao encontro da ética do ponto de vista do direito
indiano, mas que consegue demonstrar sobre um olhar diferenciado que a idéia de
justiça exige para sua compreensão e efetividade.
Logo, para Amartya Sen, liberdade e justiça são conceitos abertos,
plurais e dinâmicos, aproximando-se das ideias de Härbele, por isso, os debates sobre
a sua idéia de justiça são alvos de constantes debates, ora por suas amplas e
imprecisas possibilidades, abertura ilimitada de capacidades e seus conceitos.
Todavia, suas contribuições são incontestáveis por abalar o mundo das racionalidades
sobre os conceitos de justiça, inclusive, por tornar visível a liberdade como exercício
de desenvolvimento e como base da prevalência da justiça igualitária.

CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS X


EQUIDADE E JUSTIÇA

Os Direitos Fundamentais4 são considerados como categoria jurídica


(FERREIRA FILHO, 2005), que podem ser protegidos por remédios assecuratórios

4
Direitos fundamentais ou direitos humanos são sinônimos pacificados pela doutrina, pois, sopesa muito mais “a importância da
análise dos pensamentos formatados ao longo dos tempos sobre os direitos fundamentais ou direitos humanos. Convém
rememorar, sobre o alerta dessas terminologias jurídicas que, pacificamente pela doutrina (CAMPELLO e SILVEIRA, 2011, p.
92), não mais sobrevive qualquer distinção conceitual diante do constitucionalismo contemporâneo. Conforme bem explicada,
doutrinariamente, visando afastar eventuais discussões sobre as terminologias jurídicas mais apropriadas, entre Direitos
Humanos e Direitos Fundamentais: “não há dúvida de que a natureza da dignidade como fundamento dos direitos humanos –
ou dos direitos fundamentais, do ponto de vista das constituições contemporâneas – faz com que ela irradie seus efeitos por todo
o ordenamento jurídico, interno e/ou internacional, implicando o reconhecimento e a proteção dos direitos em todas as suas
dimensões” (CAMPELLO e SILVEIRA, 2011, p.92).
423

denominados de Garantias Fundamentais, e são consagrados, genuinamente, como


direitos constitucionais (SILVA, 2005), vez que positivados na Constituição da
República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, e se situam
dentre os temas mais palpitantes pelo seu conteúdo essencial, dentro da sociedade
contemporânea, reconhecida pela doutrina e jurisprudência, como invioláveis por
normas do legislador ordinário (SILVA, 2017).
Nesse sentido, a “incorporação de direitos subjetivos do homem em normas
formalmente básicas, subtraindo-se o seu reconhecimento e garantia à disponibilidade
do legislador originário” (CANOTILHO, 2003, p. 378), todavia, geram obrigações para
serem cumpridas pelo Estado e que por este não pode negá-los, salvo quando em
situação de conflito entre direitos fundamentais, inclusive com colisão de princípios
fundamentais, o que a doutrina admite pela aplicação da teoria da restringibilidade
(SILVA, 2017).
A aplicação ou concretização dos direitos fundamentais pode ser estabelecida,
de outro turno, por diversas formas e formalidades jurídicas, até pela gama variada de
previsões constitucionais que foi encravada na Constituição Federal de 1988, como
se confere do rol estatuído no seu Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais,
através dos artigos 5º ao 17. E ainda, como se constata, a Constituição garante outros
direitos e garantias fundamentais, se oriundos de regime, princípios ou tratados
internacionais, que venham a ser adotados pelo Brasil, consoante prevê o artigo 5º,
§2º da Lei Maior.
Com essa dinamicidade, sem que possa se atentar contra a estabilidade da
Constituição e seus desígnios, é possível compreender sobre a necessária garantia
para identidade reflexiva constitucional que “significa dotar a constituição de
capacidade de prestação em face da sociedade e dos cidadãos”. (CANOTILHO, 2002)
A discussão sobre a efetiva concretização5 dos direitos fundamentais, por meio
de equidade e justiça, também passa tradicionalmente pelo exercício da jurisdição
constitucional, que no Brasil é apontado como um primeiro óbice, consoante leciona
o professor (USP), dr. Virgílio Afonso da Silva, vez que a tutela jurisdicional não
consegue dar vazão a todas pretensões judiciais, até porque o direito processual tem
um caráter muito individualista e os direitos fundamentais possuem natureza de
interesse coletiva (SILVA, 2017, p. 243).
Essa obstrução da fluência dos direitos fundamentais, se deve também, pois,
“de um lado, a crença na eficácia plena de algumas normas, sobretudo no âmbito dos
direitos fundamentais, solidificou a ideia de que não é nem necessário nem possível
agir, nesse âmbito, para resolver essa eficácia” (SILVA, 2017, p. 255) e ainda
prossegue a doutrina, de outro, “a constatação de que algumas normas têm eficácia
meramente limitada pode levar a duas posturas diversas” (SILVA, 2017, p. 255).
Virgílio Silva, ainda, combate a inércia dos poderes políticos, inclusive a do juiz,
nesses tipos de casos, bem como na irracionalidade de seus operadores, podem ser
sanadas “a partir da abertura de um diálogo constitucional fundado nessas premissas
de comunicação intersubjetiva entre os poderes estatais e comunidade” (SILVA, 2017,
p. 255-256).
Todavia, também, além do alerta acima pela ausência de um sistema legislativo
eficiente ou de postura jurisdicional no campo processual, mas, de igual modo, outro
ponto também precisa ser superado. É sobre a eventual passividade da (in-)justiça
que o jurista pode optar, no sentido de não reverter os óbices para a concretude dos

5
“...o sentido útil e viável de que o julgador deverá decidir na concreta realização do direito em autônoma constituição
normativa, como se fora legislador, invocando o princípio da generalização ou da universalização kantiano, hoje tão largamente
invocado como critério de validade para a razão prática” (NEVES, 1993, p. 286).
424

direitos fundamentais, como, de forma incisiva, leciona a doutrina ao explicar sobre os


motivos que impedem a almejada concretização, ou seja, “para quem prefere ter a
consciência anestesiada e não se angustiar com a questão da justiça, ou então para
o profissional do direito que não quer assumir responsabilidades e riscos e procura
ocultar-se sob a capa de uma aparente neutralidade política” (DALLARI, 1996, p. 82).
Por isso, aqui faz sentido estudar a equidade e justiça “seniana”, pois um
sistema jurídico não depende só de estruturas físicas ou normas expressas para ditar
como se tornar efetivo ou concreto, sob pena de se tornar um modelo totalmente
injusto e antidemocrático. Nesse sentido, o diálogo entre todos os destinatários da
Constituição é fundamental no Estado Democrático, visando almejar soluções
efetivas, sob pena de os direitos fundamentais deixarem de ser prioritários ou,
propriamente dito, “fundamentais”, sem cumprimento ou efetivação.
As possibilidades de efetivação constitucional devem ser positivas, tal como se
extraiu dos ensinamentos de Amartya Sen, ao pontuar a justiça como conceitos
abertos e amplas, como não difere o posicionamento do professor Tércio Sampaio
Ferraz Junior, em sua abordagem sobre o tema, ao dizer que um “... discurso sobre a
justiça é sempre dialógico (...). É este, sem dúvida, o sentido mais imediato da
dogmática jurídica. Sua estrutura é impositiva. (...). De outro lado, porém, não se pode
ignorar um a certa flexibilidade — em termos de possibilidade.” (FERRAZ JUNIOR,
1979, p. 165).
A equidade6, todavia, exige critérios básicos de prudência, além de bom senso
e lógica sistêmica, aplicável em casos como esses de dificuldades na realização dos
direitos fundamentais, pois “na falta de norma positiva, é o recurso a uma espécie de
intuição, no concreto, das exigências da justiça enquanto igualdade proporcional”
(FERRAZ JR., 1996, p. 304), portanto, "se o conhecimento da lei depende do intelecto
e a prudência depende da experiência, o magistrado deve dar atenção aos dois
critérios para que sua decisão se revele equitativa“. (BOITEUX, 2018).
Por derradeiro, com as lições norte-americanas, afirma o professor Mark
Tushnet que um novo constitucionalismo está em voga, de modo global, onde se deve
efetivar o caminho do diálogo, principalmente, com os maiores interessados que são
os jurisdicionados, ressaltando que apesar de serem poucas as inovações em matéria
de tecnologias constitucionais, todavia, uma parte dos doutrinadores
constitucionalista buscam sempre o respaldo público, por se tratar de um ato
genuinamente constitucional, e que não somente gera “alguma perspectiva sobre os
processos de criação do direito constitucional, em um aspecto geral, como também
sugere a possibilidade de inovações institucionais para aprofundar o fundamento
normativo da constituição” (TUSHNET, 2015, p. 1205).
Ademais, consensualmente, a “Constituição já não se limita a fixar os limites
do poder do Estado, por meio da liberdade civil, e a organizar a articulação e os limites
da formação política da vontade e do exercício do domínio” (BÖCKENFÖRDE, 2000,
p. 40), vez que os valores de direitos fundamentais se transformam em positivações
jurídicas para a vida em comum. Enfim, ao estudarmos a idéia de justiça e equidade
por meio dos textos “senianos”, onde a realização da liberdade7 é direta e aberta,
introduz o repensar e atualizar dos conceitos e princípios basilares da humanidade,
por meio do exercício dialógico do direito, que pode significar um resgate de tais

6
“O intérprete deve, porém, sempre buscar uma racionalização desta intuição, mediante uma análise das considerações práticas
dos efeitos presumíveis das soluções encontradas, o que exige juízos empíricos e de valor, os quais aparecem fundidos na
expressão juízo por equidade.” (FERRAZ JR., 1996, p. 304)
7
A construção da democracia, por meio do exercício da liberdade, vem desde a Antiguidade Clássica, “... no extenso arsenal de
receitas e combinações de elementos políticos que o mundo conheceu, emerge a democracia como o modelo que mais se
aproxima da perspectiva de resguardo da liberdade.” (CAGGIANO, 2011, p. 7).
425

fundamentos, a partir dos destinatários das normas constitucionais, por velocidade e


força dos impactos na sociedade, em especial para se estimular o exercício de
liberdades nas escolhas do que melhor lhes representam, concretizando a justiça ou
equidade, no campo dos direitos fundamentais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos estudos empreendidos, sobre a ideia de justiça e/ou equidade, por
meio do exercício das capacidades com liberdade, sem a pretensão de aqui esgotar
o tema, todavia, convém concluir, que buscou-se analisar uma das linhas mais
consentâneas à luz da equidade e justiça, com os seguintes pontos observados:
- a ideia de justiça se traduz num campo abertos e fértil para desenvolver
racionalidades que possam ser aplicadas em situações concretas de aflições, litígios
ou conflitos humanos ou sociais, com critérios de liberdade, igualdade, solidariedade,
amor, felicidade, paz, segurança jurídica, democracia e os sonhos de cada individuo
e da respectiva sociedade em que vive;
- os direitos fundamentais devem ser concretizados ou efetivados,
imediatamente, salvo quando existem casos de conflitos de dois ou mais direitos
fundamentais, inclusive, admitindo-se a teoria da restrição fundamentada para um ou
mais, em detrimento de outros de maior valoração. Na ausência de normas próprias,
a equidade é um recurso, técnica ou conhecimento que pode e deve ser utilizado, de
forma dialógica, para eficiência da jurisdição constitucional, consagrada
democraticamente;
- portanto, quanto à equidade e justiça, conceitualmente clássicas nas suas
origens, não foram extintas e servem para revigorar um espirito interpretativo crítico e
inovador8 e, sempre, de acordo com a necessidade da sociedade atual e das futuras
gerações, não em busca de uma justiça perfeita, mas, visando evitar os males
decorrentes das injustiças sociais, suas barreiras de concretude dos direitos
fundamentais, mas, para alcançarem um patamar de ética e de virtudes, igualmente
clássicas, onde a liberdade de escolha da vida que se busca, consentânea com a
realidade, como pregada por Amartya Sen, seja sempre um tesouro inestimável e
primado equidade e justiça.

REFERÊNCIAS

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democracia. Madri: Trotta, 2000.
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humanos de natureza ambiental. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo. São Paulo: Fadusp, 2010. V. 105, p. 509-533.
CAGGIANO, Monica Herman Salem. Democracia x Constitucionalismo. Um navio à
deriva? In: Cadernos de Pós-Graduação em Direito: estudos e documentos de
trabalho / Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP. São Paulo:
Fadusp, n. 1, 2011.

8
“Por serem os desenvolvimentos aqui analisados relativamente recentes, não podemos retirar conclusões confiantes em como
o uso de fontes populares e audiências públicas ou outros mecanismos similares funcionariam se adotados em larga escala.
Inovações de sucesso na tecnologia constitucional são raras, e estes caminhos podem levar a becos sem saída. No entanto,
ambos são claramente parte de uma tradição constitucionalista que faz do consentimento público uma importante parte do
fundamento constitucional. Os examinar não só nos dá alguma perspectiva sobre os processos de criação do direito
constitucional, em um aspecto geral, como também sugere a possibilidade de inovações institucionais para aprofundar o
fundamento normativo da constituição” (TUSHNET, 2015, p. 1205).
426

CAMPELLO, Lívia Gaigher Bósio; SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. Cidadania e direitos
humanos. Revista Interdisciplinar de Direito da Faculdade de Direito de
Valença/Fundação Educacional Dom André Arcoverde. Juiz de Fora: Editora
Associada Ltda, 2011.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria Da Constituição. 7.ª ed.
Coimbra: Almedina, 2003.
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed., Coimbra:
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FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Do discurso sobre a justiça. Revista Da
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FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 7ª ed. São
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SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. 6ª ed.
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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24ª ed. São Paulo:
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SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos:
conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010.
TUSHNET, Mark. Novos mecanismos institucionais para a criação do Direito
Constitucional. Revista Quaestio Juris. Rio de Janeiro: UFRG, 2015, vol.08, nº. 02.
427

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ABANDONO DIGITAL DO ABSOLUTAMENTE


INCAPAZ, EM ESPECIAL OS MENORES DE 12 ANOS (INCOMPLETOS)
CIVIL LIABILITY OF THE DIGITAL ABANDONMENT OF THE ABSOLUTELY
INCAPABLE, ESPECIALLY UNDER 12 YEARS (INCOMPLETE)

Ellen Aparecida Baltazar Ramos


Eudes Vitor Bezerra

Resumo: Esta pesquisa busca desenvolver um estudo sobre a responsabilidade civil


em caso de “abandono digital” do absolutamente incapaz, em especial os menores de
12 anos, considerados crianças por nosso ordenamento jurídico. A evolução digital
trouxe para dentro das casas uma “rua virtual”, e que muitos pais ainda ignoram os
perigos desta rua. A falta de vigilância dos pais/tutores expõe a integridade moral,
intelectual e psicológica, dos menores. Demonstrar-se-á os principais riscos e danos
que o mundo digital traz as crianças, quando o genitor ou tutor não fiscaliza, com base
em pesquisa nacionais e internacionais acerca do desenvolvimento infantil. Além de
compreender a responsabilidade civil e a caracterização do abandono digital, bem
como em que momento surge este abandono, quais os traumas que este abandono
pode gerar, e quais as suas consequências jurídicas. Para tanto, utilizar-se-á o
método hipotético-dedutivo, com aporte na doutrina especializada, legislação vigente
e jurisprudência.
Palavras-chave: Abandono Digital, Responsabilidade Civil, Dever de Vigilância dos
Pais

Abstract: This research seeks to develop a study on civil liability in case of digital
abandonment of the absolutely incapacitated, especially those under 12 years old,
considered children by our legal order. Digital evolution brought into the houses a
"virtual street", and that many parents still ignore the dangers of this street. The lack of
vigilance of parents / guardians exposes the moral, intellectual and psychological
integrity of minors. It will demonstrate the main risks and harms the digital world brings
children, when the parent or guardian does not oversee, based on national and
international research on child development. In addition to understanding the civil
liability and the characterization of digital abandonment, as well as when this
abandonment occurs, what traumas this abandonment can generate, and what its legal
consequences. For this, the hypothetical-deductive method will be used, with
contribution in the specialized doctrine, current legislation and jurisprudence.
Keywords: Digital Abandonment, Civil Liability, Parental Supervision,

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa visa desenvolver um estudo sobre a responsabilidade civil do


“abandono digital” do absolutamente incapaz, em especial os menores de 12 anos,
considerados crianças por nosso ordenamento jurídico.
O artigo 29 da Lei 12.965/2014 do marco civil da internet aduz que é de
responsabilidade dos pais a vigilância ao conteúdo digital de seus filhos. Mas a
sociedade ainda é carente de educação digital, e não assimilam que o mundo virtual
pode ser tão perigoso quando o mundo real, desta forma, muitos genitores/ tutores
deixam os menores “livres” para navegar no ambiente virtual, sem qualquer
fiscalização.
428

A omissão do genitor/tutor no dever de vigiar os filhos, visto que estes são


alvos mais vulneráveis devido ao fato de estarem em fase de desenvolvimento, pode
gerar consequências gravíssimas a este menor, tanto com relação à integridade
moral, intelectual e psicológica.
A expressão “abandono digital” alude ao fato da criança viver em um mundo
paralelo sem a fiscalização de seu genitor, estando exposta aos riscos do mundo
cibernético. Além disso, vamos demonstrar que em muitos casos a criança passa
horas de seu dia no mundo virtual ao ponto de tornar-se “órfã” de pais vivos, deixando
os responsáveis a desejar quanto o que reza os princípios de uma paternidade
responsável e o melhor interesse do absolutamente incapaz.
Existem hoje diversos aplicativos capazes de ajudar os pais nesta missão
protetora, ainda sim, esta problemática é de extrema relevância social, pois, hoje
temos crianças que mesmo estando guardadas dentro de seus lares, não estão
recebendo a proteção devida, e se encontram abandonadas a própria sorte, em um
mundo ainda mais perverso e cruel, o mundo digital. Fato que corrobora com a
necessidade de averiguação, conforme propõe o presente ensaio.
O avanço tecnológico é fundamental para o desenvolvimento da sociedade, e
nossas crianças devem participar deste avanço, mas de maneira que não sejam
futuramente afetas, pois, o genitor/ tutor tem papel fundamental na formação e no
desenvolvimento desta criança, que não é capaz de distinguir o que lhe faz bem ou
mal.
O objetivo desta pesquisa é discutir a importância da vigilância dos
genitores/tutores, quanto ao uso excessivo e indiscriminado por crianças à realidade
virtual, levando em consideração a idade e às etapas do desenvolvimento cognitivo e
psicossocial das crianças. Além disso, identificar de que forma ocorre a omissão dos
genitores/ tutores no dever de vigilância a criança, quais os danos que a omissão pode
gerar ao menor e analisar se a indenização em pecúnia pode ser um meio possível
de reparação as vítimas.
O método a ser adotado será o hipotético-dedutivo, trazendo a problemática a
cerca abandono digital, a responsabilidade civil dos genitores/tutores, e uma possível
solução baseando-se na mesma forma de indenização que ocorre no abandono
afetivo. Serão utilizadas na pesquisa obras jurídicas, psicológicas, psiquiátricas,
filosóficas, dispositivos legais, sites oficiais e pesquisas realizadas por órgãos
nacionais e internacionais, no período dos últimos de 5 anos, acerca do assunto
pesquisado.
Devido ao crescente número de acesso ao mundo digital por crianças,
conforme demonstram pesquisas nacionais e internacionais que posteriormente serão
apontadas, a presente pesquisa, buscar-se-á demonstrar os principais riscos e danos
a que estas crianças estão expostas quando o genitor ou tutor não fiscaliza.
Por fim, buscaremos compreender a responsabilidade civil e a caracterização
do abandono digital, bem como em que momento surge este abandono, quais os
traumas que este abandono pode gerar, e quais as suas consequências jurídicas.
Com intuito de responder as seguintes perguntas: o abandono digital é subespécie do
abandono afetivo? Sendo reconhecido tal abandono, como ficará a questão da
indenização as vítimas?

DESENVOLVIMENTO

No Brasil, sob constante evolução da sociedade entramos na era digital. A lei


12.965/2014 trouxe o marco civil da internet, necessário para garantir os direitos e
429

deveres dos cidadãos brasileiros frente a esta nova era digital, visto que anteriormente
a internet era utilizada de forma livre, sendo as violações de direitos ocorridas
amparadas com “deficiência” pelo condigo civil, código de defesa do consumidor e leis
esparsas.1
Nos dispositivos da lei constam garantias tais como: especificidade na defesa
do direito consumidor digital; regulamentação do comércio virtual preservando a livre
iniciativa e a livre concorrência; além de regular os serviços prestados pelos
provedores de Internet tornando estes responsáveis quanto a segurança e a
funcionalidade dos serviços.2
A ampliação da internet possibilitou aos cidadãos uma nova forma de se
organizar, visto que, as redes sociais possibilitam que um maior número de pessoas
consiga se reunir em prol de um ideal, expressando suas diversas opiniões sobre a
política brasileira e a busca por direitos. Além disso, a criação da lei do marco civil da
internet contou com a colaboração da sociedade por meio de debates na internet, o
que promoveu a ideia de uma democracia de forma mais efetiva.3
Evidente que dada a expansão desta evolução digital, surgem novas
problemáticas na sociedade, e o Direito em conjunto deve evoluir, portanto, o objetivo
desta pesquisa consiste em trazer uma perspectiva com relação ao abandono do
incapaz, no âmbito digital, em especial as crianças, vislumbrando a hipótese de
reparação de danos, como de fato ocorre no caso do abandono afetivo.
A quinta edição da pesquisa TIC Kids Online Brasil do Comitê Gestor da
Internet no Brasil (CGI.br), realizada pelo Centro Regional de Estudos para o
Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), do Núcleo de Informação e
Coordenação do Ponto BR (NIC.br), aponta aos seguintes dados,

Em 2016, a pesquisa estima que 41% dos usuários de Internet de 9 a 17


anos (10 milhões de crianças) declararam ter visto alguém ser objetos de
discriminação na Internet – resultado estável em relação a 2015. O contato
com conteúdos de natureza agressiva na rede é maior entre meninas
(45%) e adolescentes entre 15 e 17 anos (53%). Entre os principais
motivos de discriminação identificados estão: cor ou raça (24%),
aparência física (16%) e o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo
(13%). Uma parcela menor (7%) afirma ter se sentido pessoalmente
discriminada na rede – o que representa 1,7 milhões de crianças e
adolescentes usuários de Internet.
O levantamento revelou ainda que os usuários de Internet com idades
entre 11 e 17 anos estão expostos a outros tipos de conteúdos sensíveis
na rede, como assuntos relacionados a “formas de tornar-se muito magro”
(27% entre meninas e 9% entre meninos) e “formas de machucar a si
mesmo” (17% entre meninas e 12% entre meninos).
Em 2016, cerca de 7 em cada 10 (69%) crianças e adolescentes usuários
de Internet utilizaram a rede com segurança, segundo a declaração dos
seus pais ou responsáveis. A percepção sobre segurança on-line se
mostrou maior entre crianças cujos pais têm escolaridade alta (75% com
Ensino Médio ou mais) e aqueles das classes A e B (79%).4

1
GALO, Carlos Henrique.Lei nº 12.965/11: o Marco Civil da Internet – análise crítica. Disponível em
https://henriquegalo.jusbrasil.com.br/artigos/118296790/lei-n-12965-11-o-marco-civil-da-internet-analise-criticaAcesso em 08 de
out/18
2
GALO, Op., cit. Acesso em 08 de out/18
3
BEZERRA, Eudes Vitor. Redes Sociais na participação democrática: desafios contemporâneos na efetivação dos direitos
do e-cidadão. Disponível em <https://tede2.pucsp. br/bitstream/handle/19403/2/Eudes%20Vitor%20Bezerra.pdf>Acesso em 08
de out/18. p-125/126
4
COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Disponível em<https://www.cgi.br /noticia/releases/cresce-o-percentual-de-
criancas-e-adolescentes-que-procuraram-informacoes-sobre-marcas-ou-produtos-na-internet/>Atualizado em: 01/12/2017.
Acesso em 25 de out/18.
430

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 2º, entende-


se por criança toda pessoa com idade de 12 anos incompletos. Para uma melhor
análise e desenvolvimento da presente pesquisa, vamos nos ater apenas aos reflexos
do abandono digital no que diz respeito àscrianças. Tendo que vista que a criança não
tem condições por si só de enxergar os diversos riscos a que se expõe, necessitando,
todavia, sempre de um guardião para que consiga crescer e desenvolver-se da forma
mais digna e adequada.
O artigo 227 da Constituição Federal de 1988, dispõe que o direito dos menores
consiste em um dever ora da família,da sociedade e do Estado, em lhes garantir a
total satisfação de direitos que são fundamentais à sua sobrevivência,visto que estes
são pessoas em fase de desenvolvimento, e necessitam de atenção especial. No
mesmo sentido temos o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente. 5
Fundamental esclarecer que antigamente, a família consistia em um lar, onde
o genitor era o mantenedor, responsável pelo sustento da prole, enquanto que a
genitora era a auxiliadora nos cuidados com a educação dos filhos e a casa.
Evidentemente que nos tempos atuais tal situação é rara, pois, com todas as
conquistas em relação as igualdades de sexo, este cenário sofreu fortes modificações.
De modo que hoje as famílias são formadas por pessoas, que se unem com
obrigações recíprocas, ou ainda por apenas um ascendente e seus descendentes, ou
mesmo família unidas por afinidade. 6
Preceitua Paulo Lôbo “Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de
escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização
existencial. Não pode o legislador definir qual a melhor e mais adequada.”7
O direito de família abrange diversos princípios que tem por intuito proteger os
direitos do menor. A começar pelo princípio da dignidade humana expresso na
Constituição Federal do Brasil, artigo 1º, III, etido como alicerce dos direito
fundamentais, assevera ALVES8,
Nas sabias palavras de KANT “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma
dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra
como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não
permite equivalente, então ela tem dignidade. ”9
Assim, a missão em garantir a dignidade da pessoa humana do menor é da
geração adulta, sendo, portanto, esta responsabilidade é destinada aos pais, a
sociedade e ao Estado.
O Princípio da Afetividade, primordial para a formação da personalidade do
menor, sendo inegável que quando criança, nós nos espelhamos principalmente nos
adultos que nos auxiliam.
O afeto, o contato físico, a troca de carinho é parte fundamental para o
desenvolvimento sadio do psíquico infantil, segundo Álvaro Bilbao, “Se a criança, nos
seis primeiros anos, não tiver a oportunidade de experimentar o mundo, descobrir as
coisas, se não receber afeto dos seus pais, se não se comunicar, o cérebro terá

5
COSTA, Antônio Carlos Gomes da. CONSELHO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Conselho Estadual dos Direitos da
Criança e do Adolescente de Alagoas. Disponível em <http://www.conselhodacrianca.al.gov.br/sala-de-
imprensa/noticias/2013/marco/o-que-e-o-eca>, acesso em 12 de out/18.
6
DIAS, Maria Berenice. Direito de Família e o Novo Código Civil. 3 ed. Revista Atualizada e Ampliada. Belo Horizonte. IBDFAM,
2003. p-14
7
LOBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas. Disponível em: <
www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9408-9407-1-PB.pdf> Acesso em: 16 de out/18.
8
ALVES, Cleber Francisco. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque da doutrina social da
igreja. Rio de Janeiro - São Paulo: Renovar, 2001, p-132
9
KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução Paulo Quintela. Textos Filosóficos. Ed. 70. Lisboa, 1997.
(KANT, 2000, p-77)
431

carências que podem durar toda a vida. Sabemos que as crianças que não recebem
afeto se tornam adultos com menor desenvolvimento cerebral”.10
O Princípio da Afetividade não consiste em mero sentimento, e sim no dever
de cuidar, ou seja, os pais/tutores não são obrigados a amar, mas estão submetidos
ao dever de vigilância, cuidado, zelo e direcionamento do caráter dos menores de
forma a propiciar condições para que estes se desenvolvam damelhor forma possível
e com segurança.11
O Princípio da Paternidade Responsável abrange os demais princípios
supracitados de forma que seja este um conjunto de deveres impostos aos pais em
busca da missão de ajudar o menor alcançar a plenitude de seus direitos previsto na
legislação. Está previsto na Constituição Federal em seu artigo 226, parágrafo 7º:
Segundo Valéria Silva Galdino Cardin, doutora em direito pela PUC-SP, “Pode-
se conceituar a paternidade responsável como a obrigação que os pais têm de prover
a assistência moral, afetiva, intelectual e material aos filhos”.12
O Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente, apesar de não
estar expressamente no Estatuto da Criança e do Adolescente, é possível verificar
que toda a estrutura do Estatuto visa proteger o menor e garantir-lhe o seu
desenvolvimento, ou seja, visa garantir-lhe o seu melhor interesse. Assim, verifica-se
no artigo 28, ao qual compreende a importância de ouvir o menor, sempre respeitados
o seu grau de desenvolvimento e compreensão, e no artigo 6º quando para
interpretação da lei levar-se- a em consideração as condições peculiares do menor
em desenvolvimento.13
O Princípio do Poder Familiar que consiste nas relações jurídicas entre pais e
filhos, de forma que sendo os pais responsáveis cíveis pelos atos dos menores, estes
por sua vez devem respeitar algumas limitações que a lei prevê a interferência direta
dos pais, para que haja um equilíbrio nesta relação.14
As obrigações que derivam do Poder Familiar, estão elencada no artigo 1.645
do Código Civil, desta forma, o intuito deste “poder” na verdade consiste em proteger
o menor dada sua imaturidade para discernir os riscos e incapacidade para praticar
os atos da vida civil, mas apesar da obediência devida aos pais, pelas limitações, a
que se levar sempre em consideração todos os direitos que lhes são garantidos, de
forma que estes sempre estarão acima do poder família, conforme previsto as formas
de extinção do artigo 1635 e 1638 do código civil.
Após esta compreensãoacerca dos princípios reguladores dos direitos de
proteção do menor, adentremos a responsabilidade civil dos genitores/tutores.
No entendimentodo doutrinador Carlos Roberto Gonçalves aos pais/tutores
caberá o dever de vigiar para que este menor cresça sem prejudicar outrem, e ainda,
cresça devidamente amparado cabendo-lhes o dever de educar, sustentar, e
contribuir para que este cresça um cidadão de bem evitando-se por consequência que
o próprio menor se prejudique em razão de sua vulnerabilidade pela idade imatura. 15
Segundo Maria Helena Diniz, a responsabilidade Civil consiste na "aplicação
de medidas que obriguem uma pessoa a reparar o dano moral ou patrimonial causado

10
AFETO É IMPORTANTE PARA O DESENVOLVIMENTO CEREBRAL DE CRIANÇAS, DIZ ESPECIALISTA, disponível em
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2016-10/afeto-e-importante-para-o-desenvolvimento-cerebral-de-criancas-
diz> acesso em 12 de out/18
11
LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil – Famílias. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.p- 72
12
CARDIN ,Valéria Silva Galdino. Do Planejamento Familiar, da Paternidade Responsável e das Políticas Públicas. .
Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/223.pdf.> acesso 13 de out/18. p-06
13
PUC - TESES ABERTAS. Disponível em <http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0510661_07_ cap_02.pdf>
acesso em 10 de out/18
14
TAMASSIA, Maria Júlia Pimentel. O PODER FAMILIAR NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA. Disponível em
<http://www.eduvaleavare.com.br/wp-content/uploads/2014/07/poder_familiar.pdf> acesso em 13 de out/18
15
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
432

a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela
respondepor alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal"16
O instituto visa por meio de uma indenização em pecúnia como forma de
reparação do dano àquele que tenha seu direito lesado.
O código civil em seu artigo 932, incisos I e II, dispõe que os pais e tutores tem
o dever de vigilância sobre os menores que se acharem em sua autoridade ou
companhia, desta forma a responsabilidade civil com relação a indenização a terceiros
será objetiva, obedecendo ao artigo 927 do código civil, sem necessária comprovação
da culpa.
Segundo Patrícia Pinheiro, “Criança conectada à internet sem a supervisão de
um adulto é um menor abandonado digital”.17
O artigo 29 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), determina que é de
responsabilidade dos pais o controle aos conteúdos acessados pelo menor.
Frente aos danos que uma criança pode sofrer quando se achar abandonada
digitalmente, entendemos que a responsabilidade civil dos pais incorrera sob a forma
subjetiva, devido a necessidade de comprovação de culpa para demonstração de
danos e prejuízos causados ao menor, conforme os artigos 186 e 927 do código civil,
trazendo a hipótese de indenização de cunho moral. Este entendimento advém da
mesma linha de raciocínio do abandono afetivo já conhecido do nosso ordenamento
jurídico.
Ainda segundo a autora, “A tecnologia não tem lado bom ou ruim, pois depende
muito de como é utilizada, mas a negligencia, sim, essa sempre gera danos, às vezes
irreversíveis. ”.18
Antigamente um pai acreditava que seu filho estaria guardado dos perigos se
estivesse dentro de casa, no entanto, hoje o perigo mora dentro das próprias casas,
quando os pais negligenciam os perigos da exposição ao mundo digital, os menores
ficam a deriva da própria sorte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os danos vislumbrados na presente pesquisa são os de ordem psíquica e moral


dado a necessidade de acompanhamentos dos genitores e tutores na formação e
desenvolvimento cognitivo da criança, de acordo com os princípios norteadores da
proteção do menor.Buscar-se a evidenciar que a omissão no dever de vigilância dos
pais gera o abandono digital, e quando comprovado os danos, a indenização em
pecúnia seria uma hipótese para a reparação, como de fato ocorre no caso do
abandono afetivo.

REFERÊNCIAS

AFETO É IMPORTANTE PARA O DESENVOLVIMENTO CEREBRAL DE


CRIANÇAS, DIZ ESPECIALISTA, disponível em
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2016-10/afeto-e-importante-
para-o-desenvolvimento-cerebral-de-criancas-diz> acesso em 12 de out/18

16
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro - Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 7
17
PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital Aplicado 3.0. São Paulo. Revista dos Tribunais, Ed 2018. p-238
18
PINHEIRO, Op Cit. p-239
433

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CARDIN ,Valéria Silva Galdino. Do Planejamento Familiar, da Paternidade
Responsável e das Políticas Públicas.Disponível em
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06
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434

Grupo de trabalho:

DIREITO DO TRABALHO E
PROCESSO DO TRABALHO
Trabalhos publicados:

A INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DO ARTIGO 790-B DA CLT, UM


RETROCESSO AO ACESSO À JUSTIÇA TRABALHISTA

A REFORMA TRABALHISTA DE 2017 E OS IMPACTOS DA TERCEIRIZAÇÃO


IRRESTRITA NOS DIREITOS DOS TRABALHADORES

A VALORIZAÇÃO DO TRABALHO E A INDICAÇÃO GEOGRÁFICA NA CADEIA


PRODUTIVA DO AÇAÍ

O INSTITUTO DO JUS POSTULANDI E OS REFLEXOS NO ACESSO À JUSTIÇA:


NECESSIDADE DA CRIAÇÃO DE UMA DEFENSORIA PÚBLICA NA JUSTIÇA DO
TRABALHO PARA GARANTIA DE DIREITOS, INCLUSIVE NO ÂMBITO DOS
DIREITOS DA PERSONALIDADE

O MEIO AMBIENTE HOSPITALAR E AS CONDIÇÕES INSALUBRES DOS


PROFISSIONAIS DA RECEPÇÃO

OS IMPACTOS DA RECENTE DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL


SOBRE A TERCEIRIZAÇÃO E O PRINCÍPIO PROTETIVO

OS TRANSTORNOS MENTAIS RELACIONADOS AO MEIO AMBIENTE DE


TRABALHO E A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO

POLÍTICA PÚBLICA DE AGROTÓXICOS E SEUS IMPACTOS NA SAÚDE DOS


TRABALHADORES

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NA FEIRAS URBANAS: O CASO DA FEIRA DO


AÇAÍ EM BELÉM
435

A INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DO ARTIGO 790-B DA CLT, UM


RETROCESSO AO ACESSO À JUSTIÇA TRABALHISTA
THE MATERIAL UNCONSTITUTIONALITY OF ARTICLE 790-B OF THE CLT
(BRAZILIAN CONSOLIDATION OF LABOR LAWS), A RETURN TO ACCESS TO
LABOR JUSTICE

Rodolfo Shimozako Nates

Resumo: Sob nova redação atribuída pela reforma trabalhista, o artigo 790-B da CLT
encontra-se em conflito com o artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, em
flagrante inconstitucionalidade material, ao dispor que a parte sucumbente em perícia
trabalhista será condenada ao pagamento dos honorários periciais, ainda que
beneficiária da justiça gratuita. Tal situação de longe representa restrição do acesso
ao Poder Judiciário, comprometendo a concretização dos direitos fundamentais
existentes em nossa Constituição, resumindo em um triste retrocesso ao acesso à
justiça trabalhista. A violação à Constituição Federal, princípios constitucionais e
princípios norteadores do direito do trabalho acarreta, indubitavelmente, violação a
dignidade humana e a isonomia, uma vez que é impossível instituir igualdade das
partes, empregado e empregador, no âmbito das relações de trabalho. O presente
trabalho foi realizado sob o método dialético dedutivo, não empírico, com pesquisa
bibliográfica.
Palavras-chave: Direito do Trabalho. Inconstitucionalidade. Reforma Trabalhista.

Abstract: Under new wording attributed to the labor law reform, the article 790-B of
the CLT (Consolidation of Labor Laws) is in conflict with article 5, paragraph LXXIV, of
the Constitution of Brazil, in flagrant material unconstitutionality, providing that the loser
at the labor expertise shall be ordered to pay of expert fees, even though she is a
beneficiary of free legal aid. This situation represents a restriction of access to the
Judiciary, compromising the realization of the fundamental rights existing in our
Constitution, summarizing a sad setback to access to labor justice. Violation of the
Federal Constitution, constitutional principles and guiding principles of labor law
undoubtedly entails violation of human dignity and isonomy, since it is impossible to
establish equality of the parties, employee and employer, in the context of labor
relations. This artile was conducted under the deductive dialectical method, not
empirical, with literature search.
Keywords: Labor law. Unconstitutionality. Labor law reformn.

INTRODUÇÃO

Antes mesmo de sua promulgação, a atual redação do artigo 790-B da


Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), introduzida pela Lei nº 13.467, de 2017,
mais conhecida como “reforma trabalhista”, tem causado grande inconformismo e
descontentamento, tanto na seara forense, quanto na seara científica do direito
brasileiro. A expressão “ainda que beneficiária da justiça gratuita”, constante da nova
redação do caput do mencionado artigo possui flagrante inconstitucionalidade, devido
a sua contrariedade material ao disposto no inciso LXXIV, do artigo 5º, da Constituição
Federal. Não obstante a desarmonia com o disposto na Constituição Federal, a nova
redação do dispositivo legal da CLT é dotado de grande antinomia também entre
outros diplomas legais da legislação tupiniquim, dentre eles, o Código de Processo
Civil de 2015, que possui aplicação supletiva e subsidiária no Direito do Trabalho, a
436

Lei nº 1.060/50 e a Lei 5.584/70, que estabelece normas para a concessão de


assistência judiciária aos necessitados e que foram recepcionadas pela Carta Cidadã.
Tal situação nos mostra o início de mais um capítulo do ativismo judicial, pois,
diante da abominável tentativa política em prejudicar o direito de ação do trabalhador
hipossuficiente perante a Justiça trabalhista, emergida de uma duvidosa
inconstitucionalidade, uma postura proativa do Poder Judiciário é essencial na
ingerência de maneira significativa nas opções políticas dos demais poderes, para que
se possa dar efetiva aplicação ao texto da Carta Magna.

JUSTIÇA GRATUITA E ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA, PARA ALÉM DE UM


MERO CONCEITO

Atualmente a Constituição Federal de 1988, dispõe em seu o artigo 5º, inciso


LXXIV, que o Estado prestará assistência judiciária gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos.
Conforme ensinamentos doutrinários “a assistência judiciária é gênero do qual
a justiça gratuita é espécie.” (SCHIAVI, 2017, p.79).
O direito a Assistência Judiciária Gratuita significa a possibilidade de o Estado
conceder àquele que comprovar insuficiência de recursos, isenção de custas, todas
as despesas e taxas processuais, bem como advogado do Estado de maneira gratuita.
Por outro lado, a concessão da Justiça gratuita ao litigante, significa concedê-
lo o direito à gratuidade das despesas processuais, como taxas judiciárias, custas,
emolumentos, honorários de perito, despesas com editais etc. Todavia, sem direito a
advogado do Estado (SCHIAVI, 2017, p.80).
Sob os ensinamentos de Fredie Didier Júnior e Rafael Oliveira, podemos definir
as diferenças de termos como “justiça gratuita, ou benefício da gratuidade, ou ainda
gratuidade judiciária, consiste na dispensa da parte do adiantamento de todas as
despesas, judiciais ou não, diretamente vinculadas ao processo, bem assim na
dispensa do pagamento dos honorários do advogado. Assistência judiciária é o
patrocínio gratuito da causa por advogado público ou particular” (DIDIER; OLIVEIRA,
2005).

O SURGIMENTO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA E JUSTIÇA


GRATUITA, UMA BREVE ANÁLISE HISTÓRICA

Em terras brasileiras, a assistência judiciária remonta as Ordenações Filipinas,


no livro III, capítulo LXXXIV, parágrafo X, do qual aborda os agravos das sentenças
definitivas. Esta compilação jurídica vigeu no Brasil até o ano de 1916, por força da
por força da Lei de 20 de outubro de 1823. (BASTOS, 1989)
No ano de 1934, em 16 de julho foi promulgada a Constituição da República
dos Estados Unidos do Brasil, retomando a previsão constitucional da assistência
judiciária aos necessitados, no artigo 113, 32.
Desde então, as demais Constituições que foram promulgadas no decorrer da
história nacional (1946 e 1967) mantiveram a previsão constitucional da assistência
judiciária aos necessitados e assim foi mantida também na Constituição Cidadã de
1988.
Neste período, ainda em 1950, foi promulgada a Lei 1.060, que passou a
estabelecer as normas com fins de concessão e regulamentação da assistência
judiciária aos necessitados e que é aplicada até os dias atuais, servindo de amparo
legal para fins de aplicação do direito, na seara doutrinária e jurisprudencial.
437

A Lei 5.584/70, surgiu para disciplinar a concessão e prestação de assistência


judiciária na Justiça do Trabalho prevista na Lei nº 1.060, cuja matéria abordava
estritamente o trabalhador representado sindicato da categoria profissional a que
pertencia.
No ano de 2002, a Lei 10.537 adveio para dirimir questões a cerca das custas
e emolumentos da Justiça do Trabalho. O referido diploma legal trouxe a
possibilidade, facultando o Juiz do Trabalho a conceder o benefício da justiça gratuita.
Foi também introduzido na CLT por meio do mesmo diploma legal, o artigo 790-B, que
impunha o pagamento dos honorários periciais à parte sucumbente na pretensão
objeto da perícia, todavia, isentando aquele que era beneficiário da justiça gratuita,
com a expressa disposição: “salvo se beneficiária de justiça gratuita”.
Mais recente, adveio o Código de Processo Civil de 2015 e inovou ao disciplinar
sobre gratuidade de justiça.
Por fim, em a Lei 13.467/2017, comumente chamada de “reforma trabalhista”,
alterou a antiga redação do artigo 790-B da CLT e passou a contar com a expressão
“ainda que beneficiária da justiça gratuita”, o que desde então, tem causado grande
discussão na seara forense, quanto na seara científica do direito brasileiro.

O ARTIGO 790-B DA CLT - UM DISPOSITIVO “NATIMORTO” EM DECORRÊNCIA


DE SUA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL

Justiça gratuita vai muito além do que simplesmente permitir que aquela mais
parte vulnerável financeiramente possa bater as portas do Poder Judiciário de forma
gratuita. “Há grande significado quando um princípio como êste de ajudar o litigante
pobre chega a ser reconhecido pela lei. Significa que um setor importante do povo –
os seus representantes legislativos – acha o princípio relevante a ponto de assegurar
a sua implementação prática (MESSITE, p. 127).
A “reforma trabalhista”, introduzida pela Lei 13.467/2017 alterou o artigo 790-B
da CLT e introduziu a responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais para
a parte que for sucumbente na perícia pretendida em juízo, mesmo que lhe seja
concedida os benefícios da justiça gratuita.
Conceder os benefícios da justiça gratuita ao litigante e ao mesmo tempo
responsabilizá-lo pelo pagamento dos honorários periciais demonstra completa
incompatibilidade entre as normas do direito pátrio.
A nova redação do artigo 790-B da CLT é de grande e incontestável colisão
com o artigo 5º, inciso LXXIV, da Carta Magna, ao impor aos beneficiários de justiça
gratuita, o pagamento de honorários periciais, sem que esteja afastada a condição de
pobreza do litigante, condição esta que justifica a concessão do benefício da justiça
gratuita.
Para fins processuais trabalhista, a noção de insuficiência de recursos, como
ratio da norma de direito fundamental, encontra-se tradicionalmente conformada pelo
art. 14, § 1º, da Lei 5.584/1970, o qual trata da assistência judiciária gratuita.
Nos termos do dispositivo legal supra mencionado, a assistência judiciária
gratuita é devida ao trabalhador litigante cuja “situação econômica não lhe permite
demandar, sem prejuízo do sustento próprio ou da família”, ainda que perceba salário
superior ao patamar indicado, de dois salários mínimos.
O ato de concessão de justiça gratuita implica o reconhecimento de que o
trabalhador litigante que é beneficiário, não dispõe de recursos para pagar custas e
despesas processuais sem prejuízo de seu sustento e de sua família, na linha do art.
14, § 1º, da Lei 5.584/1970.
438

O referido raciocínio jurídico encontra premissa nas garantias constitucionais


de acesso à jurisdição e do mínimo material necessário à proteção da dignidade
humana, previstos nos artigos 1º, inciso III, e 5º, inciso LXXIV, ambos do Texto Maior.
Ademais, há que se ressaltar que as verbas que se aufere em uma ação
trabalhista, em sua maioria, se trata de verba de natureza alimentar, destinada a
subsistência do trabalhador e de sua família.
O princípio da proteção do trabalhador, que é fracionado pelos subprincípios
da “condição mais benéfica”, “in dubio pro operário” e “norma mais favorável”, se
ancoram no princípio da isonomia, positivado no caput do artigo 5º, da Constituição
Federal de 1988, uma vez que é impossível instituir igualdade das partes,
empregado e empregador, no âmbito das relações de trabalho.
A igualdade entre as partes deve ser incansavelmente perseguida pelo
aplicador do direito como forma de se concretizar uma das grandes vigas de nossa
Constituição e sociedade, pois, “o princípio da igualdade é, assim não apenas um
princípio de disciplina das relações entre o cidadão e o Estado (ou equiparadas) mas
também uma regra de estatuto social dos cidadãos, um princípio de conformação
social e de qualificação da posição de cada cidadão na coletividade.” (CANOTILHO;
MOREIRA).
Outro ponto a cerca da Lei 13.467/2017 a ser debatido são as exposições de
motivos que justificaram a sua origem, mas que, a bem da verdade, demonstra ser
um verdadeiro abuso legislativo, marcada pelo desvio de sua finalidade.
Consta na justificativa que originou a nova redação do artigo 790-B da CLT,
aponta que condenar o empregado litigante beneficiado pelos auspícios da justiça
gratuita ao pagamento de honorários periciais sucumbenciais, possuía o condão de
“restringir os pedidos de perícia sem fundamentação”, pois, ao “contribuir para a
diminuição no número de ações trabalhistas, a medida representará uma redução
nas despesas do Poder Judiciário”1. Tais fundamentos demonstram um verdadeiro
absurdo, ilegitimidade constitucional e inquestionável inconstitucionalidade, porque,
as medidas legais impostas cerceiam radicalmente o direito fundamental dos
cidadãos hipossuficientes economicamente, carecedor de recursos financeiros, de
acesso à Justiça do Trabalho em defesa de direitos laborais, de forma gratuita.
Neste diapasão, inconteste é a colisão entre a nova redação do artigo 790-B
da CLT com o artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição, ao impor aos beneficiários de
justiça gratuita pagamento de despesas processuais de sucumbência nas perícias em
que restar sucumbente, colocando o demandante pobre a assunção dos riscos da
demanda, caracterizando inconstitucionalidade material com a Carta Maior.

ANTINOMIAS ENTRE A CLT E DEMAIS LEIS INFRACONSTITUCIONAIS

Por muito tempo a antiga redação do artigo 790, § 3º da CLT caminhou em


aplicação cumulativa com dispositivos da Lei 1.060/1950, criando-se pacífica
jurisprudência trabalhista sobre gratuidade de custas e despesas processuais àquele
que comprovar não dispor de recursos para pagá-los.
Com o advento da Lei 13.105/2015, mais conhecida como novo Código de
Processo Civil, derrogou dispositivos da Lei 1.060/1950 e os substituiu pelos artigos
98 a 102 do CPC.

1
Relatório da comissão especial destinada a proferir parecer ao PL 6.787/2016, da Câmara dos Deputados, p. 68-69.
Disponível em: < https://bit.ly/2AfK0U1> Acesso em: 18 out. 2018.
439

A redação do artigo 98 do CPC é cristalina, não deixando dúvidas de que, à


pessoa que for concedida os benefícios da gratuidade da justiça compreenderá os
honorários periciais (inciso VI).
Deste modo, não há como se subsistir harmonia infraconstitucional ao permitir
que, na justiça comum se conceda isenção do pagamento de perícias em caso de
sucumbência da parte assistida pela justiça gratuita, enquanto que na justiça
trabalhista, condene-a ao pagamento de perícia quando sucumbente, onde a parte é
mais vulnerável e recorre ao Poder Judiciário por verba alimentar na maioria da
parcelas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que é inquestionável a inconstitucionalidade material do artigo 790-


B da CLT, haja vista demonstrado a colisão direta com o artigo 5º, inciso LXXIV, da
Constituição Federal e princípios constitucionais. Impor ao beneficiário da justiça
gratuita a condenação ao pagamento de honorários periciais quando restar
sucumbente, significa impor à parte hipossuficiente o risco do processo, restringindo
o seu acesso ao Poder Judiciário, quando sequer possui condições de arcar com as
despesas processuais. Tal situação põe em terra a axiologia dos princípios
constitucionais e princípios norteadores do direito do trabalho, comprometendo a
concretização dos direitos fundamentais existentes em nossa Constituição e
marcando um grave e triste retrocesso ao acesso à justiça trabalhista.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Saraiva, 1989.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Relatório da comissão especial destinada a
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440

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SCHIAVI, Mauro. A reforma trabalhista e o processo do trabalho: aspectos
processuais da Lei n. 13.467/17. 1. ed. São Paulo: LTr Editora, 2017.
441

A REFORMA TRABALHISTA DE 2017 E OS IMPACTOS DA TERCEIRIZAÇÃO


IRRESTRITA NOS DIREITOS DOS TRABALHADORES
THE WORK REFORM OF 2017 AND THE IMPACTS OF IRRESTRIAL
TERRITORIZATION IN THE RIGHTS OF WORKERS

Nicolle Patrice Pereira Rocha


Luise Henriques Ambrozione
Valmir César Pozzetti

Resumo: O direito do trabalho brasileiro passou por recentes transformações, que


afetaram significativamente os direitos fundamentais dos trabalhadores reduzindo,
inclusive, a sua dignidade. O objetivo desta pesquisa é de averiguar quais
transformações tiveram como consequência a diminuição dos direitos trabalhistas,
frente a Constituição Federal de 1.988. A metodologia utilizada nesta pesquisa foi a
do método dedutivo; quanto aos meios a pesquisa foi bibliográfica, com consulta à
legislação, doutrina e jurisprudência; quanto aos fins, a metodologia foi a qualitativa.
Conclui-se que o legislador brasileiro está descumprindo a Constituição Federal e
cedendo a pressões políticas, flexibilizando em demasia em detrimento dos direitos
trabalhistas conquistados com muito esforço, ao longo de muitos anos.
Palavras-chave: direito do trabalho; Constituição; desigualdades sociais.

Abstract: Brazilian labor law has undergone recent transformations, which have
significantly affected workers' fundamental rights, even reducing their dignity. The
objective of this research is to investigate which transformations had as consequence
the reduction of the labor rights, in front of the federal constitution of 1,988. The
methodology used in this research was the deductive method; as to the means the
research was bibliographical, with consultation to the legislation, doctrine and
jurisprudence; for purposes, qualitative. It is concluded that the Brazilian legislature is
breaking the federal constitution and yielding to political pressures, too much
flexibilization and to the detriment of labor rights conquered with much effort, for many
years.
Key words: labor law; Constitution; social differences.

INTRODUÇÃO

O direito trabalhista brasileiro, nos últimos anos, vem passando por uma série
de transformações. A Constituição Federal de 1988, a chamada “Constituição
Cidadã”, tem como objetivos fundamentais da República (art. 3º): construir uma
sociedade livre, justa e igualitária (inciso I); garantir o desenvolvimento nacional (inciso
II); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais (inciso III); e promover o bem de todos (inciso IV).
Para tanto, são necessários mecanismos que assegurem condições mínimas
para que o trabalhador possa exercer suas atividades laborais com segurança e
qualidade. Entretanto, com tantas mudanças no ordenamento jurídico pátrio, vê-se a
mitigação de garantias no meio ambiente do trabalho.
O objetivo da pesquisa será o de averiguar quais transformações, e suas
consequências jurídicas no âmbito do direito constitucional e trabalhista, visto que um
está indubitavelmente associado ao outro. A problemática será investigada em torno
da diminuição dos direitos trabalhistas, frente a Constituição Federal, dentro de um
Estado Democrático de Direito; ou seja: de que forma garantir aos trabalhadores
442

brasileiros os direitos e garantias individuais conquistados pelo texto constitucional de


1.988?
A metodologia a ser utilizada nesta pesquisa será a do método dedutivo; quanto
aos meios a pesquisa será bibliográfica, com consulta à legislação, doutrina e
jurisprudência. Quanto aos fins, a pesquisa será qualitativa.

1 HISTÓRICO E IMPORTÂNCIA DO DIREITO DO TRABALHO

A revolução industrial permitiu o surgimento, com mais intensidade, do trabalho


assalariado; momento esse em que cresceu a produção de bens de consumo e,
também, a exploração da mão de obra humana.
Nesse sentido, Feliciano (2013, p. 12) esclarece que:

O Direito do Trabalho é um dos subsistemas jurídicos mais dinâmicos da


atualidade, ao flertar com questões jurídicas, econômicas, sociais e
culturais, de modo que não se pode deixar de analisar seus institutos sob
um prisma histórico. Na Antiguidade Clássica, o trabalho possuía sentido
pejorativo, sendo relegado aos escravos. Entre os gregos, os escravos
desempenhavam as mais variadas funções, desde as mais rústicas
(domésticos, trabalhadores nos campos e nas minas) até aquelas
relacionadas à segurança das cidades (arqueiros e soldados), à criação
(ourives e artesãos) e até mesmo às letras. Não gozavam, todavia, da
condição de sujeito de direitos, eram considerados como “coisa”.

Durante o regime feudal, ao lado do trabalho servil, efetuado sobre a porção de


terra dada pelos senhores feudais, houve o crescimento de um regime coletivo de
trabalho nos centros urbanos, próprio das denominadas “corporações de ofício”. Estas
atuavam como associações de produtores ou de mercadores de um mesmo ramo
profissional ou econômico, e objetivavam regular não apenas o trabalho, mas também
a produção e a venda de seus produtos.
As corporações de ofício foram suprimidas com o surgimento das revoluções
liberais ou burguesas, haja vista serem consideradas incompatíveis com o ideal de
liberdade do homem.
Foi, então, com a Revolução Industrial que o direito do trabalho passou a
desenvolver-se. O surgimento da máquina a vapor gerou a necessidade de pessoas
para operarem-na. O trabalhador, contudo, era explorado, sendo-lhe exigidos serviços
em ambientes insalubres, jornadas excessivas e remuneração insuficiente para
atender a todas as necessidades de sua família.
Assim, o patrão detinha todos os meios de produção, e o empregado aceitava
as condições impostas, recebendo salários ínfimos e trabalhando exaustivamente. Ao
reivindicar melhorias, em busca de dignidade, os trabalhadores começaram a reunir-
se e associar-se, e o Estado deixou de ser abstencionista para se tornar
intervencionista, interferindo cada vez mais nas relações de trabalho.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, surgiu uma nova teoria, buscando a
harmonização entre as condições sociais e as condições econômicas. A Constituição
de 1988, inserida no contexto de um Estado Democrático de Direito, ao tempo em que
defende o neoliberalismo e os valores da livre iniciativa, garante também um núcleo
de direitos sociais irredutíveis dos trabalhadores (art. 7º, CFRB/88), pois vinculado à
própria ideia de direitos fundamentais da pessoa humana.
No tocante ao futuro do direito do trabalho, verifica-se uma tendência mundial
e regional à sua flexibilização, no intuito de fazer girar a economia dos países, o que
exige uma série de técnicas legislativas e judiciais para assegurar, ao mesmo tempo,
443

os princípios e direitos já conquistados ao longo do tempo, e assim evitar um grande


retrocesso social.

2 PRINCIPAIS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA REFORMA TRABALHISTA DE 2017

A Lei nº 13.467/2017, que alterou diversos dispositivos da Consolidação das


Leis do Trabalho (Lei nº 5.452/1943), foi sancionada pelo Presidente Michel Temer,
entrando em vigor em todo o território nacional a partir de 11 de novembro de 2017.
Inicialmente, a Lei nº 13.467/2017 modificou a hierarquia das normas
trabalhistas, ao priorizar o negociado sobre o legislado. Antes da reforma, o ápice da
pirâmide da hierarquia das normas trabalhistas era a norma mais favorável ao
trabalhador, tendo em vista o princípio da proteção. Hoje, se a convenção coletiva de
trabalho (CCT) e o acordo coletivo de trabalho (ACT) versarem sobre os temas
dispostos no art. 611-A da CLT, por exemplo, terão prevalência sobre a lei.
Não obstante a isso, um outro tópico altamente debatido pelos juristas e pelas
classes de trabalhadores é a mudança quanto ao trabalho da empregada gestante em
ambientes insalubres, que antes era terminantemente proibido. Agora no contexto
pós-reforma, ao arrepio da dignidade da pessoa humana e de outros preceitos
fundamentais, somente é proibido mediante apresentação de atestado de saúde,
exceto no caso de insalubridade em grau máximo (art. 394-A).
Assim, o meio ambiente de trabalho tornou-se um espaço mais rígido para seus
empregados, modificando-se de um ambiente que deveria ser salubre e proporcionar
plena harmonização, hoje é marcado por uma precarização. Segundo Pozzetti e
Rocha (2017, p. 1489):

O meio ambiente do trabalho, classificado como meio ambiente artificial,


tem por finalidade o desenvolvimento de atividades econômicas que visam
a obtenção de lucro ao empregador, em troca da mão de obra do
empregado. Esse ambiente é onde os trabalhadores passam grande parte
do seu tempo, em média 08 horas diárias, e por isso, devem ser
implementadas condições necessárias que promovam o bem-estar do
trabalhador.

Já na esfera processual, no contexto pré-reforma não havia custas para o


empregado que ingressasse com a reclamatória trabalhista, em face da presunção de
hipossuficiência do mesmo. Atualmente, com a reforma/2017, a parte vencida deve
arcar com as custas e os honorários de sucumbência (art. 791-A), medida que
restringiu abruptamente o acesso do trabalhador à justiça, ferindo o artigo 5º da
Constituição federal – CF/88.

3 A TERCEIRIZAÇÃO

A terceirização trabalhista se refere à possibilidade de uma empresa privada


(tomadora de serviços) contratar outra empresa para realizar suas atividades, através
dos funcionários desta última. Há uma dissociação da relação bilateral de trabalho, e
passa-se a uma relação trilateral, onde os trabalhadores não são empregados da
empresa para qual prestam o serviço.
Essa prática surgiu primeiramente no âmbito da administração pública, de
forma restritiva, quando foram criados alguns mecanismos jurídicos que propiciaram
a descentralização administrativa para os serviços de apoio e instrumentais. No
âmbito privado, a regulação normativa ocorreu inicialmente por meios de duas
444

legislações: Lei do trabalho Temporário (Lei nº 6.019/1974) e o Trabalho de Vigilância


Bancária (Lei nº 7.102/1983).
Com o passar do tempo, houve uma expansão do processo terceirizante para
o âmbito privado, até que a Constituição Federal de 1988 impôs certos limites,
fundamentados nos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CFRB/88);
valorização do trabalho e emprego (art. 1º, III c/c art. 170, caput, CFRB/88) e, com o
objetivo constitucional de erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais (art.
3º, III, CRFB/88).
Nesse sentido, Delgado esclarece (2017, p. 513):

Para a Constituição, em consequência, a terceirização sem peias, sem


limites, não é compatível com a ordem jurídica brasileira. As fronteiras
encontradas pela experiência jurisprudencial curadora e equilibrada para
a prática empresarial terceirizante, mantendo esse processo disruptivo
dentro de situações manifestamente delimitadas, atende, desse modo, o
piso instransponível do comando normativo constitucional.

Entendeu-se que era preciso limites a esse processo, que veio com a edição
da Súmula 331 do TST- Tribunal superior do Trabalho - que permitiu algumas
hipóteses, quais sejam: trabalho temporário, (inciso I) e serviços de vigilância e
limpeza, bem como os serviços ligados a atividade-meio do tomador (inciso III). Com
relação à Administração Pública, a contratação irregular não gera vínculo
empregatício (inciso II), devido à necessidade de prévia aprovação em concurso
público para tal (art. 37, II, CRFB/88).
Apesar de a Constituição estabelecer que não poderia haver distinção entre
trabalho manual, técnico e intelectual entre os profissionais (art. 7º, XXXII, CRFB/88),
isso poderia acontecer entre empregado e terceirizado, visto que eles não trabalham
para o mesmo empregador e os seus sindicatos são diferentes, e portanto eles
poderiam estar sujeitos a convenções e acordos coletivos diferentes, além da
diferença de tratamento, como salários e benefícios distintos.
Apesar disso, só era possível ocorrer a terceirização nas atividades não
essenciais da empresa, as chamadas “atividades-meio”. Às atividades finalísticas da
empresa não se permitia o serviço terceirizado, pois eram protegidas pela CLT e
todas as garantias trabalhistas inerentes ao contrato de trabalho.
Entretanto, o STF - Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2018, decidiu que
é plenamente lícita a terceirização de todas as etapas do processo produtivo de uma
empresa, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
324 e o Recurso Extraordinário (RE) 958252, sob a tese de que “é lícita a terceirização
de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego
entre a contratante e o empregado da contratada”, abriu-se o precedente para juízes
e tribunais seguirem.
De acordo com as notícias do site oficial do STF, a Associação Brasileira do
Agronegócio (Abag) questionou, na ADPF 324, a constitucionalidade da interpretação
adotada sobre essa proibição, e afirma que as decisões que restringem a terceirização
com base na Súmula 331 do TST afetam a liberdade de contratação e restringe alguns
preceitos como a legalidade, a livre iniciativa e a valorização do trabalho.
A Procuradoria Geral da República, por outro lado, entendeu de modo diverso
o caso, e assim o descreveu (ADPF 324, Manifestação da PGR, p. 2):

No mérito, sustenta plena compatibilidade da súmula 331 do Tribunal


Superior do Trabalho com a Constituição da República, tendo em vista
que a terceirização na área-fim das empresas esvazia a proteção à
445

relação de emprego, consolidada no art. 7º, I, da CR, transforma o trabalho


em mercadoria, reduz o ser humano a mero objeto e contribui para
indesejável e inadmissível processo de reificação do trabalhador.

É possível notar que a terceirização é satisfatória, sob o ponto de vista


econômico, para os empregadores, pois reduzir os custos e aumentar os lucros é o
objetivo de todo e qualquer empresário. Todavia, para a parte hipossuficiente da
relação, a quem cabe a proteção do direito do trabalho, conforme prescreve a CF/88
(art. 3º), houve uma diminuição dessa proteção, fragilizando as conquistas históricas
dos trabalhadores.

3.1 TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL

Não obstante a Reforma Trabalhista de 2017 e a recente decisão do Supremo


Tribunal Federal em entender pela constitucionalidade da atividade de terceirização
de modo irrestrito, em agosto de 2018, o Presidente Michel Temer publicou o Decreto
nº 9.507/2018, que autoriza a execução indireta, mediante contratação (eufemismo
para terceirização), de serviços da administração pública federal direta, autárquica e
fundacional, e das empresas públicas e sociedades de economia mista controladas
pela União.
No site oficial do Ministério de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão,
dispõe-se que houve essa ampliação da área de abrangência nas regras de
contratação de terceirizados para as empresas públicas e sociedades de economia
mista controladas pela União, com o objetivo de unificar os procedimentos em todo o
serviço público federal. Fica também a cargo do referido Ministério escolher quais
serão especificamente os serviços objetos de execução indireta, mediante
contratação (arts. 1º e 2º, Decreto nº 9.507/18).
Deve-se entender tal regulação como inconstitucional, em face do que está
disposto no art. 37, II, CRFB/88, que afirma que a investidura em cargo público se dá
mediante aprovação prévia em concursos públicos. Mais uma vez o legislador pátrio
tenta se sobrepor à Carta Magna e mitigar ainda mais os direitos dos trabalhadores.
E, sobre esse decreto, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho
(ANAMATRA) emitiu uma nota pública se posicionando contrariamente. Ela
representa quatro mil juízes, e assim dispôs (ANAMATRA, nota pública):

(...) Ao fazê-lo, ameaça a profissionalização e qualidade desses serviços,


esgarça o patrimônio jurídico conquistado por seus servidores e
compromete a própria impessoalidade administrativa que deve reger a
gestão da coisa pública, vez que o trespasse de serviços a interpostas
empresas poderá concretamente atentar contra o teor do art. 37, II, da
Constituição Federal, quando vincula expressa e rigorosamente a
investidura em cargos, funções ou empregos públicos à prévia aprovação
em concurso público de provas ou de provas e título, ressalvadas somente
as nomeações para cargo em comissão de livre nomeação e exoneração,
assim declarado em lei.

E ainda complementa que, decidir ser lícita essa ampla “execução indireta” não
sufraga o descarte do conjunto de princípios constitucionais que regem a
administração pública, e não poderá servir como pretexto para fraude, precarização
ou quebra de isonomia constitucional.

CONCLUSÃO
446

A problemática que instigou essa pesquisa foi a de verificar se a Reforma


Trabalhista de 2017, realizada através de Lei infraconstitucional, garantiu os direitos
trabalhistas assegurados pela CF/88, vigente. Nesse sentido os objetivos foram
cumpridos na medida em que se analisou o texto constitucional, a novel e a pretérita
legislação e a jurisprudência pátria, sobre os direitos trabalhistas.
Assim, verificou-se que, ao longo dos anos, o direito do trabalho foi lentamente
conquistado por operários que estavam à mercê dos abusos de seus empregadores.
Cansados de estarem sob péssimas condições, foram à luta por dignidade no meio
ambiente de trabalho.
No Brasil, o direito do trabalho passou a ter uma consolidação especifica para
o trabalho assalariado, com garantias de não exploração, mas remuneração justa e
adequada pelo trabalho realizado, garantindo ao empreendedor o lucro desejado, sem
arbítrio, protegendo a parte hipossuficiente da relação jurídica, em face da
superioridade econômica de seus patrões. Dentre as legislações que mais
contribuíram para isso, estão a Constituição Federal de 1988 e a Consolidação das
Leis do Trabalho.
Entretanto, a economia um dos pilares que movem o mundo, e a busca
incessante pelo lucro faz parte desse movimento. Contudo, nota-se que a crise
financeira que assola o país decorrente da má gestão do governo, fez com que a
iniciativa privada começasse a buscar meios de aumentar seu capital, em detrimento
do esforço máximo de sua mão de obra, o trabalhador. Conclui-se que há uma nítida
tendência dos atuais legisladores e membros do Poder Executivo em ceder à pressão
dos grandes empresários, de forma a facilitar-lhes a vida e aumentar seu lucro, através
da diminuição dos direitos sociais e trabalhistas. Contudo, há de se lembrar que o
governante deve levar em conta a vontade da maioria, um dos pilares do estado
democrático de direito, que rege a república federativa brasileira.
Dessa forma, conclui-se que o texto da reforma trabalhista de 2017 reduziu
tanto direitos econômicos como a dignidade do trabalhador e, em especial, no tocante
à terceirização, a precarizou o trabalho de tal forma, que poderá permitir o retorno ao
trabalho escravo, uma prática odiosa, condenada pelos direitos humanos e pelas
diretrizes das Nações unidas.
É importante destacar que um dos objetivos da República Federativa do Brasil
é justamente erradicar a pobreza e diminuir as desigualdades sociais. É também um
princípio da Constituição Cidadã, a dignidade. Ter uma vida digna, tanto no âmbito
pessoal, quanto no mundo do trabalho.

REFERÊNCIAS

ANAMATRA. Anamatra se posiciona contra decreto que amplia terceirização no


setor público. Disponível em: < https://www.anamatra.org.br/imprensa/anamatra-na-
midia/27031-anamatra-se-posiciona-contra-decreto-que-amplia-terceirizacao-no-
setor-publico?highlight= >. Acesso em 08 out 2018
BRASIL, Constituição da República Federativa do. Congresso Nacional, Brasília,
1988.
______. Decreto nº 9.507, de 21 de setembro de 2018. Dispõe sobre a execução
indireta, mediante contratação, de serviços da administração pública federal
direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de
economia mista controladas pela União. Brasília, 2018.
______. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das
Leis do Trabalho. Presidência da República, Rio de Janeiro, 1943.
447

______. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do


Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as
Leis nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de
24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho.
Congresso Nacional, Brasília, 2017.
DELGADO, Gabriela Neves; AMORIM, Helder Santos. A inconstitucionalidade da
terceirização na atividade-fim das empresas. Rev. TST, Brasília, vol. 80, nº 3, jul/set
2014. Disponível em: <
https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/71080/004_delgado_amori
m.pdf?sequence=1 >. Acesso em: 17 set 2018
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 16 ed. São Paulo: LTr,
2017.
MPDG. Decreto uniformiza procedimentos na contratação de terceirizados no
Executivo federal. Disponível em: < http://www.planejamento.gov.br/noticias/ultimas-
noticias/decreto-uniformiza-procedimentos-na-contratacao-de-terceirizados-no-
executivo-federal> Acesso em: 06 out 2018
POZZETTI, Valmir César; ROCHA, Nicolle Patrice Pereira. A inserção dos
transgêneros no meio ambiente de trabalho: um desafio ao preconceito. Anais
do V Congresso Nacional da FEPODI [ Recurso eletrônico online] organização
FEPODI/ CONPEDI/ UFMS, 2017.
STF – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de descumprimento de
preceito fundamental 324/DF – Manifestação do PGR. Disponível em: <
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Acesso em: 03 out 2018
___. Recurso Extraordinário 958252/MG. Disponível em: <
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4952236> Acesso em 03 out
2018
___. Relatores votam pela licitude de contratações em atividades-fim no
julgamento sobre terceirização. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=387588 > Acesso
em: 01 out 2018
___. STF decide que é licita a terceirização em todas as atividades empresariais.
Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=388429> Acesso
em: 01 out 2018.
448

A VALORIZAÇÃO DO TRABALHO E A INDICAÇÃO GEOGRÁFICA NA CADEIA


PRODUTIVA DO AÇAÍ
THE VALORIZATION OF WORK AND THE GEOGRAPHIC INDICATION IN THE
AÇAI PRODUCTIVE CHAIN

Melissa Mika Kimura Paz


Suzy Elizabeth Cavalcante Koury

Resumo: O Pará é o maior produtor de açaí do Brasil, herança das comunidades


tradicionais da região. O agricultor familiar está na base dessa cadeia, seu trabalho é
precário, sendo necessário a adoção de estratégias que protejam e valorizem. Por
isso, esta pesquisa pretende compreender de que maneira a indicação geográfica,
como instrumento do desenvolvimento endógeno, contribuiria para garantir o trabalho
decente às populações tradicionais extrativistas na cadeia produtiva do açaí. A partir
do conceito de desenvolvimento endógeno, deve ser observado aspectos
econômicos, sociais, políticos e culturais para que qualquer pessoa possa praticar os
atos necessários ao cumprimento do seu plano de vida. Por meio de uma pesquisa
bibliográfica e consulta de dados e relatórios, conclui-se que a indicação geográfica
ao relacionar o açaí com o seu território de origem, pode valorizar o trabalho do
extrativista, protegendo sua cultura e seus conhecimentos tradicionais, incluindo
essas populações no processo de desenvolvimento.
Palavras-chave: açaí; indicação geográfica; trabalho.

Abstract: Pará is the largest açaí producer in Brazil, inherited from traditional
communities, the fruit has become a commodity with a global production chain, their
job is precarious, and it is necessary to adopt strategies that protect and value the work
of these small producers. Therefore, this research intends to understand how the
geographical indication, as an instrument of endogenous development, would
contribute to guarantee the decent work to the traditional extractive populations in the
açaí productive chain. Working from the concept of endogenous development,
economic, social, political and cultural aspects must be observed so that anyone can
practice the acts necessary to fulfill their life plan. Through a bibliographical research,
it can be concluded that the geographical indication when relating the açaí to its
territory of origin, can valorize the work of the extractivist, protecting his culture and his
traditional knowledge, including these populations in the process of development.
Key-words: açaí; geographical indication; work.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, a cadeia produtiva do açaí, derivada das populações


tradicionais da região que a cultivavam para a própria subsistência, deixou de ser
apenas uma cadeia da agricultura extrativista familiar para ganhar proporções globais.
Por meio da busca de um desenvolvimento endógeno para a região, deve existir uma
preocupação para a inclusão dos pequenos produtores neste processo de expansão
da economia. Para que isso ocorra, mecanismos de fortalecimento, valorização e
proteção dos extrativistas de açaí precisam ser implementados, um desses
mecanismos de valorização é a indicação geográfica (IG).
Desse modo, o trabalho dedica-se a compreender de que maneira a indicação
geográfica, como instrumento do desenvolvimento endógeno, contribuiria para
garantir o trabalho decente ao extrativista na cadeia produtiva do açaí?
449

A construção desta pesquisa possui como objetivo geral analisar a possível


indicação geográfica do açaí à luz da teoria do desenvolvimento endógeno para
valorizar e garantir o direito ao trabalho das populações tradicionais extrativistas.
Os objetivos específicos são compreender a importância do desenvolvimento
endógeno para a redução das desigualdades sociais e a inclusão de populações
marginalizadas, demonstrar a importância do direito humano ao trabalho e o contexto
do trabalho extrativista na produção do açaí pelos pequenos produtores, e por último,
apresentar as possíveis indicações geográficas do açaí no Estado do Pará como meio
de valorização do trabalho e da cultura dos extrativistas.
A metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica em livros, periódicos, teses e
dissertações sobre o tema proposto, além da consulta de dados e relatórios
produzidos em sítios oficiais como o Intituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e o Instituto Peabiru.

DESENVOLVIMENTO

Durante o século XX, o modelo de desenvolvimento implementado no Estado


não tentou desenvolver as potencialidades que a natureza oferecia, realizou uma
exploração predatória da região e de seus habitantes, gerou uma grande
concentração de renda por uma minoria, exclusão social, aumento da violência e
degradação ambiental. Ao se difundir o pensamento de que os conhecimentos
tradicionais da população local são inferiores, está se exercendo uma forma de
dominação. O modelo de desenvolvimento da Amazônia precisa se preocupar com as
particularidades da região e promover ações econômicas, sociais e culturais.
(LOUREIRO, 2009)
O desenvolvimento deve ocorrer por meio do fortalecimento e da qualificação
das estruturas internas, ressaltando o potencial endógeno, para gerar condições
sociais e econômicas que beneficiem a população local. Deve ser um processo que
inclua os atores do território, valorizando suas potencialidades, garantindo a igualdade
de oportunidades e a busca da qualidade de vida por meio da sustentabilidade.
As populações da Amazônia possuem um vasto conhecimento acumulado
durante anos e proporcionado pela estreita relação com a natureza e sua
biodiversidade. As atividades realizadas por essas populações não podem ser
tratadas como pouco produtivas, incompatíveis com o pensamento do grande capital
e com a sociedade moderna.
Dessa forma, tem-se que o principal objetivo do desenvolviemnto endógeno é
a participação e a autonomia da população do território, incluindo a garantia de
participação no mercado e o direito ao trabalho. A liberdade de participar do mercado
de trabalho, do intercâmbio econômico, possui um importante papel social, uma vez
que a renda influencia nos êxitos e nas privações das pessoas. (VEIGA, 2010)
O trabalho relaciona-se com a existência humana, é por meio dele que o
indivíduo se torna um ser social na sociedade capitalista, uma vez que desenvolve
sua capacidade física e intelectual, além de ser indispensável para obter alimento e
proteção, razões pelas quais deve ser protegido e valorizado. Configura-se como um
direito humano que o trabalho ocorra em condições dignas.
Três aspectos devem ser ressaltados quando se mencionam os direitos
humanos. O primeiro trata-se de seu caráter universal, o segundo relaciona-se com o
fundamento dos direitos humanos na dignidade humana, e o terceito é a
indispensabilidade dos direitos humanos para que o indivíduo realize seu plano de
450

vida, independentemente de qual plano seja, quer em relação à própria vida, quer em
relação à vida em comunidade. (BRITO FILHO, 2018b)
A noção de dignidade determina quais direitos fazem parte do conjunto de
direitos humanos. Assim, o direito ao trabalho apenas alcança todos esses objetivos
se realizado em condições dignas, do mesmo modo que a dignidade humana pode
ser definida como uma qualidade intrínseca, irrenunciável e inalienável, todos os
direitos necessários para garanti-la também o são, incluindo o direito ao trabalho
decente, que é o conjunto de direitos mínimos do homem/trabalhador (BRITO FILHO,
2018b).
O trabalho das populações tradicionais da Amazônia, donas de uma cultura
com uma relação especial entre homem-natureza, é organizado com base na
estrutura de produção de trabalho familiar ou comunitário de extrativismo. Desse
modo, na cadeia de valor do açaí, o trabalho é baseado nos conhecimentos
tradicionais, saberes e práticas acumulados pelas populações e passados de geração
a geração, sendo uma atividade que o ribeirinho aprende como uma tradição e um
meio de inclusão ao trabalho.
O açaí é fruto de uma palmeira endêmica da Amazônia, que se concentra nas
planícies úmidas, áreas de várzea, especialmente próximo aos rios. Historicamente,
o produto foi a base da alimentação de populações ribeirinhas e das camadas mais
pobres das cidades. Ainda no séc. XX, houve a popularização do produto e a sua
inclusão no cotidiano de todas as classes sociais paraenses. (DAMASCENO, 2009)
Nos últimos anos, houve um grande crescimento do mercado consumidor,
principalmente, em âmbito nacional, no Rio de Janeiro e em São Paulo. No mercado
internacional, o maior comprador são os Estados Unidos da América (EUA). O estado
do Pará é a referência da economia do açaí, por concentrar uma alta produção e um
alto consumo.
O consumo do açaí aumentou de forma que a produção extrativista não
conseguiu crescer em igual proporção. Em 2016 a produção agricola do açaí no Brasil
foi de 1,1 milhões de toneladas. O Pará produziu 98,3% do total dessa produção. O
valor arrecadado pelas exportações do açaí nesse mesmo ano foi de U$
18.130.843,00 e, em 2017 este valor cresceu para U$ 23.467.925,00. (IBGE, 2018)
A atividade produtiva do açaí passou da agricultura e extrativismo familiar para
uma cadeia de valor global, tornando-se uma commodity, que envolve mais de 120
mil familias, para as quais o açaí é a principal fonte de renda familiar. A cadeia
produtiva do açaí consiste no conjunto de operações interdependentes que visam
produzir, extrair, modificar e distribuir um produto (INSTITUTO PEABIRU, 2016).
A cadeia de valor do açaí é formada pelos extrativista agricultores familiares
que cuidam do manejo do açaizal, normalmente formado por plantas nativas, e da
colheita, atividade executada pelo peconheiro; os atravessadores que deslocam a
produção até onde ela será comercializada; as industriais e os batedores de açaí
(processadores locais) que beneficiam o produto, transformando-o em vinho (polpa) e
outros produtos derivados como bombons e sorvetes, entre outros; e os atacadistas e
os varejistas que comercializam o produto para o consumidor final (INSTITUTO
PEABIRU, 2016).
Apesar do crescimento da atividade produtiva, do surgimento de grandes
empresas de açaí e do aumento dessa economia, o trabalho nesta cadeia,
principalmente o do extrativista, agricultor familiar, ainda é dominado pela
informalidade e precariedade.

Por sua vez, as cadeias de valor tradicionais, relacionadas ao extrativismo


e à agricultura familiar, apresentam desafios como a informalidade nas
451

relações de trabalho e a alta insegurança para a saúde no manejo de


recursos naturais. Isto ocorre especialmente em cadeias de valor que
crescem rapidamente, como é o caso do açaí, que emprega centenas de
milhares de pessoas. (INSTITUTO PEABIRU, 2016, p.16)

A atividade do extrativista, o peconheiro, é de alto risco, visto que corresponde


a subir no açaizeiro com o auxílio de um equipamento para os pés, um laço feito da
folha jovem do açaizeiro, chamado de peconha, que também pode ser feito com
aniagem ou de sacos de fibras sintéticas. O peconheiro sobe com um objeto cortante
faca ou terçado (facão) para colher o cacho de açaí (INSTITUTO PEABIRU, 2016).
Outra atividade de risco é o próprio processo de manejo dos açaizais, vez que
o corte de árvores mais velhas ou a derrubada de outras árvores, apresentam riscos
de lesões e deformações permanentes, o que demonstra a precariedade do trabalho.
Os trabalhadores não utilizam nenhum equipamento de proteção individual
(EPI), normalmente trabalham descalços, com uma camiseta leve e com um calção
(bermuda). O terçado é colocado sem bainha no calção. Em uma pesquisa realizada
na Ilha do Marajó-PA, 89% dos entrevistados já teve um caso de acidente com algum
membro da familia no açaizal, 54% desses casos necessitaram de internação
hospitalar e 62% ocasionaram um afastamente de 10 a 60 dias da atividade. Estes
riscos do meio ambiente do trabalho do peconheiro não refletem no preço do produto,
passando despercebido pelos consumidores (INSTITUTO PEABIRU, 2016)
Outra fragilidade das populações tradicionais na cadeia de valor do açaí
encontra-se na dificuldade de formação de redes de relações formais de
comercialização. A população rural, como consequência da exclusão social, possui
mais dificuldades para comercializar o açaí. Normalmente negociam o seu produto
com preços abaixo do mercado para os atravessadores, que são quem realmente se
beneficiam do negócio e comercializam o fruto nas cidades.
O plantio do açaí já está acontecendo fora do bioma Amazônia e pode ocorrer
em outras áreas tropicais do mundo. O mercado do açaí no futuro será concentrado
nas grandes indústrias, inclusive multinacionais que possuem uma maior
competitividade empresarial. Por isso, faz-se necessário valorizar o trabalho das
populações tradicionais, preservando seus saberes e a sua cultura, para que não
desapareçam durante este processo de expansão do mercado do açaí.
Políticas públicas, ações afirmativas e estratégias precisam ser implementadas
para melhorar a qualidade de vida das populações tradicionais extrativistas, para que
se beneficiem do crescimento da cadeia produtiva do açaí, tanto com relação ao meio
ambiente do trabalho precário, quanto com a dificuldade de firmar relações comerciais
(INSTITUTO PEABIRU, 2016).
Os pequenos produtores quando participantes de organizações sociais, como
cooperativas e associações, baseadas na autogestão e na democracia participativa,
possuem mais domínio de seu negócio, um modo de inclusão no mercado que lhes
dá um maior poder de negociação e reivindicação. O cooperativismo proporciona mais
participação social, ampliando as oportunidades de geração de trabalho e renda.
Outro benefício da organização social é a possibilidade de solicitar o selo de
Indicação Geográfica que é a estratégia para a valorização e melhoria da qualidade
de vida das populações extrativistas apresentada por esta pesquisa.
As indicações geográficas são ativos intangíveis, protegidos pela propriedade
intelectual, consistindo em um sinal concedido pelo Estado para identificar a origem
de produtos ou serviços. A IG possui titularidade coletiva, vinculada ao espaço
geográfico de origem, depois de concedida pelo Instituto Nacional da Propriedade
452

Industrial (INPI), órgão responsável pela análise das solicitações de indicações


geográficas no Brasil. (LAGE; WINTER; BARBOSA, 2013)
No Brasil, o instituto é regulado pela Lei 9.279/96, que trata dos direitos e
obrigações relativos à propriedade industrial, em seu Título IV- Das Indicações
Geográficas e pela Instrução Normativa n.25 do INPI, com um texto similar ao da
referida lei ao conceituar as duas modalidades de IG, a indicação de procedência e a
denominação de origem. Segue o texto da Lei 9.279/96:

Art. 176. Constitui indicação geográfica a indicação de procedência ou a


denominação de origem.
Art. 177. Considera-se indicação de procedência o nome geográfico de
país, cidade, região ou localidade de seu território, que se tenha tornado
conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de
determinado produto ou de prestação de determinado serviço.
Art. 178. Considera-se denominação de origem o nome geográfico de
país, cidade, região ou localidade de seu território, que designe produto
ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou
essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos.
(grifos nossos)

As IGs agregam valores ao produto ou serviço, concebendo uma imagem de


qualidade, reputação e identidade, permitindo que eles tenham mais força competitiva
no mercado. Por meio das indicações geográficas, o patrimônio cultural imaterial de
determinados territórios é valorizado, protegido e preservado, visto que as IGs advêm
da tradição cultural que produz e reproduz de geração em geração um produto ou
serviço. (SEBRAE, 2016)
No mercado atual, dominado por grandes grupos econômicos, o pequeno
produtor rural só consegue espaço com auxílios que contribuam para a diferenciação
dos seus produtos. O estado do Pará possui produtos com potencial para receber a
indicação geográfica, sendo certo que uma política neste sentido possibilitaria a
convivência entre o grande capital e os pequenos produtores rurais.
A IG pode ser utilizada para o desenvolvimento regional do Estado do Pará,
especificamente para a proteção do açaí produzido pelas populações tradicionais,
valorizando o trabalho, o produto, as tradições, a cultura e os saberes locais. Em 2016,
o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) identificou 16 produtos
com potencial para IG no Estado, 3 desses produtos são relacionados à cadeia do
açaí: açaí das Ilhas de Belém, açaí de Igarapé-Miri e açaí do Marajó (CRUZ, 2017)
O açaí das Ilhas de Belém é produzido pela população ribeirinha que vive na
região metropolitana de Belém. São mais de 40 ilhas. Entre as que possuem maior
produção de açaí estão as ilhas Grande, Combu, Maracujá e Jussara. A maior parte
da produção é vendida para a feira do Mercado Ver-o-peso, maior feira ao ar livre da
América Latina. Em 2016, um grupo de 274 mulheres extrativistas produziu 6 mil
toneladas de açaí (MDA,2018).
O município de Igarapé-Miri possui o título de capital mundial do açaí. A
produção e comercialização do fruto está mudando positivamente a qualidade de vida
das familias ribeirinhas, cabendo ressaltar que entre cinco mil a seis mil pessoas
trabalham na cadeia de valor do município. Em 2001 foi criada a Unidade
Agroindustrial de Igarapé-miri (UAGRI) pela Cooperativa Agro-industrial de Moradores
e Produtores Rurais de Igarapé-Miri (COOPFRUT), a primeira indústria de açaí
comunitária do Estado. Em 2017, o município produziu 280 milhões de toneladas,
arrecadando mais de R$ 1,8 bilhões (IBGE, 2018).
453

O Marajó é o maior arquipélago fluviomarinho do planeta, possui 16 municípios,


onde 56,59% dos habitantes vivem na área rural e 23.034 são agricultores familiares.
O índice de desenvolvimento humano (IDH) do Marajó é um dos mais baixos do país,
entretanto a região possui uma identidade cultural consolidada que é subvalorizada e
uma enorme riqueza de conhecimentos sobre a relação homem-natureza, fazendo
parte da tradição local o cultivo do açaí. Em 2017, os municipios do Marajó produziram
35 mil toneladas de açaí (INSTITUTO PEABIRU, 2016).
Todos esses territórios são notoriamente conhecidos pela produção de
qualidade do açaí pelas populações tradicionais, principalmente a ribeirinha. A maioria
das famílias faz parte de alguma organização social. A produção do açaí deriva dos
conhecimentos tradicionais e faz parte da cultura dessas regiões, de modo que a
valorização deste produto no mercado deve refletir na melhoria da qualidade de vida
das populações que trabalham no início da cadeia produtiva.
Atualmente, com o progresso da globalização, pode-se seguir por dois
caminhos, o exógeno, em que há a homogeneízação dos espaços produtivos, e o
endógeno, caracterizado pela singularização e diferencial desses espaços. O selo de
origem da IG é uma estratégia de diferenciação do capital que pode ser utilizada pelos
agricultores familiares como uma forma de resistência contra a sua marginalização
natural e para acrescentar uma competitividade que está relacionada com o lugar-
território do produto.
Podemos concluir que, ao mesmo tempo em que valoriza e protege os produtos
dos pequenos produtores paraenses, como um processo social, político e econômico
endógeno, a IG funcionaria como uma estratégia de inclusão nos mercados visando
ao acúmulo de riquezas como é natural em qualquer atividade econômica. A
valorização do território também geraria reflexos na proteção do trabalho do
extrativista, além de aumentar o poder de investimento na infraestrutura, vez que o
produto que possui o selo da IG deve respeitar todas as normas ambientais, de
segurança alimentar e do meio ambiente do trabalho.

CONCLUSÃO

Historicamente, as populações locais foram marginalizadas e o seu trabalho


subvalorizado. A garantia do trabalho, assim como os demais direitos humanos, é
essencial para a inclusão do homem à vida em sociedade; além disso, a renda permite
que o indivíduo tenha mais liberdade para escolher o tipo de vida que deseja.
O açaí fazia parte da alimentação das comunidades ribeirinhas e da população
mais pobre das cidades, mas que, com o passar do tempo, tornou-se alimento popular
e consumido por toda a sociedade paraense. Atualmente, a cadeia de valor do açaí
vem crescendo cada vez mais, conquistando espaço em outros estados brasileiros e
o mercado internacional.
Na base dessa cadeia está o extrativista, que trabalha no sistema da agricultura
familiar, cuja relação com o açaí vai muito além da venda por sobrevivência, pois faz
parte do conhecimento tradicional adquirido por anos de relacionamento com a
natureza, um conhecimento passado de geração à geração. Entretanto, para que
esses produtores se beneficiem do crescimento da economia do açaí, faz-se
necessária a adoção de estratégias que favoreçam e valorizem o trabalho destes.
A indicação geográfica pode ser vista como um meio de valorização da cultura
e do trabalho do extrativista, uma forma de pensar o desenvolvimento com uma
perspectiva endógena, visto que agrega valor e credibilidade ao identificar e associar
um território como origem de um produto da agricultura familiar. A diferenciação do
454

açaí por meio do selo da IG, auxiliaria que os extrativistas, normalmente membros de
uma cooperativa, tivessem condições de competir no mercado.
Conclui-se que a indicação geográfica serve como um mecanismo de
desenvolvimento endógeno para incluir e valorizar o trabalho do extrativista na cadeia
produtiva do açaí, protegendo a cultura e os conhecimentos tradicionais deste.

REFERÊNCIAS

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em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm> Acesso em 01/05/2018.
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VEIGA, José Eli. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de
Janeiro: Garamond, 2010.
455

O INSTITUTO DO JUS POSTULANDI E OS REFLEXOS NO ACESSO À JUSTIÇA:


NECESSIDADE DA CRIAÇÃO DE UMA DEFENSORIA PÚBLICA NA JUSTIÇA DO
TRABALHO PARA GARANTIA DE DIREITOS, INCLUSIVE NO ÂMBITO DOS
DIREITOS DA PERSONALIDADE
THE INSTITUTE OF JUS POSTULANDI AND THE REFLEXES IN ACCESS TO
JUSTICE: THE NECESSITY TO CREAT A PUBLIC DEFENDER’S OFFICE IN
LABOR JUSTICE TO GUARANTEE THE RIGHTS, INCLUDING IN THE SCOPE OF
THE PERSONALITY RIGHTS

Pâmela Tainá Marques


Marcelo Negri Soares

Resumo: A instituição da Defensoria Pública veio à tona de forma precisa para


efetivar os Direitos Fundamentais elencados na Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, como exemplo, o acesso à justiça, sendo que é dever do Estado
prestar assistência jurídica integral e gratuita. Entretanto, embora exaustiva previsão
legal e a evidente importância do instituto, sua atuação não está instituída na Justiça
Trabalhista, por numerosos motivos, dentre eles, destaque-se a figura do Jus
Postulandi, a qual admitiu o legislador, com intuito de simplificar o acesso do
trabalhador a seus direitos, o direito de pleitear em juízo sem a constituição de um
advogado. Assim, frente à complexidade dos conteúdos abordados pela justiça
trabalhista, a presente tem como escopo analisar se o Jus Postulandi é capaz de
satisfazer o princípio do acesso à justiça e demonstrar a necessidade de criar uma
Defensoria Pública Trabalhista, garantindo ao trabalhador, o efetivo acesso à justiça.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Jus Postulandi. Defensoria pública Trabalhista.

Abstract: The institution of the Labor Public Defensory came up precisely to


implement the fundamental Rights listed in the Constitution of the Federative Republic
of Brazil of Brazil of 1988, for example, access to justice, and it is the duty of the state
to provide full and free legal assistance. However, although it is an exhaustive legal
prediction and the evident importance of the institute, its action isn`t established in
Labor Justice, for many reasons among them, the figure of Jus Postulandi, which the
legislator admitted, in order to simplify access of the worker to rights, the right to sue
in court without the constitution of a lawyer. Thus, in view of the complexity of the
contents addressed by labor justice, this paper aims to analyze whether Jus Postulandi
is able to satisfy the principle of justice access and to demonstrate the necessity to
create a Public Labor Defensory, guaranteeing, the worker the effective access the
Justice.
Keywords: Access to Justice. Jus Postulandi. Labor Public Defensory.

INTRODUÇÃO

A Defensoria Pública percorreu grandes transformações ao longo do tempo,


tanto estruturais como organizacionais e funcionais, evoluindo gradativamente para
um papel mais ativo dentro da sociedade brasileira. Ao acompanhar a evolução
histórica da instituição em questão na legislação brasileira, percebe-se que a
Defensoria Pública representa a concretização de muitas lutas e desejos daqueles
que se encontram às margens da sociedade, esquecidos por ela ou não reconhecidos
pela população, de obter um amparo jurídico e informações sobre os seus direitos
por meio do Poder Público.
456

Com isso, deve-se compreender, primeiramente, que a Instituição da


Defensoria Pública não poderá de modo algum ser suprimida do Ordenamento
Jurídico vigente, considerando seu reconhecimento, de natureza permanente pela
Emenda Constitucional 80/2014 (Defensoria Pública da União, 2017, p. 101), vez que
já era alimentado pela doutrina ao relacionar o artigo 5º, inciso LXXIV da Constituição
Federal com a questão de o Estado ter escolhido a Defensoria Pública para ter o
domínio da assistência jurídica integral e gratuita de caráter público, e portanto,
considerada uma cláusula pétrea na Constituição.
Sob esse prisma, a Constituição Brasileira de 1988, traz em seu artigo 5º,
especialmente no inciso LXXIV, que é dever do Estado prestar assistência jurídica
integral e gratuita aos cidadãos que não dispuserem de recursos suficientes para
contratar um advogado.
Portanto, conforme disposto no capítulo que trata da Advocacia Pública, nos
termos do artigo 134 da Carta Magna de 19881, pode-se afirmar que a Defensoria
Pública é essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-a, como expressão
e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a
promoção dos direitos humanos e, a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial,
dos direitos individuais e coletivos, incluindo dentre seus objetivos, a primazia da
dignidade da pessoa humana, redução das desigualdades sociais e a prevalência e
efetividade dos direitos humanos, em essência, o acesso à justiça. (LIMA, F.R.V. de.
Defensoria Pública, 2012. p. 63)
Sobre a Instituição da Defensoria Pública, Nelson Nery Júnior conceitua:
“A Defensoria Pública é o serviço público institucionalmente destinado a prestar
aos necessitados assistência jurídica capaz de permitir o acesso a todos à justiça e
de resguardar e garantir o direito de todos à ampla defesa, com o objetivo de que se
viabilize o direito fundamental de todos quantos não tiverem recursos à assistência
jurídica integral e gratuita.”. (JUNIOR, Nery. 2013, p. 124).
No entanto, vê-se que, no âmbito da Justiça do Trabalho, a Defensoria Pública
não foi instituída, pois, mesmo havendo tamanha necessidade naquela especializada;
e previsão legal para esta atuação na esfera trabalhista, entre as competências
determinadas pela Lei Complementar nº 80/94 – Lei Orgânica da Defensoria Pública,
tal objetivo, na prática, lamentavelmente, não sucede, uma vez que presente: o
instituto do Jus Postulandi, onde é facultada, à parte, a capacidade de postular dentro
de instâncias judiciárias trabalhistas suas pretensões no processo, sem a necessidade
de valer-se da representação de um advogado; E, a existência de outro ente
carregado da prestação de serviço da assistência jurídica, tarefa essa incumbida aos
sindicatos de classe ao qual pertence o trabalhador, previsto no artigo 14 da Lei nº
5.584/70. (Revista da Defensoria Pública da União, 2017, p. 29)
Entende-se que o Jus Postulandi, que é possível somente nas relações de
emprego, trata-se de uma previsão legal que, embora inicialmente propicie o acesso
à justiça, acaba por promover um efetivo desiquilíbrio entre as partes, tendo em vista
que uma delas estará tecnicamente assistida por um advogado, enquanto a outra,
desassistida, não poderá tutelar com eficiência seus pedidos ou sua defesa, podendo
violar o princípio da igualdade na justiça obreira e sérios prejuízos à parte que
porventura dele se utilizar. (SCHIAVI, Mauro. 2012, p. 44).
Nesse sentido, sustenta Mauro Schiavi que:

1
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como
expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e
a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos
necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.
457

“Hoje, a parte não assistida por um advogado na Justiça do Trabalho é


exceção. De outro lado, diante da complexidade das matérias que envolvem o
cotidiano do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho, a não assistência por
advogado, ao invés de facilitar, acaba dificultando o acesso, tanto do trabalhador
como do tomador de serviços, à justiça.”. (SCHIAVI, Mauro. 2012, p. 43).
Não obstante, em decorrência deste instituto, o Estado se isenta da sua
responsabilidade de pacificação da sociedade, quando o postulante em causa própria
ingressa com uma demanda trabalhista, isto é, optam pelo Jus Postulandi, não o
fazem por entender que está devidamente instruído e ciente do que deve pleitear, ou
ainda, por ser este o melhor mecanismo em sua óptica, mas, simplesmente por ser
essa a única possibilidade de tentar muitas vezes a pacificação de um litígio, devido
à falta de condição econômica para buscar o auxílio jurídico.
Ou seja, a utilização desse instituto apenas permite que os litigantes possam
postular em Órgãos da Justiça do Trabalho, sem que isso signifique, no entanto, que
as pessoas estão sendo revestidas pela capacidade postulatória, diga-se, aptas para
postular direitos em juízo.
Diante de tais mazelas, neste breve estudo pretende-se analisar se o Jus
Postulandi ainda é capaz de satisfazer o princípio do acesso à justiça e demonstrar a
real necessidade da criação e estruturação de uma Defensoria Pública Trabalhista.
Com isso, nosso desiderato é verificar o conceito de acesso à justiça em sua
nova concepção para analisar se o direito de postular sem advogado seria uma
maneira de ampliar o acesso à justiça das partes ou se acarretaria em uma injustiça,
uma vez que as partes não possuem conhecimentos técnicos suficientes para
acompanharem a tramitação de um processo de forma eficaz.
Por outro lado, a ampliação da estrutura e da atuação da Defensoria Pública
contribui para o acesso à justiça e para a efetivação de direitos, de modo a garantir
uma tutela jurisdicional justa, democrática e efetiva.
Nelson Nery Junior, explica:
“Assim, pelo princípio constitucional do direito de ação, todos tem o direito de
obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada, não sendo suficiente,
portanto, o direito à tutela jurisdicional. É necessário que essa tutela seja adequada,
sem o que estaria esvaziado o conteúdo da garantia. Deve-se garantir o acesso
digno.”. (JUNIOR, Nery. 2002, p. 265).
Assim, é com base em pesquisas bibliográficas em livros e artigos sobre o tema
que o presente estudo procura demonstrar a importância da criação da Defensoria
Pública como órgão independente capaz de amparar os excluídos, seja através de
seus núcleos de apoio, seja através da advocacia preventiva.

DESENVOLVIMENTO: O JUS POSTULANDI E O ACESSO À JUSTIÇA OBREIRA

Atualmente, um dos princípios mais marcantes que regem a Justiça do


Trabalho é o Jus Postulandi, definido como a capacidade postulatória, facultada
diretamente aos empregados e empregadores. Ou seja, em termos mais simples, as
partes podem postular pessoalmente em Juízo, sem a necessidade de representação
por advogado. Esse é o teor do artigo 791 da Lei nº 5.452/43 – Consolidação das Leis
Trabalhistas, a saber: “Os empregados e os empregadores poderão reclamar
pessoalmente perante a Justiça do Trabalho e acompanhar as suas reclamações até
o final.”.
Tal princípio visa garantir o acesso da população à Justiça, assegurando o
direito de reclamar sem depender necessariamente do serviço de um profissional,
458

considerando à falta de condição econômica para buscar o auxílio jurídico junto a um


advogado particular, que na maioria das vezes, manifesta alto custo.
Segundo Mauro Cappeletti e Bryant Garth, em sua obra Acesso à Justiça, o
acesso à justiça seria uma expressão ampla, de difícil conceituação. Confira-se: “A
expressão ‘acesso à justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para
determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as
pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios
do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele
deve produzir resultados que sejam individualmente e justos.”. (CAPPELLETTI;
GARTH, 1988, p.8)
Contudo, é errôneo acreditar que o acesso à justiça garante às pessoas
somente o direto de ingresso em juízo. Seu verdadeiro conceito somente se alcança
e se perfaz com uma prestação jurisdicional eficaz, dentro de um período razoável,
por meio de decisões justas, atendendo efetivamente a aquele que recorre ao aparato
estatal, tendo em vista que a defesa dos interesses do cidadão contempla muito mais
do que, pura e simplesmente, facultar-lhe o acesso ao Judiciário.
Ter acesso à justiça é garantir a prevalência dos direitos humanos e o exercício
da dignidade da pessoa humana. Mas essa garantia não pode ser apenas superficial,
no sentido de somente ser declarada, mas sim, efetivamente aplicada, de modo a não
restar dúvidas de que qualquer cidadão possa recorrer ao Poder Judiciário quando se
sentir lesado, obtendo uma tutela jurisdicional eficaz.
Dito isso, há de se considerar que as demandas trabalhistas se tornaram mais
complexas e passaram a exigir conhecimento técnico, e, muitas vezes, a população
não possui um conhecimento jurídico necessário para reconhecer que um direito é
juridicamente exigível ou quanto a forma de propor uma ação.
Por esse ângulo, Mauro Cappelletti e Bryant Garth, no uso do enfoque de
aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua defesa, discorre o
seguinte:
“A “capacidade jurídica” pessoa, se relaciona com as vantagens de recursos
financeiros e diferenças de educação, meio e status social, é um conceito muito mais
rico, e de crucial importância na determinação de acessibilidade da justiça. [...]. Muitas
(se não a maior parte) das pessoas comuns não podem – ou, ao menos, não
conseguem – superar essas barreiras na maioria dos tipos de processos. Num
primeiro nível está a questão de reconhecer a existência de um direito juridicamente
exigível. Essa barreira fundamental é especialmente séria para os despossuídos, mas
não afeta apenas os pobres. Ela diz respeito a toda a população em muitos tipos de
conflitos que envolvem direitos. Observou recentemente o professor Leon Mayhew:
“Existe... um conjunto de interesses e problemas potenciais; alguns são bem
compreendidos pelos membros da população, enquanto outros são percebidos de
forma pouco clara, ou de todo despercebido”.”. (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p. 22).
Ademais, o principal estudo empírico inglês concluiu que:
“Na medida em que o conhecimento daquilo que está disponível constitui pré-
requisito da solução do problema da necessidade jurídica não atendida, é preciso
fazer muito mais para aumentar o grau de conhecimento do público a respeito dos
meios disponíveis e de como utiliza-los.”. (ABEL-SMITH, B. ZANDER, M. & BROOKE,
R., nota supra nº 25, p. 222).
A falta de efetividade dos dispositivos processuais trabalhista é manifesta. Além
disso, fatores como a flexibilização, a terceirização e a horizontalização das empresas,
nos processos trabalhistas, são enfrentadas como complexas questões processuais.
459

Convém notar, outrossim, que a alternativa de possibilitar àquele que não


possui condições financeiras para arcar com as despesas de um processo, realize
sua autodefesa em juízo, se auto prejudicando, ao que parece, é um total descaso
com os princípios morais que nossa Carta Magna tentou proteger.
Não é difícil perceber que a parte que comparece em Juízo sem advogado é
prejudicada. Isso porque, aqueles que se utilizam do Jus Postulandi, terá seus pedidos
mal elaborados, não havendo, por exemplo, produção de provas suficientes, em razão
de não possuir a mesma capacidade técnica, por exemplo, de um empregador que
comparece na audiência com profissional capacitado, levantando preliminares e
questões processuais. Ocorrendo, portanto, uma desigualdade processual, daí a
necessidade do advogado.
É de se observar, assim, que a ausência de um profissional habilitado a
conduzir-lhe o acesso à Justiça, permite que o Jus Postulandi se torna algo
meramente formal, não sendo capaz de garantir plenamente o acesso à justiça, o que,
consequentemente, evidencia a omissão estatal em cumprir com a obrigação de
prover a todos a assistência jurídica integral e gratuita contemplada pela Carta Magna.
Sob esse viés, Mauro Cappelleti, tratando da igualdade e do acesso à justiça,
comenta que, no estado liberal (sistema Laissez-faire), somente quem pudesse
enfrentar os custos é que poderia utilizar-se da justiça, de modo que “o acesso formal,
mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva.”.
(CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. 1988, p. 9).
Ainda, conforme Cappelletti:
“O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental
– o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário
que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos. (CAPPELLETTI,
Mauro; GARTH, Bryant. 1988, p. 12).
Desta forma, entende-se que, para se alcançar uma prestação jurisdicional
eficaz, isto é, que se faça de forma ideal, exige-se a assistência de um advogado ou
defensor público capaz de orientar a defesa de seus interesses e, consequentemente,
de obter uma tutela jurisdicional justa e efetiva.
A assistência jurídica integral e gratuita está prevista no diploma constitucional
em seu artigo 5º, inciso LXXIV, como dever do Estado. (SIQUEIRA, Dirceu Pereira;
OLIVEIRA, Flávio Luis de. 2012, p. 13). Em apartada síntese, o Estado aprovisionará
a assistência gratuita, através de advogados fornecidos ou patrocinados pelo Poder
Público, aos necessitados no que tange aos semblantes legais, proporcionando
conhecimento sobre comportamentos a serem seguidos diante de problemas
jurídicos, e também, promovendo ações e defendendo os necessitados nas ações em
face dele proposta.
Todavia, no âmbito da Justiça do Trabalho, esta determinação constitucional
não vem sendo desempenhada, vez que a Defensoria Pública da União, na realidade
dos órgãos da Justiça do Trabalho não tem atuado como deveria, e um dos principais
motivos, é porque se faz presente o Instituto Jus Postulandi, ora aludido, o que viola
gravemente um direito fundamental, pois, este, ao facilitar acesso à justiça,
proporciona mero acesso formal à justiça, em outras palavras, mero acesso ao
judiciário e não à ordem jurídica justa, não sendo o Jus Postulandi¸ portanto, capaz
de atender plenamente o princípio do acesso à justiça.
A criação e estruturação da Defensoria Pública nas justiças obreiras tem como
finalidade garantir a efetividade de direitos fundamentais, em essência, o efetivo
acesso à justiça, vez que a presença de um advogado nos processos trabalhistas é
muito importante, é ele quem traz um bom andamento ao processo, e, embora o Jus
460

Postulandi propicie o acesso à justiça, acaba por promover um efetivo desiquilíbrio


entre as partes, trazendo grande violação ao princípio da igualdade no processo do
trabalho e sérios prejuízos aos cidadãos que adentrar na esfera judiciaria através
deste instituto.
Nesse sentido, para José Afonso da Silva: “a realização da igualdade perante
a justiça, assim, exige a igualização de condições dos desiguais.”. (SILVA, 1996, p.
214).
Trata-se, portanto, de conferir tratamento isonômico aos iguais, e tratamento
distinto aos desiguais, garantindo-se, de tal modo, o conteúdo do princípio da
igualdade.
O Estado democrático de direito só será efetivo quando as lesões a direito
puderem ser amparadas pelo Judiciário, de forma que a desigualdade social não seja
obstáculo ao acesso efetivo à justiça, de modo que exista paridade entre os litigantes.
(SIQUEIRA, Dirceu Pereira; OLIVEIRA, Flávio Luis de. 2014, p. 177).
Assim, somente com a criação e estruturação de uma Defensoria Pública na
esfera trabalhista, é que garantirá o acesso gratuito e efetivo à justiça, considerando
que a existência desta instituição especializada é capaz de assegurar a utilização de
todas as ferramentas processuais de forma ilimitada, litigando em igualdade de
condições com os reclamados.
Todavia, a criação da Defensoria Pública não esgota o alcance da norma
constitucional, uma vez que a instituição necessita de independência e aparato
financeiro para desempenhar o seu mister é salutar para garantir o acesso à justiça
efetivo, pois, na maioria das vezes, a parte vulnerável não tem condições de arcar
com o ônus da demora na prestação do serviço judicial.

CONCLUSÃO: PELA CRIAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NA JUSTIÇA DO


TRABALHO

O legislador, ao admitir, que os empregados e empregadores reclamem


pessoalmente na Justiça do Trabalho facilitou o acesso à justiça, mas proporcionou
mero acesso formal, diga-se, mero acesso ao judiciário.
E como visto, o princípio do acesso à justiça não pode ser entendido como o
acesso ao judiciário, mas sim à ordem jurídica justa.
É daí que surge a necessidade da criação e estruturação da Defensoria Pública
na Justiça do Trabalho, pois, representa efetividade do acesso à justiça, tendo em
vista que o Estado deve fornecer um profissional habilitado, capaz de assegurar a
utilização de todas as ferramentas processuais de forma ilimitada, para a defesa
daqueles que declararem insuficiência de recursos, litigando em igualdade de
condições com os reclamados.
Desta forma, evidencia-se a necessidade veemente de criar uma Defensoria
Pública na Justiça do Trabalho, com o real objetivo de efetivar o direito de acesso à
justiça garantido constitucionalmente, posto que tal efetivação é ineficaz quando o
postulante desprovido de aptidão técnica, utiliza-se do instituto Jus Postulandi, muitas
vezes constituindo um desiquilíbrio e desigualdade entre os litigantes, bem como
fortalecendo a injustiça.
Conclui-se, portanto, que o Estado democrático de direito só será efetivo
quando as lesões a direito puderem ser amparadas pelo Judiciário, de modo que a
desigualdade não seja obstáculo ao acesso efetivo à justiça, haja vista ser o que
impulsiona o processo a produzir resultados justos, solução integral da lide, e
materialização das decisões, e para isso, exige-se a assistência jurídica por meio de
461

um defensor público, capaz de orientar a defesa de seus interesses e,


consequentemente, de obter uma tutela jurisdicional plena, justa, democrática e
efetiva. Por essa razão, a Defensoria Pública na Justiça do Trabalho deve ser uma
realidade e não uma concepção.

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462

O MEIO AMBIENTE HOSPITALAR E AS CONDIÇÕES INSALUBRES DOS


PROFISSIONAIS DA RECEPÇÃO
THE HOSPITAL ENVIRONMENT AND THE INSANTIAL CONDITIONS OF
RECEPTION PROFESSIONALS

Raphael de Souza Castro


Sabrina Moschini

Resumo: O presente artigo é voltado aos direitos fundamentais respaldados na


Constituição Federal de 1988 acerca do meio ambiente do trabalho (Artigo 225 da CF)
em relação ao adicional de insalubridade, observando-o enquanto direito fundamental
do trabalhador. A partir deste aspecto, objetiva-se demonstrar um possível equívoco
no modus operandi da comunidade jurídica, consoante a utilização das Normas
Regulamentadoras (NRs) em detrimento de direito fundamental constitucional. Ou
seja, mesmo após o advento da CF/88, a atividade secundária do Poder Executivo
tem sido considerada primária. O fundamento do adicional de insalubridade parece
entoar que para sua concessão é necessário a constatação do labor em condições de
risco, independentemente de a atividade está inserta em listagem elaborada pelo
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Na desenvoltura da abordagem em
comento, prestam auxílio, a normatividade dos princípios, bem como, a busca da
efetividade dos direitos fundamentais. Percebendo-se a indisponibilidade de valores
como: dignidade da pessoa humana e saúde, consistentes em direitos de ordem
pública laboral.
Palavras-chave: Meio ambiente de trabalho, hospital, recepcionista, insalubridade.

Abstract: This article focuses on the fundamental rights endorsed in the Federal
Constitution of 1988 regarding the environment of work (Article 225 da CF) in relation
to the additional insanity, observing it as a fundamental right of the worker. From this
point on, it aims to demonstrate a possible misconception in the modus operandi of the
legal community, depending on the use of Regulatory Norms (NRs) to the detriment of
fundamental constitutional law. That is, even after the advent of the CF/88, the
secondary activity of the Executive Branch has been considered primary. The grounds
for the unhealthy addition seem to indicate that it is necessary to verify the work in
hazardous conditions, regardless of whether the activity is included in a list drawn up
by the Ministry of Labor and Employment (MTE). In the development of the approach
in question, they help, the normativity of the principles, as well as the search for the
effectiveness of fundamental rights. Realizing the unavailability of values such as:
dignity of the human person and health, consisting of rights of public order labor.
Keywords: Work environment, hospital, receptionist, insalubrity.

INTRODUÇÃO

O meio ambiente do trabalho é percebido como o local onde os trabalhadores


exercem seus encargos laborais, cuja totalidade encontra respaldo na salubridade do
meio ambiente e na ausência de agentes que comprometam a segurança física e
mental dos trabalhadores.
A relação de trabalho indica contradições, pois, apesar do reconhecimento,
pode ser origem de sofrimento, desequilíbrio físico e mental, de dor e frustação.
Portanto, as condições neste ambiente laboral constituem na caracterização da
insalubridade, agredindo os trabalhadores, incompatibilizando a qualidade de vida.
463

De maneira geral, o hospital é reconhecido como ambiente insalubre, penoso


e perigoso para os trabalhadores que ali laboram, sendo apontado como um local
favorecido para o adoecimento. Não há apenas riscos de acidentes e doenças físicas,
como também o sofrimento psíquico que é altamente comum, apesar da alta pressão
psicológica que os trabalhadores estão sujeitos.
Nesses estabelecimentos, apesar dos riscos iminentes, que muitas vezes não
são dadas a devida importância, esses trabalhadores laboram sem a utilização do
devido equipamento de proteção individual (EPI), mas tem a consciência de sua
exposição aos agentes de riscos, na qual há previsão na Norma Regulamentadora nº
15.
O presente resumo apresenta conexão com o termo saúde. Sendo assim, visa-
se pontuar a respeito do adicional de insalubridade, o qual é o rendimento suplementar
devido ao empregado em decorrência da desenvoltura do trabalho em circunstância
mais gravosa, enquanto direito fundamental. Demonstra-se, assim, a importância do
meio ambiente laboral e o adicional de insalubridade.
Através do exposto, é preocupante os riscos que o profissional da recepção
está exposto, por meio da atividade que desenvolve. Por isso, há a importância de
destacar o cumprimento da Norma Regulamentadora nº 32, principalmente no
ambiente hospitalar.

1. AMBIENTE DE TRABALHO HOSPITALAR

O ambiente hospitalar interfere na saúde do paciente e consequentemente na


saúde e no trabalho dos profissionais da área, visto que eles têm como visão do
hospital, na maior parte, como um ambiente rígido e estressante, uma vez que é um
local frio, sem vida, onde há circulação de macas, pessoas conversando e, na maioria
das vezes, é mal iluminado, com colorações que não proporcionam o bem-estar,
causando irritação e desapontamento. Há também a presença de cheiros
desagradáveis como dos produtos utilizados na limpeza ou desinfecção de materiais.
Além do mais, esse ambiente é destinado a atender pacientes portadores de doenças
das várias especialidades médicas.
É considerado um local insalubre, na qual as características, as formas e a
divisão do trabalho expõem ainda mais o profissional que, pela jornada laboral, passa
significativa parte de sua vida nesse local. Alguns fatores e situações de trabalho
predispõem ou acentuam possibilidades de acidentes e doenças pela exposição ao
risco (ELIAS, 2006).
Visando resguardar a segurança do trabalhador que atua na área da saúde, o
legislador brasileiro criou, através da Portaria nº 3.214, as Normas Regulamentadoras
(NR), que versam sobre o conjunto de requisitos e procedimentos relativos à
segurança e medicina do trabalho, de cumprimento obrigatório às empresas privadas,
públicas e órgãos do governo que tenham empregados regidos pela Consolidação
das Leis do Trabalho.
Atualmente, temos 36 Normas Regulamentadoras aprovadas pelo Ministério do
Trabalho e Emprego, as quais destacamos: (i) Norma Regulamentadora 06, refere o
Equipamento de Proteção Individual, destinado à proteção aos riscos suscetíveis de
ameaça a segurança e a saúde no trabalho. A instituição é obrigada a fornecer
gratuitamente (sem ônus) a todos empregados durante atividades. (ii) Norma
Regulamentadora 09, a qual estabelece a obrigatoriedade da elaboração e
implementação do Programa de Prevenção de Riscos Ambientais - PPRA, visando a
preservação da saúde e da integridade dos trabalhadores (GUIMARÃES,2011).
464

Ainda se destaca a Norma Regulamentadora 32 que estabelece diretrizes para


medidas de Segurança no Trabalho em Serviços de Saúde, contemplando aqueles
que exercem atividades de promoção e assistência (MAURO, 2010).
Além das preocupações legais em definir os riscos existentes no ambiente
hospitalar, é importante inventariá-los de forma objetiva e racional. De modo a
comentar as definições legais dos agentes potenciais de danos à saúde do
trabalhador, citamos os itens que seguem, encontrados na NR-9 da Portaria nº
3214/78: a). Consideram-se agentes físicos, dentre outros: ruídos, vibrações,
temperaturas anormais, pressões anormais, radiações ionizantes, radiações não-
ionizantes, iluminação e umidade. b). Consideram-se agentes químicos, dentre outros:
névoas, neblinas, poeiras, fumaça, gases e vapores. c) Consideram-se agentes
biológicos, dentre outros: bactérias, fungos, "rickettsia", helmintos, protozoários e
vírus. d). Consideram-se, ainda, como riscos ambientais, para efeito das Normas
Regulamentadoras da Portaria 3.214, os agentes mecânicos e outras condições de
insegurança existentes nos locais de trabalho capazes de provocar lesões à
integridade física do trabalhador.
Portanto, nesse ambiente o ser humano desenvolve suas ações, abriga suas
necessidades, recebendo estímulos e reagindo a eles, havendo uma adaptação e
ambientalização do espaço em que o usuário o modifica e o humaniza, adequando os
espaços a quem se utiliza dele.

2. DO PROFISSIONAL DA RECEPÇÃO

A recepção é o local onde os pacientes são acolhidos e direcionados para a


internação hospitalar e/ou consultas e procedimentos ambulatoriais e/ou de
urgências/emergência, bem como, um local de fornecimento de informações sobre
pacientes internados ou atendidos.
Dentre os vários setores que compõem o hospital, a recepção é de grande
importância, uma vez que passam por ela todos os usuários. É o setor que tem o
primeiro contato com os clientes do sistema hospitalar, bem como seus
acompanhantes e visitantes. Sua importância fundamenta-se principalmente na
qualidade de prestação de serviço hospital e do atendimento humano e
relacionamento interpessoal
O atendimento ao cliente no balcão é a principal tarefa no trabalho do
recepcionista que a partir desta solicitação inicial há o aparecimento das outras
tarefas. Assim, nesse atendimento o recepcionista é quem inicia e fecha o ciclo,
prestando assim, o primeiro e o último atendimento. O cliente por sua vez tem que
aguardar o atendimento e via de regra isto causa certo desconforto, o qual é
transmitido aos recepcionistas em atitudes agressivas e de impaciência, ocasionados,
na maioria das vezes, pelos processos burocráticos. Os recepcionistas têm o encargo
de controlar o acesso e a acolhida dos pacientes, profissionais e fornecedores ao
hospital, orientar sobre os procedimentos iniciais, informar sobre os horários e o tempo
de espera, bem como sinalizar os locais de atendimento, banheiro e copa.
Além disso, tem deve manter-se disponível para prestar quaisquer
esclarecimentos ou solucionar dúvida e estar sempre atenta e ser solícita e atenciosa
para com todos, garantindo um bom fluxo de informações e promovendo maior rapidez
ao atendimento. Deve, ainda, oferecer entretenimento e atenção aos acompanhantes
e, no caso de hospital em que há internação, às visitas, para que se direcionem aos
locais corretos.
465

3. DO ADICIONAL DE INSALUBRIDADE

As atividades ou operações insalubres são aquelas que, por sua natureza,


condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à
saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade
do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos, conforme artigo 189 da
Consolidação das Leis do Trabalho, que afetam e causam danos à sua saúde,
provocando, com o passar do tempo, doenças e outros males, quase sempre
irreversíveis.
Além disso, o direito ao recebimento de adicional de remuneração por trabalho
em atividades insalubres é previsto pelo artigo 7º, XXIII, da Constituição Federal.
Considera‐se trabalho insalubre a atividade que pode abalar a saúde do trabalhador
de forma grave, ocasionando doenças. A insalubridade diz respeito, portanto, a um
risco à saúde do trabalhador.
As atividades insalubres estão especificadas na Norma Regulamentadora (NR)
Nº 15, da Portaria nº 3.293/1978 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que se
refere aos agentes químicos, biológicos e físicos prejudiciais à saúde do trabalhador,
além dos limites de tolerância. Em ambientes insalubres, o trabalho ocasiona um
aumento na remuneração do empregado equivalente à intensidade do contato.
Consoante artigo 192 da Consolidação das Leis do Trabalho, quanto maior a
intensidade do contato, maior será o valor do adicional.
Ao contrário, “o percentual do adicional de insalubridade incide sobre o salário
mínimo de que cogita o artigo 76 da CLT, salvo as hipóteses previstas na Súmula n.
17” (Súmula n. 228, com nova redação dada pela Resolução n. 121/03).
Na Norma Regulamentadora nº 15, está previsto em seu anexo XIV que há o
enquadramento da insalubridade em grau médio para os trabalhadores que possuem
contato permanente com pacientes ou com materiais infecto-contagiante, em:
hospitais, serviços de emergência, enfermaria, ambulatórios e outros
estabelecimentos que são destinados aos cuidados da saúde humana, porém, é
aplicada também aos que manuseiam objetos de uso desses pacientes, não
previamente esterilizados.
Conforme elucida a Súmula 47 do Tribunal Superior do Trabalho: “O trabalho
executado em condições insalubres, em caráter intermitente, não afasta, só por essa
circunstância, o direito à percepção do respectivo adicional”. Verifica-se, portanto, que
mesmo o empregado não permanecendo por todo o período de trabalho em ambiente
insalubre, isso não implicará na restrição dos seus direitos, considerando suas horas
de serviço para fixar a porcentagem do adicional.
É comprovada a insalubridade através do estudo no meio ambiente de trabalho
do empregado. O estudo será feito pela própria empresa, a exemplo do Perfil
Profissiográfico Previdenciário (PPP), bem como, por meio de perícia, procedimento
obrigatório nesse tipo de requisição, podendo ser comprovado a existência do agente
insalubre apontado na reclamação trabalhista, ou ainda, qualquer outro agente
previsto no quadro do Mistério do Trabalho e Emprego (MTE).
A ampla possibilidade de esclarecer acerca do agente insalubre, está previsto
na Súmula 293 do Tribunal Superior do Trabalho, que diz: “a verificação mediante
perícia de prestação de serviços em condições nocivas, considerado agente insalubre
diverso do apontado na inicial, não prejudica o pedido de adicional de insalubridade”.
Em relação aos agentes nocivos, quando encontrados, tem direito o trabalhador
em receber materiais que ajudem em sua proteção, além disso ter um acréscimo sobre
seu salário base, proporcional a agressividade que está sujeito.
466

A Consolidação das Leis do Trabalho prevê, em seu artigo 191, que ocorrerá a
eliminação ou neutralização da insalubridade, quando, houver adoção de medidas que
conservem o ambiente de trabalhou ou a utilização de equipamentos de proteção
individual ao trabalhador (EPI), diminuindo, assim, a agressividade do agente.
Frisa-se que sendo fornecidos esses equipamentos, não se extingue o
pagamento do adicional, uma vez que se trata de compensação ao trabalhador quem
tem sua saúde afetada diariamente. Consoante esse tema, o Tribunal Superior do
Trabalho pacificou o entendimento jurisprudencial, na Súmula nº 289.

O simples fornecimento do aparelho de proteção pelo empregador não o


exime do pagamento do adicional de insalubridade. Cabe-lhe tomar as
medidas que conduzam à diminuição ou eliminação da nocividade, entre
as quais as relativas ao uso efetivo do equipamento pelo empregado.
(Resolução 121/2003).

Daí por que a recomendação é no sentido de serem adotadas medidas


preventivas coletivas e individuais para eliminar ou ao menos minimizar os riscos à
saúde humana. Trata-se de uma questão de ordem pública, ante os males causados
ao trabalhador, com consequências econômicas, sociais e humanas, refletindo na
própria sociedade.
Estratégias devem ser adotadas para enfrentar os riscos ambientais
decorrentes das atividades insalubres, o que é feito de modos diferentes dependendo
de cada país. Essas estratégias podem ser: impor ao empregador uma remuneração
compensatória; proibir o trabalho nessas atividades e; reduzir a jornada de trabalho
nessas atividades, conceder intervalos intrajornada e outros benefícios capazes de
neutralizar os efeitos nocivos para a saúde dos trabalhadores.
Não basta a constatação da insalubridade por meio de laudo pericial para que
o empregado tenha direito ao respectivo adicional, sendo necessária a classificação
da atividade insalubre na relação oficial elaborada pelo Ministério do Trabalho (OJ n.
04 da SDI-I do Tribunal Superior do Trabalho).
A prova da insalubridade, portanto, é pericial, em regra. Porém, há situações
em que a perícia não mais pode ser realizada, por exemplo, no caso de fechamento
da empresa ou desativação do setor de trabalho do reclamante trabalhador. Em tais
hipóteses, pode o juiz valer-se de outros meios de prova admitidos em Direito, como
testemunhal, documental, provada emprestada de outro processo (OJ n. 278 da SDI-
I do Tribunal Superior do Trabalho).
Do quanto exposto, decorre que, para configurar o direito ao adicional de
insalubridade no caso concreto, é necessário, além da perícia que constate a
existência do agente agressivo à saúde do trabalhador, que o órgão ministerial haja
feito o enquadramento da atividade ou da operação como insalubre. Desse modo, os
adicionais de insalubridade têm por fim indenizar o trabalhador pelos danos e riscos à
sua saúde em razão do contato com os respectivos agentes.
Consoante elucida o Tribunal Superior do Trabalho: “o adicional de
insalubridade devido a empregado que, por força de lei, convenção coletiva ou
sentença normativa, percebe salário profissional será sobre este calculado” (Súmula
n. 17, restaurado pela Resolução n. 121/03).
É importante notar, ainda, que a caracterização e classificação da insalubridade
por médico ou engenheiro do trabalho, mesmo considerando agentes diversos dos
apontados pelo trabalhador, não prejudica o pedido do respectivo adicional, como está
assentado pelo entendimento da Súmula 293 do TST.
467

Fundamenta-se esse entendimento na razão de que, em se tratando de matéria


técnica, não se pode obrigar a parte, no caso, o trabalhador, a indicar de forma precisa
e rigorosa cada agente prejudicial à saúde. Por isso, a perícia é obrigatória, pois
somente um profissional da área tem condições de, examinando o local de trabalho,
os agentes nocivos à saúde do trabalhador e os métodos de trabalho, caracterizar e
classificar a insalubridade.
A NR-15 da Portaria n. 3.214/78 diz no item 15.3 que: “no caso de incidência
de mais de um fator de insalubridade, será apenas considerado o de grau mais
elevado, para efeito de acréscimo salarial, sendo vedada a percepção cumulativa”.
Segundo a OIT, há quatro meios principais de prevenção contra os agentes
danosos, relacionados na ordem decrescente quanto à eficácia: a) eliminação do
risco; b) eliminação da exposição do trabalhador ao risco; c) isolamento do risco; d)
proteção do trabalhador.
O propósito principal da lei é a eliminação dos agentes nocivos prejudiciais à
saúde do trabalhador, no caso de não ser possível tecnicamente essa eliminação, o
empregador é obrigado a reduzir a intensidade do agente prejudicial, enquadrando-se
dentro do território das agressões toleráveis e aceitas pelo Ministério do Trabalho e
Emprego.

4. AS MODIFICAÇÕES DA ANÁLISE DO AMBIENTE INSALUBRE COM A


REFORMA TRABALHISTA

A reforma trabalhista modificou o regramento vigente, tratando da prevalência


do negociado sobre o legislado, alterando a forma de pagamento do adicional de
insalubridade. O artigo 611-A da Consolidação das Leis do Trabalho elucida que:

A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência


sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: (...)
XII – enquadramento do grau de insalubridade;
XIII - prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia
das autoridades competentes do Ministério do Trabalho;

Desta forma, com a reforma trabalhista, os níveis de adicional de insalubridade


permaneceram, todavia estes poderão ter os valores alterados por intermédio de um
acordo feito entre o sindicato dos empregados e empregadores. Isto é, se
anteriormente a reforma determinava que o grau de insalubridade máximo seria de
40%, com as mudanças na lei pode-se fixar o adicional em 10%, a ser agregado no
salário do profissional.
Atualmente, para caracterizar e classificar a insalubridade em consonância com
as normas ditadas pelo Ministério do Trabalho é necessário à apuração pericial
realizada por profissional competente. No entanto, tal norma sofreu alteração, vez que
o grau de insalubridade pode ser avençado via instrumento coletivo.
Ademais, o acordo entre empregador e empregado se estenderá às horas de
trabalho submetidas à exposição desses riscos, ou seja, se antes era possível
trabalhar apenas 6 horas diárias em determinada jornada, agora esta atividade poderá
diminuir ou até mesmo aumentar, já que esse novo modelo de extensão poderá ser
utilizado em todas e quaisquer atividades, sem distinção.
Enfatiza-se que os contratos havidos antes da entrada em vigor da Lei
13.467/2017 não serão objetos de revisão dos direitos e garantias ali consagrados,
em face da proteção dada pelo artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal ao “direito
adquirido” e ao “ato jurídico perfeito”.
468

Ao analisar a questão dos efeitos da Lei 13.467/2017 é relevante registrar que


seguem vigentes as disposições da CLT que vedam mudanças unilaterais nos
contratos de trabalho, bem como fixam limites à restrição dos direitos trabalhistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O problema central foi identificar as condições do meio ambiente de trabalho


insalubre, com ênfase aos profissionais da recepção que laboram em hospitais, onde
diante de sua ocorrência, a afronta aos direitos fundamentais dos trabalhadores, por
meio da atividade que se desenvolve.
O adicional de insalubridade tem grande relevância jurídica, visto que se trata
dos danos causados ao trabalhador por exposição a agentes insalubres que afetam a
saúde, mormente quando o trabalhador está exposto a estes agentes de forma
simultânea.
O trabalhador em local saudável é muito mais produtivo e lucrativo. Já o
trabalho em condições precárias, além de não ser proveitoso, é prejudicial ao
trabalhador e à própria empresa. Um ambiente de trabalho digno, salubre, rentável ao
empregador e todas as pessoas que, direta ou indiretamente, estejam ligadas àquele
setor, pois se obtém uma melhor qualidade do produto e, acima de tudo, restabelecer-
se-ia a dignidade humana do trabalhador.
Observamos, portanto, que o trabalho da recepcionista em hospital gera
condições insalubres e agressão à sua saúde, por meio de suas funções exercidas e
pelo ambiente ser composto de agentes biológicos, até mesmo de doenças
infectocontagiosas. Cumpre destacar, que cabe ao empregador o cumprimento do
pagamento do adicional de insalubridade, conforme a exposição do empregado aos
riscos nocivos à saúde, conforme elucida a Consolidação das Leis do Trabalho,
Normas Regulamentadoras, Súmulas do Tribunal Superior do Trabalho e decisões
jurisprudenciais.

REFERÊNCIAS

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São Paulo: Saraiva, 2009.
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm>. Acesso em:
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em:
23/02/2018.
BRASIL. Ministério do Trabalho. Disponível em: <http://trabalho.gov.br/seguranca-
e-saude-no-trabalho/normatizacao/normas-regulamentadoras>. Acesso em:
25/02/2018.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (TST). Disponível em:
<http://www.tst.jus.br/sumulas>. Acesso em: 25/02/2018.
BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Política Nacional do Meio
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Acesso em: 24/02/2018.
469

ELIAS, Marisa Aparecida; NAVARRO, Vera Lúcia. A relação entre o trabalho, a


saúde e as condições de vida. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rlae/v14n4/v14n4a08.pdf>. Acesso em: 10/03/2018.
GUIMARÃES, Eliete Albano de Azevedo; ARAÚJO, Gustavo Dias; BEZERRA,
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NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 29ª edição, São
Paulo: Ed. Saraiva, 2014.
470

OS IMPACTOS DA RECENTE DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL


SOBRE A TERCEIRIZAÇÃO E O PRINCÍPIO PROTETIVO
THE IMPACTS OF THE RECENT DECISION OF THE SUPREME FEDERAL
COURT ON TERMINATION AND THE PROTECTIVE PRINCIPLE

Luciano Ehlke Rodrigues


Rodrigo Thomazinho Comar

Resumo: O instituto da terceirização consiste na possibilidade de contratar um


terceiro para que se transfira a este as atividades que geralmente não constituem o
objeto principal da empresa. Este tipo de contratação pode abarcar a produção de
bens e serviços, como por exemplo a contratação de serviços de vigilância, limpeza
ou ainda de serviços temporários. O princípio da proteção, por sua vez, pode ser
entendido como um princípio basilar do Direito do Trabalho por meio do qual se
protege a parte hipossuficiente na relação empregatícia, ou seja, o obreiro. Por fim,
será analisada a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 324/DF, com base
nos votos dos Ministros Marco Aurélio de Mello e Luís Roberto Barroso, por meio da
qual foi firmado entendimento pela terceirização irrestrita e declarada a
inconstitucionalidade da Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho.
Palavras-chave: Terceirização; Princípio da proteção; Supremo Tribunal Federal.

Abstract: The outsourcing institute consists of the possibility of hiring a third party to
transfer to the latter the activities that generally do not constitute the main object of the
company. This type of contracting may cover the production of goods and services,
such as the contracting of surveillance services, cleaning services or temporary
services. The principle of protection, in turn, can be understood as a basic principle of
Labor Law by which protects the hypersufficient part in the employment relationship,
that is, the worker. Finally, the decision of the Supreme Court in ADPF 324 / DF will be
analyzed, based on the votes of the Ministers Marco Aurélio de Mello and Luís Roberto
Barroso, through which it was signed understanding by unrestricted outsourcing and
declared the unconstitutionality of Summary 331, Superior Court of Work.
Keywords: Outsourcing; Principle of protection; Federal Court of Justice.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objetivo analisar os impactos decorrentes da recente


decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, que considerou válida a
terceirização de mão de obra em relação a atividade-fim de tomadores de serviços.
Assim, no presente estudo, serão abordados alguns aspectos envolvendo a
dicotomia existente entre o Capital e o Trabalho, sob a ótica dos direitos sociais
encartados no rol do artigo 7º, da Constituição da República Federativa do Brasil, em
especial no que pertine ao intrincado tema alusivo à terceirização do trabalho humano
e suas implicações, sob uma perspectiva analítica do ponto de vista do princípio da
proteção. Com base nesta temática é que se buscará incursionar na tormentosa
atividade jurisdicional e na dialética constante do julgado ora em estudo, com intuito
de verificar o tema sob à luz do princípio nuclear do Direito do Trabalho, corporificado
pelo princípio da proteção.
Desta forma, a abordagem será feita mediante o estudo dos votos dos
eminentes Ministros Marco Aurélio de Mello e Luís Roberto Barroso, na medida em
que tais entendimentos apontam em sentido diverso, estabelecendo assim a dialética
471

entre os pontos de vista, posto que abordam a questão sobre viés diverso, sendo
possível, assim considerar o estudo sob duas premissas.
Ao fim, será investigado como fica tal pronunciamento jurisdicional em face do
princípio da proteção do Trabalhador que se constitui num dos pilares do Direito do
Trabalho.

DESENVOLVIMENTO

Partindo dessas premissas, importante destacar que a decisão proferida pelo


Supremo Tribunal Federal, acerca do tema de validade da terceirização da atividade-
fim de tomadores de serviços, resolveu tormentosa lacuna legislativa sobre o tema,
solução essa relegada a decisões do Poder Judiciário, o qual se servia da aplicação
do entendimento cristalizado na súmula 331 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho
e da casuística dos processos.
Ocorre que o Supremo decidiu pela terceirização irrestrita, e, em consequência,
acabou declarando a inconstitucionalidade da Súmula 331, do Tribunal Superior do
Trabalho.
Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio de Mello, aborda o tema sob o enfoque
da constitucionalidade da Súmula 331 por entender que está em consonância com a
Constituição Federal sob o prisma dos direitos sociais.
Sustenta o Ministro Marco Aurélio que a terceirização somente poderia abarcar
as atividades-meio, e não poderiam ser terceirizadas as atividades-fim do tomador de
serviços, num primeiro momento, em se tratando da utilização deste instituto
exclusivamente na atividade estatal, arrimando-se o Estado no permissivo da Lei
5.645/70.
Mais adiante, pontifica o voto, trazendo a lume as Leis 6.019/741 e 7.102/832,
que tratam do trabalho temporário e dos serviços de vigilância, como situações
excepcionais, em que era permitida a terceirização da mão-de-obra.
Avança para a preocupação institucional e dinâmica da Justiça do trabalho com
as lides envolvendo o aspecto da terceirização da mão-de-obra, na qual o homem,
enquanto trabalhador, necessita de um pronunciamento do Estado, por meio do Poder
Judiciário trabalhista, como forma de coibir abusos e a precarização do direito dos
trabalhadores sujeitos à terceirização.
Saliente-se que, o Tribunal Superior do Trabalho, após debruçar-se em
inúmeras teses e ilegalidades por parte de empresas, firmou seu entendimento ao
editar a Súmula 3313.
1
A referida Lei tratava do trabalho temporário.
2
A Lei 7.102/83, disciplina a profissão do vigilante.
3
Súmula nº 331 do TST
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à
redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos
serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).
II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da
Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de
conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a
pessoalidade e a subordinação direta.
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador
dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo
judicial.
V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item
IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na
fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida
responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente
472

Merece transcrição, o seguinte trecho do voto do Eminente Ministro Marco


Aurélio:

“(...) A reforçar essa óptica, percebam ter sido a restrição à terceirização


geral e irrestrita reforçada com a promulgação, em 5 de outubro de 1988,
da Constituição a que Ulysses Guimarães chamou de Cidadã,
inauguradora de nova quadra republicana, inclusive e especialmente no
tratamento diferenciado conferido aos direitos sociais, consagrados não
apenas no rol do artigo 7º, mas elevados à condição de fundamento da
República e da ordem econômica e social – artigos 1º, inciso IV, 170,
cabeça e 193. A ampla constitucionalização dos direitos dos
trabalhadores, ordinariamente veiculados na legislação, não ocorreu por
acaso, sem razão expressiva. O sistema revela preocupação do
constituinte com a tutela dos trabalhadores. A proteção deixou de
encontrar fonte apenas na disciplina legal e adquiriu envergadura
constitucional, mediante a passagem da Consolidação das Leis do
Trabalho para a Constituição.
Desse sistema extrai-se o princípio implícito, de hierarquia maior, de
proteção ao trabalhador, alicerce do estatuto jurídico-constitucional
trabalhista a vincular a atuação dos três Poderes e servir de vetor
interpretativo para a solução das controvérsias levadas à apreciação do
Judiciário especializado. Eis a baliza hermenêutica a ser observada pelo
intérprete, revelando-se a óptica a partir da qual o instituto da terceirização
deve ser compreendido. (...)”

Ao fim, o voto do Ministro Marco Aurélio é pelo desprovimento do RE n.º


958.252 e pela improcedência da ADPF nº 324, afastando, por essas premissas, a
alegada incompatibilidade da Súmula 331, do C. TST, com a Constituição Federal.
Foi acompanhado pelo voto dos Ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Ricardo
Lewandowski.
Em sentido diametralmente oposto, votaram pela procedência da ADPF e do
RE supra-referidos, os Ministros Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Alexandre de
Moraes, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Carmen Lúcia.
Em contraponto ao citado voto, denota-se que a relatoria da ADPF foi
distribuída ao Ministro Barroso, por meio do qual opinou pela inconstitucionalidade do
verbete Sumular sob n.º 331, do C. TST, no que foi acompanhado pela maioria dos
seus pares.
O voto de Barroso sustentou que a terceirização das atividades-meio ou das
atividades-fim de uma empresa encontra assento constitucional nos princípios da livre
iniciativa e da livre concorrência, bem como tal forma de contratação não ensejaria a
precarização do trabalho nem a violação à dignidade do trabalhador.
Pontifica o voto de Barroso pela licitude da terceirização da atividade-fim ou
meio, frisando, ainda que tal decisão não afeta automaticamente decisões transitadas
em julgado.
Com isso, na ocasião, o STF concluiu pela constitucionalidade da terceirização
da atividade-fim, proferindo a tese de repercussão geral nos seguintes termos: “É lícita
a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas
distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a
responsabilidade subsidiária da contratante”.

contratada.
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao
período da prestação laboral.
473

Em que pesem os votos proferidos e diametralmente opostos em suas óticas,


vem sendo sustentado que a terceirização irrestrita gera um rebaixamento de salários,
desestrutura a conquista de direitos por meio da negociação coletiva, aumenta os
riscos de acidente de trabalho, bem como contribui, de forma negativa, para o
alargamento entre o Capital e o Trabalho sob o prisma da desigualdade econômica
entre o Empregado e o Empregador, quando mais se relega aquele na qualidade de
“Terceirizado”.
A Súmula 331, do C. TST prevaleceu por um longo período de tempo, ainda
que tenha sofrido algumas alterações, mormente porque se traduz como sendo fruto
de teses enfrentadas em várias instâncias da Justiça do Trabalho.
A própria evolução da Justiça do Trabalho é fruto de um amadurecimento no
campo da hermenêutica e principiológico- estrutural, sob uma viés humanística e
forjada, entre outros, pelo princípio da proteção.
Ao abordar o tópico “A Responsabilidade social da Empresa”, incursionando
ainda, de forma detida, a respeito da responsabilidade social dos sujeitos laborais,
quais sejam, o Empregador e o Empregado, segue o raciocínio de Barzoto 4, 2011:

“(...) A responsabilidade social dos sujeitos laborais, empregador e


empregado, foi tratada na encíclica Rerum Novarum como obrigações do
empregado e do empregador. “Entre estes deveres, eis o que dizem
respeito ao pobre e ao operário: deve fornecer integralmente e fielmente
todo o trabalho a que se comprometeu por contrato livre e conforme à
equidade; ...”. “...”Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o
operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade de homem”.
Em seguida, a Rerum Novarum refere que os governantes trabalham
diretamente pelo bem comum, mencionando que também os empresários
concorrem para o bem de todos: “os homens que se aplicam às coisas da
indústria...servem muitíssimo os interesses da sociedade. Sem dúvida
alguma, o bem comum, cuja aquisição deve ter por efeito aperfeiçoar os
homens, é principalmente um bem moral”.5 (...)”

A propriedade e a liberdade contratual não deveriam mais ser pautadas sob a


perspectiva de uma viés neoliberal, porquanto já vinham cedendo espaço para um
ideário de Estado Social em contraposição ao Estado Liberal, regido pelo capitalismo,
pela globalização e pelo neoliberalismo, que sempre margearam o primado do lucro
desmedido e não o primado do trabalho sob um enfoque do não aviltamento do
trabalhador, respeitando-se, por esse modo, a dignidade da pessoa humana e da boa-
fé objetiva.
No voto sustentado pelo Ministro Marco Aurélio de Mello, observa-se que a
Súmula 331 é fruto de uma evolução jurisprudencial e doutrinária do Tribunal Superior
do Trabalho, que, por mais de 32 anos enfrentou milhares de casos concretos, dando
prevalência ao princípio protetivo do trabalhador e via de consequência, dos
Direitos Sociais (art. 7º, CRFB), que estão no mesmo patamar Constitucional do direito
de propriedade (art. 170, CRFB), na exata medida em que se deve atender à sua
finalidade social.
Acerca do tema, Souza Júnior, Fabiano Coelho, Ney Maranhão e Platon
Teixeira, 2017, destacam que:
“(...) De todo modo, o entendimento prevalecente é no sentido de que a
contratação de trabalhador mediante empresa interposta é ilegal,
formando o vínculo diretamente com o tomador de serviços, com exceção

4
Barzotto, 2011, pág. 205.
5
op. cit.
474

das pessoas jurídicas integrantes da Administração Pública, para as quais


a formação de vínculo de emprego depende de previa aprovação em
concurso público. Em março de 2017, foi sancionada a Lei 13.429, que
autorizou a contratação de serviços determinado e específicos, não
deixando claro se a autorização legal alcançava a terceirização em
atividade-fim do tomador de serviços. Agora, com a Reforma Trabalhista,
a prestação de serviços a terceiros passa a ser considerada a
transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas
atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito
privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica (art.
4º-A da Lei n.º 6.019/1974). (...)”

A falta de estabilização das decisões proferidas pelos Tribunais Superiores, em


especial pelo Supremo Tribunal Federal, representam um risco de flagrante
insegurança jurídica aos jurisdicionados, em especial, os trabalhadores que se ativam
por meio de empresas terceirizadas.
Com efeito, a rapidez na aprovação das Leis n.º 13.429/2017 e 13.467/2017
(com vigência a partir de 11-11-2017), somada ao recente julgamento do Supremo
Tribunal Federal, se sobrepõem ao curso natural por meio da qual a terceirização foi
enfrentada pelas várias instâncias da Corte Especializada Trabalhista, sempre à luz
dos direitos sociais e do princípio da proteção, subvertendo o equilíbrio simbiótico
entre o capital e o trabalho, corporificado entre a Liberdade de contratar versus os
direitos mínimos albergados também na CRFB/88, de modo que deveria existir um
balizamento entre os artigos 7º6 e 170, caput7, da Carta Magna Política Vigente em
nosso País.
Neste aspecto é que a terceirização irrestrita estaria a discrepar dos princípios
norteadores nos quais foi construído do Direito do Trabalho, em especial citado
princípio contra todas as práticas que buscam macular o princípio da isonomia entre
os trabalhadores terceirizados e trabalhadores pertencentes à categoria da empresa
tomadora de serviços.
Entrementes, deve-se ter em mira a respeitabilidade das normas de higiene,
saúde e segurança do trabalhador, as quais frequentemente são vilipendiadas quando
se permite a utilização da terceirização não como exceção (atividade-meio), mas
como regra, por meio do alargamento de tal instituto também para a atividade-fim do
tomador de serviços.
Como dito em linhas anteriores, o Supremo Tribunal Federal, porquanto, no
papel de interprete da Constituição Federal, permitiu o manejo da ADPF, para que
fosse analisada a inconstitucionalidade da Súmula 331, ainda que houvesse uma
solidificação jurisprudencial, pelo Tribunal Superior do Trabalho.
Imperioso pinçar que ainda encontram-se pendentes de enfrentamento
discussões acerca da legalidade ou não da Lei 13.467/2017, sob a Relatoria do

6
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
7
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização
de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
475

Ministro Gilmar Mendes, e que sequer possuem data para pauta, pelo Supremo
Tribunal Federal, o que, causa espécie, acerca da preocupação em priorizar o
julgamento do RE e da ADPF que culminaram na permissão, via decisão plenária da
mais alta Corte, a respeito da terceirização irrestrita.
Os efeitos de tal entendimento serão observados diretamente pelas empresas
e pelos trabalhadores terceirizados, em razão de ter prevalecido a liberdade de
contratar como uma viés para o almejado estímulo de “novos postos de trabalho” e
ainda, no “fortalecimento da economia” e a consequente competividade, defendida no
voto do Ministro Luís Roberto Barroso.

CONCLUSÃO

Muito embora a recente decisão proferida pelo STF tenha impactado milhares
de processos e trabalhadores que ainda estão sendo regidos sobre a égide da
terceirização, verifica-se que restou assentado no mesmo julgamento que a decisão
proferida no ADPF e no RE a ele jungido não afeta automaticamente decisões
transitadas em julgado. A conclusão que se chega é que os direitos sociais encartados
na Carta Magna Vigente (CRFB/88) foram sobrepostos à liberdade de contratar
irrestrita, não se dando um maior enfoque da função social da propriedade e da
dignidade do trabalho humano.
A preocupação lançada pelo Ministro Barroso ao defender a terceirização
irrestrita seria um meio de proporcionar a retomada do crescimento econômico do
nosso país e a almejada geração de empregos, prestigiando-se esta modalidade de
contrato de trabalho irrestrita em detrimento da proteção da dignidade do trabalho
humano e dos direitos sociais.
O voto prevalecente do Ministro Barroso distanciou-se do princípio basilar do
Direito do Trabalho que é o Princípio da Proteção do trabalhador hipossuficiente.
A conclusão que se abstrai é que prevaleceu a liberdade de contratar em
detrimento dos direitos sociais mínimos dos trabalhadores que também se encontram
inseridos na Constituição Federal ao se declarar a inconstitucionalidade da Súmula
331 do Tribunal Superior do Trabalho que foi moldada à luz do princípio da proteção
do trabalhador hipossuficiente na relação de trabalho, em especial, na terceirização.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 23. ago. 2018
DELGADO, Maurício Godinho. DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista
no Brasil: com os comentários à Lei 13.467/2017. 1 ed. São Paulo: LTr, 2017.
GUNTHER, Luiz Eduardo (coord) et al. Rerum novarum. Estudos em homenagem
aos 120 anos da encíclica papal. Curitiba: Juruá, 2011.
HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. 1 ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2016.
MARTINS, Sérgio Pinto. A terceirização e o direito do trabalho. São Paulo: Atlas,
2007.
FILHO, Wilson Ramos; LOUGUÉRCIO, José Eymard; MENEZES, Mauro de Azevedo
et al. Terceirização no STF: elementos do debate constitucional. Bauru: Canal 6,
2015.
476

SILVA, Homero B. M. Comentários à Reforma Trabalhista. Análise da Lei


13.467/2017. Artigo por artigo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
SOUZA JÚNIOR, A. et al. Reforma Trabalhista. Análise Comparativa e crítica da
Lei n.º 13.467/2017 e da Med. Prov. N.º 808/2017. São Paulo: Rideel, 2018.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=388429>.
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https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_170_.
asp Acesso em 16.out.2018.
http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_301_350.ht
ml - Acesso em 18/10/2018.
477

OS TRANSTORNOS MENTAIS RELACIONADOS AO MEIO AMBIENTE DE


TRABALHO E A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO
THE MENTAL DISORDERS RELATED TO THE ENVIRONMENT OF WORK AND
THE WORK OF THE PUBLIC MINISTRY OF LABOR

Adriana Mendonça da Silva


Katleen Soares Pinheiro

Resumo: A análise dos transtornos mentais relacionados ao trabalho e a atuação do


Ministério Público do Trabalho na defesa do meio ambiente laboral está relacionada à
defesa da saúde e segurança do trabalhador. A Súmula 736 do STF estabelece a
competência da Justiça do Trabalho para julgar as ações por descumprimento de
normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde. Diante disso, o Ministério
Público do Trabalho possui importantes instrumentos de atuação para a tutela do meio
ambiente do trabalho e, com isso, evitar a incidência dos transtornos mentais
ocasionados pela degradação do ambiente de trabalho. Desse modo, foram
estudadas definições de meio ambiente do trabalho e como sua degradação é
responsável pelas alarmantes estatísticas de doenças ocupacionais. Por fim, discorre-
se acerca da importância do papel exercido pelo MPT na tutela do meio ambiente de
trabalho equilibrado.
Palavras-chave: Transtornos Mentais. Meio Ambiente do Trabalho. Ministério Público
do Trabalho.

Abstract: The analysis of mental disorders related to work and the work of the Public
Ministry of Labor in the defense of the working environment is related to the defense
of the health and safety of the worker. Summary 736 of the STF establishes the
competence of the Labor Court to judge actions for non-compliance with labor
standards related to safety, hygiene and health. Therefore, the Public Prosecutor's
Office has important working tools to protect the work environment and, with this, avoid
the incidence of mental disorders caused by the degradation of the work environment.
In this way, definitions of the work environment were studied and how their degradation
is responsible for the alarming statistics of occupational diseases. Finally, we discuss
the importance of the role played by MPT in the protection of the balanced working
environment.
Keywords: Mental Disorders. Work Environment. Ministry of Labor.

INTRODUCÃO

O meio ambiente de trabalho é definido por todo local em que o homem presta
serviços com a finalidade de buscar sua subsistência. Trata-se de um direito
fundamental de acordo com a Constituição Federal de 1988. O meio ambiente geral
alcança todo cidadão e o meio ambiente de trabalho todo trabalhador, uma vez que
“todos recebem a proteção constitucional de um ambiente de trabalho adequado e
seguro, necessário à saudável qualidade de vida” (MELO, 2008, p. 27).
Assim, é o local onde a pessoa passa boa parte do dia, exigindo-se esforço
físico e intelectual no desempenho de suas funções, de tal modo que acaba por
negligenciar suas relações pessoais e sacrificar, muitas das vezes, momentos de
descanso e lazer imprescindíveis ao seu refazimento.
Nesse contexto, segundo a Organização Mundial de Saúde, existem diversos
transtornos mentais, com apresentações diferentes. Eles geralmente são
478

caracterizados por uma combinação de pensamentos, percepções, emoções e


comportamento anormais, que também podem afetar as relações com outras pessoas
(OMS, 1993, p. 5).
Com isso, surgem a depressão, ansiedade, síndrome do pânico, entre outros,
intrinsicamente relacionados a fatores como: má condição de trabalho, cobrança
excessiva de metas de produtividade, ritmo intenso de trabalho.
Desse modo, a relação entre o trabalho e o adoecimento mental decorrente
intrinsicamente das transformações contemporâneas no mundo do trabalho e as
marcas de precarização total que repercutem não apenas nos processos de trabalho,
mas avançam para o campo da vida familiar, isto é, atingem toda a sociabilidade
humana (SELIGMAN-SILVA, 2011).
A tutela coletiva de interesses e direitos passou a ser uma exigência na
sociedade atual, como resposta às mais variadas violações que não se dirigem a uma
pessoa determinada, mas à coletividade. Essa tutela foi alçada a direito fundamental,
ou seja, elemento essencial e irremovível para assegurar os direitos da coletividade
(PEREIRA, 2016, p. 162).
Importante destacar a legitimidade exercida pelo Ministério Público do Trabalho
na tutela dos diversos ambientes laborais, bem como na prevenção e reparação de
eventuais danos provocados aos trabalhadores.
Portanto, minimizar a degradação do meio ambiente laboral, devido a sua
influência direta na saúde do trabalhador, é atribuição dada ao Ministério Público do
Trabalho que tem o dever de atuar e, para isso, possui instrumentos institucionais,
como a Ação Civil Pública, Termo de Ajustamento de Conduta, entre outros, fato que
torna sua atuação incisiva nas medidas protetivas e preventivas.
O objetivo é demonstrar a importância de um meio ambiente do trabalho
saudável para a construção de uma vida com dignidade, pois com a precarização do
ambiente laboral, verifica-se o acometimento, no trabalhador, de doenças tanto
mentais, quanto físicas.
Para tanto, foram traçados os seguintes objetivos específicos: analisar a
questão da saúde psíquica do trabalhador como objetivo fundamental, conceituar o
meio ambiente laboral, demonstrar os danos causados a vida do obreiro pela ausência
de um meio ambiente do trabalho equilibrado, bem como analisar a atuação do
Ministério Público do Trabalho no combate a precarização do meio ambiente do
trabalho.

METODOLOGIA

Trata-se de uma análise realizada utilizando a metodologia qualitativa, bem


como a pesquisa bibliográfica. O estudo foi realizado por meio de doutrinas, artigos
científicos, livros e revistas.
Dentro do amplo campo de pesquisa, optou-se por limitar a análise aos
transtornos mentais ocasionados pela precarização do ambiente de trabalho, com
análises gerais e específicas do meio ambiente do trabalho e sua relação com tais
transtornos.
Dessa forma, a atuação do Ministério Público do Trabalho torna-se
indispensável para tutela do meio ambiente laboral saudável e da prevenção e
reparação de danos.

MEIO AMBIENTE DO TRABALHO


479

O artigo 225 da Constituição Federal de 1988 assegura o meio ambiente de


trabalho saudável como direito fundamental:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de


uso comum do povo e essencial á sadia qualidade de vida, impondo-se ao
bem Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988).

No entanto, a norma supracitada deve ser interpretada com o artigo 7º, inc. XXII
da Constituição, que confere aos trabalhadores o direito à “[...] redução de riscos
inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.”
A definição do meio ambiente trazida pela Lei da Política Nacional do Meio
ambiente (Lei nº 6938/81) aduz o meio ambiente como “[...] o conjunto de condições,
leis, influências e intervenções de ordem física, química e biológica que permite,
abriga e rege a vida em todas as suas formas” (BRASIL, 1981).
O conceito mais defendido pelos doutrinadores compreende o meio ambiente
laboral como sendo qualquer lugar onde as pessoas desempenham suas atividades,
o qual interage com outros fatores das mais variadas ordens, ou seja, o meio ambiente
abrangeria todos os elementos, interações e condições presentes no local onde se
desenvolvem as funções que influenciam na vida do trabalhador.
Insta destacar, o conceito trazido por Fiorillo (2013, p. 53) sobre o meio
ambiente laboral:

Constitui meio ambiente do trabalho o local onde as pessoas


desempenham suas atividades laborais, sejam remuneradas ou não, cujo
equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes
que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores,
independente da condição que ostentem (homens ou mulheres, maiores
ou menores de idade, celetistas, servidores públicos, autônomos etc.)

Observa-se, que o meio ambiente do trabalho é uma complexa teia de fatores


que se relacionam e se interferem mutuamente. E, para que seja sadio, torna-se
imprescindível a fixação de um padrão mínimo de condições que garantam qualidade
de vida e dignidade ao trabalhador, efetivando-se, assim, o princípio da dignidade
humana e do valor social do trabalho previsto como direitos fundamentais (CF, artigo
1º, III e IV).
Por outro lado, a sua degradação (por meio da violação às normas de saúde e
segurança do trabalho) reflete de forma negativa no conceito, uma vez que os
trabalhadores passam grande parte do tempo de suas vidas no ambiente de trabalho
recebendo, muitas das vezes, a influência do ambiente degradado.
Por fim, pode-se afirmar que ambiente do trabalho deve ser considerado como
o bem a ser protegido pelas legislações, para que o obreiro possa usufruir de uma
melhor qualidade de vida.

TRANSTORNOS MENTAIS DECORRENTES DO AMBIENTE DE TRABALHO

A influência do meio ambiente de trabalho na saúde dos trabalhadores,


imediatamente traz à discussão os acidentes de trabalho. Raramente cogitam-se as
enfermidades mentais, pois não são facilmente perceptíveis.
O crescente número de trabalhadores que sofrem transtornos mentais em
decorrência do trabalho tem se mostrado nas denúncias formulada ao Ministério
Público do Trabalho e ao Ministério do Trabalho, no aumento do número de benefícios
480

previdenciários concedidos aos segurados incapacitados por esses transtornos


psíquicos e no acréscimo estatístico dessas doenças nos registros do Ministério da
Saúde (MOUSINHO, 2015).
Conforme pesquisa feita por Mousinho (2015, p. 138),

No mundo, segundo levantamento do Plano de Ação para a Saúde Mental


2013-2020 da Organização Mundial da Saúde (OMS), os distúrbios
mentais representam 13% de todas as doenças e um terço das patologias
não transmissíveis. O estudo mede a incidência geral e estima que cerca
de 350 milhões de pessoas deverão sofrer de depressão e 90 milhões
terão uma desordem psíquica pelo abuso ou dependência de substancias,
nesse período no planeta. Estudos científicos e os registros de concessão
de benefícios previdenciários demonstram que, em profissões em que há
prevalência do trabalho manual e repetitivo, como os metalúrgicos,
também se evidenciam transtornos mentais. Os transtornos mentais
relacionados ao trabalho têm alcançado as mais diversas profissões.

A análise do Sistema Único de Benefícios da Previdência Social demonstra que


as doenças mentais distribuem-se de forma bastante diferenciada entre os ramos de
atividade, sendo que aqueles com maior participação do sexo feminino são mais
atingidos pelos distúrbios afetivos, enquanto os que tem predominância masculina
sofrem maior impacto dos distúrbios mentais devido ao uso de substâncias psicoativas
(BRANCO et al., 2013, p. 513).
Os transtornos mentais como depressão, ansiedade, síndrome do pânico, entre
outros, estão interligados aos mais diversos fatores: más condições de trabalho,
cobrança excessiva de metas de produtividade, ritmo intenso de trabalho e falta de
reconhecimento do valor do trabalho desempenhado.
Segundo pesquisa no sistema de concessão de benefícios da Previdência
Social “[...] os distúrbios afetivos formam o grupo mais importante de causas de
doenças mentais e comportamentais, tanto em quantidade de benefícios, quanto em
custos previdenciários” (BRANCO et al., 2013, p. 514).
A interferência das características atuais do trabalho sobre a saúde mental dos
trabalhadores pode decorrer de inúmeras razões, dentre as quais, a insegurança nos
locais de serviço, bem como as situações de risco à integridade física, a exemplo do
trabalho dos motoristas de ônibus, que estão constantemente expostos ao risco de
assaltos e sequestros.
Ademais, devem ser ressaltadas, formas de organização do trabalho e políticas
de gerenciamento que desconsideram os limites físicos e psíquicos do trabalhador,
impondo-lhe frequentemente a anulação de sua subjetividade para que a produção
não seja prejudicada e as metas estabelecidas sejam cumpridas (HAZAN, 2013).
Sobre os paradigmas atuais das relações de trabalho com a saúde mental do
trabalhador, destaca-se:

A falta de segurança dentro do local de trabalho é outro aspecto que vem


contribuindo para o adoecimento mental do trabalhador. Sequestros,
assaltos, roubos e outros tipos de ações criminosas estão fazendo com
que várias categorias de trabalhadores passem a viver em constante sinal
de alerta, temendo novas investidas dos bandidos. Com o passar do
tempo, essa ansiedade, marcada pelo medo de ser vítima desses crimes,
provoca sérios danos ao psiquismo do trabalhador (VASCONCELOS,
2013, p. 48).
481

Todas as angústias vivenciadas no emprego e, ainda, a pressão no trabalho


em condições adversas, falta de cooperação e o não reconhecimento do esforço
pessoal, têm conduzido a diversos transtornos mentais, entre eles, destaca-se a
Síndrome de Burnout. (MOTA, 2012).
O termo Burnout foi lançado pela primeira vez em 1975, por Freudenberger,
seguido de Maslach, em 1976. O foco principal dos primeiros estudos foram a fadiga
e a exaustão emocional dos trabalhadores, decorrente das frustações oriundas de
desgastes profissionais no inter-relacionamento com outros membros da equipe de
trabalho.
Segundo Maslach, a síndrome de Burnout caracteriza-se por três aspectos
básicos: a exaustão emocional, a despersonalização e a redução da realização
pessoal e profissional (MOTA, 2012).
A pesquisa realizada pela ISMA (International Stress Management
Association), para estudo do estresse ocupacional nos Estados Unidos, Alemanha,
França, Brasil, Israel, Japão, China, Hong Kong, e Fiji, demonstrou que o Brasil ocupa
o segundo lugar em número de trabalhadores acometidos da Síndrome de Burnout.
Entre os trabalhadores brasileiros, apurou-se que 70% são afetados pelo estresse
ocupacional e 30% do total estão vitimados por Síndrome de Burnout (FONSECA,
2013, p. 141).
Outro transtorno mental relevante é o assédio moral organizacional, que exige
alta produtividade, bem como impõe ritmos penosos de trabalho por meio de metas
excessivas (HAZAN, 2013).
Para Hazan (2013, p. 190), pode-se entender que:

O assédio moral organizacional é justamente praticado para que a


empresa conte com empregados que alcancem metas sempre crescentes,
e elimine “gente de baixa performance”. Constitui, na verdade, uma
técnica de gestão escolhida pela empresa. “Ou seja, o aperfeiçoamento
de uma técnica que está relacionada, diretamente, ao poder diretivo do
empregador, na construção de uma ferramenta direcionada á
intensificação da disciplina do trabalhador, rumo a uma maior
produtividade.

Esta é a realidade evidenciada pelos altos índices de acidentes de trabalho e


doenças ocupacionais que assolam o Brasil.
Segundo Rojas (2014, p. 6):

Verifica-se que, em uma visão economicista e privatistica, o trabalhador é


muitas vezes tratado como objeto do contrato de trabalho, e não sujeitos
de direitos, eis que a busca incessante pelo lucro e a necessidade e
diminuição dos custos para fazer frente à concorrência tornam-se mais
importantes do que a concessão aos trabalhadores de direitos mínimos,
como o são a vida e a saúde.

Portanto, o trabalho constitui a base de toda a sociedade, assim como o direito


a um meio ambiente laboral digno são direitos fundamentais que devem chegar a
todos os trabalhadores por uma questão de justiça social.

PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO E OS INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO AO


MEIO AMBIENTE LABORAL

A categorização do meio ambiente de trabalho como direito difuso impõe sua


defesa e proteção por instrumentos judiciais e extrajudiciais, tais como: a Ação Civil
482

Pública, Termo de Ajustamento de Conduta, instauração de Inquérito Civil entre


outros.
O Ministério Público do Trabalho teve seu quadro de atuação substancialmente
alterado com a Constituição de 1988 (art. 127 da CF e seguintes), recebendo como
incumbência a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis da sociedade na adequação dos diversos
ambientes de trabalho, bem como na prevenção e reparação de eventuais danos
provocados aos trabalhadores.
Dessa forma, o Ministério Público do Trabalho tem priorizado algumas áreas
de atuação em defesa da ordem jurídica trabalhista, como por exemplo, a defesa do
meio ambiente do trabalho, e para operacionalizar essas metas institucionais, são
utilizados diversos instrumentos (LEITE, 2017).
A busca pela redução dos riscos do trabalho por intermédio de normas de
saúde, higiene e segurança é assegurado na Constituição Brasileira, bem como em
normas infraconstitucionais; e, portanto, é uma preocupação na definição das
estratégias de como o parquet irá desempenhar as suas funções em defesa do meio
ambiente laboral sadio para evitar problemas na saúde do trabalhador.
A Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho
(CODEMAT) tem como objetivo primordial a conjugação de esforços para harmonizar
as ações desenvolvidas pelo Ministério Público do Trabalho em defesa do ambiente
laboral, assegurando o cumprimento de normas de saúde, higiene e segurança do
trabalhador, a fim de garantir o direito ao meio ambiente laboral adequado (MELO,
2013, p. 441).
O Ministério Público do Trabalho também vem realizando diagnósticos das
questões oriundas ao mundo do trabalho, com observância da realidade e das
tendências nacionais, para entender os problemas que mais reclamam uma atuação
coordenada da Instituição.
A CODEMAT exerce papel relevante como espaço de discussão e deliberação
entre todos os membros do Ministério Público do Trabalho para a definição das
estratégias de atuação no meio ambiente do trabalho, orientadas pela redução e
eliminação de qualquer espécie de agravos à saúde e tendo a cultura da prevenção
como modelo (ROJAS, p.6 2014).
Portanto, o Ministério Público do Trabalho deve atuar de forma independente e
imparcial, objetivando a tutela específica para adoção de medidas de prevenção e
reparação a fim de que as doenças ocasionadas pelo meio ambiente laboral precário
sejam reduzidas.

CONCLUSÃO

O meio ambiente do trabalho encontra-se inserido no contexto de mercados


econômicos altamente agressivos e centrados na busca de altas taxas de
produtividade e cuja finalidade precípua é a busca pelo lucro, em detrimento à
qualidade de vida do trabalhador e sua dignidade.
Assim, devido a importância que apresenta, o meio ambiente do trabalho
congrega direitos metaindividuais, cuja análise deve ser feita sob a perspectiva
constitucional.
A garantia do meio ambiente do trabalho adequado do ponto de vista físico e
mental é imprescindível para o alcance da plenitude do direito à vida, à saúde e à
dignidade da pessoa humana.
483

Nesse diapasão, exsurge a importância da atuação coordenada do Ministério


Público do Trabalho, com o fito de buscar a prevenção e reparação dos danos relativos
ao meio ambiente do trabalho e os transtornos mentais, com objetivo de concretizar o
direito ao meio ambiente de trabalho adequado, com redução dos agravos mentais e
físicos relacionados ao trabalho, concebendo-se o meio ambiente do trabalho não
apenas como fonte de renda ao trabalhador, mas também de satisfação, bem-estar e
de reconhecimento a quem o exerce.
É, portanto, incumbência do Ministério Público do Trabalho utilizar os
instrumentos institucionais, como a Ação Civil Pública, Termo de Ajustamento de
Conduta e o Inquérito Civil para a defesa de interesses metaindividuais dos
trabalhadores voltados à tutela dos direitos fundamentais concernentes a vida, saúde
e segurança laboral.
Por fim, enfrentar o contexto do aumento crescente dos transtornos mentais
relacionados ao trabalho e garantir o direito à segurança e saúde do trabalhador tem
se mostrado como o grande desafio do Ministério Público do Trabalho para a defesa
dos direitos fundamentais relacionados ao meio ambiente de trabalho.

REFERÊNCIAS

BRANCO, Anadergh Barbosa. Oliveira,Paulo Rogério Albuquerque. Mateus,


Marcia. Epidemiologia das licenças do Trabalhador por Doenças do Trabalho no
Brasil, 1999-2002, In: FERREIRA, Januário Justino (coord). Saúde mental no
trabalho. Coletânea do Fórum de Saúde e Segurança do Trabalho no estado de
Goiás. Goiânia: Cir. Gráfica, 2013.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado
Federal, 1998.
_______. Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional de
Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF,20 de setembro de 1990.
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental. 14 ed. São Paulo:
Saraiva, 2013.
FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. Saúde Mental para e pelo Trabalho. In:
FERREIRA, Januário Justino (coord.). Saúde mental no trabalho. Coletânea do
Fórum de Saúde e Segurança do Trabalho no estado de Goiás. Goiânia: Cir. Gráfica,
2013.
HAZAN, Ellen Mara Ferraz. A falta de estabilidade no emprego e o desemprego como
fatores de risco para a saúde mental do trabalhador. In: FERREIRA, Januário Justino
(coord.). Saúde mental no trabalho. Coletânea do Fórum de Saúde e Segurança do
Trabalho no estado de Goiás. Goiânia: Cir. Gráfica, 2013.
MELO, Raimundo Simão de. Responsabilidade civil do empregador pelos danos ao
meio ambiente do trabalho e à saúde do trabalhador. In: MIESSA, Élisson; CORREIA,
Henrique (Org.). Estudos aprofundados MPT. Salvador: JusPODIVIM, 2013.
MELO, R. S. Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador. 3. ed. São Paulo:
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MOUSINHO, Ileana Neiva. Os transtornos mentais relacionados ao trabalho e a
atuação do Ministério Público do Trabalho. Estudos aprofundados MPT–Ministério
Público do Trabalho. Bahia: Jus Podium, 2015.
MOTA, Mirian Cristina Zaidan. Psicologia aplicada em segurança do trabalho. 3.
ed. São Paulo: Ed LTR, 2012.
484

ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde. Classificação de transtornos mentais da CID-


10. Porto Alegre: Artmed, 1993.
PEREIRA, R. J. Ação Civil Públuca no Processo do Trabalho. Salvador:
JusPodium, 2016.
ROJAS, Ana Paula. A atuação do Ministério Público do Trabalho na defesa do
meio ambiente laboral. Buqui Livros Digitais, 2014.
SANTOS, Adelson Silva dos. Fundamentos do direito ambiental do trabalho. São
Paulo: LTr, 2010.
SELIGMAN-SILVA, Edith. Trabalho e desgaste mental. O direito de ser dono de si
mesmo. São Paulo: Cortez Editora, 2011.
VASCONCELOS, Maria Inês. Síndrome do pânico e trabalho: a ausência de
neutralidade do trabalho no processo de adoecimento mental do trabalhador. Belo
Horizonte: Del Rey Editora, 2013.
485

POLÍTICA PÚBLICA DE AGROTÓXICOS E SEUS IMPACTOS NA SAÚDE DOS


TRABALHADORES
PUBLIC POLICY OF PESTICIDES AND ITS IMPACTS ON THE HEALTH OF
WORKERS

João Pedro Ignácio Marsillac

Resumo: Programas de redução ao uso de agrotóxicos têm como fundamento maior


a segurança alimentar e a proteção do meio ambiente, contudo há outros atores que,
em que pese não estarem diretamente atingidos por tais programas, merece atenção
especial, notadamente o trabalhador rural. Um dos princípios mais caros do Direito
Ambiental, aplicáveis à proteção jurídica do meio ambiente do trabalho, o da
precaução deve ser observado para fins de evitar que a utilização desarrazoada de
pesticidas na lavoura seja utilizadas no trabalho rural, sem a certeza de que seu uso
seja realmente seguro. Esse artigo analisará o PNDA - Programa Nacional de
Defensivos Agrícolas através dos dados a serem coletados, para fins de melhor
verificar se o programa é efetivo também à proteção da saúde dos trabalhadores,
criando uma ponte entre as a área ambiental e trabalhista.
Palavras chave: meio ambiente do trabalho. Agrotóxicos. Políticas Públicas.

Abstract: Programs to reduce the use of pesticides are based on food security and
protection of the environment, however, there are other actors who, despite not being
directly affected by such programs, deserve special attention, especially the rural
worker. One of the most important principles of Environmental Law, applicable to the
legal protection of the work environment, precaution must be observed in order to avoid
unreasonable use of pesticides in the field of agriculture, without the certainty that their
use be really safe. This article will analyze the PNDA - National Program of Agricultural
Defenses through the data to be collected, in order to better verify if the program is
also effective to protect workers' health, creating a bridge between the environmental
and labor areas.
Keywords: Work environment. Public Policy. Pesticides.

INTRODUÇÃO – PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMA

O mercado de trabalho e a economia demandam por eficiência, para a redução


de custos. E as novas tecnologias aparecem como aliada a esta demanda,
notadamente a utilização de agrotóxicos nas lavouras. No entanto, deve-se pensar
em uma abordagem não meramente econômica, mas também humana, evitando
danos à saúde daqueles que vendem sua força de produção.
Deste modo, entende-se pertinente o estudo de tais temas, que, assinala-se,
são pouco estudados conjuntamente, em especial quanto ao enfoque da proteção
jurídico ambiental do habitat laboral como forma de prevenir doenças.
Assim, o problema central gira em torno dessas questões:
 O que é meio ambiente laboral? Qual o objeto da proteção jurídico-laboral-
ambiental?
 Os princípios do Direito Ambiental podem ser aplicados na área trabalhista?
De que forma? Como efetivar essa aplicação?
 Sob a ótica dos princípios do Direito Ambiental, em especial o da prevenção
e da precaução, como é possível evitar que avanços do uso de agrotóxicos tragam
consigo danos à saúde do empregado?
486

 As políticas públicas de redução de agrotóxicos são efetivas para resguardar


a saúde dos trabalhadores rurais?

DESENVOLVIMENTO

Platão já afirmava que os homens dependem dos meios tecnológicos para


sobreviver. O meio ambiente laboral, assim como todo o meio ambiente, vem sofrendo
modificações ao longo do tempo, na medida em que novas formas de produção estão
surgindo, fruto, principalmente, da evolução tecnológica.
Com efeito, o Direito tem o dever de estudar essa transformação toda, na
medida em que ela gera impactos que podem ocasionar demandas no poder
judiciário. Novas doenças ocupacionais e novas formas de acidentes do trabalho
nascem devido ao desequilíbrio que essas modificações desenfreadas causam ao
meio ambiente laboral.
Na revolução industrial, ao lado das atrocidades causadas pelo sistema
capitalista (trabalho infantil, jornadas de 16 horas, habitações fétidas) surgiram as
primeiras legislações de proteção no meio ambiente do trabalho 1. Foi a reação do
proletariado contra os detentores dos meios de produção que forçou o Estado a agir
e defender os interesses daqueles que sofriam os malefícios daquele sistema, até
mesmo para proteger a economia e a prosperidade do capitalismo.
Sebastião Geraldo de Oliveira2 assim define essa situação:

A nova postura dos trabalhadores era fortalecida pela situação crescente


dos acidentes, mortes e doenças profissionais provocados pelo processo
acelerado de industrialização. Somente a indústria produz no mundo,
anualmente, 50 milhões de acidentes, sendo que, destes, 100 mil são
mortais e um milhão e quinhentos mil trabalhadores ficam inválidos para
o resto da vida, segundo levantamento da OIT no início da década de 80.

Mais ainda, acontecimentos contemporâneos demonstram a necessidade de


estudar este tema. Como, por exemplo, os casos de suicídios na França que
ocorreram entre 2006 e 2009. Cerca de 60 trabalhadores ceifaram a própria vida em
face da dura imposição de alcance de metas estabelecido pelas empresas.
Tão sério é o problema, que, após sete anos de investigação, a empresa
francesa France Telecom passou a responder processo judicial por assédio moral,
devido aos danos psicossociais causados3.
E o que temos acompanhado hoje é uma verdadeira monetarização do risco,
na medida em que, assim como ocorre na seara ambiental, por vezes é mais barato
pagar adicionais de insalubridade ou periculosidade do que afastar o risco, como
ocorre com as compensações de áreas devastadas.
E isso é extremamente prejudicial, pois o risco de um ambiente de trabalho
desequilibrado afeta diretamente à saúde de todos que ali exercem alguma atividade,
causando prejuízos até mesmo na esfera social, na medida em que o Brasil possui
gastos elevadíssimos em benefícios previdenciários.
Não há falar em desenvolvimento sustentável, sem que as pessoas se
preocupem com a ferramenta do crescimento econômico: o empregado. Não existe
cidadania sem labor.

1
PADILHA, Norma Sueli. Do meio ambiente do trabalho equilibrado – São Paulo: LTr, 2002. p. 37.
2
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 6ª Ed., São Paulo: LTr, 2011.
3
http://www.paraiba.com.br/2017/05/08/39983-apos-suicidio-de-60-funcionarios-empresa-francesa-e-processada-por-assedio-
moral - acesso em 23/05/2018, 21h24
487

O debate torna-se mais sensível quando falamos em aplicar novas


tecnologias nos meios de produção, pois, sem um estudo aprofundado, elas
implicarão em novas doenças que precisam ser avaliadas antes de sua
implementação, como é o caso dos agrotóxicos e pesticidas.
A defesa da saúde e a segurança no trabalho é um obstáculo à expansão da
autonomia da sociedade. Por isso, fica clara a preocupação que se deve destinar ao
estudo do Direito ambiental laboral enquanto habitat diário do ser humano trabalhador.
De fato, o local de trabalho, hoje, é nossa segunda casa. Entender a sua
transformação e torná-lo o menos insalubre e perigoso possível é necessário para
alcançarmos o desenvolvimento sustentável. Deve-se ter em mente que o trabalho é
o meio necessário à manutenção da vida e não da sua degradação.
Uma das principais dificuldades do estudo é o reconhecimento por parte da
doutrina do meio ambiente do trabalho como parte integrante do conceito geral de
meio ambiente do direito ambiental. Uma forma clássica de se discutir o assunto é a
multidisciplinariedade. Esta se da ao passo que uma área do conhecimento solicita, a
diversas outras, auxílio para desenvolver sua forma de lidar com suas demandas.
Essa forma é ainda muito comum no sistema jurídico brasileiro, em que juízes
solicitam laudos médicos/psicológicos para embasar suas decisões.
Pois bem, a Constituição Federal, no artigo 2004, quanto trata das
competências do Sistema Único de Saúde, ao conferir a este órgão a atribuição de
colaborar com a proteção do meio ambiente, deixa bem claro que nele está
compreendido “o do Trabalho”.
E aqui, cabe delimitar que trabalho se busca tutelar, que é o propriamente
subordinado, pois outras modalidades de trabalho e sua tutela é questão de saúde
pública, que foge do objetivo deste texto.
Entende-se que a melhor denominação do tópico que ora se estuda foi feita
por Amauri Mascaro Nascimento, que não limita o conceito a apenas ao espaço físico,
mas tudo o que o rodeia. O mesmo afirma que meio ambiente do trabalho é:

é, exatamente, o complexo máquina-trabalho: as edificações do


estabelecimento, equipamentos de proteção individual, iluminação,
conforto térmico, instalações elétricas, condições de salubridade ou
insalubridade, de periculosidade, ou não, meios de prevenção à fadiga,
outras medida de proteção ao trabalhador, jornadas de trabalho e horas
extras, intervalos, descansos, férias, movimentação, armazenagem e
manuseio de materiais que formam o conjunto de condições de trabalho
etc.5

Se o meio ambiente do trabalho faz parte do conceito de meio ambiente, então


terá a mesma proteção jurídica a este reconhecida na doutrina de Direito Ambiental.
Assim sendo, torna-se clara a aplicação dos princípios, como aqueles
destacados no Decreto Lei 5.098 de 3 de junho de 2004, no seu artigo 2º: princípio da
informação, princípio da participação, princípio da prevenção, princípio da precaução,
princípio da reparação e princípio do poluidor-pagador, que no trabalho serão melhor
abordados.
Raimundo Simão de Melo, em relação ao princípio da precaução e da
prevenção na relação de trabalho adverte que “deve-se levar em conta a educação
ambiental a cargo do Estado, mas também das empresas, nos locais de trabalho,

4
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/_ConstituiçaoCompilado.htm>. Acesso em 7 de out. 2017
5
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. A defesa processual do meio ambiente do trabalho. Revista LTr, São Paulo: LTr, vol.
63, n. 05, p. 584, Mai-1999
488

orientando os trabalhadores sobre os riscos ambientais e fornecendo-lhes os


equipamentos adequados de proteção, como menciona a CLT, no art. 157”. Conclui,
assim, que “não precisa haver certeza científica absoluta sobre a possível ocorrência
do dano ao meio ambiente ou à saúde do trabalhador. Basta que o suposto dano seja
irreversível e irreparável para que não se deixe de adotar medidas efetivas de
prevenção, mesmo na dúvida, porque a proteção da vida se sobrepõe a qualquer
aspecto econômico”6.
A proposta da Maria Paula Dallari, ao discursar sobre a questão das políticas
públicas, não foi o de criar um novo ramo do direito, mas de criar um diálogo com
outras áreas num debate interdisciplinar para chegarmos a um Programa de Governo
mais adequado e que melhor dialogue com os atores sociais através de ações
governamentais que resultem em um conjunto de processos disciplinados pelo direito
voltados à realização de fins socialmente relevantes e juridicamente determinados. 7.
Programas de redução ao uso de agrotóxicos têm como fundamento maior a
segurança alimentar e a proteção do meio ambiente, contudo há outros atores que,
em que pese não estarem diretamente atingidos por tais programas, merece atenção
especial, notadamente o trabalhador rural.

CONCLUSÃO

Os estudos de políticas públicas de uso de agrotóxicos ignora a saúde do


trabalhador, pois apenas incentiva a sua ampla utilização indiscriminada, sem
qualquer vinculação com outras políticas de proteção a daqueles que laboram nas
lavouras, introduzindo pesticidas e outros controles de pragas para fins meramente
de aumento de produtividade.
Analisando o PNDA - Programa Nacional de Defensivos Agrícolas podemos
verificar que o Brasil andou a passos largos em direção ao uso maciço de utilização
de agrotóxicos, na medida em que o Sistema Nacional de Crédito Rural vinculava à
concessão de créditos agrícolas a quem os utilizasse para a compra de insumos
químicos e agrotóxicos8.
Dentre os princípios mais caros do Direito Ambiental, aplicáveis à proteção
jurídica do meio ambiente do trabalho, destacam-se os da prevenção e precaução,
em especial o último, deve ser observado para fins de evitar que a utilização
desarrazoada de pesticidas na lavoura seja utilizada no trabalho rural, sem a certeza
de que seu uso seja realmente seguro.
Recentemente, em 2010, a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
publicou o “Relatório de Riscos Emergentes e Novos Modelos de Prevenção em um
Mundo do Trabalho em Transformação”, em que se a inovação tecnológica pode
trazer novos riscos laborais e sugere métodos para evitar tais danos à saúde dos
empregados. Este relatório classifica os riscos como químicos, físicos e de tendência,
apontando a nanotecnologia, fatores biológicos e a utilização de produtos químicos
como fatores de risco para a saúde dos empregados9.

METODOLOGIA

6
MELO, Raimundo Simão. Direito Ambiental do Trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano
material, dano moral, dano estético, indenização pela perda de uma chance, prescrição. 2. Ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 41e 42
7
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.
8
VANESSA FRACARO MENCK. INTOXICAÇÃO DO(A) TRABALHADOR(A) RURAL POR AGROTÓXICOS: (sub)notificação
e (in)visibilidade nas políticas públicas. 2016, pag. 64.
9
http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/28abril_10_pt.pdf
489

a) Método de abordagem será o dedutivo, ou seja, analisar a política pública


de acordo com os ensinamentos de Maria Paula Dallari10 e verificar sua efetividade.
Análise do geral ao específico, quando do estudo do Direito Ambiental, buscando o
reconhecimento do meio ambiente do trabalho como um dos biomas daquela área
para trazer ao debate a questão da política pública como meio de proteção ou não da
saúde do empregado.
b) Métodos de procedimento será o monográfico, quando da conceituação
dos vários elementos atinentes a este debate (v.g. políticas públicas, meio ambiente,
habitat laboral, etc.).
c) Método de interpretação Jurídica será utilizado o Exegético-sociológico,
eis que, por exemplo, a Lei não é expressa quando protege o habitat laboral, no
entanto entende-se que o legislador quis sim protegê-lo, como parte integrante de um
todo chamado meio ambiente (artigos 200, VIII c/c 225 da Constituição Federal).
d) Tipos e métodos de pesquisa: Será utilizado o método bibliográfico-
documental, ou seja, para a elaboração deste resumo foi utilizada a produção textual
sobre o tema em especial as obras e artigos publicados, bem como os sítios na
internet. Além disto, também, mostra-se pertinente a pesquisa a documentos, tais
como a legislação pertinente.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/_ConstituiçaoCompilado.htm>.
Acesso em 7 de out. 2017
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas
Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.
BUCCI, Maria Paula. O conceito de políticas públicas em direito. In: BUCCI, Maria
Paula Dallari (org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo:
Editora Saraiva, 2006.
MELO, Raimundo Simão. Direito Ambiental do Trabalho e a saúde do trabalhador:
responsabilidades legais, dano material, dano moral, dano estético, indenização pela
perda de uma chance, prescrição. 2. Ed. São Paulo: LTr, 2006.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. A defesa processual do meio ambiente do trabalho.
Revista LTr, São Paulo: LTr, vol. 63, n. 05, Mai-1999
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 6ª Ed.,
São Paulo: LTr, 2011.
PADILHA, Norma Sueli. Do meio ambiente do trabalho equilibrado – São Paulo: LTr,
2002.
VANESSA FRACARO MENCK. INTOXICAÇÃO DO(A) TRABALHADOR(A) RURAL
POR AGROTÓXICOS: (sub)notificação e (in)visibilidade nas políticas públicas. 2016.

10
BUCCI, Maria Paula. O conceito de políticas públicas em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas Públicas:
reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 2006.
490

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NA FEIRAS URBANAS: O CASO DA FEIRA DO


AÇAÍ EM BELÉM
PROSPERIZATION OF WORK IN URBAN FAIRS: THE CASE OF AÇAÍ FAIR IN
BELÉM

Ana Elizabeth Neirão Reymão


Tiago Miranda Soares

Resumo: O artigo discute as condições de trabalho nas feiras urbanas de Belém,


buscando identificar suas características, a partir do estudo de caso da Feira do Açaí,
no Complexo do Ver-o-Peso, importante ponto de venda de açaí. As feiras possuem
um grande importância para as economias dos grandes centros urbanos amazônicos
e, na economia do açaí, desempenham um papel muito importante por serem um
espaço para a comercialização do fruto, seja ele destinado ao consumo local ou aos
mercados nacional e internacional. A pesquisa tem abordagem qualitativa e, como
procedimento, adotou-se o levantamento bibliográfico, o estudo de caso, além da
observação in locu. Conclui-se que, apesar da importância dos trabalhadores feirante
para a economia do açaí, esse grupo é socialmente marginalizado e invisibilizado na
cadeia produtiva. Seu trabalho ocorre em condições que violam direitos básicos das
pessoas, demandando políticas públicas para superar sua precarização, evidenciada
numerosas violações à saúde e à segurança do trabalhador observadas nesse estudo.
Palavras-Chave: Feiras urbanas. Açaí. Trabalho. Precarização.

Abstract: This paper discusses the working conditions in the urban fairs of Belém,
trying to identify their characteristics, based on the case study of the Açaí Fair, in the
Ver-o-Peso Complex, an important açaí selling point. The fairs are very important for
the economies of the large urban centers of the Amazon and, in the açaí economy,
they play a very important role because they are a space for the commercialization of
the fruit, whether it is destined for local consumption or the national and international
markets. The research has a qualitative approach and, as a procedure, the
bibliographic survey, case study, and in locu observation were adopted. It is concluded
that, in spite of the importance of workers working for the açaí economy, this group is
socially marginalized and invisible in the production chain. Their work occurs in
conditions that violate people's basic rights, demanding public policies to overcome
their precariousness, evidenced numerous violations to the health and safety of the
worker observed in this study.
Keywords: Urban fairs. Acai. Work. Precariousness.

1. INTRODUÇÃO

O açaí é um produto muito importante para a identidade amazônica, de grande


relevância para o consumo e dinâmica da economia local. Consolidou-se com produto
de exportação a partir da década de 1990. Além da internacionalização do fruto, essa
fase veio acompanhada de um aumento de sua importância para a economia do
estado do Pará. Nos centros urbanos amazônicos, como Belém, este se introduz em
diversos pontos de comercialização, como nas feiras. Essas são responsáveis pela
comercialização do fruto no atacado para posterior produção do “suco” a ser
comercializado nos inúmeros pontos de venda desse produto para o consumo local,
bem como atuam como centros de negócios do fruto para que será processado pelas
491

numerosas indústrias locais que comercializam o açaí no mercado nacional e no


exterior.
Dada sua importância para a economia local, o objetivo desse trabalho é
discutir as condições de trabalho nas feiras urbanas de Belém, identificando suas
características, a partir de um estudo no caso da Feira do Açaí, no Complexo do Ver-
o-Peso, principal ponto de venda de açaí atacado in natura e uma das mais antigas
feiras da América Latina.
O problema de pesquisa questiona as condições de trabalho dos feirantes que
comercializam o fruto. Para investigá-lo, o estudo tem abordagem qualitativa e, como
procedimento, tem-se o levantamento bibliográfico, o estudo de caso, além da
observação in locu.

2. AS FEIRAS URBANAS E O TRABALHO NA ECONOMIA DO AÇAÍ

As feiras possuem um grande importância para as economias dos grandes


centros urbanos amazônicos, atuando como captadoras da realidade regional do
mercado, com produtos que provém, em grande parte, de recursos naturais e que se
originam dos conhecimentos de grupos tradicionais. Dentre os vários exemplos que
podem ser citados no mercado do Ver-o-Peso em Belém, tem-se as frutas, os peixes,
as ervas e cheiros, os produtos oriundos do miriti amazônico, como os barquinhos e
casinhas muito comumente usados nas festividades do Círio de Nazaré, além de
diversos outros produtos típicos da realidade regional.
A baixa restrição à entrada de novos produtos no mercado, bem como a
ausência de regulações específicas no que tange à qualidade dos mesmos –
assentada na ideia, por muito já superada, de que ao comprador de artigos disponíveis
no mercado subalterno não se resguarda a prerrogativa de pleitear direitos como
consumidor, facilita a articulação e o trânsito de artigos e agentes de setores que
tangenciam a regulação comercial estrita. Isso ajuda a feiras a alcançarem os mais
variados setores econômicos da economia urbana.
Assim, a estrutura urbana de Belém é marcada por um conjunto de feiras, por
meio das quais se operacionaliza esse cenário. É também nesse contexto que se
encontra uma importante etapa de economia do açaí no contexto urbano: o comércio
de atacado do fruto para posterior varejo para o consumo local. Assim, as feiras são
muito importantes para a economia urbana do açaí.
Essa economia foi impulsionada pela consolidação do fruto como produto de
exportação a partir do final dos anos 1990. Do lado da produção, observou-se a
modificação do método predominantemente extrativista, voltado no atendimento ao
mercado interno, para o cultivo integrado, cujo principal objetivo é atender o mercado
externo (SILVA, 2017).
A palmeira da açaí – regionalmente chamada de açaízero ou jussara –, era
explorada tanto para a colheita própria do fruto, sob as lógicas de mercado
apresentadas, como também para a extração de palmito, que era colhido sem
regulamentações específicas. No entanto, a posterior regulação na forma de corte
deste, somada com a reprodução do cultivo em outras regiões do país, resultaram na
queda de sua colheita, de forma que a plantação da palmeira do açaí passou a ser
realizada com a finalidade exclusiva de colheita do fruto próprio da árvore.
Analisando essa questão, Bentes et al (2017, p. 5) destacam:

A produção do açaí tem uma longa trajetória de vida, na qual o


extrativismo do fruto reinou absoluto, durante muito tempo. Porém, na
segunda metade da década de 1980, a extração do fruto sofreu a
492

concorrência do palmito, cujo interesse do mercado externo e o desejo


dos fornecedores por maiores lucros incentivaram a derrubada de grande
quantidade de palmeiras. O ponto máximo da exploração do palmito
ocorreu em 1989, quando sua quantidade superou à do fruto em 84%.
Porém, na década de 1990, com o crescimento da demanda pelo fruto,
houve uma queda brusca na extração de palmito (Figura 1), fato que
beneficiou, principalmente, aqueles que consomem o vinho do açaí como
alimento básico (BENTES, 2003). Em 1990, houve uma queda de 89% na
quantidade de palmito, que passou a ser inferior à quantidade de fruto e,
em 1998, representou cerca de 20% da quantidade produzida do produto
concorrente. A redução na produção de palmito foi acompanhada pelo
crescimento da demanda da polpa de açaí, desta forma a despeito do
aumento na oferta do fruto, os preços passaram a subir, favorecendo os
produtores.

Ou seja, apesar da queda da produção de palmito, observou-se uma aumento


da atividade de produção envolvendo sua palmeira, graças à intensificação da
demanda de açaí, impulsionada pelo reconhecimento do elevado poder energético e
vitamínico do fruto, além de outras propriedades, que despertou seu interesse dos
mercados nacional e internacional.
Nesse período tem-se o que Silva (2017) chama de “internacionalização do
açaí”, de forma que o produto passou a ser visado não somente no mercado brasileiro
externo ao contexto amazônico, como também em outros países. Assim, em um
primeiro momento observou-se a exportação para o mercado nacional e, em um
segundo momento, a exportação para o mercado internacional, a qual demandou
regulações mais específicas acerca da qualidade do produto.
Porém, não obstante todo o destaque dado à qualificação e mercantilização do
açaí, cumpre destacar seu importante papel na realidade amazônica. Estudos como
os de Rogez (2000), Silva (2017) e Costa (2016), mostram que o consumo e o
processamento do açaí são muito importantes para a região. Nascimento (2000)
lembra que ele é um alimento essencial para o povo amazônico, presente diariamente
na refeição principal de muitas famílias e indispensável na mesa de muitas delas,
acompanhado de camarão, peixe ou charque.
Costa (2016) mostra que a importância cada vez maior do açaí na região pode
ser notada pelo aumento do número de municípios nos quais o fruto representava
acima de 50% do valor bruto da produção rural (VBPR). Em 1995, essa era a realidade
de 5 municípios, tendo se elevado para 12 em 2006. Com base nos dados dos Censos
Agropecuários, o autor mostra que a produção havia mais que dobrado em 32
municípios.
Assim, além de ser produzido em municípios tradicionais como Igarapé-Miri,
Abaetetuba e Cametá (Nordeste Paraense), o extrativismo/manejo/plantio do fruto no
Pará vem crescendo em diversos municípios das mesorregiões Sudeste Paraense e
Sudoeste Paraense, tais como Anapu, Itupiranga, Nova Ipixuna, Novo Progresso,
Pacajá e Parauapebas, como lembram Bentes et al (2017). Destacam os autores que,
em 2015, municípios como Limoeiro do Ajuru, Oeiras do Pará, Inhangapi, Afuá, São
Domingos do Capim e São Miguel do Guamá tiveram forte crescimento na produção.
Expressiva parte dessa produção é de responsabilidade de famílias de
ribeirinhos que trazem o fruto, diariamente, para ser comercializado em Belém, como
na Feira do Açaí, no Porto do Açaí (bairro do Jurunas), no Porto da Palha e no Porto
de Icoaraci.
A Feira do Açaí, no Complexo do Ver-o-Peso, é o principal ponto de vendas de
açaí in natura em Belém, como explica Silva (2017, p. 203-204):
493

a Feira é o local para onde conflui desde os anos 1970 a maior parte da
produção de açaí da região estuarina do Pará e Amapá. No final dos anos
1990, momento anterior à transformação do açaí em artigo de exportação
para o sudeste do Brasil e o mundo, mais de 80% do açaí comercializado
em Belém passava pelo Porto do Açaí. Atualmente o papel de outros
pontos da logística da fruta em Belém cresceu muito. Aproximadamente
60% do açaí comercializado em Belém em 2015 teve como porta de
entrada a Feira do Açaí, enquanto o restante chegou por outros portos:
Porto da Palha, Porto do Açaí e porto de Icoaraci.

Assim, essa feira é muito importante para a logística dessa cadeia de produção
de alcance nacional e internacional. Nas madrugadas, especialmente durante o pico
da produção do fruto (agosto a dezembro) um elevado número de comerciantes,
vendedores e compradores do fruto frequentam o espaço.
O fruto é trazido das regiões produtoras pelos ribeirinhos, agricultores familiares
da Amazônia, em suas pequenas embarcações que, dado seu barulho característico,
são conhecidas pelo apelido de “pô-pô-pô”. São muitos os barcos que atracam na
Feira do Açaí e nela desembarcam milhares e milhares de paneiros (cestos) com o
fruto. No período em que não há produção no ciclo natural da Euterpe Oleácea, o
abastecimento é mantido em parte graças ao “açaí da estrada”, como explica Silva
(2017, p. 205): “o termo é usado pelos feirantes para se referir ao açaí que chega a
Belém por caminhões, por oposição aquele que chega à feira em embarcações,
trazido de regiões ribeirinhas na ilha e arquipélago do Marajó, ilhas de Belém e baixo
Tocantins”.
Assim, seja abastecida pelo “açaí da estrada”, proveniente de áreas de
monocultura, seja por embarcações que trazem o fruto produzido nas áreas de várzea,
cultivado em sistemas agroflorestais por famílias caboclas ribeirinhas, a Feira do Açaí
é um importante centro de comercialização do fruto, na qual opera uma espécie de
“bolsa” na qual ofertantes e demandantes negociam quantidades e definem o seu
preço.
Como explica Silva (2017, p. 208), em geral, “o ambiente é ocupado por
homens adultos, em torno de 40 ou 50 anos, e predomina a população mestiça, de
traços ameríndios marcados”. Entre os personagens que atuam nessa Feira, tem-se
os “carregadores”, os “marreteiros”, os “batedores” e os “exportadores”.
Os trabalhadores conhecidos como “carregadores” são aqueles que se ocupam
da descarga dos barcos ou da arrumação de cargas compradas pelos compradores.
Os “marreteiros” são os comerciantes que ali vendem o fruto. Os “batedores ou
maquineiros” são os comerciantes locais, assim conhecidos em função de sua
ocupação, a despolpa do açaí com o uso de máquinas despolpadoras (conhecidas
como batedeiras), em centenas de pequenas lojas que ocupam os muitos bairros de
Belém, dos endereços mais caros aos mais distantes bairros da periferia. Por fim, os
“exportadores” são os compradores do fruto para as empresas de porte variado, as
quais processam e enviam a polpa congelada para outras localidades, no Brasil e no
exterior.
Chama atenção nesse espaço que o trabalho ocorre em condições muito
difíceis, seja pela exposição às intempéries da natureza, notadamente à chuva e ao
calor que caracterizam o clima amazônico, seja pela falta de segurança pública na
área, falta de espaço, falta de cobertura, e de estruturas seguras (por exemplo, não
há rampas adequadas para o desembarque do fruto dos barquinhos até o chão da
feira) para realizar esse trabalho. Destaca-se, ainda, o peso excessivo suportado
pelos carregadores, bem como as jornadas extenuantes e a total dependência do
494

movimento de compra e venda do açaí para garantir um rendimento apropriado para


seu sustento e de sua família (SILVA, 2017).
Predomina, então, um excessivo e custoso trabalho braçal, desenvolvido por
trabalhadores muitas vezes descalços, sujos, sem nenhum tipo de higiene no
ambiente de trabalho ou equipamento próprio de trabalho que, quando existe, é
bancado pelo próprio trabalhador.
Essa precarização do trabalho reproduz-se em outras feiras da capital
paraense. Estudos como o de Medeiros (2010) mostram que, num universo trinta e
quatro feiras municipais de Belém, há um total de 4984 permissionários; destes, 1434
não possuem cadastro. Nelas predominam situações de informalidade nas quais,
segundo dados do Censo Demográfico 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), os trabalhadores possuem o ensino médio médio incompleto, com
cerca de 22% destes sem qualquer nível de instrução.
Em geral, os feirantes percebem um baixo rendimento que, segundo mostra o
autor, é um dos menores se comparado com os demais setores econômicos da
capital. Assim, se já é baixo o rendimento do trabalhador formalizado do setor de
comércio, nas feiras urbanas isso é ainda mais evidente.
Assim, as feiras urbanas constituem uma espécie de mercado subalterno no
qual também se observa o chamado fenômeno do "transformadamento”. Este se dá,
em boa parte, devido à facilidade de acomodação mercantil nas dependências das
mesmas, originada pela ausência de fiscalização e tendente à informalização, como
explica Medeiros (2010).
O quadro descrito dessas feiras urbanas, em particular da Feira do Açaí,
evidencia uma invisibilidade e marginalização dos trabalhadores dessa importante
etapa da cadeia produtiva do açaí. Em contraste com a tendência à maior exigência
da qualidade do fruto negociado na feira tem-se uma intensificação do trabalho e um
aumento das adversidades a que eles estão expostos na feira, o que também contribui
para a segregação social desses grupos.
Desse modo, a Feira do Açaí é um espaço no qual os feirantes trabalham
enfrentando diversas adversidades, apesar de sua importância para a economia do
açaí e do extenso conhecimento que esses emprestam a essa cadeia produtiva, como
descreve Silva (2017, p. 201):

Os profissionais que trabalham na área, com frequência dotados de saber


extenso tácito sobre as espécies com as quais lidam, se movem em meio
a um universo de improviso (...) Tudo se passa como se não houvesse
algo a fazer em termos da redução do esforço humano no deslocamento
de volumes, da dificuldade do manejo do pescado e do gelo, algo que
pudesse ser alvo de qualquer adensamento ou sofisticação técnica,
tecnológica ou logística (...) segue o cotidiano das dezenas de
trabalhadores manuais do lugar, aparentemente sem se incomodar com o
visível (invisível?) desajuste entre universo técnico e os uso que dele é
feito no trabalho.

Nesse contexto, emerge a necessidade de políticas públicas para sobrepujar


os problemas relativos à inobservância de direitos humanos, direitos de cidadania,
direitos sociais e trabalhistas dos grupos que atuam na economia do açaí. É
inarredável que a visualização de tais conjunções alimentem a iniciativa estatal de
correção das mesmas, a fim de que se possa garantir a tais indivíduos os seus direitos
básicos como cidadãos em um Estado Democrático de Direito.
Faz-se necessário garantir a estes trabalhadores uma condição mínima de
dignidade humana, aplicando-se esta ao ambiente de trabalho desse grupo
495

socialmente marginalizado. A ausência de políticas públicas reflete o pouco


reconhecimento da importância que o conhecimento popular tácito traz à prática
cotidiana da economia do açaí. Desde o cultivo até a comercialização esse
conhecimento é imprescindível nessa cadeia produtiva.
As populações ribeirinhas possuem um conhecimento sofisticado da espécie,
do regime de águas dos rios amazônicos e dos ciclos de reprodução da Euterpe
Oleracea, sendo muito importantes para o cultivo do fruto nas áreas de várzea, de
onde vem a maior parte do açaí produzido no Pará, maior produtor mundial de açaí.
Suas técnicas tradicionais de convívio com a floresta alagada das áreas de várzea,
onde a palmeira do fruto é abundante, foram fundamentais para a elaboração dos
fundamentos técnicos e naturais para a essa economia:

Manejando bosques nativos, fazendo o plantio de novas áreas e


combinando as duas estratégias, conseguiram não apenas a
intensificação da produção por hectare, mas a adaptação dos açaizais,
verdadeiras áreas de agroflorestal de elevada produtividade articular o
conhecimento popular e tácito a alguma técnica de produção industrial
(SILVA, 2017, p. 219).

Na economia urbana, a importância desse conhecimento popular e tácito foi


fundamental para o desenvolvimento da técnica de produção, contribuindo não
apenas para a invenção, mas também para o aperfeiçoamento das máquinas
despolpadeiras usadas tanto pelos “batedores” dos diversos pontos de venda de açaí
em Belém e outros municípios paraenses, mas também para a produção industrial da
polpa destinada aos mercados nacional e internacional.
Esse conhecimento também é essencial para o cumprimento dos “padrões de
qualidade” preconizados “gosto exigente” da população paraense para o consumo do
“suco do açaí”. Assim, a atuação dos trabalhadores da Feira do Açaí é fundamental
para selecionar e precificar o fruto de melhor qualidade a ser destinado para o exigente
comércio local com relação à qualidade da polpa, bem como para definir os padrões
daquele que será vendido para os “exportadores”, como se depreende da leitura de
Silva (2017), da observação in locu, bem como das entrevistas com batedores locais.
Porém, apesar de toda a aclamação do açaí como produto internacional e de
sua importância para o consumo local, as populações tradicionais da Amazônia e os
feirantes (muitos deles representantes dessas comunidades tradicionais) tendem a
ser socialmente marginalizadas e invisibilizadas. Essa invisibilidade pode estar
associada à não valorização da contribuição desse conhecimento tradicional ao
crescimento econômico:

A invisibilidade das sociedades cabocas amazônicas pode também , em


parte, ser explicada pelos seus modos de vida, diversos e não
especializados (...) muitos recursos necessários a reprodução do
campesinato não são valorados tradicionalmente pelos economistas (...)
colocando a economia cabocla numa posição completamente marginal ao
“desenvolvimento econômico" tecnocrata da capital (ADAMS et al., 2006,
p. 17).

Em consequência, tem-se a inércia e impertubação, por parte do Estado, que


não se compromete a promover a efetiva inclusão social destes grupos. Assim, não
lhes são assegurados direitos básicos em uma ordem democrática, tais como: direitos
humanos, direitos de cidadania, direitos sociais, e até mesmo, como se destaca nesse
estudo, de seus direitos trabalhistas.
496

3. CONCLUSÃO

Apesar da importância dos trabalhadores da economia do açaí para a


construção de uma identidade cultural regional, dado seu conhecimento sobre o fruto
e o processo produtivo, esse grupo é socialmente marginalizado e invisibilizado na
cadeia produtiva.
A pesquisa mostrou que na Feira do Açaí, principal ponto de comercialização
do fruto e caso investigado nesse estudo, o trabalho ocorre em condições que violam
direitos básicos das pessoas. A falta de infraestrutura adequada para desempenhar
sua atividade, os elevados riscos de acidentes, o peso suportado pelos trabalhadores
que carregam o fruto das embarcações para o chão da feira e para os veículos dos
compradores, as intensas jornadas a que são submetidos e o baixo rendimento
auferido evidenciam violações à saúde e à segurança do trabalhador.
Esse quadro se repete em outras feiras urbanas de Belém e é ignorado pelas
autoridades públicas que administram esses espaços, privando esses trabalhadores
de um ambiente de trabalho que os dignifique como seres humanos. As graves
violações aos preceitos trabalhistas de promoção de ambientes de trabalho saudáveis
constatadas mostram que os feirantes se encontram sujeitos à segregação social. Em
geral, são trabalhadores de baixa instrução, baixa renda e alto índice de informalidade,
que demandam a atuação do Estado, por meio de políticas públicas, para a mudança
do quadro apresentado.
Mandida essa precarização do trabalho, a economia do açaí reproduzirá o
desigual modelo de ocupação da Amazônia, denominado de lógica de commodities
por Loureiro (2009). Esse modelo, tal como aconteceu com a produção de borracha e
de minérios, é caracterizado pela grande concentração de renda, superexploração do
trabalho humano e enorme exaustão da natureza, com a expansão dos negócios
ligados ao mercado global pouco internalizando os benefícios da atividade.

4. REFERÊNCIAS

ADAMS, Cristina; MURRIETA, Rui; NEVES, Walter A. Sociedades caboclas


amazônicas: modernidade e invisibilidade. Annablume, 2006.
BENTES, E. S. Segurança alimentar no estado do Pará: situação atual e
perspectivas, Belém. UNAMA, 2003 (Relatório de pesquisa, 17).
BENTES, Elisabeth dos Santos; HOMMA, Alfredo Kingo Oyama; SANTOS, César
Augusto Nunes dos. Exportações de Polpa de Açaí do Estado do Pará: Situação
Atual e Perspectivas. In: Anais CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE
ECONOMIA, ADMINISTRAÇÂO E SOCIOLOGIA RURAL, 55, Santa Maria, RS, 2017.
COSTA, Francisco de A. O açaí do Grão-Pará: Arranjos Produtivos e Economia
Local - Estruturação e Dinâmica (1995-2011). Tese Professor Titular. Núcleo de
Altos Estudos da Amazônia – NAEA, Belém, PA, 2016.
MEDEIROS, J.F.S. As feiras livres em Belém (PA): dimensão geográfica e
existência cotidiana. Dissertação de Mestrado, UFPA, Belém, 2010.
NASCIMENTO, Jucirene M. A fotossíntese do lucro. Papers do NAEA nº 149
(online), 2000. Disponível em
www.naea.ufpa.br/naea/novosite/index.php?action=Publicacao.arquivo& id=442.
Acesso em 28.08.2017.
ROGEZ, Hervé. Preparo, composição e melhoramento da conservação. Belém:
Edufpa, 2000.
497

SILVA. Harley. Socialização da natureza e alternativas de desenvolvimento na


Amazônia brasileira. 266f. Tese (Doutorado em Economia), Universidade Federal de
Minas Gerais, CEDEPLAR, Belo Horizonte, 2017.
498

Grupo de trabalho:

DIREITO EMPRESARIAL,
DIREITO DO CONSUMIDOR E
NOVAS TECNOLOGIAS
Trabalhos publicados:

A FAMIGERADA PRÁTICA DE “FAKE NEWS” NAS ELEIÇÕES E SUAS


CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS

A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS BRASILEIRA: A PRIVACIDADE E A


PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO.

A POSSIBILIDADE DE PEDIDO INDENIZATÓRIO PELA SOCIEDADE EM FACE DO


SÓCIO QUE SE RETIRA IMOTIVADAMENTE

A REVOLUÇÃO DIGITAL NO AGRONEGÓCIO: O FUTURO DO


ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL RURAL (VIRTUAL?)

GLIFOSATO (IN) SEGURO PARA A SAÚDE HUMANA: UM ASSUNTO


INTERNACIONAL.

INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS DA MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS E OS


TRATAMENTOS MÉDICOS ISENTOS DE SANGUE: MEDIDAS CIENTÍFICAS PARA
REDUZIR A JUDICIALIZAÇÃO E GARANTIR O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE.

LEI 12.441/2011: O NOVO PARADIGMA DA EIRELI NA REALIDADE EMPRESARIAL

MARCAS DO PASSADO: O CONFRONTO ENTRE A DISPONIBILIDADE E O


APROVEITAMENTO PARASITÁRIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

PERSPECTIVAS SOBRE O USO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO PROCESSO


DE DECISÃO JUDICIAL
499

A FAMIGERADA PRÁTICA DE “FAKE NEWS” NAS ELEIÇÕES E SUAS


CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS
THE INFAMOUS PRACTICE OF FAKE NEWS IN THE ELECTIONS AND ITS
LEGAL CONSEQUENCES

Tharynne Marcela Barbosa Calixto


Vivian Gerstler Zalcman

Resumo: Considerando-se o desenvolvimento tecnológico e a ausência de legislação


específica para punir quem cria ou divulga as chamadas “fakenews” ou notícias falsas,
o presente trabalho visa exprimir as consequências judiciais causadas na esfera
penal, cível e eleitoral pelas disseminações dessas notícias, com foco especial no
período eleitoral de 2018.
Palavras-Chave: “Fake News”, Consequências Jurídicas, Período Eleitoral.

Abstract: Considering the technological development and the lack of legislation to


punish those who create or disseminate the Fake News, this paper aims to express
the judicial consequences caused in the criminal, civil and electoral sphere by the
dissemination of Fake News, focusing on the electoral period of 2018 .
Keywords: Fake News, Legal Consequences, Election Period.

1. INTRODUÇÃO

Fakenews significa notícias falsas, que são aquelas propagadas com o intuito
de enganar o leitor, inventando, distorcendo ou omitindo a verdade. A divulgação de
falsas notícias sempre existiu na esfera social, ocorre que, com a chegada da internet
e das redes sociais, a criação e o compartilhamento tornaram-se mais fáceis e com
maior alcance de público.
A terminologia fakenewsfoi considerada a palavra do ano de 2017 pelo
dicionário Collins, se popularizando durante as campanhas presidenciais de 2016 dos
Estados Unidas da América, onde então, o atual presidente Donald Trump, utilizou-se
da expressão para definir as notícias inventadas e propagadas pela mídia norte-
americana a seu respeito.
Acontece que, no Brasil, durante o período eleitoral, a propagação de notícias
falsas tornou-se viral e a principal ferramenta utilizada para denegrir o lado oposto,
tornando-se um empecilho a estabilidade política e democrática. Mas tal prática de
disseminar mentiras pode gerar consequências jurídicas, sejam elas nas esferas
penal, cível e eleitoral.

2. OBJETIVO

Compreender a influência negativa à segurança política e à democrática


causada pela disseminação de fakenews durante o período eleitoral e suas
consequências jurídicas nas diferentes esferas do Direito.

3. DESENVOLVIMENTO
A mentira pode ser um fator considerável na formação da intenção de voto do
eleitor, pois, ainda que as convicções políticas sejam frutos de experiências sociais e
500

comunicacionais ao longo do tempo, uma mentira, se repetida em diversas vezes e


por distintas fontes, pode se tornar uma verdade para aquele eleitor. 1
A propagação de Fake News acarreta um risco a democracia brasileira, usada
como arma para atacar o lado oposto, a Procuradora-Geral da república Rachel
Dogdeadvertiu que o foco das campanhas política deve ser o eleitor.
O eleitor é o ator principal. Ele tudo pode, mas nem tudo convém.
As fakenews não convêm ao eleitor nem à democracia." A procurado ainda ressaltou
que a liberdade de expressão deve ser garantida, mas abusos não devem ocorrer. “É
preciso também que não haja abuso, não haja ilícito, no modo como as pessoas se
expressam, no modo como elas convencem os vizinhos e eleitores2.
Com a forte influência da mídia na corrida eleitoral e a falta de legislação
específica para punir quem cria ou propaga tais notícias, o TSE lançou uma plataforma
para esclarecer o eleitorado acerca da veracidade das notícias, como prevenção para
o leitor não cair nas fakenews.
Como o Brasil ainda não tem uma lei específica foram elaborados projetos de
leis, como por exemplo a PL 6812/2017 que propõe a criminalização da divulgação ou
compartilhamento de informação falsa ou incompleta na rede mundial de
computadores e dá outras providências.
Em seu discurso de posse a presidência do TSE em 2018, o Ministro Luiz Fux
declarou:

“A atuação proativa do Tribunal Superior Eleitoral estará alicerçada em


pilares fundamentais: aplicar sem hesitação a Lei da Ficha Limpa nas
eleições de 2018 e combater procedimentos artificiais das Fake News”. 3

A remoção de conteúdo está disposta na resolução 23.551/2017 do TSE em


seu Art 22, § 1° e §2°, que permite a manifestação do pensamento do eleitor desde
que não ofenda a honra de terceiros ou divulgação de fatos inverídicos. O art. 33, §
1º da mesma Resolução, prescreve a possibilidade de remoção de qualquer conteúdo
que viole a legislação eleitoral ou ofenda direitos de pessoas que participem do
processo eleitoral, mediante decisão judicial fundamentada.
Recentemente, vários candidatos à Presidência da República do Brasil, estão
reservando em suas mídias e páginas oficiais um espaço para rebater e desmentir as
notícias inverídicas que podem interferir na opinião dos eleitores.
O Ministro Carlos Horbach, do Tribunal Superior Eleitoral, determinou que o
Facebook remova, no prazo de 48 horas, conteúdo falso que associa o candidato
Fernando Haddad (PT) ao planejamento de estratégia de desinformação contra seu
adversário na disputa ao cargo de presidente da República.
No entanto, aquele que sofrer com o compartilhamento de tais notícias e para
evitar danos maiores decorrentes de maiores divulgações e alcance, pode-se exigir
uma autorização judicial para solicitar a retirada do conteúdo falso da internet. Para
concessão de tal autorização, a ordem judicial deverá de acordo com a lei que
regulariza o uso da internet no Brasil de n° 12965/2014, em seu art. 19, §1°. Deverá
“conter identificação clara e precisa do conteúdo apontado como infringente, que
permita a localização inequívoca do material”.
Além da retirada, a propagação de invenções, pode gerar consequências tanto
na esfera penal quanto na esfera cível, tramitando na seara criminal como crimes de

1
Disponível em https://www.conpedi.org.br/publicacoes/6rie284y/8klb3x80/Mxx9l8G18bRkHtLz.pdf - acesso em 19.10.2018
2
http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-10/raquel-dogde-diz-que-fake-news-nao-convem-democracia-nem-ao-
eleitor - acesso em 18.10.2018
3
https://www.conjur.com.br/dl/discurso-fux-posse-tse.pdf- acesso em 19.10.2018
501

calúnia, difamação e/ou injúria.O crime de Calúnia está previsto no art 138 do Código
Penal:

Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como


crime: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

A Difamação é imputar a alguém fato ofensivo a sua reputação.

Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:


Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. Exceção da verdade.
Parágrafo único - A exceção da verdade somente se admite se o ofendido
é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções.

O crime de Injúria é classificado como a ofensa dirigida à dignidade ou a decoro


de alguém.

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena


– detenção, de um a seis meses, ou multa.

Já na esfera cível, aquele que prejudicado com a “Fake News”, pode ingressar
no judiciário com ação de indenização por danos morais. Para o doutrinador Carlos
Roberto Gonçalves o dano moral é:

“Dano moral é o que atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu
patrimônio. É lesão de bem que integra os direitos da personalidade, como
a honra, a dignidade, intimidade, a imagem, o bom nome, etc., como se
infere dos art. 1º, III, e 5º, V e X, da Constituição Federal, e que acarreta
ao lesado dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação” (GONCALVES,
2009, p.359).

A Professora Maria Helena Diniz, classifica o dano moral como:"Dano moral


vem a ser a lesão de interesses não patrimoniais de pessoa física ou jurídica,
provocada pelo fato lesivo" (Curso de Direito Civil Brasileiro, Editora Saraiva, SP,
1998, p. 81). Ou seja, a disseminação de notificas falsas pode gerar danos que afetam
a honra e dignidade.

4. CONCLUSÃO

Dado o exposto, conclui-se que a propagação de Fake News, acarreta


consequências nas diferentes atmosferas jurídicas. Em desígnio a seara eleitoral, a
disseminação de notícias falsas fomenta um empecilho a estabilidade jurídica.

REFERÊNCIAS

http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Outubro/fake-news-tse-lanca-
pagina-para-esclarecer-eleitores-sobre-a-verdade
https://www.conjur.com.br/2018-mar-11/opiniao-fake-news-procedimentos-remocao-
conteudo
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/fake-news-sao-risco-a-democracia-
dizem-especialistas.shtml
http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-10/raquel-dogde-diz-que-fake-
news-nao-convem-democracia-nem-ao-eleitor
502

http://www.tse.jus.br/legislacao-tse/res/2017/RES235512017.html
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41843695
http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Outubro/ministro-do-tse-determina-
retirada-de-fake-news-contra-candidato-fernando-haddad
GONCALVES, 2009, p.359
Curso de Direito Civil Brasileiro, Editora Saraiva, SP, 1998, p. 81
503

A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS BRASILEIRA: A PRIVACIDADE E A


PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO.
THE BRAZILIAN GENERAL LAW FOR DATA PROTECTION: PRIVACY AND DATA
PROTECTION IN THE INFORMATION SOCIETY.

Mariana Amaral Carvalho


Lucas Gonçalves da Silva

Resumo: Com o avanço tecnológico nas comunicações e a proliferação de dados no


ambiente digital, o direito à privacidade passa por constantes ajustes evolutivos para
acompanhar o contexto em que se vive. Com isso, novas legislações estão
aparecendo para a proteção e o tratamento de dados pessoais, como a Nova Lei Geral
de Proteção de Dados brasileira. O presente trabalho discorre sobre a proteção da
privacidade na forma de proteção de dados pessoais, no atual contexto da sociedade
da informação. Para isso, busca-se fazer uma análise da evolução da proteção da
privacidade e de dados pessoais, chegando na recente legislação brasileira. Foi
utilizado o método hipotético-dedutivo com subsídio da pesquisa bibliográfica,
documental e o método dialético.
Palavras-chave: Privacidade. Dados Pessoais. Sociedade da Informação.

Abstract: With the technological advance in communications and the proliferation of


data in the digital environment, the right to privacy goes through constant evolutionary
adjustments to follow the context of contemporary way of living. As a result, new
legislation is emerging for the protection and processing of personal data, such as the
New Brazilian General Law for Data Protection. This paper analyzes the protection of
privacy in terms of protection of personal data, in the current context of the information
society. In order to do this, the objective of this paper is to analyze through the evolution
of the protection of privacy and personal data, reaching actual Brazilian legislation. The
hypothetical-deductive method was used, with a literature and documentary review,
and the dialectical method subsidy.
Keywords: Privacy. Personal Data. Information Society.

1 INTRODUÇÃO

Com o avanço tecnológico nas comunicações e a proliferação de dados no


ambiente digital, o direito à privacidade passa por constantes ajustes evolutivos para
acompanhar o contexto em que se vive. Com isso, novas legislações estão
aparecendo para a proteção e o tratamento de dados pessoais, como a Lei nº
13.709/2018, conhecida como nova Lei Geral de Proteção de Dados brasileira –
LGPD.
O presente artigo se propõe a analisar proteção da privacidade na forma de
proteção de dados pessoais, no atual contexto da sociedade da informação.
Questiona-se, pois, se a privacidade será efetivamente protegida na sociedade
informacional com o advento da LGPD. Para isso, inicialmente, realizar-se-á uma
abordagem geral da privacidade e a necessidade da sua proteção na sociedade da
informação. Num segunda momento, será feita uma análise da evolução da proteção
da privacidade e de dados pessoais, chegando na Lei nº 13.709/2018, fazendo uma
reflexão acerca da efetiva proteção dos dados pessoais e o papel da privacidade na
sociedade da informação.
504

Para tanto, foi utilizado o método hipotético-dedutivo com subsídio da pesquisa


bibliográfica, documental e o método dialético

2 A NECESSIDADE DE PROTEÇÃO DA PRIVACIDADE NO ATUAL CONTEXTO DA


SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

A privacidade, assim como os diversos sentidos que ela carrega, como será
visto adiante, não é um delírio recente. A preocupação dada a ela vem dos
primórdios1, passando por diferentes tipos de sociedades, mesmo sem tutela jurídica.
O direito voltou seus olhos para a privacidade “num período em que mudou a
percepção de pessoa humana pelo ordenamento, do qual ela passou a ocupar um
papel central e ao qual se seguiu a juridificação de vários aspectos do seu cotidiano”
(DONEDA, 2006, p. 8).
Muito além da necessidade da solidão, a direito à privacidade começou a ter
uma mudança no cenário “motivado, sobretudo, pelo crescimento da circulação de
informações, consequência do desenvolvimento exponencial da tecnologia de coleta
e sensoriamento” (CANCELIER, 2017, p. 219).
A privacidade, observada neste trabalho como um conceito amplo que se
desdobra em imagem, honra, intimidade e vida privada – direitos da personalidade,
protege as pessoas na sua individualidade e resguarda o direito de estar só, a
faculdade de se isolar, e, nos tempos da sociedade informacional, adiciona-se a
“possibilidade de cada um controlar o uso das informações que lhes dizem respeito”
(RODOTÀ, 2008, p. 24).
A evolução conceitual dos direitos da personalidade foi observada através da
construção de uma sociedade cada vez mais informatizada e comprometida com a
dignidade da pessoa humana. Com isso, os direitos da personalidade são
problematizados pela dinamização das relações enfrentadas pelos indivíduos na
sociedade da informação, na qual a velocidade do fluxo de informações sobre as
pessoas, hodiernamente, eleva a importância da proteção de tais direitos.
No atual contexto do superinformacionismo, observa-se um verdadeiro
aglomerado de informações sobre tudo e todos (RULLI JÚNIOR; RULLI NETO, 2012).
Vive-se em uma era marcada pela complexidade das relações sociais e pela evolução
dos meios tecnológicos, onde as informações podem ser compartilhadas de maneira
instantânea.
O mundo está em um processo de transformação estrutural – multidimensional
– associado ao aparecimento de um novo paradigma tecnológico na comunicação e
na informação. As necessidades, valores e interesses da sociedade dão formas às
tecnologias atuais, sendo as tecnologias de comunicação e informação
particularmente sensíveis aos efeitos do seu uso. (CASTELLS; CARDOSO, 2005)
O ciberespaço, também conhecido como virtualização da comunicação, é o
espaço aberto pela interconexão mundial de computadores e suas memórias (LÉVY,
1999). Uma simples busca na internet sobre uma pessoa, pode informar mais sobre
ela do que ela mesma poderia informar.
Esse transporte de informações de maneira rápida e eficiente é um estágio
evolutivo importante para a atual sociedade, mas ao mesmo tempo gera de maneira
negativa uma exacerbada difusão de informações que compromete em muitas vezes
a vida privada das pessoas.
Com efeito, observa Eduardo Bittar (2015, p. 279):

1
Neste sentido, Doneda (2000, p. 113): “Diversas menções à privacidade podem ser encontradas na Bíblia, em textos gregos
clássicos e mesmo da China antiga, enfocando basicamente o direito, ou então a necessidade da solidão.”
505

Os avanços da tecnologia são surpreendentes, e são capazes de criar um


novo universo de relações, especialmente as consideradas a partir do
referencial da sociedade digital ou da informação. Acentuadamente, cada
dia mais, a pessoa humana se encontra na dependência dos meios de
eletrônicos, onde o trânsito de suas informações pessoais (autorizadas e
não autorizadas) a expõe em constante risco.

Nesse panorama, com a difusão excessiva de informações, através do


desenvolvimento dos meios de comunicação, especialmente a internet, os dados
pessoais aparecem como uma verdadeira mercadoria, sendo inclusive tratados como
o novo petróleo2 (GOMES, 2017). E, “o discurso sobre a privacidade cada vez mais
concentra-se em questões relacionadas a dados pessoais e, por tanto, informação”
(DONEDA, 2006, p. 151).
Importante pontuar o que seria “informação” e o que seria “dado”. Para Doneda
(2006, p. 152), dado apresenta uma “conotação um pouco mais primitiva e
fragmentada [...] como uma informação em estado potencial, antes de ser transmitida”,
ao passo que informação seria “algo além da representação contida no dado,
chegando ao limar da cognição, e mesmo nos efeitos que esta pode apresentar para
o seu receptor”. Entretanto, a doutrina por vezes não distingue os termos em questão,
inclusive, na legislação pátria – Lei de Acesso à Informação – os termos se
confundem.
Por sua vez, o dado pessoal seria “uma informação que permite identificar uma
pessoa de maneira direta” (LIMBERGER, 2007, p. 61). Tal dado traria informações,
nas quais as pessoas seriam reconhecidas e identificadas. E, dentre as espécies de
dado pessoal, estão os dados sensíveis que são aqueles dados pessoais que
estariam mais diretamente vinculados ao núcleo da personalidade e dignidade
humana, como a origem racial ou étnica, opiniões políticas e religiosas, opção sexual,
etc. (CHEHAB, 2015)
Nesta toada, toda e qualquer movimentação que se faz no meio ambiente
digital está sendo registrada, fazendo com que a quantidade de dados que circula no
mundo aumente vertiginosamente a cada segundo. E tais dados armazenados servem
para inúmeras finalidades. Pesquisas feitas, mensagens postadas e simples curtidas
deixam rastros que ficam disponíveis para utilidades que melhoram a vida na
sociedade da informação, mas que também podem ferir a privacidade dos indivíduos.
Segundo Pierre Lévy (1999, p. 92), “cabe apenas a nós continuar a alimentar
essa diversidade e exercer nossa curiosidade para não deixar dormir, enterrada no
fundo do oceano informacional, as pérolas de saber e de prazer – diferentes para cada
um de nós – que esse oceano contém”.
Ou seja, as informações são necessárias para o pleno desenvolvimento da
sociedade, entretanto, o oceano informacional traz conteúdos que atingem,
diferentemente, o íntimo de cada um dos indivíduos.
Importante salientar que a ligação entre a dignidade humana e personalidade
é indissolúvel, pois somente com a valorização da pessoa como um ser dotado de
dignidade que surgiram os direitos da personalidade. Tem-se a conexão entre a
dignidade da pessoa humana e a proteção da vida privada, honra, imagem, entre
outros, ou seja, entre a dignidade e proteção da personalidade em suas múltiplas
dimensões (SARLET, 2001).

2
“Data is the new oil”. Expressão trazida por Shivon Zilis, sócio de uma empresa de capital de risco chamada Bloomberg Beta,
pelo aumento do valor dos dados e seu tratamento como mercadoria por governos e empresas. (GOMES, 2017)
506

Percebe-se que os direitos da personalidade estão sofrendo uma grande perda


com o acúmulo de informações fornecidas na moderna sociedade de massas. As
pessoas cada vez mais estão com as suas privacidades atentadas sem propósito
algum, confrontadas com outros direitos, como o acesso à informação.
A internet, com o pretexto de informar sobre tudo e todos, por vezes invade a
vida privada dos indivíduos. Tal ambiente armazena e divulga informações que podem
causar danos à dignidade das pessoas envolvidas, pois dados ficam retratados sem
definição de tempo e com um amplo alcance de acesso (SCHREIBER, 2013).
Desta forma, a partir de uma realidade social ancorada na informação, com um
acúmulo extremo de dados pessoais, o direito à privacidade busca encontrar o seu
papel e merece um olhar mais atento.
Diante desse contexto foi aprovada a Lei nº 12.965/2014, conhecida como
Marco Civil da Internet, que regula e estabelece ditames para o uso da internet no
Brasil. A proteção à privacidade e aos dados pessoais está expressamente elencada,
assim como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sob pena de indenização
caso ocorra violação3.
Para Paesani (2014), o Marco Civil da Internet foi uma conquista para a inclusão
digital do país, que contou com a participação social, instituindo regras que
contribuíram para a proteção da privacidade na rede mundial de computadores,
porém, não tratou com o merecido cuidado a questão da proteção de dados pessoais
e muito menos tutelou seu tratamento, fazendo com que o ordenamento jurídico
brasileiro necessitasse de uma nova legislação que disciplinasse de maneira mais
abrangente o tema. Surgiu então, depois de diversos projetos de lei – a nova Lei Geral
de Proteção de Dados Pessoais, a Lei 13.709/2018.

3 A EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DA PRIVACIDADE E DOS DADOS PESSOAIS

A proteção à privacidade em sua dimensão de proteção de dados pessoais no


atual contexto da sociedade da informação, necessita de uma majoração pela
velocidade que o ciberespaço age. Com isso, tal proteção, ainda não suficientemente
explorada na seara jurídica, talvez por não conseguir acompanhar os passos rápidos
da seara virtual, começa a aparecer através de legislações específicas ancoradas na
necessidade da manutenção da privacidade lastreada pela dignidade da pessoa
humana.
Nessa esteira, Paesani (2014, p. 2) afirma que, “mesmo sendo conservador, o
Direito não pode ser omisso e deve procurar fazer justiça, superando-se e adaptando-
se à natureza livre da Internet, numa tentativa de preservar os direitos dos cidadãos,
sua privacidade e integridade”.
A falta de fronteiras e a excessiva transmissão de dados que a internet
construiu, geraram integrações econômicas e sociais entre nações, mas também
ausência de parâmetros para a proteção de dados pessoais e seu tratamento,
afetando diretamente valores como a privacidade (MIRANDA, 2018).
O direito à privacidade teve como principal impulsionador a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, em 1948. Porém, a proteção internacional do direito
à privacidade apareceu primeiro, nesse mesmo ano, na Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem. Percebe-se, pois, que o ano de 1948 tornou-se o marco
inicial da proteção internacional do direito à privacidade, inaugurando uma série
tratamentos que se seguem.

3
Lei 12.965/2014: Art. 3º e Art. 7º. (BRASIL, 2014)
507

Em 1950, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades


Fundamentais também declarou a proteção ao direito à intimidade e a vida privada.
Algum tempo depois, em 1966, surge o Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos. Ato contínuo, em 1969, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
conhecida como Pacto San Jose da Costa Rica, trouxe a proteção da vida privada em
um artigo destinado a tratar da proteção da honra e da dignidade.
Em 1981, a Convenção 108 do Conselho da Europa reconheceu que
privacidade e proteção de dados são fundamentais para a manutenção das liberdades
e direitos humanos em face às tecnologias da informação. Tal convenção foi o primeiro
instrumento internacional juridicamente vinculativo para a proteção de dados. Agora,
em 2018, ela foi atualizada abordando os desafios da privacidade resultantes do uso
de novas tecnologias de informação e comunicação.
A Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, promulgada em 2000,
reconheceu o respeito pela vida privada e familiar e a proteção de dados pessoais,
em seus artigos 7º e 8º. Tal carta tratou a proteção à vida privada e familiar embasada
numa “proteção estática e negativa”, caracterizada pela objeção na “interferência na
vida privada e familiar de uma pessoa” (RODOTÀ, 2008, p. 17). Já a proteção de
dados pessoais seria mais dinâmica e positiva, “que segue o dado em todos os seus
movimentos”, regrando os instrumentos de processamento de dados e legitimando os
atores necessários a fim de se cumprir as medidas de proteção (RODOTÀ, 2008, p.
17).
Não restam dúvidas sobre a importância da privacidade e do consequente
reconhecimento da sua proteção. A sociedade evolui e a proteção dos direitos
humanos deve acompanhar essa evolução, de maneira que a tecnologia não intervira
na efetivação de tais direitos. O tratamento internacional exposto abriga a amplitude
que a privacidade foi ganhando com o passar dos anos, e, a partir da década de 80,
a proteção das pessoas com respeito ao tratamento autorizado dos dados de caráter
pessoal começa a aparecer.
Ademais, importante salientar, que os países aos assinarem os tratados de
Direitos Humanos devem incorporá-los e efetivá-los em seus ordenamentos jurídicos,
inspirando, inclusive tratamentos e legislações internas sobre a temática, visto o
avanço da tecnologia e a falta de tratamento aos dados pessoais no ciberespaço.
Com isso, na evolução da proteção de dados pessoais observam-se, dentre
outros, o Novo Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia – GDPR
que inspirou a nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira.

4 A NOVA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS BRASILEIRA – LEI


13.709/2018 E A EFETIVAÇÃO DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS

Decorrente do avanço tecnológico e do rápido desenvolvimento do ciberespaço


novos desafios surgiram, e, como visto, entre eles a questão que envolve os dados
pessoais. Informações são repassadas mundialmente numa escala sem precedentes,
e empresas e autoridades públicas as usam com o intuito de atingir seus objetivos.
Ou seja, os dados pessoais estão, pois, transitando de maneira indiscriminada no
mundo, fazendo com que a privacidade dos indivíduos fosse questionada.
O Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia – RGPD, mais
conhecido pela abreviatura em inglês GDPR (General Data Protection Regulation), é
uma nova lei europeia que entrou em vigor no dia 25 de maio de 2018, mais de dois
anos depois de ter sido criada. Tal lei substitui a antiga Diretiva de Proteção de Dados
de 1995– Data Protection Directive – e serve para dar aos usuários maior controle
508

sobre os seus dados, reforçando a proteção e reorganizando a maneira com que as


empresas lidam com eles, além de harmonizar todas as leis nacionais de dados
privados da Europa.
De 1995 para os dias atuais ocorreu uma enorme evolução nos meios de
comunicação, principalmente no mundo digital. Necessário se fez, na Europa, apesar
das diretivas posteriores, uma lei que protegesse os dados de uma ampla maneira,
passando por alguns pilares, de modo que a privacidade dos cidadãos fosse
preservada.
Com isso, os ditames expressos no GDPR, inspirou projetos de lei no âmbito
nacional para a proteção de dados, como a Nova Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais brasileira, a Lei 13.709/2018, decorrente do Projeto de Lei da Câmara nº.
53/2018, aprovado pelo Senado em 10 de julho de 2018 e sancionado em 14 de
agosto de 2018, fazendo com que o Brasil passasse a fazer parte dos países que
contam com uma legislação específica para proteção de dados dos seus cidadãos.
A LGPD estabelece uma série de regras que empresas e outras organizações
atuantes no Brasil terão que seguir para permitir que o cidadão tenha mais controle
sobre o tratamento que é dado às suas informações pessoais. Ademais, haverá um
prazo de 18 meses para que se adequem à lei, ou seja, no começo de 2020 a lei
entrará em vigor.
Dado pessoal4, para a lei, é conceituado como qualquer informação relacionada
a uma pessoa que, isoladamente ou em conjunto com outros detalhes, permita
identificá-la, como também traz uma noção do que seriam os dados sensíveis 5 –
espécie de dado pessoal que terá um uso mais restrito – que são informações sobre
crenças religiosas, posicionamentos políticos, características físicas, condições de
saúde, vida sexual, etc.
No mesmo sentido do GDPR, a LGPD trouxe a necessidade do consentimento6
do titular para a coleta e tratamento de seus dados, como também a facilidade e
clareza nas suas políticas de privacidade, e qualquer mudança deverá ter o
consentimento do titular novamente. De igual maneira elenca a possibilidade de
revogação, exclusão, acesso, complementação, correção e portabilidade de dados,
informação de vazamento e punição em casa de descumprimento.
O objetivo da lei é proteger o cidadão do uso abusivo e indiscriminado dos seus
dados. Porém, assim como o GDPR, existem exceções7 às regras de coleta e
tratamento, como dados pessoais para fins acadêmicos, artísticos ou jornalísticos, que
envolvem segurança pública, defesa nacional, proteção da vida e políticas
governamentais.
Ademais, a proposta abrange as operações de tratamento de dados realizados
no Brasil ou em outro país, no caso da coleta ser feita em território brasileiro.
De toda sorte, ainda é um pouco cedo para tratar o assunto como definitivo.
Porém, fica evidente que em se tratando de assuntos como a privacidade na
sociedade da informação, a nova lei é mesmo necessária. E, seguindo a mesma linha
do GDPR, busca efetivar o direito à privacidade em sua dimensão de proteção de
dados pessoais.
Isto posto, percebe-se que as duas legislações (a europeia e a brasileira)
deixam a privacidade em uma posição confortável, protegida. O enfoque da dimensão
dado à privacidade na vertente de proteção e controle de dados pessoais soa

4
Lei 13.709/2018- Art. 5º, I (BRASIL, 2018)
5
Lei 13.709/2018- Art. 5º, II (BRASIL, 2018)
6
Lei 13.709/2018- Art. 5º, XII (BRASIL, 2018)
7
Lei 13.709/2018- Art. 4º (BRASIL, 2018)
509

necessário no atual contexto informacional e digital. Para tanto, fez-se necessária a


implementação de legislações como as expostas.
Um ponto crucial na temática da privacidade é a necessidade de consentimento
do usuário. Tal ponto, não menosprezando diversos aspectos importantes das
legislações em comento, insere a privacidade num caminho novo, reinventado. A
sociedade atual exige mudanças que o Direito tem que acompanhar. Os direitos da
personalidade, tão inerentes à pessoa humana, viés da dignidade, a cada passo na
era globalizada, necessitam de maior proteção e efetivação.
A privacidade é um desafio em constante construção. E, de fato, com as atuais
construções legislativas auxiliando, a (re)construção da privacidade na sociedade da
informação está a ponto de ser concluída. Muito pode mudar ou não se realizar em
questões de implementação e efetivação, mas o que se pode perceber é que, com as
atuais proteções, a privacidade está sendo reinventada e assegurada das mazelas
que o mundo informacional exige.

5 CONCLUSÃO

O ciberespaço conecta pessoas e fornece informações para todo o mundo,


entretanto, a exacerbada difusão dessas informações acaba comprometendo a
privacidade das pessoas que não detêm controle sobre seus dados pessoais.
Na sociedade de informação, a internet vem acentuar a preocupação com a
privacidade e principalmente com a sua dimensão de proteção e controle de dados
pessoais. Questiona-se o que está acontecendo com a privacidade dos indivíduos
nesse contexto.
Nesse panorama, cada vez mais, as pessoas têm manifestado o interesse de
poder controlar seus dados pessoais, entretanto carecem de ferramentas que lhes
valham tal direito.
Surgem, então, legislações passíveis de tornar o que era um questionamento,
num vislumbre de efetiva proteção. A possibilidade de regular o uso dos dados dos
indivíduos, diante da grande possibilidade de difusão das informações e da
capacidade ilimitada de armazenamento, aparece como uma vertente do princípio da
dignidade da pessoa humana.
Portanto, com o necessário consentimento do usuário e demais vieses de
proteção trazidos pela nova Lei Geral de Proteção de Dados brasileira, o controle dos
dados pessoais passa a ser uma realidade e a privacidade adota uma nova roupagem
e um novo escudo.

REFERÊNCIAS

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Oliveira Ascensão. In: SIMÃO, José Fernando; BELTRÃO, Silvio Romero (Coord.).
Direito Civil: estudos em homenagem a José de Oliveira Ascensão. São Paulo: Altas,
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13709.htm>. Acesso
em: 26 set. 2018.
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histórica e o cenário brasileiro. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos,
Florianópolis, v. 38, n. 76, p. 213-240, set. 2017. Disponível em:
510

<https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/2177-
7055.2017v38n76p213>. Acesso em: 24 set. 2018.
CASTELLS, Manuel; CARDOSO, Gustavo (Orgs.). A Sociedade em Rede: do
conhecimento à acção política. Belém (Por): Imprensa Nacional, 2005.
CHEHAB, Gustavo Carvalho. A privacidade ameaçada de morte. São Paulo: LTr,
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constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
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sociedade civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
LIMBERGER, Têmis. O direito à intimidade na era da informática: a necessidade
de proteção de dados pessoais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
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PAESANI, Liliana Minardi. Direito e Internet. Liberdade de informação, privacidade e
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RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: A privacidade hoje. Rio de
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informação. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, n. 1, p. 419-434, 2012.
Disponível em:
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Acesso em: 20 jun. 2018.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais
na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2013.
511

A POSSIBILIDADE DE PEDIDO INDENIZATÓRIO PELA SOCIEDADE EM FACE


DO SÓCIO QUE SE RETIRA IMOTIVADAMENTE
THE POSSIBILITY OF AN INDEMNIFICATION APPLICATION BY THE COMPANY
AGAINST THE PARTNER WHO LEAVES THE COMPANY WITHOUT MOTIVATION

Rafael Pereira de Castro

Resumo: Sob o ponto de vista legal e jurisprudencial, não restam dúvidas de que o
sócio pode, sem justo motivo, retirar-se de uma sociedade empresaria Ltda por prazo
indeterminado com regência supletiva das normas da sociedade simples. Tal ação
encontra guarida no artigo 5º inciso XX da CF, bem como, no artigo 1.029 do C.C.
Ocorre que o novo CPC, positivou no artigo 602, regramento sui generis, qual seja a
possibilidade da sociedade formular pedido de indenização compensável com o valor
dos haveres a apurar. Citada norma, entretanto, se mostra precária, na medida em
que o legislador não esmiuçou o tema, fato que fez surgir várias dúvidas quanto a sua
aplicabilidade nas hipóteses de resolução da sociedade em relação a um sócio,
previstas em nosso ordenamento jurídico.
Palavras-chave: Direito Civil. Direito Empresarial. Direito Processual Civil. Direito
Societário. Resolução da Sociedade.

Abstract: From a legal and jurisprudential point of view, there is no doubt that the
partner may at any time, without just cause, withdraw from a limited company for an
indeterminate period with a supplementary regency of simple company rules. Such
action is contained in article 5, item XX of the Federal Constitution, as well as in article
1.029 of the Brazilian Civil Code. It happens that the new Code of Civil Procedure, Law
13,105 of 3/16/2015, positived in article 602, sui generis rule, that is, the possibility of
the company to formulate claim for compensation compensable with the value of the
assets to be determined. However, this rule is precarious, inasmuch as the legislature
did not elaborate on the subject, which raised several doubts as to its applicability in
the cases of resolution of the company in relation to a partner, provided for in our legal
system.
Keywords: Civil Law. Business Law. Code of civil rights. Corporate Law. Resolution
of the Company.

INTRODUÇÃO

O NCP trouxe relevantes novidades para o Direito Empresarial. Neste sentido,


inovou e tratou de dispor em seu título III, concernente aos procedimentos especiais
a forma de processamento da Ação de Dissolução Parcial da Sociedade.
O ponto fulcral deste artigo, gira em torno do artigo 602 do CPC que,
expressamente, previu a possibilidade da Sociedade formular pedido de indenização
compensável com o valor dos haveres a apurar em face do sócio que se retira da
sociedade.
Ocorre que a redação do citado artigo ficou demasiadamente genérica, não
esmiuçando as hipóteses de aplicabilidade e alcance, deixando-o, portanto,
absolutamente livre para as mais diversas formas de interpretação.
Há de se pensar que, ao redigir citado artigo, o legislador perquiriu compensar
a sociedade de eventual prejuízo, tanto é assim, que o legislador utilizou a expressão
“pedido de indenização compensável” pressupondo, portanto, cometimento de ato
ilícito gerador de dano à Sociedade, um dos aspectos intrínsecos do nosso conceito
512

de responsabilidade civil no âmbito do direito privado, conforme artigos 186 e 927 do


Código Civil.
Contudo, descuidou-se o legislador de refletir a questão quanto a possibilidade
de saída de sócio imotivadamente, nos exatos termos do artigo 1.029 do Código Civil.
O sócio que se retira da sociedade com base no artigo 1.029, em primeira
análise, não comete ato ilício, apenas exerce seu direito de retirada e de não
permanecer associado, tutelados respectivamente pelo C.C e C.F, contudo, não se
pode negar que o titular deste direito, ao exercê-lo, não pode exceder manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons
costumes, tampouco colocar em risco a existência da empresa, sob pena de
caracterizar ato ilícito, conforme previsão do artigo 187 do C.C, e sendo assim, a
retirada sem motivação justificável, ainda que de uma Ltda por prazo indeterminado e
com regência supletiva das sociedades simples, a depender de determinados
aspectos ou mesmo da situação econômica da sociedade, poderá ou não
desencadear um pedido indenizatório compensável com o valor dos haveres a
apurar?
Antes de adentrar propriamente ao tema abordado neste artigo científico,
importante classificar, minimamente, a Sociedade Empresária Limitada com prazo
indeterminado.
Citada sociedade é composta por pessoas, portanto, intuito personae. Há
nesse tipo animus daqueles sócios se associarem entre si, ante as suas
características pessoais, ou seja, permeia entre eles a vontade de constituírem uma
sociedade com tais pessoas, e não diversa. Trata-se da affectio societatis
Para Marlon Tomazzete (2011, p. 55) affectio societatis significa confiança
mútua e vontade de cooperação conjunta, a fim de obter determinados benefícios. Em
outras palavras, é a união dos sócios para que possa ser alcançado o resultado
desejado.1
Verificamos então que na sociedade intuito personae o fator dominante em sua
formação é a afinidade e identificação pessoal entre os sócios, marcadas pela
confiança mútua.
As empresas há muito tempo, deixaram de ser entendidas, tão somente como
uma entidade geradora de riquezas aos sócios, para ser concebida como algo que
agrega interesses outros, principalmente ao desenvolvimento econômico do país, pois
gera empregos, movimenta renda, paga tributos e estabelece uma melhor ordem
social em seu meio de atuação, ou seja, possui função social.
A função social da empresa encontra-se atrelada à boa-fé objetiva por parte do
empresário. “[...] tida como o modelo de conduta social em busca da economia voltada
ao bem-estar geral e da melhora da atividade empresarial na obtenção de um
excelente padrão de eficiência.” (DINIZ, vol. 8, 2009, p.24)2
Consequência direita ao princípio da Função Social encontra-se o Princípio da
Preservação da Empresa.
No princípio da preservação da empresa, o valor básico prestigiado é o da
conservação da atividade (e não do empresário, do estabelecimento ou de uma
sociedade), em virtude da imensa gama de interesses que transcendem os dos
donos do negócio e gravitam em torno da continuidade deste; [...] a adoção do
princípio da preservação da empresa [...] prestigiou este novo paradigma, haja vista
que pelo referido princípio temos que, na solução da crise econômico-financeira da

1
(TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: Teoria Geral e Direito Societário. 3. ed. 2011 . v. 1)
2
DINIZ, Maria Helena: Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 8: Direito de Empresa – 2 Ed. reformulada – São Paulo:
Saraiva, 2009
513

empresa, devem ser considerados primordialmente os interesses da coletividade, que


em geral, correspondem à preservação da empresa. (pp. 2-3, Disponível em:
<www.franca.unesp.br/mariza.pdf>)3
Nesse viés, em sendo a empresa “uma unidade de distribuição de bens e
serviços, um ponto de alocação de trabalho e oferta de empregos, integra, como elo
de uma imensa corrente do mercado [...]”, seu desaparecimento desencadearia uma
série de problemas irrecuperáveis. (FERREIRA. Mariza, p.3)4
Denota-se claramente, portanto, que todos, direta ou indiretamente são
dependentes das sociedades empresárias, dado sua importância socioeconômica
explicitadas, assim, buscar sua preservação e perpetuação no tempo é obrigação que
se impõe aos sócios.
A ação de dissolução parcial da sociedade chega como uma alternativa para
evitar o desfazimento total da sociedade, que alberga relevante função
socioeconômica.
Com este fundamento, então, a legislação acabou erguendo o instituto da
dissolução parcial, aplicando-o em três hipóteses: (i) Morte; (ii) Exclusão; e (iii)
Retirada, sendo esta hipótese de dissolução parcial em que a iniciativa parte do
próprio sócio que deseja desvincular-se da sociedade. Trata-se de declaração
unilateral de vontade, que impõe à sociedade destinatária a obrigação de reembolsar
ao declarante o investimento por este feito
A retirada pode ser motivada ou imotivada. No primeiro caso, é uma reação do
sócio que deseja o desligamento contra mudanças essenciais na sociedade,
aprovadas pela maioria societária. A retirada imotivada pode não ser (e, normalmente,
não é) uma reação do minoritário contra decisões da maioria societária que lhe
desagradam (ULHOA. Fabio, 2010).5
Insta notar que em todas as formas de resolução da sociedade a repercussão
imediata do desfazimento do vinculo societário e o surgimento de uma obrigação: o
sócio retirante ou excluído ou os sucessores do sócio falecido passam a ser credores
da sociedade pelo reembolso das quotas.
A sociedade então certamente sofrerá uma redução patrimonial, pois, em
princípio, o reembolso de seus haveres e de suas quotas é realizado com recursos da
própria sociedade.
Não se pode olvidar que a descapitalização tem impacto na sociedade e no
interesse de possíveis credores.
Em todas as hipóteses de resolução da sociedade em relação a um sócio, em
regra apurar-se-á haveres.
A apuração de haveres pode acontecer com base na situação patrimonial,
privilegiando-se a história da sociedade, ou seja, tudo aquilo ela acumulou, em seu
patrimônio, em razão da atividade econômica explorada até o momento da dissolução.
O requerimento de retirada pode ser motivado ou imotivado. Motivado é quando
ocorrer alteração do contrato social, fusão ou incorporação da sociedade, conforme
prescrição do artigo 1.077 do Código Civil, em outras palavras, não concordando o
sócio com qualquer uma destas ocorrências, poderá retirar-se da sociedade.
De outro modo, será imotivada, quando a vontade nasce pela simples vontade
de se desligar do vinculo societário.

3
FERREIRA, Mariza Marques: O Princípio da Preservação da Empresa. Disponível em: <www.franca.unesp.br/mariza.pdf>
Acesso em: 15 de fevereiro 2017
4
FERREIRA, Mariza Marques: O Princípio da Preservação da Empresa. Disponível em: <www.franca.unesp.br/mariza.pdf>
Acesso em: 15 de fevereiro 2017.
5
COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução de sociedade e o projeto de novo CPC. Valor Econômico, São Paulo, p. E-2,
dez. 2010 a
514

Trata-se corriqueiramente da situação do sócio que se desinteressa da


empresa ou do convívio com os demais integrantes da sociedade.
Tal vontade impõe à sociedade destinatária a obrigação de reembolsar ao
declarante o valor das quotas sociais, via de consequência, o mesmo passa a ser
credor da sociedade que, em certo lapso temporal desembolsará certa quantia em
dinheiro do seu caixa.
Insta observar que esta quantia pode causar significativa redução do capital
social, se os demais sócios não englobarem os montantes que se esvaiu, ou mais
ainda, no caso de um sócio majoritário postular sua retirada imotivada, poderá
inviabilizar a sobrevivência da PJ.
Há de se considerar, portanto, que a retirada sem motivação, calcada
exclusivamente na vontade particular e de foro intimo do sócio que não quer manter-
se associado, a depender da situação, afronta o principio da preservação da empresa
que tem como objetivo principal proteger a atividade empresarial. Não se busca a
proteção no interesse exclusivo do empresário, mas antes e acima de tudo, no
interesse da sociedade.
Para acrescentar ao raciocínio de aplicação ou não do artigo 602 do Código de
Processo Civil, nos casos de retirada do sócio imotivadamente, imperioso relembrar
alguns aspectos a respeito de responsabilidade civil e o dever de indenização.
Responsabilidade transmite a ideia de "restauração do equilíbrio, de
contraprestação, de reparação do dano" (GONÇALVES. Carlos Roberto. 2009).6
Para haver a obrigação de indenizar, pressupõe-se: conduta (ação ou
omissão), ato ilícito, dano e nexo causalidade.
O primeiro elemento da responsabilidade civil é a conduta humana (positiva ou
negativa), orientada pela vontade do agente, que desemboca no dano ou prejuízo
(GAGLIANO, Pablo Stolze, 2012 ).7
Para a configuração do ato ilícito é necessário haver culpa. Regra geral, não
há que se falar em responsabilidade sem que haja culpa (DINIZ, Maria Helena,
2007).8.
O outro elemento imprescindível para a caracterização da responsabilidade civil
é o dano. Pode-se conceituar dano como sendo "(...) a lesão a um interesse jurídico
tutelado - patrimonial ou não -, causado por ação ou omissão do sujeito infrator"
(GAGLIANO, Pablo Stolze. 2012).9
O último pressuposto da responsabilidade civil é o nexo de causalidade, isto é,
o vínculo existente entre o dano e a ação que o provocou (DINIZ, Maria Helena,
2007).10
A leitura do artigo em destaque motiva o interprete da norma pensar em
ressarcimento, ou seja, de efetuar uma indenização, uma reparação ou uma
compensação por eventuais prejuízos. Trata-se de um contra ataque da sociedade
em face do sócio.
Ocorre que o artigo foi demasiadamente breve e não contemplou em seu texto
em quais hipóteses de desfazimento de vinculo societário tal norma é aplicada, morte,
exclusão, retirada motivada, retirada imotivada, algumas delas ou todas.
No que toca a retirada motivada fundada no artigo 1.077 do Código Civil, soa
insustentável qualquer pedido de indenização compensatório na medida em que a
6
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 4. p. 1.
7
GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012. p. 73.
8
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 21. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007. V. 7. P. 39-40
9
GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. 10. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2012. p. 82.
10
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 21. Ed. São Paulo: Saraiva 2007. V. 7. P. 107.
515

causa motivadora da retirada se dá por dissidência de alteração do contrato social,


fusão ou incorporação da sociedade, sendo assim, imperiosa a aplicação do artigo 5º
inciso XX da Constituição Federal. Nesta hipótese, não há que se cogitar também
qualquer ato ilícito ou abuso de direito.
No que toca a retirada imotivada imprescindível uma reflexão mais
aprofundada, levando em conta todo o exposto até o momento em linhas pretéritas e,
abaixo reforçado de forma sucinta.
O direito de retirada ganha viés de debate a partir do artigo 1.053 do Código
Civil e, por certo, do artigo 1.029 constante do mesmo diploma legal. Neste caminho
proclama o artigo 1.053 que a sociedade limitada será regida pelas normas da
sociedade simples quando houver omissão no capitulo destinado às limitadas.
Já o artigo 1.029 do Código Civil, norma que regula a retirada do sócio na
sociedade simples, prevê nas sociedades por prazo indeterminado, que o sócio pode
retira-se da sociedade sem a necessidade de invocar qualquer motivo justificado de
sua saída.
Insta lembrar que o liame originário da relação contratual que constitui a
Sociedade Empresária de Responsabilidade Limitada é a ligação de cunho pessoal,
a affectio societatis, relação que extrapola o mero interesse de empreender,
trasbordando para aspectos outros, como confiança e afinidade. Trata-se de vontade
de cooperação conjunta.
Induvidosa é a necessidade de preservação da empresa visto que carrega
consigo uma função social absolutamente relevante e, sua dissolução, acarreta
graves consequências, tais como, fim de empregos, queda na arrecadação de tributos
e problemas no desenvolvimento econômico do país.
Inconteste que a retirada do sócio implica em severas alterações não só no
quadro societário, mas principalmente, reflexos de ordem econômica e política, já que
a saída do sócio pressupõe o pagamento em seu favor dos respectivos haveres, ou a
aquisição de suas quotas por quem já seja sócio ou até por pessoas estranhas à
estrutura societária, o que pode gerar reflexos na condução e gestão do negócio.
Assim, o exercício de retirada sem justificativa, quando desmedido e
irresponsável, traz prejuízo patrimonial relevante e pode, até mesmo, culminar na
dissolução da sociedade, trazendo danos difusos irreparáveis, nascendo portanto,
claramente uma justa possibilidade - necessidade de pedido indenizatório pela
Sociedade em face do sócio retirante compensável com a liquidação dos haveres.

CONCLUSÃO

Com o presente estudo verificou-se que as sociedades nascem da


manifestação da vontade dos sócios, pessoas que reciprocamente se obrigam a
contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica.
Verificou-se ainda que, constituída a sociedade, a mesma passa a ter um papel
altamente relevante para o desenvolvimento socioeconômico do país, pois há muito
tempo, deixaram de ser entendidas, tão somente como uma entidade geradora de
riquezas aos sócios.
Por tais motivos, o direito de retirada merece uma melhor atenção por parte dos
interpretes do direito e até mesmo dos sócios de modo a prestigia-lo em conjunto e
em boa harmonia com o principio da preservação da empresa e os interesses sociais
que a envolvem, de tal modo que não haja conflito entre normas e princípios do direito.

REFERÊNCIAS
516

COELHO, Fábio Ulhoa. A ação de dissolução de sociedade e o projeto de novo


CPC. Valor Econômico, São Paulo, p. E-2, dez. 2010 a.
DINIZ, Maria Helena: Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 8: Direito de
Empresa – 2 Ed. reformulada – São Paulo: Saraiva, 2009.
FERREIRA, Mariza Marques: O Princípio da Preservação da Empresa. Disponível
em: <www.franca.unesp.br/mariza.pdf> Acesso em: 15 de fevereiro 2017.
GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil:
responsabilidade civil. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 82.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 4. Ed.
São Paulo: Saraiva, 2009. V. 4. P. 1.
TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: Teoria Geral e Direito
Societário. 3. Ed. 2011. V. 1.
517

A REVOLUÇÃO DIGITAL NO AGRONEGÓCIO: O FUTURO DO


ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL RURAL (VIRTUAL?)
THE DIGITAL REVOLUTION IN AGRIBUSINESS: THE FUTURE OF THE RURAL
BUSINESS STORE (VIRTUAL?)

Heloísa Pires de Oliveira


Áurea Moscatini

Resumo: O estudo feito tem por escopo abordar uma alternativa para viabilizar o
estabelecimento rural virtual à realidade do produtor rural hoje. Para isso, embasou-
se na metodologia já conhecida para explicar o conceito de estabelecimento
empresarial, base para o estabelecimento rural, explanando sua conceituação e
embasando um raciocínio sólido para fomentar novos conceitos e novas ideologias,
visando uma adequação da estrutura do direito, sem se destoar da doutrina e
fundamentação solidificada através dos tempos. A essência principal do presente
trabalho é a abordagem de novos contextos jurídico-tecnológicos aplicados ao
agronegócio, que avança de modo acelerado, com o ímpeto de fazer o direito
empresarial acompanhar paralelamente o crescimento da era digital.
Palavras-chave: Direito Empresarial. Estabelecimento Rural Virtual. Agronegócio.

Abstract: The study carried out has the scope of approaching an alternative to make
virtual rural establishment viable to the reality of rural producers today. For this, it was
based on the methodology already known to explain the concept of business
establishment, base for the rural establishment, explaining its conceptualization and
supporting a solid reasoning to foment new concepts and new ideologies, aiming at an
adequacy of the structure of the law, without disrespect of doctrine and foundation
solidified through the ages. The main thrust of this paper is the approach of new legal
and technological contexts applied to agribusiness, which is advancing in an
accelerated way, with the impetus to make business law parallelally to the growth of
the digital age.
Keywords: Business Law. Virtual Rural Business Store. Agribusiness.

INTRODUÇÃO

Pretende-se com essa pesquisa contextualizar a voracidade dos avanços


tecnológicos, com bem se pode experimentar e vivenciar no cotidiano da sociedade
moderna, e, especialmente, o seu avanço e solidificação no meio rural, consolidando
novas práticas e métodos de atuação no campo.
A “digitalização” do setor rural não é uma novidade recente. E pode-se dizer
que o agronegócio unificou essa modernização, investindo cada vez mais em
tecnologia, modernizando, otimizando e diminuindo custos na produção agropecuária.
Sob a perspectiva técnico-jurídica, voltou-se os estudos para o estabelecimento
rural virtual, vertente interligada ao estabelecimento empresarial e instituto jurídico
inerente ao direito empresarial. A partir disso, serão apresentados os estudos
realizados, explanando, em um primeiro momento, o conceito de estabelecimento
empresarial, e, sequencialmente sua virtualização e transição aos meios digitais.
Assim, põe-se a luz a viabilidade da modalidade virtual para o estabelecimento rural.
Além disso, será discorrido acerca do vertiginoso crescimento de produtos de
origem agrária através do comércio eletrônico e de uma necessidade de estender o
estabelecimento rural através dos canais digitais, provocando uma reflexão contínua
518

da indispensabilidade de adequação do Direito quanto à rápida progressão


tecnológica.
Durante a explanação do presente estudo, ainda poderá ser observado que o
tema inspira cuidados, dada a sua fragilidade até então, bem como alguns
questionamentos acerca de sua implementação e regulamentação, o que deve ser
depreendido como essencial às novas abordagens que vêm surgindo no “campo rural”
em sintonia com o “campo virtual”, compulsando a necessidade de exploração e
consequente regulação do estabelecimento rural virtual, no tocante a comercialização
de bens e serviços totalmente digitais.
Isto posto, o cerne desta pesquisa é provocar uma discussão sobre o aludido
tema, e buscar sua viabilidade, haja vista o contexto disruptivo da sociedade pós-
moderna, relacionando a ferrenha globalização ao conjunto jurídico-normativo vigente
e como essa adequação pode ser incorporada pelo Direito Empresarial diante da
massiva transformação ocasionada pela era digital.

1. ENTENDENDO O ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL COMO VIÉS INICIAL

Sumariamente, é imprescindível destacar o conceito de estabelecimento


empresarial e suas características, para, a posteriori, explorar de maneira mais
clarificada o objeto do presente estudo.
A princípio, sabe-se que a inspiração para a criação do estabelecimento
empresarial é derivada do sistema jurídico italiano. A expressão estabelecimento
empresarial pode parecer um tanto quanto confusa, fazendo alusão tão somente a um
local físico, ou, transparecendo ser somente a sede de uma empresa. No entanto,
consiste em ser além do imóvel, agregando um conjunto de requisitos essenciais ao
desenvolvimento da atividade empresária. Nesse sentido, o ilustre doutrinador Silvio
de Salvo Venosa (PAOLUCCI, 2008, p. 47 apud VENOSA, 2017, p. 38) esclarece

O estabelecimento é um complexo de bens funcionalmente destinados ao


exercício de atividade econômica. Trata-se de organismo econômico
utilizado pelo sujeito para explorar atividade econômica ou empresa, o que
é mais comum. Em outras palavras, o estabelecimento constitui o aparato
instrumental que o empresário deve dispor e organizar, para adequá-lo ao
exercício da empresa

Pode-se dizer, então, que o estabelecimento empresarial é a organização de


um conjunto de fatores, englobando bens físicos e não físicos, utilizado para produzir
e gerir a atividade econômica exercida por um empresário ou por uma sociedade
empresária. Nesse mesmo sentido, o também ilustre doutrinador João Eunápio
Borges (1969, p. 185) conceituou à época que

Estabelecimento comercial não é apenas a casa, o local, o cômodo no


qual o comerciante exerce sua atividade. Mas é o conjunto, o complexo
de várias forças econômicas e dos meios de trabalho que o comerciante
consagra ao exercício do comércio, impondo-lhes uma unidade formal, em
relação com a unidade de fim, para o que ele as reuniu e organizou.

É crível e notória a importância do estabelecimento empresarial para o devido


funcionamento e estabilidade do exercício da atividade econômica, dado que o
conjunto de bens corpóreos e incorpóreos deve ser inerente a ele, devidamente
organizado e interligado por intermédio do empresário. Torna-se imprescindível sua
finalidade, ao passo que Fabio Ulhoa Coelho (2013, p. 164) diz que “não existe como
519

dar início a exploração de qualquer atividade empresarial sem a organização de um


estabelecimento”. Além disso, destaca-se também um preceito relevante de Coelho
(2013, p. 169), quando ele diz

[...] o aviamento, que é o potencial de lucratividade da empresa, não é um


bem de propriedade do empresário. Quando se negocia o
estabelecimento empresarial, a definição do preço a ser pago pelo
adquirente se baseia no aviamento, porém, não significa que se trate de
elemento integrante do complexo de bens a ser transacionado

Tal entendimento estende-se, também, à clientela, onde ele cita que “é o


conjunto de pessoas que habitualmente consomem os produtos ou serviços
fornecidos por um empresário, desse modo, não se deve confundi-la com os bens do
patrimônio da sociedade empresária”. (2013, p. 169)
Para corroborar com a explanação, no ordenamento jurídico brasileiro,
encontra-se a matéria estabelecida no Código Civil de 2002, precisamente em seu
artigo 1.142, o qual descreve “considera-se estabelecimento todo complexo de bens
organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade
empresária”.
Diante disso, é fundamental entender a origem e a utilidade do estabelecimento
empresarial no Direito Empresarial antes de propor e analisar um modelo de
estabelecimento virtual ao agronegócio, haja vista partir do pressuposto da
necessidade de embasamento lógico-jurídico na construção de novas ideias e
preceitos provenientes da evolução das relações comerciais rurais dentro do contexto
virtual.

2. O ESTABELECIMENTO RURAL: MODALIDADE DO ESTABELECIMENTO


EMPRESARIAL

Nessa vertente, o conceito de estabelecimento se mantem. A diferença se dá


no perfil, mas não de forma unânime, na figura do produtor rural como empresário e a
organização da atividade econômica voltada ao campo e às terras. Em um melhor
entendimento, nas palavras do professor Renato Buranello (2018, p. 113)

O estabelecimento agrário, na verdade, é constituído pelo conjunto de


bens organizados pelo empresário, utilizados para a execução das
atividades agrícolas e demais atividades conexas, necessárias à obtenção
de produtos de origem agrícola, pecuária, de reflorestamento e de
aquicultura, destinados à distribuição e ao consumo. No caso específico
do estabelecimento agrário, será este a projeção patrimonial da empresa
rural, ou seja, da empresa que tem como atividades principais a produção
rural, podendo ainda desenvolver atividades acessórias de comércio ou
de industrialização, sempre que estas estiverem vinculadas às atividades
principais.

A ideia aqui é demonstrar que o funcionamento dos estabelecimentos é o


mesmo. Ocorre que as atividades rurais se distinguem justamente por ter o foco de
produção voltada ao âmbito rural. Desta feita, o intuito é demonstrar que
acondicionamento ao estabelecimento virtual é possível tanto no estabelecimento
empresarial quanto no estabelecimento rural.
A seguir, serão avaliados modelos de negócios digitais, que vêm sendo criados
e já sendo utilizados, que validam a tese acerca da implementação jurídica do instituto
do estabelecimento rural na modalidade virtual.
520

3. O COMÉRCIO ELETRÔNICO NO ÂMBITO RURAL E O OFERECIMENTO DE


BENS E SERVIÇOS DIGITAIS

Já não é mais novidade nos dias de hoje a aquisição de produtos e serviços


através da internet. O comércio eletrônico está cada vez mais comum no mercado e
já vem sendo apontada uma tendência de substituição em detrimento de compras
físicas.
Durante os últimos vinte anos, foi possível acompanhar a evolução estrondosa
das relações comerciais. A criação dessa nova modalidade de compra disponibilizada
por empresas aos seus adquirentes, denominada de comércio eletrônico, que é como
se conhece até hoje, é definida pela relação de compra e venda de modo virtual. Ou
seja, produtos e serviços são veiculados e ofertados por determinada empresa e o
cliente que desejar comprar não mais necessita se deslocar até um local físico para
realizá-lo, bastando apenas que efetue o pagamento pelo que se adquiriu e opte pelo
recebimento em sua casa.
O comércio eletrônico no Brasil, desde o seu surgimento, vem evoluindo e
crescendo exponencialmente. Desde seu início, em 2001, tem se mostrado cada dia
mais agressivo no tocante ao seu célere crescimento. Hoje já é um substituto
alternativo indiscutível nessa modalidade. Anualmente, a empresa eBit realiza
pesquisas acerca do crescimento desse segmento, e os números são incontestáveis:
um salto de 8% para 30% nos últimos 4 anos, elevando o status econômico do país,
crise política e altas taxas de desemprego.
Em um comparativo sistemático, a regulamentação do comércio eletrônico (e-
commerce) nos Estados Unidos teve início em 30 de junho de 2000, e em 1º de
outubro do mesmo ano sucedeu-se a criação da “Lei das Assinaturas Eletrônicas no
Comércio Nacional e Internacional”, conhecida também por E-sign (SILVEIRA, p. 27).
“A Lei incorpora o princípio da ‘equivalência funcional’, que baseia-se na premissa de
que as noções de ‘texto’, ‘assinatura’ e ‘original’ podem ser ampliadas para incorporar
tecnologias informatizadas. Como resultado da aplicação deste princípio, não se pode
negar aos contratos, assinaturas e registros em geral efeito legal, validade ou
cumprimento meramente por estarem esses em forma eletrônica. (SILVEIRA, p. 27-
28)
Partindo desse pressuposto, far-se-á fundamental regulamentação
equivalente, visto que atualmente no Brasil, serviria como alternativa de sobrevivência
para empresas que atravessam momentos de crise financeira. Nesse viés, Venosa
(2017, p. 48) faz uma abordagem a respeito da virtualidade do estabelecimento

Os últimos 20 anos foram caracterizados pela difusão da tecnologia e


consequente expansão da internet e de novos modelos de negócios.
Nesse cenário, a circulação de riquezas sofre uma quebra em seu padrão
tradicional. O formato digital de compras se torna uma realidade e o
estabelecimento empresarial passa a apresentar um novo protótipo, o
virtual, ou seja, o local não físico onde as compras são realizadas. Nesse
sentido, o site, isto é, endereço ao qual o consumidor dirige-se para
realizar suas compras, é considerado o estabelecimento virtual, acessível
por meio de um endereço eletrônico chamado de domínio. Assim, é o
nome do domínio que identifica o estabelecimento virtual. Como não há
legislação específica acerca dessa realidade virtual, aplica-se as regras
do Código Civil acerca da matéria sobre estabelecimento empresarial.
521

Consoante a isso, a liberdade para empreender nessa nova era é muito maior,
estendendo o âmbito físico e desafiando os parâmetros jurídicos. A avaliação da
importância desse requisito, visando sua regulamentação, torna-se fundamental ao
passo que a tecnologia melhora a cada dia. No Brasil, a regulamentação desse
segmento se deu no ano de 2013, através do Decreto 7.962 (BRASIL, 2013), no qual
é descrito como deve-se dispor em relação ao comércio eletrônico. Foi um grande
passo para a evolução das relações eletrônicas no país, principalmente por ter sido
criada a partir da Lei nº. 8.078, de 1990, ou como é conhecida, Código de Defesa do
Consumidor. A necessidade de proteção jurídica do consumidor, fez o direito se voltar
para a regulamentação da modalidade, acompanhando assim a tecnologia e a
globalização.
E, concomitantemente, com a evolução do comércio eletrônico surgiram
também os bens e serviços digitais, que se estendeu aos meios rurais. Com o avanço
da era digital, gera-se, cada vez mais, a necessidade de consumir esses “novos”
produtos. Ao passo que também se verifica uma produção maior com ênfase nesses
produtos para os consumidores que aderem ao segmento rural. Entende-se por bens
e serviços digitais tudo aquilo que é disponibilizado de maneira virtual, sendo
completamente ou quase completamente eletrônico oferecido digitalmente.
Compreende-se nesse rol de bens e serviços os livros digitais ou e-books, aulas,
palestras e consultorias virtuais, usados por consumidores com necessidades
diversas.
Adentrando nos bens e serviços rurais podemos destacar, principalmente o uso
da tecnologia para melhoramento de produção e otimização de tempo e recursos.
Ainda, mais recentemente, tem-se a extensão de prestação de serviços, por exemplo,
através de aplicativos para smartphones. Assim, há de se mencionar os novos
modelos empresariais internacionais que vêm fazendo sucesso no campo, tais quais
o aluguel de tratores via aplicativo, funcionando como um sistema de reservas que
permite aos agricultores solicitar tratores cadastrados na plataforma que estejam
próximos de sua propriedade, e a partir de sua demanda, agendar e pagar
antecipadamente os serviços.1
Nesse mesmo sentido, os agricultores na Austrália vêm controlando sua boiada
através de um aplicativo para celular, também, conhecido como eShepherd. Segundo
informações explicativas da Brookings Institution, as fronteiras são demarcadas a
partir de solicitações elétricas de transponders, ou chips elétricos, aplicadas em
coleiras individuais em cada animal. O sinal vem de uma estação base da fazenda
ligada a um rastreamento por GPS, e as zonas de pastoreio podem ser ativadas e
controladas por um aplicativo.2
Diante desses casos, é possível acompanhar a evolução do
empreendedorismo rural, observando, por exemplo, no primeiro caso narrado, a
desnecessidade de um estabelecimento físico para prestar o serviço proposto e alocar
os bens físicos, haja vista os tratores serem de propriedade dos próprios produtores.
Ou seja, o estabelecimento rural virtual nesse caso é totalmente compatível com os
estudos abordados até então.
Ante ao exposto, com a crescente injeção e demanda de bens, serviços e
conteúdos digitais, é fundamental adequar o conceito de estabelecimento virtual para
a sociedade atual, especialmente no âmbito rural, que vem evoluindo tanto quanto o
mercado industrial. O exímio professor Celso Fernandes Campilongo (2011, p. 146)
1
Informação extraída do site: https://www.agrolink.com.br/colunistas/coluna/a-revolucao-digital-e-seu-impacto-no-
agronegocio_404507.html
2
Informação extraída do site: https://www.agrolink.com.br/colunistas/coluna/a-revolucao-digital-e-seu-impacto-no-
agronegocio_404507.html
522

pontua em sua obra “O direito moderno é o direito positivo, isto é, o direito posto por
uma decisão [...] decidir é escolher entre alternativas. Quanto mais complexa a
sociedade – como é o caso da sociedade global -, maiores as opções de escolha”.
Assim pode-se constatar a célere evolução das relações jurídico-humanas na
sociedade. Ressalta-se ainda, que o direito em si não necessita da evolução
tecnológica para existir, no entanto, a recíproca se faz fundamental, sendo
imprescindível para a evolução tecnológica uma regulamentação jurídica adequada.

3. INOVAÇÕES AO ESTABELECIMENTO VIRTUAL, SUA APLICABILIDADE NO


SETOR RURAL A REAL NECESSIDADE PARA O DIREITO NA ERA DIGITAL

Compilando todo o exposto até o momento, é de suma importância destacar o


crescimento das empresas através da tecnologia. Eis um ponto importante, pois,
atualmente, incorporado ao conceito de estabelecimento empresarial rural está o
estabelecimento físico, como já mencionado, e para iniciar as atividades de uma
empresa, é primordial o registro do endereço físico daquela perante a Junta Comercial
ou Cartório de Registro de Pessoas Jurídicas, conforme disposto no Art. 1.150 do
Código Civil de 2002, onde tem-se que o empresário e a sociedade empresária
vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas
Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual
deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro. Sem esse procedimento,
não é possível obter o número de cadastro da empresa, tampouco autorização para
explorar sua atividade. Com exceção apenas à condição de produtor rural, que lhe é
facultado o registro, como dispõe Buranello (2018, p. 113)

empresário individual rural não está obrigatoriamente sujeito ao registro


comercial, já que o atual Código Civil permitiu que o empresário rural fosse
excluído da condição formal de empresário ainda que contemple os
critérios materiais da empresarialidade. No entanto, facultou-lhe adquirir a
condição plena de empresário (arts. 970 e 971 do CC)

No entanto, a condição para o estabelecimento rural permanece a regra de


registro já exposta. A partir dos estudos realizados chegou-se a patamar bem flexível
no intuito de rediscutir o conceito de estabelecimento virtual. Nesse interim, encontrou-
se uma possibilidade crível de estender a tradicionalidade do estabelecimento
empresarial para o virtual, dispensando o cadastro de um endereço físico para
empresa, no tocante a bens e serviços comercializados e prestados de forma
totalmente digital, dos quais não requer estoque em local físico, ou seja, uma empresa
virtual em sua totalidade. É tacitamente compreensível a dificuldade que se encontra
na regulamentação dessa proposta, no entanto é plausível e a dinâmica de mercado
demonstra isso.
Como uma das soluções viáveis, poderia ser feito o cadastramento dessas
empresas perante os órgãos competentes, como é feito atualmente, mediante
apresentação do registro de domínio no ambiente virtual. A fim de concretizar
juridicamente tal hipótese, seria necessário apresentar garantias no intuito de vedar
possíveis fraudes, má-fé e potencial risco de lesão ao direito da pessoa. Nesse
sentido, como critério para registro do estabelecimento virtual, uma sugestão seria
tornar indispensável uma integralização de capital, uma espécie de “caução” como
garantia real com um valor estipulado para cada categoria de atividade, assim como
existe no Processo Civil, no qual é indispensável para ajuizamento de tutela de
523

urgência. No mais, serviria como item primordial para a credenciamento do


estabelecimento, para assim, prevenir e proteger os seus consumidores em potencial.
A importância dessa regulamentação se encontra nos avanços acompanhados
durante o crescimento do comércio eletrônico, onde mais uma vez, Celso Fernandes
Campilongo (2011, p. 156) dá a letra para embasar esse conceito, dizendo que
“argumento dos mais provocativos é a pós-modernidade no direito. O direito pós-
moderno será, provavelmente, mais leve, mais complexo e mais aberto”.

CONCLUSÃO

Diante de todo o estudo realizado, conclui-se que, assim como todas as áreas
se mostram em ascensão, mister se faz analisar a possibilidade de viabilizar o
cadastramento de estabelecimentos virtuais mediante apresentação de um endereço
eletrônico, não sendo necessário a apresentação de um endereço físico para
comercialização de serviços na seara rural. É um tema a ser refletido e debatido, até
chegar a sua melhor adequação ao direito empresarial na atualidade. Mas o que se
pode esperar é um grande impacto na economia, tendo em vista o setor do
agronegócio ser responsável por cerca de 22% do PIB brasileiro. A tendência é
virtualizar cada vez mais os atos e ações da vida cotidiana, bem como os atos e
deveres jurídicos, despendendo um tempo menor para essas providências, e no
campo e entre os produtores não vem sendo diferente disso. O setor rural vem
acompanhando ferrenhamente a evolução tecnológica e se adequando à novas
possibilidades de produção agropecuária.
Visando um modelo compatível com um mundo cada vez mais digital, propõe-
se estreitar a relação entre tecnologia, facilitação para empreender e direito
empresarial. Por isso, o intuito de tornar o estabelecimento rural virtual viável para os
bens e serviços do seguimento digital no agronegócio pode vir a ser concretizado,
verificando a opção da caução como alternativa viável. Além disso, vem havendo uma
predisposição cada vez maior de surgirem empresas digitais, consolidando a filosofia
idealista e globalizada do direito empresarial, estendido ao agronegócio, fazendo
surgir novas necessidades e peculiaridades constantes do mundo pós-moderno. A
motivação mais forte desse estudo foi a visão jurídica voltada ao futuro e a ampliação
da relação jurídico-tecnológica.

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CAMPILONGO, Celso Fernando. O Direito na Sociedade Complexa. 2º Edição. São
Paulo: Saraiva, 2011.
525

GLIFOSATO (IN) SEGURO PARA A SAÚDE HUMANA: UM ASSUNTO


INTERNACIONAL.
GLIFOSATO (IN) SEGURO PARA LA SALUD HUMANA: UN ASUNTO
INTERNACIONAL.

Deicy Yurley Parra Flórez


Nilcinara Huerb de Azevedo
Valmir César Pozzetti

Resumo: O modelo agroindustrial atualmente é utilizado como estratégia para


combater a fome, desnutrição e pobreza. Modelo que faz uso de agroquímicos para a
obtenção de “maior produção e qualidade nos alimentos”. O objetivo desta pesquisa
foi o de analisar o peso de agrotóxicos na produção de alimentos e verificar as
consequências desse uso para a saúde humana e o meio ambiente; fazendo uso do
método dedutivo, quanto aos meios a pesquisa foi bibliográfica e quanto aos fins a
pesquisa foi a qualitativa. Concluiu-se que o glifosato é nocivo para a saúde das
pessoas, atravessando a linha da probabilidade por sua conexão no uso da substancia
e a manifestação de doenças na população onde há mais propensão ao contato com
o agrotóxico.
Palavras-chaves: Agrotóxicos; glifosato; saúde.

Resumen: En la actualidad el modelo agroindustrial es empleado como estrategia


para combatir el hambre, desnutrición y pobreza. Modelo que hace uso de
agroquímicos para la obtención de “mayor producción y calidad en los alimentos”. El
objetivo de esta investigación fue analizar el peso de los agro tóxicos en la producción
de alimentos y verificar las consecuencias de su uso en la salud humana y el medio
ambiente; haciendo uso del método deductivo, en cuanto los medios la investigación
fue bibliográfica y en cuanto a los fines de la investigación fue la cualitativa.
Concluyéndose que o glifosato es nocivo para la salud de las personas atravesando
la línea de la probabilidad por su conexión en el uso de la sustancia y la manifestación
de enfermedades en la población donde hay más propensión al contacto con el agro
tóxico.
Palabras-claves: Agro tóxicos; glifosato; salud.

INTRODUÇÃO

Desde o inicio dos tempos a agricultura praticava-se de forma tradicional, com


ajuda de ferramentas rústicas, mistura de substâncias naturais como repelente para
os animais e demais ervas daninhas; não obstante, na atualidade mostra-se um tanto
diferente, a agroindústria faz parte de um sistema global por meio do qual os cultivos
são trabalhados com maquinaria pesada e produtos químicos para maior
produtividade, tentando atender as exigências mundiais do mercado.
Nesse sentido, os efeitos da agroindústria mediante o uso de agrotóxicos está
gerando consequências não só para o meio ambiente mas também para o bem-estar
das pessoas. O glifosato, por exemplo, é o agroquímico mais utilizado a nível mundial,
produto da introdução dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM)
resistentes a esta substância, trazendo muitas dúvidas sobre sua confiabilidade para
a saúde humana.
Estudos a nível internacional que mostram os impactos do glifosato em distintas
partes do mundo apresentando-se em todas elas similitudes em seus resultados, das
526

quais a presença de doenças nervosas, neuropatias, câncer, entre outras, sequelas


da manipulação deste agrotóxico altamente perigoso, pela qual a empresa fabricante
Monsanto, atual Bayer contradisse, asseverando não ser toxico.
A problemática a envolver nesta pesquisa diz respeito a: quão danoso ou
prejudicial resulta o uso do agrotoxico glifosato para a saúde humana? A pesquisa se
justifica em virtude do fato de que é preciso aplicar o principio de precaução ante seu
uso e distribuição; portanto pretende-se estudar como o uso do aludido agroquímico
pode estar associado ao surgimento de certas doenças. O método de pesquisa para
o estudo é o método dedutivo, e quanto em termos de finalidade, o meio: bibliográfico,
documental, e qualitativo em quanto aos fines qualitativo (Casos reais).

GLIFOSATO: DA EVIDENCIA CIENTIFICA E REALIDADES A DECISÕES JUDICIAS

A agricultura atual globalizada funda-se em um modelo agroindustrial, ou seja,


uma produção agrária intensiva com homogeneização em seus cultivos os quais
posteriormente transportam-se para os grandes mercados, atendendo as demandas
de um sistema neoliberal, o qual pode ser caracterizado por gerar problemas como
acesso a terra, degradação aos recursos naturais, diminuição da economia local,
degradação da vegetação e comprometimento da saúde humana.
A produção em massa foi criada com a intensão de melhorar os índices de
fome, pobreza e desnutrição, modelo chamado revolução verde na década dos anos
cinquenta, depois do que o processo tecnológico superara o conhecimento tradicional
do agricultor; inovando no uso de agroquímicos, fertilizantes e maquinaria pesada
(CECCON, 2008).
Eliane Ceccon (2008, p. 22) assevera que as inovações antes mencionadas
são resultado da adaptação de instrumentos utilizados durante o conflito bélico, mas
que a avançada tecnologia permitiu adequar a “fabricação de tratores mediante o
desenho de tanques de combate”, assim como a “fabricação de agrotóxicos do efeito
colateral da indústria químico-biológica e as armas deste tipo”1 entre outro tipo de
engenharia. Portanto, a revolução verde procurou melhorar a agricultura tradicional
mediante o uso de técnicas industriais. Segundo o Banco Mundial:

[...] o Terceiro Mundo passou a consumir entre 10 e 20% da produção


mundial de agrotóxicos, e seu consumo tendia a aumentar rapidamente.
No Brasil, por exemplo, o numero de pragas na agricultura, aumentou
entre 1963 e 1973, de 243 para 593, enquanto o consumo de agrotóxicos
aumentou de 16.000 para 78.000 toneladas, o que parece demostrar uma
relação direta entre o consumo desses produtos e o surgimento de
pragas2 (Ceccon, 2008, p. 24).

Somando a este cenário tem-se a degradação e erosão do solo, que se produz


de maneira natural, mais também deve-se o uso inadequado de fertilizantes
intensificando o processo, contaminando as águas e prejudicando as comunidades
(CECCON, 2008).
Apesar de apresentar-se como um método pratico e eficaz, com maior
produtividade e ganancia, os efeitos gerados sobre o meio ambiente e população

1
“fabricación de tractores a partir de la experiencia en el diseño de tanques de combate”, así como la “fabricación de agro
tóxicos como producto colateral de una pujante industria químico-biológica dedicada a la fabricación de armas de ese tipo.
2
[…] el Tercer Mundo pasó a consumir entre 10 y 20% de la producción mundial de agro tóxicos, y su consumo tendía a
aumentar rápidamente. En Brasil, por ejemplo, el número de plagas en la agricultura aumentó, entre 1963 y 1973, de 243 a
593, mientras que el consumo de agro tóxicos se incrementó de 16 000 a 78 000 toneladas, pareciendo haber una relación
directa entre el consumo de estos productos y el surgimiento de plagas.
527

foram visíveis, criando para os anos noventa o surgimento de uma nova alternativa de
produção baseada em melhoramento dos cultivos por meio da engenheira genética.
Em outras palavras, se consolidaram os Organismos Geneticamente Modificados
(OGM) ou também conhecidos como Transgênicos como iniciativa para solucionar
problemas ambientais produzidos décadas anteriores.
Organismos geneticamente modificados que tem como complemento o uso de
agroquímicos pelos quais ajudam no controle de pragas e ervas daninhas em razão
sua extensão. Apesar do uso destes agroquímicos gerarem benefícios para os
produtores como maior preservação e cuidado dos cultivos, não obstante, os efeitos
do seu uso desmedido aumentou a probabilidade de gerar doenças e desequilíbrios
ambientais (IARC, 2015).
Nessa ordem de ideias, a Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
(2016, p.p) autorizou realizar uma análise dos agrotóxicos mais utilizados no Brasil
como: “Glifosato, Lactofen, Abamectina, Carbofurano e Thiram”, herbicidas,
inseticidas e fungicidas que possuem diversos níveis de toxicidade, passando de
“pouco tóxico”, “mediamente tóxico” a “extremadamente tóxico”; classificando
recentemente o glifosato “como provável carcinógeno em humanos”.
Não obstante, o glifosato é reconhecido como o herbicida mais utilizado e
vendido a nível internacional, propriedade da empresa Monsanto atualmente Bayer, o
qual “é utilizado na agricultura, na silvicultura, em áreas urbanas e domesticas”
segundo informa Anvisa (2016, pp). A sustância que aumentou significativamente
com o incremento nas variedades de culturas geneticamente modificadas resistentes
a ele incrementando suas ventas.
Destaca Monsanto (2018, p.p) que “todos os herbicidas Roundup® contêm
glifosato como ingrediente ativo e foram desenvolvidos para controlar uma ampla
variedade de ervas daninhas”. Ademais, assevera esta empresa que (2018a, p.p) o
Roundup®:

[...] contém três componentes principais: glifosato (como ingrediente


ativo), solvente (água ou ingredientes inertes) e uma mistura de
surfactante semelhante à usada no sabão. Ao longo dos anos, juntamente
com outras empresas, desenvolvemos várias formulações de herbicidas à
base de glifosato, usadas em todo o mundo principalmente por produtores
agrícolas.

Ingredientes que inibem a enzima do crescimento na planta para o controle de


sua expansão, a exceção das plantas de sementes geneticamente modificadas
fabricadas, também pela empresa Monsanto identificadas como RR (Round Ready),
resistentes ao glifosato por ter este composto dentro de sua composição (MACHADO,
2016). A soja, o algodão, o milho e outros cultivos destacam-se a nível mundial por
ser resistentes ao glifosato, o que permite sua produção em massa e amplia
distribuição ao mercado de todo tipo sem controle algum.
O Glifosato, segundo a revista Chemical Research in Toxicology informado por
Eleisegui, (2015, p.p) “é letal para as celulas humanas”. Informação que se vincula à
toxicidade do produto e aos distintos casos reais, demostrando como os agroquímicos
estão afetando a saúde de maneira direta, principalmente granjeiros, fumigadores,
famílias rurais e crianças.
Fruto do contato dos agroquímicos no ano 2012, a justiça francesa gerou uma
sentença em contra de Monsanto, por não entregar informação clara e detalhada
sobre a manipulação e uso dos produtos por ela fabricados, denominados
“biodegradáveis”. A sentença favoreceu Paul Francois que trabalhou mais de catorze
528

anos como granjeiro e tempos depois de ter inalado de forma acidental o herbicida
chamado Lasso apresentou uma deficiência de 50% no sistema neurológico, ação que
favoreceu a retirada do herbicida do mercado (HINCKEL, 2012).
Casos como o de Paul François surgem diariamente a nível global como
resultado do uso de agrotóxicos altamente nocivos, ao tempo que muitos outros
processos são instaurados nas instâncias judiciais sem obter decisões favoráveis,
situação que tem gerado muitas discussões sobre a importância de sua aprovação,
distribuição e toxicidade.
Patricio Eleisegui (2015, p.p) dispõe que frente a situações como estas, a
Federação Sindical de Professionais da Saúde da Republica Argentina (Fresprosa)
apresentou várias demandas ante a Agencia Internacional para a investigação do
Câncer (IARC siglas em inglês), dependente da Organização mundial da Saúde
(OMS) pelas inúmeras pesquisas sobre a toxicidade dos agroquímicos, enfatizando
que “[...] o glifosato não causa apenas câncer. Também está associado ao aumento
de abortos espontâneos, malformações genéticas, doenças de pele, doenças
respiratórias e neurológicas”, com o objetivo de estudar e regular a venda, distribuição
e registro deste agroquímico que está elevando o numero de vitimas.
Segundo o estudo do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas -Conicet-, Urdinarrain (2017, p.p) localizado na Argentina, foi considerado “o
ponto da província com o maior índice de concentração de agroquímicos3”, enquanto
Entre Rios, também da Argentina “registra níveis de acumulação de herbicida
carcinogênico glifosato, dos mais altos que existem em todo o mundo4”. O anterior
como resultado dos altos níveis de produção transgênica e uso de agrotóxicos na
Argentina, catalogada como um dos primeiros países no uso destas sustâncias.
No ano 2015 a Agencia Internacional para a investigação do Câncer (IARC
siglas em inglês) (IARC, 2018, p.p) avaliou a carcinogenicidade de alguns
agroquímicos classificando-os em cinco grupos: Grupo 1, “carcinogênicos para
humanos”; Grupo 2A, “provavelmente carcinogênico para humanos”; Grupo 2B
“possivelmente carcinogênico para humanos”; Grupo 3 “não é classificável quanto à
sua carcinogenicidade para seres humanos”; Grupo 4 “provavelmente não é
carcinogênico para humanos”5.
O Estudo feito pela IARC de maneira minuciosa sobre os agroquímicos mais
utilizados, classificação de sustâncias que permitem evidenciar e identificar o perigo
ao que se estão expostos os trabalhadores e familiares, assim como as comunidades
rurais por ser uma sustância volátil de fácil manipulação e aplicação. Analisando
também seus componentes, combinações e similitudes nas formulas com o fim de
apresentar resultados fidedignos.
A IARC (2015, p. 2) menciona que se bem o reporte indica o perigo de
exposição, não dimensiona o nível de risco diretamente da exposição, já que o nível
de risco esta associada a sua classificação e fatores como “o tipo e a extensão da
exposição e a força do efeito do agente”, existindo amplas possibilidades de que o
risco aumente de acordo ao contexto.
Nesta ordem, e segundo o estudo feito pela IARC (2018a, p.p) o “glifosato”
encontra-se no “grupo 2A” da lista de classificação junto aos demais agrotóxicos
examinados. O anterior por existir como assevera o IARC, (2015a, p.2)

3
Es el punto de la provincia con mayor índice de concentración del agroquímico.
4
registra niveles de acumulación del herbicida cancerígeno glifosato, de los más altos que existen a nivel mundial.
5
Grupo 1, carcinogénicos para humanos; Grupo 2A, probablemente carcinogénico para humanos; Grupo 2B posiblemente
carcinogénico para humanos; Grupo 3 no clasificable en cuanto a su carcinogenicidad para los seres humanos; Grupo 4
probablemente no es carcinogénico para los humanos.
529

[...] evidência limitada de carcinogenicidade em humanos e evidência


suficiente de carcinogenicidade em animais experimentais. Evidência
limitada significa que uma associação positiva foi observada entre a
exposição ao agente e câncer, mas que outras explicações das
observações (tecnicamente denominadas chance, viés ou confusão) não
poderiam ser descartadas6.

Relaciona-se no reporte ao glifosato com provável gerador de câncer de


Leukaemia e/o lymphoma com evidencia limitada em humanos (IARC, 2018a). Não
obstante, depois de apresentado o reporte pela IARC ainda persiste a incógnita frente
a se o glifosato é ou não cancerígeno, devido a que muitas são as demandas
apresentadas em contra de esta substancia e os riscos que gera, obtendo respostas
pouco favoráveis mesmo existindo casos específicos das sequelas no uso do
agrotóxico, com a exceção de uma atual decisão americana.
Um caso a expor é o reconhecido a nível mundial de Fabian Tomasi que sofreu
de uma forte poli neuropatia tóxica severa e atrofia muscular generalizada como
consequência do uso de agrotóxicos (glifosato) durante seu trabalho, já que ele se
encargava de fumigar os cultivos de soja de forma aérea ficando completamente
coberto por esta sustância. (C5N, 2018). Ele esteve ao frente de muitas lutas em
contra dos agrotóxicos e sua distribuição até este ano que foi publicada sua morte
pela doença contraída.
Não obstante, neste ano 2018 no mês de junho a Corte Norte-americana emitiu
uma decisão histórica condenando a Monsanto, ao declara-lo culpável pela doença
de Dewayne Johnson, granjeiro com câncer terminal consequência do uso e
exposição ao produto Roundup (glifosato) de Monsanto (POMAR, 2018), gerando
grande comoção pela importância do tema.
Ana Fernandez (2018, p.p) mediante o ABC informou que Dewayne Johnson
de 46 anos jardineiro que iniciou o processo judicial contra Monsanto dirigiu durante
alguns anos um caminhão usado para a aplicação do pesticida Ranger Pro no Distrito
Escolar Unificado de Benicia, Califórnia, São Francisco, reconheceu se proteger do
agrotóxico porque pensava que “se ele pudesse matar plantas, talvez ele também
pudesse matá-lo7”, e asseguro que “Se eu soubesse o alto nível de periculosidade,
nunca o teria espalhado no meio de uma escola8”.
Segundo Fernandez (2018, p.p) Johnson a seus 42 anos foi diagnosticado com
“linfoma não Hodgkin”, ou seja, câncer nos linfócitos de sangue, apresentando-se
inicialmente como erupções cutâneas quase num 80% de seu corpo, desde então
Dewayne Johnson

Com a ajuda dos médicos, ele chegou à conclusão de que havia uma
conexão real que o inseticida era a causa de sua doença. Apoiado por
relatórios da Organização Mundial de Saúde (OMS) que asseguravam que
a principal substância do herbicida "Roundup", o glifosato, era
"provavelmente carcinogénico para os humanos", entrou com uma ação
em 2015 contra a "Monsanto".

Juízo que teve uma longa duração, onde se fez um estudo a profundidade
sobre os distintos documentos obtidos a nível internacional sobre a probabilidade do

6
This category is used when there is limited evidence of carcinogenicity in humans and sufficient evidence of carcinogenicity in
experimental animals. Limited evidence means that a positive association has been observed between exposure to the agent
and cancer but that other explanations for the observations (technically termed chance, bias, or confounding) could not be ruled
out.
7
“si podía matar a plantas, quizás también podría matarle a él”.
8
“de haber sabido el alto nivel de peligrosidad, nunca lo habría esparcido en mitad de un colegio”.
530

dano das sustâncias e o ingrediente ativo (glifosato) na saúde do ser humano, citando
pesquisas como a feita pela IARC no 2015. Anabel Pomar (2018, p.p) agrega que as
pesquisas permitiram ao jurado declarar à empresa Monsanto culpável, ordenando a
compensar-lhe com uma cifra de $289 milhões de dólares “por agir com malicia ao ter
conhecimento sobre os danos do Roundup e Ranger Pro e não advertir”. A decisão
que foi apelada pela empresa em seu momento, confirmando o Tribunal o dia 22 deste
de mês de agosto a condena, reduzindo a indemnização a 78 milhões encontra da
Monsanto, descendo na bolsa alemã as acções da Bayer após a confirmação,
elevando as perdas (NEGÓCIOS. 2018).
O presente caso representa um feito histórico no historial da empresa
Monsanto, pois incontáveis são as demandas interpostas em contra dela como
responsável das doenças geradas pelo uso do glifosato. J.Mounier, (2018, p.p)
assevera no relatório do CNN e Reuters:

[...] mais de 800 pacientes levaram a Monsanto aos tribunais em 2017,


alegando ter sofrido de câncer por causa do Roundup. Desde então,
centenas de outros demandantes - pacientes com câncer, cônjuges ou
herdeiros - também perseguiram a Monsanto por motivos semelhantes.
Atualmente, cerca de 5.000 processos semelhantes aos de Dewayne
Johnson estão sendo examinados nos Estados Unidos.

Nesse sentido, as Nações Unidas (2018, p.p) celebraram a sentença emitida


pela Corte Californiana ao agregar que é “um importante avace para os direitos
humanos das vitimas e o reconhecimento das responsabilidades das empresas
quimicas”. Pois da pesquisa feita sobre a associação entre o câncer e a exposição
ao glifosato determinou concluiu-se que existe uma ampla conexão entre a exposição
das pessoas ao glifosato, ainda que não se tenha total claridade podendo se observar
nos habitantes vítimas (VAZQUEZ, et al, 2017).
Enfim, são incontáveis as situações em que o glifosato como agroquímico mais
vendido gera doenças nas pessoas, independentemente de se estas trabalham ou
não com essa substância, como no caso da Argentina. O glifosato é um agrotóxico
altamente perigoso que deve ser estudado mais a fundo, enquanto a justiça pouco a
pouco vai gerando decisões importantes na garantia dos direitos.

CONCLUSÕES

A problemática que envolveu nossa pesquisa se baseou na nocividade do


agrotóxico glifosato e as consequências que gera sobre a saúde humana, observando
como os objetivos foram cumpridos na medida em que se analisaram as decisões
judicias e a posição doutrinaria.
Verificou-se que o uso indiscriminado dos agrotóxicos é capaz de gerar
consequências altamente prejudiciais para a saúde humana e meio ambiente, mesmo
quando os transgênicos juntamente com os agrotóxicos foram apresentados como
uma solução para combater a fome, desnutrição e pobreza.
O glifosato representa na atualidade uma das substâncias mais nocivas para a
saúde humana, gerando doenças não só nas pessoas que tem contato com ele, mas
também famílias, povos próximos, como nos casos de Estados Unidos, Argentina e
muitos outros, dando evidência clara do perigo que traz o uso desses herbicidas, uma
vez que manifesta doenças nervosas, câncer, problemas da pele e incluso até a morte.
A sentença de Estados Unidos corrobora e acredita nos estudos do IARC e
assevera como os agroquímicos como sustância utilizada para o tratamento dos
531

cultivos especialmente dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM)


representam um risco para a população mundial. Risco também evidenciado e
corroborado na vida real com os casos evidenciados, mesmo assim que não exista
registro direto sobre o uso de agrotóxicos e câncer, com a exceção da decisão
Americana.
Os processos iniciados na justiça em contra dos produtos da Monsanto são
inúmeros, representando a decisão da Corte de Estados Unidos um progresso no
reconhecimento das consequências que traze o uso do glifosato na saúde.
Em conclusão se pode afirmar que o agroquímico Glifosato gera e prejudica a
saúde publica das pessoas do campo e proximidades, pois se bem existem
asseveracoes por parte dos fabricantes, a justica e os casos reais mostram de forma
contundente o perigo de estar exposto a este tipo de sustancias. Realidade que afeita
a toda a população independentemente onde se more, pois estas substâncias estão
chegando a todos os produtos do consumidor.

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Disponivel em:
533

<http://www.scirp.org/Journal/PaperInformation.aspx?PaperID=74222> Acesso:
01/Oct/2018
534

INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS DA MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS E OS


TRATAMENTOS MÉDICOS ISENTOS DE SANGUE: MEDIDAS CIENTÍFICAS
PARA REDUZIR A JUDICIALIZAÇÃO E GARANTIR O DIREITO FUNDAMENTAL À
SAÚDE.
EVIDENCE-BASED MEDICINE TECHNOLOGICAL INNOVATIONS AND BLOOD-
FREE MEDICAL TREATMENTS: SCIENTIFIC MEASURES TO REDUCE
JUDICIALIZATION AND ENSURE THE FUNDAMENTAL RIGHT TO HEALTH.

Aurelio Tomaz da Silva Briltes


Ludmila de Paula Castro Silva

Resumo: O sangue alogênico é um recurso terapêutico esgotável. Dados de bancos


de sangue demonstram frequente diminuição de doações. Enquanto isso, evidências
em centro de pesquisas, concluem que as mesmas estão relacionadas a aumento na
morbimortalidade e maiores custos hospitalares. Diante desse quadro, torna-se cada
vez mais necessário procurar outras opções de tratamento. Estas alternativas
existem, porém são pouco conhecidas e raramente utilizadas. A presente pesquisa
procurará: 1) sistematizar as estratégias tecnológicas existentes na Medicina, e ao
mesmo tempo, despertar o interesse do Governo Federal em adotar tais protocolos
no Brasil, tendo em vista a comprovação, por meio de meta análises que, tratamentos
médicos isentos de sangue são mais eficazes, mais seguros e menos onerosos; 2)
despertar interesse social e jurídico frente ao consentimento informado, de acordo
com a Legislação Constitucional, infraconstitucional e ética; 3) propor reforma dos
planos pedagógicos dos cursos nas áreas de saúde e jurídica no Brasil.
Palavras-chaves: Inovações Tecnológicas; Tratamentos Médicos isentos de Sangue;
Direito Fundamental à Saúde.

Abstract: Allogeneic blood is an exhaustible therapeutic resource. Data from blood


banks show frequent decreases in donations. Meanwhile, research center evidence
concludes that these are related to increased morbidity and mortality and higher
hospital costs. Faced with this situation, it is increasingly necessary to look for other
treatment options. These alternatives exist, but they are little known and rarely used.
The present research will seek to: 1) systematize existing technological strategies in
medicine, and at the same time, arouse the interest of the Federal Government in
adopting such protocols in Brazil, in order to prove, through meta-analyzes that,
medical treatments free from more effective, safer and less costly; 2) to arouse social
and legal interest in the face of informed consent, in accordance with constitutional,
infraconstitutional and ethical legislation; 3) propose reform of the pedagogical plans
of the courses in the health and legal areas in Brazil.
Keywords: Technological Innovations; Medical treatments free of blood; Fundamental
Right to Health.

INTRODUÇÃO

O trabalho que ora apresentamos tem a pretensão de reunir e descrever de


maneira sistemática, objetiva e prática as estratégias clínicas e cirúrgicas, como
opções terapêuticas eficazes para minimizar ou evitar transfusões de sangue
alogênico e seus efeitos adversos nos pacientes. Ainda tem como recorte material e
sistêmico despertar o interesse do Governo Federal do Brasil para implementação das
estratégias clínicas e cirúrgicas no Sistema Único de Saúde (SUS), firmando assim,
535

as linhas estruturantes de acesso à saúde nos moldes das políticas públicas contidas
na Lei 8.080/90, e nas dimensões prestacionais da Seguridade Social, saúde, a partir
dos conceitos e estruturas constitucionais e consequentemente nas novas
incorporações junto à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do Sistema
Único de Saúde, CONITEC, do Ministério da Saúde como opções terapêuticas
eficazes para minimizar ou evitar transfusões de sangue alogênico, evitar
propagações de doenças, e demais intercorrências, disponível no site:
http://conitec.gov.br/;
Ainda, a pesquisa tem como efeito disponibilizar a curto, médio e longo prazo
a adequação das grades curriculares dos cursos das áreas de saúde e jurídica no
Brasil, especialmente nos cursos de medicina, biomedicina, enfermagem, farmácia e
Direito para que os futuros profissionais tenham contato nos bancos universitários com
as estratégias clínicas e cirúrgicas como opções terapêuticas eficazes para minimizar
ou evitar transfusões de sangue alogênico e seus efeitos adversos nos pacientes, bem
como legislações para garantir o respeito à Dignidade da pessoa humana e o Direito
à saúde (artigo 196, CF) e ao consentimento informado (artigo 15, Código Civil e
artigos 22, 24, 31 e 32 do Código de Ética Médica).
Por fim, quanto à fundamentação teórica dos objetivos citados acima, as
referências utilizadas, um destaque para: “Efficacy of red blood cell transfusion in the
critically ill: A systematic review of the literature”, que trata de revisão sistemática da
literatura, onde foi verificada que dos 45 estudos clínicos revisados, envolvendo
272.596 pacientes, em pelo menos 42 deles o risco da transfusão de sangue não
supera o benefício proposto pelos médicos. Em 2 estudos o resultado foi neutro. O
artigo evidenciou que as transfusões de sangue estão associadas com maior risco de
morbidade e mortalidade e, além disso, a prática transfusional deveria ser reavaliada.
O Estudo finaliza dizendo que o médico transfusionista deveria avaliar o risco para o
paciente antes de aplicá-lo sangue mediante uma transfusão.
Aqui, o destaque da relação fática entre o Estado e o cidadão, nos destaques
de Canotilho, tem nos princípios (legais e constitucionais) a estrutura basilar da
segurança social e jurídica para o reconhecimento do mínimo existencial, que na
prática serão apresentados na figura de políticas públicas ou prestações de serviços
públicos nas suas diversas modalidades, e fica evidenciado pelas conclusões
apresentadas, ao final, diante da interlocução do fato social x fato jurídico, diante das
tecnologias e direitos e garantias envolvidos.

DESENVOLVIMENTO

A pesquisa se torna inovadora no Brasil frente às técnicas mundiais e o


aperfeiçoamento de tratamentos médicos, garantindo assim o pleno acesso aos
Direitos Humanos e Fundamentais à saúde de qualidade, ao consentimento informado
e a economia de gastos públicos, princípios da Administração Pública: eficiência e
eficácia.
Norberto Bobbio salienta que os Direitos Humanos não nascem todos de uma
vez e nem de uma vez por todas, assim uma das principais características dos Direitos
Humanos é a historicidade, tendo em vista que estes surgem e se modificam no tempo
e no espaço, sujeitos aos sabores de cada ordenamento positivo de sorte que a sua
curva evolutiva, porém o presente estudo não abordará a evolução histórica,
pormenorizada, apenas, abrangerá, de maneira finalística, os aspectos evolutivos das
tecnologias disponíveis, assim a apresentação se coaduna com a área de atuação do
GT 12, qual seja: Direito e as novas tecnologias.
536

A investigação se alinha ao Direito da seguridade social: Saúde (Lei do SUS:


8.080/90), artigo 196 da Constituição Federal/88, respeito ao consentimento
informado (Direito Civil Brasileiro). Ainda, a pesquisa se reveste de maneira temática
com a linha de pesquisa do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul (UFMS), Doutorado em Saúde e Desenvolvimento na Região
Centro Oeste (saúde e sociedade - avaliação de tecnologias, políticas e ações em
saúde), bem como o Doutorado em Direito do Estado da Universidade de São Paulo
(USP), Disciplina: Teoria Fundamental dos Direitos Humanos e diante dos diversos
temas abordos nos seminários tais como: Garantia Fundamentais; Direitos
Econômicos e Sociais; Princípio da Solidariedade, Princípio da Igualdade, Princípio
da Fraternidade, dentre outros).
Ainda na temática jurídica, como bem cita o professor Vladmir Oliveira da
Silveira: “de forma generalizada a sociedade entende “direitos humanos” como o
conjunto dos direitos essenciais da pessoa humana e de sua dignidade. ” Ao
verificarmos a Constituição Federal logo em seu primeiro artigo, a mesma elevou ao
patamar de fundamento da República Federativa do Brasil o princípio da dignidade da
pessoa humana, e nesse sentido, Flávia Piovesan apresenta sete desafios centrais à
implementação dos direitos humanos na ordem contemporânea, quais sejam: 1)
universalismo x relativismo cultural; 2) laicidade estatal x fundamentalismos religiosos;
3) direito ao desenvolvimento x assimetrias globais; 4|) proteção dos direitos sociais x
dilemas da globalização econômica; 5) respeito à diversidade x intolerâncias; 6)
combate ao terror x preservação de direitos e liberdades públicas; 7) e unilateralismo
x multilateralismo. Nesse caso, o que nos parece, sãos os desafios 2, 3 e 4.
Quanto às novas tecnologias, destacamos: as tendências mundiais no tocante
aos tratamentos médicos isentos de sangue já explicados na introdução, ou por ser
menos invasivos, gerando menos riscos, menos complicações, ou por gerar menos
custos, por ter menor probabilidade de contaminação, por ter menor probabilidade de
infecções, menor tempo de internações e consequentemente maior rotatividade em
leitos hospitalares, possibilitando mais atendimentos; menor probabilidade e
potencialidade de transmissão de novas doenças; uso de novas técnicas, dentre
outras.
Conforme referencial científico, há estratégias comprovadas sobre o controle
de pacientes criticamente enfermos sem o uso de transfusão de sangue alogênico.
Também inclui links para mais de 500 referências em publicações médicas revisadas
por especialistas em procedimentos tais como: avaliação pré-operatória; tratamento
de anemia, minimização de perda sanguínea, preservação do transporte de oxigênio,
técnicas e dispositivos cirúrgicos, manejo de sangue autólogo, melhoria farmacológica
da hemostasia, normotermia e coagulação, recuperação de células (autotransfusão),
hemodiluição intra-operatória, hemoconcentração, tratamento pós-operatório,
tratamento de hemorragia aguda e choque, cirurgia imediata para deter hemorragia,
autotransfusão de emergência, dentre outros, todos disponíveis, em
https://www.jw.org/pt/biblioteca-medica/estrategias-downloads/evitar-controlar-
hemorragia-anemia/.
Num primeiro momento a pesquisa pretende verificar como o desenvolvimento
da saúde no Centro Oeste frente à medicina baseada em evidências e o acesso ao
Direito fundamental aos tratamentos médicos seguros, eficazes e menos onerosos
estava se evoluindo, porém, como o tema é de preocupação nacional, e devido a
reportagem sobre a judicialização de questões médicas, em especial, feita pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no dia 03 de junho de 2016, onde noticiou uma
preocupação, e suas iniciativas, a proposta se dará em apoiar a divulgação de material
537

e protocolos médicos e jurídicos para se evitar a judicialização de matérias referentes


ao respeito ao consentimento informado dos pacientes que optam por tratamentos
isentos de sangue, seja qual for o motivo.
Pretende-se demonstrar, como base em protocolos e meta analises já
realizadas em diversas universidades no mundo, que tratamentos isentos a sangue
são mais eficazes, mais seguros e menos onerosos, evitando assim a redução de
judicialização, garantindo assistência à saúde justa e equânime aos que necessitam,
e ainda reduzindo, aqui no Brasil vultuosos gastos públicos, com adequações
pertinentes ao princípio constitucional da eficiência.
Interessante destacar que o tema é palpitante e sensível, pois o CNJ tem
recomendado que os Tribunais de Justiça de todo o Brasil instalem Núcleos de Apoio
Técnico (NATs) formados por especialistas para subsidiar os magistrados na tomada
de decisões em questões relacionadas ao direito à saúde.
Ainda quanto à questão jurídica, estamos diante da autonomia do paciente no
que tange à autonomia do Direito de Escolha aos Tratamentos Médicos e o Direito de
Escolha de Tratamento sem transfusão de sangue. Esse tema tem proteção
constitucional e legal. Podemos citar o Professor Álvaro Villaça Azevedo, Titular e Ex-
Diretor e da Faculdade de Direito da USP, onde diz:

Por ser um tratamento de graves riscos, a transfusão de sangue pode ser


recusada pelo paciente, conforme possibilita o artigo 15 do Código Civil.
Ressalte-se que os graves riscos podem ser encarados sob duas facetas:
o risco propriamente da intervenção médica, com a sugerida transfusão
de sangue e o risco da própria transfusão que pode contaminar o
organismo do transfusionado com gravíssimas doenças, como procurei
demonstrar. O artigo 15 do Código Civil protege o direito da personalidade
do paciente de recusar a terapia de transfusão, não podendo ser
constrangido à sua realização.

O Ministro do STF Luís Roberto Barroso, no olhar frente à autonomia do


paciente destaca de maneira contundente uma questão de, ao menos, mínimo
existencial, ou como bem retrata, de Direito Humano Fundamental, qual seja:

Nesse ambiente, o paciente deixa de ser um objeto da prática médica e


passa a ser sujeito de direitos fundamentais. Tais transformações são
impulsionadas pelo reconhecimento da dignidade da pessoa humana, que
assegura a todas as pessoas o direito de realizar autonomamente suas
escolhas existenciais. Daí resulta, como consequência natural, que cabe
ao paciente anuir ou não com determinado exame ou tratamento; o médico
não pode substituir-se a ele para tomar essa decisão ou impor qualquer
espécie de procedimento, ainda que fundado em critérios técnicos

Com destaques, nesse estudo, ainda, o Ministro Barroso, menciona o motivo


religioso, onde diz:

A ordem jurídica respeita até mesmo decisões pessoais de risco que não
envolvam escolhas existenciais, a exemplo da opção de praticar esportes
como o alpinismo e o paraquedismo, ou de desenvolver atuação
humanitária em zonas de guerra. Com mais razão deverá respeitar
escolhas existenciais. Por tudo isso, é legítima a recusa de tratamento que
envolva a transfusão de sangue por parte das Testemunhas de Jeová. Tal
decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental
emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito
de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a
538

dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao


Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente.

Digno de nota é que na conclusão, o Ministro, não apenas, em nome da questão


religiosa, e sim em nome do direito à saúde, ou, até do direito à vida (digna), destaca
que o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele
compreendida como expressão de sua dignidade. Esse entendimento também se
coaduna nos mesmos sentidos razões e fundamentos das diretrizes humanitárias do
não paternalismo médico, e sim pela humanização da atenção à saúde do paciente,
alvo de toda atenção médica, conforme dispõe os artigos 22, 24, 31 e 32 do Código
de Ética Médica.
Interessante que a pesquisa não tem como alvo atingir questões de cunho
religioso, conforme o desafio de número 2 citado por Flavia Piovesan, acima, o que
as vezes se coincide, e sim ao direito de livre esclarecimento, à autonomia do paciente
na escolha de tratamentos médicos, à escolha esclarecida, bem como a legitimidade
de recusa como preceitos de garantias fundamentais e escolhas existenciais de
Direitos Humanos.

CONCLUSÃO

Reunir as pesquisas bibliográficas já existentes na Medicina Moderna Mundial,


com destaques à:
 Pesquisa científica realizada com o tema: “Effective Reduction of Blood Product
Use in a Community Teaching Hospital: When Less Is More”, disponível em
https://www.amjmed.com/article/S0002-9343(13)00492-0/fulltext;
 Pesquisa científica realizada com o tema: “Forum for debate: Safety of
allogeneic blood transfusion alternatives in the surgical/critically ill patient”, disponível
em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26183121;
 Pesquisa científica realizada com o tema: “Alternatives to blood transfusion”,
disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23706802.
Analisar dados obtidos junto ao Ministério da Saúde quanto às morbidades,
complicações clínicas e cirúrgicas nos tratamentos com sangue, tempo de internação
e seu custo x benefício aos cofres públicos (princípio constitucional da eficiência).
Analisar a crescente judicialização da saúde no Brasil, quanto ao seu impacto
econômico e estrutural, e como o Poder Judiciário, nos processos em que envolvam
o direito à saúde, pode ampliar o conhecimento e a disponibilização em relação aos
procedimentos e medicamentos no SUS.
Consolidar protocolos e estratégias no enfrentamento do tema, sensível e
emergente nas garantias aos Direitos Humanos e Fundamentais acima mencionados
diante, inclusive, das tecnologias disponíveis, e propor sua aplicação no âmbito dos
Hospitais Universitários Federais do Brasil, iniciando-se com o Hospital Universitário
Maria Aparecida Pedrossian da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul –
HUMAP/EBSERH.
Por fim, quanto ao ensino, promover atualização dos planos pedagógicos dos
cursos envolvidos (Direito, Medicina, Enfermagem, Farmácia e afins).

REFERÊNCIAS
539

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541

LEI 12.441/2011: O NOVO PARADIGMA DA EIRELI NA REALIDADE


EMPRESARIAL
LAW 12.441/2011: EIRELI'S NEW PARADIGM IN BUSINESS REALITY

Rodrigo Vale Vasconcelos


Hilza Maria Feitosa Paixão

Resumo: O presente trabalho objetiva estudar o novo paradigma do instituto da


Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, introduzida pela Lei nº
12.441/2011. Examinando a legislação, as doutrinas e instruções normativas
pertinentes. Evidenciando as mudanças da EIRELI como via alternativa ao
empreendedor. Apontando as características inerentes à EIRELI e suas
especificidades: unipessoalidade com responsabilidade limitada, nome empresarial e
capital. Abordando a viabilidade atual do capital; a possibilidade de pessoa jurídica
figurar como titular, em mais de uma EIRELI; além da hipótese de haver EIRELI
estrangeira e constituída por estrangeiro. Ademais, ratificando este novo paradigma,
analisar-se-á o Projeto de Lei nº1.523/2015, e suas propostas de alteração do instituto
da EIRELI.
Palavras-chave: Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI). Direito
Empresarial.

Abstract: The present work aims to study the new paradigm of the Individual Company
of Limited Responsibility - EIRELI, introduced by Law nº 12.441 / 2011. Examining
relevant legislation, doctrines and policy instructions. Evidencing the changes of
EIRELI as an alternative way to the entrepreneur. Aiming the inherent characteristics
of EIRELI and its specificities: a single person with limited responsibility, business
name and capital. Addressing the current viability of capital; the possibility of a legal
entity to appear as holder, in more than one EIRELI; besides the hypothesis of having
foreign EIRELI and constituted by foreigner. In addition, ratifying this new paradigm,
we will analyze the Bill No. 1,523 / 2015, and its proposals to change the EIRELI
Institute.
Key words: Individual Limited Liability Company (EIRELI). Business Law.

1 INTRODUÇÃO

O trabalho em destaque, tem como objetivo, analisar os principais aspectos da


EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, reavendo o
desenvolvimento do Direito Empresarial e o exercício da atividade empresária que,
perante as espécies existentes no ordenamento jurídico, influenciaram a criação do
instituto da EIRELI, como a mais nova modalidade empresarial. Culminando então, na
inauguração da Lei nº 12.441/2011, disciplinando o instituto da EIRELI.
Não obstante, será abordado, inclusive, as mudanças de entendimento sobre
o instituto da EIRELI. Analisando o novo paradigma que se encontra, no que diz
respeito a viabilidade da integralização do capital mínimo de 100 (cem) salários
mínimos; a possibilidade de constituição da EIRELI por pessoa jurídica; além da figura
do estrangeiro como titular da empresa e a hipótese de EIRELI estrangeira.
De outro bordo, vê-se que este novo paradigma da EIRELI, posiciona-se como
via alternativa entre os institutos do empresário individual e das sociedades
personificadas, com a possibilidade de ser constituída por pessoa natural ou jurídica,
nacional ou estrangeira, conforme a doutrina e dispositivos normativos.
542

Por fim, para ratificar as vertentes aduzidas pela Empresa Individual de


Responsabilidade Limitada, o presente trabalho faz uma breve observação do Projeto
de Lei nº 1.523/2015, que altera o instituto da EIRELI e pacifica as discursões
doutrinárias, ao positivar no instrumento legislativo as análises postas por esse
estudo.

2 A ATIVIDADE EMPRESÁRIA E A UNIPESSOALIDADE

No Brasil, desenvolveu-se um empreendedorismo por meio das atividades


empresárias de microempresas e empresas de pequeno porte. Todavia, o Direito
Empresarial ainda deixa a desejar, pois, apesar da facilitação da atividade empresária
com o advento do Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno
Porte, visto que solucionava as adversidades tributárias, financeiras e burocráticas,
as modalidades empresárias palpáveis ao microempreendedor sofrem de
inseguranças jurídicas que inviabilizam o empreendedorismo no território nacional.
Nesse contexto, é evidente a necessidade de uma modalidade empresária que
conceitue uma via alternativa para o exercício regular da atividade empresária.
Neutralizando a crescente irregularidade no exercício das atividades comercias,
limitação da responsabilidade para com o empreendedor individual e de articulações,
no direito societário, para a criação das figuras dos “sócios fictícios” ou “sócios
laranjas”.
Desta maneira, instituiu-se, em 11 de julho de 2011, a Lei nº 12.441, que
inaugurou o instituto da EIRELI no ordenamento jurídico brasileiro, possibilitando
empreender por meio de pessoa jurídica com único titular e responsabilidade limitada.

2.1 A EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA – EIRELI

O instituto da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI,


objetivou-se em estabelecer no ordenamento jurídica brasileiro, uma via alternativa às
modalidades empresárias existentes. Por intermédio da instituição da Lei nº 12.441,
em 11 de julho de 2011, o legislador disciplinou, no dispositivo legal, a mais recente
pessoa jurídica de direito privado, dotada de autonomia e peculiaridades que somam
ao Direito Empresarial e corroboram para o exercício da atividade empresária no
cenário brasileiro.

2.2 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

A singularidade da modalidade empresária presente no art. 44, VI do Código


Civil, consiste na limitação da responsabilidade do titular do capital, através de
personalidade própria, afastando a vulnerabilidade da responsabilidade, viabilizando
a hipótese de uma única pessoa totalizar a titularidade do capital. Desta maneira,
sendo substanciada através da ótica de Frederico Garcia Pinheiro (2012, s/p):

Esse novo instituto jurídico autoriza determinada pessoa natural a


constituir pessoa jurídica para a exploração de empresa, sem a
necessidade de se juntar a algum sócio, sendo uma opção razoável e há
muito tempo aguardada pelos empresarialistas. Afinal de contas, antes da
Lei n. 12.441/2011 o empresário individual não tinha escolha: se quisesse
explorar determinada empresa, sem a colaboração de sócios, estaria
arriscando todo o seu patrimônio pessoal e penhorável.
543

Portanto, apesar da redação do artigo 980-A não oferecer conceito para a nova
figura jurídica, a interpretação literal da nomenclatura do instituto abarca, em seu
âmago, o exame necessário para a EIRELI. Assim, o dispositivo legal mencionado a
caracteriza como: uma empresa, constituída por uma única pessoa, que dispões de
limitação quanto ao capital, este, totalmente integralizado, de no mínimo 100 (cem)
vezes o maior salário mínimo vigente no país.
No que tange à natureza jurídica da EIRELI, não há que se falar em atribuição
competente a sociedade ou empresário. E sim, em uma novidade dentre as
modalidades empresariais presentes no ordenamento jurídico, conforme o artigo 44,
VI do Código Civil.
Todavia, apesar das fundadas críticas se encontram referentes ao caput, §§1º
e 6º do art. 980-A, inerentes ao direito societário, a fim de solucionar as divergências,
ratificou-se a nova modalidade nos enunciados da V Jornada de Direito Civil e I
Jornada de Direito Comercial. Conforme retifica Marlon Tomazette (2017, p.95):

Por fim, há quem afirme que se trata de uma nova pessoa jurídica, como
o Enunciado 469 da V Jornada de Direito Civil que diz: “A empresa
individual de responsabilidade limitada (EIRELI) não é sociedade, mas
novo ente jurídico personificado.” De modo similar, o Enunciado 3 da I
Jornada de Direito Comercial, diz: “A Empresa Individual de
Responsabilidade Limitada – EIRELI não é sociedade unipessoal, mas um
novo ente, distinto da pessoa do empresário e da sociedade empresária.”.

Portanto, segundo a análise acerca da natureza jurídica da Empresa Individual


de Responsabilidade Limitada, a instituição da Lei nº 12.441/2011, com a inclusão do
artigo 980-A e inciso VI ao artigo 44 no Código Civil, além da alteração do artigo 1.033
do mesmo Código, estabelecem a personalidade jurídica de direito privado própria
para esta modalidade, distinta das demais. Ademais, ratificadas pelas averbações
supracitadas.

2.3 CARACTERÍSTICAS

Dentre os fatores inerentes e representativos da Empresa Individual de


Responsabilidade Limitada, são característicos da modalidade: a unipessoalidade
com responsabilidade limitada do titular na empresa; o nome empresarial, cujo termo
“EIRELI” é essencial, ao final, tanto da firma quanto na denominação; e o capital, cuja
integralização está caracterizada pelo piso mínimo de 100 (cem) salários mínimos.
Visto que, constitui-se de uma pessoa jurídica de direito privado, onde há a
centralização da titularidade e responsabilidade (esta limitada), da empresa, na figura
de uma pessoa só – sendo esta pessoa natural ou jurídica.
Na seguinte característica inerente, encontramos a definição de um nome
empresarial peculiar pela utilização da sigla “EIRELI” em ambas as hipóteses de
constituição da nomenclatura adotada pela empresa, como fator obrigatório e
necessário.
Por fim, a característica mais enfática e polêmica, porém não mais relevante, é
o capital integralizado à EIRELI de, no mínimo, 100 (cem) salários mínimos do vigente
no Brasil. Visto que, em 2011, o capital mínimo integralizado exigido para constituição
de uma EIRELI, totalizaria R$ 54.500,00 (cinquenta e quatro mil e quinhentos reais),
razoavelmente palpável com a realidade. Já no ano de 2018, integralizar-se-á a
quantia de R$ 95.400,00 (noventa e cinco mil e quatrocentos reais).
Portanto, antagonizando com o objeto do legislador, quanto a criação da nova
544

modalidade empresária. Visto que, o pequeno empreendedor não compatibilizará com


o requisito do artigo 980-A do Código Civil, em integralizar ao capital da empresa o
valor “(...) inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País”.

3 ASPECTOS RELEVANTES DA EIRELI

É evidente que, mesmo com o ordenamento que a Lei 12.411/2011


proporciona, é necessário disciplinar sobre a constituição da EIRELI, objetivando sua
padronização e regulação.
Desta maneira, foram instituídas normas, pelo Departamento Nacional de
Registro de Comércio – DNRC, em competência estabelecida pelo art. 4º, II da Lei
8.934/1994. Inaugurando-se a Instrução Normativa nº 117, aprovando o Manual de
Atos de Registro de Empresa individual de Responsabilidade Limitada. Dispositivo
que foi devidamente modificado, pelo Departamento de Registro Empresarial e
Integração – DNREI (ou DREI), através Instrução Normativa nº 26, em 10 de setembro
de 2014, que altera o Manual, cujo item 1.2.7 elenca os requisitos do ato constitutivo
da EIRELI.
Com relação às formas existentes de constituição da empresa individual de
responsabilidade limitada, podemos suscitar que o surgimento desta modalidade
empresária ocorre de duas maneiras: através de modo originário, no qual a pessoa
natural ou jurídica, disciplinada pelos requisitos à constituição da EIRELI, realiza o ato
constitutivo. E por modo derivado, por intermédio da reorganização empresarial, de
forma a alterar modalidade já existente. Conforme doutrina Fran Martins (2017, p.198):

É fundamental assinalar que, com a entrada em vigor da Lei nº


12.441/2011, tornou-se possível a constituição da empresa individual,
revestida de personalidade jurídica, que enseja concluir a sua forma
originária de constituição, ou derivada, mediante regularização na Junta
Comercial.

A reorganização empresarial, compreende quatro institutos: a transformação, a


incorporação, a fusão e a cisão. Todavia, a única hipótese de constituição da EIRELI,
de modo derivado, é através da transformação do registro da existente sociedade
empresária por quotas em EIRELI. Conforme verifica Irineu Mariani (2015, p.105):

Observado o § 3º do art. 980-A e o parágrafo único do art. 1.033, ambos


do Código Civil, extraem-se duas conclusões: (a) ambos referem
concentração de quotas e concentração de todas as quotas, deixando
claro que somente sociedades por quotas podem ser transformadas em
empresa individual, isto é, excluem as por ações (anônima e a em
comandita por ações); e (b) o parágrafo único, na redação da Lei
12.441/2011, contempla as duas espécies de empresas individuais
(FIRMA e EIRELI).

Desta maneira, é necessário exaurir o quadro societário para a concentração


das quotas em um único sócio, independentemente da motivação, seja: por ato
voluntário ou inter vivos, isto é, quando um sócio adquira todas as quotas mediante
acordo de cessão. E, “por ato involuntário ou mortis causa, como acontece, por
exemplo, na sociedade entre pai e filho, reciprocamente herdeiros únicos” (MARIANI,
2015, p.107). Devendo o sócio remanescente, após concentrado a totalidade das
quotas, requerer a transformação do registro da sociedade para EIRELI, no Registro
Público de Empresas Mercantis.
545

De maneira originária, a EIRELI poderá ser constituída por pessoa natural e


jurídica, conforme o art. 980-A, caput do Código Civil, instituído pela Lei nº
12.441/2011, “a empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por
uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado,
que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País”
(BRASIL, 2002). Visto que, na esfera de domínio do Direito de Empresa, em diversas
situações, a legislação se utiliza do gênero “pessoa”, propositalmente para abarcar as
espécies natural e jurídica. Já que, de igual forma, especifica nos dispositivos legais
“pessoa natural”, de maneira que seja excluída a “pessoa jurídica”. E ao tratar de
direito privado, salvo disposição legal proibitiva, considerar-se-á permitido, conforme
o artigo 5º, II da Constituição Federal.
Quanto a pluralidade de EIRELI, na possibilidade da pessoa jurídica, apesar da
estar expresso somente a proibição para pessoa natural, não está defeso à pessoa
jurídica constituir uma “única empresa dessa modalidade” (BRASIL, 2002), conforme
o artigo 890-A, § 2º do Código Civil. Ademais, em 2018, mediante Instrução Normativa
nº 47, o DREI reconhece a limitação para titularidade de única EIRELI está relacionada
às pessoas naturais, permitindo às pessoas jurídicas titularidade em mais de uma.
Na análise, suscitamos a hipótese de uma EIRELI estrangeira e constituída por
estrangeiro, seja pessoa natural ou jurídica. Distinguindo-se pela nacionalidade da
pessoa jurídica e do instituidor. Onde, em virtude da ausência de conceito legal acerca
de empresa estrangeira, valemo-nos do conceito de sociedade nacional que, “É
nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no
País a sede de sua administração” (BRASIL, 2002), conforme artigo 1.126 do Código
Civil – através do uso subsidiário do direito societário, conforme o artigo 890-A, § 6º
do Código Civil.
Acerca da EIRELI constituída por pessoa natural estrangeira, é necessária a
autorização de permanência no Brasil, ou intuito de exercer determinada atividade
econômica, conforme da Resolução Normativa nº 62, do Conselho Nacional de
Imigração:

Estabelecer normas para a concessão de autorização de trabalho e de


visto permanente a estrangeiro, administrador, gerente, diretor, executivo,
com poderes de gestão de sociedade civil ou comercial, grupo ou
conglomerado econômico. (BRASIL, 2004)

Todavia, há impedimentos e restrições aos estrangeiros ao constituir EIRELI.


Quanto a titularidade, estão vetados de exercer atividades nos setores econômicos
considerados estratégicos à economia nacional. Quanto à administração, os
impedimentos e restrições aos estrangeiros estão disciplinados no Manual de Registro
da EIRELI.

4 ANÁLISE DA EIRELI SOBRE O PROJETO DE LEI Nº 1.523/2015

De maneira a enfatizar toda a análise construída a este ponto, a Câmara


Deputados, através do papel legislativo, estabeleceu o Projeto de Lei nº 1.523/2015.
Objetivando pacificar discussões acerca do tema, com a modificação da Lei nº
12.441/2011. A proposta da PL nº 1.523/2015 vem alterar o artigo 980-A do Código
Civil, que trata da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI).
Evidencia-se no caput da alteração do art. 980-A do Código Civil, a inclusão,
pelo legislador, da pessoa jurídica como possível titular a constituir uma EIRELI. E na
alteração do § 2º do mesmo artigo, a taxatividade acerca do titular figurar somente em
546

uma única empresa da modalidade. Por fim, pacifica a possibilidade do capital ser
nacional ou estrangeiro, de maneira que legisla a convergência do capital externo na
participação no mercado brasileiro. Conforme disserta Fran Martins (2017, p.334):

O Brasil buscou se ajustar, ao longo dos anos, às regras da globalização


e do mercado concorrencial, principalmente com a injeção de recursos
externos e a circunstância de empresas nacionais com operações
internacionais [...]
A abertura de mercado e a criação de infraestrutura propiciam a vinda do
capital externo, com a maciça participação de fundos de investimentos,
sendo retrato mais pungente da consolidação da atividade empresarial em
mãos do capital estrangeiro.

Solucionando ainda, o antagonismo sobre a necessidade da total integralização


à vista do capital mínimo para a constituição da EIRELI, com base no salário mínimo
vigente no Brasil. Na medida que, com base no Princípio da Livre Concorrência,
distinguiu os capitais necessários para, “não será inferior a 25 (vinte e cinco) vezes o
maior salário-mínimo vigente no País se sua natureza for simples e 100 (cem) vezes
o maior salário-mínimo se sua natureza for empresarial” (BRASIL, 2015), conforme
alteração do artigo 980-A, do Código Civil, proposta pela PL nº 1.523/2015.
Dentre as alterações sobre o atual artigo 980-A, do Código Civil, o legislador foi
atencioso a, desde já, disciplinar as normas e diretrizes quanto ao capital estrangeiro
destinado à constituição da EIRELI, regulamentado na Lei nº 4.131/1962, que
disciplina a aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores entre outras
providências. Isto, através da inclusão de §§ 7º e 8º ao artigo instaurado pela Lei
12.441/2011.
Portanto, com a vinda aprovação do Projeto de Lei nº 1.523/2015, o instituto da
EIRELI sofrerá grande avanço, na medida que pacificará o atual entendimento
doutrinário e de instruções normativas dos órgãos competentes.

5 CONCLUSÃO

Destarte a análise acerca do instituto da EIRELI, verifica-se a metamorfose da


modalidade empresária, através de novo paradigma. Como modalidade empresária,
mais adequada às necessidades do micro e pequeno empreendedor, viabilizando o
exercício da atividade empresarial de maneira unipessoal, com a limitação de
responsabilidade pelo capital integralizado no negócio.
Verifica-se, ainda, um conceito impreciso, porém autoexplicativo e uma
fundamentação legal pouco explorada pelo legislador, restando a doutrina dissertar
sobre o instituto, muito se utilizando do direito societário, apesar de ser modalidade
autônoma.
Ao analisar as características peculiares e aspectos inerentes da EIRELI,
observou-se o desenvolvimento da figura do titular da empresa que, antes exercida
somente por pessoa natural, já constar regulado na específica instrução normativa e
entendimento doutrinário, a viabilidade da hipótese de pessoa jurídica integrar tal
campo, esta, com titularidade em mais de uma EIRELI.
Ademais, por intermédio da pesquisa elaborada, com base na doutrina e
normas inerentes, constatou-se a possibilidade, no Direito Empresarial, do estrangeiro
representar a titularidade da empresa, como também, a constituição de uma EIRELI
estrangeira. De maneira que, ainda se deve muito amadurecer o estudo acerca da
temática, por se tratar de um inovador aspecto para o instituto. Possibilitando a maior
entrada do mercado estrangeiro nas relações empresariais do território brasileiro.
547

Constataram-se circunstâncias que questionam a viabilidade do capital mínimo


a ser integralizado. Confrontando a proposta original do instituto, neutralizando o
desenvolvimento da atividade empresária e a modalidade, na medida que, em 2018,
o capital mínimo de 100 (cem) salários mínimos, representa quase 20 (vinte) vezes o
valor médio mensal arrecadado pelo empreendedor individual.
Por conseguinte, o Legislativo já se mobiliza para regulamentar os novos
parâmetros da modalidade empresária, materializando-se no Projeto de Lei nº
1.523/2015.
Portanto, neste cenário, o estudo se torna enfático em demonstrar o novo
paradigma do instituto, resultante da evolução da EIRELI na realidade empresarial do
país. Tendo em vista o progresso da análise da modalidade empresária em seu
desenvolvimento, desde a instituição da Lei nº 12.441/2011.

REFERÊNCIAS

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Nacional de Imigração. 2004. Disponível em:
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______. Instrução normativa nº 47, de 03 de agosto de 2018. Alteração do Manual
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Disponível em: <http://www.mdic.gov.br/images/REPOSITORIO/SEMPE/DREI/
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______. Instrução normativa nº 117, de 22 de novembro de 2011. Manual de Atos
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201. Disponível em: <http://drei.mdic.gov.br/clientes/drei/drei/legislacao/instrucoes-
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Acesso em: 08 nov. 2017.
______. Instrução normativa nº 26, de 10 de setembro de 2014. Alteração do Manual
de Registro da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada. Brasília, DF, 2014.
Disponível em: <http://drei.mdic.gov.br/clientes/drei/ drei/legislacao/instrucoes-
normativas/titulo-menu/pasta-instrucoes-normativas-em-vigor-04/in-26-2014-altera-a-
in-10-2013.pdf>. Acesso em: 05 nov. 2017.
______. Lei nº 10/2002, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro. Brasília:
Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 03 nov.
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______. Lei nº 12.441/2011, de 11 de julho de 2011. Altera a Lei nº 10.406, de 10 de
janeiro de 2002 (Código Civil), para permitir a constituição de empresa individual de
responsabilidade limitada. Brasília, DF, 2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12441.htm>. Acesso
em: 18 out. 2017.
______. Projeto de lei nº 1.523/2015, de 13 de maio de 2015. Alteração da Lei nº
12.441/2011. Brasília, DF, 2015. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=F48D13
9C54A9C43224C95108D4E7B56F.proposicoesWebExterno1?codteor=1333768&file
name=PL+1523/2015>. Acesso em: 29 out. 2017.
MARIANI, Irineu. Empresa individual de responsabilidade limitada Eireli: a nova
pessoa jurídica no cenário brasileiro. Porto Alegre: Age Editora, 2015.
548

MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial: empresa comercial, empresários


individuais, microempresas, sociedades empresárias, fundos de comércio. Rio de
Janeiro: Forense, 2017.
PINHEIRO, Frederico Garcia. Empresa individual de responsabilidade limitada. Ordo
Vocatus, Goiânia. v. 1, n. 1, 2012. Disponível em:
<http://revista.oabgo.org.br/index.php/OV/article/viewFile/48/43>. Acesso em: 26 out.
2017.
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: teoria geral e direito societário.
8. ed, v.1. São Paulo: Atlas, 2017.
549

MARCAS DO PASSADO: O CONFRONTO ENTRE A DISPONIBILIDADE E O


APROVEITAMENTO PARASITÁRIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
TRADEMARKS OF THE PAST: THE CONFRONTATION BETWEEN AVAILABILITY
AND PARASITICAL USE IN BRAZILIAN LEGAL ORDINANCE

Axel de Souza Belarmino


Fabio Barreto da Silva

Resumo: Por meio dos institutos da disponibilidade1 que é uma das condições para
obtenção de registro de marcas no Brasil e do Aproveitamento parasitário2 oriundo da
concorrência desleal, o estudo que está em desenvolvimento identificou marcas
extintas que tornaram a existência, porém com titularidade diversa de sua origem, tais
como: Yopa, Varig e Picolé do China. Além dessas existem outras marcas que
também estão disponíveis e a qualquer momento podem ser registradas por qualquer
pessoa. O presente trabalho vem com objetivo de tentar responder a seguinte
problemática: Perante o sistema de registro de marcas no Brasil pode qualquer
empresa registrar marca disponível? Mesmo que esta já tenha sido de outro titular?
Palavras-chave: Aproveitamento Parasitário. Concorrência Desleal. Disponibilidade.
Marcas. Propriedade Industrial.

Abstract: Through the institutes of availability that is one of the conditions for obtaining
trademark registration in Brazil and the parasitic use arising from unfair competition,
the study that is in development identified extinct brands that have made existence,
however with ownership different from its origin, such as: Yopa, Varig and China's
Popsicle. In addition to these there are other trademarks that are also available and at
any time can be registered by anyone. The present work comes with the objective of
trying to answer the following problematic: Before the system of registry of marks in
Brazil can any company register trademark available? Even if it has already been
another Owner?
Key words: Parasitic use. Unfair competition. Availability. Trademarks. Industrial
property.

INTRODUÇÃO

Quando as pessoas pensam como eram suas vidas a 10 ou 20 anos atrás


sempre lembram de como era a sociedade naquele determinado período. E fazendo
isso todos revêem em suas mentes os lugares por onde passaram, as pessoas que
conheceram e consequentemente as marcas de produtos e serviços que consumiram.
Os adultos de hoje são as crianças dos anos 90 que não esqueceram seu canal
favorito, a Manchete, transmitia uma programação repleta de desenhos e séries, ou
mesmo aqueles com um pouco mais de idade - quando puxam na memória as dívidas
que tinham - sempre lembram dos bancos: Bamerindus, Real ou Unibanco. A
população em geral se recorda de fazer compras na Mesbla, Mappin e Arapuã. Em
um tempo pregresso cada uma dessas marcas atingiu um grande sucesso, e além
disso, o que cada uma delas tem em comum? Deixaram de existir. No entanto, para
um grande número de consumidores essas e muitas outras marcas continuam vivas
em suas memórias a tal ponto que se na atualidade for anunciada a volta de algumas

1
Segundo Lélio Schmidt o principio da disponibilidade também pode ser chamado de principio da novidade, pois só está
disponível a marca que é nova, ou seja, aquela que não viola outro símbolo existente.
2
550

das mesmas, com certeza atingirá um grande número de clientes pré-dispostos a


comprar seus produtos ou utilizar seus serviços.

DESENVOLVIMENTO

A pesquisa está sendo desenvolvida por meio do estudo dogmático jurídico,


que através das divergências entre alguns dos princípios do desenvolvimento
econômico encontrou resultados nocivos ao interesse público. Através de pesquisas
em sites oficiais do governo são encontradas situações amparadas em lei, embora o
estudo casuístico registre antinomia entre leis basilares do mesmo ramo do direito. A
doutrina consultada aborda o sentido horizontal das normas de propriedade industrial,
assim como as regras de proteção ao processo competitivo. Por isso o entendimento
a cerca da importância da pesquisa que verticaliza e se aprofunda no estudo de casos,
através da lei, doutrina, websites e jornais, para extrair os resultados prático jurídicos
que a compõe.

OBJETIVOS

Perante o sistema de registro de marcas no Brasil pode qualquer empresa


registrar marca disponível? Mesmo que esta já tenha sido de outro titular? Neste caso
estaria configurado o Aproveitamento Parasitário? Em esforço para responder tais
questões serão investigados os conceitos de marca, da disponibilidade e da teoria do
Aproveitamento Parasitário e a apresentação prática de formas de aproveitamento
parasitário de alguns agentes, que se utilizam da liberalização das regras de comércio,
necessárias para o desenvolvimento econômico da sociedade, com o desvio de
clientela exercido pela prática de comércio ou prestação de serviços que ferem o
direito de escolha do consumidor quanto à origem e qualidade dos mesmos.

ABORDAGEM TEÓRICA

Segundo Schmidt (2016, p. 9, apud MARTHELY, 2013, p. 32) “A marca é um


sinal distintivo que identifica um produto ou serviço”.
Na definição conceitual de Marthély duas premissas são essenciais para que
um sinal se torne uma marca, a distintividade e a identificação. Um sinal que não é
distinto dos demais e também não identifica a origem não se auto completa, portanto
não é uma marca. A partir da distintividade pode-se extrair a disponibilidade,
compreendida como “o sinal pelo qual se apresenta a marca deve ser distinto dos
demais existentes em uso ou sob registro de outra empresa, pertencente ao mesmo
gênero de atividade ou afim”.(TRF-2, 2013) Assim, iniciado o 9º ano de vigência de
uma marca registrada, o artigo 133 da lei de Propriedade industrial permite ao titular
prorrogar por mais 10 anos a vigência do registro. A ausência do pedido formal de
prorrogação da validade acarretará a sua extinção. Toma-se o entendimento tácito de
não haver mais interesse do titular em continuar investindo no signo distintivo. Deste
modo a pesquisa se inicia após a publicação oficial do INPI da extinção do registro,
ficando assim a marca disponível para qualquer interessado que deseja se apropriar
de tal sinal, todavia, este fato pode ser interpretado como aproveitamento parasitário.
Uma forma de identificá-lo pode ser encontrada na definição de Manzueto (2013): “o
aproveitamento parasitário, também conhecido como comportamento parasitário, visa
à utilização da fama e prestígio de marcas de terceiros. Caracteriza-se pelo uso da
marca alheia para beneficiar seu negócio”. Isto posto, no caso das marcas extintas
551

que detinham alguma fama entre os consumidores, é fato que um novo requerente
estaria usurpando-se da popularidade do signo antigo. Na hipótese de uma nova
empresa de comunicação requerer a marca Manchete3, a conquista de grande parte
de seus telespectadores se daria pelo sentimento gerado nas pessoas pela marca
extinta, a assistirem tal canal por nostalgia e acreditando se tratar das mesmas
características do antecedente.
E o professor Carlos Affonso Pereira de Souza assim sintetiza a questão:

“Diz-se que na concorrência parasitaria não se agride de modo ostensivo,


direto ou frontal, mas de forma indireta, sutil e sofisticada. O que a
caracteriza é o fato de tais atos não se enquadrarem na noção clássica e
convencional de concorrência desleal, onde a finalidade precípua é o
desvio de clientela, e não o aproveitamento do trabalho e do investimento
alheio. Nessa modalidade, o parasita se aproveita de um elemento atrativo
de clientela de terceiro (que não é seu concorrente) sem necessariamente
prejudicar e desviar consumidores deste. (FGV, 2017)

Tal entendimento confirma que uma marca que já foi utilizada e ganhou
determinada fama, não está mais disponível, ao menos enquanto os consumidores
possam ligar aquela marca ao titular originário (SANTOS, 2007). A posição da
Propriedade Industrial é ambivalente uma vez que protege o direito do titular de dispor
de sua marca durante a vigência e não admite que o consumidor possa ser induzido
a erro quanto à origem do produto ou serviço que lhe será prestado. Um requisito
importante que deve ser analisado no presente assunto diz respeito à conduta de
qualquer requerente que agindo de boa-fé não se aproprie da marca do passado afim
de evitar que a memória do consumidor seja utilizada como forma de parasitismo.
Mais uma vez Schmidt ensina que “A própria LPI traz várias outras situações em que
a preferência deve ser respeitada, ao vedar que alguém registre como marca: (...) c)
marca que o depositante evidentemente não poderia desconhecer em razão de sua
atividade (art. 124, XXIII)”. Considera-se a percepção do autor para trazer à
possibilidade de uma proteção a marca extinta com alguma notabilidade. Segundo
Schmidt se por algum motivo a marca for extinta o titular perde o direito de
exclusividade, e isso caracterizaria a disponibilidade que neste caso entra em colisão
com o que é chamado de Aproveitamento Parasitário, isto é, uma empresa requerente
de uma marca extinta, portanto disponível, está aproveitando a fama e sucesso
ascendidos pela marca quando da titularidade de um outro agente. Gama Cerqueira
é ainda mais claro neste assunto, pois ele disserta que “A falta de renovação do
registro na época própria importa a perda da marca, que reverte para o domínio
público, podendo ser registrada por terceiros que dela queiram apropriar-se”. Todavia,
em contra ponto aos autores citados, tem o argumento que aquele que se aproveita
do esforço e reputação alheia está praticando uma espécie de parasitismo, que nada
mais é do que uma forma de má-fé. Além da credibilidade granjeada no mercado
algumas marcas extintas tiveram a capacidade de marcar a história de seus clientes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do todo apresentado, conclui-se que o Direito ainda não ultrapassou os


fatos existentes no dilema atual. O direito de precedência ao registro de marca, uma
excepcionalidade ao sistema atributivo adotado no país, protegido pela lei de

3
Esse fenômeno, de retornar ao mercado após longo período, ocorreu com algumas marcas como o chocolate Lollo, o biscoito
Mirabel e o eterno carro Fusca.
552

propriedade industrial4, assegura que é possível a anulação do pedido de registro de


uma marca de um terceiro, desde que o requerente da anulação tenha utilizado, de
boa-fé, uma marca ao menos 6 meses antes do pedido de registro de marca desse
terceiro, que de alguma maneira geraria confusão para os consumidores. A LPI
também garante um tipo de indisponibilidade de 5 anos5 para o pedido de registro de
uma marca coletiva ou de certificação após a sua extinção. O presente trabalho está
em andamento e pretende fomentar discussões nos ambientes acadêmico,
profissional e técnico com o intuito de uma possível alteração normativa que verse
sobre tal problemática. Espera-se que a jurisprudência e a doutrina venham ser mais
intensas no assunto abordado na pesquisa.

REFERÊNCIAS:

BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2º Edição


Revista e Atualizada. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003.
_______________________ Proteção das Marcas, Uma Perspectiva Semiológica.
Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2008
BRASIL. Tribunal Regional Federal (2. Região) Segunda Turma Especializada.
Apelação cível nº 2008.51.01.814357-7. Relator: Des. Federal Liliane Roriz, 25 de
setembro de 2012.
CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Volume II, Tomo II,
Parte II; Rio de Janeiro - Editora Lumen Juris, 2012.
FGV Direito Rio. Disponível em:<http://academico.direito-
rio.fgv.br/wiki/Concorr%C3%AAncia_desleal> Acesso em 02 de julho de 2017
MANZUETO, Cristiane dos Santos, TAVARES DIAS, Fernanda Mósca. Concorrência
desleal, concorrência parasitária e aproveitamento parasitário. In: A propriedade
intelectual no novo milênio. São Paulo:ASPI, 2013
SANTOS, Manoel J. Pereira dos; JABUR, Wilson Pinheiro. Propriedade intelectual:
sinais distintivos e tutela judicial e administrativa, São Paulo: Saraiva, 2007
SCHMIDT, Lélio Denicoli. Marcas: Aquisição, Exercício e Extinção de Direitos. 1. Ed.
– Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

4
Lei 9.279 – art. 129, § 1º Toda pessoa que, de boa fé, na data da prioridade ou depósito, usava no País, há pelo menos 6 (seis)
meses, marca idêntica ou semelhante, para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim, terá direito
de precedência ao registro.
5 Lei 9.279 - art. 154. A marca coletiva e a de certificação que já tenham sido usadas e cujos registros tenham sido extintos não
poderão ser registradas em nome de terceiro, antes de expirado o prazo de 5 (cinco) anos, contados da extinção do registro.
553

PERSPECTIVAS SOBRE O USO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO PROCESSO


DE DECISÃO JUDICIAL
PERSPECTIVES ON THE USE OF ARTIFICIAL INTELLIGENCE IN THE
PROCEDURE OF JUDICIAL DECISION

Samuel Rodrigues de Oliveira


Ramon Silva Costa
Denis Franco Silva

Resumo: Atualmente, sistemas baseados em inteligência artificial (IA) têm sido


utilizados no processo de argumentação jurídica e de tomada de decisões judiciais.
Apesar da pretensão de se utilizar softwares para a solução de casos jurídicos,
acreditamos não ser possível alcançar a correção de uma decisão judicial sem o
emprego de atividade humana. O presente trabalho objetiva investigar se,
considerados os aspectos pertinentes da teoria da argumentação jurídica de Alexy,
seria possível atribuir a uma IA a atividade de julgar, a partir das teorias de Searle.
Metodologicamente, emprega-se o método dedutivo somado a revisão bibliográfica a
fim de se responder ao problema apresentado.
Palavras-chave: Argumentação jurídica; decisão judicial; inteligência artificial.

Abstract: Nowadays, systems based on artificial intelligence (AI) have been used in
the process of legal argumentation and judicial decision making. Despite the
pretension of using software for the solution of legal cases, we believe that it is
impossible to achieve the correction of a judicial decision without human activity. The
present work aims to investigate whether, considering the pertinent aspects of Alexy's
Theory of Legal Argumentation, it would be possible to grant an AI the activity of
judging, from the perspective of Searle's theories. Methodologically, the deductive
method is used in addition to bibliographic review to answer the introduced problem.
Key-words: Artificial intelligence; legal argumentation; judicial decision.

1 INTRODUÇÃO

Atualmente, sistemas baseados em inteligência artificial (IA) já operam nas


mais diversas áreas do cotidiano. Inúmeras realizações tecnológicas que antes
pareciam pertencer apenas à ficção científica acabaram por se tornar reais e
pertencentes ao dia-a-dia humano. Diante de sua crescente ubiquidade e enorme
potencial de comercialização, a inteligência artificial tem gerado investimentos
maciços por parte do setor privado, e o prognóstico que se apresenta é que seu uso
se torne cada vez mais disseminado em um futuro próximo, avançando, inclusive, para
a esfera pública – o que já se verifica em certa medida.
Nesse sentido, diante da crescente demanda pela atuação do Estado, a
tendência mundial – à qual o Brasil tem se atentado – é implementar atividades e
serviços públicos alicerçados por sistemas de IA. Estudos recentes indicam que os
benefícios mais óbvios no uso da IA pela gestão pública são aqueles que possam
reduzir encargos administrativos, ajudar a resolver os problemas de alocação de
recursos e assumir tarefas significativamente complexas e indicam que hoje os
serviços estão concentrados em cinco categorias, quais sejam, responder questões,
preencher e pesquisar documentos, gerenciamento de pedidos, tradução e
elaboração de documentos (MEHR, 2017).
554

No âmbito do Direito, alguns sistemas jurídicos inteligentes têm surgido para


tentar solucionar problemas e agilizar a tramitação processual, por meio de diferentes
técnicas, como o ROSS e o Public Safety Assessment nos Estados Unidos, e
VICTOR, no Brasil. Face a essa situação, o objetivo da presente pesquisa é investigar
se é possível atribuir a atividade jurisdicional, nomeadamente a capacidade de decidir,
a uma “máquina” com inteligência artificial. A partir de reflexões nos âmbitos da
filosofia do Direito e da filosofia da mente, a hipótese levantada é que a atividade de
julgar é um ato essencialmente humano, e, portanto, não poderia ser delegado a um
sistema de IA. Destarte, utilizar-se-á como guia a Teoria da Argumentação Jurídica
de Robert Alexy (2005), analisando-se a concepção de IA sob a perspectiva da
filosofia da mente de John Searle.

2 METODOLOGIA

Metodologicamente, realizou-se pesquisa qualitativa de revisão bibliográfica, e,


mediante o método dedutivo, buscou-se obter respostas ao questionamento
apresentado na introdução do presente trabalho. A partir de tal método, intentou-se
compreender as características essenciais referentes à inteligência artificial e aos
sistemas jurídicos inteligentes, bem como apreender os elementos mais importantes
da filosofia do Direito de Alexy, de modo a se responder o problema exposto.

3 A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E SUA APLICAÇÃO NO DIREITO

Conquanto inexista consenso na literatura especializada sobre o conceito de


inteligência artificial, é possível afirmar, em linhas gerais, tratar-se da tentativa de
reprodução, em sistemas artificiais, da cognição humana e seus mais variados
componentes, como o aprendizado, a memória e o processo de tomada de decisões.
Uma boa definição acerca do conceito de IA, contudo, é aquela formulada por John
McCarthy, considerado o “pai da inteligência artificial”, que formulou o conceito nos
seguintes termos: fazer com que uma máquina se comporte de maneira que, caso se
tratasse de um ser humano, seria considerada inteligente (MCCARTHY, 2000).
Adota-se, neste trabalho, uma definição de inteligência artificial que se
enquadra naquilo que Searle, teórico da filosofia da mente, denomina “IA fraca”.
Partindo-se do pressuposto de que programas de computadores, assim como os
computadores em si, são ferramentas úteis para o estudo da mente humana e o
desenvolvimento de tecnologias, podemos considerar um programa de inteligência
artificial como sendo, no máximo, a simulação de um processo cognitivo, mas não um
processo cognitivo per se (SEARLE, 1997, c).
Por outro ladro, adeptos da noção de “IA forte” acreditam que a mente está
para o cérebro da mesma maneira que um software está para o hardware do
computador (SEARLE, 1997c, p. 26). Essa visão tem por consequência a constatação
de que não há nada essencialmente biológico na mente humana; nesse sentido, o
cérebro integra, por acaso, o grande número de tipos de computadores que poderiam
sustentar os programas que compõem a inteligência humana. Seguindo esta visão,
qualquer sistema físico que tivesse o programa certo, com inputs e outputs
adequados, teria uma mente exatamente no mesmo sentido em que humanos
possuem uma mente.
O único impedimento à replicação da consciência humana seria, portanto, o
fato de ainda não terem sido criado hardwares e softwares necessários para tanto,
tratando-se apenas de uma questão de tempo até que fosse possível replicar a
555

consciência humana. Para os autores que acreditam em tal visão, os cérebros e


mentes artificiais seriam equivalentes, em todos os aspectos, aos cérebros e mentes
humanas (SEARLE, 2003, p. 28-29). No presente trabalho, repisa-se, será adotada a
concepção de Inteligência Artificial como IA fraca, consoante o entendimento do
referido autor.
Destaca-se que o atual entusiasmo no que diz respeito à pesquisa e
desenvolvimento de tecnologias de inteligência artificial teve início aproximadamente
em 2010, e foi movido pelos seguintes fatores: existência de métodos estatísticos e
probabilísticos cada vez mais sofisticados; disponibilidade de um número expansivo
de dados; acessibilidade a um enorme poder computacional a baixo custo; e a
crescente adequação de ambientes às novas tecnologias, como a automação
residencial e a criação de cidades ‘inteligentes’ (FLORIDI et al., 2017). Tais fatores,
que se retroalimentam, possibilitaram o crescimento exponencial da criação e
aperfeiçoamento de sistemas de IA nos últimos anos, não aparentando ser uma
tendência passageira.
Já quando se trata de produzir simulações em termos de conhecimento num
âmbito específico, discutem-se os chamados “sistemas inteligentes”: um programa de
computador concebido e construído com o auxílio de um especialista em Direito para
resolver problemas específicos na área jurídica é um “sistema jurídico inteligente”
(BELLOSO MARTÍN, 2015, p. 127). Os modelos de argumentação jurídica artificial
hoje existentes focam em técnicas de inteligência artificial que permitam a existência
de modelos de raciocínio jurídico – e.g. a análise de precedentes – como forma de
garantir uma decisão racionalmente justificada, sendo a argumentação jurídica o meio
de assegurar essa finalidade; isso deriva de uma perspectiva processual da decisão
judicial, consoante a qual “o argumento legal é entendido tanto como um elemento de
justificação da decisão”, quanto “como um elemento de explicação no que se refere à
relação lógica entre os argumentos e a pretensão” (MOZETIC, 2017).
A título exemplificativo, pode-se tomar o fato de o poder judiciário norte-
americano utilizar programas de computador para avaliar o “grau de periculosidade
do réu”, e, por meio de algoritmos, determinar o risco de reincidência do acusado
naquela mesma prática delitiva. A partir da avaliação, esses instrumentos atribuem
scores aos indivíduos condenados, que os classificam como tendo baixa, média ou
alta probabilidade para o cometimento reiterado de determinado crime. A principal
função desses softwares é a constatação de padrões, aplicáveis aos réus, para revelar
um determinado risco de reincidir. Sob a promessa de “segurança, equidade e justiça”,
programas como o já citado Public Safety Assessment verificam a probabilidade de
um resultado ocorrido em uma população se repetir, permitindo que a decisão judicial
possa ser considerada como fundamentada em evidências.

4 A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E OS SISTEMAS JURÍDICOS INTELIGENTES

Segundo Manuel Atienza (2005), argumentar constitui, definitivamente, a


atividade central dos juristas e se pode dizer inclusive que há muitas poucas
profissões – se é que há alguma – em que a argumentação tenha um papel mais
importante que no Direito. E no que concerne à aplicação do direito, o positivismo
jurídico, sobretudo a partir de Kelsen e Hart, diagnosticou corretamente o que se
chama “textura aberta” do direito, isto é, o fato de que o processo de interpretação e
aplicação do direito não leva a uma única resposta correta, mas, pelo contrário,
conduz a uma pluralidade de soluções igualmente admitidas dentro da moldura
jurídica conformada pelas regras e princípios contidos no ordenamento. O positivismo
556

jurídico, contudo, não foi capaz de desenvolver teorias interpretativas que


solucionassem ou minimizassem o problema da pluralidade de soluções.
Nesse sentido, a Teoria da Argumentação Jurídica de Alexy atina-se
precisamente ao problema da argumentação legal, da interpretação e aplicação do
direito. Alexy (2001, p. 17) inicia sua obra homônima com uma citação de Larenz, que
preleciona que "ninguém mais pode afirmar seriamente que a aplicação das leis nada
mais envolva (grifo do autor) do que uma inclusão lógica sob conceitos superiores
abstratamente formulados”. De imediato, é possível perceber que, para Alexy, a
atividade de julgar é muito mais complexa do que a mera escolha de qual norma
(independentemente se regra ou princípio) será aplicada ao caso concreto, o que
prontamente revela quão perigoso é o caminho pelo qual se pretende seguir ao se
atribuir a sistemas de IA a prerrogativa de julgar.
Segundo Alexy, o fundamento do Direito não é nem formal (como no
positivismo), nem material (como no jusnaturalismo): tal fundamento é procedimental.
O direito ganha, assim, uma dimensão moral que não significa a crença em uma
ordem natural, mas sim a ideia de que a legitimidade do ordenamento jurídico depende
do procedimento de sua produção e aplicação, que deve ser democrático e
racionalizado. Isso significa dizer que, diante de um mesmo caso, as regras do
discurso jurídico permitem que seus partícipes cheguem a conclusões racionais, todas
fundamentadas discursivamente, mas incompatíveis entre si, o que se dá por uma
série de motivos (ALEXY, 2013).
A crítica alexyana ao juspositivismo é empreendida com a publicação do livro
Conceito e Validade do Direito, sendo que a discussão central e que direciona a obra
é anunciado logo em suas primeiras páginas, aduzindo o autor que “o principal
problema na polêmica acerca do conceito de direito é a relação entre direito e moral”
(ALEXY, 2009, p. 3-4). Nesse ponto, ao mesmo tempo em que Alexy apresenta as
duas posições centrais acerca da filosofia do direito no que diz respeito ao direito e à
moral ao longo dos séculos, também demarca o objeto principal de seu livro, que é
investigar o conceito de direito. Destarte, o autor procura apreender quais são as
características que afirmam o direito como elemento singular, o diferenciando dos
demais objetos da natureza e do fazer humano. Para tanto, Alexy investiga se o direito,
para além das propriedades formais que o identificam, possui propriedades morais
intrínsecas, das quais não seja possível desvincular o conceito de direito.
Nessa toada, Alexy afirma que a procedimentalidade da teoria da
argumentação jurídica se vincula aos limites de um modelo procedimental de quatro
graus, quais sejam: o discurso prático geral; o procedimento legislativo; o discurso
jurídico; e o procedimento judicial. Assim, uma premissa que chega ao discurso
jurídico obrigatoriamente terá passado por todas as regras do discurso prático racional
geral e por todo o debate do procedimento legislativo, sendo positivado como lei.
E isso se dá devido ao fato de os princípios jurídicos apresentarem-se para
Alexy como mandamentos de otimização, passíveis de cumprimento em diferentes
medidas ou graus. Destarte, a determinação de certo direito fundamental como direito
definitivo somente se revela possível na ocorrência do caso concreto (TOLEDO,
2005). É precisamente nesse ponto que se faz referência à possibilidade de um
sistema jurídico inteligente exercer a atividade jurisdicional – permitir que a inteligência
artificial “julgue”. Lança-se mão da justificativa do afastamento no maior grau possível
de suposta arbitrariedade de um decisionismo na esfera dos três poderes e, em
especial, no poder judiciário, para tentar tornar legítima a assunção do poder de julgar
pela máquina. Em outras palavras, em favor da “neutralidade” do julgador, confia-se
a um sistema jurídico inteligente o poder de decidir.
557

Diante de tal perspectiva, determinados autores se valem da noção de


procedimentalidade da teoria da argumentação jurídica de Alexy para justificar a
possibilidade de se atribuir a capacidade de tomada de decisão judicial a um sistema
jurídico inteligente. Nessa visão, quando ocorre de a decisão de um caso concreto
não se seguir logicamente nem das normas pressupostas, positivadas, nem de
enunciados solidamente fundamentados de um sistema qualquer, e quando a decisão
também não puder ser fundamentada definitivamente com a ajuda das regras da
hermenêutica jurídica, restaria ao juiz, intérprete e aplicador do direito, um campo de
ação: escolher entre várias soluções. Pela inteligência artificial, a partir de normas
jurídicas positivadas, regras metodológicas e enunciados pré-estabelecidos em
sistemas jurídicos inteligentes, as mesmas decisões poderiam ser tomadas. Assim,
seriam possíveis, inclusive, decisões automáticas e programáveis.
Contudo, como aponta Streck (2013), a decisão jurídica não pode ser entendida
como um ato em que o juiz, ou, na hipótese com a qual trabalhamos, um software
dotado de inteligência artificial, diante de várias possibilidades possíveis para a
solução de um caso concreto, escolhe aquela que lhe parece mais correta, uma vez
que decidir não é sinônimo de escolher. A escolha, isto é, a eleição de algo, é um ato
de opção, o qual se dá “sempre que estamos diante de duas ou mais possibilidades,
sem que isso comprometa algo maior do que o simples ato personificado em uma
dada circunstância” (STRECK, 2013, p. 107). Assim, permitir que uma máquina tome
determinada decisão em âmbito jurisdicional só seria possível se se concebesse o
processo jurisdicional como uma mera escolha dentre as várias disponíveis, e sem
que se considerasse a importância da hermenêutica e dos valores (éticos, sociais e
morais) para tal processo.
Nas palavras de Mozetic (2017), “parece cristalino o fato de que Alexy delega
aos sistemas jurídicos inteligentes essa possibilidade” [de decidir]. Discorda-se. Pois,
segundo Alexy, a “tomada de decisão deveria (deveria no ponto de vista jurídico) ser
orientada por julgamentos de valor moralmente corretos, do tipo relevante” (2001, p.
22). Assim, o discurso jurídico não deve ter a pretensão de ser autossuficiente, dentro
do sistema hermético do Direito vigente, mas sim estar constantemente aberto a
argumentos de outras origens, como argumentos pragmáticos, éticos e morais.
Ademais, nos sistemas jurídicos em que os princípios contêm um conteúdo
moralmente exigível, ou pelo menos admissível, há uma conexão necessária entre o
direito e a moral correta (ALEXY, 2009, p. 93-94).
Assim, a vigência das normas de direitos fundamentais significa que o sistema
jurídico é um sistema aberto em face da moral (ALEXY, 2015, p. 545), o que não
significa dizer, contudo, que exista uma relação de subordinação ou de
secundariedade. Para Alexy, a decisão tomada em qualquer nível de fundamentação
é, assim, uma decisão sobre o que deve ou pode ser feito ou omitido, o que envolve,
necessariamente, uma valoração, ou juízo de valor (2013, p. 23). Nesse diapasão,
“não se quer dizer que o Direito é subordinado ou secundário em relação à Moral”,
havendo apenas uma diferenciação entre essas duas esferas (TOLEDO, 2005).
Um juiz, ao fundamentar uma determinada ponderação, sempre faz uso de um
número substancial de argumentos morais, posto que os princípios sempre possuem
uma essência axiológica, resultando que a pretensão à correção jurídica, atrelada a
uma decisão, sempre abarca uma pretensão à correção moral. Já os sistemas
jurídicos inteligentes partem do pressuposto de que é possível contar com uma visão
neutra da representação da realidade. Assim o fazem pois tais sistemas “esquecem”
ou ignoram que a legislação não trabalha com leis causais, sem perspectivas. O
significado da norma só é alcançado após um processo de compreensão e
558

interpretação, ou seja, hermenêutico, no qual os valores pessoais, dimensões


culturais, éticas, sociais e emocionais muitas vezes desempenham um papel decisivo
(BELLOSO MARTÍN, 2015, p. 132)
Diante disso, há que se considerar também, conforme aponta Searle, que
seres humanos não seguem regras do mesmo modo que computadores o fazem, i.
e., em observância a meros procedimentos formais. Na realidade, o computador não
segue, de modo algum, quaisquer regras, mas sim executa apenas procedimentos
formais. Afirmar que se obedece à regra é dizer que o significado desta regra, isto é,
o seu conteúdo semântico, desempenha algum tipo de papel causal na produção do
que efetivamente é feito. Assim, as propriedades formais da conduta não são
suficientes para mostrar que uma regra deve ser seguida; para que a regra seja
seguida, o significado da regra tem de desempenhar algum papel causal na conduta
(SEARLE, 1997b, p. 58-60).
Ainda segundo Searle, tem-se que a noção nuclear na estrutura do
comportamento humano, e que, portanto, o difere da máquina, é a noção de
intencionalidade (1997b, p. 74). Importa compreender a noção de intencionalidade
pelo seguinte: os processos mentais de um ser humano existem independentemente
de um observador (SEARLE, 1997a, p. 4), ao passo que os processos “mentais” de
uma inteligência artificial são intencionais apenas na medida em que são interpretados
como tal por um agente racional, posto que a IA meramente age como se possuísse
crenças, desejos ou estados mentais próprios (1997c, p. 72). Os argumentos
apresentados por Searle demonstram que sistemas de IA funcionam a partir de uma
lógica puramente sintática, desprovida de conteúdo semântico; assim, apenas
mimetizam o comportamento intencional através de parâmetros pré-estabelecidos de
inputs e outputs.
Com efeito, em um Estado Democrático de Direito não se pode admitir que
uma decisão judicial decorra do subjetivismo, isto é, do mero convencimento do juiz,
sem que se proceda à argumentação; e também não é compatível o ato de um
computador escolher, entre várias alternativas possíveis, uma que será considerada
mais adequada. Pois, uma vez que nem mesmo um juiz poderia decidir sem usar
argumentos racionais, não seria possível justificar a possibilidade de um sistema
jurídico inteligente fazê-lo (UCHÔAS, 2018).
As regras do discurso, fundamento da argumentação jurídica, de fato, não
definem nenhum procedimento que permita, mediante um número finito de operações,
chegar a um resultado preciso, único, definitivo. E isso que se dá por três motivos:
primeiramente, as regras do discurso não determinam o ponto de partida do
procedimento (que correspondem às convicções normativas existentes e as
interpretações de interesses dos participantes); em segundo lugar, as regras do
discurso não estabelecem um passo-a-passo da argumentação, tampouco definem
todos os passos a serem seguidos; por fim, uma série de regras de discurso só pode
ser realizada aproximadamente, pois os discursos real e ideal não necessariamente
se equivalem.
Por fim, os sistemas jurídicos inteligentes são passíveis de críticas devido ao
fato de atenderem exclusivamente ao modo e critérios aplicados pelo seu criador, o
programador. Como não é possível, por enquanto, se falar em uma inteligência
artificial verdadeiramente autônoma, os softwares existentes operam de maneira
condicionada, sempre respondendo aos inputs e outputs pré-determinados e
estabelecidos por quem desenvolve o programa. Disso decorre que o resultado das
eventuais decisões tomadas pelo computador continuará fortemente influenciado
pelos valores, crenças e convicções da pessoa que criou a inteligência artificial, por
559

mais que se busque uma pretensa imparcialidade e superação do subjetivismo. É


possível reduzir a incerteza da linguagem jurídica, não obstante seja impossível
elimina-la completamente, pois isso significaria afastar a decisão judicial dos valores
pessoais e das dimensões culturais, éticas, sociais e emocionais que nela
desempenham um papel decisivo (BELLOSO MARTÍN, 2015, p. 132).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É certo que a busca pela racionalidade da decisão – justificativa que leva à


empreitada de construção e aperfeiçoamento de sistemas jurídicos inteligentes e
softwares de inteligência artificial jurídicos – ocupa posição central para as teorias da
argumentação jurídica, dentre as quais a de Alexy. No processo de decisão judicial,
atribuir uma justificação racional a uma decisão significa dizer que,
procedimentalmente, obteve-se uma tese adequada para um caso concreto sobre o
qual se decide. Contudo, se, por um lado, a utilização da tecnologia possui a
pretensão de contribuir para a justificação das decisões e, de outro, a argumentação
jurídica mostra-se como a única forma de garantir uma decisão racionalmente
justificada, o desenvolvimento de novas tecnologias não pode desconsiderar os
preceitos das teorias da argumentação.
A imagem de um juiz robô, ou uma máquina de decidir, continua sendo mais
uma utopia na ideia de substituir o governo das pessoas pelo governo das máquinas.
Partindo-se da concepção de que mesmo hoje só se possuem sistemas baseados em
“IA fraca”, é possível perceber que a evolução da informática não foi capaz de alcançar
uma representação adequada de toda a complexidade ínsita ao Direito e ao processo
de decisão judicial. Por mais completo e complexo que seja um sistema jurídico
inteligente, uma máquina não pode substituir a capacidade de apreciação e valoração
humana, tampouco pode motivar uma sentença, como deve fazer um juiz. A
inteligência artificial pode e deve funcionar como ferramenta de auxílio para a tomada
de decisões jurídicas e justificação das decisões, mas não como substituta à atividade
humana.
Frente ao exposto, percebe-se que a inteligência artificial não pode integrar
todos os elementos essenciais a uma decisão judicial, e o resultado obtido por um
sistema jurídico inteligente dificilmente será impecavelmente justo e equitativo. A
atividade de julgar, principalmente por envolver processo de valoração, é uma
atividade única e exclusivamente humana, e assim o permanecerá, ao menos por
hora.

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Ou Irracionalidade? In: REIS, Isaac (Org.). Diálogos sobre retórica e argumentação,
vol. 4. Curitiba: Alteridade Editora, 2018.
561

Grupo de trabalho:

DIREITO INTERNACIONAL
Trabalhos publicados:

A COOPERAÇÃO EM ASSUNTOS AMBIENTAIS COMO INSTRUMENTO DE


PROTEÇÃO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE

A RESPONSABILIDADE DO BRASIL FRENTE AOS IMIGRANTES VENEZUELANOS


ENCONTRADOS EM TRABALHO ANÁLOGO À DE ESCRAVO

ASPECTOS JURÍDICOS DO FLUXO MIGRATÓRIO PARAGUAIO PARA O BRASIL:


INSTRUMENTOS JURÍDICOS INTERNACIONAIS, EFETIVAÇÃO E RESTRIÇÕES
DE DIREITOS

CASO XIMENES LOPES X BRASIL: ANÁLISE À LUZ DOS PRINCÍPIOS E


FUNDAMENTOS DO DIREITO INTERNACIONAL

COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL: O PEDIDO DE


TRANSFERÊNCIA PARA EXECUÇÃO DE PENA NA NOVA LEI DE MIGRAÇÃO

NOVA LEI BRASILEIRA DE MIGRAÇÃO E CONVENÇÃO DA ONU DE 1990 PARA


PROTEÇÃO DOS TRABALHADORES MIGRANTE E MEMBROS DE SUAS
FAMÍLIAS: PROXIMIDADES E DIVERGÊNCIAS

OS TRATADOS E SUA EFETIVIDADE NA ESFERA DE DIREITOS DOS POVOS


TRADICIONAIS DA REGIÃO FRONTEIRIÇA DO ESTADO DO MATO GROSSO DO
SUL
562

A COOPERAÇÃO EM ASSUNTOS AMBIENTAIS COMO INSTRUMENTO DE


PROTEÇÃO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE
COOPERATION IN ENVIRONMENTAL MATTERS AS AN INSTRUMENT OF
INTERNATIONAL ENVIRONMENTAL PROTECTION.

Thiago Henrique da Silva Barros

Resumo: O presente artigo tem por finalidade estudar a cooperação internacional em


matéria ambiental, com intuito de demonstrar que este instituto oferece suporte efetivo
para otimização da proteção do meio ambiente a nível global. No entanto, o
desempenho político e jurídico desta complexa interação, necessária, encontra
determinadas dificuldades práticas e teóricas, como os diferentes modelos de
proteção interna do meio ambiente. Todavia, a cooperação internacional é peça-chave
para o enfrentamento de inúmeros problemas globais contemporâneos, dentre eles o
meio ambiente.
Palavras-chave: Cooperação Internacional; Meio Ambiente; Danos Ambientais

Abstract: The purpose of this article is to study international cooperation in


environmental matters, in order to demonstrate that this institute offers effective
support to optimize the protection of the environment at a global level. However, the
political and legal performance of this complex interaction, necessary, encounters
certain practical and theoretical difficulties, such as the different models of internal
protection of the environment. However, international co-operation is a key element in
coping with a number of contemporary global problems, including the environment.
Keywords: International cooperation; Environment; Environment damage

INTRODUÇÃO

A proteção do meio ambiente figura entre as prioridades da agenda


internacional contemporânea, fato que pode ser verificado pela grande mobilização
internacional acerca deste tema. As questões ambientais possuem uma
transnacionalidade natural, um dano ambiental não ficará restrito aos limites de um
Estado, especialmente no que tange a água e ao ar, bens indispensáveis à sadia
qualidade de vida e de interesse de todos.
O Direito Internacional do Meio Ambiente é um fenômeno do Direito
Internacional Público que encontra-se em constante transformação, sem previsão a
curto e médio prazo de consolidação, enfrentando diversas controvérsias quanto a
sua proteção interna e internacional; possibilidade de responsabilização internacional
de um Estado e tutela das questões transfronteiriças.
O presente estudo visa analisar a situação da proteção internacional do meio
ambiente, através do levantamento histórico do surgimento à construção da proteção
internacional ambiental, bem como das legislações existentes nestes países que
tutelam o meio ambiente.

O GÊNESIS DO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE E SEUS


SISTEMAS DE PROTEÇÃO

A preocupação com o meio ambiente não é privilégio dos tempos atuais,


principalmente em âmbito internacional, sendo a sua proteção um dos grandes temas
de Direito Internacional público.
563

Pode-se dizer que o Direito Internacional do Meio Ambiente surge no período


entre guerras (1919 - 1945). Nesta época ocorreu o fato que é considerado como a
primeira manifestação solene deste fenômeno do Direito Internacional Público, que foi
o famoso caso relativo à Fundição Trail. A sentença deste emblemático constituiu a
base que formulou o Princípio 21 da Declaração de Estocolmo, reafirmado como
Princípio 2 da Declaração do Rio de Janeiro –ECO92.
A Conferência de Estocolmo em 1972 foi o primeiro evento internacional de
peso relativo à proteção internacional do meio ambiente, no qual 113 Estados foram
representados, junto com a participação de organizações internacionais e mais de 400
organizações não governamentais (DA SILVA, p.29). Nesta reunião adotou-se a
Declaração sobre o Meio Ambiente Humano, importante instrumento que marcou o
sistema internacional de proteção ambiental. Sem dúvida, foi a Conferência a gênese
da moderna era da cooperação ambiental global, responsável por também demarcar
o início dos debates sobre as relações da proteção do meio ambiente com o
desenvolvimento econômico.
Vinte anos após o maro inicial do sistema internacional de proteção ambiental,
realizou- se no Rio de Janeiro, em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento, que ficou conhecida como ECO-92. Como
resultado da Conferência, formulou-se a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, que conta com 27 princípios representativos das metas
contemporâneas da proteção internacional ambiental.
Dentre os compromissos adotados pela ECO-92 incluíram duas convenções
internacionais, uma sobre Mudanças Climáticas e outra sobre Biodiversidade, e
também uma Declaração de Princípios sobre Florestas, além de um plano de ação
que se chamou de Agenda 21, criado para viabilizar a adoção do desenvolvimento
sustentável em todos os países.
Em junho de 1998, na cidade dinamarquesa de Aarhus, foi adotada a
Convenção da Comissão Econômica para a Europa das Nações Unidas (CEE/ONU)
sobre Acesso à Informação, Participação do Público no Processo de Tomada de
Decisão e Acesso à Justiça em Matéria de Ambiente, a chamada Convenção de
Aarhus. Esta convenção entrou em vigor em 2001, com a ratificação do 16º país.
Trata-se do instrumento internacional mais avançado do sistema de proteção ao meio
ambiente (BOSSELMANN, 2010, p. 80-81). Inicialmente se restringiu a alguns países
da Europa, mas alguns anos depois já haviam sido ratificados por países da Ásia
central e pela União Europeia, transpondo o aspecto regional. Se caracteriza por ser
um documento aberto para ratificação de qualquer país do mundo.
A terceira conferência ambiental das Nações Unidas (a Cúpula Mundial sobre
Desenvolvimento Sustentável) aconteceu em Johanesburgo, na África do Sul, em
2002, reunindo representantes de mais de 190 países, com a finalidade de
implementar os princípios aprovados e discutidos na Conferência do Rio de Janeiro
(BOSSELMANN, 2010, p. 39-41).
Em 2012, novamente no Rio de Janeiro, ocorreu a Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, assim conhecida por marcar
os vinte anos de realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento (ECO- 92).
Em 2015, por recomendação da Conferência Rio+20, foram adotados os
Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Cúpula das Nações Unidas para o
Desenvolvimento Sustentável. Os ODS são integrados, indivisíveis e tratam, de forma
harmônica, as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social
564

e a ambiental. Os ODS deverão orientar as políticas nacionais e as atividades de


cooperação internacional para os quinze anos seguintes (Agenda 2030). O acordo
contém dezessete objetivos e cento e sessenta e nove metas de temáticas
diversificadas, divididos cinco eixos temáticos (os cinco P’s da Agenda 2030), quais
sejam:
1. Pessoas: Erradicar a pobreza e a fome de todas as maneiras e garantir a
dignidade e a igualdade;
2. Prosperidade: Garantir vidas prósperas e plenas, em harmonia com a natureza;
3. Paz: Promover sociedades pacíficas, justas e inclusivas;
4. Parcerias: Implementar a agenda por meio de uma parceria global sólida, e
5. Planeta: Proteger os recursos naturais e o clima do nosso planeta para as
gerações futuras.
O Direito Internacional do Meio Ambiente moderno tem estrutura passível de
constante atualização, ou seja, é um vasto campo a ser complementado pelo
intermédio das decisões advindas das reuniões periódicas, chamadas conferências
das partes – COPs. Esse arranjo moderno dá maior agilidade à dinâmica dos tratados
ambientais, ao permitir que os Estados assumam compromissos iniciais que vão se
consolidando com a adoção de protocolos adicionais sobre assuntos específicos.
Todavia, em contrapartida, as normas ambientais ficam expressas em documentos de
soft-law, que são desprovidas do efeito compulsório das normas jurídicas.
É justamente a falta da proteção expressa do meio ambiente pelo sistema
global ou pelos sistemas regionais dos direitos humanos que exige à vinculação da
causa ambiental aos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, “ou seja,
é feita pelo diálogo entre as atuais normas de proteção ambiental e os sistemas
internacionais de proteção aos direitos humanos”. Essa vinculação enseja uma
proteção ambiental pela “via reflexa ou ricochete”. Em outras palavras, existe a
impossibilidade de um bem ambiental ser protegido pelos sistemas de proteção de
direitos humanos sem que esteja presente uma vinculação a um direito humano de
caráter civil, político, econômico, social ou cultural. Isto, porque, no âmbito
internacional, o conceito de que o meio ambiente é um direito que deve ser protegido
por si só ainda não é amplamente aceito, e os direitos ambientais são reconhecidos e
protegidos por um sistema ainda frágil.
Assim, para garantir efetividade da proteção ambiental, busca-se suporte nos
mecanismos de proteção dos direitos humanos, através de um “esverdeamento” 13 dos
mecanismos de proteção civis, políticos, sociais e culturais já existentes.
No âmbito do sistema interamericano, o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado é previsto no artigo 11 do Protocolo Adicional à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador). No sistema africano é disposto no
artigo 24 da Carta Africana. No sistema europeu não há previsão expressa de
proteção ao meio ambiente, porém a jurisprudência da Corte europeia é muito mais
avançada na matéria ambiental.

COOPERAÇÃO NO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE

O Direito não é uma ciência da natureza, mas sim uma ciência social normativa,
significa que tem pretensão de atuar sobre a realidade, conformando-a em função de
certos valores e objetivos, para além, cria sistema ideais, onde não se limita a
descrever um determinado objeto como é, mas sim prescrever como ele deve ser.
565

Na intenção de prescrever determinados objetos como dever ser sobre a


realidade social, os direitos humanos consolidaram a importância normativa e atuante
da cooperação internacional para proteção do meio ambiente, em virtude da
preocupação com a sustentabilidade global ameaçada pelas revoluções industriais.
Cooperação, por si só, concerne ao diálogo, acordo, consonância e
disponibilidade nas relações públicas e privadas, estritamente, a cooperação
internacional é o modelo ideal para uma ordem vinculante dos direitos humanos
ambientais responsável pelo bem-estar social é necessária para integração do Estado
de Direito.
Contudo, vale salientar que, cooperação internacional de direitos humanos
ambientais perpassa da integração entre os Estados, é o experimento de processos
decisórios, como argumenta Cançado Trindade ao exemplificar a Cooperação Latino-
Americana e Tratado de Cooperação Amazônica. Isso porque, basicamente, a
integração constituí o processo para cooperar e cooperar é um dever de integração.
O tema “cooperação” somente aparece na linguagem do Direito Internacional,
após a Segunda Guerra Mundial. No primeiro momento, é empregado para afirmar o
direito que os Estados têm no Direito Internacional de cooperar uns com os outros, de
acordo com a Carta das Nações Unidas. Em segundo momento, de modo genérico,
para designar um domínio particular do Direito Internacional. Por fim, em terceiro
momento, de caráter específico, para estimular as integrações supranacionais a
cooperar na proteção do meio ambiente.
Sem embargos, a proteção do meio ambiente é sine qua non para os direitos
humanos. Entretanto, existe a dificuldade no nexo causal deste reconhecimento, como
exemplifica Bosselmann: uma explosão de gás metano em lixão próximo a uma cidade
viole o direito à vida, saúde e propriedade, porém, no caso do aquecimento global, em
indenização por perda de casas e gados em decorrência de enchentes é difícil se
enxergar diretamente a violação do direito à dignidade humana, devido ao longo
prazo.
Justamente por essa análise que juristas e ambientalistas vêm debatendo e
definindo rumos para relação de direitos humanos e ambientais (ou melhor, direitos
humanos ambientais) em âmbito de cooperação internacional.
No plano internacional tanto os direitos humanos, quanto o direito ao meio
ambiente saudável têm sua origem não em direito dos tratados, mas sim conferências
e documentos soft law. O que se tem buscado é a característica de harmonia entre
ambos, os chamados “direitos humanos ambientais em cooperação internacional”.
O internacionalista professor Guido Soares explica que a cooperação
internacional faz parte do conteúdo de obrigações no Direito Internacional do Meio
Ambiente (DIMA) e institui deveres aos Estados em várias modalidades, das quais
servem para distinguir conotações do conceito “cooperação”. Essas modalidades são
divididas em níveis (latíssimo sensu, lato sensu e stricto sensu) e formas (cooperação
político militar, integração econômica regional e cooperação técnica internacional).

CONCLUSÃO

A proteção internacional do meio ambiente ainda é frágil, seja pela não


obrigatoriedade no cumprimento das normas de proteção ambiental, quais sejam as
de soft-law, ou até mesmo pela falta de um órgão na esfera internacional que possa
cobrar, efetivamente, o cumprimento das normas referentes a temática ambiental.
É cediço que o sistema global de proteção aos direitos humanos e seus
sistemas regionais têm buscado tutelar o meio ambiente sadio e o desenvolvimento
566

econômico sustentável. Todavia, essa proteção só pode ser alcançada pela via
reflexa, considerando que as cortes dos sistemas regionais não podem julgar, de
forma direta, as violações ao meio ambiente.
Assim, mesmo com o “esverdeamento” dos direitos humanos, através das
sentenças proferidas em casos que envolvam danos ao meio ambiente, esta proteção
ainda permeia o status mínimo comparado a dimensão das preocupações globais na
esfera ambiental.
Conquanto, a cooperação internacional tem possibilidade uma inter-relação
maior, seja em questões econômicas, políticas e, até mesmo, ambientais. Assim, o
instituto da cooperação tornou-se condição sine qua non para a promoção do
desenvolvimento sustentável e proteção ambiental transfronteiço. Pois é fato que o
meio ambiente é um direito humano que ultrapassa os limites da territorialidade, logo,
não há outra formar de buscar a efetividade da sua tutela que não seja pela
cooperação internacional ambiental.
Deste modo, é necessário, não só o fomento da Cooperação como meio de
efetivação da tutela ambiental, mas também um diálogo entre as cortes de direitos
humanos ampliar a aplicação reflexa da proteção ambiental em suas decisões de
mérito.
Por fim, reitera-se que a cooperação internacional é peça-chave para o
enfrentamento de inúmeros problemas globais contemporâneos, dentre eles o meio
ambiente.

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568

A RESPONSABILIDADE DO BRASIL FRENTE AOS IMIGRANTES


VENEZUELANOS ENCONTRADOS EM TRABALHO ANÁLOGO À DE ESCRAVO
THE RESPONSIBILITY OF BRAZIL IN RESPECT OF VIGILIAN IMMIGRANTS
FOUND IN WORK ANALOGUE TO SLAVE

Jéssica Yume Nagasaki


Ana Elisa Spaolonzi Queiroz assis
Eduardo Henrique Lopes Figueiredo

Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo averiguar a responsabilidade do


Brasil frente aos imigrantes venezuelanos encontrados em condições análogas à de
escravo. A importância do tema advém primeiramente do cumprimento dos
compromissos internacionais ratificados pelo país. Para tanto, pretende utilizar os
meios investigativos bibliográfico e análise de documentos expedidos por órgão
governamentais e correlatos a causa da erradicação do trabalho análogo à de
escravo. Têm-se como resultado parcial da pesquisa, a responsabilidade do Brasil
frente aos imigrantes venezuelanos, principalmente a condições decentes de trabalho,
de modo que a sujeição destes ao trabalho análogo à de escravo deve sofrer
consequências jurídicas nacionais, além de melhorar os mecanismos de combate.
Palavras-chaves: Brasil; Venezuela; Trabalho Análogo à de escravo.

Abstract: The present research aims to ascertain the responsibility of Brazil against
the Venezuelan immigrants found in conditions analogous to that of slave. The
importance of the topic comes primarily from the fulfillment of the international
commitments ratified by the country. To do so, it intends to use the investigative means
bibliographical and analysis of documents issued by government agencies and related
because of the eradication of work analogous to that of slave. The partial result of the
research is Brazil's responsibility vis-à-vis Venezuelan immigrants, especially to
decent working conditions, so that their subjection to slavery-like work must suffer
national legal consequences, as well as improving the mechanisms of combat.
Keywords: Brazil; Venezuela; Slavery.

INTRODUÇÃO

A questão de migração internacional têm-se tornado uma pauta importante a


ser discutida pelos países, principalmente para os Estados que aderem determinados
tratados internacionais, os quais fundamentam a receptividade desses países no
quesito migratório. O Estado brasileiro no que tange a imigração de estrangeiros para
seu território apresenta uma política receptiva, fruto desses acordos internais, cujos
instrumentos nacionais devem ser readequados e criados com a finalidade de cumpri-
los.
O destaque do atual fluxo migratório no Brasil, advém da migração dos
venezuelanos no país, atravessando a área fronteiriça do território, especificamente
pela região norte, concentrando-se nos estados de Rondônia e Roraima. Justifica-se
pela crise econômica que instalou-se na Venezuela, cuja gravidade resultou na
procura de refúgio, residência temporária, visto temporário, ocasionada pela busca
por melhores condições de vida nos país fronteiriços, em especial, o Brasil.
Embora o Brasil adote uma postura condizente com o que fora pactuado em
níveis internacionais e nacionais, ainda assim, não consegue atender a demanda
migratória em todos os seus aspectos, inclusive no que refere-se as condições dignas
569

de trabalho, resultando casos de venezuelanos encontrados em condições análogas


à de escravo no território nacional, principalmente no estado de Roraima. Tais
acontecimentos, culminam no dever de maior fiscalização por parte do Estado, ou
seja, instrumentos e políticas que permitam a diminuição dessa incidência para que
não acarrete o descumprimento de outro tratado internacional, a Convenção nº 105
da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Para a realização da pesquisa será utilizada a metodologia analítica, partindo-
se da análise bibliográfica sobre o tema, incluindo os tratados internacionais
ratificados pelo Brasil que abrangem o quesito migração, trabalho análogo à de
escravo e a própria responsabilidade do Brasil no que tange sua participação como
Estado-parte do Mercosul. Tendo em vista que a temática a ser estudada é recente,
irá utilizar-se as notícias reproduzidas por órgãos atuantes nesta área, a fim de
averiguar as medidas tomadas pelo Brasil. Como resultado parcial da pesquisa, nota-
se que, embora o Brasil tenha adotado uma conduta proativa na receptividade dos
venezuelanos, ainda encontra-se ineficiência no quesito fiscalizatório de condições
dignas de trabalho, pois constata-se venezuelanos em condições análogas à de
escravo no país.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O Brasil como signatário de tratados e documentos internacionais que visam


sobre migração, refugio, trabalho análogo à de escravo e a própria participação do
bloco regional Mercosul, apresenta responsabilidade no que refere-se a migração de
venezuelanos para o Brasil. Assim, os tratados internacionais, à medida que integram
o direito interno, têm impacto jurídico no ordenamento jurídico pátrio. Sua função
transita entre a complementação da legislação interna e o direcionamento na
promoção e proteção dos direitos humanos, de forma que “os direitos internacionais
constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer,
nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano
normativo interno” (PIOVESAN, 2000, p. 179).
Em consonância isso, o termo migrar encontra-se presente na Declaração
Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, especificamente em seu
art.13, em que define como sendo o deslocamento de pessoas a níveis globais. Além
disso, o Brasil ao ser um Estadoparte do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), um
bloco regional que visa interesses econômicos, composto inicialmente por Brasil,
Argentina, Uruguai e Paraguai, deve-se ter uma conduta colaborativa perante os
demais países-membro (MARTINS, 2018, p.309). Para tanto, isso estende-se a
Venezuela, que aderiu a formação do bloco em 2012, mesmo sendo suspensa em
dezembro de 2016 por não cumprir o Protocolo de Adesão, ainda não a exclui dos
Estadospartes do bloco (MERCOSUL, 2018, s/p).
Embora o Mercosul ainda não esteja constituído pelas quatro fases necessárias
para compor um bloco econômico (MENDES, 1997), ainda assim, é possível constatar
que este não possui somente cunho econômico. Principalmente por firmar
declarações relacionadas a questões trabalhistas e sociais, como a Declaração
Sociolaboral do Mercosul de 1998, cujo intuito é fortalecer os países, tendo uma
sociedade participativa e inclusiva. A abordagem de temas como o trabalho decente
e a criação condições igualitárias de trabalho são pautas presentes, além de enfatizar
em seu artigo sétimo e oitavo o comprometimento dos Estadospartes em relação aos
trabalhadores migrantes e fronteiriços condições dignas de trabalho (BRASIL, 2015).
570

A publicação da Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) estabelece que o Brasil


apresenta-se como um Estado receptivo quanto a entrada de imigrantes no país,
oferecendo o visto temporário para migrantes. Mas tendo em vista, o grande fluxo
migratório de venezuelanos, reconheceu-se a crise humanitária por meio do Decreto
n. 9.285/2018.
Conforme o último levantamento feito pela Secretaria Nacional de Justiça,
cerca de 17.865 venezuelanos solicitaram o reconhecimento da condição de refugiado
no Brasil no ano de 2017 (CNJ, 2018, p.9).No entanto, com o reconhecimento da crise
humanitária, e visando uma regularização migratória dos venezuelanos mais ágil, pois
muitos não se vêm na condição de refugiado, para isso, publicou-se a Portaria
Interministerial nº 09 de 2018, possibilitando a residência temporária dos
venezuelanos no país (SNJ, 2018, s/p).
Em decorrência muitos venezuelanos ao buscarem melhores condições de vida
no Brasil, procurando empregos que supram suas necessidades básicas, entretanto,
como encontram-se vulneráveis e fragilizados acabam sendo alvos fáceis de
aliciadores, sendo sujeitados à condições análogas à de escravo no país. Essa
situação é retratada pela ONG Repórter Brasil

[...] outra ação constatou trabalho escravo em situações ainda


piores com venezuelanos em uma fazenda em Roraima em
fevereiro. Eles trabalhavam cerca de 10 horas diárias, sem
descanso semanal e com salário mensal de R$ 400. Além de
ser inferior ao mínimo, os salários não eram pagos ao final do
mês. “O empregador somente pagava os salários quando
permitia que os empregados regressassem à Venezuela para
visitar a família e levar alimentos”, diz o auto de infração. Um
dos venezuelanos relatou aos auditores que pediu demissão,
mas nem assim o empregador quitou os pagamentos, dizendo
que ainda havia trabalho a ser feito. Por conta da retenção
salarial e do isolamento geográfico, os auditores consideram
que eles estavam submetidos a trabalho forçado. O flagrante
foi na fazenda Nova Estrela, que tem cerca de 550 cabeças
de gado e fica na região da Serra da Lua, município de
Bonfim. Além do Ministério do Trabalho, a operação foi
realizada em conjunto com a Polícia Civil (MAGALHÃES,
2018, s/p).

Somado a isso, a própria declaração da coordenadora de operação de


fiscalização, constata que há o recebimento de denúncias de venezuelanos em
condições análogas à de escravo (MAGALHÃES, 2018, s/p). Tais acontecimentos vão
ao encontro da Convenção nº105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
cujo tema é abolição do trabalho forçado, ratificada pelo Brasil pelo Decreto nº 58.822
de 1966, em que o Brasil compromete-se a criar e instituir instrumentos que
erradiquem a prática no território nacional.
No entanto, percebe-se que a fiscalização nos estados de maior incidência
migratória não está sendo suficiente para atingir a finalidade de combater e erradicar
o trabalho análogo à de escravo, de forma que embora o Brasil receba os imigrantes
seja na condição de refugiado, ou com residência e vistos temporários, as cidades
brasileiras não possuem estruturas para poder recebe-los e inseri-los em condições
dignas de sobrevivência, ou seja, visando sua dignidade.
571

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, como resultado parcial da pesquisa verifica-se que há o respaldo


legislativo quanto ao fluxo migratório presente no Brasil, principalmente, ao que diz
respeito aos venezuelanos e a responsabilidade do Estado em inseri-los e recepciona-
los de forma digna, inclusive no que diz respeito ao trabalho decente.
Entretanto, ainda que o Brasil os recepcione, o problema ocorre na falta de
estrutura nacional para Recebê-los, soma-se a isso o fato que os mecanismos
fiscalizatório são insuficientes considerando a demanda migratória dos venezuelanos,
pois estes encontram-se fragilizados e a procura de emprego, sendo facilmente
aliciados e submetido a condições análogas à de escravo. Para tanto, o Brasil deve
aumentar sua demanda fiscalizatória, a fim de atender tal contingente e cumprir as
normas internacionais e nacionais, proporcionando uma vida digna aos imigrantes.

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em 18 out. 2018.
572

ASPECTOS JURÍDICOS DO FLUXO MIGRATÓRIO PARAGUAIO PARA O BRASIL:


INSTRUMENTOS JURÍDICOS INTERNACIONAIS, EFETIVAÇÃO E RESTRIÇÕES
DE DIREITOS
LEGAL ASPECTS OF THE PARAGUAYAN MIGRATORY FLOW TO BRAZIL:
INTERNATIONAL LEGAL INSTRUMENTS, EFFECTIVENESS AND
RESTRICTIONS ON RIGHTS

Lívia Cristina dos Anjos Barros

Resumo: A grande extensão fronteiriça do Brasil com o Paraguai contribui para que
os paraguaios sejam um dos maiores grupos de nacionalidade estrangeira presente
no País, em razão dessa expressividade, objetivou-se com esse trabalho estudar a
imigração paraguaia principalmente no que tange aos seus direitos específicos. O
estudo é documental e bibliográfico relacionado a legislação aplicada para os
imigrantes de nacionalidade paraguaia, tanto no que tange a lei interna quanto aos
Tratados Internacionais e do MERCOSUL. Desse modo, analisou-se a nova lei de
migrações, o Acordo de Livre Residência e a Declaração Sociolaboral do Mercosul.
Por fim, concluiu-se a condição de indocumentados é um dos maiores obstáculos a
efetivação de direitos, em razão disso, torna-se necessário a eliminação do
preconceito, os obstáculos burocráticos na emissão da documentação, além da
garantia do cumprimento de acordos internacionais e a promoção da cooperação e
integração entre os dois países.
Palavras-chave: Migrações Internacionais, Brasil/Paraguai, MERCOSUL

Abstract: The great border extension of Brazil and Paraguay contributes to the
Paraguayans being one of the largest groups of foreign nationality present in the
country, because of this expressiveness, the purpose of this work was to study
Paraguayan immigration, especially with regard to their specific rights. The study is
documentary and bibliographical, relating the legislation applied to immigrants of
Paraguayan nationality, both with respect to domestic law and to the International and
MERCOSUR Treaties. In this way, the new law on migration, the Free Residence
Agreement and the Mercosur Socio-Labor Declaration were analyzed. Finally, it was
concluded that the condition of undocumented persons is one of the greatest obstacles
to the realization of rights. Therefore, it is necessary to eliminate prejudice,
bureaucratic obstacles in issuing documentation, as well as ensuring compliance with
international agreements and the promotion of cooperation and integration between
the two countries.
Keywords: International Migrations, Brazil / Paraguay, MERCOSUR

1. INTRODUÇÃO

Entre 1986 e 2000, os imigrantes de nacionalidade Paraguaia representaram a


maior proporção de estrangeiros no Brasil (OIM, 2009, p. 19). Além disso, em termos
relativos, o Paraguai é o país da América Latina com maior porção de emigrados com
12% (OIM, 2017, p.1). Em razão do apresentado, bem como a relação histórica e
cultural, construiu-se entre o Brasil e Paraguai uma intensa convivência. Hoje, esse
vínculo gera necessidades jurídicas e o exercício da cooperação e integração
regional, motivo que reivindica a avaliação dos dispositivos normativos.
Tratam-se de questões relativas aos direitos conferidos na Constituição
Federal, em acordos internacionais, a lei de migrações, princípios jurídicos e até
573

mesmo conceitos apontados pela doutrina jurídica que ainda não foram positivados,
mas englobam a discussão de direitos humanos relativo os fluxos migratórios
paraguaios.
A pesquisa se fez por meio de bibliografia com a análise de livros e demais
textos científicos; documental, em especial de relatórios de dados apresentados pela
diretamente da Pastoral do Migrante da Arquidiocese de Campo Grande, pelo Comitê
Estadual de Refugiados Migrantes e Apátridas do Mato Grosso do Sul (CERMA) e do
Paraguai e do Consulado da República do Paraguai em Campo Grande - MS. Além
disso, experiências em encontros promovidos na cidade de Campo Grande e
Dourados (Mato Grosso do Sul) de imigrantes para contato com a comunidade
paraguaia foi vivenciado pela pesquisa.
Desta forma o trabalho apresenta os fatos, elementos históricos que
caracterizam a imigração paraguaia no Brasil. Posteriormente, apresentação das
condições jurídicas no país de destino. Por fim, a discussão das restrições das
normas.

2. O FENÓMENO IMIGRATÓRIO PARAGUAIO.

Inicialmente, a definição de imigração pode ser dada como “processo através


do qual estrangeiros se deslocam para um país, a fim de aí se estabelecerem” (OIM,
2009, p.33). Desse modo, esse trabalho estudou as relações jurídicas desse
movimento originado no Paraguai com destino no Brasil.
Para compreender o movimento é necessário apresentar que o Paraguai e
Brasil, segundo apontamento da Túlio Bodega e Elizabeth Ruano (2015, p.211)
“[...]compartilham uma fronteira de 1.300km, marcado por relações sócio-historicas
desde o processo colonizador que atravessou a formação desses Estados.”. Isto
significa que as similaridades e interlocução histórica entre os dois países é
influenciador dos movimentos migratórios entre eles.
A conexão histórica foi estabelecida com a guerra do Paraguai, construção
conjunta da usina de Itaipu, as trocas comerciais motivadas pelas políticas de
desenvolvimento regional dos países e até o compartilhamento de um mesmo rio
aproximam as relações e propiciam deslocamento de pessoas.
Para tanto, desvendar o objeto do estudo consiste também na identificação das
forças que motivam as migrações, por isso conforme Jorge Durand e Carmem Lussi:
“É tarefa das teorias das migrações entender as forças fundamentais que conduzem
os processos, aprofundando o conhecimento dos mesmos para entender” (2015,
p.56).
Nesse sentido, os sujeitos que realizam esses deslocamentos são chamados
migrantes, cuja definição se faz como: "este termo aplica-se, às pessoas e membros
da família que se deslocam para outro país ou região a fim de melhorar as suas
condições materiais, sociais e possibilidades e as das suas famílias. ” (OIM, 2009, p.
43). Estes estão inseridos em um contexto econômico, social e cultural que impulsiona
e atraí o movimento.
Nesse intuito, há que se definir dois tipos de imigração: a de fronteira, a partir
da existência de cidades gêmeas. E as que estão longe da fronteira.
A migração fronteiriça são “os deslocamentos populacionais nas zonas de
fronteiras entre países vizinhos” (ALBUQUERQUE, 2014,p. 2.). Esse tipo de imigração
é marcado pela existência de uma zona urbana binacional, as chamadas cidades-
gêmeas.
574

Essas cidades, conforme a portaria nº 125 no art. 1º, serão “considerados


cidades-gêmeas os municípios cortados pela linha de fronteira, seja essa seca ou
fluvial, articulada ou não por obra de infraestrutura, que apresentem grande potencial
de integração econômica e cultural[...]” (Brasil, 2014).
Com isso, para reconhecer os motivos que forçam as migrações fronteiriças
não é necessário muito esforço. A fronteira é permeável. Para a vida cotidiana dos
sujeitos não existe aquela linha imaginária entre dois Estados, assim, nenhum cidadão
deixará de seguir sua vida cotidiana de trabalho, consumo, saúde e afins em razão de
uma definição de limite imaginária.
Por outro lado, as imigrações paraguaias não ligadas a cidades gêmeas, são
aquelas motivadas por qualidade de vida e oportunidades econômicas visualizadas
no Brasil.
Dado isso, é fato que a relação histórica estabelecida entre as duas nações e
as modalidades de imigração nem sempre se apresentam com aspectos positivos.
Sucede-se que apesar da relação histórica notou-se, com relatos dos imigrantes
paraguaios, um desconforto no estabelecimento no Brasil.
Em determinado período histórico, o Brasil realizou a políticas migratórias de
branqueamento visando a colonização do país, tal intenção não contemplou a
identidade encontrada no povo paraguaio:

Esses fluxos migratórios vindos do Paraguai, todavia, não foram


contemplados pelos incentivos estatais a migração do fim do século XIX e
início do século XX, pois estes visavam precipuamente a europeus, no
contexto da política de “branqueamento”. Havia, à época, uma
preocupação em “branquear” a população brasileira, ressaltando seu
caráter europeizado. (COSTA; ROSA, 2018)

Desse modo, a comunidade receptora construiu um estereótipo negativo


desses sujeitos, assim, motivando boa parte dos preconceitos vivenciados por eles,
concretizando o desconforto e aproximando de tratamentos xenofóbicos.

3. CONDIÇÃO JURÍDICA DA/O IMIGRANTE PARAGUAIA/O

Há respaldo constitucional para proteção dos imigrantes paraguaio, uma vez


que fez constar na carta magna a igualdade entre estrangeiros e nacionais, além de
valores de integração econômica e proteção de direitos humanos, o que se aplica a
questão migratória em tela.
Em paralelo, para regulamentação da política migratória, tem-se a Nova lei de
migração (NLM) nº 13.445 de 24 de maio de 2017, que traz uma nova sistemática de
interpretação e compreensão do processo migratório pautado nos direitos humanos.
Um dos grandes aspectos conferidos pela nova lei é o direito a reunião família, a não
descriminação em razão da nacionalidade e ampliar a plataforma protetiva a ampliar
as categorias de status dos estrangeiros no país.
Essa lei tende a promover uma transformação na condição migratória do
estrangeiro paraguaio no Brasil quando regulariza o regime jurídico do fronteiriço 1, por
exemplo, o que antes não havia. Além disso, registrou em lei que a nacionalidade que
possuir acordos internacionais para livre circulação terão seus pedidos para
residência e permanência facilitados, inclusive o que fortalecendo a efetivação de
tratados internacionais como o Acordo de Livre Residência do Mercosul.

1
Referências ao regime fronteiriço constantes nos seguintes artigos da lei: Art. 1, IV, Art. 3, XVI, Art. 23, 24, 25 e 30.
575

Desta maneira, a NLM nomeia cinco categorias migratória (imigrante,


emigrante, residente fronteiriço, apátrida e o estrangeiro visitante) mas fornece um
único regime jurídico, chamado de regime geral, resguardados as peculiaridades de
cada categoria. No caso de imigrantes oriundos do Paraguai, há duas principais
categorias: O imigrante (pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou
reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil) e o residente
fronteiriço (pessoa nacional de país limítrofe ou apátrida que conserva a sua
residência habitual em município fronteiriço de país vizinho).
O imigrante fronteiriço será aquele sujeito a imigração na zona urbana da
fronteira, a qual sobrevém duas cidades de países diferentes. Desse modo, o
fronteiriço possui apenas autorização para atos da vida civil no espaço geográfico dos
limites das cidades gêmeas, assim, a abrangência e validade da autorização se dá
apenas naquele território, limitando atos da vida civil. Ainda assim, a novidade
normativa é um avanço para garantia de certos direitos a esses sujeitos.
De outra via, os imigrantes paraguaios que não vivem na fronteira poderão
contar como respaldo normativo, além da nova lei de migrações, do Acordo de Livre
Residência do Mercosul, que tem como objeto a possibilidade dos nacionais de um
Estado Parte que desejem residir no território de outro Estado Parte obter residência
legal pelo prazo de dois anos prorrogáveis, mediante a comprovação de sua
nacionalidade e apresentação dos requisitos. Esse diploma é importante e vantajoso
para o imigrante Paraguaio, pois facilita e acelera o processo de solicitação de
permeância.
Além disso, o Brasil também assinou a Declaração Sociolaboral do Mercosul
em 2015, que apresenta como diretriz de direitos que o estado brasileiro assumiu
compromisso de promover. A declaração registra a regulação entre os Estados Partes
questões como trabalho decente, empresas sustentáveis, direitos individuais de não
discriminação, igualdade de oportunidades e de tratamento entre mulheres e homens
igualdade de oportunidades e de tratamento para trabalhadores com deficiência,
eliminação do trabalho forçado, prevenção e erradicação do trabalho infantil, proteção
ao trabalhador adolescente, jornada de trabalho, proteção contra a demissão, direitos
coletivos liberdade sindical formação profissional para trabalhadores, empregados e
desempregados e etc.

4. EFETIVAÇÃO E RESTRIÇÕES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E


HUMANOS

Considerando as características da imigração Paraguai no Brasil, bem como a


proteção constitucional e internacional disponível para assegurar seus direitos, é
necessário ponderar e apresentar críticas com relação a eficácia e eficiência desses
textos normativos.
Muitos dos direitos apontados se concretizam, ou ganham mais possibilidades
de serem concretizados, quando o indivíduo registra sua condição migratória em
órgãos consulares e policiais do país. No entanto, alguns obstáculos foram
observados colocando em risco de não efetividade do repertório protetivo disponível,
impedindo de alcançar as garantias de direitos humanos e fundamentais.
Um dos maiores grupos de imigrantes paraguaios que sofrem as restrições de
direitos os indocumentados ou irregulares, aqueles que por diversos motivos não
possuem a documentação autorizadora de permanência no Brasil.
576

A imigração irregular consiste no “movimento que ocorre fora do âmbito das


normas reguladoras dos países de envio, de trânsito e de acolhimento” (OIM, 2009,
p. 42), segundo Glossário das migrações, detalha ainda:

Da perspectiva dos países de destino a entrada, a permanência e o


trabalho num país é ilegal, sempre que o migrante não tenha a necessária
autorização ou os documentos exigidos pelos regulamentos de imigração
relativos à entrada, permanência ou trabalho de um dado país. (OIM,
2009, p. 42)

A discussão sobre estrangeiro irregular, ilegal ou indocumentado2 é importante,


pois contribui para assegurar direitos previstos a ele no solo nacional, bem como
garantir com dados estatísticos subsídio para estado prover suas políticas públicas.
A onda de indocumentados, conforme apontado, propicia o trabalho vulnerável
e até em condições análogas de escravidão, fazendo o que as vagas de emprego dos
paraguaios sejam em sua grande maioria relacionados a baixa remuneração.
Nesse sentido, importa indicar o que produz a irregularidade migratória, quais
sejam: a burocracia, muito embora tenha havido tentativas pela Polícia Federal de se
virtualizar o primeiro pedido para o visto.
Além disso, o alto valor das taxas de emissão de documento servem como
empecilho. Conforme a resolução do CNIg (Conselho Nacional de Imigração), a União
cobra o pagamento de taxas que totalizam R$ 311,22 para cada migrante que quer a
residência temporária no país por dois anos, isto é, mais de 1/3 do salário mínimo do
país. É fato que as motivações de imigrações, em boa parte dos casos, são por
questões econômicas e, portanto, a pessoa já não tem disponibilidade financeira.
Por outro lado, a nova Lei de Migração confere o direito de isenção de taxas
para hipossuficientes, mas que também encontra burocracia. Á título de exemplo,
decidiu juiz da 8ª Vara Cível Federal de São Paulo que conferiu a uma angolana a
gratuidade para emissão de documentos, no entanto, só conferida depois da
judicialização (MigraMundo, 2017).
Outro aspecto que impede a regularização é o medo de se apresentar perante
autoridade para regularização migratória, principalmente depois de findar o prazo de
residência temporária, momento em que é requisitado a renovação da autorização.
Ocorre que o departamento responsável para emissão dos documentos é a Polícia
Federal, instituição ligada a ideia de segurança, que no imaginário do imigrante
impacta a questões relacionadas a deportação, a qual somada ao preconceito
vivenciado por eles propicia o receio de regularização.
Além disso, a chamada “criminalização da imigração” também restringe,
indiretamente, direitos humanos desses imigrantes. Esse termo consiste na
aproximação entre a política criminal e a quanto a migratória, a qual adota o discurso
de segurança. Isto é confirmado pela existência de regularização migratória ligada a
polícia, o que obviamente produz temor naquelas imigrantes irregulares. Conforme
afirma:

A convergência entre a política migratória e a política criminal foi


alcunhada por Juliet Stumpf “crimigração”. A autora apontou que esta
convergência se dá com a coincidência do objetivo de ambas políticas de

2
Estrangeiro indocumentado é aquele que entra ou permanece num país sem ter os documentos necessários, nomeadamente,
entre outros: (a) alguém que não tem os documentos legalmente exigidos para entrar num país, mas consegue entrar
clandestinamente, (b) alguém que entra com documento falsos, (c) alguém que depois de entrar com os docume ntos
legalmente exigidos, permaneceu para além do período de permanência autorizado ou violou as condições de entrada e
permaneceu sem autorização. (OIM,2009, p.26) .
577

segregar os indivíduos em categorias: os “cidadãos” e os “outros”, os


indesejáveis no corpo social: A teoria da associação, que limita os direitos
individuais e os privilégios aos membros de um contrato social entre o
governo e o povo está em ação na convergência entre o direito criminal e
o direito das migrações. A teoria da associação tem o potencial de incluir
indivíduos no contrato social ou exclui-los dele. (AMARAL, Ana Paula
Martins Amaral, COSTA, Luiz Rosado, 2017, p. 211)

A ausência de documentação é a mais forte das restrições de direitos, pois,


impede acesso de estrutura estatal de políticas públicas, bem como, por vezes, um
trabalho digno, saúde, educação e demais direitos.
No que tange aos direitos á saúde dos imigrantes, tem-se que o SUS,
teoricamente, caráter universal e atenderia nacionais e estrangeiros sem limitar,
principalmente porque a constituição confere igualdade de tratamento entre nacionais
e estrangeiros. No entanto, em regiões fronteiriças há restrições para acessar o
serviço de saúde pública do Brasil. A justificativa é de que a alta demanda de saúde
pelos estrangeiros, o que é aliado ao limitado recursos de saúde, principalmente nas
zonas isolada como as fronteiras, levou os administradores normatizarem limitações
de acesso a serviço de saúde por esses sujeitos, conferindo-lhes a apenas serviços
de urgência.
Como consequência houve judicialização da questão e, portanto, a
apelação/reexame necessário de nº 2006.70.02.007108-9/PR do TRF da 4ª Região,
a qual era uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra a
União, Estado do Paraná e Município de Foz do Iguaçu requerendo atendimento nos
postos de saúde da cidade por brasileiros residentes no Paraguai, estrangeiros que
compareçam aos postos de saúde e hospitais, bem que se contabilize os
atendimentos médicos aos ‘brasiguaios’ no repasse da verba para o munícipio.
Conforme se observa, os fronteiriços, por essa decisão, tiveram direito a saúde
limitado:

[...]julgando parcialmente procedente o pedido, para


determinar [...] para que seja prestado o atendimento aos
brasileiros e estrangeiros pelo SUS da seguinte forma: a) aos
brasileiros que comprovem esta qualidade,
independentemente da apresentação do Cartão SUS ou
comprovação de residência neste Município - de forma
integral, devendo as despesas decorrentes do atendimento
dos não-munícipes ser custeadas/ressarcidas conforme o tipo
de tratamento/exame/consulta nos termos da Lei 8.080/90 e
legislação complementar, que trata da divisão de
competências no âmbito do SUS; b) aos que não
comprovem a nacionalidade brasileira
(brasiguaios/estrangeiros), somente nos casos de
emergência e/ou urgência, consoante legislação
pertinente.(SOUZA, 2016, p.42)

O tema é polêmico mas ilustra que o direito conferido na constituição para


igualdade dos imigrantes merece outras ferramentas para efetivação como a
cooperação internacional.
Assim, não basta haver harmonização com tratados ou autorização de
residência, mas também uma a normatização especifica [em cooperação] de direitos
578

de saúde, tributária, consumo, civil e ecológico para estabelecer uma plataforma legal
para proteção desse estrangeiro fronteiriços, que proteja os bens de direitos humanos
em comum a todos ali vivendo.

5. CONCLUSÃO

O levantamento de informações jurídicas relacionadas a imigrantes paraguaios


respaldam a análise dos direitos conferidos, principalmente no que tange a emissão
de documentos, eliminação dos preconceitos, bem como aprimoramentos dos órgãos
administrativos de emissão de documentos, a fim de evitar a indocumentação. O
acordo de livre residência do Mercosul e a nova lei de migrações, inclusive em
harmonia com documentos internacionais assinados pelo país e com os valores de
integração regional contidos na Constituição federal, se apresenta como principal
ferramenta jurídica a ser utilizada em prol dessa população estudada. A integração
regional tem sido cada dia importante, pois a presença dessa população no Brasil é
intensa e gera necessidades por efetivação de direitos para todos (nacionais e
Paraguaios), daí nasce a importância de aplicar um arcabouço jurídico reafirmando
direitos dessa população, promovendo a integração e Direitos Humanos.

6. REFERÊNCIAS:

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experiência cotidiana entre legislações nacionais, fronteiriças e regionais;
disponível em >https://www.anpocs.com/index.php/papers-38-encontro/gt-1/gt23-
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Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010, 268p.
AMARAL, Ana Paula Martins; COSTA, Luiz Rosado; A (não) criminalização das
migrações e políticas migratórias no Brasil: do Estatuto do Estrangeiro à nova
Lei de Migração; JUSTIÇA DO DIREITO, v. 31, n. 2, p. 208-228, maio/ago. 2017;
disponível em: http://dx.doi.org/10.5335/rjd.v31i2.7147. Acesso em 18 nov. 2018.
COSTA, Luiz Rosado; ROSA, Rosane da Costa. Aspectos jurídicos dos fluxos
migratórios paraguaios em Mato Grosso do Sul. Campo Grande, 2018, No prelo.
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Nacionais dos Estados partes do MERCOSUL, Bolívia e Chile.Decreto nº 6.975,
de 7 de outubro de 2009., disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007- 2010/2009/Decreto/D6975.htm,
acesso em 19 nov. 2018.
_______. Tribunal Regional Federal 4ª Região, Reexame necessário, nº
2006.70.02.007108-9/PR, Ministério Público Federal, União Federal, Município de Foz
do Iguaçu e Estado do Paraná, Sérgio Renato Tejada Garcia, Porto Alegre, 09 de
dezembro de 2009. Lex: Boletim Jurídico, emags TRF4 nº98,2010, p.5.
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579

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ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL PARA LAS MIGRACIONES — OIM. Perfil
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<https://robuenosaires.iom.int/sites/default/files/Documentos%20PDFs/Informe_Tend
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temporária para imigrantes carentes. G1. Bela Vista –RR. 03/07/2017. Disponível
em:https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/mpf-e-dpu-pedem-na-justica-em-rr-
isencao-da-xxa-de-residencia-temporaria-para-imigrantes-carentes.ghtml. Acesso em
19 de nov. 2018
580

CASO XIMENES LOPES X BRASIL: ANÁLISE À LUZ DOS PRINCÍPIOS E


FUNDAMENTOS DO DIREITO INTERNACIONAL
CASE XIMENES LOPES X BRAZIL:
ANALYSIS IN THE LIGHT OF THE PRINCIPLES AND FOUNDATIONS OF
INTERNATIONAL LAW

Jordanna Borges Marques Rabelo Sobral

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar o caso Ximenes Lopes x
Brasil, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no dia 4 de julho de
2006, que se retrata a fatos de violação de Direitos Humanos, por parte do Estado
brasileiro em relação a um de seus cidadãos que se encontrava em condição de
deficiência mental, tendo sido internado em uma clínica credenciada pelo sistema
público de saúde. Será objeto de análise o mérito, bem como quais os fundamentos e
princípios aplicáveis no caso que justifiquem a decisão proferida pelo tribunal
internacional. Examinaremos de que forma os conceitos próprios da ordem
internacional como ordem pública universal, desenvolvimento progressivo,
normatividade internacional estão presentes in casu. Ainda, como os estudos de
alguns autores como Francisco de Vitoria, dentre outros, também encontram relações
ao caso.
Palavras-Chave: Ximenes Lopes x Brasil, Corte Interamericana de Direitos Humanos,
Direito Internacional.

Abstract: The present study aims to exam the case Ximenes Lopes x Brazil, judged
by the Inter-American Court of Human Rights in June 4th, 2006, which relates to the
violation of Human Rights by the Brazilian State of one of its citizens who had mental
deficiency. He was compulsorily admitted to psychiatric clinic accredited by the public
health system. The merit of the decision will be analyzed, and also the foundations and
principles that justify the international court's decision. We’ll exam how the concepts of
the international order like universal public order, progressive development,
international normativity are present in case. And also, how the studies of some
scholars like Francisco de Vitória and others are also related to the case.
Keywords: Ximenes Lopes x Brazil, Inter-American Court of Human Rights,
International Law.

INTRODUÇÃO

O caso em análise consolidou-se como base concreta para a discussão sobre


a proteção internacional dos Direitos Humanos, especialmente na realidade jurídica
nacional. Damião Ximenes Lopes foi diagnosticado com deficiência mental, tendo sido
internado compulsoriamente em uma clínica psiquiatra credenciada pelo Sistema
Único de Saúde (SUS). Durante a internação, foi submetido a tortura, lesões corporais
graves e a um tratamento desumano.
De acordo com o relato dos fatos, já em condição debilitada por causa da
deficiência mental, Ximenes Lopes foi seriamente agredido e torturado pelos
cuidadores que tralhavam na clínica – o que, por si só, já configura grave lesão ao
direito à integridade física e pessoal –, e posteriormente, em virtude dos maus-tratos
e das lesões, acabou por falecer enquanto se encontrava internado, tendo tido,
portanto, seus direitos à vida e integridade física e pessoa violados.
581

No caso em questão, após a morte de Ximenes Lopes, a família diligenciou,


tanto judicialmente quanto administrativamente, uma resposta do Estado à violação
dos Direitos Humanos, porém com resultados infrutíferos. Dessa forma, restou-se
configurada a omissão do Estado no sentido de que não houve o devido acesso à
justiça para a família de Ximenes Lopes, tendo esta, inúmeras vezes, acionado o
judiciário e as autoridades responsáveis informando grave lesão à direitos. Não
obtendo, porém, a devida contraprestação, a efetiva tutela jurisdicional, tendo sido,
dessa forma, violado outro direito: o de acesso à justiça e da proteção judicial.
À vista disso, o caso afluiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos com
acusação não somente da violação dos direitos à vida e à integridade física de
Ximenes Lopes, mas também a violação do direito às garantias judiciais de sua
família, quais sejam: do acesso a justiça e da efetiva proteção judicial. O Estado
brasileiro apresentou, intempestivamente, uma única exceção preliminar, alegando
que não tinha havido, até o momento, o esgotamento prévio dos recursos em processo
interno. A Corte, no entanto, alegou a intempestividade, visto que a referida exceção
deveria ser apresentada em face da Comissão, tendo, portanto, rejeitado a mesma.
Após exame do caso, a Corte proferiu a sentença condenando o Estado brasileiro
pelas violações de todos os direitos a este imputadas. Vários foram os fundamentos
levantados pela Corte, tanto na deliberação do caso, quanto na sentença, que
transcrevemos ipse litteris:

DESCIDE: 1. Admitir o reconhecimento parcial de responsabilidade


internacional efetuado pelo Estado pela violação dos direitos à vida e à
integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção
Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os
direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, em detrimento do senhor
Damião Ximenes Lopes, nos termos dos parágrafos 61 a 81 da presente
Sentença. DECLARA, Por unanimidade, que: 2. O Estado violou, em
detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes, tal como o reconheceu, os
direitos à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1
e 5.2 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de
respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado,
nos termos dos parágrafos 119 a 150 da presente Sentença. 3. O Estado
violou, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene
Ximenes Lopes Miranda e dos senhores Francisco Leopoldino Lopes e
Cosme Ximenes Lopes, familiares do senhor Damião Ximenes Lopes, o
direito à integridade pessoal consagrado no artigo 5° da Convenção
Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os
direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos dos
parágrafos 155 a 163 da presente Sentença. 4. O Estado violou, em
detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes
Miranda, familiares do senhor Damião Ximenes Lopes, os direitos às
garantias judiciais e à proteção judicial consagrados nos artigos 8.1 e 25.1
da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar
e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos
dos parágrafos 170 a 206 da presente Sentença 5. Esta Sentença constitui
per se uma forma de reparação, nos termos do parágrafo 251 dessa
mesma Sentença (CIDH. CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL.
SENTENÇA, 2006).

Vemos, portanto, pela análise da sentença supratranscrita, que houve o


acatamento, por parte da corte internacional, de todas as acusações imputadas ao
Estado brasileiro sobre as violações de Direitos Humanos ocorridas com Ximenes
Lopes. Paradigmática a decisão por se tratar do primeiro caso em que houve uma
condenação por violação aos Direitos Humanos pelo Brasil. Não obstante tal
582

paradigma foi seguido de diversas outras decisões desfavoráveis ao Estado brasileiro


nas deliberações do tribunal internacional. Dentre as quais podemos citar os casos:
Caso Escher e Outros x Brasil, Caso Gomes Lund e Outros x Brasil, e o Caso do Povo
Indígena Xucuru e seus membros x Brasil. Paradigmático é, equitativamente, pois a
partir da referida decisão houve um aprofundamento técnico dos estudos na área de
Direito Internacional Público, mais especificamente quanto à força do normativismo e
codificação internacional no ordenamento jurídico interno, de forma que se passou a
analisar, mais incisivamente, a vinculação jurídica dos instrumentos normativos
internacionais.

DESENVOLVIMENTO

Nos dias atuais, o Direito Internacional, objetiva focar em coisas que sejam um
problema da humanidade, nesse caso entra a proteção aos direitos humanos,
vedando, principalmente, a tortura. Portanto, são problemas comuns que afetam a
comunidade internacional, como foi o caso Ximenes Lopes x Brasil.
Primeiramente, é necessário declarar que a Carta Magna de 1988 não se
restringiu somente em assegurar direitos e partilhar competência, mas na efetivação
de princípios gerais, tornados a definir um sentido de mando da Constituição sob a
sociedade brasileira.
Desse modo, olha-se o caso com uma violação não só dos direitos humanos,
mas de direitos, também, constitucionais, pois no momento em que os princípios são
ditos como normas que devem reger a sociedade eles devem ser respeitados na
mesma proporção que as competências e outros direitos que são assegurados na
Constituição Federal.
Dessa forma, percebe-se que houve uma violação do princípio da prevalência
dos direitos humanos, uma vez que o mesmo é um princípio fundamental que deve
reger o convívio interno e externo. Tal violação é presente no sentido de que o Brasil
deveria opor-se aos Estados que desrespeitarem os direitos humanos, entretanto isso
não foi feito, visto que o Brasil alegou uma falta de recursos internos na instituição em
que o mesmo se encontrava internado. Portanto, se isso realmente estava
acontecendo, não se sabe por quais motivos estes vícios não foram sanados ou no
mínimo procuraram tomar providências sobre o assunto, fato que o descaso levou
uma pessoa a óbito.
Para ratificar esse pensamento de respeito ao direito Internacional e Direitos
Humanos, vale lembrar que o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica
desde 1992, determinando o cumprimento total dos direitos disciplinados no pacto
supracitado. Somado a isso, o Brasil também é signatário do Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais desde 1992 e este pacto também foi violado,
uma vez que em seu artigo 12, D do pacto supramencionado é defendido o direito à
saúde como direito humano, principalmente a asseguração de tratamentos de
assistência médica nos casos de enfermidade, algo que claramente não foi garantido
ao senhor Damião:
Diante disso, é preciso analisar a violação, também, à Convenção Americana,
posto que houve uma lesão ao direito à vida e a integridade física da pessoa. Além
disso, todos os Estados que circunscritos possuem o dever de garantir os cuidados
médicos eficientes aos que possuem algum problema mental. Devido a condição
mental, o emocional dessas pessoas fica extremamente debilitado, principalmente
pelo fato da desproporcionalidade de poderes entre os membros que trabalham na
instituição e os pacientes. Vale ressaltar, que muitos não possuem paciência e o
583

cuidado necessário com essas pessoas, como foi o caso do senhor Damião,
ocasionando em violações aos direitos humanos das mesmas, visto que sua
integridade psicológica e mental foi contrariada, tal qual o artigo 5.1 da Convenção
Americana defende:

“ Artigo 5. Direito à integridade pessoal

1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade


física, psíquica e moral. “ (CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS
HUMANOS, 1969)

Além disso, o objetivo ao fazer a internação do senhor Damião Ximenes Lopes


era lhe proporcionar uma comodidade e a cortesia do paciente perante ao seu estado
mental naquele momento, a fim de lhe condicionar o conforto e a autonomia de suas
escolhas. Todavia, isso também não foi respeitado, dado que o mesmo foi alvo de
torturas e lesões corporais frente à instituição a qual estava internado, fugindo daquilo
que deveria ser a prioridade e o objetivo de sua internação, levando o senhor Damião
a óbito e ferindo mais um artigo da Convenção Americana:

“ Artigo 5. Direito à integridade pessoal


(...)
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos
cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve
ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. “
(CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS, 1969)

Acrescentado a isso, as pessoas que possuem algum tipo de deficiência mental


não são vistas como capazes de expressar opiniões próprias ou autonomia de
vontade, sendo assim seus cuidadores e os seus médicos da clínica, passam a tomar
decisões sem consultar o mesmo, fato que viola a lei 13.146 (Lei Brasileira de Inclusão
da Pessoa com Deficiência) que visa promover ao senhor Damião, em condições
igualitárias, a execução dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com
deficiência, objetivando a sua inserção social e cidadania. A exemplo disso o artigo 4,
parágrafo 1º e artigo 5 da lei já mencionada:

Art. 4o Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de


oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de
discriminação.
§ 1o Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma
de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o
propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou
o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com
deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento
de tecnologias assistivas.
(..)
Art. 5o A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade,
opressão e tratamento desumano ou degradante. (LEI BRASILEIRA DE
INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA, 2015)

O caso encontra relações não somente com os fundamentos e bases


principiológicas que compõe o que se entende por Direito Internacional atualmente,
mas também com a evolução histórica do processo de codificação e normatização
internacional. Podemos encontrar relações com os estudos de Francisco de Vitória,
584

jurista espanhol que, ao criar uma obra crítica sobre a conquista da América pela
Espanha no século XVI, acabou por, involuntariamente, fornecer um arcabouço inicial
para as noções atuais de conceitos próprios de uma ordem jurídica internacional, tal
como soberania, dignidade humana e comunidade internacional. No caso, quando
falamos do poder vinculante da decisão e o impacto que essa causa no ordenamento
interno do país, não se afasta a noção de soberania nacional.
Da mesma forma, também é de Francisco de Vitória as primeiras formulações
acerca do conceito de jus cogens no Direito Internacional. Trata-se, por definição, da
natureza das normas internacionais, elas possuem natureza jus cogens, ou seja, são
de observância obrigatória por parte dos Estados. Isso se dá, pois, normas e
regulamentos internacionais se dão através de instrumentos de debate e negociação
entre os Estados, logo, tendo sido acertadas pelos próprios Estados, estes se
comprometem em cumpri-las ou assegura-las, visto que concordaram com a edição
das mesmas.
Sobre esse vinculação normativa, ao falar dos tratados espeficamente, Mateus
Kowalski1, afirma que:

(...) O que, da perspectiva dos Estados, se percebe, na medida em que os


tratados conferem maior segurança e certeza jurídicas – pois assumem
forma escrita – e, por outro lado, porque resultam de forma direta da
vontade dos Estados que participaram na negociação – contribuindo
assim para a necessidade de seu consentimento.

Dessa forma, pela análise do caso em questão, mais especificamente a


sentença do caso Ximenes Lopes x Brasil, vemos que a Corte Interamericana de
Direitos Humanos ao proferir a decisão, listou quais artigos foram infringidos pelo
Estado brasileiro no tocante à violação dos direitos humanos – mais especificamente,
direitos à vida e integridade física – de seu cidadão. Vemos, portanto, nesse ponto
específico manifesto, a normatividade internacional vinculante, visto que, como não
foram obedecidas as disposições acertadas e convencionadas pelo próprio Estado
brasileiro no contexto internacional, logo este é condenado por violações aos
supracitados dispositivos. Tal vinculação interna da ordem jurídica internacional, que
se faz presente na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos aqui tratada,
possui forte relação com a teoria universalista de codificação universal. A corrente
universalista do projeto de criação de um sistema jurídico internacional rompe com a
teoria clássica de que este consiste unicamente em um jogo entre Estados. Tal
conceituação, entende o normativismo internacional como um sistema criado para
resguardar, a nível mundial, direitos que ultrapassam a limitação territorial dos países
e que se fundamentam numa "moral universal”, a chamada ordem pública universal.
Dessa forma, essa teoria entende que os Direitos Humanos, na sua concepção
atual, são direitos a serem resguardados universalmente, tendo os organismos
internacionais a atribuição de condenar práticas estatais que os suprimam ou os
violem, como o caso em questão. Não se pode admitir, portanto, levando-se em
consideração a ordem universal, que uma pessoa com deficiência – que pela sua
condição de pessoa já se encontra em uma posição de vulnerabilidade por si só –, em
um estado supostamente democrático de direito, seja submetida à tortura, tratamento
desumano, lesão a sua integridade física e pessoal, e até mesmo à morte. Portanto,
o universalismo rompe com o particularismo no sentido de que impõe regras
universalmente aceitas, baseando-se num ideal racional.

1
KOWALSKI, Mateus. A "ordem pública universal" como fim da história?. Boletim da faculdade de Direito. Coimbra, 2012. Pag.
8
585

Nesse sentido, mais uma vez preceitua Mateus Kowalski2:

(...) para o universalismo, o substrato da ordem pública inclui todos os


seres humanos independente das fronteiras dos Estados de origem. O ser
humano é universal porque é um indivíduo de uma mesma espécie num
mesmo ecossistema, que partilha com os seus pares um mesmo processo
mental fruta de valores, princípios e aspirações comuns. Aqueles valores,
princípios e aspirações comuns servem de fundamento para a existência
de um núcleo duto de Direito Internacional universal.

Por conseguinte, o direito à dignidade humana, a não ser submetido à tortura,


à tratamento desumano ou degradante, possuir o resguardo da integridade física e
pessoal do seu corpo, o direito à existência, todos esses abarcam um ideal universal
de chamado direito das gentes, notadamente, dos Direitos Humanos.
Destarte, o que se percebe na ordem jurídica internacional é a crescente
pluralidade de atuações e de inserções externas nos ordenamentos internos dos
Estados-nações pelos organismos internacionais, o chamado "desenvolvimento
progressivo". Isso se dá, por conta da tendência ampliadora do Direito Internacional
no que se refere a tutela dos direitos e garantias individuais, abarcando não só os
Direitos Humanos stricto sensu, mas também os direitos sociais, políticos e civis. Por
esse motivo que, no caso Ximenes Lopes x Brasil, a competência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos não se limitou tão somente à analise da violação
dos direitos inerentes a normatização internacional humanitária, mas também a
direitos sociais, como a violação ao direito do acesso à justiça, proteção judicial e
efetiva tutela jurisdicional.
O resultado prático dessa chamada "normatização global", ou
"constitucionalismo global", termo utilizado por alguns doutrinadores, pode gerar uma
tendência democratizante global. Pelos ensinamentos de Thomas Franck, trazidos por
Mateus Kowalski3

Nesse discurso, o universalismo proclama uma correlação positiva entre


globalização e democratização, incluindo para os Estados. As instituições
de Direito internacional são encaradas como instrumentos cada vez mais
eficazes relativamente a regimes autocráticos, promovendo até sistemas
democráticos de governo. Franck argumento mesmo que existe uma
tendência para que a legitimidade de cada governo seja medida por
referência a critérios e processos de dimensão internacional. A
democracia seria neste contexto uma normal global habilitante. Observa
o autor que cada vez mais os governos tendem a reconhecer que a sua
legitimidade depende de cumprirem esta expectativa normativa da
comunidade de Estados. A expansão da democracia pode, assim, até ser
vista como uma função do Direito Internacional.

Essa "tendência democratizante", de acordo com o supracitado autor se dá,


pois, a normatividade internacional impõe indiretamente aos Estados a exigência de
cumprir determinações universais que estão intrinsicamente relacionadas com o
Estado Democrático de Direito, de modo que, quando cumpridas, os aproximam ainda
mais de um ideal democrático singular, ainda que já sejam regimes democráticos.
Ademais, a efetivação das diretrizes internacionalmente compactuas confere ao
Estado um determinado status frente à comunidade internacional, o que favorece

2
KOWALSKI, Mateus. A "ordem pública universal" como fim da história?. Boletim da faculdade de Direito. Coimbra, 2012. Pag.
6
3
KOWALSKI, Mateus. A "ordem pública universal" como fim da história?. Boletim da faculdade de Direito. Coimbra, 2012.
Pag. 6
586

ainda mais a adesão dos Estados às pautas internacionais de proteção aos Direitos
Humanos, Sociais, Políticos e Civis. Não se ausenta, na realidade jurídica brasileira,
tal conjectura. Baseando-se no presente caso em análise Ximenes Lopes x Brasil,
vemos que houve violação de direitos e posterior omissão por parte do Estado
brasileiro quanto ao seu cidadão, que possuía a condição de ser deficiente mental. A
condenação do Brasil por violação a tais direitos ocasionou, ainda que indiretamente,
discussões acerca do tema e uma reorientação legislativa, que posteriormente gerou
a criação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) que, de acordo
com o art. 1o da própria lei:

Art. 1o. É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência


(Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a
promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das
liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua
inclusão social e cidadania.

O que se observa, portanto, é que houve a concretização dos direitos


fundamentais e inclusão social de pessoas com deficiência, o que consistiu um forte
avanço democrático – ocasionado, mesmo que indiretamente, por influências
externas, oriundas de normatizações internacionais – mesmo o Estado brasileiro já
sendo uma democracia.
Dessa forma, vemos que o caso Ximenes Lopes x Brasil, não obstante o seu
conteúdo paradigmático para melhor compreensão e estudo do Direito Internacional,
também resguarda fortes ligações com o conteúdo histórico das relações jurídicas
internacionais, constituindo marco importante na evolução diplomática e jurídica do
Brasil. Por fim, é necessário salientar a Responsabilidade Internacional do Estado
Brasileiro, dado que a mesma tenciona a comprovação da culpa, entretanto não é a
culpabilidade do governante, mas sim do agente público pela sua falta de serviço.
Além disso, essa responsabilidade não é um tratado, ainda é um projeto, contudo
estabeleceu alguns requisitos e até hoje é aplicada, sendo considerada como um
direito consuetudinário. O primeiro requisito é a ocorrência de um fato
internacionalmente ilícito, podendo ser atos de caráter civil que envolvem atos de
gestão, tal qual o caso de Damião Ximenes Lopes que possuía uma deficiência mental
e foi agredido, torturado e lesionado. O segundo requisito é o nexo de causalidade ou
de imputação e tem que ser provada uma ação ou omissão, a exemplo disso seria
supressão do Estado brasileiro frente ao caso, posto que o mesmo tinha
conhecimento da situação infame que Damião se encontrava e a falta de supervisão
governamental frente às empresas privadas que prestam serviço à saúde pública.
Vale salientar, que a Responsabilidade Internacional do Estado difere de
Responsabilidade Internacional do Indivíduo. Diante disso, por um mesmo fato, pode-
se responsabilizar o indivíduo e o estado. Algumas das consequências da
responsabilização são a cessação do ato, garantia de não repetição e a garantia de
reparação (indenização em dólar), fato que buscou-se garantir com a condenação do
Estado Brasileiro perante a corte no caso Ximenes Lopes x Brasil.

CONCLUSÃO

Portanto, conclui-se que houveram diversas violações aos direitos humanos e


ao direito internacional no que concerne o senhor Damião, principalmente os
defendidos pela Convenção Americana, tal qual o direito à vida e integridade física e
à pessoa, além do acesso à justiça e proteção judicial. Somado a isso, a interpretação
587

errônea de que o deficiente mental é hipossuficiente e não possui autonomia, feriu a


Lei 13.146 que busca incluir as pessoas que possuem deficiência.
Além disso, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos aqui
tratada, possui forte relação teoria universalista de codificação universal. No qual,
procura demonstrar o normativismo internacional como um complexo elaborado para
conservar, a nível global, direitos que extrapolam a circunscrição territorial dos países
e que se baseiam na chamada ordem pública universal. Diante disso, é perceptível
que a corte combate as práticas estatais que os suprimem ou violam tais direitos.

REFERÊNCIAS

KOWALSKI, Mateus. A "ordem pública universal" como fim da história?. Boletim da


faculdade de Direito. Coimbra, 2012.
MONTES D’OCA, Fernando Rodrigues. Política, Direito e Relações internacionais.
Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 03; no. 01, 2012.
ALMEIDA, Francisco Antônio de M. L. Ferreira de. Codificação e desenvolvimento
progressivo do Direito Internacional Penal. Boletim da faculdade de Direito. Coimbra,
2012.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A humanização do direito internacional.
Editora Del Rey. 2a Edição. Belo Horizonte, 2015.
BAPTISTA, Eduardo Correia. Jus Cogens em Direito Internacional. Editora Lex.
Lisboa, 1997.
MACHADO, Jonatas F. M. Direito Internacional. Coimbra Editora. 4a Edição. Coimbra,
2006.
588

COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL: O PEDIDO DE


TRANSFERÊNCIA PARA EXECUÇÃO DE PENA NA NOVA LEI DE MIGRAÇÃO
INTERNATIONAL LEGAL COOPERATION IN CRIMINAL MATTERS: THE
TRANSFER REQUEST FOR THE EXECUTION OF SENTENCE IN THE NEW
MIGRATION LAW

Emini Silva Peixoto


Daniela Estolano Francelino
Geraldo Furtado de Araújo Neto

Resumo: O presente artigo aborda, no âmbito da Cooperação jurídica internacional


em matéria penal, o pedido de transferência para execução de pena, estabelecido na
Nova Lei de Migrações. Considerando a inexistência de instituto assemelhado para
as finalidades penais prevista no ordenamento jurídico brasileiro, imperioso questionar
de que forma tal ferramenta contribui para a cooperação jurídica internacional penal e
exercício do jus puniendi estatal. Analisa-se, essencialmente, a cooperação jurídica
internacional, sob o prisma do mundo globalizado, para abordar então o novo instituto,
inexistente no Estatuto do Estrangeiro, para, dessa forma demonstrar sua contribuição
no âmbito penal e internacional e nas relações entre os Estados-Nações. Utiliza-se,
para tanto, o método dedutivo, possuindo caráter descritivo e exploratório, mediante
pesquisa bibliográfica e documental.
Palavras-Chaves: Cooperação Jurídica Internacional em matéria penal; Lei de
Migrações; Transferência para Execução de Pena.

Abstract: This article discusses, under International Legal Cooperation in Criminal


Matters, the transfer request for the execution of the sentence, established by the New
Migration Law. Considering the inexistence of an institute similar to the criminal
purposes provided for in the Brazilian legal system, it is imperative to question how this
tool contributes to international criminal legal cooperation and the exercise of the state
jus puniendi. International juridical cooperation is analyzed from the perspective of the
globalized world, in order to approach the new institute, until then non-existent in the
Alien Statute, to demonstrate its contribution in the criminal and international sphere
and in the relations between the States Nations. For that, the deductive method is
used, having a descriptive and exploratory character, through bibliographical and
documentary research.
Keywords: International Legal Cooperation in Criminal Matters; Migration Law;
Transfer to Execution of the sentence.

INTRODUÇÃO

Com o advento da Segunda Guerra Mundial e inicialização de longos e


complexos processos de globalização, percebe-se que tal fenômeno vem afetando a
historicidade dos direitos, influenciando na reformulação dos antigos conceitos de
Estado-Nação, e exigindo destes a gradual mitigação de suas soberanias em prol da
realização da cooperação internacional entre os sujeitos.
A nova realidade globalizada, que atualmente vem oferecendo à comunidade
internacional novos desafios e perspectivas, também, implicam na necessidade de
estabelecimento de instrumentos voltados à solução de conflitos no exterior, em
especial para manutenção das relações amistosas e pacíficas entre os Estados.
589

Inobstante os já existentes mecanismos de cooperação jurídica, utilizados


internacionalmente, observa-se que com o advento da Lei 13.445/2017 - Lei de
Migração, estabeleceu-se uma nova ferramenta para cooperação jurídica em matéria
penal, qual seja, o pedido de transferência para execução de pena.
O instituto criado pela Lei de Migração prevê a possibilidade de homologação
de uma sentença estrangeira para fins de execução penal, modalidade até então sem
previsão no ordenamento jurídico brasileiro, que admitia, nos termos do Código Penal,
a homologação de sentença penal tão somente para fins secundários.
Dessa forma, questiona-se quais são as implicações promovidas pelo novo
instituto de cooperação jurídica internacional para o exercício do jus puniendi estatal,
à medida que sua previsão acarreta uma ampliação das possibilidades de
responsabilização de uma pessoa condenada, ainda que em Estado Estrangeiro.
Com o objetivo essencial de analisar a Transferência de Execução de Pena
como mecanismo de cooperação jurídica em matéria penal para exercício do jus
puniendi estatal, a presente pesquisa analisa o respectivo instituto, sob a perspectiva
do novo modelo de Estado-Nação, identificando-se como a Lei de Migrações
estabeleceu sua aplicação, bem como demonstrando de que forma essa alteração
legislativa influencia na homologação de sentença estrangeira para fins penais,
previsto no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no disposto pelo artigo 9°,
do Código Penal Brasileiro.
O método de abordagem adotado para o presente trabalho é o dedutivo,
mediante uma pesquisa bibliográfica e documental, utilizando-se, essencialmente, de
artigos, obras e documentos atinentes à temática. Trata-se de pesquisa com caráter
descritivo e exploratório, objetivando-se, precipuamente, contribuir com o
aprofundamento do tema e seu debate, sob a ótica da cooperação jurídica
internacional em matéria penal, as novas ferramentas de cooperação, voltadas
especificamente para execução penal.

1 COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL NO DIREITO PENAL

Com o advento da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, ao lado do


processo de Internacionalização dos Direitos Humanos, mediante a Declaração
Universal de 1948 e criação da Organização das Nações Unidas (ONU), verifica-se
uma ressignificação dos direitos humanos, sob o prisma do valor essencial da
dignidade da pessoa humana.
O período revela uma mudança significativa no modelo de sociedade
internacional, deixando de lado o aspecto de Estado-Nação Westfaliano até então
consolidado, para uma nova perspectiva globalizada, exigindo-se dos Estados o
acompanhamento, na mesma medida, das evoluções tecnológicas e políticas, o que
implica, por sua vez, na mitigação dos antigos conceitos de soberania em prol da
realização da cooperação internacional entre os sujeitos. (CAMPELLO; SILVEIRA,
2011).
Para Samyra Naspolini e Vladmir Silveira, o Estado-Nação que surge a partir
desta nova concepção de Direito Internacional dos Direitos Humanos sintetiza as duas
últimas gerações de direitos humanos e traz a ideia dos direitos humanos de
solidariedade, sendo definido como Estado Constitucional Cooperativo:

Em um mundo globalizado e em um contexto econômico de capitalismo


avançado há um número cada vez maior de situações e condutas
humanas que exigem do Estado ações de proteção e de prestação. Esse
novo Estado, palco dos direitos de solidariedade, é definido como Estado
590

Constitucional Cooperativo, que substitui o Estado Nação, uma vez que


alia o direito constitucional interno com o direito internacional visando a
cooperação no sentido da concretização dos direitos humanos. Portanto
os direitos de solidariedade, não só relativizam a soberania dos Estados,
mas os comprometem com a pauta de direitos humanos (SILVEIRA;
NASPOLINI, 2013, p. 6).

Nesse âmbito, a cooperação jurídica internacional surge como um mecanismo


indispensável para relações entre os Sujeitos Internacionais de Direito Público. Nas
palavras de Iensue e Carvalho:

Em uma comunidade internacional globalizada, demarcada pela


assimetria entre os países, a cooperação jurídica faz-se mais do que
imprescindível, como decorrência da vontade política de dois ou mais
Estados ou de uma organização internacional. Destarte, no século XXI, a
globalização continua a estimular os países a negociar documentos
jurídicos internacionais que aprofundam e aperfeiçoam a cooperação
jurídica internacional (IENSUE; CARVALHO, 2015, p. 539).

A necessidade de cooperação jurídica no âmbito internacional em matéria


penal, também, emerge neste momento, tornando-se imprescindível para a promoção
e efetivação de interesses em âmbito processual e relativos à aplicação da lei penal,
decorrentes em especial da soberania dos Estados, com a finalidade precípua de
garantir o jus puniendi estatal.
Diante da nova realidade globalizada, em especial do aumento dos fluxos
migratórios e dos crimes transnacionais, os mecanismos de cooperação jurídica
internacional emergem como ferramentas úteis para solução de demandas
processuais ou conflitos em geral.

[...] inúmeras questões também podem surgir no âmbito da cooperação


jurídica penal internacional. Em todas essas hipóteses, a cooperação
jurídica internacional revela-se essencial, sendo que problemas ou
insuficiências no bojo da mesma podem se revelar óbices graves à
efetividade da jurisdição e à adequada tutela dos direitos humanos,
merecendo ser objeto de estudo e aprimoramento (...) Por conseguinte, a
atividade de cooperação jurídica internacional impõe um empenho
considerável na busca de compatibilizar as soberanias nacionais e a
multiplicidade de ordenamentos jurídicos (IENSUE; CARVALHO, 2015, p.
541).

Considerando que a cooperação jurídica em matéria penal decorre em especial


do exercício da soberania estatal, Paulo Henrique Gonçalves Portela pondera:

Com efeito, cabe a cada Estado velar pelo respeito à lei penal em seu
respectivo território (...). Entretanto, a internacionalização da vida atual
implica que o exercício do poder punitivo estatal pode depender de atos
praticados em outros Estados. (...). A cooperação jurídica no campo penal
é realizada por meio de institutos tradicionais, como as cartas rogatórias,
a homologação de sentenças estrangeiras e a extradição. Entretanto,
podem também os estados recorrer a novas ferramentas de cooperação
jurídica internacional como o chamado “auxílio direto”, as autoridades
centrais ou as redes de cooperação. Cabe destacar que todas essas
ferramentas podem ou não ser objeto de tratados, podendo ser reguladas
por outros instrumentos internacionais que configurem mero soft law ou
pela lei interna (PORTELA, 2016, p. 544-545).
591

Neste aspecto, merece maior atenção os novos mecanismos de cooperação


internacional criados pela Lei n° 13.455/2017 (Novel Lei de Migração), dentre eles a
Transferência para Execução de Pena, instituto até então não existente no
ordenamento jurídico brasileiro, cujos aspectos demonstram a possibilidade de
homologação de uma sentença penal para fins de execução criminal.

2 NOVA LEI DE MIGRAÇÃO E TRANSFERÊNCIA PARA EXECUÇÃO DE PENA

A Nova Lei de Migração, substituindo o antigo Estatuto do Estrangeiro, inovou


juridicamente ao estabelecer em seu capítulo VIII, voltado para Cooperação Jurídica
Internacional, o Pedido de Transferência para Execução de Pena, instrumento cabível
nas hipóteses de não ser possível, por exemplo, a extradição do condenado.
Regido sob o princípio da Cooperação Jurídica Internacional “aut dedere aut
judicare” (julgue ou extradite), o instituto foi criado previamente considerando:

[...] hipótese de não ser viável atender o pedido de extradição, por


exemplo, pelo fato de um ordenamento jurídico impedir a extradição de
nacionais, o Estado que negá-lo deverá envidar esforços para processar
criminalmente os autores de delitos praticados em outro território
(BRASIL, 2017a, p. 6).

Para Douglas Fischer e Vladimir Aras a transferência da execução penal é a


alternativa mais adequada, posto que:

[...] se o foragido já houver sido condenado, a melhor solução é a


transferência da execução penal, conforme o princípio do reconhecimento
mútuo de decisões judiciais. Afronta a economia processual e a segurança
jurídica realizar um novo julgamento sobre o mesmo fato (FISCHER;
ARAS, 2016, p. 192).

Sua definição encontra-se no artigo 100, caput, da Lei de Migração: “Nas


hipóteses em que couber solicitação de extradição executória, a autoridade
competente poderá solicitar ou autorizar a transferência de execução da pena, desde
que observado o princípio do non bis in idem”, e independe do consentimento da
pessoa condenada (BRASIL, 2017).
A alternativa posta pela Lei n° 13.445/2017, evita, assim, a impunidade penal,
podendo aproveitar os atos processuais já realizados no Estado Estrangeiro para
execução penal do condenado, impedindo-se, também, a eventual instauração de
uma segunda persecução penal para posterior responsabilização criminal (bis in idem
internacional).
Para sua aplicação, a Lei de Migração elenca, como requisitos básicos
cumulativos: I – o condenado em território estrangeiro for nacional ou tiver residência
habitual ou vínculo pessoal no Brasil; II - a sentença tiver transitado em julgado; III - a
duração da condenação a cumprir ou que restar para cumprir for de, pelo menos, 1
(um) ano, na data de apresentação do pedido ao Estado da condenação; IV - o fato
que originou a condenação constituir infração penal perante a lei de ambas as partes;
e V - houver tratado ou promessa de reciprocidade (BRASIL, 2017).
No que tange ao último requisito, cabe destacar que, o Brasil firmou, tão
somente, um tratado internacional com a finalidade de Transferência para Execução
de Pena, com o Reino dos Países Baixos (promulgado por meio do Decreto nº 7.906,
de 04.02.2013), estabelecendo os procedimentos necessários a serem adotados para
a aplicação do instituto.
592

Certo é, no entanto, que a inexistência de tratado não obsta a aplicação da


transferência de execução de pena, desde que haja promessa de reciprocidade1. Aras
e Fisher esclarecem:

O direito internacional da cooperação consagra o princípio da


reciprocidade, que permite a execução de pedidos de assistência jurídica
internacional oriundos de um Estado estrangeiro ou de um tribunal
internacional, com base no direito interno, ainda que não exista tratado
entre o ente requerente e o Estado requerido (FISCHER; ARAS, 2016, p.
178).

Em sendo preenchidos os requisitos legais, o pedido será requerido por via


diplomática ou por via de autoridades centrais, devendo ser recebido pelo órgão
competente do Poder Executivo para, posteriormente, encaminha-lo ao Superior
Tribunal de Justiça, juízo competente para a decisão de homologação (BRASIL,
2017).
O diploma legal estabelece, por fim, a competência da Justiça Federal para
execução penal, em sendo aprovado o pedido de transferência. Caso contrário, será
o pedido arquivado, sem prejuízo de ulterior renovação, desde que superado o
eventual óbice que impediu seu conhecimento inicialmente (BRASIL, 2017).

3 O PEDIDO DE TRANSFERÊNCIA DE PENA E A HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA


ESTRANGEIRA

Depreende-se, pela inovação trazida pela Lei de Migração, uma mudança de


paradigma no que se refere à homologação de sentença estrangeira para fins penais,
em especial no que se refere à execução da pena corpórea, ou privativa de liberdade.
O novo instituto, até então inexistente no antigo Estatuto do Estrangeiro,
representa uma superação do tratamento restritivo previsto no art. 9º, do Códice
Penal, que autorizava a homologação de sentença estrangeira penal apenas para a
execução de seus efeitos civis, ou seja, cumprimento da obrigação de reparar o dano
e sujeição à medida de segurança.
A homologação de sentença estrangeira para fins essencialmente penais, no
ordenamento jurídico brasileiro, antes do advento da Lei de Migração, não era
acolhida, conforme poderia se depreender da leitura dos artigos 9°, do Código Penal
e 787 a 790, do Código de Processo Penal.
Ressaltava Paulo Henrique Gonçalves Portela inclusive, nesse sentido, que
“Na jurisprudência, o próprio STF reafirma que não é viável a homologação de
sentença penal estrangeira para efeitos de execução da pena privativa de liberdade
ou de outra sanção típica do Direito Penal” (PORTELA, 2016, p. 752).
Com o advento do presente instituto, no entanto, a possiblidade de efetivar a
execução penal da uma sentença estrangeira adquire expressa previsão jurídica,
sendo imperioso ressaltar que, através de sua aplicação, efetiva-se, principalmente,
princípios constitucionais e processuais penais referentes à duração razoável do
processo e da economia processual, vindo a aproveitar atos jurídicos praticados no
exterior, ao invés de iniciar uma segunda persecução penal e rejulgar o condenado,
desde que homologada a sentença estrangeira pelo Estado Brasileiro.

1
O Código de Processo Civil de 2015, a fim de evitar controvérsias, consignou expressamente a possibilidade em seu Capítulo
II, referente à cooperação internacional: “Art. 26, § 1o Na ausência de tratado, a cooperação jurídica internacional poderá realizar-
se com base em reciprocidade, manifestada por via diplomática”.
593

Neste ponto, imperioso observar que as disposições do artigo 15, da Lei de


Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB) permanecem válidas, no que tange ao
processo de homologação da sentença estrangeira, cuja competência foi transferida
ao Superior Tribunal de Justiça por força da EC n° 45/20042.
Consigne-se que, tal ferramenta prevista na Lei de Migração já era mencionada
em diversos documentos internacionais dos quais, inclusive, o Estado brasileiro é
signatário, como: a) Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e
Substâncias Psicotrópicas ou Convenção de Viena de 1988 (Promulgada pelo Decreto
n. 154 de 26 de Junho de 1991)3; b) Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional ou Convenção de Palermo (Promulgada pelo Decreto nº
5.015, de 12 de março de 2004)4; c) Convenção das Nações Unidas contra a
Corrupção – Convenção de Mérida (Promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de
janeiro de 2006)5.
Dessa forma, depreende-se relevantes avanços no que se refere à
possibilidade de exercício do jus puniendi estatal, uma vez que poderá ser requerido,
via diplomática, a partir do advento da Lei de Migração a homologação de eventual
sentença penal, para fins de execução criminal, desde que obedecido o rito proposto
pela Lei 13.445/2017 e LINDB, superando-se a antiga previsão restritiva do Código
Penal, que possibilitava a homologação da sentença penal tão somente para fins
secundários.

CONCLUSÃO

À guisa de considerações finais, relevante salientar que, a partir do advento do


Direito Internacional dos Direitos Humanos, especialmente, após Segunda Guerra
Mundial, as noções de Estado-Nação “Westfaliano” sofreram significativas mudanças,
principalmente, diante dos complexos processos de globalização que exigiram dos
Estados o acompanhamento, na mesma medida, das evoluções tecnológicas e
políticas, bem como voltadas à cooperação jurídica internacional.
Nesse sentido, impende observar que, as alterações promovidas pela Lei de
Migração, incorporaram, ao ordenamento jurídico brasileiro, novas formas de
cooperação jurídica internacional, em matéria penal, corroborando com a nova
realidade globalizada e interdependente de promoção e efetivação de interesses em
âmbito processual e relativos à aplicação da lei penal.
Nesse sentido, através da criação do instituto de Transferência para Execução
de Pena, abriu-se a possibilidade de homologação de sentença estrangeira para fins

2
Art. 15. Será executada no Brasil a sentença proferida no estrangeiro, que reúna os seguintes requisitos:
a) haver sido proferida por juiz competente;
b) terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado à revelia;
c) ter passado em julgado e estar revestida das formalidades necessárias para a execução no lugar em que foi proferida;
d) estar traduzida por intérprete autorizado;
e) ter sido homologada pelo Supremo Tribunal Federal (vide art. 105, I, “i”, CF). (BRASIL, 1942).
3
Art. 6º, §10 – “10 - Se a extradição solicitada com o propósito de fazer cumprir uma condenação, for denegada, porque o
indivíduo objeto da solicitação é nacional da Parte requerida, esta, se sua legislação assim o permitir, e de acordo com as
determinações da legislação em questão, e a pedido da parte requerente, considerará a possibilidade de fazer cumprir a
pena imposta, ou o que resta da pena ainda a cumprir, de acordo com a legislação da Parte requerente.”.
4
Art. 16, §12 - Se a extradição, pedida para efeitos de execução de uma pena, for recusada porque a pessoa que é objeto deste
pedido é um cidadão do Estado Parte requerido, este, se o seu direito interno o permitir, em conformidade com as prescrições
deste direito e a pedido do Estado Parte requerente, considerará a possibilidade de dar execução à pena que foi aplicada
em conformidade com o direito do Estado Parte requerente ou ao que dessa pena faltar cumprir.
5
Art. 44, §13 - Se a extradição solicitada com o propósito de que se cumpra uma pena é negada pelo fato de que a pessoa
procurada é cidadã do Estado Parte requerido, este, se sua legislação interna autoriza e em conformidade com os requisitos da
mencionada legislação, considerará, ante solicitação do Estado Parte requerente, a possibilidade de fazer cumprir a pena imposta
ou o resto pendente de tal pena de acordo com a legislação interna do Estado Parte requerente.
594

penais e promoção da execução criminal do condenado no estrangeiro, mecanismo


de extrema relevância quando não é possível, por exemplo, a extradição de um
nacional para efetivação de sua responsabilidade criminal.
Elencando uma série de requisitos bem como determinando a competência
federal para a execução penal, o instituto promove em especial o aproveitamento dos
atos processuais já realizados no Estado Estrangeiro, evitando a necessidade de
instauração de nova persecução penal para punição do indivíduo, importando,
consequentemente, na efetivação de princípios como a duração razoável do processo
e da economia processual.
A ferramenta de cooperação internacional em matéria penal, no entanto, não é
criação exclusiva da Lei de Migrações, vez que comporta previsão, por exemplo, em
diversos documentos internacionais como a Convenção de 1988 de combate às
drogas, Convenção de Palermo e Convenção de Mérida.
Todavia, sua institucionalização no ordenamento jurídico brasileiro implicou na
superação do tratamento restritivo concedido pelo Código Penal e Processual Penal
no que se refere à homologação de sentença estrangeira para fins penais, posto que,
de acordo com o artigo 9° do CP, era tão somente possível a homologação da
sentença estrangeira para fins secundários, como reparação do dano e sujeição à
medida de segurança.
Portanto, imperioso concluir que, à medida em que se institui a Transferência
da Execução de Pena, por meio da Lei n° 13.445/2017, promove-se a possibilidade
de exercer, amplamente, o poder punitivo estatal, decorrente de sua soberania,
efetivando a necessária responsabilização penal do indivíduo, ainda que este esteja
em território estrangeiro.

REFERÊNCIAS

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o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas. Disponível em:
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set. 2018.
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Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm>.
Acesso em: 24 set. 2018.
______. Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006. Promulga a Convenção das
Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações
Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2006/Decreto/D5687.htm>. Acesso em: 24 set. 2018.
______. Decreto nº 7.906, de 04.02.2013. Promulga o Tratado de Transferência
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em 23 de janeiro de 2009. Disponível em:
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Acesso em 29 set. 2018.
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<http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/Decreto-Lei/Del4657compilado.htm>. Acesso
em: 07 out. 2018.
595

______. Lei n° 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.


Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
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2013.
596

NOVA LEI BRASILEIRA DE MIGRAÇÃO E CONVENÇÃO DA ONU DE 1990 PARA


PROTEÇÃO DOS TRABALHADORES MIGRANTE E MEMBROS DE SUAS
FAMÍLIAS: PROXIMIDADES E DIVERGÊNCIAS
NUEVA LEY BRASILEÑA DE MIGRACIÓN Y CONVENCIÓN DE LA ONU DE 1990
PARA PROTECCIÓN DE LOS TRABAJADORES MIGRANTES Y MIEMBROS DE
SUS FAMILIAS: PROXIMIDADES Y DIVERGENCIAS

Thainy Gomes da Silva Santos


Ana Paula Matins Amaral

Resumo: Desde a década de 1980, o Brasil tornou-se um país de destaque no campo


internacional, por ser um país de destino, origem e trânsito. Assim, a presente
pesquisa busca analisar as duas normas fundamentais de proteção ao trabalhador
migrante: a Nova Lei de Migração (NLM) e a Convenção Sobre os Trabalhadores
Migrantes e Membros de suas famílias (CPDTM), da qual o Brasil ainda não é
signatário. Dessa forma, esta pesquisa descritiva e exploratória, por meio dos
métodos bibliográfico e documental, visa verificar de que maneira a ratificação pelo
país da CPDTM, incrementaria na proteção dos direitos humanos dos imigrantes em
convergência com a NLM. Preliminarmente, foi possível identificar que os princípios
previstos no artigo 3°da NLM, são também norteadores da CPDTM, bem como que o
ingresso do Brasil na CPDTM traria uma consolidação dos direitos humanos presentes
na NLM.
Palavras-chave: Migrações internacionais, Direitos Humanos, Nova Lei de Migração,
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores
Migrantes e dos Membros das suas Famílias.

Resumen: Desde la década de 1980, Brasil se ha convertido en un país de referencia


en el campo internacional, por ser un país de destino, origen y tránsito. Así, la presente
investigación busca analizar las dos normas fundamentales de protección al
trabajador migrante: la Nueva Ley de Migración (NLM) y la Convención sobre los
Trabajadores Migrantes y Miembros de sus familias (CPDTM), a cuál el Brasil aún no
es signatario. De esta forma, esta investigación descriptiva y exploratoria, por medio
de los métodos bibliográfico y documental, busca comprobar de qué manera la
ratificación por el país de la CPDTM, incrementaría en la protección de los derechos
humanos de los inmigrantes en convergencia con la NLM. En principio, fue posible
identificar que los principios previstos en el artículo 3º de la NLM, son también
orientadores de la CPDTM, así como que el ingreso de Brasil en la CPDTM traería
una consolidación de los derechos humanos presentes en la NLM.
Palabras-clave: Migraciones internacionales, Derechos Humanos, Nueva Ley de
Migración, Convención Internacional sobre la protección de los derechos de Todos los
Trabajadores Migrantes y de los Miembros de sus Familias.

1 INTRODUÇÃO

A mobilidade humana desde o século XIX, tem se intensificado, mas somente


no final do sec. XX e início do sec. XXI, o Estado brasileiro se volta para questões
migratórias e incentiva a proteção de garantias fundamentais dos migrantes, por meio
de políticas públicas e de um aparato legislativo.
597

Isso porque, o Brasil, a partir de 1980, se torna não somente o destino de


milhares de imigrantes, mas também de origem e trânsito, e com isso se apresenta
como um país de destaque no campo internacional. Assim, com a sua importância
nesse novo cenário, o Brasil, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, tem
se aperfeiçoado paulatinamente em promover proteção e políticas públicas
adequadas tantos aos seus nacionais, como aos imigrantes, independente de seus
status migratórios, a fim de que sejam garantidos seus direitos fundamentais. Além
disso, sabe-se que tanto as migrações voluntárias, como as involuntárias, acabam
sendo alvos fáceis de violações dos direitos humanos, em especial no que se refere
à exploração de mão de obra de trabalho.
Dessa forma, apesar do Brasil já ser signatário de diversos tratados e
convenções com um viés protetivo de direitos humanos ao migrante empregado 1, o
país ainda não ratificou a Convenção sobre os Trabalhadores Migrantes e Membros
de Suas Famílias, sancionada pela Resolução n.45/158 e decorrente da Assembleia
Geral da ONU em 1990, feita essencialmente para tratar desse assunto. Esse
documento, nas palavras de Costa (2018), “foi a primeira convenção de direitos
humanos no âmbito da ONU a tratar especificamente dos trabalhadores migrantes e
faz parte do conjunto dos tratados do sistema global que protegem um grupo
específico de pessoas particularmente vulnerável”.
Assim, este trabalho, descritivo e exploratório, por meio dos métodos de
pesquisa bibliográfica e documental visa analisar as convergências, de forma
comparativa, entre a nova Lei de Migração (NLM) e os instrumentos globais de
proteção do trabalhador migrante, em que pese a Convenção sobre os Trabalhadores
Migrantes e Membros de Suas Famílias (CPDTM) de 1990, da qual o Brasil não é
parte. Além disso, a presente pesquisa tem como base o plano de trabalho sob o tema
“A nova lei brasileira de migração e a convenção da ONU de 1990 para a proteção
dos trabalhadores migrante e membros de suas famílias”, desenvolvida na
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, que irá analisar as proximidades e
divergências dos dois instrumentos jurídicos e encontra-se em fase inicial de
pesquisa.

2 AS NUANCES DA NOVA LEI DE MIGRAÇÃO COM A CONVENÇÃO SOBRE OS


PROTEÇÃO DOS TRABALHADORES MIGRANTES E MEMBROS DE SUAS
FAMÍLIAS

A aprovação da NLM, n. 13.445/2017, trouxe um novo marco legal na


legislatura brasileira, no sentido de explanar um tratamento mais inclusivo dos
migrantes que aqui chegam, e buscar uma maior aproximação dos nacionais que
daqui saem. Mais que isso, sua promulgação já é concebida como um avanço não
somente na política migratória brasileira, mas também no campo dos direitos
humanos, sobretudo por estar em melhor consonância com a Constituição Federal e
os Tratados internacionais, se comparado ao superado Estatuto do Estrangeiro (Lei
6.815/1980), tendo em vista o princípio da dignidade da pessoa humana (RAMOS,
2017).

1
Segundo Matias e Martins, o Brasil é parte da “Convenção sobre a Migração para o trabalho de 1949 (n.º 97), baseada na
igualdade de tratamento de nacionais e imigrantes legais em matéria laboral e da Convenção n.º 19 da OIT de 1925 que versa
sobre a “igualdade de tratamento dos trabalhadores estrangeiros e nacionais em matéria de indenização por acidente de
trabalho”. Além disso, se cita a Declaração sobre os Direitos Humanos dos Indivíduos Que Não São Nacionais Do País Em Que
Vivem, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1985, por meio de sua Resolução 40/144. Sem contar da também, a
Declaração dos Direitos Humanos e seus demais instrumentos que regem sobre a migração.
598

Assim, se indaga os motivos da não ratificação por parte do Brasil da


Convenção sobre os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias
(CPDTM), na medida em que esta última trata, segundo Matias e Martins (2007), de
maneira “integral e universal” dos direitos dos trabalhadores migrantes e dos membros
das suas famílias, tendo como base o princípio da igualdade de tratamento. A
Convenção, dentre suas diretrizes, também “define os direitos aplicáveis a todos os
imigrantes em situação irregular e regular”, estabelecendo normas mínimas de
proteção dos direitos civis, econômicos, políticos, sociais e de trabalho. Acrescenta-
se ainda, o fato de o aludido documento reconhecer os direitos fundamentais para
todos trabalhadores migrantes no âmbito internacional.
Sobre a Convenção especificadamente, ela é composta de 93 artigos e se
encontra dividida em nove partes. A Parte I define as margens interpretativas da
convenção, a Parte II estabelece critérios de não discriminação em matéria de direito;
a Parte III compreende os direitos de todos os migrantes, independente de sua
situação migratória; a Parte IV aborda os direitos dos documentados ou em situação
regular; Parte V traz disposições aplicáveis a categorias especiais de trabalhadores;
a sexta Parte delineia sobre as obrigações e responsividades dos Estados e; as Partes
VII, VIII e IV apresentam de que forma se dará aplicação da Convenção e suas
possíveis reservas por parte dos Estados.
Isto posto, foram observados, a princípio, alguns pontos que aproximam as
duas normas jurídicas, a NLM e a CPDTM, tendo em foco a proteção dos sujeitos
dessa convenção. Dessa forma, se destacam preliminarmente os princípios da
universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; assim como
a promoção e difusão de direitos, liberdades, garantias e obrigações do migrante,
todos previstos no art. 3° da NLM e que são também norteadores da CPDTM.
Outrossim, o art. 3° da NLM ainda prevê a garantia do direito a reunião familiar
e a igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e seus familiares. Além
disso, também se constata do artigo, os princípios dos incisos: X, que fala da Inclusão
social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas e; XXII que
menciona sobre o repúdio a práticas de exclusão ou de deportação coletivas (BRASIL,
2017). Quanto às garantias do migrante em território nacional, em condição de
igualdade com os nacionais, a Lei 13.445, do mesmo modo, prevê em seu artigo 4º,
os seguintes tratamentos:

Art. 4o Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de


igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados:
III - direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro
e seus filhos, familiares e dependentes;
X - direito à educação pública, vedada a discriminação em razão da
nacionalidade e da condição migratória;
VIII - acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à
previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da
nacionalidade e da condição migratória;
XI - garantia de cumprimento de obrigações legais e contratuais
trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem
discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória
(BRASIL, 2017).

Importante dizer, que referente à garantia do direito à reunião familiar, como


supracitado, a NLM possui uma seção destinada somente a Reunião Familiar. Por
outro lado, a Convenção em seu artigo 4º, define a expressão “membros da família”,
e deixa à cargo da legislação interna dos Estados ou para acordos bilaterais ou
599

multilaterais a conceituação de família. A intenção, da CPDTM, nesse sentido, era não


tomar partido, quando das negociações, “em matéria delicada como a definição da
família que, ademais, assume contornos diversos consoante o ambiente cultural”
(MATIAS; MARTINS, 2007).
Não obstante, e em conformidade com os dispositivos da Lei brasileira em
razão do tratamento não só dos membros familiares que se deslocam, mas também
do trabalhador migrante, a CPDTM pensa direitos particulares destes, os quais são
similares aos direitos e princípios presentes no arcabouço legislativo brasileiro,
conforme destaca Costa e Amaral (2018, no prelo) dentre as normas da convenção:

A vedação de expulsões coletivas (art. 22,1), direito a assistência consular


(art. 23); proteção contra destruição de documentos (art. 21); direito a um
tratamento não menos favorável que aquele concedido aos nacionais do
Estado de emprego em matéria de remuneração e outras condições de
trabalho (art. 25, I, a) e emprego (art. 25, I, b); igualdade em matéria de
segurança social em relação aos nacionais do Estado (art. 27); o direito a
uma identidade e nacionalidade (art. 29) e de acesso à educação em
condições de igualdade com os nacionais aos filhos do imigrantes.

Ainda referente ao artigo 4º, da NLM, pode se identificar, no que se refere as


garantias trabalhistas, os incisos IX e XI, que falam respectivamente, do “direito de
associação, inclusive sindical, para fins lícitos” e a “garantia de cumprimento de
obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção
ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição
migratória”. Observa-se novamente que a Lei 13.445/2017 e a Convenção da ONU de
1990 possuem entre si uma complementariedade, haja vista que a CPDTM em seu
artigo 26º, estipula aos seus Estados Partes o reconhecimento a todos os
trabalhadores migrantes e membros de suas famílias o direito:

a) A participar em reuniões e atividades de sindicatos e outras


associações estabelecidos de acordo com a lei para proteger os seus
interesses económicos, sociais, culturais e outros, com sujeição, apenas,
às regras da organização interessada.
b) A inscrever-se livremente nos referidos sindicatos ou associações, com
sujeição, apenas, às regras da organização interessada.
c) A procurar o auxílio e a assistência dos referidos sindicatos e
associações (ONU, 1990);

Por conseguinte, importante realçar da análise comparativa entre os dois


documentos protetivos, os quais aqui são objeto de estudo, que a CPDTM possui uma
denominação mais extensiva do conceito de “migrante”, em relação a nova Lei
Migratória. Tal qualificação restritiva da Lei 13.445, se intensifica quando se aborda o
veto realizado a esta Lei, antes de sua promulgação, que assume somente definições
de “imigrante”, “emigrante”, “residente fronteiriço”, “visitante” e “apátrida”. Nesse
sentido, o artigo 1° da convenção estabelece os destinatários que estarão sob seu
regimento:

2. A presente Convenção aplica-se a todo o processo migratório dos


trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias, o qual
compreende a preparação da migração, a partida, o trânsito e a duração
total da estada, a atividade remunerada no Estado de emprego, bem como
o regresso ao Estado de origem ou ao Estado de residência habitual
(ONU, 1990).
600

Do exposto é possível verificar que a CPDTM tem um caráter protetivo


razoavelmente mais completo do que a Lei 13.445/2017, eis que é voltada
especialmente para os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias, mesmo
dando brechas à soberania estatal em alguns critérios, como a denominação de
família. Além do mais, segundo Lima (2016), a convenção é mais um instrumento que
reconhece as garantias dos trabalhadores migrantes, especialmente aos
indocumentados, os quais vulneráveis à exploração de mão de obra, devido ao
exercício de atividades no mercado informal.
Entretanto, o Brasil é o único país do Mercosul que não ratificou a CPDTM,
embora tenha assinado em 2009. Um dos fatores que justifica a baixa aderência da
convenção entre os países, seria seu caráter obrigatório (hard law) dentro do
ordenamento jurídico interno dos Estados signatários, bem como “o dever destes de
enviar ao Comité para a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes
e dos Membros das suas Famílias, instituído pelo art. 72 da CPDTM, relatórios
periódicos sobre a implementação dos direitos previstos pela Convenção” (COSTA,
2018).
Contudo, o Convenção, ao “estabelecer diretrizes obrigacionais aos Estados”,
por meio de relatórios periódicos ao Comité da ONU, “sobre as medidas legislativas,
judiciais, administrativas e de outra natureza que hajam adotado para dar aplicação
às disposições” neste documento, poderiam delinear novos caminhos para a
efetividade das garantias fundamentais no meio social, não somente do arcabouço
legislativo interno brasileiro, mas também no âmbito internacional, não estando
limitado os referidos documento na esfera política.
Assim, se acredita, que o ingresso do Brasil na CPDTM através de sua
ratificação traria uma consolidação dos direitos humanos já contidos na nova Lei de
Migração e uma maior efetividade desta no meio social. Deve-se, com isso, levar em
consideração o art. 5º da CF/1988 e demais termos, que falam sobre o princípio da
igualdade, com espeque nos direitos e garantias fundamentais, assim como o §3º do
referido artigo que versa a respeito dos tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos que forem aprovados, conforme as exigência da norma em questão,
serão equivalentes às emendas constitucionais (BRASIL, 1988). Além disso, a
ratificação da convenção serviria não só como parâmetro de controle de
constitucionalidade, mas também de convencionalidade, o que conferiria maior
proteção no âmbito jurídico aos migrantes regulares, como aos irregulares.

3 CONCLUSÃO

A nova Lei de Migração é considerada um avanço no que tange ao aparato


legal de proteção ao migrante, de forma a lhe garantir direitos fundamentais previstos
na Constituição Federal. Com isso, ante ao intenso fluxo migratório que se tem nos
dias atuais, cabe aos Estados, em especial ao Brasil, implementar e efetivar Leis que
garantam a aquisição desses direitos por parte dos imigrantes que estão sob sua
jurisdição. Dessa forma, a ratificação da CPDTM é um meio para que os direitos
essenciais dos trabalhadores migrantes e membros de suas famílias não sejam
violados.
Assim, o presente trabalho cuidou de identificar as peculiaridades referente ao
amparo dos trabalhadores migrantes e membros de suas famílias entre a convenção
da ONU de1990 e a Lei 13.445/2017. Por ser um tema revestido de atualidade, se
buscou analisar de que maneira a ratificação pelo Brasil da CPDTM, incrementaria a
proteção dos direitos humanos dos imigrantes em convergência com a Lei
601

13.445/2017, que trata as migrações como fato social orientado pela ótica dos direitos
humanos.
Sendo assim, se identificou nas análises comparativas entre a convenção e a
nova Lei de Migração uma complementariedade em que a primeira poderia trazer à
segunda com a ratificação da CPDTM pelo Estado brasileiro. Ademais, tornando o
país signatário de tal do documento, haveria não somente a consolidação do
compromisso internacional com a humanização da política migratória, mas também
uma maior eficácia da Lei 13.445/2017, no que diz respeito ao amparo legal de
proteção, juntamente com a CPDTM e a Constituição Federal, em particular §3º do
art. 5º.

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Sul, Campinas – SP, v. 2ª ed, p. 597-608, jan. 2018.
603

OS TRATADOS E SUA EFETIVIDADE NA ESFERA DE DIREITOS DOS POVOS


TRADICIONAIS DA REGIÃO FRONTEIRIÇA DO ESTADO DO MATO GROSSO DO
SUL
THE TREATIES AND ITS EFFECTIVENESS IN THE FIELD OF RIGHTS OF
TRADITIONAL PEOPLES IN THE BORDER REGION OF THE STATE OF MATO
GROSSO DO SUL

Marco Antônio Rodrigues


Andréa Lúcia Cavararo Rodrigues
Ana Paula Martins Amaral

Resumo: O presente artigo é fruto do projeto de pesquisa em andamento, intitulado


“A Dinâmica Migratória dos Povos Tradicionais Fronteiriços no Estado do Mato Grosso
do Sul e os Reflexos da Mensagem de Veto nº 163/2017”. O artigo parte da formação
do Estado e seu impacto sobre as populações tradicionais, buscando compreender os
conceitos de fronteira e mobilidade humana em um viés jurídico-antropológico. A
pesquisa irá analisar a política fundiária brasileira dentro da doutrina de segurança
nacional do Estado Novo de Vargas e verificar algumas distorções que interferiram na
esfera dos povos tradicionais na região fronteiriça do Estado do Mato Grosso do Sul,
levando-se em conta que o Brasil é signatário de diversos acordos e tratados
internacionais que versam sobre direitos dos povos tradicionais. Na hipótese, busca-
se desvincular a mobilidade dos povos tradicionais da ideia de migração. Por meio da
pesquisa bibliográfica o artigo buscará chegar ao objetivo.
Palavras-chave: Formação do Estado. Povos Tradicionais. Tratados Internacionais.

Abstract: This article is the result of an ongoing research project entitled "The
Migration Dynamics of Traditional Border People in the State of Mato Grosso do Sul
and the Reflexes of Veto Message No. 163/2017". The article starts with the formation
of the State and its impact on traditional populations, seeking to understand the
concepts of frontier and human mobility in a legal-anthropological bias. The research
will analyze the Brazilian land policy within the national security doctrine of Vargas
State and verify some distortions that interfered in the sphere of traditional peoples in
the border region of the State of Mato Grosso do Sul, taking into account that Brazil is
signatory of several international agreements and treaties that deal with the rights of
traditional peoples. In the hypothesis, we try to dissociate the mobility of the traditional
peoples from the idea of migration. Through bibliographic research the article will seek
to reach the goal.
Keywords: State formation. Traditional People. International Treaties.

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca analisar a formação do Estado a partir do direito natural


para se entender fronteira e mobilidade humana dentro do processo histórico de
formação de fronteiras, compreendendo-se como elas foram estabelecidas e quais
impactos foram produzidos sobre as populações tradicionais.
A histórica Doutrina do Descobrimento, que no tempo das navegações garantia
a posse definitiva dos territórios achados à soberania da coroa a que se submetia o
navegador, mesmo que no território fossem encontradas civilizações.
604

Nos dizeres de Heydte (2014, p. 330), território será a definição de objeto e


elemento definidor de domínio político e, mais do que uma unidade de domínio, é um
espaço legal, onde se impunha o direito à terra.
Nessa lógica, ao se definir o conceito de ocupação da “terra de ninguém”,
Heydte (2014, p. 341) recorda que além da conquista bélica, aparecia a hipótese de
ocupação do território que não estava sob o domínio de ninguém, possibilitando ao
soberano cumprir seus deveres senhoriais, como proteção dos moradores desse
território contra inimigos externos com fundamento no direito romano de que a terra
de ninguém que é ocupada torna-se propriedade de quem a ocupa1.
Dessa forma, o estabelecimento dos Estados nacionais no caso das fronteiras
brasileiras também seguiu o modelo tradicional, baseado na força e na imposição de
uma estrutura de poder que não respeitou os povos tradicionais que já se encontravam
no território, forçando-os a migrar em virtude de conflitos, massacres e falta de
alimento em alguns casos.
Nesse panorama, as cidades fronteiriças do Mato Grosso do Sul tornam-se
verdadeiros laboratórios de estudo do processo de inserção dos migrantes, sendo um
espaço privilegiado para a discussão dos temas acerca da diversidade e da trajetória
histórica e cultural de povos indígenas (AGUILERA URQUIZA, 2013, p. 07).
Dentro do processo de construção dos Estados Nacionais, via de regra, houve
a privação da liberdade dos povos indígenas em praticar seus deslocamentos
espaciais, valendo recordar Colman (2015, p.21 apud. VAINER E MELO, 2012), ao
afirmar que migrar está intrinsecamente ligado ao movimento espacial de uma
população, e essa autora reitera que os deslocamentos espaciais podem ocorrer em
virtude de catástrofes naturais, guerras, perseguições e outros fatores decorrentes da
ação humana.
Diante disso, os conflitos pela posse da terra nas regiões de fronteira do Mato
Grosso do Sul terminam por revelar o descaso do Estado brasileiro para com os povos
tradicionais, seja por desconhecimento ou por falta de vontade política, onde os
acordos e tratados sobre Direitos Humanos são “letra morta” nessas regiões.
O Brasil é signatário de tratados e acordos internacionais, dentre os quais a
Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho2 (ONU, 2015), bem
como outros tratados na área de Direitos Humanos, e que foram recepcionados na
Carta Federal de 1988 e que possuem como marca fundamental a preservação dos
direitos do cidadão e a sua dignidade como pessoa, coibindo violações aos Direitos
Humanos e às pessoas e classes vulneráveis, legitimando a atuação extraterritorial
das cortes internacionais quando se tratar de questões que se enquadrem em grave
afronta de direitos fundamentais das pessoas ou de comunidades indígenas.
Conforme Volkmer (2003, p. 45), desde o início da colonização, além da
marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um Direito nativo e
informal, a ordem normativa oficial implementava, gradativamente, as condições
necessárias para institucionalizar o projeto expansionista lusitano.
Ao se abordar a formação dos Estados nacionais da América do Sul, cabe
salientar que a questão indígena estará associada aos recursos naturais localizados
nas Terras Indígenas (TI), e a exploração desses recursos poderá inviabilizar a

1
Princípio do Direito Romano denominado uti possidetis. (nota dos autores).
2
A Convenção n° 169, sobre povos indígenas e tribais, adotada na 76ª Conferência Internacional do Trabalho em l989, revê a
Convenção n° 107. Ela constitui o primeiro instrumento internacional vinculante que trata especificamente dos direitos dos povos
indígenas e tribais. A Convenção aplica-se a povos em países independentes que são considerados indígenas pelo fato de seus
habitantes descenderem de povos da mesma região geográfica que viviam no país na época da conquista ou no período da
colonização e de conservarem suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas. (nota dos autores)
605

ocupação dessas terras onde, historicamente, foram buscadas soluções baseadas em


guerras de conquista ou na assimilação dos opositores (MARCHINI, 2011, p. 09).
Com base no raciocínio de Sayad (1998, p. 105) a mobilidade e a cultura dos
povos tradicionais, baseadas no costume e na cosmologia desses povos, não faz
parte de um sistema de ideias pré-concebidas pela instituição “Estado”, o que dificulta
a formulação de políticas para esses povos.
É necessário se entender que os povos tradicionais baseiam sua mobilidade e
seu modus vivendi na cosmologia, nas relações de parentesco e outros fatores
antropológicos, cuja lente do Estado e o senso comum são incapazes de alcançar.

DESENVOLVIMENTO

Nos dizeres de Barbosa (1995, p.117), a América Latina é o reflexo de sua


realidade histórica e social: na verdade, um amontoado de espelhos partidos.
Sociedades forjadas pela cruz e pela espada, na coragem desmedida do colonizador
na sua crueldade e intolerância, plasmadas na cobiça, na aventura e no desejo pela
conquista desenfreada do território, da exploração desmedida dos metais preciosos,
seguida de genocídios e demais violações à vida humana em todos os sentidos.
Considerando que toda essa situação terá reflexos diretos ao longo da
formação da sociedade nos diversos países latino-americanos, cumpre ressaltar
houve a imposição de todo um aparato jurídico alienígena que serviu somente para
beneficiar as classes dominantes e as oligarquias existentes na época, favorecendo o
clientelismo, os abusos e a expansão irregular de terras em detrimento do direito já
estabelecido pelas populações tradicionais que habitavam o território.
Segundo Gabaglia (2014, p.07), no princípio, as fronteiras eram vastas regiões
de terra desabitadas e caracterizadas por desertos, pântanos, montanhas e outros
obstáculos naturais, mas devido ao aumento da população, o valor crescente da terra,
melhor utilizada pelo trabalho humano, dentre outros fatores, contribuíram para o
estreitamento das zonas de fronteira, culminando com o estabelecimento de faixas de
fronteira, levando-se em conta a existência real e o aspecto peculiar desses territórios.
Embora a Teoria das Fronteiras Naturais tenha sido preponderante no processo
de expansão ora estudado, outra teoria a ser destacada seria a das Fronteiras
Políticas, que nem sempre repousará na justiça e na equidade, vindo muitas vezes a
esconder, sob a forma jurídica, extorsões dos mais fortes sobre os mais fracos
(GABAGLIA, 2014, p.15).
Ao se estudar a realidade fronteiriça no Estado do Mato Grosso do Sul, deve-
se compreendê-la como um lugar de conflito e alteridade entre “nós” e os “outros” e
como espaço de várias temporalidades (ALBUQUERQUE, 2005, p. 64).
A partir do Estado Novo de Vargas surge em relação às fronteiras a ideologia
de segurança nacional, criada a partir da figura do “inimigo interno”, capaz de se opor
ao “regime”, que infelizmente persiste até os dias de hoje como justificativa da política
empreendida pelo Estado nas regiões fronteiriças (SPRANDEL, 2005, p.174).
No caso específico do Mato Grosso, a legislação fundiária se fundamentou na
Lei Imperial de Terras de 1850 (BRASIL, 1850) e o seu regulamento de 1854 (BRASIL,
1854), que reconhecia o pleno direito dos particulares às terras devolutas e dispôs
que a sua aquisição se daria a título oneroso.
Segundo Neto & Neto (2018, p. 14), os conflitos resultantes das demarcações
das terras eram julgados pelo próprio presidente da província, que, quando aprovasse
a mediação, deveria remetê-la ao delegado do diretor-geral das Terras Públicas para
606

fazer passar, em favor do posseiro, sesmeiro ou concessionário, o respectivo título de


sua possessão, depois de pagos na tesouraria os direitos de chancelaria.
Apesar de manter o reconhecimento às sesmarias que tivessem sido
entregues, medidas, demarcadas e confirmadas de acordo com a lei, não houve, entre
os anos de 1822 e 1850, qualquer diploma normativo que regulamentasse a aquisição
de terras no país. A Lei de Terras continuaria em vigor durante todo o período da
República Velha, com pouquíssimas alterações, até meados de 1930.
Importante ressaltar que essas ocupações estavam assentadas em grandes
áreas, tendo em vista as características da economia do Estado, que se resumia na
agricultura, pecuária extensiva e na exploração extrativa vegetal. As leis que
regulavam a posse de terras eram voltadas primeiramente ao benefício dos grandes
proprietários, que não passavam de posseiros.
É importante destacar que o governo de Getúlio Vargas, no início dos anos de
1940, revogou a concessão feita à Companhia Matte Larangeiras, compreendendo
que ela embaraçava o desenvolvimento econômico por proibir a entrada de colonos e
sua permanência naquela região (BRAND, 1993). O governo Vargas, com a intenção
de pôr em prática a expansão de frentes econômicas de ocupação nacional, além de
desapropriar a área ocupada pela Cia. Matte Larangeiras, ainda declarou inúmeros
territórios tradicionais não titulados como terras devolutas, repassando-os a terceiros,
o que resultou no processo de esbulho (expulsão ou retirada forçada) das
comunidades indígenas.
De acordo com o Brand (1993, p. 126), os indígenas perderam rapidamente
seus territórios tradicionais com a exploração econômica moderna, sofrendo agressão
em seu modo de ser, provocando alterações no meio ambiente através do
desmatamento acelerado.
Conforme Volkmer (2003, p.42), se a contribuição dos indígenas foi relevante
para a construção de nossa cultura, o mesmo não se pode dizer quanto à origem do
Direito nacional, pois os nativos não conseguiram impor seus “mores” e suas leis,
participando mais “na humilde condição de objeto do direito real”, ou seja, objetos de
proteção jurídica.
Sendo o Brasil um país de grandes proporções, os indígenas, por serem
minoria, conseguiram manter-se de certa forma, por longos períodos, isolados nos
grotões territoriais, considerando que ainda hoje há vários grupos ainda não
contatados; ou tiveram também, até certa altura para onde se refugiar da influência
do não índio, se dirigindo à regiões menos ocupadas, como foi verificado no decorrer
do processo da colonização em direção ao oeste brasileiro; como ainda, outros grupos
puderam conviver com suas diferenças em meio a outros povos não indígenas, não
sem grandes perdas, sacrifícios e esbulhos, como é o caso dos Guarani no sul e
sudeste brasileiro (CARVALHO, 2013, p. 60).
O processo de expulsão foi gradativo, onde as áreas pertencentes aos
indígenas foram sendo tomadas, o que ocasionava a dispersão de cada agrupamento
indígena em direção a outras aldeias, tanto no Brasil como no Paraguai, num
movimento circular sobre o território, com a crescente diminuição do número de
territórios indígenas, até que, por fim, grande parte dos indígenas foi definitivamente
expulsa do Brasil (CARVALHO, 2013, p. 313).
O Estado e os governos que têm representado os povos indígenas relutam em
aceitar a realidade pluricultural e multiétnica da sociedade brasileira. As sociedades
indígenas têm sido vistas como um problema de segurança nacional e como entraves
ao progresso. Até mesmo os avanços da Constituição de 1988 são ainda em grande
parte retóricos: das terras indígenas brasileiras só cerca de 40 % estão totalmente
607

regularizadas, ainda que houvesse um prazo constitucional de demarcá-las todas até


o ano de 1993 (ARRUDA, 2001, p. 46).
Todavia, Raffestin (1993, p. 138) afirma que a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, que postula relações simétricas, não consegue se impor e é
possível desenhar um mapa mundial das liberdades achincalhadas. A falta de
relações simétricas significa que a ação política se faz conforme as estratégias, que
combinam códigos procurando homogeneizar os diferentes elementos à disposição.
De acordo com a pesquisa, constata-se o predomínio de uma visão
cosmológica de uns contra os outros, fazendo com que as relações de poder sejam
perpetuadas, em clara oposição aos costumes e mesmo aos acordos e tratados
internacionais ratificados pelo Brasil.
Tal afirmação é constatada por meio da Mensagem de Veto nº 163/2017
(BRASIL, 2017), que proibiu o livre trânsito dos povos tradicionais pelas fronteiras e
terras tradicionalmente ocupadas, indo na contramão do direito internacional público
e de decisões da Corte Internacional de Justiça (SIMIONI & VEDOVATO, 2018, p.
311).
Nesse panorama, a mensagem de veto traz à tona toda uma ideologia de
segurança nacional, que se distancia dos ideais da nova lei de migração.
De acordo com Simioni & Vedovato (2018, p. 312), a Corte Internacional de
Justiça tem se destacado na proteção das fronteiras e na garantia de se colocar como
um meio de referência na discussão do tema. Assim, é natural que a ela se socorra
quando a temática é fronteira. Dois conceitos importantes são identificados no julgado
Burkina Faso vs. Niger (CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 2013), em especial
do voto do Juiz Antonio Augusto Cançado Trindade, e na interpretação relativa ao
Templo de Preah Vihear, no caso Camboja vs. Tailândia (CORTE INTERNACIONAL
DE JUSTIÇA, 2011).
Embora exista a possibilidade de ocorrer problemas complexos em matéria de
direito constitucional nacional, a conservação das leis consuetudinárias pode ser
capital para manter o vigor da vida intelectual, cultural e espiritual e o patrimônio dos
povos indígenas e das comunidades locais, que também requerem várias formas de
respeito e reconhecimento das leis consuetudinárias para além dos limites das suas
próprias comunidades, o que pode ser possível desde que o Estado regulamente a
matéria.

CONCLUSÃO

Nesse panorama, Simioni & Vedovato (2018, p. 313) ressaltam que na


Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela
Assembleia Geral da ONU, em 2007 (ONU, 2007), há dispositivos claros de proteção
aos povos indígenas, que poderiam ser também aplicados às populações tradicionais,
tendo em vista as decisões da Corte Internacional de Justiça, a cuja jurisdição o Brasil
se submeteu.
Nos dizeres de Curi (2012, p. 07), para caracterizar o direito indígena como um
direito consuetudinário ou costumeiro, podemos, de modo geral, levantar dois traços
específicos: 1) ele se encontra imerso no corpo social, firmemente entrelaçado com
todos os outros aspectos da cultura, com o qual forma uma unidade compacta; 2) ele
extrai sua força e seu conteúdo da tradição comunitária expressa nos usos e
costumes.
Por meio da “visão cosmológica”, observam-se as diversas fontes do direito.
Constata-se que não apenas a vontade do legislador é responsável por criar o direito,
608

mas que as práticas cotidianas, relacionadas à cosmovisão de diversos grupos


sociais, resultam também nas criações de regras costumeiras que, mesmo
informalmente, tornam-se legítimas para ordenar o convívio social (CURI, 2012, p.
08).
De acordo com Bobbio (2004), a conquista dos direitos é um caminho contínuo,
que pode ser interrompido em algumas ocasiões, mas que inevitavelmente culminará
no reconhecimento dos direitos do cidadão de cada Estado até o reconhecimento dos
direitos do cidadão perante o mundo, conforme ocorreu na Declaração Universal dos
Direitos do Homem.
Ao compararmos a disposição do parágrafo 2º do art. 1º da Lei nº 13.445/2017
(Nova Lei de Migração), suprimido por meio da mensagem de Veto nº 163/2017,
constata-se uma mostra inequívoca dos padrões culturais arraigados na consciência
política brasileira, que ainda não se desvinculou de sua forma autoritária e
discriminatória ao privar os povos tradicionais do direito a se deslocar livremente,
sendo necessário que esse veto seja revisto e tal situação seja regulamentada pelo
Estado brasileiro em conjunto com os Estados vizinhos, para que, segundo Leibniz
(2004), a noção de justiça seja aplicada à organização social em prol da primazia do
bem-comum e da paz social, permitindo o direito à vida em um mundo mais justo e
igualitário, em que imperem harmonicamente a dignidade e os costumes das
civilizações

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Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” – Nepo/Unicamp, 2018. 680 p.
SPRANDEL, Márcia Anita. Algumas Observações sobre Fronteiras e Migrações. In:
Nacionalidade e etnicidade em fronteiras. Roberto Cardoso de Oliveira e Stephen
Grant Baines (Org.) Ed. UnB, 2005.
VOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense,
2003.
610

Grupo de trabalho:

DIREITO PENAL E
CRIMINOLOGIA I
Trabalhos publicados:

A INCONGRUÊNCIA TEÓRICA DA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DAS PESSOAS


JURÍDICAS PARA PRESERVAR A BIODIVERSIDADE: UM BREVÍSSIMO ENSAIO
EM PROL DE ADEQUAÇÕES TÉCNICAS LEGISLATIVAS

A SOCIEDADE DO RISCO E SEU REFLEXO NA “NOVA” CIÊNCIA PENAL: UMA


ANÁLISE SOBRE O VIÉS LEGISLATIVO

CRIMINOLOGIA CRÍTICA E TRÁFICO DE DROGAS NO AMAZONAS: A ATUAÇÃO


DAS FACÇÕES CRIMINOSAS FAMÍLIA DO NORTE (FDN) E COMANDO
VERMELHO (CV)

O CRIME DE CONSUMO PESSOAL DE DROGAS E SUA


INCONSTITUCIONALIDADE

OS MODELOS DE ABORDAGEM DO ABORTO: POR PRAZOS, CAUSAL E DO


ASSESSORAMENTO

RELEMBRANDO LIÇÕES BÁSICAS DE CONSTITUCIONALISMO NA ESFERA


PENAL: ANÁLISE DO NOVO PARADIGMA DA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL E
SUA IRRADIAÇÃO À SEARA DO DIREITO PENAL ATRAVÉS DO SISTEMA
GARANTISTA.
611

A INCONGRUÊNCIA TEÓRICA DA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DAS


PESSOAS JURÍDICAS PARA PRESERVAR A BIODIVERSIDADE: UM
BREVÍSSIMO ENSAIO EM PROL DE ADEQUAÇÕES TÉCNICAS LEGISLATIVAS
THE THEORETICAL INCONGRUENCE OF THE CORPORATION CRIMINAL
RESPONSIBILITY IN ORDER TO PRESERVE THE BIODIVERSITY: A BRIEF
ESSAY IN FAVOR OF LEGISLATIVE TECHNICAL ADEQUATIONS

Charles Moraes Sonnenstrahl Filho

Resumo: Com o rompimento da Barragem de Fundão, na ausência de caso fortuito


justificante, sabia-se que a Samarco S.A. seria ré na ação penal pelos crimes
ambientais ocorridos. Isto porque o art. 225, §3º da CRFB/88 e o art. 3º da Lei 9.605/98
preveem a responsabilização penal da pessoa jurídica. Neste contexto, questiona-se:
diante da necessidade de preservação ambiental, tem cabimento admitir a
responsabilização penal da pessoa jurídica? Pela importância da preservação da
biodiversidade, mostra-se o porquê da positivação da responsabilidade penal da
pessoa jurídica e, na sequência, coteja-se os elementos do fato típico aplicado à
pessoa jurídica em sede crime ambiental. Aplicou-se os métodos dedutivo
(abordagem) e monográfico (procedimento) e, ainda, as técnicas de pesquisa
documental e bibliográfica. Concluiu-se que, embora seja necessário tutelar o meio
ambiente por todos os meios possíveis, não se pode conceber a responsabilização
criminal da pessoa jurídica, porque não é capaz de realizar fato típico.
Palavras-chave: biodiversidade; crimes ambientais; responsabilidade penal da
pessoa jurídica.

Abstract: Due to the Mariana Mining Disaster, facing that there was no fortuitous
event, it was known that Samarco (a company) would be accused of environmental
crimes. This would be possible because the Constitution (article 225, §3º) and the Bill
9.605/98 (article 3º) admit corporation criminal responsibility. Thus, a question arises:
considering how important is to preserve the environment, may be granted the
corporation criminal responsibility? Since the importance of biodiversity preservation,
it was obtained the reason why it was included the corporation criminal responsibility
in the written text of the Constitution and the Bill above mentioned. Subsequently, it
was exposed the inapplicability of some elements of criminal theory to corporations.
The deductive approach, the monographic procedure method and bibliographical and
documentary research techniques were applied in this paper. It was observed that
corporation criminal responsibility cannot be admitted inasmuch as corporations are
not capable of practicing crimes by themselves.
Keywords: biodiversity; environmental crimes; criminal corporation responsibility.

INTRODUÇÃO

Em 05/11/2015, ocorreu o rompimento da Barragem de Fundão, pertencente


ao Complexo Minerário de Germano, de propriedade da empresa Samarco Mineração
S.A., localizada em Mariana, município do estado de Minas Gerais, reconhecida, na
atualidade, como a maior tragédia ambiental do Brasil. O fato representou o despejo
imediato de 34 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração de ferro
diretamente no meio ambiente. Disto resultaram como impactos iniciais: a destruição
do povoado de Bento Rodrigues; a morte de 16 pessoas; a poluição de 663,2
quilômetros de cursos de água; a destruição de 1.469 hectares de matas ciliares,
612

incluídas as áreas de preservação permanente; a destruição da ictiofauna e impacto


sobre a atividade pesqueira; e a interrupção da captação de água em 15 municípios.
Frente a este cenário, a empresa foi autuada e multada pelo Instituto Brasileiro
de Meio Ambiente (IBAMA)1, o Ministério Público moveu uma ação civil pública e se
instalou o inquérito policial. Na seara penal, sabia-se que, na ausência de caso fortuito
ou força maior, considerando a interpretação literal do art. 225, §3º, da Carta Magna
aliada ao art. 3º da Lei 9.605/1998 e com respaldo das Cortes Supremas2, a Samarco
seria ré na ação penal movida em razão dos crimes ambientais. Nesta quadratura,
questiona-se: diante da necessidade de preservação ambiental, tem cabimento
admitir a responsabilização penal da pessoa jurídica?
Para responder o questionamento, desenvolve-se este resumo expandido,
propondo-se a examinar a (in)admissibilidade de autoria delitiva da pessoa jurídica, a
partir do fato típico, categoria do conceito analítico de delito, em caso de crimes
ambientais, única espécie que admite tal responsabilização. Antes disto, precisa-se
entender que fator leva à positivação da pessoa jurídica como autora de delito, a partir
da retomada de qual a importância da preservação da biodiversidade para a vida. O
trabalho justifica-se pela premência de investigar a (in)adequação teórica da
responsabilização penal da pessoa jurídica. Quanto à metodologia, aplicou-se o
método abordagem dedutivo, o método de procedimento monográfico e as técnicas
de pesquisa documental e bibliográfica. Estruturou-se o trabalho em dois capítulos.

1 BIODIVERSIDADE PARA A VIDA E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO


AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO

A partir das revoluções técnicas e científicas, ainda que ensejadoras de


inegáveis avanços, os sujeitos deixaram de utilizar dos recursos do meio ambiente
muito mais para suprir sua subsistência e passaram a utilizá-los, majoritariamente,
para finalidades voluptuárias, o que se acentua já há tempos com o modelo de
sociedade do consumo, fazendo com que o meio ambiente entre em crise (JUNGES,
2010, p. 79; ESTENSSORO SAAVEDRA, 2009, p. 37). É dizer: percebe-se que os
recursos naturais são finitos, que sua má utilização causa a degradação
biodiversidade, pondo em risco a existência do próprio ser humano (ARAÚJO, 1999,
p. 17).
Para dar um primeiro passo à saída desta crise, fez-se (e ainda se faz) preciso
alterar a compreensão do papel do homem na Terra. Trata-se de alterar o paradigma
antropocêntrico para o modelo biocêntrico. Sob esta visão, compreende-se que o
homem não é o centro de tudo, mas tão somente um ente pertencente a um todo
maior, qual seja, a natureza (JUNGES, 2010, p. 23-24). Isto, por si só, já justificaria a
elevação da preservação da biodiversidade à bem jurídico protegido
constitucionalmente.
Contudo, vai-se além e se reflete, brevemente, “[...] sobre nossa relação com
os demais organismos da biosfera [...]”, a fim de “adquirirmos argumentos para a
conservação dessa biodiversidade e das relações que ela abriga” – inclusive a que

1
A autuação à empresa pelo fato deu-se por tornar área urbana imprópria para ocupação humana; por provocar o perecimento
de espécimes das biodiversidades (fauna e recursos pesqueiros); por causar poluição no rio Doce, nos estados de Minas Gerais
e Espírito Santo, em razão dos rejeitos de mineração de ferro, provocando a mortandade de animais e risco à saúde humana;
por lançar resíduos sólidos e líquidos na água do rio Doce, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou atos
normativos; e por causar poluição hídrica com carreamento de rejeitos de mineração, gerando a interrupção do abastecimento
público de água a 50 milhões de pessoas. Todos os dados mencionados constam no laudo técnico preliminar do IBAMA (BRASIL,
2015)
2
Vide: Recurso Extraordinário nº. 548.181 do Supremo Tribunal Federal e Recurso Ordinário em Mandado de Segurança
39.173 do Superior Tribunal de Justiça.
613

envolve o bem-estar e qualidade de vida proporcionada a todos quando se tem um


meio ambiente saudável, entendendo-se, de tal modo, o que ela significa e quais os
efeitos imediatos de sua destruição para a humanidade (MARTINS; SANO, 2009, p.
74-75). O termo “biodiversidade” foi cunhado no passado recente, em 1986, para
contemplar a reunião das diversidades genéticas, ecológicas e de espécies,
transcendendo, assim, a expressão “diversidade biológica” da qual deriva e que
designava somente a riqueza de espécies (BENSUSAN, 2008, p. 23). Na Convenção
sobre Biodiversidade da Conferência Mundial sobre Meio Ambiente do Rio de Janeiro,
em 1992, incorporada ao ordenamento jurídico por meio do Decreto Legislativo nº. 02
de 1994, procedeu-se com um melhor delineamento da expressão diversidade
biológica, de onde advém o atual significado de biodiversidade. A saber:

variabilidade de. organismos vivos de todas as origens, compreendendo,


dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros
ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte;
compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e
de ecossistemas (BRASIL, 1994)

Para que se tenha ideia material do conceito, tome-se o exemplo do Brasil: em


razão de sua vasta extensão de terras, contém 06 biomas terrestres 3 e os grandes
ecossistemas marinhos4 (BENSUSAN, 2008, p. 24). Por isto, é considerado o país
com a maior diversidade de espécies no mundo5, sendo, ainda, líder mundial em
diversidade de plantas (sozinho possui 20% do total de plantas existentes no planeta),
primatas, anfíbios, peixes de água doce e insetos (BENSUSAN, 2008, p. 24). Destarte
“cada paisagem, assim como indivíduos e espécies [...]” são “[...] um produto único e
insubstituível da natureza” (BENSUSAN, 2008, p. 25), tratando-se de um sistema
altamente complexo de relações onde uma não subsiste sem a outra (MARTINS;
SANO, 2009, p. 79).
Assim, sabendo-se que “a diversidade é a característica da natureza e a base
da estabilidade ecológica” (SHIVA, 2003, p. 85), resta absolutamente hialino por que
“preservar a biodiversidade significa também preservar uma quantidade ilimitada de
relações” entre seres vivos (MARTINS; SANO, 2009, p. 79). Mais ainda: entende-se
por que a devastação ou a alteração substancial destes cenários retira a capacidade
de autorregeneração da Terra, pondo fim, lamentavelmente, aos processos que
asseguram a existência da biodiversidade (BENSUSAN, 2008, p. 25). Acerca disto
sintetiza Vandana Shiva (2003, p. 88-89):

A erosão da biodiversidade dá início a uma reação em cadeia. O


desaparecimento de uma espécie está relacionado à extinção de
inúmeras outras com as quais está inter-relacionada por meio de redes e
cadeias alimentares e sobre as quais a humanidade é totalmente
ignorante. A crise da biodiversidade não é apenas uma crise do
desaparecimento de espécies [...]. É, mais fundamentalmente, uma crise
que ameaça os sistemas de sustentação da vida e o sustento de milhões
de pessoas [...].

3
São eles: floresta amazônica, maior floresta tropical úmida do mundo; o Pantanal, maior planície inundável; o Cerrado, com
suas savanas e bosques; a Caatinga, composta por florestas semiáridas; os campos dos Pampas; e a floresta tropical pluvial da
Mata Atlântica.
4
São eles: recifes de corais (os quais, segundo Connel (apud SHIVA, 2003, p. 86) são comparados “a florestas tropicais em
termos de diversidade”), dunas, manguezais, lagoas, estuários e pântanos.
5
Até o presente, são mais de 103.870 espécies animais e 43.020 espécies vegetais, ao longo de uma costa marítima de 3,5
milhões de quilômetros quadrados (BRASIL, 2018).
614

Além disto, quando se destrói a biodiversidade, abre-se mão de inúmeras


possibilidades de encontrar-se a cura para enfermidades até então incuráveis,
impedindo a melhoria da qualidade de vida da humanidade e também dos próprios
animais6 (MARTINS; SANO, 2009, p. 77). Logo, a biodiversidade é muito mais do que
mera catalogação de genes, espécies e ambiente, tratando-se, em realidade, da
integração do conjunto dinâmico interativo entre estes diferentes níveis, de maneira
tal que não se pode falar em proteção ambiental sem haver respeito à biodiversidade
(JUNGES, 2010, p. 51-52). Portanto, a manutenção da biodiversidade está, em
absoluto, relacionada à sustentabilidade biológica dos ecossistemas, cuja
responsabilidade maior responsabilidade é do próprio ser humano, porque não só
consciente de sua existência, como também das consequências advindas da
destruição da biodiversidade. Daí a razão pela qual se pode imputar responsabilidade
civil, administrativa e penal.
Compreendidos estes pressupostos, deduz-se o porquê de o constituinte
originário elevar o direito/dever a um meio ambiente ecologicamente equilibrado ao
patamar constitucional (art. 225 da CRFB/88). Trata-se de, a uma, destacar à própria
sociedade a relevância da biodiversidade e, a duas, “instrumentalizar o poder público
de meios para adotar políticas de proteção e preservação dos recursos naturais”,
estabelecendo “competências tanto para a ação legislativa como para a administrativa
relativas à defesa ambiental” (ARAÚJO, 2014). No ponto, chama-se a atenção
diretamente para o §3º do art. 225 da CRFB/88, objeto de estudo deste trabalho, in
verbis: “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão
os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados” (BRASIL, 1988).
Em tal parágrafo, contemplou-se o instrumento repressivo do Estado para coibir
ações danosas ao meio ambiente, pois seria ingênuo supor que somente a
consciência ambiental seria suficiente para dissuadir os indivíduos da necessidade de
não cometimento de atos atentatórios contra a sanidade do meio ambiente (ARAÚJO,
2014). O legislador ordinário, ao regulamentar o parágrafo, por intermédio da Lei
9.605/98, em seu art. 3º e parágrafo único, positivou que as pessoas jurídicas seriam
capazes de ser responsabilizadas penalmente (BRASIL, 1998). Entretanto,
remanescem as divergências no que tange a (im)possibilidade de responsabilizar a
pessoa jurídica sob o viés da teoria do delito que, para a doutrina penal majoritária,
em tese, não admitiria tal possibilidade, o que a mera vontade lei não seria capaz de
superar. Bem assimilados todos estes pressupostos, averiguar a aplicabilidade ou não
da teoria do delito às pessoas jurídicas é o que será feito no próximo capítulo.

2 PESSOA JURÍDICA E INFRAÇÃO PENAL: UMA ANÁLISE DA


RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DO ENTE MORAL À LUZ DA CATEGORIA DA
TIPICIDADE.

O tema da responsabilização penal da pessoa jurídica suscita divergências


doutrinárias inconciliáveis. Para a doutrina que interpreta o §3º do art. 225 da CRFB/88
em sua literalidade, o legislador teria admitido nele a possibilidade de responsabilizar
penalmente a pessoa jurídica7. Todavia, para a doutrina penal majoritária8, o parágrafo
6
Refere-se dos animais que são estudados e, não raro, cuidados por profissionais de saúde animal, como, por exemplo, médicos
veterinários, biólogos e zootecnistas.
7
Por todos: SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. 2. ed. São Paulo: Método, 2003;
SIRVINKAS, Luis Paulo. Tutela Penal do Meio Ambiente. 3 ed. atual. rev. São Paulo: Saraiva, 2004.
8
Por todos: DOTTI, René Ariel. A Incapacidade Criminal da Pessoa Jurídica (Uma Perspectiva do Direito Brasileiro). In: DOTTI,
René Ariel; PRADO, Luiz Regis (Coord.). Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: em defesa do princípio da imputação
penal subjetiva. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 163-201 et alii.
615

não pode ser interpretado em sua literalidade, mas sim sistematicamente, ou seja, em
conjunto com todos os demais dispositivos de interesse da seara penal constantes
nos demais dispositivos da CRFB/88. Com isto, extrair-se-ia que somente estaria
autorizada a responsabilização penal de pessoas físicas. Para esta segunda corrente
de pensamento, dever-se-ia ler o artigo da seguinte forma: “as condutas e atividades
consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores pessoas físicas a
sanções penais e pessoas jurídicas a sanções administrativas, independentemente
da obrigação de reparar os danos causados”.
Entretanto, deve-se averiguar se a pessoa jurídica se encaixa nas categorias
da teoria do delito, cujos pressupostos foram sendo desenvolvidos ao longo dos
últimos dois séculos, a fim de posicionar-se favorável ou contrário à responsabilização
penal da primeira. Apesar de múltiplos serem os sistemas penais, adota-se, apenas
porque é majoritário na doutrina penal brasileira, o finalismo. Neste sistema penal, o
delito é formado pela união das categorias fato típico, antijuridicidade e culpabilidade
(JUNQUEIRA, 2016). Não preenchido quaisquer dos elementos que constituem estas
categorias, não haverá infração penal. Por se tratar de um resumo expandido, realizar-
se-á a análise do tema apenas sob o viés da primeira categoria, qual seja, do fato
típico, tendo por caso paradigma o rompimento da Barragem de Mariana.
De imediato, nota-se que, no caso modelo, é sobeja a presença de tipicidade
material, ou seja, ofensividade na conduta, na exata medida em que vários bens
jurídicos penalmente relevantes (em menção genérica: o meio ambiente, a vida e a
propriedade) foram atingidos em grau infinitamente superior ao tolerável. Além disto,
também se cuida a presença de resultados naturalísticos (já referidos). Estes
elementos, porém, não excluem, mas também não ratificam a responsabilidade penal
da pessoa jurídica.
Por outro lado, o mesmo não se passa quanto aos elementos mais relevantes
do fato típico, a conduta. Com efeito, o fato típico necessita que, além do resultado
jurídico dotado de ofensividade, este tenha sido ocasionado por uma conduta que
carregue o predicativo da “vontade” por parte do sujeito ativo (DÍAZ PITA, 2014, p.
09). Destarte, exige-se que, para haver conduta, o sujeito ativo pratique livremente a
ação ou omissão no pleno uso de suas faculdades mentais, autorizando, assim, uma
resposta punitiva estatal pelo ato. Pergunta-se, retoricamente: a pessoa jurídica,
qualquer que seja ela, tem este predicativo? A resposta é negativa. O ente moral tem
“existência puramente fictícia, irreal ou de pura abstração” em razão de autorização
legislativa (PRADO, 2013, p. 130), não possuindo, assim, vontade própria. Ora, se for
retirada a ação humana para criar uma pessoa jurídica, esta jamais se constituirá
sozinha; se for retirada a ação dos dirigentes para determinar a realização de uma
atividade em nome da pessoa jurídica, esta nunca tomaria uma decisão ou levaria a
cabo qualquer conduta.
Portanto, todo ato praticado a pretexto de mando da pessoa jurídica é
unicamente o efeito das deliberações de seus dirigentes. Logo, tecnicamente, para o
Direito Penal, aquela sem a força motriz dos últimos é um nada, está no limbo.
Destaque-se que, em regra, os adeptos da possibilidade da capacidade de ação da
pessoa jurídica apontam para a existência de uma vontade coletiva, firmada em
reuniões e deliberações, a qual viria a produzir o que se denomina de “ação
institucional” (SANTOS, 2013, p. 280). Entretanto, tal vontade coletiva não se
confunde e nem é sinônimo da vontade consciente e livre, a qual é parte integrante
do elemento “ação”, que pertencente à categoria da tipicidade do conceito analítico
do delito (SANTOS, 2013, p. 280). É dizer: a vontade coletiva não tem a capacidade
de outorgar ao ente moral uma capacidade psicossomática de autodeterminação para
616

agir – algo que somente pessoas físicas no uso de suas faculdades mentais têm –,
razão pela qual também não se pode querer imputar responsabilidade penal à pessoa
jurídica.
A corroborar tal posicionamento, Rodriguez Mourullo (apud PRADO, 2013, p.
132) aduz que

[...] não é a pessoa jurídica que conclui por si mesma contratos, mas sim
fica vinculada pelos contratos que celebram em seu nome as pessoas
individuais que atuam como seus órgãos. Mas o fenômeno da
representação não tem cabimento em relação aos sujeitos ativos do delito.
Para que alguém pratique delito é necessário que tenha realizado
pessoalmente a ação penalmente cominada.

Em síntese: a pessoa jurídica é um mero instrumento de seus diretores para


realização de atos jurídicos, que podem, eventualmente, ser penalmente típicos
(SALES, 2013, p. 229). Utilizando-se uma metáfora: acaso a pessoa jurídica existisse
materialmente, seria como se estivesse permanentemente sob coação física
irresistível de seus próprios dirigentes. Falta, assim, capacidade de ação para a
pessoa jurídica, o que não só impossibilita traçar o liame subjetivo entre os resultados
naturalísticos, como também impede a existência do fato típico, repita-se, com relação
à pessoa jurídica.
Frente a isto, estaria dispensado o exame dos demais elementos do fato típico
e das demais categorias do conceito analítico de delito (antijuridicidade e
culpabilidade). Todavia, entende-se pertinente concluir a análise do fato típico,
averiguando-se o denominado elemento subjetivo do tipo. Trata-se de perscrutar a
possibilidade de a pessoa jurídica ter dolo ou culpa. Pela impossibilidade de atribuir o
elemento subjetivo à pessoa jurídica, invoca-se, mais uma vez, o magistério de Juarez
Cirino dos Santos (2013, p. 282-283) não apenas por sua qualidade, mas também por
seu poder de síntese:

a chamada vontade coletiva da pessoa jurídica é incapaz de dolo, como


vontade consciente de realizar um crime: se vontade é a energia psíquica
individual produtora da ação típica, e consciência é direção inteligente
daquela energia psíquica individual, então esses componentes não podem
existir no vazio psíquico da impessoal vontade coletiva da pessoa jurídica.
[...] Segundo, a vontade coletiva ou pragmática da pessoa jurídica também
é incapaz de imprudência, fenômeno fundado na capacidade individual
[...]. Mais: a lesão do dever de cuidado [...] supõe o modelo de homem
prudente, capaz de observação da e reflexão sobre criação/realização do
risco: o modelo do homem prudente, parâmetro indispensável para definir
o comportamento imprudente, é inaplicável à pessoa jurídica [...]. Enfim, a
previsibilidade do resultado, limiar mínimo de imputação do resultado nos
crimes de imprudência, é fenômeno exclusivo do aparelho psíquico
individual [...].

A pessoa jurídica não tem consciência e nem intenção própria, não é um ente
vivo que minimamente pense ou intencione o que quer que seja de maneira que não
há forma de atribuir dolo ou culpa a ela. É dizer: ainda que seja possível que normas
penais sejam infringidas a partir de comandos dados em nome de uma pessoa
jurídica, cujos reais responsáveis são seus administradores, o ente moral não tem
nem o elemento cognitivo e nem o volitivo, motivos necessários e suficientes para se
aduzir que não tem dolo e nem culpa (PRADO, 2013, p. 137).
Portanto, em resumo, a pessoa jurídica não é capaz de praticar fato típico e,
assim, tampouco, ser autora de delito. O trabalho não comporta abordar as duas
617

outras categorias com a devida profundidade, mas vale dizer que a pessoa jurídica
também não atende aos elementos da culpabilidade e nem da antijuridicidade. Em
razão de tamanhas obviedades, tentam os defensores da responsabilização penal da
pessoa jurídica reverter a situação afirmando que se faz necessária uma nova
edificação dogmática para a teoria do delito, uma modernização em sua estrutura,
porque tal modalidade de responsabilização é uma opção política que precisa ser
respeitada (DOTTI, 2013, p. 19; ROCHA, 2013, p. 11).
Ora, verdade seja dita, o que se chamou de “modernização” não passa de uma
tentativa de legitimar o que não tem razão de ser (responsabilizar criminalmente o
ente moral). Refuta-se, portanto, está pretensa ideia de “modernização”. Ademais (e
por fim), crer que os crimes de uma sociedade são mero produto de opções políticas
é dar o primeiro passo para a positivação de tipos de autor, o que não pode ser
tolerado em uma sociedade democrática e pluralista.
Portanto, com segurança, pode-se afirmar o desajuste técnico-jurídico de
responsabilizar a pessoa jurídica na seara criminal.

CONCLUSÃO

A partir do estudo realizado, constatou-se que a biodiversidade, permite, em


última análise, a sustentabilidade biológica dos ecossistemas. Quando os
ecossistemas são afetados negativamente por atividades humanas, seja pela
destruição de formas de vida, seja pela construção de obras que as prejudiquem,
inevitavelmente, a biodiversidade sai perdendo e, consequentemente, dificulta-se,
pela via reflexa, a vida humana. Entende-se, assim, o porquê de se elevar a proteção
do meio ambiente a direito fundamental.
Por outro lado, tem-se a concepção de que o legislador não teve atenção à boa
técnica legislativa, quando possibilitou, por intermédio do que positivou na CRFB/88,
a criação posterior de uma responsabilidade penal para a pessoa jurídica. Isto porque,
como dito, a pessoa jurídica é apenas um instrumento de seus dirigentes para realizar
atos jurídicos. Desta forma, ao problema de pesquisa, responde-se que, embora seja
absolutamente necessário, pelos mais diversos meios, tutelar o meio ambiente, não
se pode conceber a responsabilização criminal da pessoa jurídica, já que
juridicamente impossível realizar fato típico e, portanto, praticar crime.
Nesta senda, vale repisar: na seara penal o sujeito ativo deve ser, em termos
doutrinários, a pessoa física, de maneira que, pelos crimes ambientais, devem
responder os administradores, diretores, gerentes gerais, sócios e/ou proprietários de
pessoas jurídicas. Contudo, esta conclusão não pode ser confundida com a ideia de
que a pessoa coletiva seja absolutamente irresponsável em qualquer seara do Direito.
Ressalte-se: em havendo fatos danosos ao meio ambiente, cuja causa seja atribuída
a alguma atividade desenvolvida pela pessoa coletiva, a qual, não é demais lembrar,
é coordenada por seus administradores, deve ela ser demandada nas searas cível e
administrativa, a fim de repará-los na primeira e ser punida na segunda.
Por fim, entende-se que o presente trabalho cumpriu com seus objetivos,
porque, ao mesmo tempo que reafirmou a relevância da preservação da
biodiversidade, destacou-se a necessidade de cuidado técnico para punir os
responsáveis por danos ao meio ambiente, demonstrando-se a impropriedade de
responsabilizar a pessoa jurídica criminalmente pela ocorrência de crimes ambientais.

REFERÊNCIAS
618

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Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, nº. 02, p.
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SIRVINKAS, Luis Paulo. Tutela Penal do Meio Ambiente. 3 ed. atual. rev. São Paulo:
Saraiva, 2004.
620

A SOCIEDADE DO RISCO E SEU REFLEXO NA “NOVA” CIÊNCIA PENAL: UMA


ANÁLISE SOBRE O VIÉS LEGISLATIVO
THE RISK SOCIETY AND ITS REFLECTION IN THE "NEW" CRIMINAL SCIENCE:
AN ANALYSIS OF THE LEGISLATIVE VIES

Roberto do Livramento Bueno


Osvaldo Evangelista Júnior

Resumo: O presente estudo trata da chamada “Sociedade do Risco” - teoria


apresentada pelo sociólogo Urlrich Bech – e sua ligação com a ciência penal hodierna.
Na medida em que novos riscos vêm surgindo, o ramo da ciência penal passou a
tutelar novos tipos jurídicos, o que tem causado grandes mudanças em relação à
dogmática penal clássica. Com base nas concepções da “Sociedade do Risco”, esse
estudo procurou, através de análise dos Projetos de Lei apresentados e aprovados no
Congresso Nacional pós promulgação da ainda atual Magna Carta, apontar a
presença de institutos ligados à teoria – Direito Penal do Inimigo, Expansionismo
Penal, Direito Penal Simbólico, dentre outros – nas normas jurídicas brasileiras em
matéria penal, com o intuito de verificar possível distanciamento entre o “moderno”
estudo penal e princípios basilares da dogmática penal clássica, como o da legalidade,
da subsidiariedade, da dignidade, dentre outros.
Palavras-chave: Sociedade do Risco, Política Criminal, Congresso.

Abstract: The present study deals with the so-called "Risk Society" - theory presented
by the sociologist Urlrich Bech - and its connection with modern criminal science. To
the extent that new risks are emerging, the field of criminal science has begun to
protect new legal types, which has caused great changes in relation to classic
dogmatics. Based on the concepts of the "Risk Society", this study sought, through
analysis of the bills submitted and approved in the National Congress after the
promulgation of the current Magna Carta, to point out the presence of institutes linked
to the theory - Criminal Law of the Enemy, Criminal Expansionism, Symbolic Criminal
Law, among others - in the Brazilian legal norms in criminal matters, with the purpose
of verifying possible distancing between the "modern" criminal study and basic
principles of classic criminal dogmatics, such as legality, subsidiarity, dignity , among
others.
Key words: Risk Society, Criminal Policy, Congress.

INTRODUÇÃO

O presente estudo diz respeito ao contexto evolutivo das políticas criminais


muito em razão da iminente influência da “Sociedade do Risco”, observada pelo
sociólogo Ulrich Beck (1986) como aquela fruto do pós-moderno, ligada à ampliação
de perigos hodiernos em virtude da evolução social, tecnológica e industrial
apresentada. Para o autor, o risco tornou-se protagonista nas decisões políticas – e
aqui cumpre mencionar sua integração ao mundo jurídico - ao passo do entendimento
do dever de antecipação de tragédias. Segundo o mesmo (1986, p. 40), “a força social
do risco reside nas ameaças projetadas no futuro”.
Tal processo de difusão de ameaças e consequente sensação de insegurança,
na visão de Sanchez (2002, p. 156), funcionam como “vetor fundamental para a
canalização de grande parte das expectativas e clamores sociais na direção do Direito
Penal”.
621

Essa evolução geradora da ampliação de perigos fez portanto emergir na


dogmática penal novos moldes em relação à sua atuação, de maneira que sua
intervenção em novas searas tornou-se iminente. Crimes de ordem ambiental,
tributária, tecnológica, em relação à conflitos discriminatórios, as novas formas de
organização criminal, dentre outros atualmente são atribuídas à “nova” ciência penal,
principalmente no Brasil. Apenas alguns exemplos, como a lei antiterror, a ampliação
no rol de crimes hediondos, a “Lei Carolina Dickman”, são capazes de demonstrar o
reflexo dos novos riscos na prática legislativa nacional.
O grande conflito porém, se dá em virtude do difícil paradoxo entre a
legitimidade das normas modificadas ou criadas para tutelar os novos bens jurídico-
penais presentes na chamada “sociedade do risco”, ao passo da necessidade de
preservação de institutos da ciência penal clássica, ligadas à Direitos Fundamentais
– o que justifica o estudo- . Para muitos doutrinadores, o surgimento de novos riscos
e a ideia de segurança como contraponto normativo para o controle destes, abre
precedentes perigosos. O surgimento do Direito Penal do Inimigo, as normas penais
simbólicas, o etiquetamento social e o expansionismo normativo desenfreado em
contraponto à intervenção mínima do campo penal são apenas alguns exemplos.
Diante do mencionado, o objetivo do presente estudo é analisar qual o reflexo
do surgimento de novos riscos na criação e modificação de leis por parte do
Congresso Nacional Brasileiro, bem como verificar se há a presença de normas que,
em virtude da tentativa de minorar a sensação de insegurança e consequentemente
os novos riscos, ultrapassam limites constitucionais.

MATERIAIS E MÉTODOS

Com a finalidade de analisar a postura do Congresso Nacional brasileiro frente


à novos riscos, verificando a incidência de institutos ditos vinculativos à teoria aqui
utilizada como base, fora realizada, além de estudos bibliográficos fulcrais para o
presente estudo, uma pesquisa descritiva dos projetos de lei de conteúdo penal
material e processual posteriormente aprovados pela casa legislativa entre janeiro de
1988 à setembro de 2018. O momento enquadrado pelo estudo portanto, visou
compreender não o ponto de aprovação das normas, mas sim o de proposição destas,
em virtude do entendimento prévio de que o legislativo utilizaria do discurso de risco
não somente durante a aprovação normativa, mas também, e talvez muito mais –
durante sua propositura. Inicialmente, buscou-se um estudo quantitativo sobre as
proposituras durante os anos, afim de se verificar se há um expansionismo em matéria
penal. À posteriori, foi analisada a incidência de teorias vinculativas à sociedade do
risco nos projetos, além do estudo específico sobre projetos de maior ênfase
repercutória.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Gráfico 1 – Legislação aprovada em matéria penal no ano de sua propositura.


622

11 11 11 11

8 8 8
7 7
6 6 6 6
5 5 5 5 5 5
4 4 4 4
3 3 3 3 3
2 2
1
1991
1992
1988
1989
1990

1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
Diferentemente do que se imaginava, a pesquisa dos projetos de lei
posteriormente aprovados não apontou de forma quantitativa um crescimento de
normas penais propostas ao passar dos anos. O que se obteve como resposta é que
as proposituras foram maiores nos primeiros anos de governo. Não necessariamente
porém, a presença de certo expansionismo das normas penais deixou de ser notada.
Na visão de Hassemer (1995), o expansionismo não só deve ser interpretado somente
como marca de um crescimento exacerbado da atividade legislativa, mas sobretudo
na proliferação de novos bens jurídicos, principalmente com a tutela de crimes de
perigo abstrato. Nesse aspecto, cabe mencionar que das 172 normas apresentadas e
aprovadas 85 diziam sobre novos crimes e formas de procedimento. Menciona-se que
a pesquisa vai ao encontro do proposto por Hassemer (1995), mas também aponta
novas configurações integradas á política penal expansionista. Em estudo
semelhante, Campos (2014, p.06) também faz referência ao que fora constatado
neste caso, qual seja, de que

o parlamentar ou o Executivo age não apenas para satisfazer as


aspirações ou desejos da opinião publica ou ter “ganhos coletivos”, mas
porque em alguma matéria, mesmo não sendo de reivindicação do
eleitorado, pode tornar-se importante como plataforma de governo em
época de eleições.

Sobre os crimes de perigo abstrato, cumpre mencionar que foram encontrados


em 23 Projetos de Lei, sendo em 22 delas constantes de forma parcial, apenas em
alguns dispositivos, e em 1 de forma total (PL 1229/95 transformada na chamada “Lei
do Abate de Aeronaves). Apenas como exemplos encontrados na pesquisa, podem
ser citados o crime de pirataria dado pelo Projeto de Lei n° 84/99 – que ao ser
aprovado ganhou o apelido de “AI5 Digital” -, o porte de armas (inclusive
desmuniciada), a embriaguez ao volante e tantos outros tipos penais cuja redação
indica apenas a conduta, sem qualquer menção ao resultado.
623

Mas talvez a mais flagrante mostra de violação à princípios clássicos da


dogmática penal vinculada ao perigo abstrato das normas se dá em relação ao Projeto
de Lei 2016/15 (“Lei antiterrorismo”), uma vez que esta passou a criminalizar atos
preparatórios, sem necessariamente se apresentar o resultado. Trata-se de uma
exceção à regra dominante de que o direito de punir do Estado surge a partir do
primeiro ato executório. Há portanto um flagrante desrespeito ao princípio da
legalidade, uma vez entendido que o Direito não pode se antecipar à execução apenas
presumindo a conduta do agente como possivelmente criminosa. No mesmo sentido
se dá os dispositivos constantes na chamada Lei do crime organizado, que ao punir
o crime de quadrilha ou bando como organização criminosa, deixa clara a
desnecessidade de início dos atos executórios para caracterizar o delito.
Vinculativo ao caráter abstrato das leis citadas acima – flagrantemente – não
há como fazer referência a ideia arraigada do chamado Direito Penal do Inimigo,
presentes não só nestas mas também em várias outras analisadas na pesquisa. Dos
162 Projetos de Lei aprovados em matéria penal, 58 apresentaram resquícios da
teoria, sendo esse número expandido principalmente nos após os anos 2000. Utilizou-
se como filão para enquadramento no Direito Penal do inimigo aquele que apresentou
ao três pilares fundamentados por Jakobs (2009, p. 40), qual seja, a antecipação da
punição do inimigo, a desproporcionalidade das penas e relativização ou supressão
de certas garantias processuais e a criação de leis severas direcionadas aos
indivíduos dessa específica engenharia de controle social. Dentre elas, além das já
citadas acima, a lei de extermínio advinda do PL 370/07, a Infiltração policial em meio
digital advinda do PL 1404/11, a Lei de drogas, resultado de sucessivos Projetos de
Lei (PL 1873/91,PL 7134/02, PL 5971/04), o Regime Disciplinar Diferenciado advindo
do PL 5073/01, , dentre outros. Sobre o último, especificamente em relação ao texto
que menciona que “presos provisórios ou condenados sob o qual recai suspeita de
envolvimento ou participação em organizações criminosas, quadrilha ou bando”
devam ficar em regime mais gravoso – ou “diferenciado”, como dito na norma, cabe
mencionar os dizeres de Carvalho (2005), que acredita que há um flagrante
desrespeito ao princípio da presunção da inocência, uma vez que não há aplicação
do jus puniendi com base na teoria tríade do Direito Clássico, mas sim na
periculosidade do autor, utilizando-se portanto requisito estritamente subjetivo. Em
relação à Lei de Drogas, a ideia de enquadramento de usuário é o ponto de maior
divergência nos tempos atuais, inclusive refletindo em outros problemas crônicos
relacionados à ciência penal, principalmente na problemática do encarceramento em
massa.
Ainda em relação à análise de Projetos de Lei enquadrados no aspecto do
Direito Penal do Inimigo, não há como mencionar os sucessivos Projetos de Lei para
inclusão de novos delitos no rol de Crimes Hediondos, além da criação deste rol
(Foram 8 no total – PL 4146/93, PL 4628/98, PL 4207/98, PL 6793/06, PL 2839/11, PL
8305/14, PL 7220/14 e PL 846/15, sendo portanto 50% somente nos últimos 6 anos),
bem como o número crescente de Projetos de Lei em trâmite nos últimos anos. Com
tendência expansionista, os aludidos Projetos demonstram o esforço do legislador em
recrudescer as penas e formas de punição para os mais variados agentes delitivos.
Ressalta-se que em 5 dos 8 Projetos de Lei, a mídia exerceu certa pressão em sua
propositura, como o PL 4146/93, transformada na Lei 8930/94 – também chamada de
Lei Daniela Perez -, em que se incluiu o homicídio qualificado no rol de crimes
hediondos, muito em razão do assassinato de Daniela, filha de Gloria Perez, autora
de novelas da Rede Globo. Cabe aqui mencionar que a pesquisa não se propõe a
analisar individualmente o referido Projeto, de forma apontá-lo como correto ou não.
624

A crítica aqui se faz ao crescente número de crimes enquadrados no rol, o que leva a
perspectiva de que cada vez mais a criminologia trará os sujeitos delitivos dos mais
variados tipos penais como inimigos, aumentando as sanções impostas, sem tentar
utilizar de outras políticas públicas para uma melhoria geral.
Também na esteira dos Crimes Hediondos, há aqui outro instituto vinculativo à
teoria base da pesquisa, qual seja, o crescente número de Leis penais simbólicas,
criadas como forma de resposta à sociedade, mas sem eficácia alguma. A criação do
crime de feminicídio e Homicídio funcional e a inclusão de ambos no rol de Crimes
Hediondos é exemplo notório, uma vez que tanto o homicídio em razão do gênero,
quanto em razão da atividade policial, já estão incluídos no rol desde a origem da
criação da Lei, qual seja o motivo fútil/torpe. Outras 8 normas também possuem
resquícios de simbolismo, todas elas nos últimos 10 anos, o que compreende uma
tendência a utilizar-se do referido instituo hodiernamente como forma de satisfazer a
sensação de segurança social, sem contudo solucionar os problemas.
Por fim, cabe mencionar outras considerações a respeito de outras teorias
correlacionadas à teoria do risco, como a do etiquetamento social, presente em 6
Projetos de Leis, dentre eles o de identificação criminal por diversos meios
(PL2458/11), e a criação de normas que aumentam as penas (foram 47 Projetos de
Lei), muitas vezes quando nem deveriam ser tuteladas por políticas criminais.
Constatações também devem feitas em relação à dificuldade do legislador em tipificar
os crimes de preconceito racial/religião/etnia (Foram 7 Projetos de Lei Aprovados), e
ao projeto de lei 1164/91, que possui verdadeiras aberrações jurídicas. O aumento de
pena em caso de crimes ambientais serem cometidos aos fins de semana (ao invés
de se simplesmente aumentar a fiscalização por órgãos públicos, se tutela
penalmente), o quantum de pena de pesca em período ilegal ser semelhante ao crime
de sequestro (art. 148 CP), bem como a destruição de plantas do poder público ( outra
tendência vista: a de substituição de sanções meramente administrativas por penais,
como também vistos nos crimes relacionados à tributos/economia), podem ser
exemplificados.

CONCLUSÃO

Após a pesquisa, constatou-se que a presença de institutos aqui estudados e


ditos vinculativos à teoria do risco estão em ascendência na ciência penal brasileira,
notadamente sob o aspecto legislativo. A demanda pela tutela de novos tipos de risco
e a procura social pela segurança tem feito emergir no país normas que se distanciam
de princípios fundamentais norteadores do que se tem por Ciência Penal Clássica,
vinculativos ao Estado Social Democrático.
Não há como negar que a Ciência Penal hodiernamente vive tempos de crise.
Nesse aspecto porém, faz-se imprescindível que se continue seguindo princípios
leais, comprometidos com a rodem social, compatíveis com a dignidade da pessoa
humana.

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criminal aprovada de 1989 a 2006. Rev. Bras. Ciênc. Polít., Brasília , n. 15, p. 315-
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625

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Rocha. Revisão de Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Capítulo de livro: BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade.
São Paulo: editora 34, 2010.
626

CRIMINOLOGIA CRÍTICA E TRÁFICO DE DROGAS NO AMAZONAS: A ATUAÇÃO


DAS FACÇÕES CRIMINOSAS FAMÍLIA DO NORTE (FDN) E COMANDO
VERMELHO (CV)
CRITICAL CRIMINOLOGY AND DRUG TRAFFICKING IN AMAZONAS: THE
ACTIVITES OF THE CRIMINAL FACTION'S “FAMÍLIA DO NORTE” (FDN) AND
“COMANDO VERMELHO” (CV)

Marckjones Santana Gomes


Denison Melo de Aguiar
Antonio José Cacheado Loureiro

Resumo: A Política Pública que envolve a segurança pública e o tráfico de drogas


podem ser analisadas, a partir de seus grupos de facções, de acordo com a
Criminologia Crítica. Neste sentido, o objetivo desta pesquisa é apresentar a análise
da estruturação e atuação de facções criminosas no Amazonas, sobretudo quanto às
disputas entre Família do Norte (FDN) e Comando Vermelho (CV). Utilizou-se como
metodologia a pesquisa em fontes bibliográficas multidisciplinares; doutrinária, legal e
de notícias. Portanto, pode-se concluir que a omissão do Estado com os serviços
básicos inexiste no momento de penalizar, por isso, se tem a necessidade de ser
estabelecidas medidas alternativas de controle ao narcotráfico. É necessário se ter
um controle social não punitivo que seja anterior à punibilidade e que se intervenha
nas causas do crime, por exemplo, desenvolver melhor a educação de qualidade e a
diminuição da pobreza.
Palavras-chave: criminologia crítica; tráfico de drogas; Amazonas.

Abstract: Public Policy involving public security and drug trafficking can be analyzed,
from their faction groups, according to Critical Criminology. In this sense, the objective
of this research is to present the analysis of the structure and performance of criminal
factions in Amazonas, mainly regarding the disputes between the Família do Norte
(FDN) and Comando Vermelho (CV). The research was used as a methodology in
multidisciplinary bibliographic sources; doctrinal, legal and news. Therefore, it can be
concluded that the State's omission with basic services does not exist at the moment
of penalizing, therefore, it is necessary to establish alternative control measures for
drug trafficking. It is necessary to have non-punitive social control that is prior to
punishment and to intervene in the causes of crime, for example, to better develop
quality education and reduce poverty.
Keywords: critical criminology; drug traffic; Amazonas.

INTRODUÇÃO

A displicência do Estado com os marginalizados, não ofertando condições para


a diminuição de pobreza e da baixa escolaridade, e a ulterior reiterada aplicação do
Direito Penal aos antes esquecidos, são as principais características do fracasso do
combate ao tráfico de drogas. Não se tenta compreender o conjunto de relações
sociais que levam o sujeito a delinquir, e centraliza-se no ordenamento jurídico
altamente repressivo a função de solucionador do problema social do narcotráfico.
O presente trabalho tem como objetivo apresentar a análise da estruturação e
atuação de facções criminosas no Amazonas, sobretudo quanto às disputas entre
Família do Norte (FDN) e Comando Vermelho (CV). Para tanto, intenta-se discorrer
sobre a realidade vivenciada pela sociedade amazonense para então aplicar a
627

abordagem da criminologia crítica, fazendo indagações sobre como tornar o combate


ao tráfico de drogas eficiente, sem apenas selecionar os mais vulneráveis para o
controle social penal.
A metodologia jurídica utilizada neste trabalho teve enfoque em fontes
bibliográficas multidisciplinares, além de técnicas de pesquisas doutrinária, legal e
noticiaria. Quanto à classificação desta, o procedimento técnico adotado foi o
analítico, baseado nas teorias sociólogo-jurídicas da criminologia crítica e do sistema
de controle social, nas notícias de meios de comunicação, em estatísticas
disponibilizadas por órgãos formais de controle social.
A partir dessa exposição, o problema central da pesquisa consiste em
responder às perguntas que seguem: É possível tornar o combate ao tráfico de drogas
mais eficiente no Amazonas? Ademais, o que deve ser observado para diminuir a
incidência do Direito Penal aos marginalizados pela sociedade?
A fim de ofertar melhor compressão ao exposto, incialmente será apresentada
a evolução histórica da incidência do Direito Penal no combate ao tráfico de drogas
no Brasil, juntamente à introdução da metodologia da criminologia crítica. Por
conseguinte, através de estatísticas e noticiários, serão expostos motivos que
explicam o interesse do narcotráfico pelo Amazonas, e a consequente atuação da
FDN e do CV no território amazonense. Por fim, serão apresentados possíveis
parâmetros para modificações do cenário exposto.

2. TRÁFICO DE DROGAS: DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA CRÍTICA

O ordenamento jurídico brasileiro historicamente apresenta repressão ao


narcotráfico. Todavia, não foi possível impedir o consumo, e com o decorrer do tempo
houve a estruturação e consolidação de fortes facções criminosas. Logo, torna-se
indispensável os questionamentos quanto à realidade vivenciada no decorrer dessa
repressão, tendo em vista que a estruturação de facções ocorre justamente sobre os
pontos de maior fragilidade social.
Desde os tempos de colônia, incumbe ao Direito Penal brasileiro parcela
significativa de atuação no combate ao tráfico de drogas. As Ordenações Filipinas,
que entraram em vigor em 1603, já estabeleciam no Livro V, Título LXXXIX, “que
ninguém tenha em sua casa rosalgar, não o venda nem outro material venenoso”.
Na segunda metade do século XX a Convenção Única da Organização das
Nações Unidas sobre Psicotrópicos, de 1961, serviu como base do discurso proferido
em 1972 pelo presidente norte americano Richard Nixon, o qual foi assumido pelo
Brasil, que passou a tratar a “questão das drogas como um problema de segurança
nacional” (D’ELIA FILHO, 2007, p. 92). Carvalho (2016, p. 61) discorre que os reflexos
do projeto externo norte-americano incidiram diretamente nas políticas de segurança
pública do Brasil, e com a Lei 6.368/76, o discurso jurídico-político belicista toma a
dimensão de modelo oficial do repressivismo.
A partir desse contexto, está fundamentado o tratamento diferenciado ao tráfico
de drogas concedido tanto pela Constituição Federal de 1988, quanto pelas leis
infraconstitucionais supervenientes. O Poder Constituinte Originário decidiu incluir no
rol dos direitos e garantias fundamentais a previsão do delito de tráfico de drogas
como inafiançável e desprovido de anistia, da mesma forma que os crimes hediondos
(Lei 8.072/1990), o terrorismo e a tortura, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Carta
Magna de 1988.
Anos após, foi sancionada a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), a qual
estabelece normas para repressão ao tráfico ilícito de drogas e define crimes. Em seu
628

art. 33, essa tipifica o delito de “importar ou exportar, preparar, produzir etc. “drogas”,
sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” (JESUS,
2011, p. 65).
A partir dessa evolução histórica do ordenamento jurídico brasileiro, deve-se
indagar sobre as consequências do delito do tráfico de drogas na sociedade. Nesse
sentido, a criminologia é essencial, pois estuda o delito como fenômeno social. Isto é,
ao analisar a forte repressão ao tráfico de drogas, essa leva em consideração
indagações como qual o conjunto de fatores que leva o sujeito a delinquir, assim como
quais os efeitos sociais do Direito Penal.
O objeto da criminologia é o estudo empírico e interdisciplinar do delito, do
delinquente, da vítima e do controle social do delito (SCHECARIA, 2012, p. 44). Logo,
é ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do
infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo (MOLINA; GOMES,
2002, p. 30).
Dentre as mais significativas abordagens criminológicas, destaca-se a
revolução teórica e prática trazida pela chamada criminologia crítica, que tem origem
na obra Punição e Estrutura Social, de Rusche e Kirchheimer, publicada originalmente
em 1939. Segundo Smanio e Fabretti (2016, p. 89), a criminologia crítica pergunta
quais os critérios ou mecanismos de seleção das instâncias de controle social, que é
o conjunto articulado de instâncias de produção normativa e de estruturas de reação
da sociedade. Logo, o objeto de análise é o conjunto de relações sociais, observadas
as estruturas econômicas e jurídico-políticas do controle social.
Logo, a partir da análise empírica e interdisciplinar da criminologia crítica,
indaga-se por que o Direito Penal, apesar de ser último e mais grave instrumento de
controle social ao tráfico de entorpecentes e drogas afins, não foi suficiente para
impossibilitar a estruturação de grandes facções de narcotraficantes, tampouco para
neutralizar o poder dessas nas comunidades mais carentes, realidade vivenciada pelo
Amazonas.

3. O AMAZONAS INTERESSA AO TRÁFICO DE DROGAS

O interesse do narcotráfico pelo Amazonas é motivado, principalmente, pelas


características geográficas, pela desigualdade social e pela baixa escolaridade. Por
essas razões, facilita-se o acesso às drogas e o transporte, a instalação de facções
nos bairros mais pobres e o recrutamento de menores de idade para organizações
criminosas. Assim, instalaram-se no estado, além de outras, duas das maiores
facções criminosas do Brasil: a FDN e o CV.
O Amazonas é o estado que possui a maior área da territorial do Brasil, além
de ser totalmente coberto pela maior floresta tropical do mundo, desfrutando de típicas
áreas verdes fechadas e extensas bacias hidrográficas. Ademais, dispõe de larga
fronteira com os principais países produtores de entorpecentes na América Latina,
destacando-se a cocaína e a maconha produzidas no Peru e na Colômbia
(PRAZERES, 2018).
Em razão das extensas dimensões territoriais e da baixa densidade
demográfica, as facções criminosas facilmente marcam presença nas áreas de difícil
acesso, que são alvo de livre passagem de drogas. Nessa linha de pensamento aduz
o Ishida (2006, p. 4):

É neste ambiente de grandes proporções territoriais e de baixa densidade


demográfica, onde a ausência do Estado chega a ser uma regra e não
exceção, que identificamos a ação de grupos criminosos que se
629

aproveitam da densa floresta para acobertar suas atividades ilícitas,


utilizando-se de rotas áreas, terrestres e fluviais para transportar toda
sorte de drogas, armas e munições.

Ainda, a Região Norte apresenta dados negativos quanto à pobreza entre os


jovens e à baixa escolaridade. O equivalente a 54% da população entre zero e 14
anos de idade busca sobreviver com renda domiciliar per capita mensal inferior ou
igual a meio salário-mínimo, além de que 19,7% encontram-se em situação de
extrema pobreza, com renda domiciliar per capita mensal inferior ou igual a um quarto
de salário-mínimo (ABRINQ, 2018, p. 20).
As estatísticas da pobreza e da baixa escolaridade são diretamente
proporcionais, e isso é evidenciado pelo fato do Amazonas apresentar números na
educação abaixo da média nacional. Em 2015, apenas 52,6% dos jovens
amazonenses de 19 anos concluíram o ensino médio, sendo que essa porcentagem
cresce desde 2001 (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2017, p. 36).
A fim de exemplificar a direta ligação da estruturação de organizações de
narcotraficantes sobre esses pontos de fragilidade social, registra-se que a Secretaria
de Estado de Administração Penitenciária (SEAP) informou, em maio de 2018, que
39% da população carcerária do Amazonas tinha entre 18 a 24 anos, e 57% não
completou o ensino fundamental (SEXAD/SEAD, 2018). Assim, mais da metade dos
apenados não tiveram educação básica adequada, além de grande porcentagem
estar inserida nas facções criminosas ainda jovem.
Evidenciam-se, assim, os principais motivos do interesse do narcotráfico pelo
Amazonas. Em razão dos fatores apresentados, a FDN e o CV são exemplos de
algumas das facções criminosas que, apesar da tentativa de repressão do Estado
brasileiro, facilmente se instalaram no Amazonas, dominando bairros da capital
Manaus, e comandando a entrada, o transporte e a venda das drogas.

4. A ATUAÇÃO DA FDN E DO CV NO TERRITÓRIO AMAZONENSE

Apesar de FDN e o CV não serem as únicas facções criminosas instaladas no


Amazonas, exercendo sobre o território deste o controle da entrada, do transporte e
da venda de entorpecentes e drogas afins, essas ganham destaque pelas práticas
delituosas em território amazonense, noticiadas reiteradamente.

4.1 COMANDO VERMELHO

O “Comando Vermelho Rogério Lemgruber”, mais conhecido como “Comando


Vermelho”, ou simplesmente pelas siglas CV ou CVRL, caracteriza-se como uma
facção criminosa originalmente do estado do Rio de Janeiro, que surgiu com o nome
“Falange Vermelha”. Essa organização de narcotraficantes foi criada em 1979, na
prisão Cândido Mendes, localizado em Ilha Grande, na Costa Verde fluminense, e
possui ramificações em diversos estados brasileiros, incluindo o Amazonas
(WERNECK, 2017).
A atuação no Amazonas tornou-se mais evidente quando o CV selou aliança
com o a FDN em 2015, buscando proteção mútua face ao avanço da organização
criminosa paulista autointitulada “Primeiro Comando da Capital” (PCC), e dominando,
juntas, o acesso à cocaína produzida no Peru e na Colômbia e escoavam a droga pelo
rio Solimões (PRAZERES, 2018).

4.2 FAMÍLIA DO NORTE


630

A FDN é uma organização criminosa criada no Amazonas, território o qual ela


comanda, praticando atos ilícitos desde 2007, e sendo a terceira maior facção do
Brasil (HISAYASU; SERAPIÃO; GRELLET, 2017). Estruturada, principalmente, em
diversos bairros da capital amazonense, possui relevante número de membros, os
quais, por exemplo, comandaram a maior rebelião penitenciária do Amazonas,
ocorrida no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), no primeiro dia do ano de
2017, resultando em 56 detentos brutalmente assassinados (HENRIQUES,
GONÇALVES; SERVERIANO, 2017).
A FDN influencia diversos bairros de Manaus, comanda o transporte e venda
de entorpecentes, além de ser responsável por diversos homicídios comumente
noticiados, mesmo que sejam dentro de presídios que deveriam ser comandados pelo
Estado. Cavalcanti Junior e Soares (2016, p. 201), ao abordar sobre o crime
organizado com enfoque regional no Amazonas, assim discorrem:

Hodiernamente, é a FDN que comanda o Estado possuindo mais de 2000


membros como integrantes, mas para isso promoveu e promove uma
grande guerra por território, com o rastro de inúmeros homicídios,
notadamente entre os anos de 2008 a 2010, devido à compra de forte
arsenal bélico (...). Nos últimos dez anos, segundos dados da Secretaria
de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM), o índice de homicídios
mais que dobrou em Manaus e a “guerra” por território se intensificou com
o surgimento das facções criminosas.

A atuação da FDN, do CV, e das demais facções instaladas no Amazonas,


tornou o tráfico de drogas o crime de maior incidência no Estado, sendo o delito mais
cometido tanto por menores de idade, quanto por adultos. Quanto a estes, ressalta-
se que, em maio de 2018, a população carcerária amazonense continha 8.807
apenados, sendo o tráfico de drogas o principal motivo das penas, apresentando 22%
dos casos (SEAP, 2018).
Em relação aos menores infratores, a Secretaria de Segurança Pública do
Amazonas (SSP-AM) informou que o tráfico de drogas é a infração mais comum entre
os menores detidos nos cinco primeiros meses do ano de 2017 em Manaus. No
mencionado período, 186 menores foram detidos por cometer o delito de narcotráfico
(G1 AMAZONAS, 2017).
Apesar da reiterada aplicação do Direito Penal, evidencia que FDN e CV são
capazes de comandar o tráfico de drogas por todo o território amazonense, além de
diretamente influenciar na insegurança pública. O sistema social penal não atinge a
estruturação dessas facções, apesar do tráfico de drogas ser o delito mais cometido
por menores e maiores de idade, principalmente entre os jovens de 18 a 24 anos que
não findaram o ensino fundamental.
Portanto, nota-se que as organizações criminosas agem nas esferas mais
vulneráveis da sociedade amazonense, como os menos escolarizados e com menor
poder aquisitivo, e posteriormente os sujeitos dessa esfera são os selecionados pelo
Direito Penal, que sozinho não é capaz de atingir a raiz desse problema social. A partir
disso, torna-se necessário utilizar a abordagem da criminologia crítica, face à essa
realidade, a fim de buscar maior eficiência no combate ao narcotráfico, e consequente
menor violência para com os marginalizados.

5. POSSÍVEIS PARÂMETROS PARA MODIFICAÇÕES DESTE CENÁRIO


631

A sociedade amazonense convive com o tráfico de drogas, e isso é


comprovado pelas manifestações de autoridades competentes, assim como pelos
noticiários e pelas estatísticas oferecidas pelos órgãos voltados à repressão ao
narcotráfico. Destarte, para buscar maior eficiência do combate ao narcotráfico, e
menor violência para com os marginalizados, deve-se compreender o conjunto de
relações sociais, além das estruturas econômicas e jurídico-políticas do controle
social, esses que são os objetos de análise da criminologia crítica.
É imprescindível a atuação na raiz do narcotráfico, diminuindo o poder de
facções sobre as comunidades pobres e evitando o recrutamento de menores para as
mesmas. Para tanto, o controle real do tráfico de drogas deve ser amparado por um
plano político-criminal adequado, que busque evitar o processo de marginalização das
classes subalternas da sociedade, não implicando na supressão da intervenção
punitiva nos casos de comprovada necessidade.
A escola é um instrumento informal de controle social papel crucial para a
formação de uma futura geração de cidadãos capazes de analisar o que é bom ou
não para a sua vida. Portanto, possui atribuições muito importantes para desestimular
o consumo de drogas, sendo esse o primeiro ponto para a diminuição do poder do
tráfico.
Tendo em vista que se crianças e adolescentes são naturalmente mais aptos a
receber orientações e assimilar valores, torna-se necessário realizar programa
balizados pelo diálogo. O Programa Educacional de Resistência às Drogas (Proerd) é
o melhor exemplo disso, pois consiste num esforço cooperativo estabelecido entre a
Polícia Militar e as escolas, a fim de ensinar estratégias que permitam evitar
influências negativas em questões afetas às drogas.
Deve-se consolidar e ampliar a atuação de projetos como o Proerd para todos
os jovens educandos brasileiros, tanto em ensino fundamental, quanto em ensino
médio. Ademais, os educandos necessitam de acompanhamento psicopedagógico
para ser entendido o que se passa na sua vida fora do ambiente escolar, e em ação
conjunta às famílias desses, evitar que tantos jovens não concluam o ensino
fundamental.
Ademais, em razão das normas penais serem aplicadas incisivamente aos
sujeitos marginalizados pela sociedade, torna-se ainda mais evidente a necessidade
de transformação da estrutura social, incidindo na diminuição das desigualdades
sociais. Os moradores dos bairros carentes deveriam estar protegidos das influências
do mundo do narcotráfico. Logo, devem também ser debatidas políticas que melhorem
as condições de vida das pessoas, gerando emprego e renda, melhores salários,
acesso à terra e estímulo ao mercado de consumo local.
Apesar dessas políticas públicas e criminais serem de médio e longo prazo,
somente essas atuam na raiz do conflito, neutralizando o crime antes de ocorrer, pois
oferecem ao cidadão a organização social para superar as adversidades as quais está
submetido. Assim, as facções criminosas perderiam o seu “exército de reserva”, não
exerceriam o mesmo poder sobre as comunidades mais carentes, e teriam um
evidente problema de consecução estrutural.
Portanto, a política criminal não deve impor ao Judiciário, e aos demais
instrumentos de controle social estatais, a imagem de salvador. Para isso, cabe
afastar políticas legislativas populistas e imediatas, que pretendem impor mais
punição a quem está inserido no mundo do tráfico, para assim ofertar resposta rápida
à sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
632

Ao questionar-se sobre a possibilidade de tornar o combate ao tráfico de drogas


mais eficiente no Amazonas, diminuindo a incidência do Direito Penal aos
marginalizados, e valendo-se dos resultados apresentados nesta pesquisa, pode-se
concluir que a omissão do Estado com os serviços básicos inexiste no momento de
penalizar. E para evitar o ciclo vicioso de violência em razão dessa repressão, e a
punição em massa, devem ser estabelecidas medidas alternativas de controle ao
narcotráfico.
O ciclo violência não se encerrará sem haver diálogo acerca da forma que o
Estado trata esse problema social. Entendendo como se estruturaram no Amazonas
facções como FDN e CV, o principal ponto de atenção deve ser buscar evitar o desvio
dos vulneráveis para o mundo do crime. Por isso, o Direito Penal é apenas parte
pequena da resolução desse problema, pois se limita à proteção imediata de direitos
sociais fundamentais. O controle social não punitivo anterior que seja eficiente, e que
intervenha nas causas do crime, sendo exemplos a educação de qualidade e a
diminuição da pobreza, é o principal recurso do combate ao tráfico de drogas.
Não se pretende criar soluções prontas para não mais existir tráfico de drogas,
busca-se chamar a atenção para a agenda de debates que envolvem a segurança
estadual, principalmente quanto às políticas públicas que tenham por finalidade evitar
o processo de marginalização das classes subalternas e a integração de menores às
facções, neutralizando assim o poder das facções. Essas medidas preventivas atuam
na raiz do conflito, oferecendo ao cidadão a organização social necessária para não
se desviar para o mundo do narcotráfico.
Assim, esta pesquisa discorreu sobre indagações acerca da aplicação de
políticas públicas-criminais de médio e longo prazo, que busquem neutralizar o poder
do tráfico sobre os bairros mais carentes e evitar a integração de menores às facções.
Portanto, centraliza-se a análise em medidas preventivas, e não reacionárias, que
atuem na raiz do conflito, oferecendo ao cidadão a organização social necessária para
superar os conflitos que possam levá-lo ao mundo do tráfico, evitando a
marginalização das classes subalternas da sociedade.

REFERÊNCIAS

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633

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SCHECARIA, Salomão Sérgio. Criminologia. 4ª ed. Revista dos Tribunais. São
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Direito Penal: Criminologia, Princípios e Cidadania. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2016.
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<https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/convivencia-com-presos-politicos-na-
ilha-grande-ajudou-criar-faccoes-criminosas-20759357>. Acesso em: 04 set. 2018.
634

O CRIME DE CONSUMO PESSOAL DE DROGAS E SUA


INCONSTITUCIONALIDADE
THE CRIME OF PERSONAL DRUG CONSUMPTION AND ITS
INCONSTITUTIONALITY

Gabriel Almeida Brandão


Lucilo Perondi Junior

Resumo: O presente trabalho objetiva analisar quais são os órgãos reguladores das
substâncias químicas, bem como quais as suas funções e como tais aspectos
interferiram na lei 11.343\2006. O tema central da pesquisa consiste na análise do
artigo 28 dessa lei, da manutenção da criminalização da conduta, e em que aspectos
esse artigo específico da lei pode ser inconstitucional. O trabalho traz uma análise do
artigo 28 da lei e do julgado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federalque apreciou
o RE 430105/QO/RJ. De que forma a ilicitude da droga pode ser pior que a droga em
si e quais os efeitos da “guerra as drogas”. A metodologia utilizada foi a pesquisa
bibliográfica aliada à análise do referido artigo da lei. Como método de
investigação se utilizou o método dedutivo.
Palavras-chave: Lei nº 11.343\06, Direito Constitucional, Direitos e Garantias
Fundamentais.

Abstract: The present work aims to examine what are the regulatory bodies of the
chemicals, as well as their functions and how these aspects interfered with the 11.343
Act 2006. The central theme of the research consists of the analysis of article 28 of
this law, of the maintenance of the criminalization of the conduct, and in what respects
this specific article of the law can be unconstitutional. The work brings an analysis of
article 28 of the law and of the judged by the first class of the Supreme Court who
appreciated the RE 430105/QO/RJ. How the drug unlawfulness can be worse than the
drug itself and what the effects of "war on drugs". The methodology used was the
bibliographical research allied to the analysis of the aforementioned article of the LAW.
As a method of investigation, the deductive method was Used.
Key words: Law nº 11.343\06, Constitutional Law, Fundamental Rights and
Guarantees.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se justifica ante as inúmeras violações aos direitos


fundamentais dos indivíduos que são enquadrados como incursos no artigo 28 da lei
de drogas.
Esses frequentemente são rotulados pelo Estado como criminosos e, com isso,
carregam todos os males que vem com esse entiquetamento proporcionado pelo
Estado e pela sociedade de maneira geral. Busca-se fazer uma análise do artigo 28
da Lei 11.343/06, que trata das drogas para o consumo pessoal, qual a finalidade
dessa lei e como ela trata o usuário, bem como quais são os tipos de penas aplicáveis
ao caso concreto. Foi objeto dessa pesquisa a manutenção da criminalização da
conduta que trata o artigo 28 da Lei 11.434/06, bem como realizada a análise jurídica
do julgado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal que no dia 13 de fevereiro de
2007 que apreciou o RE 430105/QO/RJ. Também foram objetos dessa pesquisa o
caráter ilícito da droga e como isso agrava o fenômeno ingestão de drogas no Brasil,
bem como qual o resultado da declaração de “guerra as drogas”.
635

Por fim, foi realizada uma análise dos aspectos e direitos fundamentais que
eventualmente são desrespeitados por esse artigo e como esse desrespeito pode ser
inconstitucional, inclusive, se esse fato pode ou não afetar a honra do indivíduo e
porque as pessoas procuram as drogas qual é o gatilho que pode causar tantos
problemas sociais e individuais.

DESENVOLVIMENTO

No Brasil, existe um grande tabu em relação às drogas, bem como a discussão


sobre o assunto deixa a desejar, pois a solução viável para o problema depende de
uma contribuição social de cada cidadão, inclusive, de uma reflexão sobre as drogas
legalizadas e de como afetam a vida de todos os brasileiros direta ou indiretamente,
pois não existe distinção farmacológica entre drogas lícitas e ilícitas.
Destarte, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA criada pela Lei
nº 9.782, de 26 de janeiro 1999, é uma autarquia sob regime especial, com sede e
foro no Distrito Federal. Tem por finalidade institucional promover a proteção da saúde
da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de
produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária. Desta forma a ANVISA
regulamenta quais são as substancias sujeitas a controle especial, no caso das
drogas, por meio da Portaria nº 344, de 12 de maio de 1998.
A lei 11.343/06 é uma norma penal em branco, pois se consideram drogas as
substancias ou produtos capazes de causar a dependência, assim determinadosna lei
ou relacionados em listas que são atualizadas periodicamente pelo poder executivo
da União.
A lei inovou em muitos aspectos, principalmente em relação ao artigo 28, o qual
prevê de forma expressa uma modalidade de sanção não privativa de liberdade que
é a advertência sobre os efeitos das drogas, essa advertência tem natureza jurídica
de pena e pode, inclusive, pode gerar reincidência. O juiz deverá aplicá-la na própria
audiência preliminar, já que rito processual, nesses casos, segue o artigo 60 e
seguintes da lei 9.099/95, de acordo com o artigo 48, da lei.
Ressalta-se que a conduta prevista no artigo 28 é uma infração de menor
potencial ofensivo, portanto, sujeita ao procedimento da Lei dos Juizados Especiais
Criminais.
Ademais, a pequena quantidade da substância não descaracteriza o delito, pois
o entendimento é de que se o indivíduo porta uma determinada quantidade de droga
e se enquadra no artigo 28, em tese a quantidade apreendida será pequena, sendo
quase que um elemento do tipo penal a pequena quantidade de droga, porém não se
pode definir a que fim se destina a droga simplesmente pela quantidade
De acordo com a doutrina, em síntese, a pequena quantidade droga em poder
do agente não afeta ou exclui o relevo jurídico-penal do comportamento transgressor
do ordenamento jurídico.
Com a devida vênia, sabe-se que a lei não pune as condutas de “usar drogas”
nesse sentido, quem consome a droga de forma imediata sem permanecer com
ela por mais tempo do que o mínimo necessário para consumi-la, torna-se
cristalino que nesse caso não é justa a intromissão estatal punitiva na vida privada
do indivíduo, pois ele não representou perigo social algum e, nesse caso, a
atuação estatal não se justificaria, gerando, assim, um expresso desrespeito ao
princípio da Alteridade ou Transcendentalidade.
Todavia, o entendimento majoritário é o de que não houve descriminalização
da conduta, nesse sentido já decidiu a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal que no
636

dia 13 de fevereiro de 2007 que apreciou o RE 430105/QO/RJ, se posicionando a


favor de que não houve a descriminalização da conduta de trazer consigo ou adquirir
para uso pessoal:

I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 - nova


lei de drogas): natureza jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP - que se
limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está
diante de um crime ou de uma contravenção - não obsta a que lei ordinária
superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça
para determinado crime - como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 - pena
diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente
uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei
incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na
interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do
legislador pelo "rigor técnico", que o teria levado inadvertidamente a incluir
as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado
"Dos Crimes e das Penas", só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III,
Capítulo III, arts. 27/30). 3. Ao uso da expressão "reincidência", também
não se pode emprestar um sentido "popular", especialmente porque, em
linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L.
11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12). 4. Soma-
se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações
atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de
menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de
aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48,
§§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art.
107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de
"despenalização", entendida como exclusão, para o tipo, das penas
privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que
a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107). II.
Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso
de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva. III. Recurso
extraordinário julgado prejudicado.
(STF - RE: 430105 RJ, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de
Julgamento: 13/02/2007, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-004
DIVULG 26-04-2007 PUBLIC 27-04-2007 DJ 27-04-2007 PP-00069
EMENT VOL-02273-04 PP-00729 RB v. 19, n. 523, 2007, p. 17-21 RT v.
96, n. 863, 2007, p. 516-523)

Desta feita, conclui-se que o entendimento que deve prevalecer é o sustentado


pela ampla maioria da doutrina, bem como pela suprema corte de que não houve
descriminalização da conduta.
Entretanto, no tocante a situação carcerária no Brasil, nota-se nas
penitenciárias brasileiras um alto nível de descaso e abandono, onde reina o
desrespeito a dignidade da pessoa humana. Infelizmente o indivíduo que está sob a
custódia do Estado tem uma enorme chance de retornar ao sistema prisional, pois ele
fica reunido com demais pessoas que cometeram crimes graves em um tempo ocioso,
aprendendo “novas práticas delitivas”, sem receber o mínimo de instrução para sua
ressocialização que é um dos objetivos da pena. Nesse sentido, ainda que o artigo
não tenha trazido a pena de reclusão ou detenção o indivíduo que pratica tal conduta
é rotulado e, dessa forma, acaba sendo incluído de certo modo no “sistema criminal”
e, ainda que não esteja recolhido sofrerá os danos secundários dessa criminalização
e da desídia estatal.
Os males causados pelas drogas sejam elas ilícitas ou licitas afetam a saúde
humana, mas uma vez fora da legalidade a droga não é ruim simplesmente por ser
droga, mas, sim, porque passa a ser ilegal e, portanto, fica a margem da sociedade e
637

consequentemente torna quem a utiliza em uma pessoa criminosa ou marginalizada.


Que não está mais no centro de uma reputação ilibada e mediante esse fato ou
assume sua atitude e cumpre com as consequências ou vai tentar esconder o seu
comportamento.
Nesse sentido, explica Nilo Batista (1990, p. 194):

Uma vez banida da legalidade, a malignidade da droga não esta mais em


sua toxicologia, no seu potencial destruidor da razão livre, mas, sim, na
sua ilicitude. É a ilicitude que torna a droga má, que faz agente do mal. A
violência associada ao consumo de drogas também sofre essa
deturpação.

Destarte, cabe uma crítica a Lei n. 11.343/06, que trata o usuário de uma forma
diferente do traficante, mas isso se manifesta apenas como mais uma forma de
segregação e exclusão, bem como uma forma que expressa a conduta do
encarceramento maciço que segundo Nilo Batista (1990, p. 196):

O fato é que o governo brasileiro não foge à política padronizada de


repressão ao comércio de drogas. A tão decantada nova Lei de Drogas
(Lei n. 11.343/06) adota a “teoria dualista do sistema penal com regras de
imputação e princípios de garantias processuais de dois níveis” (Bonho,
2006): na prática, apenas protege os consumidores de drogas, em geral
filhos da classe média e alta que não devem ter a ficha criminal manchada.

Alessandra Teixeira, (2006), escorada em diversos autores, afirma que o


conjunto de políticas repressivas conhecido como guerra às drogas é a política mais
expressiva do encarceramento maciço. Política concebida nos Estados Unidos,
responsável pelo encarceramento de maciço de negros e pobres e que extravasa as
fronteiras nacionais.
Em até que ponto a legitimidade da política de repressão às drogas pode ser
boa, pois segundo a nossa Constituição Federal que estabelece no seu art. 5º, inciso
XLIII, que as condutas ali previstas são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia. Fato que demonstra o quão reprovável é esse tipo de conduta.
Em que pese a força da norma constitucional, data vênia, a Constituição com
toda sua utopia, em algum momento de algum modo deve ainda que minimamente
estar em sintonia com a realidade do país, sob pena de toda a Constituição, bem como
todo o aparato estadual e suas organizações caírem em total descrédito e completa
deslegitimação, pois um ordenamento jurídico que não leva em conta os hábitos e
costumes de seu povo vai estar fadada a gerar mais conflitos do que pacificar as
relações sociais.
Hoje o maior problema não são os traficantes, mas, sim, a maneira como se
trata o fenômeno de ingestão de drogas ilícitas no país.
A liberdade individual de cada cidadão é afetada pela norma e pela política de
repressão às drogas ilícitas, mas a situação ao redor do mundo já demonstrou que
essa é uma guerra perdida, dessa forma, como encontrar uma alternativa viável e não
utópica para o problema, simples libere o direito de escolha e regulamente o uso e
venda, recolha tributo e controle a oferta do mercado, assim o governo terá o domínio
total dentro dos limites e liberdades individuas garantidos e ainda vai poder mapear
os usuários e os pontos de venda e poderá aplicar o que arrecadar com esse tributo
em campanhas de conscientização e controle do uso de drogas.
Dessa forma é explanado o entendimento de Nilo Batista (1990, p. 199):
638

Devemos, ainda, indagar se as leis proibicionistas e toda a política


repressiva distribuem mais justiça do que se fosse dado ao cidadão o
direito de decidir se quer ou não fumar um cigarrinho de maconha, se quer
ou não torrar um quilograma de cocaína até arrebentar o seu organismo.

O grande problema na fundamentação moral da Lei é não o mal que as drogas


causam no organismo e a conscientização disso, mas sobre como essa lei
regulamenta mazelas da proibição e encarceramento em massa.
Quem usa drogas licitas utiliza-se delas de forma livre e tranquila, todavia elas
ainda são drogas, pois o tabaco ou o álcool matam muitas pessoas todos os dias, e
geram enormes prejuízos aos cofres públicos, assim como as drogas ilícitas, contudo,
essas drogas lícitas têm o apoio do governo e de seus parceiros comercias, já as
ilícitas têm a repressão.
O indivíduo tem direito a disposição do próprio corpo, e esse direito é aceitável,
se ele quiser dispor de sua saúde para fazer o uso de drogas sem prejudicar mais
ninguém ele deveria ter esse direito. Toda afetação ao bem jurídico protegido no caso
a integridade física e psíquica seja ela normativa, fática, direta ou indireta, interfere da
na vida do indivíduo, a grande questão é se o estado pode interferir na privacidade do
indivíduo afetando sua liberdade, inclusive, de escolha, o que é um direito
fundamental, com o fundamento de proteção a integridade corporal, tem-se aqui um
choque de direitos fundamentais.
Uma forma de expressão da liberdade é o direito de não ser impedido de levar
a sua vida pessoal conforme o seu projeto existencial e pessoal, ainda mais aqueles
que não interferem em direitos de terceiros.
Contudo, assim como os demais direitos pessoais o direito à privacidade e
intimidade não são ilimitados e podem sofrer intervenções.
O direito a honra se encontra no âmbito da assim chamada integridade e
inviolabilidade moral, onde são protegidos o apreço social, a boa fama e a reputação,
é dever do estado assegurar à efetividade de proteção a honra e aos direitos pessoais.
O indivíduo que usa drogas dentro de sua esfera privada ao ter seus direitos
violados pela pretensão punitiva estatal, tem ao mesmo tempo sua honra afetada de
forma que o seu bom nome e seu o apreço social ficam abalados, pois a partir do
momento em que for condenado será um criminoso e, portanto, já não tem mais sua
honra e boa imagem intactas, pois para a sociedade e para o estado ele agora é
rotulado, é um criminoso.
Deve-se salientar que a criminalização da conduta de porte de entorpecentes
é flagrantemente inconstitucional por violar frontalmente o princípio da lesividade,
segundo o qual o Direito Penal tutela somente bens jurídicos socialmente relevantes,
sendo que tais bens são alheios ao indivíduo tido como delinqüente.

CONCLUSÃO

Conclui-se que de fato a criminalização da drogas traz prejuízos enormes e que


são difíceis de combater, principalmente pela ilegalidade que é trazida com ela, é
possível observar que o diferencial de tratamento que traz o artigo 28, da Lei de
Drogas pode ser mais uma forma de segregação, pois foi observado que o maior
problema não são os traficantes, mas, sim, a maneira como se trata o fenômeno de
ingestão de drogas ilícitas no país, pois os traficantes são apenas um resultado
secundário de um mal primário que é a demanda, ou seja, o usuário. A droga é apenas
uma rota de fuga muitas vezes que o indivíduo encontra dentro de uma sociedade
639

com diversos problemas e é substituível por qualquer outra fonte de prazer como sexo
ou consumo compulsivo.
É necessário que exista conscientização de que não existe outro caminho para
salvaguardar a dignidade humana e o estado democrático de direito se o fenômeno
ingestão drogas não começar a receber um tratamento diferenciado, devemos
aprender a aceitar que já convivemos com isso.
Mudar é necessário e precisamos mudar para melhor. Resta cabalmente
comprovado que essa “guerra às drogas” está perdida há muito tempo e, precisamos
admitir que talvez a forma como o assunto foi transmitido ao mundo pode ter sido
equivocada.
Por fim, conclui-se que o referido artigo da lei é inconstitucional no tocante ao
direito a intimidade e a vida privada do indivíduo, bem como sobre a ótica do principio
da lesividade não se justificando intromissão estatal na vida privada do indivíduo.
Desta forma, fica patente a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas, por
violação aos princípios da igualdade (CF, art. 5, caput), da inviolabilidade da
intimidade e da vida privada e do respeito à diferença (CF, art. 5, X), razão pela qual
não há como se impor uma pena ao indivíduo que incorre em tal conduta.

REFERÊNCIAS

ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Legislação penal especial. 5ª edição. São Paulo:


Editora Saraiva, 2009.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª edição, Rio de
Janeiro: Editora Revan, 1990.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: legislação especial penal. IV. 11ª edição.
São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
GOMES, Luiz Flávio; e BIANCHINI, Alice. Lei de drogas comentada: artigo por artigo:
Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. 3ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008.
GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Técnico Jurídico. 13ª edição. São
Paulo:EditoraRideel, 2010.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na
Constituição Federal de 1988. 5ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, ANO.
_______;MARINONI, Luiz Guilherme; e MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
640

OS MODELOS DE ABORDAGEM DO ABORTO: POR PRAZOS, CAUSAL E DO


ASSESSORAMENTO
LOS MODELOS DE ENFOQUE DEL ABORTO: POR PLAZOS, CAUSALES Y DEL
ASESORAMIENTO

Vinícius da Costa Gomes

Resumo: O aborto é um tema constantemente debatido, mas, sempre envolvido em


diversas polêmicas (já que compreende diversas questões relacionados à religião, a
cultura e a aspectos sociais). No âmbito do direito a discussão passa por diversos
temas, como os direitos fundamentais a vida (ex: limites e início da vida), a liberdade
(ex: autonomia da mulher), a igualdade (ex: consequências desiguais) e relacionadas
a descriminalização e despenalização do aborto. Este artigo tem como objetivo
elaborar uma pesquisa analítica descritiva dos sistemas de abordagem do aborto.
Preliminarmente, a pesquisa irá identificar os sistemas causal, por prazos e o de
assessoramento. Posteriormente irá analisar as definições e fundamentos de cada um
destes modelos. Por fim, a pesquisa irá identificar as possibilidades que possam
aprimorar a aplicação dos direitos fundamentais em nosso ordenamento e, por
conseguinte, concretizar a democracia.
Palavras-chave: Aborto – Democracia – Direitos Fundamentais – Modelos de
abortamento.

Resumen: El aborto es un tema constantemente debatido, pero siempre involucrado


en diversas polémicas (ya que comprende diversas cuestiones relacionadas con la
religión, la cultura y los aspectos sociales). En el ámbito del derecho la discusión pasa
por diversos temas, como los derechos fundamentales a la vida (por ejemplo, límites
e inicio de la vida), la libertad (por ejemplo, autonomía de la mujer), la igualdad (por
ejemplo, consecuencias desiguales) y relacionadas con la despenalización y la
despenalización despenalización del aborto. Este artículo tiene como objetivo elaborar
una investigación analítica descriptiva de los sistemas de abordaje del aborto.
Preliminarmente, la investigación identificará los sistemas causales, por plazos y el de
asesoramiento. Posteriormente analizará las definiciones y los fundamentos de cada
uno de estos modelos. Por último, la investigación identificará las posibilidades que
puedan mejorar la aplicación de los derechos fundamentales en nuestro ordenamiento
y, por consiguiente, concretar la democracia.
Palabras clave: Aborto - Democracia - Derechos Fundamentales - Modelos de aborto.

1 INTRODUÇÃO

O aborto é um tema constantemente debatido, mas, sempre envolvido em


diversas polêmicas (já que compreende diversas questões relacionados à religião, a
cultura e a aspectos sociais). No âmbito do direito a discussão passa por diversos
temas, como os direitos fundamentais a vida (ex: limites e início da vida), a liberdade
(ex: autonomia da mulher), a igualdade (ex: consequências desiguais) e relacionadas
a descriminalização e despenalização do aborto.
Este artigo fará uma pesquisa analítica descritiva sobre os modelos de
abordagem do aborto a fim de identificar possibilidades que possam aprimorar a
aplicação dos direitos fundamentais em nosso ordenamento e, por conseguinte,
concretizar a democracia.
641

2 MODELOS DE ABORDAGEM DO ABORTO:

O tema do aborto é tratado de diversas formas nas diversas legislações


mundiais. Basicamente há três modelos (ou sistemas) de abordagem do aborto:
causal ou de permissões; modelo de solução por prazos; e o modelo de
assessoramento. Destaca-se que nos três modelos1 é possível a restrição do direito
a vida biológica (aborto), já que o direito a vida é um direito fundamental e como tal é
relativo. A diferença entre eles reside na autonomia, maior ou menor, da decisão da
genitora em efetuar o aborto.

3 MODELO CAUSAL OU DE PERMISSÕES

O sistema de indicações ou permissões (ou causal) é aquele em que a


legislação não permite o aborto, mas, excepcionalmente, traz algumas disposições
legais (causas) em que esse aborto é permitido.
Os países2 que adotam esse modelo vão sancionar3 a conduta do aborto que
não esteja amparada por algumas das causas ou permissões legais. Gabriel Adriasola
indica que diversos países utilizam este sistema4, como: Luxemburgo, Polônia,
Colômbia, México5 e Brasil (ADRIASOLA, p. 21). É necessário salientar que as
causas ou permissões variam conforme os diversos ordenamentos jurídicos6. A
legislação brasileira7, por exemplo, só permite o aborto em casos de violência e de
perigo a saúde da mulher8.
Pode-se afirmar que as causas ou permissões legais para o aborto neste
sistema são: perigo a saúde da mãe; a gravidez resultar de violência; má-formação
ou doença pré-existente; critério etário; e, justificativa socioeconômica. Ou seja, este
modelo se fundamenta na defesa do direito fundamental a vida, mas, permite o aborto
em alguns casos.
O autor uruguaio afirma que neste sistema a legislação não reconhece a
liberdade da mãe, mas tão somente as permissões que o direito considera como
válidas para justificar o aborto. Ele afirma que este sistema parte da premissa que a
vida começa com a concepção ou a nidação, contudo, a legislação admite que em
alguns casos a vida do feto seja relegável diante de interesses do ser humano já

1
Gabriekl Adriasola afirma que existem três tipos de modelos de regulação do aborto: O primeiro em que há prazos em que o
aborto torna-se licito por decisão da mulher ou com o cumprimento de alguns requisitos mínimos; O segundo é um modelo em
que o aborto é proibido, mas há na lei alguns casos em que se permite a prática do aborto; e o terceiro que é o chamado modelo
intermediário ou de assessoramento (ADRIASOLA, 18-19).
2
Sobre o assunto ver: L. Mirarchi, Aborto. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, Facultad de Derecho em
http://bioetica.bioetica.org/mono4.htm.
3
Adotei o termo sancionar porque a lógica desse modelo é que em regra o aborto não é permitido, assim, quando não houver
permissão legal deve-se penalizar o autor. Contudo, essa pesquisa não visa fazer um estudo comparado amplo para afirmar se
essa sanção será penal ou não.
4
O livro organizado pela Organização Mundial da Saúde afirma com base em dados estatísticos que a ampla maioria dos
chamados países em desenvolvimento utilizam um sistema em que o aborto não é permitido (OMS, p.18).
5
Na Colômbia é possível o aborto em caso de violência, de perigo a saúde da mulher comprovado por um laudo medico e má
formação do feto e no México, a regulamentação fica a cargo de cada um dos entes federativos, mas, com exceção do Distrito
Federal todos os entes adotam o sistema causal (ADRIASOLA,p. 21).
6
Em Hong Kong o fato de a genitora ser adolescente é por si só uma causa que justifica o aborto já que a gravidez poderia
ensejar perigo à saúde da mãe. Na França e na Holanda é possível o aborto em caso de angústia que prejudique a saúde mental
da mulher. Na Hungria é possível o aborto para àquelas mulheres que não possuam moradia (ADRIASOLA, p20 e 21).
7
A jurisprudência brasileira traz casos diversos sobre a possibilidade do aborto, contudo, há que se ressaltar que no caso do
aborto de bebe anencéfalo o Supremo Tribunal Federal na análise da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº
54 possibilitou o que ele denominou de antecipação terapêutica do parto e não o aborto. Acessado no site:
http://www.stf.jus.br/portal/geral/verpdfpaginado.asp?id=339091&tipo=TP&descricao=ADPF%2F54 em 06/06/16.
8
O Código Penal traz como permissões legais o aborto necessário e o aborto ocorrido em virtude de estupro (art. 128). Art. 128
- Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto
no caso de gravidez resultante de estupro: II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da
gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
642

nascido. O autor9 diz ainda que para alguns teóricos a adoção deste modelo se
fundamentava no artigo 4º do Pacto San José (ADRIASOLA, p. 27)10.
O modelo causal ou de permissões se fundamenta na defesa do direito
fundamental a vida. É com esse fundamento que se proíbe em regra o aborto.
Contudo, esse sistema permite o aborto em alguns casos, sendo assim, pode-se
afirmar que o sistema causal ou de permissões admite a relatividade dos direitos
fundamentais.
Gabriel Adriasola afirma que esse modelo parte da premissa básica de que a
vida começa com a concepção ou a nidação. Partindo dessa ideia o aborto não deve
ser permitido já que a vida já existe mesmo durante a gestação, contudo, a legislação
admite que em alguns casos a vida do feto seja relegável diante de interesses do ser
humano já nascido (ADRIASOLA, p. 27).
O modelo causal ou de permissões se fundamenta na defesa do direito
fundamental a vida. É com esse fundamento que se proíbe em regra o aborto.
Contudo, esse sistema permite o aborto em alguns casos, sendo assim, pode-se
afirmar que o sistema causal ou de permissões admite a relatividade dos direitos
fundamentais.
Gabriel Adriasola afirma que esse modelo parte da premissa básica de que a
vida começa com a concepção ou a nidação. Partindo dessa ideia o aborto não deve
ser permitido já que a vida já existe mesmo durante a gestação, contudo, a legislação
admite que em alguns casos a vida do feto seja relegável diante de interesses do ser
humano já nascido (ADRIASOLA, p. 27).
Interessante notar que antes da lei 18.987/2008 instaurar o sistema de
assessoramento no Uruguai vigorava o sistema causal ou de permissões, nesse
contexto alguns teóricos afirmavam que a fundamentação desse modelo era
justamente a adoção pelo Uruguai da premissa de que a vida se iniciava com a
concepção (nidação). Gabriel Adriasola11 afirma que a adoção desse modelo se
fundamentava no artigo 4º da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos12,
conhecido como pacto Sant Jose de Costa Rica (ADRIASOLA, p. 27) que afirma:
“Artigo 4. Direito à vida: 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua
vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da
concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
Apesar de esse não ser o objeto do trabalho cabe ressaltar que o dispositivo
afirma que o direito a vida deve ser protegido desde a concepção e não que houve
adoção do critério da concepção para o início da vida.
O autor uruguaio diz ainda que as legislações admitem a prevalência dos
direitos da genitora mesmo quando de menor valor ao do embrião, sendo assim,
conclui que há uma valoração de direitos entre a vida intrauterina e a extrauterina
(ADRIASOLA, p. 27).
Por fim, o autor uruguaio informa que o marco conceitual principal desse
sistema é a ideia de que o direito a vida é relativo, mas é tão importante que cabe
somente ao Estado e não a grávida decidir quando o aborto será possível
(ADRIASOLA, p. 28).

9
Gabriel Adriasola traz o que chama de debate sobre o artigo 4º da Convenção Americana dos Direitos humanos nos capítulos
2.3 e 2.4 de sua obra (ADRIASOLA, p. 29-38), assunto que não será trabalhado já que não é objeto dessa pesquisa.
10
Cabe ressaltar que o dispositivo afirma que o direito a vida deve ser protegido desde a concepção e não que houve adoção
do critério da concepção para o início da vida.
11
Gabriel Adriasola traz o que chama de debate sobre o artigo 4º da Convenção Americana dos Direitos humanos nos capítulos
2.3 e 2.4 de sua obra (ADRIASOLA, p. 29-38), assunto que não será trabalhado já que não é objeto dessa pesquisa.
12
Acessado em 06/06/16 no site:
< https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>
643

Sendo assim, pode-se afirmar que este modelo admite a relatividade do direito
à vida, mas entende que a colisão entre esse direito e outros direitos (mesmo que
menos valiosos) deve ser solucionada por toda a coletividade, ou seja, pela criação
de permissivos legais em determinadas hipóteses a realização do aborto em
detrimento da escolha autônoma da genitora.

4 MODELO POR SOLUÇÃO DE PRAZOS:

O modelo por solução de prazo é aquele em que a legislação estabelece um


período de tempo em que vigora a autonomia incondicionada da mãe pelo aborto e,
após esse período, prevalece o impedimento de abortar.
Gabriel Adriasola afirma que esse sistema permite a interrupção voluntária da
gravidez dentro de um prazo unicamente pela vontade da mulher, sem qualquer causa
permissiva. Ele diz ainda que o direito alemão 13 denomina esse modelo como o da
livre disposição por autodeterminação dentro de um prazo legal (ADRIASOLA, p. 23).
Este sistema tenta conciliar o direito à vida e o direito à liberdade de escolha
da mulher, já que possibilita que em um determinado prazo a mulher possa livremente
optar pelo aborto, mas, após esse período o impede. Contudo, é necessário ressaltar
que em alguns países há uma variação desse sistema. Na Bulgária e na Dinamarca
tem-se uma espécie de sistema de prazos adicionado a um sistema de permissões.
Na Grã Bretanha (exceto Irlanda do Norte) acontece o mesmo, mas o prazo é de 24
semanas de gestação14. Na Grécia há um sistema de prorrogação desse em caso de
grave anomalia fetal e incesto. A Noruega adota a interrupção incondicionada nas
primeiras 12 semanas e Portugal nas primeiras 10 semanas. A Suécia admite a
interrupção voluntária nas primeiras 18 semanas, da 18ª a 24ª semana é possível o
aborto em caso de riscos ao feto ou a mãe, mas não se autoriza o aborto se o feto é
viável (ADRIASOLA, p.18-20). Já nos Estados Unidos, a Suprema Corte (Roe VS.
Wade em 1973 e Parenthood of Southwestern Pennsylvania VS. Casey em 1992)
reconheceu o direito individual da mulher de interromper a gravidez no 1º trimestre de
gestação (NOVELINO, p.490-491).
Interessante perceber que os prazos coincidem com as teorias do início da vida.
Sobre o assunto Bernardo Gonçalves Fernandes afirma que não há um consenso
sobre quando se inicia a vida, existindo diversas posições sobre o tema, como: 1) vida
se inicia a partir da concepção; 2) vida se inícia com a nidação (vida viável-entre 7 e
10 dias da fecundação); 3) vida se origina da formação do sistema nervoso central
(14º dia de concepção); 4) autonomia do feto em relação a mãe (23ª semana de
gestação) (FERNANDES, p.362).
Marcelo Novelino faz algumas ponderações sobre início a vida. Ele cita Marcos
de Almeida que explica que a maioria dos embriões é expulsa durante a menstruação
sem que a mulher perceba e que apenas 27% dos óvulos resultam em bebês. Sobre
a teoria da formação do sistema nervoso central o autor diz que é importante ressaltar
que é só a partir desse momento que se tem capacidade neurológica, logo, é só nesse
momento que há capacidade de sentir dor ou prazer. O autor cita ainda o artigo 3º da
lei 9.434/1997 que afirma ser possível a retirada de órgãos diante do diagnóstico de
morte encefálica, ou seja, a contrario sensu é possível afirmar que a vida se inicia com
a formação da placa neural (NOVELINO, p.484-487). Necessário ressaltar que a
CR/1988 não faz qualquer definição a respeito do início da vida.
13
O autor uruguaio cita a obra “Schwangerschaftsabbruch im internationalen Vergleich. Rechtliche Regelungen, soziale
Rahmenbedingungen, emprirische Grunddaten. Baden-Baden: Nomos, 1999, PP. 526-609” como a responsável por essa
denominação (ADRIASOLA, p.23).
14
Marcelo Novelino informa que o aborto no Reino Unido (exceto a Irlanda do Norte) foi legalizado em 1967.
644

Nota-se que em todos esses casos traça-se uma ideia de que o aborto é
permitido incondicionalmente em um determinado prazo e após esse prazo ele será
em regra sancionável. Este modelo se fundamenta em uma leitura da relatividade do
direito à vida, contudo, preserva determinada autonomia a mulher para tomar a
decisão sobre o aborto. Assim, é possível afirmar que este sistema visa preservar o
direito a vida e o direito a autonomia ao mesmo tempo.
Gabriel Adriasola afirma que o fundamento teórico desse modelo (apesar de
múltiplo) enfoca principalmente no bem jurídico protegido pelo delito do aborto. O
embrião não é pessoa15, mesmo que o ordenamento jurídico proteja a vida
intrauterina, logo, deve receber uma proteção valorativamente menor que a vida
extrauterina. Ele constrói a ideia de que há uma diferença de valores entre a vida
intrauterina e a extrauterina, já que a lei penal que traz uma pena maior para o
homicídio em detrimento do infanticídio e deste com o aborto (ADRIASOLA, p. 23).
No mesmo sentido a Corte Constitucional colombiana afirmou na sentença
355/200616 que a vida humana se manifesta em distintas etapas e diferentes formas
merecendo assim proteção jurídica distinta. Assim, o legislador deve promover
proteções distintas a essas diversas etapas e o legislador deve levar essa valoração
em consideração para fixar políticas públicas e/ou penais para o aborto.
Interessante notar que podemos depreender essa valoração também no
ordenamento brasileiro17. O homicídio simples (art. 121 do CP) possui uma pena de
reclusão de 06 a 20 anos; o Infanticídio (art. 123) tem uma pena de reclusão de 02 a
06 anos e o Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (art. 124)
possui uma pena de 01 a 03 anos.
Por fim, Gabriel Adriasola afirma que há teorias que inclusive colocam em
dúvida que a vida do nascituro seja um bem jurídico penalmente tutelável
(ADRIASOLA, p. 24). Seguindo o mesmo raciocínio Dice Queralt diz que o bem
jurídico protegido no aborto é a sociedade, posto que o nascituro não é titular de bem
jurídico e também não se tutela a mãe afinal ela é a autora do delito 18 (QUERALT, p.
4).

5 MODELO DE ASSESSORAMENTO

15
Cabe ressaltar que há autores que afirmam não ser possível a negação do direito à vida do nascituro e outros que afirmam ser
possível essa negação. Sobre o assunto ver: SANTOS, Lília Nunes dos6. “Uma reflexão sobre a tutela jurídica do embrião
humano e a questão do aborto no Brasil” acessado em 01/06/16 no site:
< http://www.conpedi.org.br/publicacoes/66fsl345/nmt6dg26/NKGdp0S1B2TN30TU.pdf >
Ver ainda: AZEVEDO, André Freire. “O status constitucional da vida humana pré-natal: uma abordagem preliminar” acessado
em 01/06/16 no site:
< http://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/8v11nwv1/5JDaQoXIfx46wZHR.pdf >
16
“La vida humana transcurre en distintas etapas y se manifiesta de diferentes forma, las que a su vez tienem uma protección
jurídica distinta. El ordenamento jurídico, si bien es verdade que otorga protección al nasciturus, no la otorga em el mismo grado
e intesidad que la persona humana. Tatno es ello así que en la mayor parte de las legislaciones es mayor la sanción penal para
el infanticidio o el homicidio que para el aborto. Es decir, el bien jurídico tutelado no es idéntico em estos casos y, por ello, la
trascendencia jurídica de la ofensa social determina uma grado de reproche diferente y uma pena proporcionalmente distinta. De
manera que estas consideraciones habrán de ser tenidas em cuenta por el legislador, si considera conveniente fijar políticas
públicas en materia de aborto, incluídas la penal em aquellos aspectos em que la Constituición lo permita, respetando los
derechos de las mujeres” acessado em 02/06/16 no site: <http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2006/C-355-06.htm>.
17
Essa observação segue a linha de pensamento do autor, contudo, cabe apontar que a dosimetria das penas no Código Penal
é tida pela doutrina brasileira como uma valoração do desvalor do crime, ou seja, o crime com maior pena é uma conduta que
possui maior repulsa. Sendo assim, a crítica a depreensão do autor pode se dar no sentido que há um desvalor na repugnância
do crime e não necessariamente das etapas da vida.
18
[...] queda por responder la cuestión central: ¿donde está el bien jurídico? Podría responderse que ele bien jurídico em el
aborto es la vida del nasciturus y su funcionalidad social; pero, ¿cuál su funcionalidad? O, dicho de otro modo, ¿quién es el titular
de este bien jurídico? La mujer evidentemente no, puesto que no es persona tal como acertadamente acuerda el tc. Solo queda
como posible titular la sociedad. Pero la sociedad como tal solo es titular de intereses más o menos difusos, no de autênticos
derechos subjetivos”.
645

O sistema de assessoramento é um sistema intermediário entre o sistema


causal e o sistema por prazos com o acréscimo do assessoramento. Este modelo tem
um prazo em que o aborto é permitido sem qualquer tipo de motivação e após esse
prazo só será possível a interrupção quando houver alguma permissão legal,
permanecendo assim a ilegalidade da prática abortiva.
Na primeira fase basta uma simples solicitação da mulher, sem qualquer tipo
de justificação ou exigência de provas, para efetuar o aborto. No entanto, em alguns
casos, exige-se que a mulher se submeta a uma fase de assessoramento.
O assessoramento, prévio ao aborto, visa informar a mulher para que ela possa
tomar uma decisão consciente e livre de qualquer pressão, ou seja, uma decisão
autônoma. Necessário ressaltar que esse sistema parte da ideia de que a mulher pode
abortar em um determinado prazo de forma incondicional, sendo assim, é
imprescindível não confundir o assessoramento como uma oportunidade de averiguar
se o aborto ocorrerá ou não. O assessoramento é apenas uma fase em que uma
equipe irá informar a gestante sobre o aspecto médico, psicológico, social e jurídico
do ato sempre com o objetivo de instruir para que a própria gestante possa decidir.
Ou seja, o assessoramento visa possibilitar a mulher a tomar uma decisão consciente
e informada privilegiando a autonomia de vontade.
Gustavo Adriasola afirma que neste modelo quando uma mulher decide abortar
não há necessidade de comprovar que foi vítima de uma violação, que tem um número
excessivo de filhos, que tem algum problema de saúde, comprovar algum
impedimento médico ou mesmo se submeter a um processo de informação e reflexão
para ratificar a sua decisão. Essencialmente basta a petição incondicionada da mulher
e, em alguns casos, há uma autorização precedida de um sistema de assessoramento
(ADRIASOLA, p. 18).
A equipe de assessoramento não existe para convencer a mulher a abortar ou
mesmo para convencê-la que a gravidez deve continuar. O objetivo da equipe é
esclarecer as consequências da interrupção ou da manutenção da gravidez no
aspecto médico, psicológico e social. Gabriel Adriasola enfatiza que o objetivo da
equipe é que a mulher receba todas as informações e assessoramentos de modo que
possa tomar uma decisão devidamente informada (ADRIASOLA, p. 61-63). Ele
certifica que o objetivo da equipe multidisciplinar é que a mulher assuma a
responsabilidade por seu ato, assim esse prazo seria um prazo necessário para que
a mulher refletisse sobre o assessoramento e suas diversas nuances para assim
confirmar sua decisão e arcar com as responsabilidades dela (ADRIASOLA, p.65-69).
Este sistema se fundamenta na autonomia e à saude da mulher. O
assessoramento garante a autonomia da mulher ao permitir uma decisão consciente
e informada sem qualquer condição. Já à saúde da mulher é garantida com a redução
dos abortamentos clandestinos responsaveis em grande parte pela mortalidade
feminina mundial19 fato também comprovado pela aplicação deste sistema no Uruguai
(GOMES, p. 13-20) e na França (BRIOZZO, p. 35).

6 CONCLUSÃO

Depreende-se que a adoção pelo Brasil do sistema causal não garante


efetivamente o direito à vida, a autonomia ou a saúde da mulher. Este modelo admite

19
A OMS não foca em uma distinção dos sistemas de abortamento em causal ou por permissões, por prazos e de
assessoramento. Os dados da organização se referem aos países em que o aborto é proibido e naqueles em que a prática é
permitida. Contudo, é possível depreender na leitura do texto que quando a organização se refere a países em que se permite o
aborto ela engloba àqueles locais em que se admite o modelo por prazos ou de assessoramento (essa conclusão é retirada da
citação dos países e dos dados levantados nessa pesquisa).
646

uma relatividade da vida, mas, como a Constituição ou o ordenamento não afirmam


expressamente quando ela se inicia, ele falha por impossibilitar a escolha da mulher
em uma decisão sobre o seu corpo. Ou seja, a vida (mesmo sem uma definição
específica) se sobrepõe a autonomia. Esta proteção à vida se torna relativa quando
percebe-se que a alta incidência de mortes maternas pelo aborto inseguro. Mas, a
principal crítica a este sistema é verificar que se faz uma opção por uma decisão
estatal em detrimento de uma decisão individual. O sitema causal deixa ao Estado a
opção por elencar quais são as possibilidades de aborto.
Conclui-se que este sistema não consegue proteger o direito à vida e a
autonomia de vontade, sendo insuficiente para garantia destes direitos fundamentais.
Sendo assim, o estudo viabiliza uma discussão sobre qual destes modelos possibilita
uma maior proteção à vida, da mulher e do bebê, e a autonomia, garantindo-se com
maior efetividade estes direitos fundamentais sem hierarquizá-los.

7 REFERÊNCIAS

ADRIASOLA, Gabriel. El modelo uruguayo de despenalización del aborto.


Montevideo, Uruguay, 2014. 1ª Ed.
BRASIL, Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:
Senado, 1988.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves Fernandes. Curso de Direito Constitucional.
Salvador: Editora Jus Podivm, 2012. 4ª Ed.
GOMES, Vinícius da Costa. O modelo uruguaio de despenalização do aborto:
possibilidades ao sistema brasileiro. Florianópolis: CONPEDI, 2016. Acesso em
11/07/17 no site: <
https://www.conpedi.org.br/publicacoes/9105o6b2/d44o4fdp/a36Ij82xz6DgQ8ZY.pdf
>
GUSTIN, Miracy Barbosa de Souza. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e
prática. In Maria Fonseca Dias. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. 3ª ed.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2012. 6ª Ed.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Abortamento seguro: Orientação técnica e de
políticas para sistemas de saúde. 2013. 2ª Ed.
QUERALT, Joan J. La regulación del aborto em España tras la Ley Orgánica 2-2010.
Barcelona: Cuadernos de Derecho Penal, 2013.
647

RELEMBRANDO LIÇÕES BÁSICAS DE CONSTITUCIONALISMO NA ESFERA


PENAL: ANÁLISE DO NOVO PARADIGMA DA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL
E SUA IRRADIAÇÃO À SEARA DO DIREITO PENAL ATRAVÉS DO SISTEMA
GARANTISTA.
RELEVANDO LECCIONES BÁSICAS DE CONSTITUCIONALISMO EN LA ESFERA
PENAL: ANÁLISIS DEL NUEVO PARADIGMA DE LA DEMOCRACIA
CONSTITUCIONAL Y SU IRRADIACIÓN A LA SEARA DEL DERECHO PENAL A
TRAVÉS DEL SISTEMA GARANTISTA.

Ana Carolina Santana


Carlos Alberto Menezes

Resumo: Este trabalho não possui a pretensão de encontrar soluções para nenhum
dos diversos problemas no âmbito jurídico. De maneira simples, nosso propósito é
relembrar lições básicas de constitucionalismo que, apesar da importância, parecem
ter sofrido um esquecimento generalizado pela maioria dos operadores do direito,
inclusive os da mais alta corte do país. Relembraremos o novo paradigma da
democracia constitucional desenvolvido após a segunda grande guerra.
Relembraremos ainda o sistema de garantias que, contrariamente do que muitos
pensam, não se resume à seara penal, ainda que nela seja mais evidente. Nesse
sentido, a intenção é manter viva a ideia de que, gostemos ou não, vivemos sob a
égide de uma Constituição que impõe limites aos poderes constituídos e determina
um rol de direitos fundamentais que não estão suscetíveis de supressão.
Palavras-chave: Constituição – Democracia – Garantismo

Resumen: Este artículo no tiene la pretensión de encontrar soluciones a ninguno de


los diversos problemas en el ámbito jurídico. De manera simple, nuestro propósito es
recordar lecciones básicas de constitucionalismo que, a pesar de la importancia,
parece haber sufrido un olvido generalizado por la mayoría de los operadores del
derecho, incluso los de la más alta corte del país. Recordemos el nuevo paradigma
de la democracia constitucional desarrollado después de la segunda gran guerra.
Recordemos también el sistema de garantías que, contrariamente a lo que muchos
piensan, no se reduce a la mies penal, aunque en ella sea más evidente. En este
sentido, la intención es mantener viva la idea de que, nos guste o no, vivimos bajo la
égida de una Constitución que impone límites a los poderes constituidos y determina
un rol de derechos fundamentales que no son susceptibles de supresión.
Palabras clave: Constitución - Democracia - Garantismo

1 INTRODUÇÃO

Houve um tempo da nossa história no qual a lei aplicada para punir o sujeito
que, porventura, praticasse algum ilícito, era a lei do talião. Talião significando o termo
“idêntico”, daí as leis do Código de Hamurábi se tornarem conhecidas pela máxima
“olho por olho, dente por dente”.
Bem verdade que ao longo do tempo o pensamento humano, em grande
medida o ocidental, evoluiu e não há mais espaço para a aplicação da referida lei.
A era moderna, como a concebemos hoje, iniciou-se através de um processo
lento e gradual, ainda que revolucionário, de transição de um mundo governado pelos
ensinamentos da igreja para um mundo governado pela razão. Os filósofos do
648

iluminismo, no século XVIII, alertavam acerca da necessidade de substituição da


arbitrariedade religiosa pelo conhecimento das leis da natureza (TOURAINE, 2012).
Entretanto, essa racionalização do pensamento humano não foi suficiente para
impedir a desconstituição jurídica da condição humana de um povo, fato este que
legitimou um dos períodos mais terríveis da era moderna, o holocausto.
A sensação que guardamos é a de que o homem não consegue aprender com
seus próprios erros. A história nos ensina lições básicas acerca da importância do
reconhecimento do ser humano como Sujeito, ator de sua própria história, livre e feliz,
ou, ao menos, com potencialidade para assim se sentir.
Este trabalho não se propõe a construir teorias, restringe-se tão somente a
relembrar o que tememos que seja novamente esquecido, a importância do
reconhecimento da condição humana de cada ser humano no mundo, restrita à
positivação jurídica. Ainda que pareça absurda a ideia de esquecimento dessa
condição, não é isso que verificamos na prática legislativa, judicial e executiva
brasileira.

2 A DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL

Ainda que a ideia de Estado Democrático nos pareça racional e,


consequentemente, moderna, na medida em que afasta o Estado Absoluto primando
pela razão, é preciso tecer algumas observações acerca das concepções de
democracia, a majoritária e a constitucional.
A democracia majoritária parte do pressuposto de que o consenso da maioria
legitima qualquer desvio, ou até mesmo abuso, consiste, assim, na onipotência da
maioria, a bem da soberania popular (FERRAJOLI, 2010).
Dessa forma, essa concepção de democracia se apresenta como violadora do
sistema de limites, de pesos e contrapesos, que, segundo Ferrajoli (2010), formam a
substância daquilo que constitui o que chamamos de democracia constitucional.
A ideologia da maioria constitui uma ideia antiga na história do pensamento
político, ou seja, é a ideia de governo dos homens contraposta a de governo das leis
criada por Platão e Aristóteles (FERRAJOLI, 2010).
Atualmente, essa concepção de democracia, como onipotência da maioria é
abertamente inconstitucional. Isso porque, a Constituição, como é hoje concebida,
representa um sistema de limites e de vínculos a todo poder. Caso contrário, ela se
torna um instrumento legitimador da concepção absolutista.
Segundo Ferrajoli (2010), a essência do constitucionalismo e do garantismo,
ou seja, daquilo que chamamos de democracia constitucional, reside precisamente no
conjunto de limites impostos pelas constituições a todo poder, que postula em
consequência uma concepção da democracia como sistema frágil e complexo de
separação e equilíbrio entre poderes, de limites de forma e substância a seu exercício,
de garantias dos direitos fundamentais, de técnicas de controle e de reparação de
suas violações.
O quinquênio de 1945 – 1949, período posterior à derrota do nazismo e do
fascismo, foi crucial para o nascimento do novo paradigma da democracia,
denominando de democracia constitucional (FERRAJOLI, 2010).
As circunstâncias culturais e políticas nas quais nasce o constitucionalismo
atual, na concepção de Ferrajoli (2010), demonstram que o consenso das massas
sobre o qual estavam fundadas as ditaduras fascistas, ainda que seja majoritária, não
pode ser a única fonte de legitimação do poder.
649

“O sistema jurídico interno não pode estar out da comunidade internacional”


(CANOTILHO, 2003, p. 81). Isso significa que as constituições devem estar vinculadas
aos princípios de direito internacional, quais sejam, o da independência,
autodeterminação e observância de direitos humanos.
A mudança de paradigma que torna possível o papel das constituições como
garantias de divisão dos poderes e dos direitos fundamentais, se produziu com aquela
verdadeira invenção do século, consistente no caráter rígido da constituição, ou se
preferir, com a garantia de sua rigidez, e em consequência da sujeição de todos os
poderes ao direito, inclusive o poder legislativo, no plano do direito interno e também
o do direito internacional: sua sujeição precisamente ao imperativo da paz e aos
princípios da justiça positiva, além dos direitos fundamentais, estabelecidos tanto nas
constituições dos estados quanto no embrião da constituição mundial constituído pela
carta das nações unidas e a declaração universal dos direitos humanos (FERRAJOLI,
2010).
Observamos, assim, que o novo paradigma da democracia constitucional
concebe a constituição como uma convenção democrática, na qual contém o que não
pode ser decidido pelos poderes públicos e, de igual forma, o que não pode deixar de
ser decidido por aqueles poderes.

3 A CONSTITUIÇÃO COMO PROGRAMA PARA O FUTURO

Constituição também é um programa político para o futuro, a imposição a todos


os poderes de imperativos negativos e positivos como fonte para sua legitimação, mas
também, e sobretudo, para sua deslegitimação (FERRAJOLI, 2010).
Dessa forma, a supremacia da Constituição impossibilita a supressão de
direitos fundamentais, pela democracia política, ainda que esteja sustentada na
unanimidade do consenso.
É preciso relembrar que todas, não somente as constituições dos séculos XVIII
e XIX, como também as do século XX, foram conquistadas com lutas sangrentas por
movimentos sociais populares que, sem se preocupar com a natureza jurídica,
afirmavam com ela sua vontade constituinte (FERRAJOLI, 2010).
O constitucionalismo não deve ser visto tão somente como uma conquista e um
legado do passado, ainda que a conquista mais importante. Ele deve ser visto como
um programa para o futuro, no sentido de que os direitos fundamentais incorporados
pelas constituições devem ser garantidos e satisfeitos concretamente. Dessa forma,
o garantismo se constitui na outra cara do constitucionalismo e se dirige a estabelecer
as técnicas de garantias idôneas a assegurar o máximo grau de efetividade dos
direitos constitucionalmente reconhecidos (FERRAJOLI, 2010).
Os direitos fundamentais, desde o direito à vida, passando pelos direitos de
liberdade, até os direitos à saúde, ao trabalho, à educação e à subsistência, sempre
são afirmados como a lei do mais fraco, nas palavras de Ferrajoli (2010), “ley del más
débil”, como alternativa à lei do mais forte que regia e regerá em sua ausência.
Nesse sentido, não podemos nos esquecer de que o direito penal é a lei do
mais fraco, ou seja, é a lei dirigida à proteção do mais fraco que é a vítima, no
momento do delito; o imputado, no momento do processo e o condenado no momento
da execução penal (FERRAJOLI, 2002).
Afastamos, assim, qualquer conteúdo teórico que pretenda mitigar o alcance
das garantias penais ao acusado, no âmbito do processo, sob o argumento de que a
vítima também deveria ser levada em consideração. Entendemos, conforme Ferrajoli,
que, no momento do processo, o imputado é o mais fraco e as garantias
650

constitucionais devem estar voltadas à sua proteção diante da força do poder punitivo
estatal.
A Constituição enquanto programa para o futuro é um instrumento de defesa
do mais fraco, que pode mudar de sujeito diante das circunstâncias. No processo
penal, o mais fraco é o acusado e, consequentemente, um direito penal constitucional
deve priorizar a defesa de suas garantias e direitos, observando sua condição de
pessoa humana independentemente da gravidade do fato apurado.

4 O SISTEMA DE GARANTIAS

A aplicação do significado de garantias tem ganhado mais visibilidade na seara


do direito penal. Mais concretamente, a expressão garantismo, em seu sentido estrito
de garantismo penal, surgiu na cultura jurídica italiana de esquerda, na segunda
metade dos anos setenta, como resposta à legislação e à jurisdição de emergência
que, por até então, reduziram de diferentes formas o já frágil sistema de garantias
processuais (FERRAJOLI, 2010). Nesse sentido, o garantismo aparece associado à
tradição clássica do pensamento penal liberal.
Importante ressaltar que, conforme a concepção de constitucionalismo aqui
defendida, há diversos tipos de garantismo, segundo o tipo de direito para cuja
proteção se predisponha ou prevejam as garantias como técnicas idôneas para
assegurar sua efetiva tutela e satisfação.
Desta feita, o infundado discurso amparado no terror midiático do “aumento da
criminalidade” se torna ainda mais desacreditado, juridicamente, quando posiciona o
garantismo como o causador maior do fenômeno criminoso, querendo se referir a
garantismo penal. Se tal discurso levasse em consideração que o garantismo nada
mais é que técnica idônea a assegurar direitos fundamentais, conheceria o garantismo
social e sua colocação acerca do causador do fenômeno criminoso teria ao menos um
fundamento legítimo.
Segundo Ferrajoli (2010), as garantias penais e processuais são garantias
essencialmente negativas, dirigidas a limitar o poder punitivo em defesa das
liberdades individuais. Essa ideia se identifica com o direito penal mínimo, ou seja,
com um sistema penal capaz de submeter a intervenção punitiva - seja na previsão
legal dos delitos, como na constatação judicial – a rígidos limites impostos em defesa
dos direitos da pessoa.
No que diz respeito ao delito, estes limites não são outros que as garantias
penais substanciais: o princípio da estrita legalidade ou taxatividade dos
comportamentos puníveis, além do da lesividade, materialidade e culpabilidade. Por
sua vez, os limites relativos ao processo correspondem às garantias processuais:
princípio do contraditório, a paridade de armas, a separação rígida do juízo e
acusação, a presunção de inocência, a carga da prova para quem acusa, a
publicidade, o princípio do juiz natural, dentre alguns outros.
Ainda como corolário do sistema garantista, devemos ter em mente que o poder
judicial não admite uma legitimação do tipo representativo ou consensual, mas
somente uma legitimação do tipo racional e legal. Não se pode castigar um cidadão
somente porque isso corresponde à vontade e aos interesses da maioria. Nenhuma
maioria, por mais esmagadora que seja, pode legitimar a condenação de um inocente
e a absolvição de um culpado (FERRAJOLI, 2010).
Nesse sentido, podemos afirmar que existe um nexo não somente entre o
direito penal mínimo e garantismo, mas também entre direito penal mínimo e
efetividade e legitimidade de todo o sistema penal. Somente um direito penal
651

concebido unicamente em função da tutela de bens primários e de direitos


fundamentais pode assegurar, junto à certeza e ao resto das garantias penais,
também a eficácia da jurisdição frente às formas, cada vez mais poderosas e
ameaçadoras da criminalidade organizada (FERRAJOLI, 2010)
E, somente um direito processual afastado do legado da emergência, ou seja,
da disparidade entre acusação e defesa e da excessiva discricionariedade na prisão
preventiva, pode oferecer fundamento robusto e crível à independência do poder
judiciário e seu papel de controle da ilegalidade dos poderes.
Verificamos hoje no Brasil uma espécie de supressão das garantias penais pelo
Poder Judiciário que, amparado numa legitimação de democracia política, ou seja, da
maioria, pretende cumprir uma atribuição que não lhe cabe, a de redução da
criminalidade. Infelizmente, não são raros os exemplos desta realidade.
Este fato gera uma verdadeira crise da jurisdição penal que reclama a
responsabilização tanto da legislação quanto da jurisdição, uma vez que agem unidas
por uma insensibilidade geral ao valor das garantias na correspondente submissão
das razões da exceção e da emergência. Essa insensibilidade constitui, sobretudo,
um sintoma de miopia e de falta de previsão (FERRAJOLI, 2010).
Por outro lado, Ferrajoli (2010) defende que somente uma política não
conjuntural da justiça, que assuma como objetivo prioritário e urgente a refundação
garantista da legalidade penal, poderá reabilitar, hoje, o primado da função legislativa
e limitar o poder dos juízes, ancorando-os à sujeição da lei e à sua função
cognoscitiva.
Desta feita, somente uma reforma desse tipo poderia por fim ao caos normativo,
restabelecer os limites entre jurisdição e legislação, entre justiça e política, e restituir
a credibilidade tanto de uma como da outra.

5 CONCLUSÃO

Conforme explanado na introdução deste trabalho, sua proposta consistia em


relembrar lições básicas, que, apesar de básicas, parecem ter sido esquecidas pelos
operadores do direito.
Desta feita, ainda que seja vontade unanime da maioria, dentro de um Estado
Democrático, o retorno à lei do talião não será possível pois o novo paradigma de
democracia constitucional, desenvolvido após os horrores vividos na segunda guerra
mundial, não permite a decisão acerca de questões ligadas à dignidade da pessoa
humana.
Ainda que sejam levantadas bandeiras, pela maioria, ligadas à introdução dos
meios de interrogatório “eficaz”, mais precisamente denominado de tortura, da
instituição de prisão perpétua ou até mesmo pena de morte, de igual forma, conforme
as lições básicas aqui expostas, não será possível, pois o constitucionalismo como
concebido atualmente veda a decisão acerca dessas questões.
Ainda que se tente conformar o “sentimento de impunidade” da maioria,
adotando-se procedimentos no âmbito da investigação policial que inobservam os
preceitos constitucionais, como por exemplo a condução coercitiva como meio de
obtenção de elemento informativo surpresa; bem como, no âmbito do processo
judicial, a execução provisória da pena, ou seja, antes do trânsito em julgado de
sentença penal condenatória, conforme os argumentos aqui explanados não será
possível, pois a Constituição Federal não admite a restrição de direitos fundamentais
do cidadão. O novo paradigma da democracia constitucional exige o respeito e a
efetividade das garantias penais e processuais, ainda que a maioria não esteja de
652

acordo. Apesar de se tratarem de lições básicas, nem os operadores da mais alta


corte da nossa República escaparam do esquecimento.
Apenas a título de exemplificação, vivemos atualmente uma situação,
questionável, de intervenção militar, que pode ser vista como um sintoma do
esquecimento da condição de ser humano dos moradores das comunidades
desfavorecidas da cidade do Rio de Janeiro. Independentemente de suas condutas,
as pessoas que lá vivem são Sujeitos, atores de suas vidas negligenciadas pelo
Estado na prestação de serviços básicos.
O mundo ocidental, após os horrores vividos com o regime nazista, elaborou
documentos internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
positivando o essencial, nossa condição de ser humano, a qual exige o devido
reconhecimento pelos poderes públicos, pelos Estados estrangeiros e por todas as
pessoas. Os documentos internacionais elaborados nesse sentido visam evitar,
terminantemente, que situações como as vividas na segunda guerra mundial se
repitam.
Como que inseridos num círculo vicioso, ainda que de forma inconsciente, hoje
clamamos pelo terrível processo de distinção entre pessoas. Especificamente na
realidade brasileira, criou-se um fantasioso estado de terror midiático, no qual o crime
é visto como uma guerra, fato este que justifica, pelo menos para a maioria, as
exceções empreendidas pelos poderes públicos.
Conforme já dito, nosso objetivo foi relembrar a importância do
Constitucionalismo que reconhece a toda e qualquer pessoa sua dignidade humana.
Para isso, analisamos a periculosidade da equivocada interpretação do termo
democracia, que coloca em risco iminente o próprio Estado de Direito,
especificamente na seara penal.
Partimos do pressuposto de que a democracia, na era moderna, não poderia
se limitar ao simples conceito de consenso da maioria, relembramos a importância do
novo paradigma da democracia constitucional pensado por Luigi Ferrajoli, o qual limita
a vontade da maioria, elegendo assuntos sobre os quais não cabe qualquer decisão,
determinando a atuação de cada um dos poderes públicos e, consequentemente,
reduzindo o seu nível de discricionariedade.
Relembramos ainda que o arbítrio estatal, consubstanciado no aumento do
poder punitivo, não pode ser legitimado diante do consenso da maioria, pois viola
direitos fundamentais do cidadão, positivados no nosso ordenamento jurídico, tanto
na Constituição Federal quanto nos Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil.
Parece estranho, mas o próprio Poder Judiciário Brasileiro necessita relembrar
o seu papel de poder contramajoritário, rever os seus pronunciamentos eivados de
carga valorativa quando não lhe cabe esse papel e atuar na efetividade das garantias
constitucionais, ao invés de interpretá-las de modo violador, amparado na vontade da
maioria, diante do contexto histórico e social no qual vivemos.
Enfim, esquece-se que direitos fundamentais não somente devem ser
respeitados como também efetivados. Esquece-se que o garantismo penal nada mais
é que a face constitucionalista do direito penal. Esquece-se que o ser humano não
perde sua condição de humano quando comete os atos mais desumanos que se
possa imaginar. Esquece-se que ao Poder Executivo cabe a função de prevenir os
delitos, reduzir a criminalidade, através de políticas públicas que concretizem direito
fundamentais como saúde, saneamento básico e educação. Esquece-se que ao
Poder legislativo cabe legislar em absoluta observância aos preceitos constitucionais,
concordem ou discordem destes, os parlamentares têm poderes limitados pela
Constituição Federal. Esquece-se que a função do poder Judiciário não consiste em
653

ditar a moralidade do país, muito menos em solucionar seus diversos problemas


conjunturais e estruturais, aos juízes cabe garantir direitos e aplicar a lei conforme os
preceitos constitucionais.
Nesse sentido, percebemos que a confusão empreendida por esses
esquecimentos, ainda que proposital, tem oportunizado a elevação das bandeiras de
ideias autoritárias, disfarçadas de avanço democrático.
Este trabalho se propôs a relembrar as lições que, apesar de básicas, são
negligenciadas diariamente pelos poderes públicos. Relembrar que a nossa
Constituição Federal de 1988 não permite a supressão de direitos fundamentais, ainda
que por meio de interpretação judicial casuísta. Relembrar que o garantismo penal
não é uma escolha, mas sim uma imposição do constitucionalismo na seara penal.
Desta forma, defendemos a resistência a toda e qualquer ideia que reduza a
proteção conferida pela nossa Constituição Federal ao ser humano, à pessoa
humana, ao cidadão brasileiro, independentemente de sua origem, raça, cor, credo,
orientação sexual, porque se apresenta como uma ideia rasa, vazia, infundada, sem
conhecimento do real papel do constitucionalismo, mais precisamente do garantismo
na esfera penal.

REFERÊNCIAS

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da


Constituição. 7ª Edição. Edições Almedina. Coimbra, 2003.
FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. 2ª Edição. Editora Trotta. Madrid,
2010.
TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. 10ª Edição. Editora Vozes. Petrópolis,
2012.
654

Grupo de trabalho:

DIREITO PENAL E
CRIMINOLOGIA II
Trabalhos publicados:

A INCOMPATIBILIDADE DO DIREITO PENAL DO INIMIGO COM O ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A PENA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: SUA FINALIDADE SEGUNDO


A TEORIA DO DIREITO PENAL LIBERTÁRIO.

A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA: UM BREVE DISCURSO SOBRE SUA


APLICAÇÃO NOS CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO

AS CONTRIBUIÇÕES DA NEUROCIÊNCIA PARA A EVOLUÇÃO DO SISTEMA DE


JUSTIÇA PENAL.

DIREITO AO ESQUECIMENTO: O SIGILO DOS REGISTROS CRIMINAIS DO


INDIVÍDUO EM RELAÇÃO A SUA CONDENAÇÃO

DROGAS: O PARADIGMA PROIBICIONISTA A SERVIÇO DO CAPITAL

TEORIA AGNÓSTICA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMO EM TEMPOS DE


NEOCONSTITUCIONALIMO
655

A INCOMPATIBILIDADE DO DIREITO PENAL DO INIMIGO COM O ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO
INCOMPATIBILITY OF THE ENEMY'S CRIMINAL LAW WITH THE DEMOCRATIC
STATE OF LAW

Matheus Amélio de Souza Bazzi


Giovane Santin

Resumo: Na presente pesquisa, realiza-se uma análise crítica sobre o direito penal
do inimigo, proposto pelo Prof. Dr. Günther Jakobs. Por esse prisma, e sem a
pretensão de esgotar o tema, questiona-se, a partir da criminologia crítica, garantismo
penal e direito penal mínimo, a introdução do conceito de inimigo no Estado
Democrático de Direito. Busca-se rebater os argumentos da proposta, com
fundamento no postulado da igualdade. Por fim, as considerações finais revelam que
o conceito de inimigo no direito penal democrático é inconcebível com a consequente
insuficiência do poder punitivo em resolver o problema no terrorismo.
Palavras-chave: Direito Penal do Inimigo; Democracia; Igualdade.

Abstract: In this research, is performed a critical analysis about the criminal law of the
enemy, proposed by Prof. Dr. Günther Jakobs. Based on this premise and without the
pretension of exhausting the subject, is questioned, starting from critical criminology,
criminal guaranteeism and minimum criminal law, the introduction of the concept of
enemy inside the Democratic State of Law. It seeks to rebut the arguments of the
proposal, based on the postulate of equality. Lastly, the final considerations reveal that
the concept of an enemy in democratic criminal law is inconceivable with the
consequent failure of the punitive power in solve the problem of terrorism.
Keywords: Criminal Law of The Enemy; Democracy; Equality.

1. INTRODUÇÃO

É sabido que, com o avanço da epistemologia do direito penal, a moderna


dogmática pós-finalista tem atribuído mais importância aos juízos de valores,
introduzindo-os na normatividade (BITENCOURT, 2017, p. 132). O processo de
sistematização do direito penal que antes era concebido como sistema fechado – isto
é, somente dentro da formalidade da norma –, deixou de o ser aos adeptos do
moderno sistema funcional.
Em 1970, Claus Roxin apresenta, com o funcionalismo teleológico, a inserção
da política criminal no campo das categorias teórico-criminais, asseverando que “o
caminho correto só pode ser deixar as decisões valorativas político-criminais
introduzirem-se no sistema do direito penal” de modo que a “submissão ao direito e
adequação a fins político-criminais [...] não podem contradizer-se, mas devem ser
unidas numa síntese, da mesma forma que Estado de Direito e Estado Social não são
opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidade dialética” (ROXIN, 2000, p. 20).
Essa relação do direito penal com a política criminal tem o objetivo de resolver
os problemas deixados pelo modelos de sistematização antigos, por exemplo, o
causalismo (Liszt, Beling e Radbruch) e o finalismo (Welzel) (ABREU e ABREU, 2016,
p. 228), propondo uma interpretação não só normativa, mas também com atenção aos
pressupostos formuladores dos fins penais.
Os principais pensadores dessa moderna forma de estruturação científica do
direito penal, Claus Roxin (funcionalismo teleológico) e Günther Jakobs (funcionalismo
656

sistêmico), divergem no tocante aos fins do direito penal. Enquanto o primeiro defende
que a função do direito penal é a proteção de bens jurídicos, o segundo propõe como
sua missão a tutela de vigência da norma, mantendo-se incólume a expectativa
normativa do corpo social.
Jakobs apresenta uma divisão entre pessoas de não-pessoas – ponto de
análise do presente escrito. Portanto, passa-se a expor de forma um pouco mais
detalhada a visão dualista proposta pelo Professor da Universidade de Bonn.

2. UMA VISÃO DICOTÔMICA DO DIREITO PENAL

O Prof. Dr. Günther Jakobs acredita no uso da pena – ou da medida de


contenção – como método de combate à criminalidade, propondo uma cisão do direito
penal de acordo com as características dos desviantes (autores de injustos). Dessa
forma, segundo leciona o Professor, o sistema punitivo deve ser estruturado de forma
a se valer de dois polos, ou seja, um duplo sistema de imputação: o do cidadão –
denominado de direito penal do cidadão – e o do inimigo – chamado de direito penal
do inimigo. Nesse modelo, ao cidadão, as garantias fundamentais são respeitadas, ao
passo que o inimigo é despersonalizado.
A pena criminal assume como missão a estabilização da vigência normativa,
se justificando como uma reação do direito frente à violação de uma norma positivada
(JAKOBS e MELIÁ, 2015, p. 34). Trata-se de uma (re)afirmação da norma, que
continua a ter eficácia e, portanto, pretende direcionar os comportamentos
massificados dentro de seus moldes, ou seja, dentro da normatividade. Nesse sentido,
“o fato, como ato de uma pessoa racional, significa algo, significa uma desautorização
da norma, um ataque a sua vigência” e a resposta dada pela pena criminal demonstra
que “a norma segue vigente sem modificações” (JAKOBS e MELIÁ, 2015, p. 22).
A partir da norma, surgem as expectativas sociais, dito de outro modo, os
indivíduos devem cumprir com os mandamentos legislativos e esperar que sejam
cumpridos também pelas demais pessoas da sociedade. Então, com a transgressão,
surge concretamente o poder punitivo, se materializando para o cidadão como uma
contradição à violação normativa e para o inimigo como puro impedimento físico
(neutralização).
A resposta do poder punitivo ao cidadão é dada em razão de um fato punível
passado, tendo como sua natureza a negação da validade da norma, isto é, a pena
criminal é a retribuição do poder punitivo – com o objetivo de afirmar a validade do
preceito normativo violado – em virtude da transgressão ao mandamento normativo.
Por outro lado, a pena é idealizada para o inimigo como uma medida de força,
traduzida como custódia de segurança (JAKOBS e MELIÁ, 2015, p. 22-23), visando
previnir a ocorrência de um fato punível, ou seja, uma coerção antecipada frente a um
perigo (abstrato) de futura negação de validade da norma.
Essa concepção prospectiva de um fato punível e sua contenção antecipada –
através da coerção penal – apenas desmascara a batalha entre eles e nós; os hostis
e os cidadãos; os centralizados e os marginalizados. É dizer: o direito penal do inimigo
somente retira o véu (ZAFFARONI, 2007, p. 9) de uma situação já evidente aos olhos
das ciências sócio-criminais empíricas. O sistema de justiça criminal historicamente
desenhou (e continua desenhando) uma linha divisória entre aqueles que são
criminalizados, sendo claramente evidenciada a cisão entre pessoas e não-pessoas
(unpersonen).
O poder punitivo retira do inimigo seu status de pessoa, não sendo necessária
a manutenção das mesmas garantias atribuídas ao cidadão, na medida em que o
657

instrumento de controle visualiza nele um adversário a ser derrotado, uma fonte de


perigo a ser eliminada (JAKOBS e MELIÁ, 2015, p. 34), seja através de um mero
impedimento físico – medida de pura contenção – ou por sua morte.
O Professor de Bonn atribui a condição de inimigo aos marginalizados que
praticam condutas destinadas à destruição do corpo social – com maior atenção aos
terroristas –, objetivando “destruir as fontes dos terroristas e dominá-los, ou, melhor,
matá-los diretamente, assumindo com isso, também o homicídio de seres humanos
inocentes, chamado dano colateral” (JAKOBS e MELIÁ, 2015, p. 39), o que não seria
sequer admissível, ao menos dentro do Estado de direito, se fossem consideradas
como pessoas, justamente por essa razão é que se teoriza a retirada da natureza de
pessoa do indivíduo considerado hostil, para fins de sua “legitimação”.
A racionalidade da teoria é determinada pelo grau de expectativa normativa do
agente. Portanto, o inimigo é o indivíduo desconhecedor da importância de preservar
o Estado institucionalizado, aquele que traça sua conduta para fora da normatividade
e desafia todo o corpo social. Assim, é entendido como sendo o agente causador de
perigo à sociedade, devendo ser excluído dela. De acordo com Jakobs, “um indivíduo
que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar
dos benefícios do conceito de pessoa” (JAKOBS e MELIÁ, 2015, p. 35).
Interessante que originalmente o direito penal do inimigo deveria funcionar
como medida de estanque aos avanços e enrijecimento das legislações criminais das
últimas décadas, sendo sua missão reconhecer o fenômeno e freá-lo normativamente.
De acordo com Luís Greco (2005, apud ABREU e ABREU, 2016, p. 229) Jakobs
“tentou fixar limites materiais à ‘criminalização no estado prévio à lesão a bem
jurídico’”. Apesar disso, o discurso foi assumindo sua forma de arbítrio conhecida hoje
(ZAFFARONI, 2007, p. 157), sendo teorizada como aplicável na democracia, porém,
em verdade, inconcebível em um Estado Democrático de Direito.

3. DIREITO PENAL DO INIMIGO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Quando se pensa em Estado Democrático de Direito, a ideia de igualdade logo


se aflora no mais amplo plano cognoscitivo do termo. Afinal, a democracia serve para
que, senão para assegurar aos desfavorecidos o sentimento (pelo menos idealizado)
de igualdade? Certamente que seu dever não é “assegurar o domínio das maiorias.
Se esse fosse o seu sentido, em nada ela se diferenciaria de uma tirania. Ela existe
exatamente para impedir que os diferentes sejam violentados pelos que se dizem
agentes de uma moralidade aparentemente hegemônica” (KHALED JR, 2016, p. 147).
À democracia não é permitido reproduzir tratamento penal extremamente
gravoso a alguns e a outros – a maioria – garantir os direitos consagrados na Carta
Magna de um Estado de Direito. A instabilidade promovida por tal noção leva o próprio
Estado, que se teoriza proteger, à ruína. É da natureza, pois, do poder, em sua mais
pura acepção, contaminar paulatinamente a estrutura organizacional do corpo social,
sempre em busca de mais poder.
Os critérios obscuros do punitivismo – como a negação a eles de sua condição
de pessoa; a punição antecipada; a periculosidade como forma de reprovação criminal
et cetera, características fundantes do direito penal do (autor) inimigo – decepam a
principal regra que funda a democracia: a igualdade.
O Estado Democrático de Direito é marcado por limites rígidos destinados a
conter as engrenagens da máquina de dominação, que se convém chamar de poder
punitivo. Precisamente, as garantias fundamentais se estabelecem como verdadeira
– e principal – defesa dos indivíduos frente ao uso imoderado do poder.
658

Portanto, a dicotomia apresentada pela teoria funcionalista-sistêmica implica


na ruptura desse marco civilizatório, na medida em que a quebra da igualdade
enraizada nas Cartas Democráticas suficientemente direciona a transformação do
Estado de Direito em Estado Absoluto.
Nesse contexto, Cirino dos Santos (2017, p. 20) leciona que:

[...] se o princípio de igualdade perante a lei é substituído pelo princípio da


desigualdade legal, ou se as garantias constitucionais do processo legal
devido são casuísmos dependentes do tipo de autor – aplicadas ao
cidadão e negadas ao inimigo, conforme preferências idiossincráticas dos
agentes de controle social –, então o Estado Democrático de Direito está
sendo deslocado pelo estado policial.

Não obstante a proposta teória tentar idealizar uma contenção do direito penal
do inimigo dentro do Estado de Direito, de modo a não contaminar o direito penal do
cidadão – o que, de outro modo, permitira que o poder punitivo fosse ilimitado não só
quanto aos inimigos (eles), mas também quanto aos cidadãos (nós) –, um conceito
normativo de inimigo só é possível dentro do Estado Absoluto (ZAFFARONI, 2007, p.
159-161), em razão da obrigatória ruptura da espinha dorçal do Estado de Direito. Os
limites jurídicos seriam perdidos, porque o próprio instrumento de controle selecionaria
quem são os desviantes – o que já acontece ilegalmente se tornaria legal.
Ademais, com seu incremento à normatividade, os chamados inimigos podem
se transvestir de cidadãos, fazendo com que se tornem adversários do poder, tendo
a possibilidade de serem tratados “legitimamente” como tal. Do mesmo modo, ainda
conforme Eugenio Raúl Zaffaroni, aqueles membros da sociedade civil personalizada
que protegerem ou permanecerem apartidários serão abrangidos na mesma
categoria, sendo despersonalizados também. Assim, “qualquer resistência ou
limitação jurídica que se pretenda opor ao poder será considerada subversiva ou
traidora e quem a tentar correrá sérios perigos” (ZAFFARONI, 2007, p. 149).
Salo de Carvalho (2015, p. 113), referenciando Luigi Ferrajoli, leciona que a
teoria funcionalista-sistêmica de Jakobs é:

[...] Fundada em uma racionalidade inquisitória de alta intensidade


beligerante que sobrepõe a razão de Estado ao Estado de direito – razão
de Estado entendida como um princípio normativo da política que
transforma o ente público em um bem autônomo e próprio de tutela, cujo
objetivo primário e incondicionado da ação governamental (meio) é a sua
conservação e ampliação (fim) –, a proposta punitiva de neutralização dos
grupos de risco pode ser resumida na máxima de que contra o terror das
organizações criminosas é legítimo o terrorismo de Estado.

Ainda de acordo com Carvalho (2015, p. 114), “o discurso que instrumentaliza


suas práticas é altamente volátil, fator que produz um alargamento de fronteiras de
possibilidade de incidência repressiva”. Desse modo, Zaffaroni (2007, p. 161) é
enfático em dizer que “não há nada capaz de impedir que o Estado no qual se introduz
o conceito de inimigo acabe em Estado absoluto”.
Dentro dessa seara arbitrária do poder repressivo, Ferrajoli (2014, p. 463)
explica que:

[...] o pensamento penal autoritário [...] busca construir, por meio das
vertentes opostas do determininsmo positivista e do subjetivismo idealista,
tipologias e classificações de autores e delinquentes em substituição às
tipologias e classificações de ações e delitos: antropologias e antrometrias
659

somáticas – de conformidade com a elaboração de repertórios clínicos e


fisionômicos de ‘delinquentes naturais’ – e tipologias morais, políticas e
sociais – de conformidade com a definição das distintas desviações
mentais ou morais, das quais os variados tipos de delitos seriam sintomas
e efeitos.

Por esse caminho, o ente soberano deixaria de se preocupar com fatos e passa
a se interessar pelos autores, ficando autorizado a punir através de uma prognose de
lesão futura à norma, isto é, punição direcionada antecipadamente aos que são
considerados propensos a delinquir, em prol, é claro, do bem coletivo – ou, adotando
o discurso, da tutela do valor normativo.
Com efeito, permitir que categorias antidemocráticas e discriminalizatórias
encontrem espaço na (já) (i)legitítima máquina de destruição – o sistema de justiça
criminal – não traria a possibilidade de conter a violência por permití-la, mas de
expandí-la de forma exponencial, consumindo toda a estrutura dos direitos e garantias
individuais.
Significa dizer que implementar no dever ser o que já ocorre no plano do ser
com o objetivo de impor limites a isso, geraria o efeito contrário, isto é, ganharia
amplitudes antes inconcebíveis, mas, dessa vez, legítimadas pelo discurso
criminalizante. Conforme Cirino dos Santos (2017, p. 18):

[...] as ideias complementares de estabilização das expectativas


normativas do Direito Penal do cidadão e de eliminação antecipada do
Direito Penal do inimigo integram o tradicional discurso ideológico
encobridor da função real de garantia das desigualdades sociais realizada
pelo Direito Penal nas sociedades modernas – conforme demonstra
BARATTA –, mas com uma diferença essencial: a forma igual do Direito
Penal do cidadão garante as desigualdades sociais, a forma desigual do
Direito Penal do inimigo amplia as desigualdades sociais garantidas.

Diante disso, indaga-se se situações emergenciais legitimariam a exeção? A


resposta deve ser absolutamente negativa, pois as excepcionalidades podem
facilmente subvergirem-se à perenidade, isto é, a exeção como regra quando aquele
que detém o poder assim o quer. Precisamente, o arbítrio, ilusóriamente delimitado,
define e expande o que se entende por emergência. Para isso, o poder determina
quem é inimigo, apresenta um discurso que minimaliza as possibilidades de triunfo
sobre ele, ou encontra outro tipo ideal de inimigo para substituí-lo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se tem visto, a modernidade atribui a solução da irracionalidade – aqui


entendida como violência – ao mecanismo de dominação mais violento do Estado, o
direito penal. Efetivamente, o direito penal não se presta a resolver sequer os
problemas mais antigos da civilização – como, por exemplo, o homicídio, o estupro, o
roubo et cetera –, já tendo se provado inútil para o combate à criminalidade –
fenômeno criado por ele mesmo –, mas continua sendo louvado como se salvação
social fosse.
Nesse contexto, Zaffaroni (2007, p. 185), utilizando a lógica do quitandeiro,
leciona com precisão:

[...] Se uma pessoa vai a uma quitanda e pede um antibiótico, o quitandeiro


lhe dirá para ir à farmácia, porque ele só vende verduras. Nós, os
penalistas, devemos dar este tipo de resposta saudável sempre que nos
660

perguntam o que fazer com um conflito que ninguém sabe como resolver
e ao qual, como falsa solução, é atribuída natureza penal.

Geralmente, julgamo-nos obrigados a opinar sobre como resolvê-lo,


quando, na realidade, não o sabemos. O correto seria que procedêssemos
como o sábio quitandeiro: nós só sabemos decidir quando se habilita, ou
não, o poder punitivo, e também sabemos que, no caso, isso não serve ou
não é suficiente para resolver o conflito.

Ainda de acordo com Zaffaroni (2007, p. 185), quando se pergunta o que pode,
afinal, o direito penal fazer, “a resposta é bastante óbvia: se ninguém faz nada, o
direito penal nada pode fazer; se delitos são cometidos, seus reponsáveis devem ser
individualizados, detidos, processados, julgados condenados e levados a cumprir
pena. É isso que o direito penal pode fazer”.
Fato é que o encarceramento aliado à rigidez da legislação criminal não
reduzem a criminalidade, sendo possível, assim, de acordo com Carvalho (2015, p.
110), diferentes contextos sociais apresentarem caracteristicas criminais próprias
como “(a) altas taxas de encarceramento e expressivo índice de criminalidade; (b)
elevada taxa de encarceramento e baixo índice de criminalidade; (c) baixo nível de
prisionalização e expressivo número de delitos; ou (d) reduzidas taxas de
encarceramento e reduzido nível de delito”.
Conclusivamente, o direito penal democrático não comporta o etiquetamento
dualista de indivíduos proposto por Jakobs. O primado da igualdade não suportaria
uma desigualdade positivada. Tal fato importaria na corrosão – causada pela
ampliação da barbárie – do Estado Democrático de Direito, que se transmutaria
intermediariamente ao Estado de Polícia até atingir o Estado Absoluto (SANTOS,
2017, p. 20), sendo o inimigo um conceito manipulável pela máquina da barbárie.

REFERÊNCIAS

ABREU, Ana Claudia da Silva; ABREU, Guilherme Schroeder. Terrorismo x Princípio


da Legalidade: Os Reflexos do Direito Penal do Inimigo na Lei n. 13.260/16. In: Revista
de Criminologias e Políticas Criminais v. 2. Curitiba - Jul/Dez. 2016.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral - 23. ed. rev.,
ampl. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2017.
CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2.ed.
- São Paulo: Saraiva, 2015.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4.ed. rev. - São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2014.
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas,
org. e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 6.ed., 2. tir. Livraria do
Advogado Editora: Porto Alegre, 2015.
KHALED JR, Salah H. Discurso de ódio e sistema penal. Belo Horizonte. Casa do
Direito: Letramento, 2016.
ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. trad. Luís Greco. – Rio de
Janeiro: Renovar, 2000.
SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal
desigual. Disponível em: http://icpc.org.br/wp-
content/uploads/2012/05/direito_penal_do_inimigo.pdf. Acesso em: 05 de janeiro de
2018.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. 2. Ed.
– Rio de Janeiro: Revan, 2007.
661

A PENA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: SUA FINALIDADE SEGUNDO


A TEORIA DO DIREITO PENAL LIBERTÁRIO.
THE PENALTY IN THE DEMOCRATIC STATE OF LAW: ITS PURPOSE
ACCORDING TO THE TEORIA DO DIREITO PENAL LIBERTÁRIO

Bruna Paula do Nascimento


Marlon Evilyn Martins Procópio
Marcos Paulo Andrade Bianchini

Resumo: O estudo propôs verificar a finalidade da pena no paradigma do Estado


Democrático de Direito sob a ótica da teoria do Direito Penal Libertário e se a
prevenção geral positiva sob a ótica da Teoria do Direito Penal Libertário fornece uma
finalidade para coerção penal compatível com o paradigma do Estado Democrático
de Direito. O objetivo geral da pesquisa é analisar se o Direito Penal Libertário oferece
uma teoria da pena consentânea ao paradigma do Estado Democrático de Direito.
Para alcançar o objetivo geral, teve como objetivos específicos pesquisar a teoria do
direito penal libertário, e, analisar a teoria da pena no paradigma do Estado
Democrático de Direito. O trabalho tem natureza compreensivo analítica, pois buscou
reconstruir os dados analisados na perspectiva do Estado Democrático de Direito.
Palavras chave: Direito Penal Libertário. Pena. Dignidade da pessoa humana.

ABSTRACT: The study proposed to verify the purpose of the sentence in the paradigm
of the Democratic State of Law from the point of view of the theory of the Teoria do
Direito Penal Libertário and if the general positive prevention from the point provides a
purpose for criminal coercion compatible with the paradigm of Democratic state. The
general objective of the research is to analyze whether the Criminal Law of the
Liberation offers a theory of the penalty in line with the paradigm of the Democratic
State of Law. In order to reach the general objective, it had specific objectives to
investigate the Teoria do Direito Penal Libertário, and, to analyze the theory of the pen
in the paradigm of the Democratic State of Right. The work comprehensive nature,
since it sought to reconstruct the analyzed data from the perspective of the Democratic
State of Law.
Keywords: Teoria do direito penal libertário. Feather. Dignity of human person.

1 INTRODUÇÃO

O trabalho analisou a teoria da pena sob o prisma do Direito Penal Libertário,


que tem o sistema penal como instrumento de criação de liberdade, sendo a
expressão das aspirações iluministas. O direito penal é fruto de um contrato social no
qual os cidadãos renunciam uma parte de sua liberdade, como criaturas, para criar
uma ordem comum que lhes garantam liberdade, como superação do incerto e
vulnerável estado de natureza. Daí o Estado passa a ser um ente controlador que, em
caso de necessidade, pode e dá a medida de suas capacidades para garantir a
liberdade dos cidadãos (HASSEMER, 2007, p. 7).
Assim, há uma releitura da ideia pingente de que os diplomas penais sejam
instrumentos repressores e, sim, diplomas libertários que garantem e promove a
liberdade ao proteger os cidadãos das ingerências do Estado e de outros particulares.
A violação ao direito fundamental à liberdade só se justifica à medida que a
pena privativa de liberdade seja encarada como ultima ratio.
662

A pergunta que se buscou responder é: a prevenção geral positiva sob a ótica


da Teoria do Direito Penal Libertário fornece uma finalidade para coerção penal
compatível com o paradigma do Estado Democrático de Direito?
O objetivo geral da pesquisa é analisar se o Direito Penal Libertário oferece
uma teoria da pena consentânea ao paradigma do Estado Democrático de Direito.
Para alcançar o objetivo geral, teve como objetivos específicos: a) pesquisar a
teoria do direito penal libertário; b) analisar a teoria da pena no paradigma do Estado
Democrático de Direito.
A pesquisa seguiu o tipo metodológico descritivo-compreensivo (GUSTIN;
DIAS, 2014, p. 25), uma vez que analisará a teoria da pena sob a luz do Direito Penal
Libertário e os fundamentos da pena no paradigma Estado Democrático de Direito.
Também é do tipo jurídico propositivo (GUSTIN; DIAS, 2014, p. 29), uma vez
que se propõe a aplicação da teoria do Direito Penal Libertário para a interpretação e
aplicação das normais materiais e processuais penais.
Quanto à natureza dos dados, são primários a CRFB/1988, as leis, resoluções
e demais normas. São dados secundários da pesquisa a opinião dos pesquisadores
a respeito do Direito Constitucional, do Direito Penal e dos Direitos Humanos e suas
interpretações, além de literaturas específicas que abordam as teorias que serão
discutidas e as legislações comentadas.
O trabalho tem natureza compreensivo analítica, pois buscou reconstruir os
dados analisados na perspectiva do Estado Democrático de Direito.

2 DESENVOLVIMENTO

À primeira vista a teoria do Direito Penal Libertário parece ser o contrário do


“direito penal”, que se revela por meio dos seus instrumentos de coação, citando a
pena de liberdade, a pena de multa, as prisões cautelares, o confisco de patrimônio,
que mais pode lembrar roubo e a limitação da liberdade do que a sua criação ou
promoção (HASSEMER, 2007, p. xv).
Na realidade, a lembrança sé correta, haja vista que o direito penal no cotidiano
exerce a coação, causa danos temporários e depois os retira, como por exemplo, nas
prisões preventivas que, segundo princípios constitucionais num Estado de Direito,
seus cidadãos de imediato deveriam ser considerados inocentes. Ademais, a
condenação de pena privativa a liberdade, mantém seres humanos encarcerados por
anos, até décadas. Em que pese todas as críticas, o direito penal até a atualidade tem
operado um verdadeiro “esbulho da liberdade” (HASSEMER, 2007, p. xv).
O direito fundamental à liberdade nasce junto com o Estado de Direito e é
considerado como direito de 1ª dimensão1. O advento do Estado de Direito, da forma
como se manifesta na modernidade, tem como característica a submissão de todos a
um regime de Direito, que no pano de fundo (background) das revoluções burguesas,
o exercício do poder se manifestaria somente quando autorizado pela ordem jurídica
em vigor. Aos indivíduos foram conferidos meios jurisdicionais para corrigir qualquer
abuso cometido (CHEVALIER, 2013, p. 14).
Foi no Estado de Direito que houve a releitura da visão patrimonialista feudal,
regime que concebia o homem como um “meio”. Com o advento do Estado de Direito

1
Ver mais sobre as gerações/dimensões de direito em: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. atual. São
Paulo: Malheiros, 2004, 206 p.; SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, 520 p.; SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Editora
Lumen Juris, 2006, 282 p.
663

se passou a considerar o homem como um fim em si mesmo, como aquele que deve
ser o destinatário de direitos: centro e finalidade de todas as instituições e
organizações políticas (ROCHA, 2004, p. 72).
O legislativo, que se revelou como representante da nação, foi elevado nessa
ocasião para o vértice da pirâmide na estrutura do Estado, haja vista que os homens
ficaram deslumbrados com a possibilidade de positivação dos costumes e tradições,
dos valores da sociedade, por meio de leis escritas (GRACCO, 2016, p. 10).
Foi nesse paradigma do Estado de Direito, chamado de Estado de Direito
Liberal, que se instalou um sistema de regras com objetivo de estabilizar as
expectativas de comportamento e garantir a esfera privada da liberdade do indivíduo,
frente aos seus iguais e, sobretudo, frente ao Estado (FERNANDES, 2012, p. 70).
Desde então, logo no nascedouro do Estado de Direito, as Constituições
impõem ao Estado um comportamento negativo, abstencionista, de não intervenção;
limitando assim a ação do Estado e daqueles que estão no exercício do poder, a fim
de garantir formalmente e efetivamente os direitos fundamentais de 1ª dimensão: em
primeiro a liberdade, juntamente com a igualdade e a propriedade (ROCHA, 2004, p.
71).
Por isso, o direito penal, desde o nascedouro do Estado de Direito, deve sempre
ser a ultima ratio, (HASSEMER, 2007, p. xvi).
Nos tempos modernos o direito penal tem se modernizado, em decorrência das
constelações e relações modernas, como se vê, por exemplo, no direito penal
econômico, direito penal ambiental, ou no direito penal tributário. São especiais soft
law que mais controlam, fiscalizam, negociam, ameaçam, do que realmente punem.
Essa burocratização do direito penal (white collars) não elimina os problemas do
direito penal sangrento (blue collars), pois enquanto houver estupros, homicídios e
roubos permanecerá atuando o direito penal com seus instrumentos de limitação da
liberdade (HASSEMER, 2007, p. xvi).
De forma diferente do controle social operado pela família, trabalho, mídia, etc.,
o direito penal atual com controle social vinculando às promessas e garantias “cuja
tarefa é, nos conflitos de normas mais difíceis entre os seres humanos, garantir e
poupar, da forma mais ampla possível, os direitos fundamentais dos envolvidos”
(HASSEMER, 2007, p. xvii).
O direito penal libertário entende e justifica a punição estatal como a forma de
garantir a resistência das normas fundamentais de um ordenamento jurídico, não
somente as vedações contidas no direito penal material, mas, também, as garantias
de liberdade que encontram espeque no processo penal que deve ser constitucional:
“a pena somente é apropriada e justificada quando da violação de bens jurídicos vitais
de direito penal, porém não para apoiar os desejos por solução de problemas vagos
e amplos demais” (HASSEMER, 2007, p. 81).
Nesse sentido a pena encontra-se justificativa e legitimidade em relação ao seu
conceito (o que significa) e em relação ao fim da sua própria instituição (para qual
finalidade), com isso, há a orientação da pena para uma direção futura, isto é, sua
finalidade.
Por isso, a pena deve ter um tom decisivamente moderno. Seria irracional a
pena ter por finalidade o acréscimo do mal, uma mera retribuição por um crime
cometido anteriormente. Essa finalidade da pena deve ser esquecida, como defende
o direito penal libertário. A pena deve conduzir o olhar ao futuro e organizar o sistema
penal de forma que as infrações penais não se repitam (HASSEMER, 2007, p. 82).
Na atualidade o direito penal e a pena são considerados o remédio para todos
os males e tem sido “promovidos à posição de portadores de esperança para a
664

solução dos grandes problemas sociais e políticos e uma ‘demanda urgente de ação’,
se associa ao aumento das vedações penais, das intervenções e das sanções”
(HASSEMER, 2007, p. 83).
Com isso, a tendência nas práxis moderna tem sido a retomada a ideia da
finalidade da retribuição do mal cometido, e na opinião de outros estudiosos, a pena
serve para ressocialização do criminoso e intimidação de criminosos potenciais, isto
é, de nós todos.
Como visto, o sentido da pena como retribuição encontra seu fundamento
teórico em Kant, no seu exemplo da Ilha: antes que os homens abandonasse a ilha
por eles habitada, antes que houvesse a dissolução daquela sociedade, o ultimo
homicida da prisão devera ser executado, não que se mostrasse uma amaça para
outros, ou, porque ele deveria ser ressocializado; mas para que ele experimentasse o
quando custaram as suas ações e, assim, a justiça seria satisfeita: “de modo que cada
um recebesse o que merecem seus atos e a culpa sangrenta não recaísse sobre o
povo, que não fez por merecer essa punição, mas poderia ser considerado cúmplice
nessa violação pública da justiça” (KANT, 2005, p. 72).
O direito penal deve apontar para o futuro, para um futuro melhor, e não para o
passado com uma atitude vingativa, que só faz tornar nebuloso o presente e dificultar
o progresso social.
Também o direito penal não se relaciona apenas com o autor e a vítima, pois
não estão sozinhos quando há violação das normas do ordenamento jurídico. Todo o
corpo social é atingido pela infração, mesmo que a violação aos bens jurídicos não
seja perceptível para todos. Isso porque

A lei penal protege os bens jurídicos e, sem esse seu reconhecimento,


não poderíamos mais, atualmente, viver em comunidade, em
conformidade com nosso entendimento social e de acordo com nossa
opinião constituída democraticamente: a segurança fundamental dos
pressupostos da dignidade humana, acima de tudo, da vida, da liberdade,
da saúde, da honra, da propriedade e das condições necessárias para um
coletivização ao mesmo tempo libertária e exitosa (HASSEMER, 2007, p.
89).

O crime viola mandamentos de comportamento assegurados em bens jurídicos.


Por isso, a violação a essas normas de comportamento vai para além da vítima, e
atende a sociedade. Esses mandamentos comportamentais só sobrevivem se a
fratura causada pelo crime for corrigida de forma pública e enfática, ocasião em que
a sociedade esclarecerá que qualquer rompimento da norma não será aceito e
tampouco tolerado; que se condena toda violação e insiste-se na vigência da
normatividade; que não será permitida a continuidade da sua negação.
Obrigatoriamente, a pena privativa de liberdade não é a única a ser aplicava como
sanção; a reprimenda e a desaprovação poderiam, a depender do caso, ser suficiente.
Entretanto, a aplicação da penalidade deve se dar sempre nos limites da liberdade,
que para o direito penal libertário, sua observância é obrigatória (HASSEMER, 2007,
p. 89).

A posição do sistema jurídico-penal situa-se no campo do controle social,


o sistema jurídico-penal é uma das suas partes. Ele tem os elementos
estruturais que os outros âmbitos do controle social: norma, sanção,
processo. A norma define a conduta desviante como criminosa, a sanção
é a reação ligada ao desvio, o processo é o prolongamento da norma e da
sanção à realidade. O Direito Penal é uma forma de transformação social
de conflitos desviantes. Por isso ele reage também com as tarefas que o
665

controle social cumpre em nossa vida cotidiana. Ele assegura as


expectativas de conduta, determina os limites da liberdade da ação
humana, é um meio de desenvolvimento cultural e socialização. Estes são
os aspectos que o sistema jurídico-penal tem em comum com os outros
âmbitos do controle social (HASSEMER, 2005, p. 415).

Dessa forma, a pena se orienta para o passado e para o futuro. Para o passado
porque o rompimento da norma é irrenunciável para a vida coletiva. Para o futuro
porque assegura que possíveis violações futuras encontraram a força de resistência
da normatividade. Por isso, o papel do direito penal ocupa no ordenamento jurídico,
haja vista que a tendência moderna se revela com a erosão de normas e mudança
rápida de valores, que compromete a validade das normas. O direito penal, então, se
revela como um cânon dos mandamentos fundamentais e irrenunciáveis de uma
sociedade, e, os impõe (HASSEMER, 2007, p. 90).
Para o direito penal libertário, a prevenção geral positiva, como vista e tratada
no parágrafo anterior, possui consequências relevantes importantes como se passa a
definir: (i) os objetivos da pena, no que diz respeito à recuperação do agente e
intimidação geral, tem seu lugar pois também são meios que reafirmar as normas
fundamentais; (ii) a manifestação do direito penal é um evento publico e transmite de
forma fiel e clara a estabilização das normas violadas; (iii) a imputação da pena e sua
execução devem levar em conta as peculiaridades subjetivas do o autor do fato; (iv) a
justiça criminal deve ter segurança formalizada para busca da verdade, clareza no
caso sob judice e obrigatoriedade de uma decisão fundamentada (HASSEMER, 2007,
p. 90).

Se se observa a ameaça de pena e a execução da pena além dos limites


da visão jurídica como parte do controle social, revelam-se o seu sentido
e a sua tarefa irrenunciável. Elas podem e devem, em relação e à
diferença das outras instancias de socialização, afirmar e assegurar
pública e expressamente as normas fundamentais da nossa sociedade.
Em tal aspecto se cumpre a tarefa preventivo geral do Direito Penal, mas
não só com a criminalização com o agravamento de pena, senão também
com a descriminalização e a atenuação da pena. Esta teoria da prevenção
geral positiva – diferentemente da teoria da “prevenção por integração” –
obriga o direito penal a revelar-se, através da sua formalização do controle
social, como modelo de uma relação humana com a conduta desviante.
Ela vincula a teria da pena com a teoria do Direito penal (HASSEMER,
2005, p. 434).

Já a prevenção especial, para o Direito Penal Libertário, seria incompatível com


o Estado de Direito, uma vez que o tratamento imposto aos infratores se revela como
uma intervenção desproporcional do Estado na vida individual, pois seria impossível
definir o período necessário para a terapia e não há constatações empíricas dos
efeitos desse “tratamento” (HASSEMER, 2007, p. 103).
Ademais, o conceito de ressocialização é incerto e volátil, isso em uma mesma
nação, o que torna difícil a determinação do objetivo que se possa chegar em uma
atuação estatal para prevenção especial. Isso faz com que a teoria da prevenção
especial padeça de legitimação (HASSEMER, 2007, p. 104).
O crescente interesse em uma execução penal ressocializante, traz, a menos,
uma contribuição: a busca por alternativas diversas à pena privativa de liberdade.
“Deve-se desligar o pensamento da ressocialização da estreita ligação que ele
contraiu com a pena privativa de liberdade” (HASSEMER, 2007, p. 105).
666

Nesse sentido, Foucault em sua clássica obra “vigiar e punir” já alertava desde
o século passado sobre a realidade da falência das penas privativas de liberdade e a
necessidade de se buscar métodos diversos para manifestação da penalidade por
meio da justiça criminal (FOUCAULT, 2014, p. 264-266).
Em que pese as promessas da prevenção geral positiva, sua contribuição, do
ponto de vista Libertário, se daria pela busca incessantes de medidas que substituísse
a pena privativa de liberdade e reafirmasse as normas do sistema jurídico, sob pena
de faltar a justiça penal legitimidade e eficácia.
Nos crimes relacionados à corrupção, por exemplo, é uma das circunstâncias
que não devemos ter esperança sobre a efetividade do direito penal. Não se sabe se
a recuperação do autor do fato e a intimidação da sociedade em geral funcionariam
realmente. Seria simplista demais, também, aguardar por tanto tempo aplicação do
direito penal até que seus efeitos primários e secundários pudessem ser
empiricamente avaliados (HASSEMER, 2007, p. 93).
O grande problema é que as expectativas da atualidade de estabilização das
normas são depositadas no direito penal. Com isso, há uma verdadeira corrida para a
expansão do direito penal, com proposta de criação de novos tipos penais e proteção
de bens jurídicos que poderiam ser tutelados por outros ramos do direito 2.
Assim, o direito penal se torna simbólico. Isto é, são introduzidas no
ordenamento jurídico normas penais sem “força normativa”, distantes da realidade e,
para agravar a situação, destituídas de eficácia social3.

A visão de que com a pena nós aplicamos uma medida cujos efeitos
conhecidos perfazem, em uma análise positiva, somente uma parte deles,
curiosamente não abalou de forma alguma as doutrinas do sentido da
pena. Hoje se fala, de forma modesta, que a pena possui pelo menos força
“simbólica” da evidenciação da norma e da estigmatização da injustiça.
Isso pode estar correto. Mas é somente suportável se se trabalhar
permanente e seriamente no projeto para substituir o direito penal por algo
melhor, pois esse direto retira sua força simbólica dos ossos dos seres
humanos: pela limitação da liberdade e a sanção dos comportamentos
(HASSEMER, 2007, p. 98).

Percebe-se que para o Direito Penal Libertário a teoria da prevenção geral


positiva é a que mais corresponde às aspirações da finalidade da pena no Estado
Democrático de Direito. A aplicação de sanção frente a violação das normas
fundamentais do ordenamento jurídico, aciona o direito penal e, com isso, revela-se e
atua na efetivação do controle social reafirmando os valores e normas irrenunciáveis
a vida em sociedade.

3 CONCLUSÕES

Apreendeu-se na pesquisa que para a Teoria do Direito Penal Libertário a


função do direito penal é ser instrumento de criação e defesa da liberdade, como um
fruto do contrato social no qual os cidadãos renunciaram partes de suas liberdades
para criar um sistema em que lhes assegurem a liberdade garantida. Por isso, o
controle e a punição do Estado se dão à medida que se garanta a liberdade dos
cidadãos.
2
Ver mais sobre a expansão do Direito Penal em: SÁNCHES, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da
política criminal nas sociedades pós-industriais. 3. ed., rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, 236 p.
3
Ver mais sobre Constitucionalização e legislação simbólica em: NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2013, 263 p; LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Trad. Alfredo Gallego Anabitarte. 2. ed.
Barcelona: Ariel, 1976, p. 217.
667

Assim, há uma releitura da ideia pingente de que os diplomas penais sejam


instrumentos repressores e, sim, diplomas libertários que garantem e promove a
liberdade ao proteger os cidadãos das ingerências do Estado e de outros particulares.
Nessa senda, foi percebido com a pesquisa que para o Direito Penal Libertário
a teoria da prevenção geral positiva é a que mais corresponde às aspirações da
finalidade da pena no Estado Democrático de Direito. A aplicação de sanção frente a
violação das normas fundamentais do ordenamento jurídico, aciona o direito penal e,
com isso, revela-se e atua na efetivação do controle social reafirmando as normas
irrenunciáveis a vida em sociedade.
No entanto, a teoria da prevenção geral positiva deve buscar incessantemente
medidas para substituir a pena privativa de liberdade e reafirmar as normas do sistema
jurídico, sob pena de faltar a justiça penal legitimidade e eficácia.
Assim, a pena para o Direito Penal Libertário e seu objetivo e finalidade no
Estado Democrático de Direito tem em vista sempre a dignidade da pessoa humana
e a liberdade do apenado, que não pode sofrer sanções sob o argumento de se
estabelecer um “exemplo a não ser seguido”, utilizando, para isso, o homem como
meio de se intimidar os presentes e os potenciais infratores das normas. Na atual
epistemologia jurídica o homem é um fim em si mesmo, e não mero instrumento do
Estado ou de um particular.

REFERÊNCIAS

CHEVALLIER, Jacques. O Estado de direito. Belo Horizonte: Fórum, 2013, 136 p.


FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. rev.,
ampl. e atual. Bahia: Juspodivm, 2012, 1.305 p.
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Ramalhete. 42. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, 288 p.
GRACCO, Abraão Soares Dias dos Santos. Direito Constitucional do cidadão
comum. 2016, 184 p. Disponível
em:<http://www.movimentocidadaocomum.com.br/uncategorized/baixe-
gratuitamente-o-ebook-direito-constitucional-do-cidadao-comum/attachment/ebook-
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pesquisa jurídica: teoria e prática. 4. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2013,
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Flávio Beno Siebeneichler. Volume I. 2. ed.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012,
354 p.
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KANT, Immanuel. Doutrina do direito. São Paulo: Ícone, 1993, 205 p.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos.
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LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Trad. Alfredo Gallego Anabitarte.
2. ed. Barcelona: Ariel, 1976, p. 217.
668

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: Martins


Fontes, 2013, 263 p.
NEVES, Marcelo. A força simbólica dos direitos humanos. Revista eletrônica de
direito de Estado. n. 4, out./dez. 2005. Bahia: Salvador, 2005, p. 1-35.
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração
Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, 306 p.
SÁNCHES, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política:
criminal nas sociedades pós-industriais. 3. ed., rev. e atual. São Paulo: Revista dos
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SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007, 520 p.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais
na Constituição Federal de 1988. 10. ed., rev. atual. e ampl. Porto Alegre, Livraria
do Advogado, 2015, 199 p.
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª Edição, Rio
de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, 282 p.
669

A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA: UM BREVE DISCURSO SOBRE SUA


APLICAÇÃO NOS CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO
WILLFUL BLINDNESS DOCTRINE: A BRIEF SPEECH ON ITS APPLICATION IN
MONEY LAUNDERING CRIMES

Laura Silva Gropo


Isadora Guimarães e Silva

Resumo: Ao longo dos anos tem ocorrido inúmeras discussões referentes à


responsabilização subjetiva do agente pela prática de um delito, sendo que esta exige
a comprovação do dano e também que o indivíduo tenha agido com dolo ou culpa. Há
inúmeras divergências no que tange à aplicação do dolo eventual, pois é muito
complexo analisar se o agente realmente tinha condições de saber da ilicitude de sua
conduta e assumiu os riscos ao praticá-la. Portanto, o objeto de estudo deste trabalho
é expor a teoria da cegueira deliberada e suas aplicações no direito brasileiro, com
enfoque nos crimes de lavagem de dinheiro, sendo que tal vertente diz respeito
justamente à possibilidade de responsabilizar o agente que praticou um delito com
base no dolo eventual, ou seja, incriminar o indivíduo quando este conhece os riscos
e resultados possíveis que sua ação pode gerar e, mesmo assim, não altera a sua
conduta.
Palavras-chave: Teoria da cegueira deliberada; dolo eventual; lavagem de dinheiro.

Abstract: Over the years have been occurred numerous reports regarding the
subjetive responsibility of the agent for the practice of an offense, which requires that
the individual have been acted with malice or guilt. There are innumerable divergences
regarding the application of eventual malice, because is very complex to analyze
whether the agent really was able to know the unlawfulness of his conduct and
assumed the risks when practicing it. Therefore, the object of study of this work is to
expose “Willful Blindness Doctrine”, and its applications in Brazilian law, with a focus
on money laundering, being that this aspect concerns the possibility to hold the agent
who has committed a crime based in the eventual malice, that is to incriminate the
individual when he knows the risks and possible results that his action can generate
and, even so, does not change his conduct.
Keywords: Willful blindness doctrine; eventual malice; Money laundering

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Nesses vastos anos de discussões dogmáticas no âmbito criminal, urge uma


análise no tocante à responsabilização do agente nos delitos previstos em nosso
ordenamento jurídico. Tomando como marco inicial a teoria tripartida do crime, que o
classifica como um fato típico, ilícito e culpável, este presente estudo visa tentar
esclarecer a aplicação do elemento da culpabilidade nos crimes onde o agente “sabe
ou deveria saber” a respeito da tipicidade da sua conduta.
No século XIX, surgia no direito norte-americano a “Willful Blindness Doctrine”,
traduzida no Brasil como Teoria da Cegueira Deliberada, que, por sua vez, ficou
conhecida por diversos outros nomes, como por exemplo: “Doutrina do Ato de
Ignorância Consciente” e “Teoria das Instruções do Avestruz”. Segundo Sydow (2016,
pag. 22 e pag. 36), essa teoria diz respeito aos casos em que o agente não conhece
algum elemento do tipo penal, podendo ser subdividida em duas perspectivas: a
primeira ocorre quando o agente não foi cauteloso a ponto de esclarecer uma dúvida
670

que existia a respeito de tal elemento do tipo, por conveniência (denominada “cegueira
deliberada em sentido estrito”); já a segunda acontece quando o agente
propositadamente fecha os olhos para o referido elemento, evitando assim o
conhecimento e sua eventual responsabilidade (denominada “ignorância deliberada”).
Portanto, é devido ao fato do agente deliberadamente não tomar conhecimento da
natureza ou extensão do ato por ele praticado, que faz-se a comparação com um
avestruz, o qual enterra a sua cabeça na terra, ficando alheio ao que acontece ao seu
redor. “Sua finalidade é a de resolver uma específica situação lacunosa criada a partir
da premissa de que o indivíduo escolhe o grau de conhecimento que deseja ter e por
tal decisão responde.” (SYDOW, 2016, pag. 22)
A Teoria da Cegueira Deliberada não tem aplicação e entendimento unânime
nas jurisprudências e doutrinas nacionais pelo fato do legislador brasileiro não tê-la
tipificado em nosso ordenamento jurídico, bem como a análise da conduta do agente,
que pode ter agido por dolo eventual ou culpa, envolver um alto grau de subjetividade.
A linha entre os conceitos de dolo eventual e culpa consciente é muito tênue. Apesar
disso, a teoria busca a possibilidade de responsabilizar o agente pela sua conduta
criminosa, com base no dolo eventual, isso pelo motivo de que nessa modalidade de
imputação subjetiva, o agente conhece os riscos e resultados possíveis que sua ação
pode gerar e, mesmo assim, não altera a sua conduta pelo fato de não se importar
com as consequências do seu ato. Portanto, a presente pesquisa, propõe expor os
primeiros contatos que o direito brasileiro teve com a referida teoria, com um enfoque
nos crimes de lavagem de dinheiro.

2 A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NOS CRIMES DE LAVAGEM DE


DINHEIRO

A expressão “lavagem de dinheiro” surge em meados da década de 1920, no


âmbito das organizações criminosas norte-americanas, onde o capital oriundo de
diversas modalidades de comércio criminoso era convertido em “dinheiro limpo”. No
nosso ordenamento jurídico, as normas relativas à persecução penal dos crimes de
lavagem de dinheiro se encontram dispostas na Lei N° 12.683/12. E, de acordo com
essa lei, o conjunto de operações destinadas à reintegrar no sistema econômico-
financeiro legal, o dito “dinheiro sujo”, assim chamado por ser fruto de atividade ilícita,
constituiria o tipo penal “lavagem de dinheiro”.
É nesse âmbito que urge analisar a possibilidade da imputação subjetiva nas
hipóteses onde o agente que pratica o referido tipo penal, se coloca em uma situação
deliberada de desconhecimento a respeito da origem ilícita dessas riquezas. Dessa
forma, ao ignorar propositalmente o surgimento delitivo dos valores, considera-se que
o agente assume o risco de cometer o crime de lavagem de dinheiro. Fica, então,
comprovada a figura do dolo eventual, posto que o agente aceita ser bastante provável
que o dinheiro seja fruto de um delito previamente realizado e, mesmo assim,
prossegue com a sua conduta. É importante ressaltar que com a alteração ocorrida
em 2012, a partir da Lei N° 12.683, passou-se a ser permitida a aplicação do dolo
eventual aos agentes que se abstêm de buscar informações a respeito da ilicitude de
suas condutas e, desta forma, assumem o risco de praticar o delito. Entretanto, pelo
fato da teoria da cegueira deliberada não ter uma aceitação majoritária, tanto na
doutrina como na jurisprudência, a sua aplicação merece uma análise especifica em
relação a cada caso concreto.

2.1 MENSALÃO
671

A Ação Penal no. 470, famigerado caso de corrupção política, popularmente


conhecida por “Mensalão”, preencheu por meses os veículos midiáticos do país.
Julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o referido caso teve início em 2005 e
teve membros de diversos dos partidos políticos do Brasil como componentes. Em
suma, o escândalo foi gerado em virtude da descoberta de um esquema de corrupção
que envolvia a “compra” de parlamentares do Congresso Nacional, com o objetivo de
que estes votassem a favor dos projetos que interessassem o Poder Executivo. Uma
quantidade exorbitante de dinheiro público foi desviado para o pagamento das
propinas, que eram recebidas periodicamente, sendo este o motivo da intitulação
“Mensalão”. Em 2007, o julgamento dos envolvidos pelo delito de lavagem de dinheiro,
dentre outros crimes, foi diligenciado pelo Supremo Tribunal Federal.
Nesse contexto, faz-se importante ressaltar, que houve uma confusa
abordagem a respeito da teoria da cegueira deliberada nos votos dos ministros do
STF, especificamente no tocante à configuração do crime de lavagem de dinheiro e
na possível responsabilização dos parlamentares. Tomaremos como exemplo o voto
da Ministra Rosa Weber, que teve o seguinte entendimento (acórdão STF n° 470/MG,
pag. 214):

“Para configuração da cegueira deliberada em crimes de lavagem de


dinheiro, as Cortes norte-americanas têm exigido, em regra, (i) a ciência
do agente quanto à elevada probabilidade de que os bens, direitos ou
valores envolvidos provenham de crime, (ii) o atuar de forma indiferente
do agente a esse conhecimento, e (iii) a escolha deliberada do agente em
permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a
alternativa.”

A Ministra ainda acrescenta que (acórdão STF n° 470/MG, pag. 238):

“Pode-se identificar na conduta dos acusados-beneficiários (...), a postura


típica daqueles que escolhem deliberadamente fechar os olhos para o
que, de outra maneira, lhes seria óbvio, ou seja, o agir com indiferença,
ignorância ou cegueira deliberada. (...) Em termos gerais, a doutrina
estabelece que age intencionalmente não só aquele cuja conduta é
movida por conhecimento positivo, mas igualmente aquele que age com
indiferença quanto ao resultado de sua conduta.”

É possível extrair à partir da leitura do voto da Ministra Rosa Weber que houve
uma mistura dos institutos do dolo eventual e da cegueira deliberada. Pois o “agir com
indiferença quanto ao resultado de sua conduta”, é o caso do dolo eventual e não
cegueira deliberada propriamente dita. Esta, sob a perspectiva da “ignorância
deliberada”, acontece quando o agente tem fundadas dúvidas a respeito de uma
informação que pode dizer respeito a um crime, mas não segue adiante na
investigação de sua suspeita. Essa flagrante contradição apenas evidencia a
dificuldade de aplicação da teoria no julgado de forma concisa.

2.2 OPERAÇÃO LAVA JATO

O caso da operação “Lava Jato” é, sem sombra de dúvidas, a maior


investigação de corrupção e lavagem de dinheiro já tida no país. O nome dado à
operação advém do uso de uma rede de postos de combustíveis e lava a jato de
automóveis para movimentar verbas ilícitas pertencentes a uma das organizações
criminosas investigadas. Ao início das investigações, apenas quatro organizações
criminosas foram alvo das apurações, cujos líderes eram doleiros, e, posteriormente,
672

o Ministério Público Federal conseguiu provas a respeito do envolvimento da


Petrobras com um imenso esquema criminoso de corrupção. Em tal esquema, as
empreiteiras mais poderosas eram organizadas em cartel e pagavam propina para os
altos executivos da estatal e outros agentes públicos. Os operadores financeiros do
esquema que partilhavam o suborno, com a inclusão dos doleiros já investigados na
primeira etapa.
Para melhor compreender a Lava jato, é necessário antes esclarecer o
funcionamento da Petrobrás, para isso iremos destacar os elementos que compõem
o esquema criminoso desta estatal: nas empreiteiras existia uma falsa concorrência,
visto que os preços ofertados à Petrobrás eram previamente ajustados em reuniões
secretas do Cartel, nas quais já era definido quem ganharia aquele processo licitatório;
Funcionários da Petrobrás: estes ficavam omissos ao cartel, do qual tinham ciência e,
mesmo assim, o favoreciam, gerando uma restrição aos convidados e incluindo
aquela determinada previamente como a ganhadora dentre os participantes;
Operadores financeiros: eles eram intermediadores, ou seja, o dinheiro era passado
das empreiteiras para eles, e depois, os operadores levavam o dinheiro, em espécie,
ao beneficiário, mediante o pagamento de bens ou transferência no exterior; Agentes
políticos: são aqueles que integram ou se relacionam a partidos políticos incumbidos
de apontar e manter os diretores da Petrobrás.
De acordo com o magistrado, citado por Sydow (2016. Pag. 226), “a prática
sistemática de fraudes, em quantidade elevada e por período prolongado, torna
impossível o não reconhecimento do agir doloso. No mínimo, teriam agido com dolo
eventual.” Pode-se relacionar esse trecho com a teoria da cegueira deliberada, visto
que esta diz respeito justamente à possibilidade de responsabilizar subjetivamente o
agente por intermédio do dolo eventual.
É importante demonstrar que, nas palavras de Sydow (2016, pag. 226/227) o
STF entende que “(...) a figura do dolo dispensa os requisitos de consciência e
vontade, visto que, para o magistrado, é a quantidade de ações e o período decorrente
que servem de parâmetro para imputação do elemento subjetivo, o que, por si só,
seria ilegal.”
No Brasil, a legislação pune o agente com a prática do crime de lavagem de
dinheiro, quando ele tem conhecimento que o dinheiro é “sujo” (tem origem ilícita) e,
apesar disso, age com o fim de escondê-lo. Entretanto, ocorrem diversas situações
que não são tão claras e fáceis de aplicar a lei objetivamente, e em tais casos, a lei
prevê punição quando demonstra-se que o acusado tinha ciência do perigo que corria,
ainda que não tivesse a intenção direta em cometer um crime. Portanto, devido à
dificuldade de comprovar tais fatos, os juízes tem recorrido frequentemente à teoria
da cegueira deliberada.

2.3 BANCO CENTRAL DE FORTALEZA

Outro caso emblemático, igualmente marcado por divergências de


posicionamentos no que diz respeito à aplicação da teoria da cegueira deliberada, foi
o caso do furto do Banco Central de Fortaleza em 2005. Esse acontecimento,
amplamente propagado pela mídia, foi considerado o maior furto à banco da história
do Brasil, sendo que tal estigma se mostra adequado devido ao planejamento
minucioso realizado, ao método empregado para a subtração e, por fim, ao valor
demasiado de capital furtado. Durante cerca de três meses, os agentes escavaram
um túnel de aproximadamente 80 metros de extensão e 4 metros de profundidade,
que atravessava uma das regiões mais movimentadas do centro de Fortaleza, e, na
673

madrugada do dia 05 para o dia 06 de Agosto de 2005, realizaram a subtração de


cerca de R$ 165 milhões de reais.
A descoberta do crime só ocorreu na manhã da segunda-feira dia 8 de Agosto,
quando iniciava-se o expediente do Banco Central e os envolvidos foram acusados
de terem cometido, dentre outros crimes, o de lavagem de dinheiro. Nesse notório
acontecimento, o delito previsto na Lei N° 12.683 foi identificado em função de um
“descuido” dos furtadores que, no dia 06 de Agosto, se dirigiram a uma concessionária
e adquiriram 11 veículos, totalizando uma quantia de R$ 980.000,00 reais, quantia
esta que, em uma atitude considerada no mínimo suspeita, foi paga em dinheiro vivo.
Os sócios donos da loja de automóveis foram, então, denunciados pelo crime de
lavagem de dinheiro com base na teoria da cegueira deliberada. É nesse contexto
que, mais uma vez, o presente estudo visa analisar as divergências evidenciadas a
respeito da aplicação da referida teoria.
O entendimento da justiça de primeiro grau foi o de condenar os sócios com
base na teoria da cegueira deliberada, que pressupunha a existência de dois
elementos fundamentais: a ciência do agente a respeito da alta possibilidade de que
o dinheiro era fruto de atividade criminosa e o fato de o agente ter agido de forma
indiferente a essa percepção. Portanto, a atitude indiferente quanto ao resultado da
própria conduta incorreria em dolo eventual, posto que a escolha de permanecer
alheio ao conhecimento pleno dos fatos, justificaria a aplicação da teoria da cegueira
deliberada.
Contudo, em nível de apelação, a corte federal possuiu um entendimento
contrário. O magistrado se opôs à possibilidade de aplicação da teoria em razão da
dificuldade de demonstrar o elemento subjetivo. E embasou seu posicionamento da
seguinte maneira (sentença do processo crime n° 2005.81.00.014586-0, pag. 8):

“2.4- Imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja


estabelecida em Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em
espécie: a transposição da doutrina americana da cegueira deliberada
(willful blindness), nos moldes da sentença recorrida, beira, efetivamente,
a responsabilidade penal objetiva; não há elementos concretos na
sentença recorrida que demonstrem que esses acusados tinham ciência
de que os valores por ele recebidos eram de origem ilícita, vinculada ou
não a um dos delitos descritos na Lei n.º 9.613/98. O inciso II do § 2.º do
art. 1.º dessa lei exige a ciência expressa e não, apenas, o dolo eventual.
Ausência de indicação ou sequer referência a qualquer atividade
enquadrável no inciso II do § 2º.”

Atualmente, entendemos que a decisão poderia ser considerada ultrapassada,


posto que em 2012 foi sancionada a Lei N° 12.683, criada para tornar mais eficiente
a persecução penal dos delitos de lavagem de dinheiro, que incluiu a possibilidade de
admitir o dolo eventual em tais crimes. O Tribunal, inclusive, considerou essa
possibilidade de a teoria se equiparar à figura do dolo eventual, mas não a aplicou,
uma vez que só era admitida a modalidade de dolo direto nesses crimes, que é
evidenciado nas seguintes palavras do desembargador: “Entendo que a aplicação da
teoria da cegueira deliberada depende da sua adequação ao ordenamento jurídico
nacional. No caso concreto, pode ser perfeitamente adotada, desde que o tipo legal
admita a punição a título de dolo eventual” (sentença do processo crime n°
2005.81.00.014586-0, pag. 96).
Outro entendimento, usado pelo desembargador de modo a não
responsabilizar os agentes pelos crimes de lavagem de dinheiro com base na teoria
674

da cegueira deliberada foi o seguinte (sentença do processo crime n°


2005.81.00.014586-0, pag. 8):

“Não há elementos suficientes, em face do tipo de negociação usualmente


realizada com veículos usados, a indicar que houvesse dolo eventual
quanto à conduta (...); na verdade, talvez, pudesse ser atribuída aos
empresários a falta de maior diligência na negociação (culpa grave), mas
não, dolo, pois usualmente os negócios nessa área são realizados de
modo informal e com base em confiança construída nos contatos entre as
partes.”

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das problemáticas expostas, infere-se que a Teoria da Cegueira


Deliberada é um instituto novo no ordenamento jurídico penal brasileiro, usada
ocasionalmente de modo não análogo. Nas poucas vezes em que foi utilizada, se deu
de uma forma bastante contraditória, uma vez que ainda é muito vulnerável, não
possui tipificação na legislação e, também pelo fato de ser pouco mencionada nas
doutrinas. Entendemos que isto ocorre em razão de sua análise envolver a
demonstração de aspectos psíquicos do agente para a imputação subjetiva, sendo
este, portanto, um elemento de difícil comprovação.
Por fim, é possível afirmar que a cegueira deliberada ambiciona regular,
criteriosamente e de forma a não violar garantias constitucionais, as hipóteses de
imputação subjetiva com o dolo eventual, ou seja, a responsabilização de uma
conduta na qual o indivíduo escolhe seu estado de desconhecimento, sendo que ele
tinha condições de saber sobre ilicitude de sua conduta, porém assume os riscos de
praticá-la, sem se importar com as consequências. Por conseguinte, conclui-se que
uma aplicabilidade concisa da Teoria da Cegueira Deliberada estaria limitada à
conjugação de fatores que lhe conferissem mais objetividade, como, por exemplo,
alguns elementos que envolvem deveres de cuidado. Desse modo, o agente deveria
estar em uma situação onde é legalmente obrigado a diligenciar a busca de
informações e agir com a devida cautela, mas não o faz, deliberadamente se
colocando em situação de ignorância. Esse elemento auxiliaria a tornar a sua
aplicabilidade mais precisa e efetiva.

4 REFERÊNCIAS

SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada. Belo Horizonte: Editora


D’Plácido, 2016.
CABRAL, Bruno Fontenele. Breves comentários sobre a teoria da cegueira
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de outubro de 2018.
676

AS CONTRIBUIÇÕES DA NEUROCIÊNCIA PARA A EVOLUÇÃO DO SISTEMA DE


JUSTIÇA PENAL.
THE CONTRIBUTIONS OF NEUROSCIENE TO THE EVOLUTION OF THE
CRIMINAL JUSTICE SYSTEM

Ludmila de Paula Castro Silva


Aurelio Tomaz da Silva Briltes

Resumo: O presente estudo tem por objeto a análise da viabilidade da utilização de


instrumentos da neurociência para incremento de técnicas tendentes a corroborar o
entendimento sobre a conduta dos criminosos, conjugando a influência do
funcionamento do cérebro humano e dos fatores sociais, visando que a ciência do
neurodireito promova a evolução do sistema de avaliação da prova processual e do
cumprimento da função de ressocialização da pena, evitando a reincidência delitiva.
Neste sentido, a pesquisa discorrerá sobre a simbiose entre neurociência e direito,
com a formação do neurodireito como ciência autônoma e importante para a
conjugação do conhecimento do cérebro humano e das causas das condutas
criminosas. O estudo analisará mecanismos da neurociência viáveis a
instrumentalizar o estudo do grau de reprovabilidade social do indivíduo,
compatibilizando a relativização do princípio da igualdade com a individualização da
pena examinada proporcionalmente ao potencial danoso do criminoso à sociedade.
Palavras-chaves: Neurociência, Direito e Justiça Penal.

Abstract: The aim of this study is to analyze the feasibility of the use of neuroscience
instruments to increase techniques to support the understanding of the conduct of
criminals, combining the influence of human brain functioning and social factors,
aiming at the science of neuro right to promote the evolution of the system of evaluation
of the procedural evidence and of the fulfillment of the function of ressocialization of
the sentence, avoiding the recidivism of the offender. In this sense, the research will
discuss the symbiosis between neuroscience and law, with the formation of the neuro-
right as an autonomous science and important for the conjugation of knowledge of the
human brain and the causes of criminal conduct. The study will analyze feasible
neuroscience mechanisms to instrumentalize the study of the degree of social
reprobability of the individual, making compatible the relativization of the principle of
equality with the individualization of the punishment examined in proportion to the
harmful potential of the criminal to society.
Keywords: Neuroscience, Law and Criminal Justice.

INTRODUÇÃO

Com o avanço da tecnologia houve um movimento tendente ao


desenvolvimento de novas áreas de estudo. Diante da complexidade inerente ao ser
humano, tornou-se inevitável a conjugação de ciências diversas para o alcance de
resultados esclarecedores sobre a natureza da conduta e pensamento humano,
máxime quando a análise envolve a criminalidade, suas causas e consequências.
Neste aspecto, a interdisciplinaridade entre direito e medicina ganhou território fértil e
determinou a abertura de estudos que permeiam conhecimentos de direito e
neurociência.
677

Em consonância aos ensinamentos de Atahualpa Fernandes e Marli


Fernandez1, a neurociência, arraigada no campo da medicina, traz como objeto o
estudo do cérebro, da mente e da consciência humanas, buscando estabelecer uma
ponte entre a mente e a matéria. Por conseguinte, estuda as bases neuronais do
pensamento, da percepção, do comportamento e da emoção, bem como os
mecanismos da relação cérebro/mente que nos ajudam a entender a função dos
genes na configuração do cérebro, o papel dos sistemas neuronais na percepção do
entorno e a relevância da experiência como princípio de orientação nas ações futuras.
Pressupondo que a ciência do direito, estudada isoladamente, não traz a
completude necessária para o entendimento da conduta humana e seus processos
influenciadores somam-se os preceitos da neurociência para formar o campo de
estudo denominado neurodireito. Na pesquisa desenvolvida por José Erigutemberg
Meneses de Lima2, numa visão interdisciplinar, o neurodireito é atualmente
compreendido como o estudo das influências das alterações das funções cerebrais
no pensamento jurídico, desde a formação dos juízos de valores, éticos e morais em
pessoas sem qualquer desvio de comportamento até o estudo das avarias causadas
ao cérebro em decorrência de traumas.
Dessa interlocução viabilizada pelo neurodireito emergiu para o conhecimento
humano a oportunidade de analisar a aplicação do direito penal a partir do enfoque
dos processos cerebrais vivenciados pela mente do criminoso, alcançando as causas
do delito. Enquanto o direito penal tem por objeto o crime, o neurodireito volta sua
visão para a causa do crime e as influências biológicas e sociais que corroboram a
prática da conduta tipificada como ilícito no ordenamento jurídico.
Estabelecida a simbiose entre as ciências do direito e da medicina, denota-se
a evidente vantagem para o avanço das pesquisas de caráter jurídico-científico, o que,
por certo, pode iluminar o entendimento quanto à complexidade da mente humana e
os aspectos que tem relevância para a decisão do ser humano na prática delitiva.
De outro norte, a pesquisa também desbravará teses avessas, como a
formulada por Raymmond Tallis3, que aponta o risco de revolver a ideias válidas para
o nazismo a partir da utilização das teorias científicas baseadas no cérebro para
formular leis e conceitos sobre ética. O referido autor é especialista em doenças
neurológicas de idosos e afirma que o uso da atividade cerebral para explicar todos
os aspectos do comportamento humano pode colaborar com um novo tipo de
darwinismo social.

DESENVOLVIMENTO

Inevitavelmente, o neurodireito, ao imiscuir na ciência jurídica conceitos de


genética, processos neurais do cérebro e valoração social, traz consigo a noção de
desigualdade de indivíduos, ainda que estes pratiquem condutas criminosas
igualmente descritas no tipo penal. Inobstante isto violar claramente o princípio da

1
FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marli. Neuroética, Direito e neurociências, liberdade e racionalidade jurídica. São
Paulo: Juruá Editora, 2008.
2
LIMA, José Erigutemberg Meneses de Lima. Neurodireito – modismo ou novo ramo de pesquisa doutrinária na área
jurídica? Disponível em: <http://guteri.jusbrasil.com.br/artigos/153079525/neurodireito-modismo-ou-novo-ramo-de-pesquisa-
doutrinaria-na-area-juridica>. Acesso em: 24 de outubro de 2.018.
3
TALLIS Raymmond. Neurociência para tudo é bobagem. Entrevista. Rio de Janeiro: Revista Galileu. Disponível
em:<http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI272312-17770,00-
NEUROCIENCIA+PARA+TUDO+E+BOBAGEM.html>. Acesso em: 24 de outubro de 2.018.
678

igualdade na forma concebida pelo sistema de justiça brasileiro, deve-se ponderar a


existência de criminosos com diferentes graus de reprovabilidade na sociedade.
É possível diferenciar quatro gradações de criminosos merecedores de
tratamento diferenciado, sem o objetivo de classificá-los com fundamentação
legislativa: a) aquele criminoso não contumaz que infringe a norma jurídica, todavia
entende o caráter ilícito de sua conduta e respeita o poder punitivo do Estado e a pena
correspondente que deverá ser cumprida em retribuição a sua conduta; b) aquele
criminoso que infringe a norma jurídica e não entende o caráter ilícito da conduta,
recebendo tratamento diferenciado em termos de penalização, diante de sua
vulneração da culpabilidade face à inimputabilidade penal ou capacidade diminuída;
c) aquele criminoso que não conhece o caráter ilícito de determinada conduta,
incorrendo em erro de proibição e, via direta, agindo sob o pálio de uma excludente
da potencial consciência, que exclui a própria culpabilidade, podendo ser evitável ou
inevitável, o que ensejará diminuição e isenção de pena, respectivamente. Com a
adoção da teoria limitada da culpabilidade, a falta da potencial consciência da
ilicitude evidencia a denomina valoração paralela na esfera do profano; d) aquele
criminoso contumaz que infringe a norma jurídica, entende o caráter ilícito de sua
conduta, contudo não respeita o poder punitivo do Estado, subvertendo não só as
normas jurídicas como também as normas sociais.
De acordo com a teoria de Günther Jakobs4, este último indivíduo deve ser
tratado como um não-cidadão, de modo a ele não são devidas as mesmas garantias
constitucionais atribuídas aos indivíduos considerados cidadãos. Nesta perspectiva,
Jakobs propõe a distinção entre um direito penal do cidadão, que se caracteriza pela
manutenção da vigência da norma, e um direito penal para inimigos, orientado para o
combate a perigos e que permite que qualquer meio disponível seja utilizado para
punição.
Feitas tais considerações, abre-se espaço para dizer que a igualdade resta
violada com a aplicação de penas e medidas diversas àquele criminoso, considerado
perigoso à manutenção da ordem jurídica e social, que praticou uma mesma conduta
de outro, mas não se pode negar que cada criminoso possui sua individualidade e
diferente potencial danoso à sociedade.
Para exemplificar a questão, a norma jurídica é a mesma para tutelar a conduta
de um criminoso que atua por si só e outro que exerce suas atividades em organização
criminosa voltada à prática do tráfico de drogas, armas e pessoas, ainda que para
estes se possa ter eventual aumento de pena em sede de dosimetria na sentença
penal condenatória.
Buscando outro exemplo desta disparidade, tem-se a figura do terrorista, que
não respeita qualquer regra social e não concede qualquer relevância para a vida
humana de uma coletividade atingida por seus atos. Ainda que se tenham leis
específicas e convenções internacionais para viabilizar tratamento rigoroso às
organizações criminosas e aos atos terroristas, o fato é que a lei penal não alcança
sua função para tais pessoas, diante do total desrespeito por estas da própria
autoridade do Estado. Neste aspecto, a culpabilidade insere-se como ferramenta
imprescindível, devendo ser fixada como marco divisor do estudo envolvendo o
neurodireito.
No atual sistema de justiça penal brasileiro, adotando a teoria tripartida, a
culpabilidade compõe o conceito analítico crime, somando-se à tipicidade e
antijuridicidade. Adiante, a culpabilidade mais uma vez surge para fins da dosimetria

4
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Org. e Trad.: André Luís Callegari e
Nereu José Giacomolli. 6. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012.
679

da pena na sentença penal condenatória. Denota-se que até este momento coloca-se
a culpabilidade a favor do cumprimento da finalidade de prevenção geral da pena,
negativa e positiva.
A fase mais importante do processo de reabilitação do criminoso queda em
segundo plano, já que na execução da pena, em que se deve proporcionar condições
para a ressocialização do indivíduo, em verdade cumpre-se
a função preventiva negativa da inocuização dada pelo mero enclausuramento,
desacompanhado da assistência ao condenado e do fornecimento de ambiente
adequado à sua reinserção social. Diante da ineficiência na efetivação dos fins da
pena, o sistema supramencionado não consegue conter a criminalidade e ainda
corrobora a reincidência do transgressor da norma jurídica.
Compreendendo que tal sistemática não espelha os anseios constitucionais e
legais de reinserção social do criminoso e de cumprimento da pena de prisão nos
meandros da dignidade da pessoa humana, tem-se como inevitável a necessidade de
um sistema de justiça penal revigorante e prospectivo5 a fim de que o Estado possa
oferecer a tão sonhada ressocialização, extirpando da pena o caráter de vingança e
exclusão social do criminoso, sempre com olhos voltados a evitar a reincidência
delitiva.
Mister dizer que o neurodireito trabalha com experimentos e observações por
imagens a fim de estudar as funções cerebrais visando conhecer e tratar doenças
neurológicas. Para tanto, vale-se de instrumentos tecnológicos que podem prestar-se
a elucidar a fundamentação dos conceitos teóricos da criminalidade, rastreando e
mapeando o funcionamento do cérebro.
Neste ponto repousam as maiores críticas ao neurodireito, já que o
conservadorismo jurídico, sacramentado na formação dos juristas e na própria mens
legis do ordenamento positivado, cria barreiras a que a ciência do direito receba
valores de ciências diversas na crença de que fatores externos possam prejudicar a
objetividade do direito e das futuras decisões judiciais lastreadas em dados iluminados
por exames neurológicos.
Fato é que, logrando êxito em firmar bases seguras para o conhecimento da
mente do criminoso, ter-se-á o campo aberto para a incrementação dos métodos de
avaliação judicial das provas e evidências em julgamentos. O julgador poderá valer-
se, além dos meios tradicionais de prova testemunhal, de meios tecnológicos
integrados pela neurociência, como, por exemplo, o scanner cerebral, com evolução
em termos de leitura mental muito além daquele pretendida pelo polígrafo usado como
detector de mentiras, criado por William Moulton Marston.
Vale dizer que os resultados dos testes neurocientíficos não devem receber
valor probatório exclusivo e unívoco, devendo ser conjugados com as demais provas
produzidas em cada caso submetido a julgamento de um juiz.
Sem a ousadia de pretender a aplicação integral da teoria de Cesare Lombroso,
tido como fundador da antropologia criminal, todavia buscando somar esforços para
entender as causas das condutas delitivas, importa dizer que o mapeamento do
cérebro humano poderá reavivar o estudo da tese do determinismo na identificação
do criminoso nato. A teoria funda-se na ideia de que a gênese do comportamento
criminoso é inerente às características anatômicas do infrator, sem olvidar da
concorrência de fatores ambientais, sociais e educacionais.

5
Nomenclatura usada por José Erigutemberg Meneses de Lima na monografia intitulada Neurodireito - Repercussão e
Implicações da Neurociência para o Direito Penal. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/neurodireito>.
Acesso em 24 de outubro de 2.018.
680

Incontestável que desde a teoria de Charles Darwin entende-se o homem como


fruto da história da evolução por seleção natural em que sobrevive aquele ser mais
adaptado. A partir disso surgiu o darwinismo social com o entendimento de que
existem características biológicas e sociais que firmam a convicção de que uma
pessoa tem superioridade em relação a outra e, partindo de critérios afetos às
habilidades pessoas, são mais aptas à sobrevivência no mundo.
Partindo dos preceitos mais caros aos seres humanos, dentre os quais figuram
os direitos humanos e fundamentais, o êxito na análise científica da mente do
criminoso conduz a um desacordo moral razoável diante da ausência de consenso
sobre a polêmica aplicação do determinismo lombrosiano e darwinismo social para
aferição da conduta criminosa. Trazendo para os dias atuais, a aplicação da seleção
natural no mundo da criminalidade, do ponto de vista da implementação de políticas
públicas de segurança pública, poderá servir como argumento para a segregação
social de criminosos, o que inevitavelmente culminará na discussão acerca da
relativização da igualdade e dignidade da pessoa humana.
No caminhar dos estudos acerca dos reflexos das contribuições da
neurociência para evitar a reincidência criminal mister que sejam angariados
conhecimentos sobre o complexo sistema penitenciário atual e, para tanto, serão
investigadas as razões pelas quais os presídios brasileiros chegaram na situação
hodierna.
Uma análise coerente sobre o tema pode convergir para o fato de que toda a
sistemática de processamento e punição dos criminosos parte de premissas
destituídas de cientificidade, de modo que o resultado a ser obtido após a condenação
e adimplemento da pena pelo transgressor da norma jurídica poderá não ser
satisfatório, ainda que existissem recursos suficientes para a perfeita alocação dos
presos em instalações condignas, com o fornecimento de todo o aparato para um ser
humano viver com qualidade.
Esta constatação justifica-se, dentre diversos outros fatores, pela ausência de
utilização de métodos da neurociência para legitimar as premissas a que se submete
um juiz para julgar um criminoso, bem como para conciliar a efetividade dos métodos
de cumprimento de pena com a individualização da pena.
Sem adentrar na questão referente ao sucateamento e falência do sistema
penitenciário, o que se tem neste âmbito atualmente é a concentração de pessoas
com desvios de conduta, nem sempre definidos por sua personalidade, e que a partir
da análise exclusiva de seus atos, sem qualquer exame de suas complexidades
neurológicas, quedam enclausuradas por determinado tempo e após retornam ao
convívio social sem a correspondente ressocialização, estando a criminalidade à sua
disposição nas ruas.
O resultado desse emaranhado de equívocos no sistema pode ser facilmente
verificado na superlotação dos presídios e nos altos índices de recidiva criminosa de
pessoas que, tendo passado em certa oportunidade por todos os regimes de
cumprimento de pena, em tese, deveriam recompor o seio social devidamente
reabilitadas. Infortunadamente, a ressocialização do criminoso não espelha, em regra,
o resultado exitoso da pena aplicada, o que determina a necessidade de buscar meios
diversos daqueles tradicionalmente utilizados6.

6
Relevante anotar que o Código de Processo Penal brasileiro vigente prevê em seu artigo 775 a realização de exame pericial
feito por dois médicos para aferir as condições da pessoa submetida a medida de segurança em manicômio judiciário ou em
casa de custódia e tratamento, mormente quanto à cessação ou não da periculosidade. Nesta perspectiva, as técnicas e
instrumentos da neurociência podem auxiliar para que esta avaliação seja mais fidedigna ainda ao conjugar o conhecimento
médico com as inferências tecnológicas.
681

CONCLUSÃO

Os estudos na seara do neurodireito merecem aprofundamento, tendo o


pesquisador a plena consciência de que enfrentará fundados conflitos de legitimidade
do discurso diante das divergências originárias dos conceitos morais e éticos a partir
do momento em que pretenda valer-se dos aparatos da neurociência para aferir a
confluência de fatores afetos a transtornos neurológicos e heranças genéticas, de um
lado, e livre arbítrio e responsabilidade social, de outro.
As soluções a serem propostas a partir do estudo enfrentarão a argumentação
quanto à legitimidade do neurodireito como ciência autônoma, buscando a validação
dos mecanismos utilizados pela neurociência para alcançar a complexidade da mente
humana e sua capacidade de delinear os traços da personalidade dos criminosos
potencialmente reincidentes.
Com o liame fixado entre os processos neurológicos e a decisão livre do
criminoso ter-se-á a possibilidade de aferir o grau de periculosidade social do agente,
fundado em comprovação científica, e não meramente na análise superficial por
exame médico, o que poderá estender a pesquisa ao alcance dos critérios para
individualização da pena adequados à efetiva ressocialização do agente criminoso.
Nesta senda, a partir do estudo dos perfis dos estados mentais e dos processos
neurológicos dos criminosos, estará o neurodireito a contribuir para que o sistema
penal compreenda as causas do crime, revestindo as decisões judiciais de
cientificidade no que concerne à avaliação da complexidade do ser humano e,
principalmente, de seu cérebro e processos neurais. Por conseguinte, poder-se-á
alcançar a adequada individualização da pena e forma de cumprimento desta,
evitando que a prisão preste um desserviço aos fins da pena e torne-se o reduto da
reincidência.

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683

DIREITO AO ESQUECIMENTO: O SIGILO DOS REGISTROS CRIMINAIS DO


INDIVÍDUO EM RELAÇÃO A SUA CONDENAÇÃO
RIGHT TO FORGETFULNESS: THE SECRECY OF THE INDIVIDUAL'S CRIMINAL
RECORDS IN RELATION TO THEIR CONDEMNATION

Andrea de Fatima Alves Machado


Eudes Vitor Bezerra

Resumo: A realização desse trabalho teve como objetivo demonstrar a fragilidade da


aplicação da lei penal em relação ao instituto discutido e a reação da sociedade
brasileira no tocante à reinserção do indivíduo que já passou pelo sistema carcerário.
Além disso, citar as leis que tratam esse direito pouco conhecido tanto pela sociedade
e até mesmo pelo ex-detento que deseja reconstruir sua vida e levá-la longe da
criminalidade. E principalmente, sustentar que a violação desse direito provoca o
fenômeno chamado pelo direito non bis in idem, que se refere a dupla punição pelo
mesmo fato, neste caso, incitado pela própria sociedade, que sem limite relembra
fatos sobre seu passado criminal, causando do lhe sofrimento psicológico e
dificultando o acesso ao mercado de trabalho, sendo uma das causas de aumento na
reincidência no Brasil, assim perpetuando a pena.
Palavras-chave: Direito ao Esquecimento - Sigilo dos Registros Criminais -
Condenação

Abstract: The purpose of this work was to demonstrate the fragility of the application
of criminal law in relation to the institute discussed and the reaction of the Brazilian
society regarding the reintegration of the individual who has already passed through
the prison system. In addition, cite the laws that address this right little known both by
society and even the former detainee who wishes to rebuild their life and take it away
from criminality. It is, above all, to argue that the violation of this right causes the
phenomenon called by the non bis in idem law, which refers to double punishment for
the same fact, in this case, incited by society itself, which without limit remembers facts
about its criminal past, causing causing psychological distress and making access to
the labor market more difficult. This is one of the causes of an increase in recidivism
in Brazil, thus perpetuating the sentence.
Keywords: Right to Forgetfulness - Secrecy of Criminal Records - Conviction

INTRODUÇÃO

Esse trabalho tem como escopo o estudo do Direito ao Esquecimento e sua


aplicabilidade na sociedade brasileira, direito que vem ganhando espaço nos tribunais
brasileiros. Dentro desse segmento, esse trabalho trata sobre o sigilo dos registros
criminais do indivíduo que passou por uma condenação. Basicamente, esse direito
consiste em deixar para trás delitos cometidos no passado por um determinado
indivíduo, ou seja, deixá-lo em paz para que possa se reintegrar à sociedade e
reconstruir sua vida de maneira digna e longe da criminalidade. Esse direito é
amparado na Constituição Federal, Código Penal e Lei de Execução Penal. A partir
dessas considerações, visa suster a seguinte hipótese: A violação do direito ao
esquecimento atribui à pena o caráter perpétuo.
O método de pesquisa utilizado neste trabalho será o documental-exploratório,
sendo analisadas jurisprudências, leis e bibliografias, consistindo também em
apresentar informações e conclusões sobre o tema abordado. Como forma de
684

abordagem será adotado o método indutivo, utilizando argumentos que conduzirão as


conclusões e como forma de procedimento, o método comparativo unido com o
histórico, confrontando elementos para obter diferenças e/ou semelhanças entre eles.

DESENVOLVIMENTO

Vivemos atualmente em um mundo onde impera a tecnologia, onde os avanços


são constantes, onde as informações são rápidas e simultâneas: temos acesso a
informações de forma quase irrestrita, que permanecem por tempo indeterminado.
Com isso, podemos conseguir dados passados que se referem à vida privada de um
indivíduo, podendo ele ser público ou anônimo.
O direito ao esquecimento consagrado em outros países, já é reconhecido
pelos tribunais brasileiros, esse direito preconiza que os fatos, deslizes do passado
de um indivíduo sejam esquecidos pela sociedade e pela imprensa, é o direito de não
ter memórias pessoais desrespeitada a todo momento por uma simples vontade
alheia.
Não sendo ainda um direito muito debatido pela doutrina e legislação,
questionamos se podemos recepcioná-lo como um direito fundamental, tendo como
fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana.
Podemos configurar esse direito como uma espécie de proteção as
informações sigilosas que dizem respeito ao indivíduo não autorizando a
disponibilização nem a propagação dessas referências à sociedade, cujas causam-
lhe tormento, devendo elas serem restritas ao Poder Judiciário em determinados
casos.
No mesmo sentido, cita François Ost (2005, p. 168): “Antes mesmo que esta
ou aquela infração seja cometida, podem ser adotadas leis instaurando uma
prescrição. Fica, então, entendido que, devido ao decurso de um certo tempo, a
sociedade não tem mais interesse em perseguir a infração[...]”. Entretanto, o direito
ao esquecimento deve ser mitigado quando justificado com situações relacionadas a
um fato histórico reunido com o interesse público.
O esquecimento está ligado à ideia de ultrapassar o passado, é o direito que o
condenado tem de que sejam deixados para trás fatos, deslizes que cometeu, pois,
trazendo à tona essas informações tem o indivíduo sua intimidade, sua vida privada,
honra e imagem violada.
Nenhuma informação que tenha relação com dispositivos supracitados pode
ser rememorada sem qualquer limitação, mesmo as que se referem a fatos
criminosos, sob pena de violação dos direitos fundamentais.
Assim, podemos citar o princípio da dignidade da pessoa humana, conceituado
por nossa Constituição Federal. Em primeiro momento, ela faz menção à dignidade
da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, no artigo 1º,
inciso III.
No mesmo sentido, Elpídio Donizetti explica:

[...] a dignidade humana é o valor supremo a ser buscado pelo


ordenamento jurídico, é o princípio basilar a partir do qual decorrem
todos os demais direitos fundamentais – norma fundante, orientadora e
condicional, não só para a criação, interpretação e aplicação, mas para
a própria existência do direito (nela se assenta a estrutura da República
brasileira).
685

Como também, Pierina Andrea Aimone Cabrera (2016) em seu artigo conceitua
a dignidade da pessoa humana como algo inerente ao ser humano, algo que não se
pode renunciar, nem mesmo ceder, deve ser assegurada, garantida e promovida pela
ordem jurídica estatal, não podendo ser retirada do indivíduo pelo ordenamento
jurídico.
Realizada a breve introdução sobre o Direito ao Esquecimento, passa-se à
reflexão sobre a reabilitação e ressocialização do indivíduo condenado. A reabilitação
é um instituto criado com a finalidade de garantir que o indivíduo que praticou atos
delituosos no passado e já cumpriu a pena que lhe foi imposta, tenha o sigilo das
informações referente a sua condenação.
O Código Penal assegura a reabilitação, que é prevista no artigo 93 “A
reabilitação alcança quaisquer penas aplicadas em sentença definitiva, assegurando
ao condenado o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação.” Vemos aqui
a garantia dos condenados, após o cumprimento da pena, podemos também conferir
essa garantia em outro dispositivo na lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal), no artigo
202:

Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou


certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça,
qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo
pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei.

Júlio Fabbrini Mirabete (1997, p. 436) ressalta a aplicabilidade imediata deste


dispositivo, dizendo que não é necessário que se aguarde o decurso do prazo de dois
anos para que se obtenha o sigilo a respeito da condenação, isto passou a ser
automático do cumprimento ou extinção da pena.
Por outro lado, a atual sociedade clama pelo direito à transparência das
informações e pela repulsa a qualquer tipo de censura prévia à impressa e à
manifestação de pensamento individual, que também constitui um direito fundamental
da personalidade.
Estamos diante de um conflito de normas, direito ao esquecimento x direito ao
acesso a informação, nesse seguimento Eudes Vitor Bezerra (2016, p. 127) trata
sobre a resolução dessa antinomia, eliminando uma das normas pelos critérios:
cronológico, hierárquico e de especialidade. Entretanto, em relação ao direito ao
esquecimento e a liberdade de expressão, existe uma antinomia de segundo grau,
pois estamos diante de dois direitos constitucionais, não existindo uma solução rígida
e pré-estabelecida.
No entanto, o acesso a esse tipo de informação não pode ser absoluto
(BEZERRA, 2016, p. 125), muito menos indefinida, pois mantendo essas informações
disponíveis a sociedade faremos com que o passado do indivíduo o acompanhe
eternamente.
É importante salientar que não estamos falando de perdão e sim do direito de
discutir a utilização dos registros criminais do indivíduo. Uma vez que essas
informações são colocadas a fácil acesso a sociedade, sem um limite temporal
estaremos diante a um fenômeno do direito chamado non bis in idem.
O princípio non bis in idem tem sua efetividade instalada no sistema penal,
previsto no Pacto de São José da Costa Rica, art. 8º, 4, como também bem no Estatuto
de Roma, art. 20, ambos acordos internacionais ratificados pelo Brasil. Sendo ele um
instituto que proíbe a dupla punição sobre o mesmo fato, proíbe que um indivíduo seja
processado, julgado e condenado pela mesma conduta, ou seja, punir duas vezes o
indivíduo por uma conduta.
686

Quando um indivíduo pratica um delito, delito este que ferem bens tutelados
pelo direito, como a vida, a honra, a propriedade entre outros, a sociedade já não o
tem mais como um cidadão, ou seja, através da indignação, da revolta, afasta esse
indivíduo do meio social.
A partir do momento que o indivíduo cumpriu a pena que lhe foi imposta, passou
pelo processo de reabilitação, uma vez que fatos relacionados ao seu passado são
trazidos à tona sem um limite temporal é uma forma de tornar a pena ad aerternum,
veementemente proibida pela Constituição Federal em seu artigo 5º, XLVII, “b”. Expor
o indivíduo de uma maneira negativa para a sociedade gera um sentimento de
exclusão, sendo um entrave para a sua ressocialização.
Evidentemente o direito ao esquecimento assume sua função, garantir que o
sigilo dos registros criminais do indivíduo não seja violado, trazendo a este tudo o que
deseja, ser deixado em paz, criando caminhos maciços para o que indivíduo
reconstrua sua vida. Para isso, há a necessidade que as leis presentes tornem-se
efetivas, que sejam aplicadas e cumpridas, só então esses indivíduos terão de volta
sua dignidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dada a importância do tema discutido, o desenvolvimento do presente estudo


possibilitou uma análise da violação do Direito ao Esquecimento, sendo ela uma forma
de tornar a pena perpétua, proibida pela Constituição Federal Brasileira. De modo
geral, a sociedade possui um bloqueio em acolher o ex-detendo, alegando o perigo
de convivência com esse indivíduo, mesmo depois que este já passou pela
reabilitação, não mais praticou delito e tem o desejo de reconstruir sua vida, em razão
disso, como forma de afastá-lo traz à tona seus deslizes para a sociedade com
intenção de alertá-la em relação a esse indivíduo. Assim, esse direito perde sua vez,
tirando a paz desse indivíduo e o mais importante, sua dignidade.

REFERÊNCIAS

CABRERA, Pierina Andrea Aimone. Direito ao esquecimento na internet: Uma


comparação entre as legislações do Brasil e Chile. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/portalStfCooperacao_pt_
br/anexo/Trabalhocorrigido100.pdf>. Publicado em: mar 2016. Acesso em: 10 nov
2017.
CURY, Natália de Castro Cury. As Dificuldades na Reintegração do Ex-Detento na
Sociedade. Disponível em: <https://psicologado.com/atuacao/psicologia-juridica/as-
dificuldades-na-reintegracao-do-ex-detento-na-sociedade>. Publicado em: maio
2015. Acesso em 10 nov. 2017.
BEZERRA, Eudes Vitor; SOARES, Marcelo Negri. (In) Aplicabiliddae do Direito ao
Esquecimento no Ambiente Internético e a Colisão de Direitos Fundamentais
Constitucionais: Liberdade de Expressão Versus Dignidade da Pessoa Humana.
Disponível em: <https://www.conpedi.org.br/publicacoes/y0ii48h0/kvg8f9o7/ypkuWO
l8sDheXHpA.pdf>. Acesso em: 15 set. 2017.
BRASIL. Legislação. Lei 7.210 de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal.
Brasília, DF, julho de 1984. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm>
687

DONIZETTI, Elpídio. Princípio da dignidade da pessoa humana (art. 6º do projeto


do novo cpc). Disponível em:
<https://elpidiodonizetti.jusbrasil.com.br/artigos/121940203/principio-da-dignidade-
da-pessoa-humana-art-6-do-projeto-do-novo-cpc>. Publicado em: 2012. Acesso em
10 nov. 2017.
JORIO, Israel Domingos. Princípio do "non bis in idem": uma releitura à luz do
direito penal constitucionalizado. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/12570-12571-1-PB.pdf> .
Publicado em: Setembro, 2006. Acesso em: 10 nov. 2017.
688

DROGAS: O PARADIGMA PROIBICIONISTA A SERVIÇO DO CAPITAL


DROGUES: LE PARADIGME PROHIBICIONISTE AU SERVICE DU CAPITAL

Emanuel Corrêa Mergulhão


Thalyta Rocha Belfort Pereira

Resumo: Há mais de um século, a maioria dos países e das organizações mundiais


adotam o paradigma proibicionista como política pública de controle às drogas. Este
trabalho apresenta reflexões sobre os motivos que levaram à adoção de tal política,
quais seus beneficiados e o mercado gerado pelo proibicionismo; bem como propõe
discutir se há legitimidade do Estado em aplicar o Direito Penal no controle às drogas.
Parte-se de premissas marxistas acerca da concepção do Estado, enquanto
instrumento coercitivo da classe dominante, ratificadas no campo jurídico por Evgeni
Pachukanis, e busca-se somar estudos à teoria filosófico-penal abolicionista,
referenciada na América Latina por Eugenio R. Zaffaroni.
Palavras-chave: Drogas. Capitalismo. Direito Penal.

Résumé: Il y a plus d'un siècle, la plupart des pays et des organisations mondiales
prenent le paradigme prohibitioniste comme politique publique de contrôle des
drogues. Cet article présente des réflexions sur les raisons pour lesquelles cette
politique a été adoptée, quels sont les bénéficiaires et le marché créé à cause du
prohibitionisme ; ainsi que propose de discuter s'il y a légitimité de l'État à appliquer le
Droit Pénal dans le contrôle des drogues. Ce texte est basé sur des prémisses
marxistes à propos de la conception de l'État pendant qu’instrument coercitif de la
classe dirigeante ratifiées par Evgeni Pachukanis dans le domaine juridique ; et aussi
il cherche ajouter des études à la théorie philosophique-pénal abolitionniste référencée
par Eugenio R. Zaffaroni en Amérique Latine.
Mots-clés : Drogues. Capitalisme. Droit Pénal.

1 INTRODUÇÃO

O uso de substâncias psicotrópicas é ancestral. Desde o ópio e seus derivados


pelas civilizações mais antigas, até as drogas sintéticas mais recentes, a humanidade
busca distintas respostas ao ingerir produtos entorpecentes.
A política proibicionista, por sua vez, é adotada há pouco mais de um século:
difunde-se inicialmente com a Convenção Internacional do Ópio (1912) e potencializa-
se com a Convenção Única Sobre Entorpecentes (1961). As perspectivas que levaram
a maioria dos países a adotarem o paradigma proibicionista como política de controle
às drogas são motivo de reflexão.
Marx apud Weffort (2006) afirma que o Estado moderno garante às classes
dominantes a hegemonia do poder político: “O governo do Estado moderno não é mais
do que uma junta que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa”.
(MARX apud WEFFORT, 2006, p. 242)
Pachukanis (1977) acrescenta que o Direito é o mecanismo pelo qual essas
classes sancionam, regulam e consolidam seu domínio e, consequentemente, as
relações econômicas e sociais. (PACHUKANIS, 1977, p. 51)
O controle das classes subalternas pelas classes dominantes é cada vez mais
evidente com o avanço do sistema capitalista até os dias atuais, no modelo neoliberal.
Destaca-se, nessa questão, o controle daqueles rotulados como traficantes de drogas
689

ilícitas, conforme aponta Boiteux (2014): jovens, negos, pertencentes às classes


sociais mais baixas.
Tal premissa também é sustentada por Zaffaroni (2003) ao expor que, diante
da impossibilidade de se aplicar o Direito Penal em toda a sociedade, o sistema
estrutural age com seletividade. Em um estado burguês neoliberal, obviamente, são
alvo deste controle os grupos sociais economicamente mais vulneráveis.
A partir dessas premissas, ergue-se o seguinte Problema Científico:
Por que o paradigma proibicionista foi adotado como política pública de controle
às drogas?
Ousa-se formular a seguinte hipótese para respondê-lo:
Com o avanço do modelo de estado neoliberal, o proibicionismo foi sustentado
e difundido por grandes potências capitalistas por interesses econômicos.
Nesta pesquisa traçou-se o seguinte objetivo geral:
Realizar breve levantamento histórico sobre o uso de substâncias
entorpecentes e a partir de que momento tornou-se oportuno adotar o paradigma
proibicionista, bem como apontar quais os beneficiados por este modelo político.
Constituíram-se dois objetivos específicos:
a) Analisar as possibilidades de mercado decorrentes da política
proibicionista.
b) Discutir se o controle às drogas deveria ser, de fato, tutelado pelo Direito
Penal.
Foi adotado o método científico dedutivo, com abordagem qualitativa, tendo
como técnicas de procedimentos metodológicos o estudo bibliográfico e a análise
documental, com ensaio científico não experimental.
Nesta pesquisa foram utilizados, em especial, os seguintes referenciais
teóricos: Boiteux (2014), Freud (2010), Maronna (2014), Pachukanis (1977), Ribeiro
(2014), Weffort (2006), Zaffaroni (2003), dentre outros, além de legislações
infraconstitucionais.

2 O USO ANCESTRAL DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES

O uso de substâncias psicotrópicas remete aos primeiros registros da


humanidade, com diversos fins: culturais, religiosos, medicinais, dentre outros.
Ribeiro (2014) narra a existência de normas para produção e uso de
entorpecentes ao longo da história: na antiga Mesopotâmia, punia-se com pena de
morte por afogamento os proprietários de tabernas que fraudassem o vinho; na
América pré-colombiana, o uso da folha de coca era restrito à nobreza inca ou àqueles
autorizados por ela, bem como diversos alucinógenos eram utilizados em seus rituais
sagrados. Com as Grandes Navegações no século XVI, houve a disseminação em
escala intercontinental de diversas drogas, o que foi potencializado pelo Reino Unido
após vencer as Guerras do Ópio. A partir desta última, a distribuição dessas
substâncias adquire um caráter comercial.
Morais (2014) descreve o uso de derivados da papoula na Grécia antiga, com
registro arqueológico que remonta ao século VII a. C. Narra que substâncias como
ópio e mecônio eram comumente utilizados como sedativos por notáveis referências
da ciência médica da Grécia e de Roma, como Hipócrates e Galeno. Dada a evolução
do comércio, o ópio passou a ser utilizado de forma recreativa em toda a Europa, o
que na Idade Moderna viria a acontecer também com a folha da coca. Já na era Cristã,
o autor complementa que o uso de substâncias entorpecentes também era comum
entre diversos outros povos, como árabes e indígenas da América pré-colombiana.
690

Freud (2010) estudou a relação do homem com a religião e identificou que as


promessas oferecidas de uma pós-vida gratificante, após uma vida de sofrimento, não
eram suficientes para suportar para as dores e decepções desta. Segundo o autor, a
máxima da vida humana é buscar a felicidade e evitar o desprazer. E, para evitá-lo,
muitas vezes o homem recorria à fuga da realidade, buscando esconder-se da fonte
dos desprazeres. Para tanto, um dos métodos encontrados seria o uso de paliativos,
dentre os quais, os narcóticos.

3 O PARADIGMA PROIBICIONISTA COMO POLÍTICA PÚBLICA

Fiore (2014) nos apresenta duas premissas que justificam a adoção do


paradigma proibicionista. A primeira é de que a ingestão das drogas traz diversos
danos fisiológicos ao indivíduo, podendo inclusive levar à sua morte, bem como danos
sociais, como o aumento da violência e a destruição de laços familiares. E a segunda
premissa, como consequência da primeira, seria a legitimidade do Estado para
reprimir a produção e o comércio daquelas drogas definidas como ilícitas.
Ribeiro (2014) relata que sempre foi rechaçado pela doutrina cristã o uso de
psicotrópicos, vinculando-os a rituais pagãos e à violência. Acrescenta que, na metade
do século XIX, a união de diversas congregações de igrejas dos Estados Unidos
fundaram movimentos que pleiteavam a proibição de todas as drogas, inclusive o
álcool.
Emerge a primeira grande reflexão: por que o proibicionismo tem como alvo um
grupo seleto de substâncias, como os derivados da papoula, da coca, da cannabis,
drogas sintéticas etc, mas o comércio do álcool, cigarros e de outras drogas
farmacêuticas legalizadas, potencialmente tão – ou mais – danosas ocorre de forma
vultuosa até os dias atuais?
É fato que, no atual modelo neoliberal, as grandes potências econômicas ditam
o estilo de vida e as políticas públicas adotadas em grande parte do mundo. Baseado
na premissa marxista do Estado como instrumento da classe dominante, analisa-se
que o livre comércio de substâncias psicotrópicas começava a trazer prejuízos à
ordem vigente. Batista (2003) narra que o marco da criminalização das drogas, no
início do século XX, nos Estados Unidos, busca atingir determinados grupos:
associava-se o uso da cannabis aos imigrantes mexicanos, o uso de ópio aos
imigrantes chineses e o uso da cocaína aos imigrantes africanos. No período da
Grande Depressão, esses três grupos representavam ameaças sociais aos brancos
norte-americanos, por oferecerem mão-de-obra mais barata e menos exigente. Sua
utilização foi necessária em outro momento histórico, mas agora mostrava-se
dispensável.
A partir daí, as políticas públicas proibicionistas cresceram: o Pure Food and
Drug Act (1906), nos EUA, determinava o detalhamento da composição dos
medicamentos; a Convenção Internacional do Ópio (1912), assinada em Haia, por
uma dezena de grandes potências, previa o esforço conjunto das nações para
prevenir a produção e distribuição de cocaína e outras drogas; o Harrison Narcotics
Act (1914), nos EUA, determinou o uso da cocaína e do ópio apenas para fins
medicinais; a Convenção Única Sobre Entorpecentes (1961), assinada em Nova York,
já sob tutela da Organização das Nações Unidas, expandiu o atual modelo criminal e
proibicionista à maioria de seus países membros; a War on Drugs, adotada pelo
presidente Ronald Reagan, na década de 1980, potencializou a guerra às drogas de
forma exponencial.
691

A Convenção (1961), ratificada pelo Brasil, e introduzida no nosso ordenamento


jurídico por meio do Decreto nº 54.216/1964, enumera grande rol de substâncias que
devem ter limitação de uso a fins medicinais e atravessa todo o campo jurídico, até a
esfera penal, ao pactuar, por exemplo:
ARTIGO 36. Disposições Penais.

1. Com ressalva das limitações de natureza constitucional, cada uma das


Partes se obriga a adotar as medidas necessárias a fim de que o cultivo,
a produção, fabricação, extração, preparação, posse, ofertas em geral,
ofertas de venda, distribuição, compra, venda, entrega a qualquer título,
corretagem, despacho, despacho em trânsito, transporte, importação e
exportação de entorpecentes, feitos em desacordo com a presente
Convenção ou de quaisquer outros atos que, em sua opinião, contrários à
mesma, sejam considerados como delituosos, se cometidos
intencionalmente, e que as infrações graves sejam castigadas de forma
adequada, especialmente com pena prisão ou outras de privação da
liberdade.

4 O MERCADO GERADO PELO PROIBICIONISMO

Neste tópico, sugere-se alguns exemplos de mercados vislumbrados a partir


da política proibicionista, com potencial lucro – motor do sistema capitalista. Será
utilizado, sempre que possível, o panorama brasileiro.

4.1 28% DOS “CLIENTES” DO SISTEMA CARCERÁRIO

O sistema penal e o encarceramento proporcionam um gigantesco mercado.


De um lado, construiu-se um grande aparelho estatal para aplicá-los: polícias, juízes,
promotores, muitos dos quais recebem subsídios próximos ao teto do funcionalismo
público, além de investimentos bilionários para manter presídios, tribunais etc. De
outro, a iniciativa privada possibilita a uma imensidade de advogados defender
judicialmente e extrajudicialmente os agentes dos mais variados tipos penais, em
troca, é claro, de honorários.
O “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias 2017”, publicado
pelo Departamento Penitenciário Nacional, revela que a crescente população
carcerária brasileira é a terceira maior do mundo, atrás apenas de Estados Unidos e
China. São 726.712 pessoas ocupando um total de 368.049 vagas. Desses, 28%
estão presos por crimes relacionados ao tráfico de drogas, inferiores apenas a roubos
e furtos, que somam 37%. O cenário é alarmante ao analisar o número de mulheres:
das 45.989 que formam a população prisional, 62% estão relacionadas a crimes de
tráfico de drogas. Ao analisar o perfil social, 64% da população carcerária é negra e
75% possui, no máximo, o ensino fundamental.
O patrocínio de uma causa em processo penal pode proporcionar ao
profissional da advocacia honorários que ultrapassam facilmente a média salarial
brasileira. A tabela da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (2018), por
exemplo, dispõe que a defesa completa em procedimento sumário deve partir de R$
8.059,20. Diligências menores em órgãos policiais, a partir de R$ 1.381,58. De acordo
com a qualificação do profissional e a complexidade da causa, é possível lucrar
fortunas.
Ressalta-se que o número de pessoas submetidas a procedimentos e
processos criminais é superior aos 28% que ocupam os presídios, pois nem todos,
692

obviamente, são condenados. Há também aqueles condenados a medidas


alternativas à prisão.
A partir do relatório “Justiça em Números 2018”, elaborado pelo Conselho
Nacional de Justiça, visualizam-se melhor tais números: mais de 80 milhões de
processos tramitaram pelo judiciário no ano de 2017. Destes, observando-se apenas
a esfera criminal: nas Justiças Estaduais, foram 2.501.484 novos casos e 7.396.592
aguardavam julgamento até o fim do ano; na Justiça Federal, somam-se 126.559
novos casos e 212.976 pendentes. Ainda outras dezenas de milhares de processos
criminais sob competência da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral e em trâmite nos
Tribunais Superiores, que totalizam cerca de 10 milhões de processos criminais em
trâmite ao ano.

4.2 PRIVATIZAÇÃO DE PRESÍDIOS

Outra via de mercado possível são as parcerias público-privadas para


administração de instituições penitenciárias. O que parece uma realidade distante,
caminha a passos tímidos e, como se sabe, a conveniência política pode trazer
proposições à tona a qualquer momento.
Em âmbito legislativo, tramita no parlamento brasileiro o PLS nº 513, de 2011,
que propõe normas gerais para a contratação de parceria público-privada para a
construção e administração de estabelecimentos penais. O projeto aguarda relatoria.
E como é possível lucrar com presídios? A resposta é simples: o Estado
transfere recursos para as concessionárias desempenharem a mesma função. Para
obter sua margem de lucro, as empresas pagam menores salários a agentes
penitenciários e investem menos na manutenção dos presídios e reabilitação dos
presos. Não obstante, torna-se possível a exploração da mão-de-obra da população
carcerária e a comercialização dos produtos por ela produzidos, conforme previsão
no projeto de lei.
Tal cenário foi observado nos Estados Unidos, ao longo das últimas três
décadas. A experiência demonstrou-se tão negativa que o Departamento de Justiça
dos Estados Unidos anunciou que pretende encerrar as parcerias público-privadas em
penitenciárias, pois “não oferecem o mesmo nível de serviços correcionais, programas
e recursos, não apresentam redução significativa de custos e não mantêm o mesmo
nível de segurança e proteção”, segundo a subsecretária de Justiça, Sally Yates.
(BBC, 2016).
O relatório elaborado pelo Departamento de Justiça dos EUA apontou também
menor investimento em fiscalização, o que possibilitava contrabandos, e má qualidade
da comida e atendimento médico, que resultava em constantes motins.
Não obstante, é paradoxal o Estado permitir a obtenção de lucro resultante da
violência e da criminalidade. A proposta de privatização dos presídios afronta um dos
pilares da ciência jurídica: a titularidade do Estado em criar e aplicar o Direito Penal –
jus puniendi.
Ressalta-se que o registro de crimes relacionados às drogas é crescente.
Boiteux (2014) observa que esse número dobrou em uma década, após a vigência da
Lei de Drogas (2006). Imaginar que esse número crescente pode se transformar em
comércio de privações de liberdade é, sem dúvida, animador sob a ótica capitalista e
temeroso do ponto de vista social.
693

4.3 INTERESSE DAS GRANDES CORPORAÇÕES

Não é possível ausentar da discussão os possíveis interesses dos grandes


grupos econômicos na questão, como os bancos e as companhias multinacionais.
Maronna (2014) aponta alguns dos financiadores da campanha contra a
legalização da maconha, no plebiscito realizado em 2012 na Califórnia: construtoras
e administradoras de presídios privados, produtoras de bebidas alcoólicas,
corporações farmacêuticas etc. Uma dedução lógica permite compreender que a
legalização para uso recreativo da maconha diminuiria a margem de lucro desses
interessados, ao aprisionar menos pessoas e permitir um novo produto concorrente
no mercado legal.
Conduzida pelo Senado dos Estados Unidos, uma investigação concluiu que
subsidiárias do banco britânico HSBC lavou bilhões de dólares para cartéis de droga
mexicanos. No longo trânsito entre países produtores de drogas, como a Colômbia e
o México, até o destino do produto, como os Estados Unidos e a Europa, a lavagem
de dinheiro possibilitou a instituições financeiras de países desenvolvidos auferir lucro,
em detrimento das mazelas decorrentes da produção de drogas nos países
subdesenvolvidos. (CARTA CAPITAL, 2012)
No Uruguai, onde foi aprovado o comércio controlado da maconha no ano de
2013, a prática esbarra em entraves causados por bancos estrangeiros: Itaú,
Santander, Bank of America, Citibank e outros. Tais instituições ameaçaram encerrar
as contas bancárias de farmácias que comercializassem maconha, sob a justificativa
de desrespeito à legislação antilavagem de dinheiro norte-americana. (EL PAÍS, 2016)
Curiosamente, alguns desses bancos já foram denunciados pelo governo norte-
americano em outras oportunidades por desrespeito à referida legislação. A
volatilidade dessas corporações alerta que há interesses obscuros que vão além de
mera legislação. Ademais, esse fato só evidencia que mudanças de paradigmas –
embora notoriamente falidos – são reféns da vontade política das potências
condutoras do sistema capitalista – em especial, os Estados Unidos.
De outro lado, agindo na omissão do Estado, diversas siglas movimentam o
bilionário mercado de tráfico de drogas e atuam em muitas vertentes. A maior delas
no Brasil, o Primeiro Comando da Capital – PCC, arrecada cerca de R$ 300 milhões
anualmente e tem influência em todo o território nacional. Hoje, a sigla é proprietária
de empresas, indústrias, possui quadro próprio de advogados e aumenta sua
influência na política – tendo eleito, inclusive, um prefeito no estado de São Paulo.
(ISTOÉ, 2017)
Em suma, o capital resultante do tráfico ilícito de entorpecentes patrocina
objetivos que estão além do seu próprio contexto.

5 CONCLUSÃO

Apesar da adoção do paradigma proibicionista como política pública há mais


de cem anos, comprar drogas continua muito fácil. O aumento do consumo é evidente
e o tráfico movimenta cada vez mais dinheiro, livre de impostos e fora de qualquer
controle estatal. Essa constatação apenas reforça o fato de que o proibicionismo
fracassou. Manter o modelo é inadequado, sob todos os pontos de vista científicos, e
trata-se de uma questão de política criminal, que beneficia apenas alguns
interessados específicos, acima exemplificados.
Conforme dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde em 2017, no
mundo, morrem anualmente cerca de 5 milhões de pessoas em decorrência do uso
694

de cigarro e outras 3,3 milhões em decorrência do uso de álcool. (GOVERNO DO


BRASIL, 2018) Tais números são muito superiores às 500 mil mortes estimadas em
decorrência do uso de drogas ilícitas. (G1, 2018)
Sustentar o modelo proibicionista atual para algumas substâncias e permitir o
comércio de álcool, cigarro e outras drogas é controverso e ilegítimo, sob dois
aspectos. O primeiro, reforça a premissa da seletividade proposta por Zaffaroni (2003)
e Marx (apud Weffort, 2006). O segundo, amparar-se sob a premissa de evitar danos
fisiológicos e sociais ao indivíduo, além de representar paternalismo estatal, não
atende a um princípio limitador do seu poder punitivo: o princípio da ofensividade
(lesividade), o qual, segundo Bitencourt (2016), exige “real e concreto perigo de lesão
a um bem jurídico determinado”, tornando-se inconstitucionais os crimes de perigo
abstrato.

REFERÊNCIAS

BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
BBC. Por que os EUA decidiram deixar de usar prisões privadas. Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37195944>. Acesso em: 16 out. 2018.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 22ª ed. rev.,
ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2016.
BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população
penitenciária brasileira e alternativas. In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.). Drogas:
uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014.
BRASIL. Decreto n.º 54.216, de 27 de agosto de 1964. Promulga a Convenção Única
Sobre Entorpecentes. Disponível em:
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro: volume I. Rio de Janeiro:
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696

TEORIA AGNÓSTICA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMO EM TEMPOS DE


NEOCONSTITUCIONALIMO
AGNOSTIC THEORY FOR A MINIMUM CRIMINAL LAW IN TIMES OF
NEOCONSTITUCIONALIMO

Renata Miranda Lima


Samira Rodrigues
Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci

Resumo: Este trabalho busca somar contribuições no campo de pesquisa a partir do


estudo de possíveis mecanismos, no Direito Penal, que possam ser ferramentas de
contenção do poder punitivo do Estado com a finalidade acelerar formas de sanar
lesões aos Direitos de pessoas em estado de cárcere, principalmente em contexto em
que o Neoconstitucionalismo é moda nos tribunais. Nesse sentido, importante
salientar que o anseio em realizar tal pesquisa nasceu a partir de estudos sobre o
movimento Neoconstitucionalista o qual se anuncia ser uma nova forma de
interpretação constitucional que deve ser aplicada a todos os ramos do Direito, uma
vez que se trata de uma técnica interpretativa pautada em valores, Direitos
Fundamentais e princípios.
Palavra-chave: Neoconstitucionalismo; teoria agnóstica da pena; estado de coisas
inconstitucionais do sistema carcerário Brasileiro.

Resume: This paper seeks to add contributions in the field of research, based on the
study of possible mechanisms in the Criminal Law, which may be tools to contain the
punitive power of the State with the purpose of speeding up ways to cure injuries to
the rights of persons in state jail, especially in a context where Neo-constitutionalism
is fashionable in the courts. In this sense, it is important to point out that the desire to
carry out such research was born out of studies on the Neo-constitutionalist movement,
which announces itself to be a new form of constitutional interpretation that must be
applied to all branches of law, since it is a question of interpretative technique based
on values, Fundamental Rights and principles.
Key-Word: Neo-constitutionalism; agnostic theory of punishment; unconstitutional
state of the Brazilian prison system.

INTRODUÇÃO

"Tempo virá.
Uma vacina preventiva de erros e violência se fará.
As prisões se transformarão em escolas e oficinas.
E os homens imunizados contra o crime, cidadãos de um novo mundo,
contarão às crianças do futuro estórias absurdas
de prisões, celas, altos muros, de um tempo superado."
Cora Coralina

O poema supracitado tece considerações que transmite um sentimento de


esperança de que no futuro, celas e prisões serão mundos superados, pois viveremos
uma nova forma de ser e pensar. Em que os cidadãos ao invés de praticar violências
posteriores em razão de erros feitos por outros cidadãos, tomarão medidas para
prevenir erros, imunizando os seres. Por tais razões não será mais necessária a
violência do Estado, as prisões se transformarão em escolas e o que alguns vivem e
outros veem hoje, não passará de Estória.
697

Entretanto, indubitavelmente não é esse o quadro atual que perpassa a


sociedade Brasileira. A vista disso, questões sobre superlotação e encarceramento
em massa tem tomado palco nas discussões sociais, políticas e científicas com a
finalidade de construir um futuro melhor, ou ao menos diferente para as futuras
gerações. Tal preocupação tomou mais forma, após o pronunciamento cautelar em
arguição de descumprimento de preceito fundamental sob o n° 347 em que declarou
a configuração do chamado “estado de coisas inconstitucional” relativamente ao
sistema penitenciário Brasileiro. A partir dessa decisão, o Supremo Tribunal Federal-
STF adotou algumas medidas como forma de atenuar lesões sofridas pelos presos
em decorrência de ações e omissões dos Poderes da União, dos Estados-Membros
e do Distrito Federal.
É nesse contexto que repousa o presente estudo, qual seja o sistema carcerário
Brasileiro e movimento neoconstitucionalista à Brasileira. Diante do cenário carcerário
atual, a preocupação do presente artigo é: partindo do estudo das teorias agnóstica,
compreender qual seria o melhor instrumento para conter o sistema do “ius puniende”
do Estado. Diante do exposto, o plano de voo para o desenvolvimento desta pesquisa,
traçará algumas construções teóricas a partir dos temas neoconstitucionalismo e
teorias da pena. Para tanto, primeiramente é tecido um breve histórico do surgimento
do movimento neoconstitucionalista, assim como, no que consiste esse movimento e
seus limites. Após, é tecido um breve apontamento sobre a teoria justificadora e a
agnóstica, para ao final tecer algumas conclusões. Por fim, é utilizada como
metodologia, a pesquisa bibliográfica e documental.

SURGIMENTO DO NEOCONSTITUCIONALISMO, SUA CONCEITUAÇÃO E


LIMITES.

O termo neoconstitucionalismo foi empregado pela primeira vez no Brasil pelos


italianos Susanna Pozzolo, Paolo Comanducci e Mauro Barberis no XVIII Congresso
Mundial de Filosofia Jurídica y Sociologia que aconteceu em Buenos Aires e La Plata
nos dias 10 e 15 de agosto em 1997, no qual, os estudiosos supracitados, foram os
primeiros a se referir ao termo neoconstitucionalismo, como forma de contrapor o
modelo jus-positivista (Duarte Possolo, 2010).
Os defensores desse movimento sustentam que as constituições brasileiras
sempre foram acometidas pela falta de efetividade e não reconheciam a força
normativa de seus textos. Por tais razões, o povo brasileiro sempre foi marcado por
uma história de insinceridade e frustação, assim, a constituição de 1988 é vista, por
esse movimento, como marco de passagem para uma Constituição efetiva a qual é
base para uma nova interpretação constitucional (Barroso, 2003, p. 27). Somado ao
exposto o professor Barroso diz que o neoconstitucionalismo é uma:

“designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem


o resgate dos valores, a distinção qualitativa entre princípios e regras, a
centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre o Direito
e a Ética. Trata-se de uma perspectiva do direito que permite a superação
da ideologia da desigualdade e a incorporação à cidadania da parcela da
população deixada à margem da civilização e do consumo. É preciso
transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na prática
jurisprudencial e produzir efeitos positivos sobre a realidade” (Barroso,
2003, p. 64).

A partir desse contexto, se depreender que os limites que desse movimento se


resumem em uma nova interpretação, que se pauta na valorização de princípios e no
698

reconhecimento de sua força normativa, que faz com que Direito e a Ética se
aproximem viabilizando a concretização de princípios, supremacia dos Direitos
Fundamentais e impulsiona uma transformação social de emancipação, pois essa
nova hermenêutica constitucional é capaz de ir além e produzir efeitos positivos sobre
na realidade (Barroso, 2003, p. 32). Ou seja, aparentemente não há limites, mesmo
diante das disposições do agir justa ou injustamente por bastar que os fins sejam:
produzir efeitos positivos sobre a realidade.
O professor Manoel, aprofundando a discussão, questiona a existência desse
novo constitucionalista ao observa que ele não é novo, mas sim resultado de uma
herança de correntes jurídicas do passado (Ferreira Filho, 2008, p.158). Tal
posicionamento é reafirmado pelo professor Carlos Bastide Horbach ao afirmar que
“dogmaticamente a nova hermenêutica em nada difere da mais tradicional doutrina
constitucionalista brasileira”, e por isso diz que as novidades apresentadas pelo
neoconstitucionalismo são conceitos centenários do Direito Constitucional pátrio
(Horbach, 2007, p. 10).
Esse movimento também tem causado corrosão da tripartição de poderes, e
segundo o professor Manoel, essa crise decorre da inflação que acometeu o judiciário
contrariando o modelo inicial o que se deu em razão da depreciação da democracia
representativa e trouxe como consequência o “descrédito” e sentimento de ausência
de representatividade nos cidadãos. O que culminou na fraqueza do produto chamado
vontade geral, abalando a primazia da lei, o que abre caminho para que o juiz,
especialmente o constitucional, se torne “ator” no jogo político, em um papel que não
lhe foi atribuído pelas regras do jogo no Estado democrático de Direito (Ferreira Filho,
2008, p.154).
Com base no exposto, o neconstitucionalismo supera a regra pelo princípio e
por isso causa insegurança jurídica, pois o aplicador pode ignorar a regra expressa
na lei, optando pelo que é mais conveniente e adequado para ao caso concreto. Ao
fazer isso o juiz aniquila e esvazia a soberania do povo que se encontra
consubstanciada na vontade geral. Por tais razões, embora o neoconstitucionalismo
tenha a pretensa valoração dos Direitos Fundamentais, ele não se coaduna com a
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 que prescreve em ser artigo
6º que a lei é a expressão da vontade geral (Ferreira Filho, 2008, p. 160). O judiciário
é aplicar o que foi construído, portanto, o decidir com base em princípios viabiliza,
tanto a construção como a modificação do que outrora foi construído.

“Juízes são servos do Direito e não o contrário. Juízes são como árbitros
de esportes. Os árbitros não fazem as regras do jogo, eles as aplicam. O
papel de um árbitro ou de um juiz é crítico. Eles garantem que todos
joguem de acordo com as regras. Mas esse é um papel limitado. Ninguém
vai a uma partida para ver o árbitro. (...) Meu trabalho é marcar as bolas e
os pontos e não arremessar ou rebater” (Amaral; Horbach, 2014).

Assim, o se desprender da legalidade com base em princípios e abraçar a ética


trás perigos, pois abala a segurança jurídica, pois as regras são formuladas a
posteriori. Tal insegurança acomete principalmente o Direito Penal, que é o campo ao
qual o presente artigo se debruça. Nos dizeres do professor Barroso “a Lei
Fundamental e seus princípios concedem novo sentido a todos os demais ramos
jurídicos”, ou seja, a Constituição e seus princípios dão novo sentido e alcance
também ao Direito Penal promovendo a efetividade da Constituição sob a nova
interpretação constitucional que se instalou no Brasil (2003, p. 27).
699

Essa nova interpretação diz promover a efetivação da Constituição com base


na valorização de Direitos Humanos, entretanto ela deve ser vista com cautela,
principalmente na conjuntura atual, pois segundo dados do INFOPEN, até junho de
2016 haviam 726.712 pessoas presas. Esse valor tornou o Brasil a terceira maior
população carcerária do mundo. Salienta-se também que dessas pessoas, 42,2 %
estão presos sem condenação (2016, p. 9). Quanto à taxa de aprisionamento,
ressalta-se que entre 2000 e 2016, “houve um aumento em 157% no Brasil. Em 2000
existiam 137 pessoas presas para cada grupo de 100 mil habitantes. Em Junho de
2016, eram 352,6 pessoas presas para cada 100 mil habitantes” (Infopem, 2016,
p.12).
Em decorrência dessa superlotação, recentemente o STF, em decisão cautelar,
reconheceu o estado de coisas inconstitucionais no sistema carcerário brasileiro
assim como, em razão da precariedade nos espaços, tortura, homicídios, violência
sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, falta
de água potável, ausência de produtos higiênicos básicos, ausência de acesso à
assistência judiciária, à educação, à saúde e ao trabalho, o domínio dos cárceres por
organizações criminosas, insuficiência do controle quanto ao cumprimento das penas,
discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual (ADPF 347). Esse
cenário de massificação de Direitos retrata a distância entre a Constituição e a
realidade no que se refere ao sistema prisional.
O quadro de violação generalizada de Direitos fundamentais não somente
aponta à falência do sistema carcerário como também fere vários pactos
internacionais dentre eles o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a
Convenção contra a Tortura, além da própria Lei de Execução Penal. A partir desse
contexto, o estudo se volta à análise da teoria agnóstica e ao final, encaminhe
conclusões parciais de um possível mecanismo penal que viabiliza pensar em um
Direito penal Mínimo para conter as violências praticadas pelo Estado, pois se
ressalta, o quadro atual do sistema carcerário corrobora que não há, desde a abolição
da escravidão, maior violação de direitos humanos no solo nacional (ADPF 347).

DIREITO PENAL E TEORIA AGNÓSTICA PARA UM DIREITO PENAL MÍNIMO

Weber demonstra que a centralização do poder político fundamenta o


“monopólio legítimo da força” e a verdadeira “relação de dominação do homem pelo
homem, com base no instrumento da violência legítima” (2006, p. 61). Essa forma de
violência legítim tomou maior forma no contrato social que justifica o direito de punir.
Tal contrato nasceu a partir da necessidade de defender o patrimônio do sujeito alheio
o que levou os homens a cederem parcela de suas liberdades ao soberano para que
esse os defendesse (Silva, 2014, p. 4), o que acabou por implicar na “agregação
dessas mínimas porções que formaram o direito de punir”.
Entretanto, qual seria a finalidade da pena? O Direito Penal e a criminologia
crítica, travam discussões referentes às penas no sentido do porque punir? A partir
desse questionamento, os argumentos se dividem em dois campos teóricos, no qual
um primeiro campo justifica a incidência da pena e o outro campo afirma a descrença
em algum fim positivo dessa, por isso é chamada de agnóstica.
Apesar de ser a teoria justificadora da pena o modelo adotado, observa-se que
esse justifica ao longo da história uma constante violenta de danos à sociedade e
nesse sentido Ferrajoli denuncia dizendo que a história das penas - nesse caso a
violência pública - é o capítulo da história da humanidade que mais produziu danos à
sociedade do que a própria história dos delitos - que nesse caso é a violência privada
700

-, porque as penas na prática acabem sendo mais cruéis e aplicadas em maior escala
do que o próprio delito, bem como, ao contrário dos delitos, as penas, sem exceção,
são programadas, conscientes e organizadas pelas agências de punitivas (2010, p.
355).
Assim, o “conjunto das penas cominadas na história da humanidade tem
produzido ao gênero humano um custo de sangue, de vidas e de padecimentos
incomparavelmente superior ao produzido pela soma de todos os delitos” (Ferrajoli,
2010, p. 355). Nesse sentido, o Professor Carvalho, diz que o problema dos discursos
de justificação das penas é que eles invariavelmente naturalizam as consequências
perversas e negativas que causam, como realidade concreta (Carvalho, 2013, p. 41).
O professor Zaffaroni observa que as teorias justificadoras da pena têm como
único horizonte de resolução de conflito por meio do modelo punitivo. Entretanto, tal
modelo apenas impõe uma decisão, por isso é pouco apto para resolver problemas.
Nesse sentido, o autor observa que o aprisionar na verdade suspende a questão e
lança ao tempo a situação, afastando totalmente a vítima e o agressor na esperança
de que o tempo solucione ou apazigue a questão fazendo as esquecer do fato (2003,
p. 87).
Essa teoria observa que é impossível conhecer todas as funções que a pena
cumpre, mas, é possível depreender que as funções atribuídas pela teoria positiva
são falsas ou não generalizáveis, pois “isolar as funções reais da pena do poder
punitivo é uma formalização jurídica artificial”, pois o maior poder do sistema penal
não reside na pena, mas sim ao poder de vingar; observar; controlar movimentos,
ideias; obter dados da vida privada e pública; cessa-los arquiva-los; impor pena, sem
o controle jurídico; controlar e neutralizar as coalizões entre os desfavorecidos
(Zaffaroni, 2003, p. 98). Ou seja, a maior manifestação do poder punitivo atua nos
abusos e na ilegalidade e este espaço, as teorias positivas não alcançam, pois sua
teoria somente percebe as violências perpetradas com base na lei. Assim, quando a
violência é puramente exercida pelo Estado, por exemplo, com enforcamentos;
matanças, fora da legítima defesa, essas violências não são perceptíveis pela teoria
positiva, por isso é incapaz de rever ou conter a completa atuação do direito penal
(Zaffaroni, 2003, p. 98 e 99).
Nesse sentido, o professor Zaffaroni propõe o reconhecimento do fracasso do
modelo positivo que afirmam funções e finalidades da pena e posteriormente,
apresenta uma teoria negativa ou agnóstica que delimita o horizonte e os limites do
Direito Penal. Para trilhar tal caminho, a teoria agnóstica propõe conceituar a pena a
partir de um “caminho diverso de suas funções”, por tais razões, descarta a via formal,
pois compreende que acabaria em uma tautologia em que pena seria o que as
agências políticas definem. Portanto, tal teoria, não parte do normativo para conter o
normativo, mas sim de um conceito jurídico para limitar o poder do Estado (2003, p.
99).
Assim, a teoria agnóstica da pena é extraída por exclusão em que “a pena é o
exercício do poder que não tem função reparadora, ou restitutiva, nem é coerção
administrativa direta”, mas é uma coerção que impõe privação de direitos e imposição
de dor. Assim, tal teoria reconhece, que a pena não tem qualquer função positiva, pois
não repara, restaura ou soluciona qualquer conflito, mas simplesmente o suspende
no tempo. Por isso ela é agnóstica, pois não reconhece qualquer função a pena
(Zaffaroni, 2003, p. 100).
A teoria viabiliza conter o poder punitivo do Estado, pois ao não definir as
finalidades da pena, permite que o Direito Penal não se limite, mas puna e racionalize
tanto a violência legal e ilegalmente praticada pelos cidadãos como pelos agentes do
701

Estado, como por exemplo, o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário


brasileiro, que é o retrato da violência pura e desnudada exercida pelo Estado. Assim,
para conter o absurdo que se mantém no cárcere, é necessário como última ratio se
sustentar no princípio da dignidade, o qual é tão abrangente que conduz tanto a
justificação da prisão de uma pessoa, melhorando-a e resguardando a sociedade de
bem, como também é base para justificar que as libertem em razão das condições
atuais do sistema carcerário. Nesse interim, a teoria positiva naturaliza a violência
praticada pelo Estado, sob a singela justificativa de que é uma resposta ao ato
praticado pela pessoa, mas, ao mesmo tempo é incapaz de perceber a falência do
sistema carcerário e não enxerga a violência praticada pelo Estado sob a justificativa
de resguardar Direitos Humanos de quem está fora dos muros e dentro deles. Nesse
sentido, recomenda-se a quem pode olhar, veja. E quem pode ver, repare!

CONCLUSÃO

O estado de coisas inconstitucionais reconhecido no sistema carcerário


Brasileiro reclama uma teorização da pena capaz de conter as arbitrariedades
perpetradas na realidade do sistema. Para tanto, é preciso sistematizar de um Direito
Penal mínimo a fim de conter o máximo dele, uma vez que a maior parte desse não
reside na pena, mas sim na vingança, na violência pura; na observação; no controle
de movimentos, ideias; na obtenção de dados da vida privada ou pública; na
imposição de pena sem o controle jurídico entre outros.
A partir desse reconhecimento, é preciso repensar a forma de ser das soluções
de conflitos sociais. Entretanto, até o presente momento, tais soluções apenas têm
sido vistas a partir do horizonte da imposição de penas de caráter aflitiva muito
próxima à vingança. Ou seja, a legislação penal tem sido o único instrumento
interpretativo do Direito penal adotando como único modelo decisório o punitivo,
entretanto há vários outros modelos decisórios como o modelo reparador, conciliador
e terapêutico.
Conclui-se que, as teorias justificadoras da pena combinada com o
Neoconstitucionalismo no cenário atual do sistema carcerário são incapazes de sanar
o estado de violação de direitos dessas pessoas. Não obstante, esse modelo tem
servido de base para a justificação e imposição de pena pura e ilegal o que é
evidenciado no estado de coisas inconstitucionais do sistema carcerário. É preciso
rever a teorização do Direito Penal, uma vez que, o manuseio das teorias justificadoras
da pena, ao longo da história, tem experimentado uma sequência de fracassos ao
pautar seus resultados na expectativa de que a pena servirá a um fim positivo. O
Neoconstitucionalismo promete produzir efeitos positivos sobre a realidade.
Entretanto, o que são efeitos positivos? Quem diz o que é efeito positivo? Diante
desses questionamentos, percebe-se que esse modelo é caminho que promove a
expansão da arbitrariedade e dos juízos de valor. Consequentemente um direito penal
máximo.

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703

Grupo de trabalho:

DIREITO POLÍTICO E
ECONÔMICO
Trabalhos publicados:

COOPERATIVISMO NA CADEIA DE VALOR DO AÇAÍ: A IMPORTÂNCIA DAS


ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NO MUNICÍPIO DE IGARAPÉ – MIRI

MULHERES E ELEIÇÃO NO BRASIL

A COTA DE GÊNERO E SUA INFLUÊNCIA NA BUSCA PELO FIM DA SUB-


REPRESENTAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA BRASILEIRA.

A IMPRESCINDIBILIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS "FILHOS DO


AFETO" SOB A ÓTICA DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

A INFLUÊNCIA DAS CLASS ACTIONS AMERICANAS NA REGULAÇÃO DO


MERCADO BRASILEIRO.

A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA POLÍTICA: A PRESENÇA FEMININA NA


CÂMARA DOS DEPUTADOS, PELO VIÉS DA LEI DE COTAS.

FINANCIAMENTO ELEITORAL - O CUSTO DA DEMOCRACIA

INTERFACES ENTRE DEFESA DA CONCORRÊNCIA E COMBATE À CORRUPÇÃO

NORMAS TRIBUTÁRIAS INDUTORAS E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: A


INDÚSTRIA DO AÇAÍ NA REGIÃO AMAZÔNICA
704

COOPERATIVISMO NA CADEIA DE VALOR DO AÇAÍ: A IMPORTÂNCIA DAS


ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NO MUNICÍPIO DE IGARAPÉ – MIRI
COOPERATIVISM IN THE AÇAÍ VALUE CHAIN: THE IMPORTANCE OF SOCIAL
ORGANIZATION IN THE CITY OF IGARAPÉ - MIRI

Melissa Mika Kimura Paz


Alan Tiago Corrêa
Ana Elizabeth Neirão Reymão

Resumo: Participam da cadeia produtiva do açaí pequenos, médios e grandes


produtores, estratégias precisam ser adotadas para que os pequenos agricultores
consigam participar do mercado. As cooperativas são organizações sociais formadas
por pessoas com objetivos econômicos comuns, fundamentadas na gestão
democrática e capaz de influenciar no desenvolvimento. O estudo pretende analisar
como o cooperativismo contribui para a valorização do trabalho e o fortalecimento dos
pequenos produtores na cadeia de valor do açaí. Por meio de uma abordagem
qualitativa, levantamento bibliográfico e estudo de caso, o trabalho conluiu que o
cooperativismo contribuiu para a geração de renda e o aumento na qualidade de vida
dos extrativistas de açaí no município de Igarapé- Miri.
Palavras-chaves: Cooperativismo; Açaí; Desenvolvimento.

Abstract: Participating in the açaí productive chain small, medium and large
producers, strategies need to be adopted for that small farmers can participate in the
market economy. Cooperatives are social organizations formed by people with
common economic objectives, based on democratic management and capable of
influencing development. The study aims to analyze how cooperativism contributes to
the valorization of work and the strengthening of small producers in the açaí value
chain. Through a qualitative approach, bibliographical survey and case study, the work
concluded that cooperativism contributed to the generation of income and the increase
in quality of life of açai extractivists in the city of Igarapé-Miri.
Key-words: Cooperativism; Açai; Development.

INTRODUÇÃO

O açaí representa uma atividade produtiva importante socialmente e


economicamente para o Estado do Pará, responsável por muitos postos de trabalho,
em que pese a maioria ser empregos informais. Essas ocupações estão distribuídas
na colheita do fruto, no transporte até os mercados, na comercialização nas feiras, na
produção e transporte dos produtos derivados.
A organização em cooperativas contribui para a inclusão e o fortalecimento dos
pequenos produtores, caracterizando-se como uma estratégia de inovação capaz de
ampliar oportunidades para a geração de trabalho e renda, influenciando no
desenvolvimento regional. A promoção de um desenvolvimento local mediante uma
dinâmica otimizada pelos empreendimentos solidários, deve ocorrer com a efetiva
participação da comunidade e das redes técnicas e institucionais.
Assim, o trabalho dedicou-se a compreender de que maneira o cooperativismo
contribui para a valorização do trabalho e o fortalecimento dos pequenos produtores
na cadeia de valor do açaí?
705

Para isso, a pesquisa tem como objetivo geral analisar a importância do


cooperativismo para a inclusão dos produtores de açaí de Igarapé-Miri no mercado
produtivo, contribuindo para o desenvolvimento regional.
Os objetivos específicos são demonstrar que a inclusão social por meio do
trabalho é importante para o desenvolvimento no Brasil, que apresentou um
crescimento excludente, analisar como o cooperativismo é um modelo alternativo de
organização do trabalho, pautado na economia solidária, capaz de fortalecer os
pequenos produtores e, por fim, apresentar os reflexos da organização em
cooperativa dos produtores de açaí de Igarapé-Miri, principalmente os aspectos
econômico e social.
O estudo tem abordagem qualitativa e os procedimentos foram o levantamento
bibliográfico sobre o tema cooperativismo enquanto modelo alternativo de
organização do trabalho, bem como um estudo de caso sobre os pequenos produtores
de açaí no município de Igarapé-Miri.

DESENVOLVIMENTO

A produção de bens e riquezas da economia capitalista tem sido historicamente


acompanhada de consequências sociais negativas, como o aumento das
desigualdades e do desemprego. O crescimento econômico excludente caracteriza
longos períodos da economia brasileira. No meio rural, a globalização provocou uma
migração para as cidades, tendo grande parte dessa população advinda do campo
ocupado o mercado informal ou empregos precários. Os que permaneceram em suas
terras representam a agricultura familiar de pequena escala, fomentando a exclusão
social causada pelo sistema econômico (SACHS, 2008).
O crescimento econômico possui um papel relevante para o desenvolvimento,
que deve ter como objetivo a melhoria da qualidade de vida da população. A garantia
do trabalho é essencial, uma vez que a renda é um funcionamento essencial para que
os indivíduos possam ter a liberdade de escolher o tipo de vida que querem levar,
além de contribuir para a autoconfiança e reafirmação do indivíduo na sociedade
(SEN, 2010).
O desenvolvimento deve-se preocupar em valorizar e proteger o trabalho da
agricultura familiar de pequena escala, garantindo sua inclusão e permanência no
mercado, além de valorizar o território rural e diminuir a migração para as cidades. A
economia solidária pode ser utilizada para a melhora da vida da população excluída
do trabalho formal, baseada na auto gestão, na solidariedade e na democracia
participativa, por meio de mecanismos de apoio mútuo, mostra-se como uma
alternativa viável para a geração de emprego e renda.
As mudanças ocorridas no processo de organização e gestão dos
empreendimentos solidários têm possibilitado o acesso a tecnologias e financiamento
público para pequenos agricultores familiares, além de favorecer a criação de uma
rede de negócios em escala ampliada, visando dar sustentabilidade econômica, social
e ambiental aos empreendimentos solidários (ANDRADE et. al, 2008).
O cooperativismo fundamenta todo processo de formação do capital social na
participação e autogestão das pessoas nas ações comunitárias, as quais
desenvolvem-se baseadas na cooperação, confiança e solidariedade social,
elementos essenciais de um capital social fortalecido, visando o crescimento do grupo,
não atendendo a interesses estritamente individuais (MARTINS; PASSADOR, 2009).
O cooperativismo gera hoje cerca de 250 milhões de empregos por meio das
2,5 milhões de cooperativas que existem ao redor do planeta, presente em 105 países,
706

a união das 300 maiores cooperativas corresponderia a 9º economia do mundo. A


Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) atribui sete princípios para o
cooperativismo, que são valores orientadores: adesão voluntária e livre; gestão
democrática; participação econômica dos membros; autonomia e independência;
educação, formação e informação; intercooperação e, por fim, interesse pela
comunidade (OCB, 2018).
O princípio da adesão livre e voluntária determina que as cooperativas devem
aceitar todos aqueles que queiram participar, cumprindo com suas responsabilidades,
e que tenham o mesmo objetivo econômico. O princípio da gestão democrática traz a
ideia de que as cooperativas são geridas por todos os membros e o representante
deve ser eleito com a participação de todos (OCB, 2018).
A participação econômica dos membros significa que suas contribuições são
equitativas, a cooperação possui um capital de propriedade comum e os membros
recebem uma remuneração proporcional ao capital integralizado. Com o valor da
autonomia e independência, entende-se que a cooperativa deve manter-se
independente e autônoma, controlada democráticamente pelos seus membros (OCB,
2018).
A educação, formação e informação são valores para os cooperados e para a
comunidade onde estão inseridos. O princípio da intercooperação estimula a atuação
conjunta de várias cooperativas, fortalecendo mais as organizações sociais em torno
de um bem comum. E, o princípio do interesse pela comunidade determina que a
preocupação com o desenvolvimento sustentável das comunidades deve ser um dos
objetivos (OCB, 2018).
Assim, as cooperativas têm o potencial de gerar desenvolvimento para as
regiões onde são implementadas, reduzir as desigualdades de renda e fortalecer a
defesa das liberdades individuais e coletivas das comunidades. A relação de
cooperação que se estabelece entre cooperado e cooperativa é solidaria e fraterna
(MARTINS; PASSADOR, 2009).
O município de Igarapé-Miri, conhecido como a capital mundial do açaí,
produziu 280 milhões de toneladas do fruto em 2017 e tem em média 6 mil pessoas
trabalhando na cadeia produtiva, que em sua base está os agricultores familiares
extrativistas (IBGE, 2018). A cadeia produtiva do açaí tornou-se uma cadeia de valor
global, sendo imprescindível que os agricultores familiares sejam fortalecidos, para
que não sejam excluídos dos benefícios oriundos do crescimento da atividade
econômica associada ao fruto.
A cadeia produtiva do açaí é um universo formado tanto por pequenos e médios
produtores, quanto por grandes grupos empresariais, não sendo esperado que todos
tenham iguais condições e chances de sobreviver no mesmo mercado. Um pequeno
produtor, que colhe algumas rasas de açaí por dia em sua propriedade, não possui a
mesma força competitiva e poder de barganha do que um produtor que produz 100
rasas por dia, por exemplo. O cooperativismo permite que os pequenos produtores
com objetivos comuns, unam-se em grupos, aumentando o seu poder de negociação
e competição no mercado.
O trabalho nas cooperativas do município de Igarapé-Miri divide os produtores
em núcleos, com um representante eleito para recolher a produção dos agricultores
associados e fiscalizar a qualidade do produto, são aceitos apenas os frutos colhidos
pela manhã. O representante entrega os frutos para serem transportados até o local
onde será comercializado, no final da tarde, o preço é estabelecido previamente por
meio de contrato entre as cooperativas e as empresas que beneficiam o produto.
707

Os pequenos produtores que não fazem parte de cooperativas ou associações


possuem menos alternativas para a comercialização do fruto, normalmente a venda
ocorre na própria propriedade para atravessadores, que o compram por um preço
menor e o transportam para a cidade onde será comercializado.
As organizações sociais foram essenciais para a inclusão no mercado das
populações que trabalham na cadeia do açaí, o cooperativismo influenciou na maior
auferição de renda e refletiu na qualidade de vida das famílias ribeirinhas de Igarapé-
Miri. Além disso, o município possui a primeira indústria comunitária de açaí do Estado
do Pará, criada pela Cooperativa Agro-industrial de Moradores e Produtores Rurais
de Igarapé-Miri (COOPFRUT) (DAMASCENO, 2009).
Pelo exposto, pode-se afirmar que participar do mercado de trabalho é muito
importante para garantir a liberdade e a inclusão social do indivíduo e por meio do
cooperativismo permite-se que os pequenos produtores de açaí de Igarapé-Miri
aumentem sua competitividade no mercado, refletindo em uma melhor qualidade de
vida, sendo as organizações sociais capazes de contribuir para o desenvolvimento
regional.

CONCLUSÃO

O cooperativismo, por promover a atuação conjunta da comunidade e a união


de indivíduos em prol de um mesmo objetivo econômico, tem efeitos positivos em
favor da solução de problemas sociais como a exclusão, a falta de oportunidades
econômicas e o êxodo rural, consequências do crescimento econômico excludente.
Por ser um sistema que valoriza as pessoas e o crescimento do grupo,
influência positivamente no desenvolvimento econômico e social dos cooperados,
observando os valores valores de democracia participativa, liberdade, equidade,
solidariedade e justiça social.
Conclui-se que as cooperativas no município de Igarapé- Miri ajudaram a
fortalecer os pequenos produtores no mercado, para tivessem uma participação mais
forte e uma maior capacidade de negociar. Observou-se que as cooperativas
valorizam o trabalho dos extrativistas do açaí, melhorando sua qualidade de vida,
assim, contribuindo diretamente para o desenvolvimento da região.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Lúcia Cristina et al. Adoção de novos paradigmas na organização e


gestão de empreendimentos Solidários: um estudo sobre o processo produtivo do açaí
através das associações e cooperativas no Território Rural do Baixo Tocantins–Pará–
Brasil. Anais. 46º. In: Congresso Sociedade Brasileira de Economia, Administração e
Sociologia Rural. Rio Branco. 2008. Disponível em:
<https://ideas.repec.org/p/ags/sbrfsr/114020.html>. Acesso em: 10/08/2018.
DAMASCENO, Edelvira Maria Sinimbú de Lima. Associativismo, desenvolvimento
endógeno e formação da cadeia produtiva do açaí em Igarapé-Miri: um estudo de
caso. 2009. Dissertação - Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal
do Pará, Belém.
IBGE. Produção Agrícola Municipal, 2017. Disponível em:
<https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=766>.
Acesso em: 10/08/2018.
MARTINS, Monica Mendes; PASSADOR, Claudia Souza. O papel da organização
cooperativa no desenvolvimento de uma região: um estude de caso de uma
708

cooperativa de pequenos produtores de São Paulo. Anais. 47º. In: Congresso da


Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Economia Rural. Porto Alegre.
2009. Disponível em: <http://www.sober.org.br/palestra/13/822.pdf>. Acesso em:
10/08/2018.
OCB. Organização das Cooperativas Brasileira. Disponível em: <www.ocb.org>.
Acesso em: 24/09/2018.
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável, sustentado. Rio de
Janeiro: Garamond, 2008.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
709

MULHERES E ELEIÇÃO NO BRASIL


WOMEN AND ELECTIONS IN BRAZIL

Ana Paula Giamarusti Carvalho


Luciana Temer

Resumo: O artigo traz um breve histórico dos direitos das mulheres nas eleições
brasileiras, desde a conquista do direito ao voto. Como as legislações eleitorais e
decisões de tribunais garantem, atualmente, o ingresso da mulher na política
partidária, para que seja efetivada a democracia no Brasil, com representação de
todos aqueles que fazem parte da sociedade. Buscaram-se dados que demonstram a
baixa participação das mulheres na política eletiva apesar de serem maioria no
eleitorado e como a proteção legal e jurisprudencial tem papel decisivo na postura dos
partidos políticos para buscar, formar e dar respaldo às mulheres, e a importância do
aporte financeiro para essas candidaturas.
Palavras-chave: mulher; representatividade; democracia.

Summary: The article gives a brief history of the rights of women in the Brazilian
elections, from the conquest of the right to vote. As electoral laws and court decisions
now guarantee the entry of women into party politics, so that democracy in Brazil can
be realized, with representation of all those who are part of society. Data that
demonstrate the low participation of women in elective politics have been sought
despite being a majority in the electorate and how the legal and jurisprudential
protection plays a decisive role in the political parties' stance to seek, train and support
women, and the importance of the contribution for these applications.
Key words: woman; representativeness; democracy.

INTRODUÇÃO

Para as mulheres, no Brasil, a garantia do direito ao voto foi o primeiro passo


das conquistas políticas. Em 1824, a Constituição definia que apenas homens livres e
adultos (acima dos 20 anos) podiam votar.
Há registros de que na Constituinte de 1890 houve intensos debates sobre a
questão do voto feminino, mas o texto final da Constituição de 1891 dizia em seu artigo
70 que eram eleitores “os cidadãos maiores de 21 anos”, que se alistassem na forma
da lei. O deputado Moniz Freire chegou a dizer que o voto à mulher representaria a
“dissolução da família brasileira”.1
O primeiro registro que se tem pela luta do voto feminino no Brasil é a fundação
do Partido Republicado Feminino, no Rio de Janeiro, em 1910, pela professora
Deolinda Daltro. Mas o destaque nesta militância é Bertha Luz, que em 1919 criou a
Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, embrião da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino (FBPF). Bertha é reconhecida como a maior líder na luta pelos
direitos políticos das mulheres brasileiras e sua FBPF fazia grandes esforços junto a
políticos, para que fosse concedido às mulheres o direito de voto e também o de serem
candidatas. O pioneirismo na legislação, fruto desse trabalho, veio do Estado do Rio
Grande do Norte, que em 1927 teve incluída uma emenda em sua lei eleitoral
estadual: “Artigo 17. No Rio Grande do Norte, poderão votar e ser votados, sem
distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta
lei.” Como resultado dessa lei, vinte eleitoras se inscreveram, e quinze mulheres
1
Disponível em: <http://www.cmc.pr.gov.br/ass_det.php?not=24300#&panel1-1> Acesso em Julho/2018.
710

votaram na eleição de 15 de abril de 1928, na qual Juvenal Lamartine – que pleiteou


ao governador essa alteração – foi eleito.
Em 1928 uma advogada mineira, conhecida como Mietta Santiago, impetrou
um Mandado de Segurança alegando que a proibição do voto feminino contrariava o
artigo 70 da Constituição de 1891, pois “cidadãos maiores de 21 anos que se
alistavam na forma da lei” não fazia distinção entre homens e mulheres. Seu Mandado
de Segurança foi julgado procedente e ela conseguiu o direito de votar e também o
de concorrer ao cargo de Deputada Federal.
Apenas em 1932, durante o governo de Getúlio Vargas, através do decreto
21.076 do Código Eleitoral Provisório, é que foi garantido às mulheres o direito ao
voto. Mas havia restrições: somente mulheres casadas – com autorização dos
maridos – e viúvas e solteiras com renda própria poderiam votar.
Finalmente, na Constituição de 1934 ficou assegurado o direito das mulheres
ao voto, sem restrições. E em 1946 a Constituição determinou a obrigatoriedade do
voto às mulheres.
No ano de 2008, a maioria dos eleitores brasileiros já eram mulheres: dos 130
(cento e trinta) milhões, 51,7%. Em 2018, as mulheres são 52% do eleitorado.
Entretanto, esse expressivo número de eleitoras não se reflete na composição
das Casas Legislativas nem no comando do Poder Executivo. Na Câmara dos
Deputados, 10% são mulheres, e no Senado Federal, 14% são senadoras.
Outros números também são reveladores desta desigualdade: nas eleições de
2016 houve 31,60% de candidatas mulheres e apenas 641 mulheres foram eleitas
Prefeitas, o que corresponde a 11,57% do total de Prefeituras. No Estado de São
Paulo, 63 municípios não elegeram nenhuma mulher, nem para vereadora nem para
prefeita.
Em 1995, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, com o tema “Ação para a
Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”, celebrada na China, resultou na Plataforma
de Ação de Pequim, que afirmava os direitos das mulheres como direitos humanos e
que a igualdade de gênero é uma questão de interesse universal, que beneficia a
todos. Por isso, recomendava aos países signatários ações afirmativas para diminuir
a defasagem do número de mulheres na política. O Brasil assinou a Plataforma em
setembro de 1995.
Dessa forma, para fomentar o equilíbrio na participação política e para cumprir
a recomendação da qual foi signatário, desde 1995 a legislação eleitoral brasileira
passou a determinar um percentual mínimo de candidatas mulheres a serem
apresentadas pelos partidos ou coligações.

PROMOÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NAS ELEIÇÕES

Políticas públicas podem ser definidas como diretrizes e princípios norteadores


de ação do poder público. São relações/mediações entre atores da sociedade civil e
o Estado.
Essa desigualdade entre número de eleitoras e de mulheres eleitas e a falta de
práticas democráticas nos partidos políticos precisa ser enfrentado pelo Estado, a fim
de termos uma democracia plena, com igual representatividade de todos aqueles que
participam da sociedade.
Interessante ressaltar que apesar de o senso comum normalmente denominar
os destinatários das ações afirmativas de minorias, há aqui um típico caso do que
pode ser chamado de “maioria minorizada”, afinal são as mulheres a maior parte da
sociedade e dos eleitores no Brasil.
711

Segundo dados da Inter-Parliamentary Union (IPU, 2016), quanto ao percentual


de mulheres na câmara baixa ou única, o Brasil está no 155° lugar, de 191 países,
atrás de países como os Emirados Árabes Unidos (onde há 22,5% de participação
feminina).
De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral, dos 5.668 municípios
brasileiros, 2.963 possuem maioria feminina no eleitorado. No entanto, em apenas 24
municípios as mulheres são maioria nas câmaras dos vereadores. E em 1.286 dos
5.568 municípios brasileiros, todos os vereadores são do sexo masculino.
A primeira vez que a lei eleitoral determinou cotas para as candidatas mulheres
foi em 1995, na Lei nº 9.100, que determinava as regras para as eleições municipais
subsequentes. Essa lei determinou o mínimo de 20% de candidatas em cada partido
ou coligação.
Contudo, mais de duas décadas após a implantação da cota de gênero em
eleições proporcionais, o tema permanece atual, como mostram os números, e ainda
são necessárias ações afirmativas para garantir um mínimo de mulheres na política
partidária.
Em 1997 essa norma foi revisada pela Lei nº 9.504, que determinou que nas
eleições de 1998 o percentual mínimo de cada gênero fosse de 25%, estendeu a
medida para todos os cargos e para todas as eleições seguintes, em âmbito municipal,
estadual e federal. E a partir das eleições do ano 2.000, a cota de gênero foi ampliada
para 30%.
A interpretação dessa norma, pelos partidos, foi no sentido de que essa cota
seria mera reserva de vagas. A redação do artigo 10, §3º era a seguinte: “Do número
de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação
deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para
candidaturas de cada sexo.” A expressão “deverá reservar” era usada para justificar
a ideia de que se não houvesse candidatas aptas a preencher esses 30%, poderia o
partido colocar homens nessas vagas. Mas isso era combatido por outra corrente,
sendo inclusive a posição do Tribunal Superior Eleitoral2.
Então, em 2009 foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei nº 12.034,
conhecida popularmente como minirreforma eleitoral, e a expressão “deverá reservar”
foi alterada por “preencherá”: “Do número de vagas resultante das regras previstas
neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de
70% para candidaturas de cada sexo”. Com isso, não restou mais dúvidas sobre a
obrigatoriedade da questão. Não há mais como falar em simples “opção ou reserva”.
Mas na prática as cotas não eram respeitadas, e a única ressalva obedecida
era que as vagas destinadas às mulheres não poderiam ser ocupadas por homens.
Nesse sentido, muito oportuna a ementa do julgamento do Recurso Especial
nº78432/PA, de 2010, que fixou o entendimento no sentido que a mudança do
vocábulo “deverá reservar” por “preencherá” era significativa e, portanto, de
observância obrigatória.
A Lei nº 12.891, de 2013, outra minirreforma eleitoral, introduziu na Lei nº 9.504
o artigo 93-A, que previa que o TSE poderia promover propaganda institucional em
rádio e televisão, para incentivar a igualdade de gênero e a participação feminina na
política, entre março e junho de anos eleitorais. E a “Reforma Eleitoral de 2015”3
passou a determinar a obrigatoriedade dessas campanhas, com cinco inserções
diárias de mensagens dirigidas às mulheres, durante os quatro meses anteriores às
eleições.

2
Res. nº 19.582, de 30.5.96, rel. Min. Diniz de Andrada.
3
Lei nº 13.165/2015.
712

Além das cotas quanto às candidaturas, também pode haver norma quanto ao
percentual mínimo na reserva de assentos parlamentares, mas essa regra não é
utilizada no Brasil.
Com todas essas alterações iniciou-se um novo momento para os partidos, que
passaram a perceber a importância de buscar mulheres para compor suas chapas.
Entretanto, começaram a registrar no Drap (Demonstrativo de Regularidade de Atos
Partidários) candidatas que foram denominadas popularmente como “candidatas
laranjas” ou “candidatas fantasmas”, porque eram apenas figurantes, e não
efetivamente candidatas aos cargos. Os partidos lançavam essas candidatas para
cumprirem a cota obrigatória de 30% mas não investiam em sua formação e
campanha. Muitas delas eram obrigadas pelos partidos a se candidatarem, e algumas
nem mesmo sabiam que eram candidatas, até o momento em que foram chamadas a
fazer suas declarações à Justiça, pois o Ministério Público Eleitoral tem apurado essas
irregularidades.
Como demonstrativo dessa situação, dados do Tribunal Superior Eleitoral
revelam que nas eleições de 2016, 16.131 candidatos terminaram a eleição municipal
sem ter recebido nenhum voto. Destes, 14.417 eram candidatas, e apenas 1.714
candidatos.
Em 1º de Agosto de 2017 houve uma decisão pioneira proferida por
unanimidade no TRE de São Paulo, no Recurso Eleitoral Nº 37054/SP, onde foram
cassados os registros dos vinte e dois candidatos a vereador da cidade de Santa Rosa
do Viterbo, nas eleições municipais de 2016, que incluiu dois vereadores eleitos. Esta
ação foi ajuizada pelo Ministério Público Eleitoral, que tinha como orientação propor
ação de investigação eleitoral (AIJE) e de impugnação do mandato eletivo de toda a
legenda do partido ou coligação que se beneficiasse de candidaturas fraudulentas.
Neste caso, o percentual de 30% tinha sido cumprido4, mas investigações
demonstraram que três não participaram de campanhas e não receberam nenhum
voto, e sem elas a coligação não teria cumprido o percentual determinado por lei.
Dessa decisão houve recurso, que ainda será julgado pelo TSE, mas dado o
ineditismo do acórdão, vale o destaque como marco histórico.
A Lei nº 13.165 trouxe inúmeras novidades, tal como o estabelecimento de um
percentual mínimo e máximo de recursos do Fundo Partidário para aplicação em
campanhas eleitorais de mulheres. Nas três eleições seguidas à publicação da lei os
partidos deveriam reservar no mínimo 5% e no máximo 15% do montante do Fundo
Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para aplicação nas
campanhas de suas candidatas.
A Procuradoria Geral da República, no final do ano de 2016, propôs a Ação
Direta de Inconstitucionalidade 5.617 (ADI), que contestava essa norma da Lei nº
13.165/2015. Seu Relator foi o Ministro Edson Fachin. Segundo Rodrigo Janot,
Procurador Geral da República à época da propositura da ação, não bastava que a lei
reservasse percentual de vagas para candidatas sem garantir recursos suficientes
para disputar o pleito eleitoral em igualdade de condições com os homens.
Para ilustrar essa situação, dados do Tribunal Superior Eleitoral de 2014
revelam que, quanto aos recursos financeiros das candidatas às Assembleias
Legislativas, o quadro era o seguinte: foram 4.447 mulheres candidatas, e 120 eleitas,
com uma média de R$36.750,67 gastos em campanhas. Quanto aos homens, havia
10.828 candidatos, 942 foram eleitos e a média de gastos em campanhas foi de R$
99.719,14. E não há como sustentar uma política pública sem financiamento.

4
Eram 22 (vinte e dois) candidatos no total, sendo sete mulheres.
713

Na ADI 5617, um dos itens questionados era o artigo 9º propor um teto de 15%
para o financiamento de campanhas de mulheres, enquanto não havia limite máximo
para as campanhas masculinas, o que fere de maneira inequívoca o princípio da
igualdade, e contraria o papel da lei de estimular as mulheres na política. Além disso,
como a lei determina o mínimo de 30% para cada gênero nas chapas, é no mínimo
incongruente esse percentual de 5 a 15% para os valores de campanhas.
O principal argumento da ADI era o artigo 5º da Constituição Federal, ao
proclamar em seu inciso I que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações,
e não há como falar em democracia representativa sem mulheres efetivamente
representadas. Por maioria, o STF entendeu que a distribuição de recursos do Fundo
Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais direcionadas às
candidaturas de mulheres deve ser feita na exata proporção das candidaturas de
ambos os sexos, respeitado o patamar mínimo de 30% de candidatas mulheres
previsto no artigo 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997. O Plenário decidiu também que a
fixação de prazo para esta regra, como determina a lei, é inconstitucional, e que a
distribuição não discriminatória deve perdurar enquanto for justificada a necessidade
de composição mínima das candidaturas femininas.
Em seu voto, o Relator Ministro Edson Fachin ressaltou que é próprio do direito
à igualdade a possibilidade de uma desequiparação, desde que seja pontual e tenha
por objetivo superar uma desigualdade histórica, que é o quadro que temos no país,
onde apesar de o eleitorado ter maioria de mulheres, isso não se reflete nos pleitos.
Entendeu que a fixação de 5% é manifestamente inconstitucional e poderia fazer com
que os candidatos recebessem até 95% dos recursos, salientando que o caráter
público desses valores advindos do Fundo Partidário é mais um elemento para
reforçar a ideia de distribuição igualitária.
Em Setembro de 2015, o STF decidiu proibir o financiamento empresarial das
campanhas, como uma resposta à Operação Lava Jato, que demonstrou que
empresas privadas abasteciam os partidos para que depois fossem consumados
negócios com o dinheiro público. Assim, a eleição municipal de 2016 foi realizada sem
doação empresarial, e a arrecadação caiu pela metade em relação às eleições
municipais de 2012, segundo o Tribunal Superior Eleitoral.
Dessa forma, decidiu o Congresso Nacional definir novas regras para financiar
a propaganda eleitoral e criou o Fundo Especial de Financiamento de Campanha
(FEFC) para os anos de eleições gerais e municipais5, constituído por dotações
orçamentárias da União6. As eleições de 2018 receberam R$ 1,716 bilhão do Fundo
Especial de Financiamento de Campanha.
Mas havia no FEFC uma lacuna: como esses valores seriam distribuídos às
candidaturas femininas? Assim, um grupo de congressistas formulou a Consulta
060025218 à Corte Superior Eleitoral, onde se pleiteava que o TSE aplicasse ao
Fundo Especial de Campanhas a mesma regra fixada pelo STF em relação ao fundo
partidário, determinando que no mínimo 30% do montante fossem destinados às
mulheres candidatas, e ao tempo destinado à propaganda partidária, que também é
financiada com recursos do Estado.
Em decisão unânime, o Plenário do TSE confirmou que os partidos políticos
deverão reservar no mínimo 30% dos recursos do FEFC para financiar candidaturas
femininas, e o mesmo percentual deve ser considerado em relação ao tempo

5
Lei nº 13.487, de outubro de 2017, que alterou dispositivos da Lei das Eleições e da Lei dos Partidos Políticos.
6
Distribuído da seguinte forma: 2% divididos igualitariamente entre todos os partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral;
49% divididos entre os partidos de acordo com a proporção de votos obtidos na última eleição para a Câmara; 34% divididos
entre os partidos na proporção de representantes na Câmara; e 15% divididos entre os partidos na proporção de
representantes no Senado.
714

destinado à propaganda eleitoral no rádio e na televisão. Havendo mais de 30% de


candidatas mulheres, os recursos do Fundo Especial e a distribuição do tempo de
propaganda devem ser feitos na mesma proporção.
A Ministra Relatora Rosa Weber utilizou os mesmos fundamentos da decisão
do STF no julgamento da ADI 5617, no sentido de que os partidos têm autonomia para
suas decisões, mas devem respeitar os limites constitucionais. Assim, em respeito ao
princípio da igualdade não pode haver diferença no critério de distribuição dos valores,
apenas pelo gênero. Sobre a questão do tempo de rádio e televisão, decidiu-se que
não haver norma regulamentadora sobre sua distribuição não inviabiliza uma solução
jurídica baseada nos princípios da Constituição.
Registre-se também que o Partido Social Cristão (PSC) ajuizou a ADI 3.986,
em 2007, contra o dispositivo da Lei nº 9.504 que impõe o percentual de 30% para
cada gênero nas candidaturas, sob o argumento de que essa determinação violaria o
princípio fundamental da isonomia entre homens e mulheres, criando um
favorecimento, que haveria dificuldade dos partidos em atender essa determinação e
o prejuízo que teriam em relação à obtenção de votos. A manifestação da Advocacia
Geral da União foi no sentido de rejeição da ADI, pois a lei eleitoral busca a isonomia
e tenta reduzir a diferença que existe na participação entre homens e mulheres na
política.
A determinação de um percentual mínimo para cada gênero, nas candidaturas,
é uma prática observada por diversos países. Como exemplo tem-se a Noruega, local
onde os partidos adotam esse sistema desde 1978. Na Dinamarca, desde 1985 uma
lei federal impõe a paridade de gêneros nos comitês consultivos e administrativos. Na
Finlândia, cada gênero deve representar no mínimo 40% dos participantes de comitês
e órgãos públicos de decisão, desde 1986. Na América Latina, no Uruguai, desde
1992, vigora a regra de que nenhum gênero poderá ter mais de 75% nas listas de
candidatos; na Colômbia, desde 1998, a norma impõe igual proporção de homens e
mulheres nas listas eleitorais e por fim, na Argentina, desde 1993, temos regra igual
à brasileira: no mínimo 30%, das listas de candidatos devem ser mulheres. No México,
desde 2014 a reforma eleitoral garantiu a paridade entre homens e mulheres em
candidaturas federais e locais. Nas eleições de 2018, o Tribunal Eleitoral mexicano
cancelou quinze candidaturas para vereadores, devido à fraude de homens que
fingiram ser transgênero.

CONCLUSÃO

Basta ser mulher? O fato de haver mais candidatas mulheres e, por


consequência, nas tribunas políticas, faz com que as pautas e a legislação sejam mais
favoráveis à população feminina?
Sabe-se que não basta ser mulher para que se defendam questões como
legalização do aborto, combate à violência física e sexual, prioridade à infância,
educação integral, construção de creches. Muitas mulheres chegam ao poder
defendendo pautas “tradicionalmente masculinas”. Não há dúvidas sobre o fato de
que representatividade importa, e a perspectiva social de ser mulher acaba vinculada
a algumas experiências. Por isso, é necessária cada vez mais a presença de mulheres
na política eletiva, e o alinhamento das demandas sociais que privilegiem a igualdade.
Estar em condições de igualdade na vida político-partidária é apenas o início para que
a representatividade passe a ser efetiva.
715

Como aspecto positivo, um estudo publicado no “Journal of Economic Behavior


& Organization”7 entre mais de 125 países, incluindo o Brasil, revelou que a corrupção
é menor onde mais mulheres participam do governo e concluiu que as mulheres
impactam diretamente na formulação de novas políticas contra a corrupção.
Não haverá igualdade de gênero sem que haja o rompimento das barreiras
institucionais, normativas e fáticas que dificultam o ingresso das mulheres na política
eletiva.
Sem mulheres participando da política em condições iguais, com possibilidades
de criarem leis e pautarem as demandas, a força da cultura patriarcal brasileira
continuará se sobrepondo, e não chegaremos a uma cultura igualitária.

REFERÊNCIAS

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ação afirmativa eleitoral. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, n. 122, mar 2014.
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VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Rev. direito GV [online]. 2008, vol.4, n.2,
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7
Estudo feito por feito por Chandan Jha e Sudipta Sarangi. Disponível em: <https://g1.globo.com/olha-que-legal/noticia/paises-
onde-mais-mulheres-estao-no-governo-temmenos-corrupcao-diz-estudo.ghtml>. Acesso em Julho/2018.
716

A COTA DE GÊNERO E SUA INFLUÊNCIA NA BUSCA PELO FIM DA SUB-


REPRESENTAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA BRASILEIRA.
THE GENDER CUT AND ITS INFLUENCE IN SEARCHING FOR THE END OF
FEMININE SUB-REPRESENTATION IN BRAZILIAN POLICY

Thaís Karoline Ferreira de Medeiros


Martha Maria Guaraná Martins de Siqueira

Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar a evolução dos direitos políticos


femininos, para tal, foi feita uma linha do tempo relatando alguns dos passos mais
importantes dados pelas mulheres no mundo até que finalmente conquistaram o
direito ao sufrágio em 1893, sendo a Nova Zelândia, primeiro país a permitir que as
mulheres votassem. No Brasil, foi apenas no ano de 1946 que as mulheres
conquistaram a obrigatoriedade do direito de votar através da determinação do
sufrágio universal, previamente estabelecido pelo Código Eleitoral de 1932,
entretanto, com restrições. Muitos anos se passaram e a participação política feminina
no Brasil ainda é mínima caso seja comparado com a quantidade da população de
mulheres no país. E isto se deve ao fato de que elas não foram criadas como seres
políticos, cabendo então ao Estado a criação de políticas públicas que estabeleçam
medidas que as influencie participar da política.
Palavras-Chave: Política. Mulher. Voto. Sufrágio. Direito.

Abstract: The purpose of this paper is to present the evolution of women's political
rights. A timeline was made for some of the most important steps taken by women in
the world until they finally won the right to vote in 1893, with New Zealand being the
first country to allow women to vote. In Brazil, it was only in 1946 that women won the
right to vote through the determination of universal suffrage, previously established by
the 1932 Electoral Code, however, with restrictions. Many years have passed and
female political participation in Brazil is still minimal if compared to the amount of the
population of women in the country. And this is due to the fact that they were not
created as political beings, and it is then up to the State to create public policies that
establish measures that influence them and participate in politics.
Keywords: Politics. Woman. Vote. Suffrage. Right.

1. INTRODUÇÃO

Muitos anos e muita luta foram necessários até que finalmente as mulheres
adquiriram seu direito ao sufrágio. Foi devido a muitas mulheres e homens que
dedicaram muitas vezes suas vidas em busca da igualdade de direitos entre homens
e mulheres. A primeira conquista, advinda da Nova Zelândia, acabou inspirando
diversos outros países a evoluírem junto com ela, entretanto, devido a heranças
infelizes do patriarcado, que representava uma dominação do homem sobre a mulher
e uma submissão nunca questionada por parte delas, fazia com que a evolução
caminhasse a passos lentos.
No Brasil, a mulher só conquistou o Direito de votar sem restrições no ano de
1936, e a partir disso, uma nova luta começou. Uma batalha para que as mulheres
colocassem a política como algo que fizesse parte de suas vidas, para que estas
começassem a ter sua independência e iniciassem o envolvimento e participação nas
decisões da gestão pública.
717

2. DESENVOLVIMENTO

Bobbio (2000) entende por democracia a forma de governo que reúne o poder
nas mãos da maioria ou de todos, contrapondo aquelas que concentram o poder nas
mãos de poucos, como a monarquia e a oligarquia. O Brasil vive atualmente num
modelo de democracia denominado de representativo, que se dá por meio da escolha
de um representante, que ficará encarregado de gerir a coisa pública, estabelecendo
e executando leis de modo a atender aos interesses daqueles que o escolheram para
estar ali exercendo seus cargos.
A escolha de um representante por meio do povo se dá a partir do sufrágio, que
no Brasil foi grande obstáculo na vida política das mulheres, já que esse direito só lhes
foi dado em 1932, contudo, ainda repleto de diversas restrições ante o seu exercício.
Esta inserção tardia gerou pouca participação e, consequentemente, baixa
representação das mulheres na política, tanto que atualmente há uma sub-
representação do gênero feminino na política brasileira. Um exemplo disto é que das
513 cadeiras que devem ser ocupadas por Deputados Federais na Câmara, apenas
51 são ocupadas por mulheres, situação que se agrava ainda mais, pois a porção de
mulheres que exercem algum cargo no legislativo brasileiro se subdivide em 3 grupos.
O primeiro é o das mulheres que tem a política como carreira e herança familiar,
o segundo é aquele composto por mulheres que são eleitas por uma comunidade
específica, e que se dedicam durante seu mandato a lutar por questões referentes a
estes que a elegeram que é o caso das evangélicas, e por fim, há a parte pequena de
mulheres que realmente representam seu gênero.
Miguel e Biroli (2010) em uma análise a Pateman (1989) vão ainda mais fundo
na questão dos motivos que levam as mulheres a sua atual sub-representatividade
quando identificam três vertentes principais que causaram esta situação. Inicialmente
eles criticam as ideias apresentadas pelo liberalismo, quando relatam que
teoricamente suas ideias apresentam-se como universais e igualmente desfrutadas
por todos, mas que, quando se parte para a observação do real, observa-se que ainda
há uma dualidade entre a convivência entre os gêneros na esfera pública e na privada,
pois enquanto na pública são tratados como iguais, na privada ainda existe muita
desigualdade entre eles, o que acaba levando, por exemplo, a uma divisão sexual do
trabalho. Outra vertente é a que analisa os padrões culturais que propagam durante
toda a evolução da sociedade que o lugar do homem é nos espaços públicos, dando
força à ideia que política não é lugar para mulher. Tal fato acaba não gerando
nenhuma influência para que as mulheres criem uma ambição política e assim tomem
seu lugar no espaço público.
A terceira vertente se assemelha as anteriores, já que trabalha em cima do
patriarcado e suas heranças, contudo tem suas particularidades. Primeiramente, eles
citam a questão da disponibilidade de recursos econômicos para as mulheres já que,
a independência econômica é fundamental para que as mulheres tenham em suas
mentes a possibilidade de se tornarem ativas politicamente. Vale ressaltar que, acerca
desta questão, de acordo com o relatório anual socioeconômico da mulher (2013),
havia uma diferença de cerca de 20% entre a quantidade de homens e mulheres que
estariam economicamente ativos no momento que a pesquisa foi realizada, fato que
causa um enfraquecimento na hipótese de ter mais mulheres envolvidas em política
devido a sua independência econômica.
Miguel e Biroli (2010) ainda comentam sobre outra herança do patriarcado que
interfere bastante no envolvimento político da mulher, a questão das jornadas duplas
ou triplas de trabalho. Já que, além do trabalho na esfera pública, elas ainda têm duas
718

funções dentro da privada, à de cuidado com o lar e com os filhos, que mesmo depois
de tanto anos da instituição do poder familiar pela Constituição Federal de 1988, poder
este que determinou em Lei a igualdade de direitos e deveres entre homens e
mulheres, ainda lhes é imposto como obrigação exclusiva.
Tal diferença na quantidade de homens e mulheres economicamente ativos
remete a existência da divisão sexual do trabalho, que faz com que as mulheres, por
acumularem mais funções e obrigações que os homens, não tenham a disponibilidade
necessária para que se envolvam em política. Envolvimento este que não se refere
apenas à candidatura, como também a entender quais são seus direitos e lutar por
ele.
A questão da candidatura é outro problema enfrentado pelas mulheres no dia
a dia. Pois a cota de gênero, uma política pública criada para solucionar o problema
do pouco envolvimento destas cidadãs na política não exerceu grande influência nos
partidos, pois estes continuaram não investindo em candidatas do sexo feminino,
influenciando mulheres a serem candidatas apenas com a intenção de cumprir com a
exigência da cota de gênero.
Atualmente há 475 proposições, que estão divididas em projetos de lei, projeto
de lei complementar, medidas provisórias, projetos de emenda a Constituição, projeto
de decreto legislativo e projeto de resolução, que envolvem mulheres e seus direitos
em tramitação na Câmara dos Deputados, e devido a atual sub-representação
feminina, tais projetos não serão apreciados como deveriam por uma quantidade
proporcional de pessoas que representam mulheres, na verdade, a porção de
mulheres, que são aquelas a quem tais projetos realmente interessam é infinitamente
menor que a de homens, resultando então numa menor apreciação de interesses
femininos no legislativo brasileiro.
As vertentes mapeadas por Miguel e Biroli (2010) já demonstram que não há
por parte da sociedade um esforço em pôr fim à sub-representação feminina na
política, fato que se comprova de diversas maneiras, inclusive por pesquisas como a
realizada por Thais Oliveira Pinheiro (2016), que se preocupou em medir os incentivos
derivados de partidos políticos para que mulheres se candidatem, além de comparar
também os investimentos feitos nas campanhas políticas de cada gênero, concluindo
se há alguma diferenciação entre os investimentos feitos em cada um. Na busca pelas
respostas das questões levantadas, Pinheiro (2016) verificou que há uma
desproporcionalidade entre os valores que são investidos nas campanhas de homens
e mulheres, concluindo inclusive que há pouquíssimos sendo feitos nas campanhas
protagonizadas por mulheres.
Não existem ações afirmativas que busquem influenciar mulheres a entrar na
política, conscientizando-as acerca da importância de terem uma representatividade
ativa que possa perante os entes políticos estar assegurando que as proposições e
os debates envolvendo seus direitos e deveres serão apreciados de modo a ter seus
pontos de vista postos em pauta e valorizados. A cota de gênero surgiu com boa
intenção, pois buscou primeiramente assegurar uma participação mínima de mulheres
na política e, consequentemente, vincular os partidos a investirem na campanha
destas de modo que mais mulheres começassem a ser eleitas, no entanto, quando se
parte para uma observação prática, como a que foi feita no estudo de Pinheiro (2016),
pode-se concluir que não foi isso que aconteceu. Os partidos continuaram a dar
prioridade às campanhas de homens, e só influenciam as mulheres a entrar na política
para cumprir o que está disposto em lei, ou seja, no mínimo 30% dos candidatos
apresentados por eles deve ser mulher, fato que prejudica ainda mais o ganho de
força na luta pelo crescimento da representatividade feminina na política brasileira.
719

Falar em representatividade atualmente remete a ideia de um grupo ter seus


temas sendo discutidos tanto pela mídia num contexto geral, quanto por aqueles que
estão exercendo cargos políticos no Brasil. A representatividade vem da necessidade
de diversificar os pontos de vista acerca das situações e preposições que estão
surgindo com a evolução da sociedade. Junto com esta evolução novas necessidades
surgem, e um cidadão tem direito de ter seu ponto de vista observado no que é
discutido pelos maiores responsáveis pela criação de direitos e deveres da sociedade,
que por sinal, é são essência da cidadania, que, segundo Dalmo Abreu Dallari (2015),
dá ao indivíduo a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo do seu
Estado.
A falha da cota de gênero só demonstra que o problema da representatividade
da mulher não se resolverá com facilidade, entretanto, sua resolução torna-se cada
vez mais necessária, já que, as mulheres, como já foi dito anteriormente, são maioria
na população e consequentemente maioria no eleitorado, logo, 10% do total de cargos
não é suficiente para que suas necessidades sejam debatidas da maneira mais justa.
O papel de um representante é agir em benefício dos interesses daqueles que
representa, logo, uma maior representatividade feminina na política faria com que
seus pontos de vista fossem cada vez mais apreciados no que se refere à construção
da sua cidadania e tornando a discussões sobre seus temas mais justas.
Como já foi analisado anteriormente, a história da sub-representação da mulher
na política não é recente, desde que o Estado é Estado elas são detentoras de poucos
direitos, ou de quase nenhum. No que concerne a direitos políticos, objeto de estudo
desta pesquisa, só alcançaram a igualdade de direitos e deveres com relação ao
gênero masculino em 1946. Antes disso era obrigada a se submeter aos caprichos e
vontades daqueles que eram os chefes de suas famílias. Sem autonomia e
independência financeira, o campo de atuação destas cidadãs ficava limitado ao lar,
salvo algumas mulheres, pouquíssimas, que já se rebelavam contra as imposições do
patriarcado e que são as responsáveis pelas conquistas que elas até hoje.
De 1946 até 2018 passaram-se apenas 72 anos, ínfimo tempo para que as
mulheres mudem sua posição perante a sociedade, já que, mesmo que muita coisa já
tenha mudado, ainda é intrínseco a ambas a ideia de que o espaço público é
predominantemente um espaço masculino e que o privado é de exclusiva
responsabilidade da mulher. Por esse motivo este trabalho se ocupará em,
primeiramente, analisar a efetividade da cota de gênero, única política pública que se
preocupa em incluir a mulher no ambiente político que se tem conhecimento,
posteriormente, averiguar se há a necessidade de mais políticas públicas voltadas a
influenciar mulheres a se envolverem mais na política e, por fim, verificar se a
participação delas na construção de políticas públicas voltadas para suas questões
fará com que elas sejam mais efetivas.
As eleições de 2018 trouxeram um aumento no número de cadeiras legislativas
ocupadas com mulheres, no entanto, ainda não proporcional ao número de eleitoras
que existem no país. Agora, 77 mulheres irão ocupar cadeiras no legislativo federal
brasileiro, e esperasse que este número tenda a crescer nos próximos anos, até que,
seja possível afirmar que as mulheres, mesmo que não representem mulheres, têm
uma representatividade proporcional à sua população.

CONCLUSÃO

O presente trabalho tem como principal objetivo uma análise com relação ao
envolvimento feminino na política brasileira. Trazendo uma evolução histórica de
720

algumas das principais lutas e também, contando a história de mulheres e homens


que obtiveram grande destaque nestas batalhas travadas contra o poder patriarcal na
busca da emancipação feminina com relação à submissão que lhes era imposta
durante toda a vida, pois ao nascerem e até o casamento, estas eram submissas aos
genitores, após o casamento, deviam ser obedientes aos seus respectivos maridos e
quem sabe até filhos depois que eles alcançavam certa idade.
Este trabalho faz primeiramente uma contextualização histórica com relação às
causas que levaram a mulher a ser submissa e que causaram por consequência um
tardio envolvimento político delas. Depois de reveladas as circunstâncias que levaram
à submissão, entram em cena as mulheres que fizeram parte da busca pelo direito ao
sufrágio pelo mundo, dando destaque a Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges,
que foram percussoras nestas lutas, dando força para que as mulheres vissem que
podiam lutar e mudar a situação em que viviam.
Após os destaques dados a quem fez história pelo mundo, entra o cenário
político brasileiro, apresentando conhecer mulheres como Carlota Pereira, Nízia
Floresta e Bertha Lutz que obtiveram destaques em suas áreas de atuação,
mostrando assim que as mulheres são capazes de fazer qualquer coisa que em sua
época eram consideradas atividades únicas e exclusivas aos homens. Esclarecendo
também quando e quais direitos foram conquistados no passo a passo da evolução
da história dos direitos femininos no Brasil.
Apresentado também o fato de que, por terem uma inserção tardia na política
e em diversas outras áreas de atuação na sociedade e pelo fato de que conquistaram
a possibilidade do sufrágio já no século XX, as mulheres não têm em sua cultura o
fato de que todos precisam estar inseridos no campo político. Dado este fato, se faz
necessário que sejam tomadas medidas que influenciem elas e outros a buscaram o
envolvimento delas na política. Aí é que entram as políticas públicas voltadas para o
gênero e, este artigo traz a cota de gênero como exemplo deste fato.
Pode-se então concluir que o envolvimento feminino na política não é
satisfatório, pois estas, que são maioria na população brasileira, se deparam em seu
dia a dia com dificuldades oriundas de um período em que a submissão ao gênero
masculino lhes era imposta. Fato que dificultou o envolvimento delas tanto nas
atividades sociais, a exemplo do mercado de trabalho, como também na vida política
de seus países, estados, cidades, bairros e comunidades

REFERÊNCIAS

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Brasília: Boitempo.
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na política: algumas barreiras para o desenvolvimento democrático. Ananis do
1º Seminário Internacional de Ciência Política, Porto Alegre, RS, Brasil.
PINHERIO, Thais Oliveira. Mulheres e Dinheiro: Uma Análise dos Padrões
Regionais de Financiamento das Campanhas das Deputadas Federais Eleitas em
2014. Belo Horizonte. 2016.
722

A IMPRESCINDIBILIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS "FILHOS DO


AFETO" SOB A ÓTICA DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ
THE NEED FOR PUBLIC POLICIES FOR THE "CHILDREN OF AFFECTION"
UNDER THE OPTICS OF THE BRAZILIAN CONSTITUTION

Mariana Mendonça Lisboa Carvalho


Vladimir Gonçalves Carvalho
Rita de Cássia Barros Menezes

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar a importância das políticas
públicas em um Estado Democrático de Direito, especialmente às direcionadas a
grupos familiares vulneráveis ou pouco reconhecidos juridicamente. Logo, torna-se
imprescindível averiguar a relevância e legitimidade das políticas públicas sob a ótica
da Constituição Federal. Ademais, faz-se necessário apreciar as interpretações do
conceito de filiação, possibilitadas pela Lei Maior e pelos princípios do Direito de
Família. Por fim, pretende-se indicar as políticas direcionadas a crianças,
adolescentes e famílias, bem como a possibilidade jurídica de estas serem concedidas
aos novos núcleos familiares.
Palavras-chave: Políticas Públicas; Filiação Socioafetiva; Constituição.

Abstract: The following study aims to analyze the importance of public policies in a
Democratic State of Law, especially those directed to vulnerable or not-recognized
groups. Therefore, it is essential to analyze the relevance and legitimacy of public
policies from the point of view of the Federal Constitution. In addition, it is necessary
to analyze the interpretations of the concept of sonship, by the Major Law and by the
principles of Family Law. Finally, it is intended to indicate policies aimed at children,
adolescents and families, as well as the legal possibility of these being granted to the
new families.
Keywords: Public Policies; Socioaffective Affiliation; Constitution.

INTRODUÇÃO

A partir do século XIX, o tema “políticas públicas” passou a ganhar importância


em um contexto mundial. A necessidade de realizar esse estudo no Brasil passou a
ser percebida em virtude de alguns fenômenos históricos. Primeiramente, a percepção
de que a Constituição Federal, por si só, não era suficiente para concretizar os direitos
fundamentais nela previstos. Além disso, a redemocratização do País, após um
período traumático de ditadura militar, fez perceber que essa concretização depende,
na verdade, da atuação direta do Estado.
Em consonância com a visão apresentada, as políticas públicas podem ser
conceituadas como programas de ação governamental1 voltados à concretização dos
direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico.
Consequentemente, a Lei Maior, ainda que implicitamente, ao tutelar o
sentimento do afeto, reconhecendo os vínculos familiares nele fundamentado, fixou a
necessidade de instrumentos jurídicos e políticos que sirvam de pilar a tais direitos em
um contexto universal, primordialmente, mediante políticas públicas.
Sob esse ângulo, houve uma cooperação entre o Direito Político, o Direito de
Família e o Estatuto da Criança e do Adolescente, com o intuito de baseados nos
princípios constitucionais do afeto, igualdade e melhor interesse da criança, fornecer
1
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1997. v. 2, p. 45.
723

os meios necessários para que os filhos afetivos sejam, assim como os biológicos,
beneficiários de políticas públicas de Estado e de Governo.
Portanto, este estudo pretende apresentar concepções atuais e pertinentes ao
Direito Político. Em suma, visa buscar a efetivação, na prática, de princípios
constitucionais, nos momentos de planejamento, execução e concretização das
políticas públicas. Como metodologia, utilizou-se a técnica bibliográfico-documental,
analisando a necessidade de políticas públicas para as crianças e adolescentes de
novos núcleos familiares. Para tanto, buscou-se consulta aos sites do Governo
Federal, livros, periódicos e redes eletrônicas, identificando os princípios do Direito de
Família e do ECA presentes na Constituição Federal.

1 BREVE HISTÓRICO E ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL

Hodiernamente, é impossível compreender situações específicas sem realizar


uma análise temporal. Portanto, para entender o fenômeno das políticas públicas é
preciso explorar, também, sua origem: surgiu em 1930, através de H. D. Laswell, nos
Estados Unidos, com a expressão policy analysis. Nesse período, possuía completa
ligação com a Ciência Política, sendo totalmente desvinculada da Ciência Jurídica,
pois era compreendida como uma forma de atuação do governo.
Dez anos depois, surgiu uma preocupação em relação ao modo de efetivar as
políticas públicas. Assim, Ronald Dworkin, ainda nos EUA, inovou ao advogar que
essa questão deveria caber, também, à Teoria Geral do Direito, em conjunto com os
princípios e regras. Nesse contexto, veio à tona uma divergência de competência de
estudo, na qual parte da doutrina o competia à Ciência Política e outra parte ao Direito.
Conquanto, Gianpaolo Smanio e Patricia Bertolin chegam à seguinte conclusão:

O que nos parece certo é que Políticas Públicas se referem a institutos


diversos, com incidência em várias áreas do conhecimento e da atuação
humana, não podendo ser esgotadas por uma única via ou um único
sistema.
Também nos parece certo que tanto a Ciência Política quanto a Ciência
Jurídica devem compartilhar o instituto das Políticas Públicas, a fim de que
o fenômeno seja bem compreendido, analisado e mais bem resolvido. Há
uma clara interseção entre a Política e o Direito no que se refere às
Políticas Públicas. (SMANIO e BERTOLIN, 2013, pág. 5).

Assim sendo, não restam dúvidas de que para concretizar os direitos


fundamentais previstos na Carta Magna de 1988 faz-se imperiosa a atuação da
Administração Pública e dos órgãos e Poderes estatais.
Por esse ângulo, cabe a subsequente reflexão: se a Lei Maior ampliou a
importância da cidadania, colocando-a dentre os Princípios Fundamentais da
República Federativa do Brasil e as políticas públicas possuem, justamente, o intuito
de concretizar a cidadania e os demais princípios, por meio do Estado e do Governo,
é na própria Constituição Federal que elas encontram sua legitimidade. Dessa forma,
a legitimação, fundamentação e importância das políticas públicas buscam respaldo
na concretização da cidadania.
Finalizada a discussão, pretende-se, em seguida, buscar a conceituação
jurídica de filiação afetiva.

2 CONCEITUAÇÃO DE FILIAÇÃO AFETIVA


724

Transcendendo os mares do sangue,2 a filiação socioafetiva é aquela baseada


nos laços afetivos, na convivência, no amor, no cuidado e na dedicação.
Apesar de não dispor de expressa previsão legal, esse núcleo familiar busca
respaldo nos princípios constitucionais, na legislação infraconstitucional e na
jurisprudência. Como exemplo:
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de
consanguinidade ou outra origem.
Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se
a filiação por qualquer modo admissível em direito:

[...]

II - quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.

Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por


adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer
designações discriminatórias relativas à filiação.

Assim, conclui-se que não se faz nos tempos atuais qualquer diferença quando
à origem da filiação, tendo os filhos concebidos no casamento, ou fora dele, tenham
eles vínculo civil ou afetivo, cabendo à todos, os mesmos direitos, tanto no que se
refere ao seu desenvolvimento sadio, quanto ao exercício de políticas públicas
efetivadas pelo Estado.
Nesse sentido, há a posse de estado do filho, caracterizada pela exteriorização
familiar, na qual – mesmo que não haja vínculo biológico ou científico- um indivíduo
exerce o papel de mãe ou de pai em face de outro, que assume o lugar de filho, ou
vice-versa.
Nas palavras de Maria Berenice Dias:

Não há diferença na criação, educação, destinação de carinho e amor


entre os filhos biológicos e sociológicos, não se podendo conferir efeitos
jurídicos desiguais em relação a quem vive em igualdade de condições,
sob pena de revistar a odiosa discriminação entre os filhos. (DIAS, 2017,
p. 49).

3 POLÍTICAS PÚBLICAS DESTINADAS A CRIANÇAS E FAMÍLIAS

Como já abordado, a Constituição Federal, seguida pelo Estatuto da Criança e


do Adolescente (ECA), inovaram ao proteger concretamente a infância e a juventude.
Logo, a criança e o adolescente passam a ser sujeito de direitos, e,
consequentemente, possíveis beneficiários de políticas públicas. Para tanto, há
possibilidade de articulação não só entre os Poderes e entes da Federação, mas
também entre organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas
(ONU), por meio de suas agências de fomento de direitos humanos, dentre as quais
a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD).
Ademais, a própria Constituição Federal prevê como primordial a participação
popular, que pode ser direta ou indireta (CF/88, art 1º, parágrafo único). Porquanto,
há uma série de mecanismos cuja função é possibilitar a manifestação dos
interessados e beneficiários de serviços que o governo pretende prestar, por meio do

2
Belmiro Pedro Welter, Igualdade entre as filiações biológicas e socioafetivas. p.168.
725

intermédio na determinação dos objetivos e escolhas de meios para efetivar as


políticas com base em suas necessidades concretas.
Nesse enquadramento, vale ressaltar que os pais constituem os sujeitos ativos
nos momentos de participação popular e os responsáveis por, como exemplo,
administrar recursos provenientes de políticas públicas direcionadas a núcleos
familiares, como o Bolsa-Família, cujo objetivo é direcionar recursos para famílias em
situação de pobreza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal promulgada em 1988 inovou ao abordar com veemência


a necessidade de atuação concreta do Estado para concretizar direitos fundamentais,
fazendo com que a sociedade civil, a mídia e órgãos e instituições como o Ministério
Público e a Defensoria Pública passassem a discutir sua implementação e controle,
trazendo-as para o centro dos debates políticos e jurídicos.
Diante dessa perspectiva, surge a necessidade de criar mecanismos em que
grupos vulneráveis e minoritários, dentre os quais crianças e adolescentes, possam
ser enquadrados. Dentre os núcleos familiares que podem ser beneficiados –
tradicionais ou “contemporâneos” – há as famílias afetivas, cujo vínculo está baseado,
principalmente, na convivência e no afeto.
Como o Estado adquiriu a obrigação de garantir o princípio da dignidade
humana, defende-se que a criança e o adolescente devem ter seus interesses
tratados como prioridade, não só pela família e pela sociedade, mas, inclusive, pelo
governo.
Portanto, evidencia-se que, visando permitir o desenvolvimento adequado da
personalidade infantil, é mister reconhecer o fenômeno das famílias afetivas,
enquadrando-as, também, em políticas públicas, com o intuito de incluir
expressamente na legislação essa relação perfeitamente harmoniosa com o contexto
contemporâneo.
Assim, adota-se a posição de que “filhos do afeto” podem, por meio de seus
pais, constituírem o polo ativo de políticas públicas, visto que, comparados aos filhos
biológicos, são iguais em direitos e deveres.

REFERÊNCIAS

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba.


São Paulo: Malheiros, 1997.
BELMIRO, Pedro Welter, Igualdade entre as filiações biológicas e socioafetivas. São
Paulo: Revistas dos Tribunais, 2003.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Câmera dos Deputados, Lei no 8.069,
de 13 de julho de 1990. DOU de 16/07/1990 – ECA. Brasília, DF.
BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 1a edição. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002.
DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto: Questões Jurídicas. 2ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2017.
SMANIO, Gianpaolo Poggio; BERTOLIN, Patrícia Turna Martins. (Org.) O Direito e as
políticas públicas no Brasil. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
726

A INFLUÊNCIA DAS CLASS ACTIONS AMERICANAS NA REGULAÇÃO DO


MERCADO BRASILEIRO.
THE INFLUENCE OF THE AMERICAN CLASS ACTIONS IN THE REGULATION OF
THE BRAZILIAN´S MARKET

Vivian Leinz
Daniel Francisco Nagao Menezes

Resumo: As empresas brasileiras, a fim de captar recursos financeiros, emitem


papeis em território nacional e também no exterior, especialmente nos Estados Unidos
da América. Existindo prejuízo aos investidores, estes podem acionar as empresas
emissoras dos títulos. Ações decorrentes de títulos emitidos em território americano
serão julgadas pelas cortes americanas, havendo decisão que proibiu a investidores
estrangeiros reclamarem perante elas prejuízos decorrentes de aquisição de papeis
em território estrangeiro. Com isso, os investidores brasileiros não podem demandar
contra empresas brasileiras em território americano. O problema é que o tratamento
dado ao mesmo caso pela justiça americana é diferente daquele oferecido pela justiça
brasileira, sendo aquele mais benéfico aos investidores. Isso pode influenciar no fluxo
de capital e na emissão de papeis em território nacional, devendo haver a alteração
da legislação brasileira para maior proteção desses investidores.
Palavras-chave: acionistas; ação coletiva; direito comparado

Abstract: Brazilian companies, in order to raise funds, issue shares in Brazil and also
abroad, especially in the United States of America. If investors suffer any losses, they
are able to sue the company. Actions originated from bonds issued in north american
territory will be decided by north american courts, and shareholders who got the papers
elsewhere are not able to litigate in the USA, because there is a decision that
forbiddens it. The fact is that north american and brasilian jurisprudence give different
solutions to the same case, and ADR holders have a greater incentive to litigate in the
US. That can affect the capital flow and the shares´s issue in brazilian territory.
Therefore, the brazilian legislation has to be changed in order to allow more protection
to these shareholders.
Keywords: shareholders; class action; comparative law

Nesse estudo pretende-se abordar a questão das ações coletivas,


denominadas class actions, propostas por investidores americanos nos Estados
Unidos contra empresas brasileiras, em razão de prejuízos por elas causados, e a
consequência dessas ações para o mercado de capitais brasileiro.
As empresas brasileiras, a fim de captar recursos financeiros, emitem papeis
em território nacional e também no exterior, especialmente nos Estados Unidos da
América. Como qualquer aplicação financeira, há riscos envolvidos e, havendo
prejuízo aos investidores, estes podem acionar as empresas emissoras dos títulos.
Ações com vistas à reparação de danos oriundos dos investimentos realizados
no Brasil deverão ser ajuizadas em território nacional; prejuízos decorrentes de
investimentos feitos em território americano serão resolvidos nas cortes americanas,
havendo decisão que proibiu a investidores estrangeiros reclamarem perante elas
prejuízos decorrentes de aquisição de papeis em território estrangeiro. Com isso, os
investidores brasileiros não podem demandar contra empresas brasileiras em território
americano. Nesse ponto reside o grande problema.
727

Nos Estados Unidos existe a class action, espécie de ação coletiva que
permite a uma classe composta por pessoas que sofreram o mesmo prejuízo e que
possuem, portanto, um interesse comum, que demandem em conjunto uma
indenização pelos prejuízos sofridos1. Escritórios de advocacia especializados em
class actions patrocinam esse tipo de causa por meio da reunião de pequenas causas
individuais.
No Brasil não existe essa figura, havendo somente a ação civil pública, que
possui legitimidade restrita (Ministério Público, Defensoria Pública, União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades
de economia mista, além de associações constituídas há pelo menos um ano e que
incluam a proteção a alguns determinados direitos entre suas finalidades – art. 5º da
Lei 7.347/85) e se presta somente à defesa de alguns direitos elencados no art. 1º da
Lei 7.347/85.
O problema para os investidores brasileiros já tem início com a inexistência de
figura similar à class action americana, tornando mais árdua a defesa de seus direitos:
dificilmente o Ministério Público, legitimado ativo para a ação civil pública, patrocinará
uma causa envolvendo investidores, uma vez que essa não está entre as suas
atribuições. Já no que tange às associações civis, os requisitos exigidos por lei para
que possam patrocinar essas demandas acabam sendo empecilhos à sua atuação.
Mas não é só: a jurisprudência brasileira, nos casos que envolvem prejuízos
causados por corrupção, entende que a empresa que lançou os papéis no mercado
também é vítima, não podendo, portanto, indenizar os investidores lesados. E isso
não ocorre nos Estados Unidos, onde as cortes americanas normalmente dão ganho
de causa aos investidores lesados2.
Assim, os investidores brasileiros tem duplo prejuízo: além de não conseguirem
ressarcimento pelos prejuízos que lhes foram causados, ainda tem o ônus de arcar
indiretamente com a reparação dos danos ocasionados pela sociedade aos
investidores americanos3. E foi justamente isso que ocorreu no caso da Petrobrás: os
investidores brasileiros que foram prejudicados pelos atos de corrupção dos diretores
da estatal nada receberam, enquanto que a Petrobrás realizou acordo bilionário com
os investidores americanos4, apesar de todos, brasileiros e estrangeiros, terem sido
lesados pelo mesmo fato.

1
“The second formal point of similarity between derivative suits and shareholder class actions—their representative character—
also exposes itself as a point of dissimilarity upon deeper inspection. In particular, these two procedural mechanisms differ in the
kind of representation they entail. In derivative suits, the plaintiffs represent a party other than themselves and to whom they relate
as investors. In shareholder class actions, they represent themselves along with other, similarly positioned stockholders”.
(OQUENDO, 2013).
2
“The US is famous for allowing direct compensation of shareholders in cases where misrepresentation, fraud or management
failure has caused losses to investors. In Brazil the system is different. Shareholders are not allowed to receive direct
compensation for losses caused by bad management or misrepresentation. According to Brazilian rules, the main victims of such
acts are not the shareholders, but the company itself. Thus, any lawsuit should be directed at obtaining compensation for the
company. The company may, in the future, cause this compensation to flow to the shareholders in the form of dividends, but there
is no direct connection between the shareholder’s future dividends and the compensation to be paid to the corporate entity. [...]
Taking those differences in consideration, it is clear that ADR holders have a greater incentive to litigate in the US, where the
financial compensation can be received directly. The class action filed in the US, however, only covers the losses regarding the
trading of Petrobras ADRs. The vast majority of the company’s shares are traded in Brazil only, where direct compensation is not
available. (MARTINS, 2015).
3
Segundo reportagem publicada no Valor Econômico, “no caso da Petrobras, se a estatal vier a ser condenada a pagar algum
tipo de indenização aos investidores que se sentiram lesados, apenas os detentores de ADR poderão ser ressarcidos. Isso
acontece porque o juiz Jed Rakoff, que cuida do julgamento nos Estados Unidos, definiu que apenas os titulares desse tipo de
papel estão enquadrados na classe de acionistas. Assim, além de absorver os prejuízos causados pela própria corrupção, que
deteriorou substancialmente o valor de mercado da Petrobras e a levou a realizar baixas contábeis bilionárias, o investidor do
papel no Brasil não terá acesso a uma eventual indenização cujos custos devem sair do caixa da própria companhia”.
(MACHADO, 2016).
4
O acordo realizado pela Petrobrás foi de 2,95 bilhões de dólares, a ser pago pela sociedade de economia mista aos
investidores em duas parcelas, uma de 983 milhões e a outra de 984 milhões. (ROMERO, 2018).
728

Diante dessa disparidade de tratamento, investidores podem deixar de injetar


recursos no mercado nacional, sendo todo o investimento impulsionado para fora do
país. Por outro lado, determinadas empresas brasileiras podem abster-se de emitir
papeis nos Estados Unidos, justamente com receio das class actions, o que as
enfraquece, fechando-se no mercado. Já outras podem optar por abrir seu capital
somente no exterior, tendo em vista que lá se encontra o dinheiro (justamente porque
maior a proteção aos investidores), o que acarreta mais uma vez fuga de capital. Além
de tudo, essa possível fragilidade na proteção dos acionistas pela legislação brasileira
poderá acarretar desconto nos papeis de empresas nacionais, devido à desconfiança
do mercado internacional.
Ou seja, a diferença de tratamento que se dá a uma mesma questão no Brasil
e nos Estados Unidos pode gerar grande influência no mercado de capitais brasileiro,
determinando, outrossim, o fluxo do capital.
Para a elaboração da pesquisa será utilizado o método indutivo, partindo-se da
análise da class actions propostas contra empresas brasileiras. A título auxiliar serão
usados também os métodos comparativo e estatístico. Em relação ao primeiro
realizar-se-á um estudo comparado entre as class actions americanas, em matéria de
direito de investidores, e ações similares propostas no Brasil em face das mesmas
empresas. Já o método estatístico será aplicado na observação do volume de papeis
das empresas brasileiras negociados no Brasil e nos Estados Unidos, a fim de se
extrair uma conclusão sobre a influência das class actions na emissão e
comercialização desses títulos.
Assim, a pesquisa que ora se apresenta possui grande relevância para o
crescimento econômico do país, visto que tem por objetivo analisar a influência das
class actions no mercado brasileiro e estabelecer suas consequências na
determinação do fluxo de capital, ou seja, se elas atuam no comportamento do
mercado brasileiro. Caso positiva a resposta, sugere-se a intervenção estatal em
defesa do direito dos investidores brasileiros lesados, alterando-se o tratamento
jurídico dado a eles em território nacional, mediante a edição de legislação mais
adequada à sua proteção, seja responsabilizando a empresa pelos danos causados,
seja responsabilizando os acionistas controladores pela má escolha dos dirigentes.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. . Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7347orig.htm>. Acesso em: 16 out. 2018.
MACHADO, Juliana. Perda Dupla. Valor Econômico. São Paulo, 23 fev. 2016.
Disponível em: <https://www.valor.com.br/financas/4449112/perda-dupla>. Acesso
em: 16 out. 2018.
MARTINS, Adler. Minority Shareholders’ Right to Sue Directors and Controlling
Investors in Brazil. 2015. Disponível em: <http://www.emia.org/news/story/1510>.
Acesso em: 16 out. 2018.
OQUENDO, Ángel R.. Six Degrees of Separation: From Derivative Suits to
Shareholder Class Actions. The Wake Forest Law Review, Winston-Salem, n. 48,
p.643-672, 2013.
ROMERO, Cristiano. Petrobras fecha acordo em ação coletiva nos Estados Unidos.
Valor Econômico. São Paulo, 03 jan. 2018. Disponível em:
<https://www.valor.com.br/empresas/5243505/petrobras-fecha-acordo-em-acao-
coletiva-nos-estados-unidos>. Acesso em: 16 out. 2018.
729

A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA POLÍTICA: A PRESENÇA FEMININA NA


CÂMARA DOS DEPUTADOS, PELO VIÉS DA LEI DE COTAS.
THE PARTICIPATION OF WOMEN IN THE POLICY: THE FEMININE PRESENCE
IN THE CHAMBER OF MEMBERS, BY THE VIES OF THE LAW OF QUOTAS.

Flávia Calado Pereira

Resumo: A presença feminina enquanto eleitoras e nos movimentos sociais de base


constituem maioria. Hoje, 51% do eleitorado brasileiro é composto por mulheres, mas
seu reflexo na Câmara de Deputados ainda é baixo. Esta diferença entre os gêneros
se fundamenta, em suma, no machismo e no patriarcado. Como forma de reduzir essa
desigualdade, criou-se a lei de cotas, nº 9.100/95, que passou por diversas alterações
ao longo dos anos. Este trabalho, portanto, busca questionar quais os limitadores da
presença da mulher na política, considerando a lei de cotas, através de um apanhado
histórico do papel feminino na sociedade, observando também os resultados e
modificações sofridas pela referida lei ao longo dos anos, por meio de pesquisa
qualitativa, quantitativa e com revisão bibliográfica. Da sua observação é possível
constatar a insuficiência desta política pública de inclusão de mulheres, visto o
reduzido número de Deputadas eleitas.
Palavras-Chave: Mulheres; política; cotas.

Abstract: The female presence as voters and in the basic social movements constitute
majority. Today, 51% of the Brazilian electorate is composed of women, but its
reflection in the Chamber of Deputies is still low. This difference between genders is
based, in short, on machismo and patriarchy. As a way of reducing this inequality, the
quota law, number 9.100/95, was created, which has undergone several changes over
the years. This work, therefore, seeks to question the limitation of the presence of
women in politics, considering the quota law, through a historical survey of the feminine
role in society, also observing the results and modifications suffered by said law over
the years, for qualitative, quantitative, and bibliographical review. From its observation
it is possible to verify the insufficiency of this public policy of inclusion of women, given
the small number of elected Members.
Keywords: Women; politics; quotas

INTRODUÇÃO

O estímulo de mais mulheres nos espaços de poder e tomada de decisão insere


pessoas historicamente excluídas da cena pública e do bem-estar da sociedade
(ROSENFIELD, 2003). A participação feminina na política, restringindo-se neste
trabalho ao processo político-eleitoral, em especial a eleição para a Câmara de
Deputados, é fundamental para a construção da democracia e da cidadania, que tem
como um de seus pressupostos a garantia desse bem-estar social, uma vez que sua
atuação contribui para a elaboração de leis, que visem também, direitos para as
mulheres, além de contribuírem para à administração pública e no estímulo de
candidaturas político-partidárias (CEPAL).
A inserção das mulheres nos espaços públicos foi um processo longo e gradual,
passando por momentos históricos diferentes, rompendo a posta. Em 1932 o sufrágio
universal é conquistado no Brasil, após 40 anos de luta, mas somente em 1986 que
baixíssimo número de mulheres conseguiu espaço na Câmara dos Deputados
(PINHEIRO, 2007), durante o período da Assembleia Constituinte.
730

Os papeis sociais de homens e mulheres tem se transformado, passando as


mulheres a participarem mais do mercado de trabalho, dos espaços públicos, ainda
que com desigualdade com os homens. Hoje elas constituem 52,5% do eleitorado
brasileiro (TSE, 2018), e também são maioria na base da organização dos
movimentos sociais (CEPAL), mas ainda assim, são apenas 13,45% (TSE, 2018) de
representação na Câmara de Deputados. Em 2017, de acordo com o ranking
internacional de igualdade entre homens e mulheres no parlamento, o Brasil ocupava
a 154ª posição, ficando atrás de países latino americanos, como a Bolívia, que se
apresenta em 2º lugar (SENADO, 2017).
Como forma de reduzir essas diferenças a lei de cotas foi criada em 1995 (lei
nº 9.100), e vem sofrendo diversas alterações ao longo dos anos. Em síntese, a lei
estabelece um percentual mínimo a ser cumprido pelas chapas em disputa para cada
gênero. Ocorrer que essa política pública, mesmo com análise de seus ineficazes
resultados a cada eleição, e com suas modificações, não cumpre o papel a que veio.
Este trabalho, portanto, busca questionar quais os limitadores da presença da
mulher na política, considerando a lei de cotas, através de um apanhado histórico do
papel feminino na sociedade, observando também os resultados e modificações
sofridas pela referida lei ao longo dos anos A pesquisa será qualitativa, verificando as
razões para abaixa eficácia da lei de cotas, e quantitativa, ao levantar dados
secundários, já registrados por outras pesquisas e por órgãos governamentais,
constituindo ainda uma revisão bibliográfica. O campo amostral se fecha na lei nº
9.100/1995 e suas alterações, para o ingresso de mulheres na Câmara de Deputados.

1 OS ROMPIMENTOS PARA O INGRESSO DAS MULHERES NA VIDA PÚBLICA.

A inserção das mulheres na esfera pública é marcada por rompimentos de


paradigmas. Ainda que presentes enquanto trabalhadoras, assumiam papeis
subalternos ao dos homens, ou estavam sempre sob a vigia de seus maridos. Ainda
no século XIX, durante o período republicanos, marcado pela república do Café com
Leite, as mulheres acumulavam o trabalho conjugado, assumindo os cuidados da casa
junto com a roça e o cafezal, mas sempre sob o controle direto do pai-marido, não
existindo enquanto trabalhadoras individuais. (SILVA, 2004).
As péssimas condições de trabalho e a dupla jornada acompanham a trajetória
feminina também no período da industrialização, durante o século XX, onde as
mulheres e crianças construíam boa parte do proletariado. E é nesse período que as
mulheres passam a se organizar, cansadas dos abusos sofridos pelos chefes, e não
havendo qualquer cobertura de legislação trabalhista. As operárias, então, participam
de movimentos grevistas e manifestações contra a exploração no trabalho, e suas
reclamações encontram espaço na imprensa operária (RAGO, 2004). As
reivindicações passam por duas pautas: a busca pelo direito ao voto, mobilizado por
mulheres estudadas e da alta classe, em contraposição com os direitos reivindicados
pelas operárias, que denunciam as opressões masculinas e a condição da mulher,
uma luta que será retomada no final do século (PINTO, 2003). Destes, apenas o
sufrágio universal foi conquistado, em 1932, após 40 anos de luta (ALVES &
PITANGUY, 1981). Uma grande conquista para as mulheres, que agora já passam a
ser consideras pessoas, podendo disputar os espaços públicos.
Com o fim do período da industrialização, um novo desafio entra em cena, a
conquista do mundo dos negócios. Cria-se, então, no imaginário social a ameaça à
honra feminina representada pelo mundo do trabalho, pondo em pauta a sexualidade
da mulher, sugerindo estereótipos para as mulheres que saem de casa para trabalhar.
731

“Essa visão está associada, direta ou indiretamente, à vontade de direcionar a mulher


à esfera da vida privada” (RAGO, 2004). Neste contexto surge um novo “modelo de
mulher”: a mulher dos anos dourados. Carregado da máxima “recatada e do lar”, o
modelo imposto pela sociedade é da diferenciação dos papéis masculino e feminino.
À mulher cabe a dedicação com cuidados do lar, dos filhos e do marido, exercendo
sempre com muita feminilidade; ao homem, a virilidade dos espaços públicos. Ainda
que mais presente no mercado de trabalho, o labor feminino era cercado de
preconceitos e visto como subsidiário ao do homem.
Esse modelo de mulher e feminilidade são rediscutidos nas décadas seguintes.
A segunda onda do feminismo possui preocupações sociais e políticas e
principalmente a construção de teorias (LOURO, 2003). Os estudos feministas
rompem com os paradigmas dos papeis masculino e feminino, ao refutar a origem
biológica, demonstrando que as desigualdades entre homens e mulheres tem por
base construções sociais. O termo “gênero” nasce dessas discussões, visando rejeitar
um determinismo biológico, acentuando o caráter fundamentalmente social das
distinções baseadas no sexo (SCOTT apud LOURO, 2003).
Enquanto nos EUA e na Europa o cenário era de efervescência política,
movidos pelo american way of life e o sentimento de uma revolução socialista, o Brasil
se encontra em um dos períodos mais difíceis da sua história, marcado por repressão
e censura. O Golpe de 1964, com a instalação ditadura militar, estagnou o avanço dos
movimentos de mulheres. Em 1972, contudo, começaram a nascer no Rio de Janeiro
e São Paulo os primeiros grupos feministas, inspiradas no feminismo do hemisfério
Norte, resultado do exílio de muitas mulheres na Europa, que entraram em contato
com todas as discussões sobre gênero e a condição da mulher (PINTO, 2003). Ocorre
que esta movimentação sofre resistências tanto pelos conservadores, e adeptos da
Ditadura, quanto pelos progressistas, já que colocava em cheque a condição de
domínio do homem.
O período da redemocratização coincide com o ano internacional da mulher,
decretado em 1975, pela ONU – Organização das Nações Unidas (PINTO, 2003).
Com a redemocratização, tem-se uma aproximação com o Estado, com a criação de
conselhos, que marca a entrada definitiva da mulher e de suas questões na esfera
pública. Em 1982 ocorrem as primeiras eleições gerais, já elegendo as primeiras
mulheres para os cargos proporcionais, no âmbito municipal, estadual e federal e em
1985 cria-se o Conselho Nacional de Direitos da mulher, que tratou de quase todos
os temas que centralizavam a luta feminista, agrupando pautas das camadas
populares e de classe média, como direito a creche e a discussão dos direitos sexuais
e reprodutivos. A principal intervenção do Conselho, no entanto, foi na Assembleia
Constituinte.
O Conselho lançou uma campanha com o slogan “Constituinte pra valer, tem
que ter direitos da mulher”, e entregou a autodenominada “bancada feminina”,
composta por 26 deputadas federais (5,7% da Câmara de Deputados), a carta das
mulheres. O resultado foi a apresentação 30 emendas sobre os direitos da mulher
pelas deputadas, que teve 80% das demandas aprovadas, “ficando este marco
conhecido como o Lobby do batom, quebrando resistências ideológicas, bem como
tradicionais modelos de representação articulando seus interesses no espaço
Legislativo” (MOREIRA, 2016).
O período de redemocratização do país, que culminou na Constituição Federal
de 1988, foi o marco para a ocupação definitiva das mulheres em cargos eletivos. A
participação igualitária nas cadeiras proporcionais, contudo, ainda está longe do ideal.
Desde a conquista do direito ao voto pelas mulheres, em 1932, até hoje, houve uma
732

mudança no cenário da participação da mulher na política, mas os números ainda são


inexpressivos para o alcance da igualdade de gênero. A tabela abaixo apresenta a
evolução das mulheres na Câmara de Deputados, desde a primeira eleição após o
sufrágio universal até 2018.
Tabela 1
Número de mulheres eleitas para a Câmara dos Deputados
Ano da 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
Eleição 1934 1946 1950 1954 1958 1962 1965 1970 1974 1978 1982
Câmara dos 1 0 1 3 2 2 6 1 1 4 8
Deputados 1 0 1 3 2 2 6 1 1 4 8

Ano da 1 1 1 1 2 2 2 2 2
Eleição 1986 1990 1994 1998 2002 2006 2010 2014 2018
Câmara dos 2 2 3 2 4 4 4 5 6
Deputados 26 29 32 29 42 46 45 51 69
Fonte: TSE. Acessado em 23/10/2018

Com é possível perceber na tabela, um significativo número de mulheres


enquanto Deputadas só é atingido em 1986, durante o período da redemocratização,
quando os movimentos de mulheres pressionavam o governo para a inserção das
mulheres na política, anteriormente ainda pairava o conservadorismo. Nas legislaturas
seguintes o Brasil já estava sob o exercício da Constituição Cidadã que colocou em
pé de igualdade homens e mulheres em direitos e obrigações, mas ainda assim o
crescimento não foi representativo, pois em porcentagem as mulheres ainda são
parcela inexpressiva.

2 A LEI DE COTAS COMO INCENTIVO DE MAIS MULHERES NA POLÍTICA.

Como forma de garantir mais mulheres na política, criou-se em 1995 a lei de


cotas eleitorais (lei nº 9.100), estabelecendo o percentual mínimo de 20% para as
mulheres, mas que atingia somente os cargos proporcionais municipais. Em 1997 a
lei foi revisada, e com a lei nº 9.504, a medida estendeu-se para os demais cargos
eleitos por voto proporcional, alcançando os âmbitos estadual e federal (PINHEIRO,
2007). A conquista dessa política pública foi essencial para o enérgico aparecimento
das mulheres na Câmara Federal, mas ainda é insuficiente para alcançar a
representatividade igualitária de homens e mulheres na Câmara dos Deputados.
Considerando a tardia e dificultosa entrada das mulheres no meio público, em
especial na política, e sua lenta representatividade na Câmara de Deputados, a lei de
cotas eleitorais se mostra importante para a busca de uma igualdade de
representação, e em seu fim último, de uma democracia plena. MIGUEL é enfático
sobre esta situação:

“ (...) não importa que um parlamento exclusivamente ou quase


exclusivamente masculino seja fruto de uma eleição em que as mulheres
formavam metade (ou, na verdade, um pouco mais da metade) dos
votantes. Esse parlamento não é capaz de representá-las de modo
adequado e, portanto, são necessárias medidas corretivas, como as
cotas.” (apud REZENDE & SILVEIRA, 2017. Pág. 207).

No Brasil é adotada as cotas que se aplicam às eleições, incidindo sobre as


listas eleitorais que os partidos apresentam, através de um percentual mínimo de vaga
para cada sexo. Mas há outras formas, como as que incidem diretamente sobre o
parlamento, pela reserva de assentos (ARAÚJO, 2001). Mas propostas feitas pela
Câmara durante votações e Projetos de leis que visam a reforma política no Brasil
733

colocam em pauta outras maneiras de inserir as mulheres na política através das


cotas.
A lei nº 9.100/95 inicialmente determinava que o mínimo de 20% das vagas de
cada partido ou coligação deveriam ser preenchidas por candidaturas mulheres, nas
eleições para os cargos proporcionais municipais, mas com o passar dos anos, e com
sua baixa eficácia foi passando por diversas modificações. Em 1997, com a lei nº 9504
(Lei das eleições) ganha novo texto, ampliando para os cargos proporcionais das
eleições estaduais e gerais, além de modificar a reserva mínima, dispondo de no
mínimo 30% e no máximo de 70% das candidaturas para cada sexo.
Destas duas primeiras alterações destaca-se que a lei de 1995 não fazia
qualquer menção às cotas, sendo sua inserção posta após a intervenção da Senadora
Sandra Starling (PR). Já a de 1997 tinha uma proposta de, além das candidaturas
registradas, o acrescento de mais 30% de candidaturas femininas, ou seja, em tese
permitia que a porcentagem total de candidaturas poderia ser preenchida por homens
e mulheres, e somando-se a este total, adicionaria mais 30% de candidaturas somente
femininas, mas tal modificação não foi aceita. Apesar do aumento do percentual
mínimo de 20% para 30% em cada uma das leis, aumentou também a porcentagem
de composição das chapas. Em síntese, não houve qualquer alteração significativa.
Outra reforma ocorreu em 2009, com a lei nº 12.034, tornando obrigatório o
preenchimento mínimo da reserva de vagas para qualquer um dos sexos, e
adicionando a obrigatoriedade de empoderamento das mulheres, com a criação e
manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das
mulheres. Outra inovação trazida com essa lei foi a promoção e difusão da
participação política feminina, dedicando às mulheres o tempo mínimo de 10% das
propagandas eleitorais gratuitas. O seu projeto de lei, mais uma vez, não faz qualquer
menção as alterações, sendo todas propostas por Alice Portugal (PCdoB).
A última alteração ocorreu em 2015, seu projeto não fazia qualquer menção às
mulheres. Durante a tramitação, contudo, a Deputada Flávia Morais (PDT) sugeriu
algumas modificações importantes, que envolviam a distribuição do Fundo Partidário
de acordo com o número de mulheres eleitas pelo partido A proposta se mostra
interessante por obrigar os partidos a preparar mulheres a concorrerem as eleições,
tornando-as prioridade, com chances reais de serem eleitas. A redação final, contudo,
apenas aumentou os percentuais estabelecidos sobre a promoção e difusão de
mulheres na política, trazendo também a inovação da regra alternativa à vinculação
de parcela do Fundo Partidário no financiamento futuro de campanhas de candidatas,
deixando a critério das agremiações partidárias utilizar o recurso.
A comparação das alterações com a tabela apresentada anteriormente
demostra o quanto é ineficaz para o incentivo da participação de mulheres na política.
Em 1998, por exemplo, o número de número de mulheres eleitas caiu com relação às
eleições anteriores, em 2010 o panorama de manteve, mesmo com as alterações do
ano anterior, mas em 2018, após a última modificação de 2015, as cadeiras femininas
deram um salto, mas em porcentagem representam somente 13,45% da casa. Por
isso, para ganhar maio efetividade precisa-se se avaliar não só a legislação, mas
também todos os demais cenários de dificultam a entrada e permanência feminina na
política.

3 PARA ALÉM DA LEI DE COTAS, OUTROS IMPASSES PARA AS MULEHRES.

Compreender a trajetória da inserção da mulher na política, com a ótica da


visão da sociedade sobre os papéis de cada gênero é importante para destacar que
734

o homem sempre esteve à frente nesse contexto, e sempre foi tido como comum a
participação masculina em espaços públicos, gerando reflexo no cenário atual.
Alguns determinantes para a sub-representação feminina são apresentados
por PINHEIROS (2007), como a resistência e o preconceito presente nas
organizações partidárias, o acesso seletivo aos recursos econômicos e sociais, os
papéis de gênero e a socialização diferenciada, por meio da divisão sexual do
trabalho, que pela formação educacional e da cultura dominante, que não favorece a
preparação da mulher para a disputa política.
Além de uma imponente cultura machista, o exercício solitário do poder é
também fator determinante, principalmente para o cargo de Deputada Federal.
PINHIEIRO (2007) aponta que no caso dos políticos homens, o peso emocional do
exercício do poder é compartilhado, na maioria das vezes, com suas companheiras,
mas o inverso não acontece, uma vez que 39,8% das deputadas eleitas são solteiras,
separadas ou divorciadas, enquanto que 77,1% dos homens são casados (FEITOSA,
2012). A ocupação de cargos eletivo bem como a competição eleitoral implicam uma
terceira jornada de trabalho.
O acesso diferenciado de homens e mulheres a recursos econômicos e sociais,
ou seja, o acesso privilegiado a tarefas socialmente valorizadas e a habilidades sociais
que capacitam os indivíduos a competir nos vários campos da sociedade, são outro
fator (BOURDIEU apud PINHEIROS, 2007). Pela formação educacional diferenciada,
algumas pessoas possuem maiores possibilidades de acesso a recursos políticos, na
estrutura social. O número de mulheres presentes em direções de sindicatos, partidos
é diferente da masculina. Como alternativa, as mulheres passam a integrar outros
campos, como movimentos sociais, movimentos de bairros, e similares, para se
apresentar no espaço público e adquirir visibilidade, a muito custo.
Há ainda, a falta de estímulo dos partidos políticos às candidaturas femininas,
bem como a falta de apoio financeiro e estrutural para o desenvolvimento das
campanhas eleitorais. Parte dessa ausência de prioridade por parte dos partidos é
explicada pelos determinantes citados anteriormente: a cultura machista, ainda muito
presente; e a justificativa do fato das mulheres serem recém-chegadas na arena
política formal (PINHEIRO, 2007).
Para além dos fatores sociais e culturais, o sistema eleitoral brasileiro também
deve ser levado em consideração na conquista de uma representatividade feminina.
O país adota, na eleição de Deputado Federal, o sistema proporcional, de acordo com
a votação obtida pelos partidos/coligações, com lista aberta. Ocorre que este sistema
possui profundas críticas sobre a efetividade de representatividade, pois há distorções
nos candidatos eleitos. Os candidatos que receberam significativa votação por vezes
não são eleitos por não atingirem o quociente eleitoral, ao passo que quando um
candidato recebe votação expressiva, atingindo o quociente várias vezes, carrega
consigo a eleição de candidatos com votação ínfima.
O atual sistema possui impactos nas eleições de mulheres. Ainda que o sistema
proporcional seja o que garanta maior representatividade e mais benéfico para a
eleição de mulheres, a lista aberta é um limitador, posto que ao votar na pessoa
individualmente, “as mulheres só serão beneficiadas na medida em que forem
realmente capazes de se fazerem escolher individualmente pelo eleitorado"
(ARAÚJO, 1998). A alternativa para este primeiro problema, seria a adoção da lista
fechada, com alternância de gênero, assim os eleitores votariam na chapa, e os eleitos
já estariam previamente ordenados.
Portanto, os limitadores para o maior ingresso de mulheres na política
perpassam por problemas culturais, sociais, e também da dinâmica do sistema
735

eleitoral, estando todos interligados. Diagnosticar as falhas, reavaliar as ações,


inclusive as que são resultado de emendas modificativas quando os projetos de lei
ainda estão tramitando, e que por vezes não são aprovadas, é preciso para que se
possa corrigir e implementar uma política que deem resultado.

CONCLUSÃO

A presença das mulheres na política é fundamental para a construção da


democracia, não só pela representatividade, mas também pelas discussões e
garantias de direitos que versem, também, pelas e para as mulheres. A história já vem
demarcando a importância dessa presença em diversos momentos, como na
Assembleia Constituinte que, com o peso das mulheres, garantiu direito à creche,
licença maternidade, entre outros direitos que permitem às mulheres poder construir
sua autonomia, entrando no mercado de trabalho com mais segurança.
Pela tabela posta ao longo do trabalho, apresenta-se dados sobre o número de
mulheres eleitas no decorrer das eleições, desde 1932, quando foi declarado o
sufrágio universal no Brasil. A partir dela é possível inferir que o irrisório número de
mulheres na Câmara, nas legislaturas de 1934 até 1982 é justificado pelo período do
conservadorismo e da ditadura militar. Em 1986 estava em curso o processo de
redemocratização do país, e os movimentos de mulheres ganha peso. Nas
legislaturas seguintes o Brasil já estava sob o exercício da Constituição Cidadã que
colocou em pé de igualdade homens e mulheres em direitos e obrigações.
A lei de cotas é uma tentativa de estimular e inserir mais mulheres no
parlamento, mas ainda se mostra muito ineficaz, ainda que se apresente em
crescimento da participação feminina. Merece, portanto, ser alvo de críticas. Depois
de todo o apanhado histórico de mulheres eleitas, a partir da entrada em vigor da lei
há um significativo aumento de mulheres eleitas, mas que estão longe da paridade.
Este distanciamento pode ser justificado pelos demais contextos que circundam as
mulheres, e que precisam de atenção para haver mudanças em todos estes campos.
A exemplo da construção cultural dos papéis sociais, que vem sofrendo modificações;
da participação das mulheres na política não-eleitoral, como em associações e bairro,
direção de partidos políticos, pondo em pauta as dificuldades de ascensão nesses
espaços.
A presença das mulheres nas cadeiras da Câmara de Deputados é basilar para
a posição que a mulher ocupa no espaço público da sociedade, mesmo porque é muito
mais provável que as demandas por direitos das mulheres sejam defendidas por
mulheres, a exemplo de todas as propostas de emendas à lei de cotas, que foram
feitas por mulheres, ou ainda de discussões como o aborto, que já é descriminalizado
em países cuja paridade parlamentar existe, como Bolívia, Cuba, Noruega. Um último
destaque precisa de feito: mais que somente a presença feminina, precisa-se de mais
mulheres comprometidas com as pautas feministas para o progresso dos direitos
inerentes as mulheres.

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736

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out 2018.
737

FINANCIAMENTO ELEITORAL - O CUSTO DA DEMOCRACIA


ELECTORAL FINANCING – THE COST OF DEMOCRACY

Alan Junqueira Gil

Resumo: O poder financeiro, quando não controlado, promove influências indevidas


nas decisões políticas do país. O sistema político mostra-se carente de transparência,
dependente do dinheiro privado, vazio de ideologia partidária e marcado por um
processo eleitoral injusto e corrompido. A vedação do financiamento eleitoral por
pessoas jurídicas coíbe o abuso do poder econômico em detrimento do interesse
público. Todavia, é necessária também a fiscalização das contas dos partidos e dos
gastos de campanha eleitoral e a implementação de ações e sanções no combate ao
abuso de poder, evitando o desvirtuamento da vontade do povo na escolha de seus
representantes e promovendo a prevalência do interesse público em relação ao
privado.
Palavras-chave: Democracia; Financiamento Eleitoral; Prestação de Contas.

Abstract: Financial power, when uncontrolled, promotes undue influence in the


political decisions of the country. The political system is lacking in transparency,
dependent on private money, void of partisan ideology and marked by an unjust and
corrupt electoral process. The fence of electoral financing by legal persons hinders the
abuse of economic power to the detriment of the public interest. However, it is also
necessary to monitor parties' accounts and electoral campaign expenditures and to
implement actions and sanctions in the fight against abuse of power, avoiding the
distortion of the will of the people in the choice of their representatives and promoting
the prevalence of public interest in relation to the private
Keywords: Democracy, Electoral Funding; Accountability.

INTRODUÇÃO

A disponibilidade de recursos financeiros é essencial para a sobrevivência de


partidos políticos fortes e atuantes e para o financiamento da Democracia. Todavia,
o uso irregular do capital privado no financiamento eleitoral pode acarretar indevida
influência dos interesses particulares do doador no processo eleitoral e nas decisões
políticas. Neste sentido, bem ressaltou o Ministro Teori Zavascki ao afirmar que
“estamos diante de um grande paradoxo porque o dinheiro pode fazer muito mal a
democracia, mas ele, na devida medida, é indispensável ao exercício e à manutenção
de um regime democrático”.
Nos últimos anos, o financiamento dos partidos políticos e das campanhas
eleitorais por pessoas jurídicas foi um dos vetores da corrupção, da obtenção de
favores ilícitos e da venalidade de muitos representantes populares no Brasil, tudo em
detrimento do interesse público.
Atualmente, a legislação pátria veda o financiamento eleitoral por pessoa
jurídica. O dinheiro para o custeio dos partidos políticos e dos gastos de campanha
pode ser obtido apenas por meio da doação de pessoas físicas (valores limitados por
lei-10% dos rendimentos anuais brutos auferidos no exercício anterior) e através de
recursos públicos oriundos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Campanha
Eleitoral.

1. DEMOCRACIA
738

Democracia é um regime de governo pelo qual o poder emana do povo e é


exercido por ele. O termo democracia tem origem no grego antigo δημοκρατία
(dēmokratía ou governo do povo), que foi criado a partir de δῆμος (demos, povo) e
κράτος (kratos, poder) no século V a.C. para denotar os sistemas políticos então
existentes em Cidades-Estados gregas, principalmente Atenas.
A definição que melhor expressa a ideia de democracia e está próxima do
sentido etimológico da palavra é a realizada por Abraham Lincoln Hanks1: “that
government of the people, by the people, for the people”.
A vontade do povo é expressa pela Democracia de três formas: a direta, a
indireta e a mista. Na democracia direta, também conhecida como participativa, todos
os cidadãos participam direta e ativamente das decisões governamentais, por meio
de assembleias públicas. Impraticável nos dias atuais.
Na democracia indireta, chamada também de representativa, os cidadãos
escolhem aqueles que os representarão no governo, ou seja, as decisões serão
tomadas por representantes.
Por último, na democracia mista, também denominada semidireta, os cidadãos
elegem seus representantes para agir em seu nome, mas são previstos mecanismos
de intervenção direta dos cidadãos (plebiscito, referendo, iniciativa popular, veto
popular e recall).
O Brasil adotou a democracia mista como regime de governo, vez que “todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”, conforme preceitua o parágrafo único do
artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil.
Deste modo, considerando que, em regra, o povo exerce seu poder por meio
de representantes eleitos, o mandato político é um instrumento de suma importância,
na medida que o poder para representar o povo é conferido ao seu detentor, devendo
este estar necessariamente filiado a um partido político, nos termos do artigo 14, § 3º,
V, da Constituição Federal.
O Ministro Pedro Acioli ao proferir voto no julgamento do Recurso Especial
Eleitoral n. 8715/AL conceituou o mandato político-eletivo como “a forma ou
instrumento, pelo qual se torna eficaz a prática democrática. Confere ele, o mandato,
poderes ao seu detentor, para representar o povo. É, pois, o mandato, o núcleo de
configuração da democracia representativa. Nele se realiza de um pólo o princípio da
representação e de outro, o princípio da autoridade legítima”2.
Assim, considerando que os governantes devem ser filiados a partido político e
escolhidos em convenção partidária, verifica-se que o partido político é a instituição
mediadora entre o povo e o Estado no processo de formação da vontade política,
principalmente no processo eleitoral3, sendo indispensável para a democracia
representativa. Portanto, a captação de recursos financeiros para o funcionamento da
agremiação partidária ao longo do ano e em época de campanha eleitoral é vital, razão
pela qual imperioso a análise das fontes financeiras e sua fiscalização, o que se
materializa no financiamento eleitoral e na prestação de contas.

2. FINANCIAMENTO ELEITORAL

1
Hanks, Abraham Lincoln. Discurso proferido na cerimônia de inauguração do Cemitério Militar de Gettysburg em 19 de
novembro de 1863.
2
TSE, Recurso Especial Eleitoral n° 8.715/AL, Rel. Min. Octávio Gallotti, DJ 04.04.1990.
3
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet..Curso de direito constitucional. 5.
ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 893.
739

Os recursos de financiamento eleitoral derivam de fontes de natureza pública e


privada, bem como existem 3 modelos de financiamento, quais sejam, público
exclusivamente, privado exclusivamente e misto.

2.1 FINANCIAMENTO ELEITORAL PÚBLICO

No financiamento eleitoral público exclusivamente, os partidos políticos e as


campanhas eleitorais são financiadas integralmente pelo Estado, portanto, com
recursos públicos, podendo ser realizado de forma direta ou indireta. Na primeira
forma, o Estado transfere recursos do orçamento ao partido político, enquanto que,
na segunda forma, o Estado concede serviços ou benefícios fiscais em favor das
agremiações partidárias.
A adoção deste sistema de financiamento apresenta algumas vantagens,
dentre as quais destacam-se: a garantia de maior isonomia e paridade de armas nas
disputas, a redução da desigualdade entre candidatos e partidos, a influência do poder
econômico pode ser potencialmente reduzida, o maior controle e transparência do
fluxo financeiro no processo eleitoral, a padronização e simplificação dos programas
de propaganda eleitoral, a independência da organização partidária, a redução da
corrupção na gestão estatal e promoção da igualdade de oportunidades ou chances
no certame eleitoral.
Todavia, agrega algumas desvantagens também, a saber: dependência dos
partidos políticos do aparelhamento estatal (monopólio estatal), oneração do
orçamento estatal, afronta a natureza jurídica dos próprios partidos, doações privadas
em paralelo, privilegia as decisões das cúpulas dos partidos, acomodação dos
partidos políticos ao status quo, burocratização das estruturas e nega a possibilidade
de participação na política aos cidadãos, mediante contribuições financeiras a partidos
e candidatos.

2.2 FINANCIAMENTO ELEITORAL PRIVADO

No financiamento privado exclusivamente, os partidos políticos e as


campanhas eleitorais são integralmente financiadas por particulares, pessoas físicas
e jurídicas, abrangendo contribuições, doações e serviços. Em outras palavras, a
provisão de recursos para o custeio da agremiação partidária e dos gastos eleitorais
ficam a cargo dos candidatos, partidos, coligações e apoiadores em geral.
A escolha deste sistema apresenta vantagens, tais como: maior empenho dos
partidos em busca de adeptos, maior participação e envolvimento da sociedade com
os partidos, maior representatividade social e independência financeira em relação ao
Estado.
Por outro lado, existem desvantagens, das quais, destacam-se: nega aos
partidos pequenos recursos mínimos para se manterem em funcionamento, eleva os
custos das campanhas, forte influência dos grandes grupos econômicos sobre os
partidos e candidatos destinatários das doações, mecanismo de troca que estimula
acordos pré-eleitorais a serem executados durante o exercício dos mandatos e
antidemocrático e desigual.

2.3 FINANCIAMENTO ELEITORAL MISTO

No financiamento eleitoral misto, os partidos políticos e as campanhas são


financiadas tanto pelo Estado quanto pelos agentes privados. Tal sistema é o adotado
740

pelo Brasil e permite que os partidos políticos busquem na sociedade os recursos


financeiros, sem prejuízo da subvenção estatal. Assim, garante-se o incentivo a
participação popular, por meio de doações, e a igualdade e o equilíbrio entre os
concorrentes.
Atualmente, o Estado financia, direta e indiretamente, a atividade ordinária e a
atividade de campanha dos partidos políticos por meio do fundo partidário (arts. 17, §
3º, CF e 38 da Lei dos Partidos Políticos), do fundo especial de financiamento de
campanha – FEFC (art. 16-C da Lei das Eleições), da compensação fiscal (art. 99, da
Lei das Eleições), da renúncia fiscal (art. 150, VI, c, da Constituição Federal), da
utilização de escolas públicas ou casas legislativas para a realização de reuniões
(arts. 51, da Lei dos Partidos Políticos e 8, § 2º, da Lei das Eleições) e do acesso
gratuito a espaço para propaganda e divulgação de ideologias nas emissoras de rádio
e televisão (art. 17, § 3º, da Constituição Federal e regulamentado nos arts. 45 a 49
da Lei dos Partidos Políticos).
Além disso, pessoas físicas poderão realizar contribuições e doações para
campanha eleitoral, nos termos do artigo 23 da Lei das Eleições. Importante destacar
que, as pessoas jurídicas não podem realizar nenhuma doação para partidos políticos
e para campanhas eleitorais, vez que o financiamento empresarial de partidos
políticos e campanhas eleitorais foi declarado inconstitucional pelo colendo Supremo
Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4650, de
17.09.15.
A legislação eleitoral4 veda o recebimento de doação a partido político e
candidato proveniente de entidade ou governo estrangeiro, órgão da administração
pública direta e indireta ou fundação mantida com recursos provenientes do poder
público, concessionário ou permissionário de serviço público, entidade de direito
privado que recebe, na condição de beneficiária, contribuição compulsória em virtude
de disposição legal, entidade de utilidade pública, entidade de classe ou sindical,
pessoa jurídica sem fins lucrativos que receba recursos do exterior, entidades
beneficentes e religiosas, entidades esportivas, organizações não-governamentais
que recebam recursos públicos e organizações da sociedade civil de interesse
público.
Não há previsão de sanção para a hipótese de violação desta proibição. Há
apenas a responsabilização do candidato que tiver recebido tais valores, se evidenciar
ciência ou anuência (art. 30-A, da Lei das Eleições, 22 da Lei das Inelegibilidades e
14, § 10, da Constituição Federal).

3. DADOS E NÚMEROS

O Ministro Luiz Fux ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4650 5


destacou alguns dados interessantes, dentre os quais destacam-se: em 2002, os
candidatos gastaram 798 milhões de reais, ao passo que, em 2012, os valores
superaram 4,5 bilhões de reais, com aumento de 471% de gastos. No Brasil, o gasto
seria da ordem de R$ 10,93 per capta, na Franca R$ 0,45, no Reino Unido, R$ 0,77 e
na Alemanha R$ 2,21.
Outro dado curioso é a evolução da verba destinada ao fundo partidário em
1994 era R$ 730 mil, dez anos depois em 2014 alcançava os R$ 314 milhões, um ano
depois quase triplico 2015 – R$ 812 milhões e em 2016 atingiu o valor de R$ 819
milhões.

4
Artigos 24 da Lei n. 9.504/97 e 31 da Lei dos Partidos Políticos.
5
STF, ADI 4650/DF, Rel. Min. Luiz Fux, DJE 04.03.2016.
741

Por fim, dados extraídos do site do egrégio Tribunal Superior Eleitoral6


demonstram que o montante total do Fundo Especial de Financiamento de
Campanha - FEFC destinado para a eleição geral de 2018 é de R$ 1.716.209.431,00
(um bilhão, setecentos e dezesseis milhões, duzentos e nove mil e quatrocentos e
trinta e um reais) e do Fundo Partidário é de R$ 63.145.561,74 (63 milhões, cento e
quarenta e cinco mil e quinhentos e sessenta e um reais e setenta e quatro centavos),
bem como que referidos valores serão transferidos aos diretórios nacionais dos 35
partidos com registro no TSE.
Portanto, considerando o quantum dos recursos públicos oriundos do
orçamento da União destinados aos partidos políticos, é imperiosa a realização de um
rígido controle pela Justiça Eleitoral da distribuição e destinação desses vultuosos
recursos, a qual é feita por meio da ação por captação ou gasto ilícitos de recursos
para fins eleitorais, bem como das ações de prestação de contas de partido político e
de campanha eleitoral.

4. AÇÕES DE PRESTAÇÃO DE CONTAS E AÇÃO POR CAPTAÇÃO OU USO


ILÍCITO DE RECURSOS PARA FINS ELEITORAIS

A prestação de contas anual de toda a movimentação financeira do partido


político à Justiça Eleitoral é um instrumento que visa garantir transparência e
legitimidade para a atuação partidária e, permite, por consequência, um maior controle
dela pelo Estado e pela própria sociedade.
Da mesma maneira, a prestação de contas de campanha é um importante
instrumento utilizado pela Justiça Eleitoral para realizar de maneira concreta a
fiscalização e o controle sobre a regularidade das arrecadações e dos gastos dos
candidatos e das agremiações partidárias, a fim de garantir eleições que reflitam a
vontade popular e ocorram dentro da legalidade, publicidade e transparência,
evitando-se abusos de poder e interferências externas na referida vontade.
José Jairo Gomes7, ao leciona sobre o tema em comento, afirma que “é direito
impostergável dos integrantes da comunhão política saber quem financiou a
campanha de seus mandatários e de que maneira esse financiamento se deu. Nessa
seara, impõe-se transparência absoluta! Sem isso, não é possível o exercício pleno
da cidadania, já que se subtrairiam do cidadão informações essenciais para a
formação de sua consciência político-moral, relevantes sobretudo para que ele
aprecie a estatura moral de seus representantes e até mesmo para exercer o
sacrossanto direito de sufrágio”.
As contas de exercício financeiro de partido política que forem desaprovas
implicará ao partido a sanção de devolução da importância apontada como irregular,
acrescida de multa de até 20% e aos dirigentes partidários responsabilização pessoal
civil e criminal, de acordo com o disposto no art. 37, caput e § 13º, da Lei n. 9.504/97.
Eventual, ausência de prestação de contas acarreta a suspensão do recebimento de
novas cotas do fundo partidário enquanto perdurar a inadimplência.
Ao julgar as contas de campanha eleitoral a Justiça Eleitoral poderá aprova-las,
aprova-las com ressalvas, rejeitá-las ou julgar não prestadas as contas. Todavia, o
único resultado que efetivamente sanciona o candidato ou o partido é o julgamento
das contas não prestadas, pois tem como consequência tornar inelegível o candidato,
nos termos do artigo 11, § 1º, VI, da Lei das Eleições. As demais decisões têm cunho

6
http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tse-distribuicao-fundo-partidario-duodecimo-agosto-2018 e
http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tse-fundo-especial-de-financiamento-de-campanha
7
GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 388.
742

meramente moral, pois não geram nenhuma consequência que inviabilize futura
candidatura, nem implicam no pagamento de multa.
A ação por captação ou uso ilícito de recurso para fins eleitorais tem
fundamento legal no artigo 30-A da Lei das Eleições e visa tutelar a higidez da
campanha e a igualdade na disputa, bem como tem por objeto direto a negação da
diplomação ou sua cassação e, por objeto indireto, a inelegibilidade por oito anos (art.
1º, I, j, Lei das Inelegibilidades). O objetivo desta ação é fazer com que as campanhas
eleitorais se desenvolvam e sejam financiadas de forma escorreita e transparente, a
fim de possibilitar uma disputa saudável entre os candidatos, razão pela qual basta a
existência da gravidade do evento e das circunstâncias que o cercam para a
caracterização da hipótese legal em apreço, sendo irrelevante que o fato tenha
potencialidade para desequilibrar as eleições ou o resultado delas.

CONCLUSÃO

Com efeito, o financiamento eleitoral misto, com a exclusão da possibilidade de


que pessoas jurídicas figurem como doadoras, é a solução que melhor atende aos
interesses da democracia.
O financiamento eleitoral mediante a doação de pessoas jurídicas possibilita
que o detentor do capital influencie os rumos da política com a consequente captura
de interesse privados em detrimento ao interesse público e social.
Todavia, para coibir o abuso do poder econômico no financiamento eleitoral e
para possibilitar que os representantes do povo tenham igualdade de condições na
disputa do pleito não basta vetar a doação através de pessoas jurídicas. É essencial
também a rígida fiscalização das contas dos partidos políticos e dos gastos de
campanha, notadamente por meio do ajuizamento das ações de prestação de contas
e do 30-A, quando necessário.
Por fim, no caso de desaprovação das contas de campanha é de suma
importância que o legislador estabeleça sanções efetivas aos candidatos e aos
partidos políticos que tiverem suas contas de campanha julgadas desaprovadas, vez
que o caráter moralizador atual, por si só, não é suficiente. Seria de grande eficácia a
previsão de sanção de cunho pecuniário para os candidatos e partidos, bem como no
caso dos candidatos da pena de inelegibilidade pelo prazo de 08 anos (analogia com
o prazo de inelegibilidade previsto na Lei Complementar nº 64/90).

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2014.
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um mito inacabado\ Monica Herman S. Caggiano (org.). Barueri: Manole, 2017.
744

INTERFACES ENTRE DEFESA DA CONCORRÊNCIA E COMBATE À


CORRUPÇÃO
INTERFACES BETWEEN DEFENSE OF COMPETITION AND COMBATING
CORRUPTION

Breno Fraga Miranda e Silva


Aluisio de Freitas Miele
Juliana Oliveira Domingues

Resumo: A pesquisa trata da relação entre a corrupção, os mercados competitivos e


a política antitruste. Através de pesquisa documental indireta e procedimento do tipo
funcionalista, traz a compreensão das funções regulatórias em um complexo de
estrutura e organização, analisando o sistema de defesa da concorrência e a sua
relação com a política anticorrupção. É possível observar uma linha argumentativa
referente à defesa da concorrência, a qual, discute a necessidade de estabelecer
pontos ótimos de regulação concorrencial e de anticorrupção. Objetivando discutir se
a ampliação de políticas anticorrupção traz benefícios ao bem-estar social ou
funcionaria como uma estrutura de defesa comercial, observou-se que a convergência
das políticas anticorrupção em nível mundial se mostrou sadia para a promoção da
concorrência e que as práticas de compliance vêm se uniformizando. Foi possível
concluir que o incremento das políticas anticorrupção em nível global deve buscar uma
uniformização mínima, para evitar uma possível confusão regulatória.
Palavras-chaves: Defesa da concorrência; compliance; antitruste

Abstract: The research deals with the relationship between corruption, competitive
markets and antitrust policy. Through indirect documentary research and a
functionalist type procedure, it brings the understanding of regulatory functions into a
complex of structure and organization, analyzing the system of defense of competition
and its relation with anti-corruption policy. It is possible to observe an argumentative
line regarding the defense of competition, which discusses the need to establish
optimal points of competitive regulation and anticorruption. With a view to discussing
whether the expansion of anti-corruption policies brings benefits to the world's social
welfare or would function as a trade defense structure, it has been observed that the
convergence of anti-corruption policies at the global level has proved to be sound in
promoting competition and that compliance. It was possible to conclude that the
increase in anti-corruption policies at the global level should seek a minimum
standardization to avoid regulatory confusion.
Keywords: Defense of competition; compliance; antitrust

1. INTRODUÇÃO

Com o incremento, em nível mundial, das políticas públicas voltadas ao


combate à corrupção e uma maior colaboração internacional, é imprescindível analisar
qual o impacto na regulação antitruste. Por um lado, há a impressão de que as práticas
anticorrupção, quando aplicadas às empresas estrangeiras, poderiam se tornar uma
ferramenta para reduzir o nível de concorrência e criar alguma vantagem às empresas
nacionais dos respectivos países. Por outro lado, pode-se afirmar que a sobreposição
das regulações anticorrupção ajudaria a construir um nível de concorrência ainda mais
sadio. O objetivo principal desta pesquisa é analisar a relação entre os níveis de
atuação da política anticorrupção e a estrutura da regulação antitruste. Busca-se
745

discutir se a ampliação de políticas anticorrupção em nível global trazem benefícios


ao bem-estar social mundial ou funcionaria como uma estrutura de defesa, no âmbito
do comércio internacional e da concorrência, para os Estados que a implementam.
O método de procedimento utilizado foi do tipo funcionalista, trazendo a
compreensão das funções regulatórias em um complexo de estrutura e organização,
analisando, objetivamente o sistema brasileiro de defesa da concorrência e a sua
relação com a política anticorrupção. Foi utilizada a técnica de pesquisa documental
indireta primária e, supletivamente, o suporte de pesquisa bibliográfica.
No desenvolvimento da pesquisa foram trabalhados aspectos que relacionam
microeconomia e os parâmetros de regulação anticorrupção em âmbito mundial,
concluindo que a convergência das políticas anticorrupção em nível mundial se
mostrou sadia para a promoção da concorrência, na medida em que as práticas de
compliance vêm se uniformizando e buscando respostas para situações cada vez
mais complexas e globalizadas.

2. DESENVOLVIMENTO

Com o incremento, em nível mundial, das políticas públicas voltadas ao


combate à corrupção e uma maior colaboração internacional, é necessário analisar
em que medida as práticas anticorrupção, quando aplicadas às empresas
estrangeiras, poderiam se tornar uma ferramenta para reduzir o nível de concorrência
e criar alguma vantagem às empresas nacionais dos respectivos países. Inicialmente
deve-se discutir ainda se a sobreposição das regulações anticorrupção ajudaria a
construir um nível de concorrência ainda mais sadio e qual seria esse ponto. De um
modo geral, depreende-se um sentimento de que a ampliação de políticas
anticorrupção em nível global trazem benefícios ao bem-estar social mundial e seria
uma prática sadia para a promoção da concorrência, na medida em que as práticas
de compliance vêm se uniformizando. Por outro lado, como pontos críticos da
convergência entre os dois panoramas regulatórios, é possível citar a possível
configuração de uma confusão regulatória entre as os diferentes espectros de
regulação, a dissuasão de transações benéficas à concorrência, por conta de
regulação anticorrupção aplicada de forma excessiva ou enviesada, ou o efetivo mal-
uso do compliance anticorrupção, através da sua utilização para proteger as empresas
escolhidas como campeãs nacionais (STEPHAN,2012).
A pesquisa de Stephan divide-se em três pontos para tratar da interrelação
entre regulação antitruste e a política anticorrupção (teoria geral da regulação
antitruste, política antitruste e a relação entre esta última e a política anticorrupção).
Em linhas gerais, o autor busca analisar se uma concorrência, em âmbito
internacional, entre os sistemas regulatórios nacionais de combate à corrupção
significaria um aumento ou diminuição do bem-estar geral global. Em conclusão, o
autor não vê grandes prejuízos à sobreposição das estruturas nacionais
anticorrupção, de modo que a OMC serviria justamente como última fronteira para as
discussões sobre abusos de políticas anticorrupção que eventualmente sejam
utilizadas como barreiras ao livre comércio (STEPHAN,2012). Ainda segundo
Stephan, a sobreposição das estruturas regulatórias faria com que os Estados mais
“fracos” neste aspecto se submetessem à regulação mais rígida dos demais,
principalmente das nações desenvolvidas (STEPHAN,2012). Conforme o texto, o
receio de uma regulação anticorrupção proeminente afastar negócios nos países
desenvolvidos – abrindo espaço para o incremento de negócios com países mais
“toleráveis” ao risco trazido pela corrupção- não se confirmou diante do nível de
746

globalização da economia (STEPHAN,2012), onde boa parte dos negócios no mundo


passam por economias desenvolvidas e substancialmente mais atentas à regulação
anticorrupção – seja através de listagem em bolsa, atuação através de empresas
transnacionais ou outros tipos de financiamento- de modo que isto não poderia ser
caracterizado como um problema na visão do autor.
Na sua divisão, inicialmente o autor trata da teoria geral da regulação pela
concorrência, trazendo a dinâmica de Tiebout1 como ilustrativa para o tipo de
regulação que não considera externalidade. Em seguida, apresenta considerações
sobre como as externalidades e a política econômica podem produzir efeitos
negativos para o bem estar geral (como no caso das empresas produtoras de produtos
tóxicos que são exportados e consumidos em outro país e, por conta disso, o produtor
não internaliza completamente os custos, o risco e o potencial prejuízo social e
ambiental no seu negócio). Há ainda a dinâmica que Stephan denominou “race to the
bottom”, que seria a pressão que os países enfrentam para diminuir as suas
respectivas regulações para evitar que os investimentos escoem para jurisdições
menos reguladas (STEPHAN,2012). O segundo ponto que Stephan levanta é a
incapacidade dos Estados de capturar os benefícios das externalidades, o que faz
com que não tenham o incentivo correto para produzir um nível ótimo de regulação.
Como exemplo, o autor cita o mercado de créditos de carbono, diante do qual os
benefícios são repartidos em nível mundial, de modo que todos os Estados têm
incentivos para serem free riders diante dos demais (STEPHAN,2012). Como terceiro
ponto de discussão, o autor traz a percepção de que os produtores têm um poder de
captura muito mais expressivo do que os consumidores em geral, de modo que a
regulação tem a tendência de refletir os interesses e preferências dos produtores e
beneficiar os interesses de determinados grupos econômicos, em restrição dos
demais atores econômicos (STEPHAN,2012). Diante disto, o autor postula que nesta
seara não existiria uma solução one size fits all, de modo que uma análise sobre as
particularidades dos mercados e das regulações se faz necessária para determinar o
custo marginal e os benefícios de uma cooperação regulatória (STEPHAN,2012).
Ao tratar da política antitruste, deve-se apresentar um questionamento sobre
se o ponto ótimo do nível de concorrência em mercados privados é diferente do ponto
ótimo de concorrência entre estados (na sua atividade regulatória). Para tratar do
tema, Stephan argumenta pelo potencial da política econômica em diminuir o bem-
estar geral e afirma que a regulação pela concorrência pode facilmente servir para fins
protecionistas (STEPHAN,2012).
Nesta altura surgem importantes considerações que devem ser aqui tratadas.
Inicialmente é imprescindível fazer menção à prática dos cartéis de exportação como
um dos problemas concorrenciais que podem ser inferidos pelo texto. Estes cartéis
são isenções antitruste em grande parte das jurisdições e podem prejudicar o
processo de desenvolvimento econômico. Neste sentido, Juliana Oliveira
Domingues(2010 ,p.7) ensina que

As organizações internacionais têm envidado esforços para discutir as


melhores práticas e para oferecer suporte aos países que desejam criar
ou aprimorar suas leis e políticas de concorrência, especialmente para
combater os efeitos de práticas anticoncorrenciais. No passado houve
muita argumentação sobre a necessidade de se criar um conjunto de
regras multilaterais de concorrência em razão das condutas

1
Charles Tiebout produziu a “teoria dos gastos locais” que trata da forma pela qual devem ser providos os bens públicos de
acordo com as preferências dos habitantes de diferentes localidades, de forma que se consiga “forçar o eleitor a revelar suas
preferências, satisfazê-lo da mesma forma que o mercado de bens privados o faz e, também, taxá-lo adequadamente” (TIEBOUT,
1956, p. 417-418).
747

anticoncorrenciais que tem dimensão internacional e também pelo uso de


medidas artificiais com fins protecionistas direcionados a anular a
concorrência dos produtos importados. No entanto, a criação de regras
multilaterais de concorrência não tem sido o foco dos debates recentes.
[...] Os cartéis de exportação podem gerar distorções ao comércio
internacional, especialmente aos países menos desenvolvidos ou em
desenvolvimento que não possuem expertise para lidar com essas
condutas, de modo que merecem atenção para que sejam criadas de
regras multilaterais específicas que regulem essa prática.

Outro problema que pode ser tratado por meio da pesquisa analisada versa
sobre os campeões nacionais. A política de campeões nacionais pode ser
particularmente problemática para a regulação antitruste, de modo que os Estados
teriam incentivos para propor as políticas regulatórias que melhor acomodassem seus
campeões e criassem desvantagens para seus rivais. Entretanto, o próprio Stephan
já oferece um contraponto a este argumento, que aqui reiteramos, na medida em que
a necessidade de acessar mercados internacionais, potencialmente mais rígidos em
matéria regulatória, torna inócua qualquer tentativa de o Estado “facilitar a vida” do
seu campeão nacional (STEPHAN,2012).
Observemos, por exemplo o caso da vigência do General Data Protection
Regulation (GDPR) na União Europeia. Na medida em que tratou do mercado digital
– claramente transfronteiriço – e criou uma série de exigências para a gestão, coleta
e tratamento de dados dos consumidores europeus, o regulamento, somado ao poder
econômico da união de estados que o propôs, tornou absolutamente inócua a
existência ou não de regulação neste sentido em outros países. Como todas as
empresas que propõe serviços digitais em nível mundial necessitam acessar o
mercado europeu, a regulação ganhou contornos de enforcement mundial.
Sobre esta discussão, ainda é possível fazer menção às características do
Regulatory Leveraging no ambiente regulatório antitruste, tratado por Kovacic e
Hyman (2016) de modo que o regulador deve estar consciente dos riscos e custos
legais de utilizar a alavancagem regulatória – como, por exemplo, utilizar a política
anticorrupção ou antitruste em âmbito internacional para fins protecionistas – de modo
incorreto ou indisciplinado. Neste sentido, Kovacic e Hyman (2016, p.27) afirmam:

Reguladores gostam de alavancagem - e, algumas vezes, é a única


solução disponível para um problema específico. Mas a alavancagem
reguladora aumenta riscos e custos muito reais, que aconselham uma
cautela consideravelmente maior do que as agências reguladoras
mostraram até o momento. A menos que devidamente disciplinado, a
alavancagem regulatória se torna ilegal. Algumas vezes, a alavancagem
regulatória é um problema. E alguns o tempo, a alavancagem regulatória
é a única solução disponível.2

Retomando as ideias de Stephan, tendo em vista os argumentos apresentados


pelos demais autores, é possível argumentar que a corrupção pode ser prejudicial
para a o Estado (ou empresa) que paga pelo ato de corrupção (lado da oferta), na
medida em que cria incentivos e liberdades para seus representantes também
prejudicarem as suas próprias instituições ou estruturas empresariais
(STEPHAN,2012). Do lado da “demanda” pelo pagamento dos atos de corrupção, o

2
Traduzido livremente do excerto: “ Regulators like leverage—and some of the time, it is the only available solution to a particular
problem. But regulatory leverage raises very real risks and costs, which counsel for considerably greater caution than regulatory
agencies have shown to date. Unless properly disciplined, regulatory leveraging becomes lawlessness.Some of the time,
regulatory leveraging is a problem. And, some of the time, regulatory leveraging is the only available solution.”
748

autor afirma existir um pooling equilibrium na medida em que o risco de não-


performance levaria as empresas a um desconto no preço referente ao pagamento
pelos atos de corrupção, de modo que se cria um mercado com preços descontados
e baixa performance da barganha ilícita entre “tomadores” e “fornecedores” de
corrupção(STEPHAN,2012).
Diante do disposto, é possível depreender algumas vantagens da
multirregulação, de modo que os mercados situados em países com instituições com
regulações fracas na seara concorrencial e de anticorrupção se mostram em
desvantagem diante das estruturas com melhor regulação, na medida em que os
investidores vêm se mostrando adversos ao risco de se inserirem em mercados mais
“abertos” à corrupção e futuramente se verem imersos em problemas legais nos seus
próprios países de origem.
Uma segunda pesquisa bastante interessante é aquela que se origina do artigo
de Basu, Mcgavock e Zhang (2012), diante do qual é possível compreender a
construção de um modelo econômico para demonstrar que a corrupção gera renda a
partir de baixos custos, o que implica que um mercado que funcione em regime de
concorrência gera altos – e não baixos- incentivos para praticar corrupção. Ao fazer
uma ligação entre corrupção e estrutura de mercado, os autores traçaram o modelo
com base em uma percepção inicial: a de que os atos de corrupção seriam “amorais”,
ou seja, os atores tomariam suas decisões – de praticar ou não atos corruptos - com
base exclusivamente nos retornos econômicos. Para fins do modelo, criaram dois
tipos de pessoas: aquelas consideradas honestas e as corruptas, sem qualquer
gradação. Com base nisto, trataram também as empresas como corruptas ou
honestas, considerando que estas são geridas por um dos tipos de pessoas já
classificadas.
Baseado nas equações apresentadas, os autores assumem que a prática de
um ato de corrupção sempre será menos custoso do que se submeter ao que seriam
os padrões de regulação do mercado e apresentam como proposição a afirmativa: “se
um mercado é suficientemente competitivo, então todas as empresas daquele
mercado serão corruptas”3 (BASU; MCGAVOCK; ZHANG, 2012, p.4). Para provar
esta afirmativa, demonstram matematicamente que caso haja um número de
empresas maior do que o ponto ótimo trazido pelo equilíbrio de Cournot4 estas apenas
conseguiriam obter lucro através da realização da atos de corrupção – que é a variante
utilizada no estudo. Da mesma forma, afirmam ainda que em “um mercado competitivo
com entrada livre para novos players, a corrupção será endêmica” (BASU;
MCGAVOCK; ZHANG, 2012, p.5).
A afirmação se justifica no texto pelo ponto ótimo de Cournot, na medida em
que se imaginando um mercado sem barreiras de entrada, composto por empresas
corruptas e não corruptas, haveria um ponto ótimo – onde todas sobreviveriam e
lucrariam – e, passado este, apenas as empresas corruptas sobreviveriam, de modo
que a corrupção seria a função econômica para a existência do lucro (já que, no
modelo econômico proposto, ofereceriam um menor custo regulatório às empresas).

3
Traduzido livremente do excerto: “ If the industry is sufficiently competitive (i.e. the number of firms in the industry is above a
certain threshold level n ∗ ) then all firms in the industry will be corrupt”
4
De forma bem simplificada o equilíbrio de Cournot é um modelo matemático no qual a estrutura de mercado se baseia na
quantidade produzida pelos seus concorrentes, existindo uma grande interdependência nas decisões dos agentes. Para fins de
análise do artigo proposto, é suficiente observar que o ponto ótimo do modelo econômico é aquele no qual as firmas fazem com
que o produto total exceda o produto total ofertado por um suposto monopólio enquanto o preço, é menor do que o de monopólio.
Por outro lado a produção seria menor do que o de uma indústria competitiva, onde os preço tendem ao custo marginal. Em
outras palavras, os autores do artigo demonstraram que há um ponto ótimo – que não é a concorrência perfeita – e que
ultrapassado este ponto, as empresas apenas teriam lucro se agissem de forma corrupta.
749

Avançando na argumentação apresentada, os autores incluem no cálculo uma


gradação moral (relacionada à corrupção e honestidade) dos atores econômicos,
assumindo que há um custo psicológico ao ser desonesto (BASU; MCGAVOCK;
ZHANG, 2012). Considerando esta nova informação, retornam ao modelo econômico
proposto para vincular o “custo de ser honesto” aos lucros auferidos neste mercado.
Novamente concluem que há um resultado imutável: “há um nível ótimo de
concorrência, acima do qual os players do mercado – atuando com eficiência -
estariam necessariamente se utilizando de atos de corrupção” (BASU; MCGAVOCK;
ZHANG, 2012, p.5) 5, o que independeria da propensão moral e individual de cada
player, sendo portanto uma questão meramente econômica.
Para ilustrar o que se expôs, os autores fizeram menção ao caso que, segundo
eles, expõe o racional do modelo teórico, que é o caso do mercado dos alimentos
básicos subsidiados na índia. Em linhas gerais, o caso trata da iniciativa do governo
indiano de subsidiar os grãos de alimentação básica para a população mais carente6
. No modelo Indiano, no ano de 2015, o Estado subsidiava a população mais
desfavorecida com até 35 quilos de grãos por pessoa, ao preço de uma a três rúpias
(de US$ 0,01 a US$ 0,04, na época) por quilo. Para receber a ajuda com alimentos
básicos subsidiados, a população deveria comprar em um comércio local específico e
regulado pelo Estado. Desta forma o Estado fixava, ainda que indiretamente, o preço
dos grãos básicos na economia indiana como um todo. Diante desta estrutura, ocorreu
um fenômeno econômico que caracterizou altos índices de corrupção neste mercado,
de modo que os comerciantes, donos destas lojas de grãos, – e toda a estrutura
comercial acima deles – desviava esses grãos para o mercado paralelo (todos os
mercados de grãos não regulados pelo Estado) tornando os preços dos produtos
excessivamente altos para toda a população. Com esta estrutura econômica, Khera,
ao analisar o tema, mostrou que neste mercado “ a margem de lucro é tão baixa que
a manutenção de uma loja de venda de grãos básicos subsidiados apenas se
justificaria economicamente se o empresário estivesse disposto a se corromper.
(2011, apud BASU; MCGAVOCK; ZHANG, 2012, p.7).
Por fim, os autores afirmam que seria errada a impressão de que a corrupção
é inevitável em mercados competitivos, na medida em que o modelo desenvolvido por
eles considera um ambiente no qual a corrupção “vale a pena”, e é eficaz aos players
do mercado. Dadas estas informações, a nossa impressão inicial sobre o modelo
econômico apresentado tende a colocar em cheque a premissa de que os atos de
corrupção – por si só - diminuiriam os custos ou aumentariam os lucros das empresas
envolvidas, de modo que não seria possível atribuir, no modelo econômico proposto,
o mínimo de lucro -caso haja o cumprimento integral do compliance regulatório- e o
máximo de lucro, caso a empresa recorra a atos de corrupção(BASU; MCGAVOCK;
ZHANG, 2012).
O argumento principal para justificar esta afirmação reside no fato de que, na
maioria das vezes, é simplesmente impossível dar valor à eficiência de um
“investimento em ato corrupto” na medida em que os atos de corrupção normalmente
não se realizam sob a forma de um contrato e não estariam expostos a qualquer tipo
de compliance, motivo pelo qual entendemos que, não necessariamente, uma
empresa que atua de forma corrupta sempre estará em vantagem econômica diante
das demais que não utilizam deste expediente. Ainda neste sentido, há registros de
empresas que se utilizam de atos de corrupção para obter contratos públicos
5
Traduzido livremente do excerto: “Hence our fundamental result is unchanged: there is a critical level of competitiveness such
that once an industry becomes competitive beyond this level, bribery and corruption will be ubiquitous.”
6
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) a Índia tem 15% da sua população
subalimentada. Maiores informações em http://www.fao.org/faostat/en/#country/100
750

deficitários, com evidentes características alheias ao espectro econômico. Em


resumo, o que se postula aqui é simplesmente trazer o benefício da dúvida sobre a
eficiência da corrupção como suposta “mão amiga” para contornar os excessos de
regulamentação e de controles administrativos em determinado mercado.
Por fim, para analisar o contexto e a interrelação entre a defesa da concorrência
e combate à corrupção é necessário tratar da pesquisa realizada por David Lewis,
diante da qual é possível extrair o conceito econômico de renda7, a categorização para
o conceito de corrupção8, bem como a relação entre corrupção e concorrência e as
sugestões para o aperfeiçoamento dessa relação. Uma das argumentações
marcantes da pesquisa é a de que baixos níveis de concorrência levam ao aumento
de renda pelos concorrentes e assim aumentam o potencial retorno dos incentivos
para se utilizar de atos de corrupção (LEWIS, 2014).
A relação contrária também pode ser afirmada da mesma forma: altos níveis
de corrupção favorecem a construção de mercados com baixos níveis de
concorrência. A impressão que o texto deixa é de que o principal problema a ser
enfrentado pela estrutura regulatória é o rent-seeking. Se, por um lado, a necessidade
de utilizar o enforcement dos dois contextos regulatórios – antitruste e política
anticorrupção - para se fortalecerem mutuamente parece ser intuitiva, o mesmo não
se pode falar do rent-seeking (LEWIS, 2014). Sobre este tema é necessário criar um
contraponto, na medida em que muitas vezes é impossível o cálculo prático dos gastos
em rent-seeking. Sua importância para a análise de atuação institucional do Estado
na concessão de direitos e na regulação deriva, necessariamente, de sua capacidade
de demonstrar a priori a dissipação do valor da riqueza no próprio processo da busca
desses direitos. Sem essa demonstração a priori, a teoria tende a perder sua força
analítica em função da indeterminação do seu modelo.
Por outro lado, é necessário concordar com David Lewis, na medida em que
exige uma verdadeira simbiose entre os reguladores voltados à concorrência e ao
combate à corrupção, na medida em que muitos problemas que estes enfrentam
merecem um tratamento simultâneo entre os dois instrumentais regulatórios (LEWIS,
2014). Por fim, a exigência de uma política industrial mais favorável à promoção da
concorrência remete às discussões sobre os textos de Daniel Sokol9 e de Eleanor M.
Fox10, na medida em que argumentam, assim como o texto de Lewis, que o
fortalecimento do advocacy concorrencial poderia reduzir as distorções geradas por
uma política industrial deliberadamente desatenta neste ponto.

3. CONCLUSÃO

Como apresentação de resultados e conclusão, é possível depreender que a


convergência das políticas anticorrupção em nível mundial se mostrou sadia para a
promoção da concorrência, na medida em que as práticas de compliance vêm se
uniformizando e buscando respostas para situações cada vez mais complexas e
globalizadas. Ademais, a pesquisa nos permite concluir que o incremento das políticas
anticorrupção em nível global deve buscar uma uniformização mínima, para evitar a

7
Lewis apresenta o conceito conforme o texto: “ The standard neo-classical definition of ‘economic rent’ is that portion of income
paid to a factor of production in excess of that which is needed to keep it employed in its current use. However, for present
purposes the Ricardian definition of rent as the return generated by an element of fixity of supply in a factor of production, though
broadly similar to the standard neo-classical definition, is more on point” (LEWIS, 2014,p.4)
8
Lewis apresenta o conceito conforme o texto:” ‘Rent seeking’ is commonly defined as an attempt to obtain economic rent by
manipulating the environment in which economic activity occurs, rather than by creating new wealth” (LEWIS, 2014,p.5)
9
SOKOL, D. Tensions Between Antitrust and Industrial Policy. 22 Geo. Mason L. Rev. 1247, 2015.
10
FOX, E. HEALEY, D. When the State Harms Competition—The Role For Competition Law. NYU Law and Economics
Research Paper No. 13-11, 2014.
751

confusão regulatória, a dissuasão de transações benéficas à concorrência ou o mal-


uso, através da utilização para proteção de campeões nacionais.
Desta forma, considerando eventuais problemas advindos da sobreposição ou
má utilização da regulação anticorrupção, é possível observar a importância da
existência dos standards mínimos de compliance para que as empresas possam
acessar determinados mercados e a possibilidade de tratar eventuais problemas –
originados pela regulação anticorrupção, mas com reflexos na concorrência e no
comércio internacional - através da intervenção da Organização Mundial do Comércio,
instituição que já tem estrutura e técnica suficiente para lidar com estas questões.

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752

NORMAS TRIBUTÁRIAS INDUTORAS E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: A


INDÚSTRIA DO AÇAÍ NA REGIÃO AMAZÔNICA
TAX RULES AND SUSTAINABLE DEVELOPMENT: THE AÇAÍ INDUSTRY IN THE
AMAZON REGION
Amanda Naif Daibes Lima
Suzy Elizabeth Cavalcante Koury

Resumo: Este trabalho estuda a relação entre normas tributárias indutoras e o


desenvolvimento sustentável na Região Amazônica por meio da análise do Decreto-
Lei nº 1.522/2016 e da Resolução nº 039/2017. Para tanto, o trabalho aborda o título
da Ordem Econômica introduzida pela Constituição de 1988, bem como as formas de
intervenção do Estado na economia. Conclui-se que o Estado, ao editar normas
tributárias indutoras e, portanto, intervir sobre o domínio econômico, possui a
capacidade de dar uma direção para o alcance do desenvolvimento sustentável
protegido pela constituição.
Palavras-chave: desenvolvimento-sustentável; intervenção-estatal; normas-
indutoras.

Abstract: This paper studies the relation between induction tax rules and the
sustainable development in the Amazon region through the analysis of the decree
1.522/2016 and the resolution 039/2017. Thus, the paper approaches the
Constitutional Economic, as well as the ways of State’s intervention on economy. In
conclusion, the State, by creating induction tax rules, which means an intervention on
the economic camp, has the capacity to control its financials’ activities not only aiming
the public interest, but the sustainable development protected by the Constitution.
Key words: sustainable-development; state-intervention, induction-rules;

1. INTRODUÇÃO

O presente resumo expandido tem como escopo a análise das normas


tributárias indutoras como forma de intervenção do Estado sobre o domínio
econômico, a exemplo do Decreto-Lei nº 1.522/2016 e da Resolução nº 039/2017, os
quais têm como objetivo a promoção do desenvolvimento socioeconômico no Estado
do Pará mediante o tratamento tributário diferenciado à indústria do açaí. Tais
incentivos mostram-se importantes no atual cenário de globalização e
internacionalização dos mercados, pois oferecem uma possibilidade de
desenvolvimento sustentável, consistindo em uma alternativa à lógica neoliberal.
A partir disto, levanta-se o seguinte questionamento: os incentivos fiscais à
indústria do açaí, por meio do Decreto estadual nº 1522/2016 e da Resolução nº
039/2017, normas indutoras, contribuem para o desenvolvimento sustentável na
Amazônia?
Para responder à problemática em tela e tendo como base autores como
Washington Peluso Albino de Souza (2002), Eros Roberto Grau (2012), André Ramos
Tavares (2011) e Leonardo Vizeu Figueiredo (2016), entre outros, será analisado o
título da Ordem Econômica Constitucional (arts. 170 a 192, CRFB/88) de forma a se
investigar quais dispositivos constitucionais viabilizam a intervenção do Estado na
economia.
Realizar-se-á uma distinção entre as formas de intervenção
constitucionalmente previstas, adotando-se a classificação de Eros Grau (2012) de
intervenção direta ou no domínio econômico; e intervenção indireta ou sobre o
753

domínio econômico. Nesta última hipótese, podem-se citar como exemplo as normas
tributárias indutoras, as quais são incentivos fiscais, sem caráter sancionatório,
destinadas a promover determinada atividade econômica. Neste artigo, utiliza-se
como exemplo desta atuação Estatal o Decreto-Lei nº 1.522/2016 e da Resolução nº
039/2017.
Por fim, partindo-se da ideia de desenvolvimento includente e sustentável,
abordar-se-á a referida legislação com base na argumentação teórica de Violeta
Refkalefsky Loureiro (2009) e Ignacy Sachs (2008; 2009), buscando-se chegar ao
desenvolvimento sustentável por vias alternativas à lógica do lucro, já que as
peculiaridades regionais devem ser respeitadas diante da realidade da globalização e
da internacionalização dos mercados.

2. O DECRETO-LEI Nº 1.522/2016 E A RESOLUÇÃO Nº 039/2017 COMO NORMAS


TRIBUTÁRIAS INDUTORAS: A BUSCA PELO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL NA REGIÃO AMAZÔNICA

A ordem econômica e financeira encontra fundamento constitucional a partir do


artigo 170 da CRFB/88. Conceitualmente, Figueiredo (2016) define-a como a maneira
pela qual a Constituição disciplinou a vida econômica da nação, sendo possível a
intervenção do Estado na seara privada, desde que nos limites delineados pela Carta
Magna. Em relação a este tema, é importante mencionar que o intervencionismo
constitucionalmente previsto se relaciona ao modo de produção capitalista, pois
considera a livre iniciativa enquanto fundamento da ordem econômica, além do
princípio da livre concorrência (artigos 4º, IV; 5º, XIII, 170 caput, IV e parágrafo único).
A intervenção do Estado sobre o domínio econômico é a classificação
doutrinária proposta por Eros Grau (2012) com o objetivo de sistematizar as formas
pelas quais o Poder Público atuará na economia. Neste sentido, o autor subdivide as
espécies de intervenção em: no domínio econômico e sobre o domínio econômico. No
que se refere à primeira, tem-se que o Estado atuará diretamente na economia, seja
por meio de monopólios constitucionalmente previstos, a exemplo da exploração do
petróleo (artigo 177, CRFB/88) ou em igualdade com a inciativa privada, desde que
presentes os requisitos do relevante interesse coletivo ou imperativo da segurança
nacional (artigo 173, CRFB/88).
Em relação à segunda forma de intervenção, o Estado atuará sobre o domínio
econômico quando editar normas de indução e direção, o que caracteriza uma
atuação indireta. No que se refere à indução, tratam-se de normas orientadoras,
responsáveis por estimular ou desestimular a prática de algum comportamento. Por
outro lado, as normas marcadas pela direção são obrigatórias, cogentes, pois que seu
descumprimento ensejará uma sanção jurídica.
De acordo com Schoueri (2005), a diferença entre as modalidades consiste na
maior ou menor liberdade concedida ao particular, uma vez que quando este se
depara com normas cogentes, resta claro que sua liberdade é mais restrita, na medida
em que pode haver sanção. Por outro lado, as normas meramente indutoras permitem
um leque mais amplo de escolhas, haja vista que caso o agente econômico não queira
seguir os ditames estatais, ele não será punido.
A forma pela qual o Estado intervém sobre a indústria do açaí é indireta, uma
vez que o faz por meio de normas indutoras. O presente trabalho tem por objetivo
analisar a intervenção sobre o domínio econômico que ocorre por meio da resolução
039/2017, editada pela Comissão da Política de Incentivos ao Desenvolvimento
754

Socioeconômico do estado do Pará e do Decreto-Lei nº 1.522/2016, editado pelo


governador Simão Jatene.
A resolução possui como objetivo a promoção do desenvolvimento
socioeconômico no estado do Pará, concedendo tratamento tributário diferenciado à
empresa Vale do Açaí Importação e Exportação Indústria e Comércio Ltda. Já o
Decreto-Lei nº 1.522/2016 dispõe sobre a concessão de incentivos para a indústria do
açaí de forma mais ampla, isto é, sem definir uma empresa específica para a
concessão de incentivos, sendo direcionado à atividade econômica propriamente dita.
Diante do exposto, o que se observa é o encorajamento e o estímulo à atividade
econômica de extração do açaí por meio de isenção fiscal, não havendo caráter
sancionatório, já que a escolha pela exploração de determinada atividade econômica
está lastreada pelo fundamento da ordem econômica, que é a livre iniciativa (artigo
170, caput, CRFB/88).
Este tipo de atuação encontra fundamento nos princípios norteadores da ordem
econômica, quais sejam: proteção do meio ambiente, o que permite o tratamento
diferenciado de acordo com o impacto ambiental dos produtos e serviços, bem como
seus processos de elaboração e prestação; e o tratamento diferenciado para as
empresas de pequeno porte, desde que constituídas pelas leis brasileiras e possuam
sede e administração no país, o que é o caso do Vale do Açaí (artigo 170, incisos VI
e IX, CRFB/88)1.
Isto indica que, a partir dos anos de 2016 e 2017, esta atividade econômica,
apesar de já existente, passou a ser estimulada pelo Poder Público no Pará, tendo em
vista que se pretende o desenvolvimento sustentável da região Amazônica. Tal
estímulo é possível porque, desde 1988, a Constituição brasileira possibilita a atuação
do Estado enquanto agente normativo apto a incentivar a iniciativa privada com o
objetivo de se alcançar o desenvolvimento.
Em relação a estes incentivos, Schoeuri (2005), ao abordar as normas
tributárias indutoras, ressalta a liberdade de atuação do agente econômico, já que
este não se encontra sem alternativas, mas recebe estímulos ou desestímulos que o
conduzem ao caminho proposto pelo legislador. Consequentemente, há de se contar,
também, com a ausência de decisão do agente no sentido outrora querido pelo
Estado, uma vez que a iniciativa privada pode adotar comportamento diverso do
proposto pelo Poder Público sem que haja ilicitude.
Dentre as justificativas plausíveis para a questão em tela, especificamente em
relação ao desenvolvimento sustentável, afirma-se que diante do mercado altamente
globalizado, é importante estabelecer uma forma de desenvolvimento que leve em
consideração as especificidades e qualidades regionais. De acordo com Loureiro
(2009), não se trata apenas de buscar corrigir o modelo preponderantemente
econômico, mas de buscar vias alternativas à lógica exclusiva do lucro, da
concentração de renda e da exclusão social. Trata-se, portanto, de um
desenvolvimento includente.
Além disto, um Estado desenvolvimentista vislumbra a intervenção como uma
necessidade, pois ela permite alcançar uma sociedade justa e igualitária. Assim, o
Estado poderá desempenhar determinadas atividades econômicas, bem como regular
e fiscalizar a iniciativa privada. Portanto, ao consagrar o desenvolvimento nacional e
a construção de uma sociedade livre, justa e solidária enquanto objetivos da República

1
O Vale do Açaí Importação e Exportação Indústria e Comércio LTDA é uma empresa de pequeno porte constituída nos moldes
das leis brasileiras, com sede no Estado do Pará. Sendo assim, o uso de incentivos fiscais pelo Governo do Estado do Pará
encontra base principiológica constitucional, especificamente no que se refere à Ordem Econômica, pois que dois de seus
princípios são o tratamento diferenciado de acordo com os impactos ambientais do produto, bem como o tratamento concedido
às empresas de pequeno porte.
755

(art. 3º, incisos I e II, CRFB/88), a Constituição Federal autoriza a intervenção do


Estado.
Há que restar claro que desenvolvimento e crescimento não podem ser tidos
como sinônimos, pois se este está relacionado a questões meramente quantitativas,
aquele preocupa-se com o qualitativo, isto é, com aspectos que superam o ideal de
lucro, pois pretende promover a saúde, a educação e condições de trabalho dignas, o
que denota uma caraterística mais substancial do que lucrativa.
É por este motivo que Sachs (2008), ao tratar do desenvolvimento sustentável
e includente, defende que o crescimento favorecido pelo emprego não se reduz à
mera sobrevivência, mas considera, acima de tudo, a geração de empregos decentes.
Ademais, o desenvolvimento deve ser pensado de dentro, partindo-se da inclusão, e
tendo em vista um ambiente sustentável, buscando-se meios para a erradicação da
pobreza mediante a inclusão social para o trabalho, além de outros direitos sociais,
como a educação, a saúde e a moradia.
Nesse sentido, a consequência dessa atuação indutora do Estado é que a
Região Amazônica, ao receber incentivos fiscais, possui maiores chances de
valorização do trabalhado no seu âmbito interno, o que contribui para a garantia dos
direitos sociais na região, bem como para a redução da desigualdade social. Trata-
se, assim, de uma alternativa ao modelo hegemônico de desenvolvimento, que muito
se assemelha ao crescimento, o que acaba por tolher direitos e garantias individuais
dos indivíduos mais fragilizados da região.
Com o fortalecimento do neoliberalismo e da globalização, o que se tem é a
tentativa de prevalência do mercado sobre o Estado e a consequente redução da
forma de atuação deste, considerando que a linha entre estes dois agentes se torna
cada vez mais tênue. É neste sentido que Faria (2011) afirma que, diante da crescente
internacionalização dos mercados, o Estado possui menor influência nas decisões
democráticas, aspecto redutor de sua força para a realização da justiça social.
Isto porque, de acordo com Ianni (2014), a globalização traz novas
significações ao capitalismo de forma que este passa a ser tido como um processo
civilizatório, além de um modo de produção. Diz-se civilizatório porque é capaz de
trabalhar com conceitos aparentemente opostos ao destruir e recriar, subordinar e
integrar, o que é o caráter revolucionário da globalização. Contudo, a pretensão não
é a de evitar tal fenômeno a fim de isolar a Região Amazônica do resto do mundo, o
que, certamente, seria uma utopia irracional. Trata-se, portanto, de conciliar ideais
desenvolvimentistas com a nova ordem mundial.
Desta maneira, vislumbra-se a necessidade de um desenvolvimento alternativo
ao modelo hegemônico e, portanto, uma nova forma sustentável a partir de
parâmetros diferentes, os quais, de acordo com Loureiro (2009), pautam-se na
construção de uma vida mais digna e justa para todos.

3. CONCLUSÃO

A partir do exposto, tem-se que a globalização e a internacionalização dos


mercados demandaram uma nova forma de posicionamento por parte do Estado a fim
de que evite a imposição de um modelo hegemônico que desconsidere as
características específicas de determinada região.
Desse modo, o desenvolvimento sustentável, mediante incentivos estatais,
torna-se uma realidade possível e necessária, vez que permite que as empresas
possuam um direcionamento voltado ao interesse público primário. Nesse sentido, a
importância da temática é revelada a partir do momento em que se compreende que
756

a preservação do meio para as gerações presentes e futuras é um dever não somente


do Poder Público, mas da sociedade, a qual, mediante o princípio da solidariedade,
rateia os custos em prol de um desenvolvimento sustentável.
Sendo assim, a Ordem Econômica prevista na Constituição de 1988, ao permitir
a intervenção estatal sobre ou no domínio econômico, o fez com o objetivo de
resguardar os princípios, direitos e objetivos constitucionais, dentre os quais se
destacam a defesa do meio ambiente e o desenvolvimento nacional (arts. 3º, II e 170,
VI). Ainda, a opção pelo termo desenvolvimento no lugar de crescimento não se deu
de forma aleatória, uma vez que, a partir da leitura conjunta dos dispositivos
constantes da Carta Magna, nota-se que os aspectos qualitativos se sobrepõem aos
quantitativos.
Por fim, conclui-se que, em um Estado desenvolvimentista, a intervenção
enquanto necessidade deve, claro, respeitar os limites constitucionais para que possa
ser realizada. Isto ocorre sem que seja necessário desconsiderar a livre iniciativa e a
livre concorrência, mas de forma a conjugar princípios aparentemente opostos a fim
de que se alcance o desenvolvimento sustentável.

4. REFERÊNCIAS

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incentivos para a indústria do Açaí e dá outras providências. Belém, 2016. Disponível
em: <https://www.semas.pa.gov.br/2016/04/11/decreto-no-1-522-de-1-de-abril-de-
2016/>. Acesso em: 20 de setembro 2018.
BRASIL. Resolução nº 039, de 28 de dezembro de 2017. Concede tratamento
tributário às operações que especifica, realizadas pela empresa Vale do Açaí
Importação e Exportação Indústria e Comércio Ltda. Belém, 2017. Disponível em:
<http://www.sefa.pa.gov.br/legislacao/interna/resolucao_icms/rs2017_00039.pdf>.
Acesso em: 20 de setembro 2018.
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IANNI, Octávio. A era do globalismo. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
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LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. A Amazônia no século XXI : novas formas de
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SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro:
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____________. Desenvolvimento : includente, sustentável, sustentado. Rio de
Janeiro: Garamond, 2008.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção
Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
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Horizonte: Del Rey, 2002. 555p.
SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
757

TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. 3. ed. São Paulo:


Método, 2011.
758

Grupo de trabalho:

DIREITO TRIBUTARIO E
PROCESSO TRIBUTARIO
Trabalhos publicados:

A TRIBUTAÇÃO DA INDÚSTRIA DE VIDEOGAMES NO BRASIL: JOGOS DE AZAR,


PÂNICO MORAL E AS PERSPECTIVAS DE DESONERAÇÃO FISCAL

LIMITES SOCIAIS E LEGAIS DA ELISÃO FISCAL: REAÇÃO DO CONTRIBUINTE


SOB UMA ANÁLISE TRIBUTÁRIA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

TECNOLOGIA E SIMPLIFICAÇÃO TRIBUTÁRIA: MEDIDAS PARA UMA GESTÃO


DE TRIBUTOS MAIS EFICIENTE
759

A TRIBUTAÇÃO DA INDÚSTRIA DE VIDEOGAMES NO BRASIL: JOGOS DE


AZAR, PÂNICO MORAL E AS PERSPECTIVAS DE DESONERAÇÃO FISCAL
THE TAXATION OF THE VIDEO GAME INDUSTRY IN BRAZIL: GAMBLING,
MORAL PANIC AND THE TAX RELIEVING PERSPECTIVES

Rafael Rizzi

Resumo: O presente estudo tem como objetivo a análise critica das justificativas
adotadas para a alta tributação incidente nos jogos de videogames no Brasil, partindo
de uma perspectiva histórico-social, por meio do paradigma do pânico moral em
relação a associação dos primeiros jogos eletrônicos operados por moedas com os
jogos de azar, principalmente a partir do governo Dutra e, em que medida, as
correlações ali originadas comprometem o desenvolvimento deste segmento.
Abordando-se, ainda, a necessidade de um rigor terminológico para a tributação dos
jogos e os impactos gerados pela instituição da Zona Franca de Manaus e as
potencialidades da Proposta de Emenda à Constituição n° 51, de 2017, conhecida
popularmente como “PEC dos Games”, a partir da metodologia hipotética-dedutiva.
Palavras-chave: Tributação, Pânico moral, Indústria de games

Abstract: The present study aims to critically analyze the justifications adopted for the
high taxation of video games in Brazil, starting from a historical-social perspective,
through the moral panic paradigm in relation to the association of the first coin operated
games with gambling, mainly from the president Dutra government and, to what extent,
the correlations originated therein jeopardize the development of this segment. In
addition, the need for a strict terminology for the taxation of videogames and the
impacts generated by the establishment of the Manaus Free Trade Zone and the
potential of the Proposed Amendment to Constitution No. 51, of 2017, popularly known
as "PEC dos Games", based on a hypothetical-deductive methodology.
Key-words: Taxation, Moral panic, Game industry

INTRODUÇÃO

Os jogos eletrônicos, desde a sua concepção, sempre atraíram o interesse do


grande público, seja pelo fascínio com as possibilidades criadas com o
desenvolvimento da informática, seja com críticas a elas, tal processo remonta ao ano
de 1958, quando o físico William Higinbotham criou, utilizando-se de um osciloscópio,
um protótipo de um jogo de tênis de mesa batizado de “Tennis for Two”. Em 1962,
outro experimento ganha notoridade, o jogo “Spacewar!” criado por Steve Russel e
Wayne Wiitanen partir de um computador do Massachusetts Institute of Technology,
tendo lançado as bases sobre as quais Ralph Baer criaria o Odyssey, o primeiro
console de videogames, licensiado pela Magnavox, para ser utilizado em aparelhos
domésticos de televisão.
Assim, surgiu o embrião da indústria dos jogos eletrônicos e dos videogames,
que deu seus primeiros passos na década de 1970 com a popularização dos
fliperamas e das diversas máquinas operadas por moedas (“coin-op machines”), neste
período, se os “arcades” criavam uma cena de contracultura própria, os consoles de
videogames adentravam as residências para proporcionar momentos mais familiares
e vendas em escala comercial, sendo que, a Atari, empresa criada por Nolan Bushnell
e Ted Dabney e líder de mercado a época, vendeu nos Estados Unidos da América,
mais de 150 mil unidades no Natal de 1975. (LUZ, 2010)
760

Esta indústria experimentou um período de crise econômica, chamado de


“crash dos games” na primeira metade da década de 1980, vindo a se recuperar
somente em 1985 quando empresas japonesas começaram a se consolidar no
mercado, com destaques para empresas como Nintendo e o lançamento do NES
(Nintendo Entertainment System), que em dois anos vendeu mais de 60 milhões de
unidades (NINTENDO, 2016)
A partir de então a indústria dos videogames experimentou décadas de
crescimento praticamente ininterrupto, sendo que, em 2010, já havia uma base
instalada no país de mais de 20 milhões de consoles, uma média de 1 console para
cada 10 brasileiros (SCHMIDT, GONÇALVES, 2014). A previsão é que o setor
movimentar US$ 128,5 bilhões até 2020, e alcance 28,4% da população mundial,
sendo reconhecido como um setor estratégico para países como China, Estados
Unidos e Japão (DIGI-CAPITAL, 2017).
O Brasil figura como o maior mercado da América Latina neste seguimento,
apesar de diversos entraves, como mão de obra qualificada, incentivos para a
importação de insumos e principalmente a altíssima carga tributária que incide sobre
os consoles, os jogos de videogame e seus acessórios, impactando diretamente o
mercado de consumo, vez que, a principal variável considerada pelo consumidor de
tais produtos é, em primeiro lugar, o seu preço (PESQUISA GAME BRASIL, 2018)
sendo, portanto, necessária uma análise crítica da forma como a legislação tributária
brasileira lida com o setor e quais são as perspectivas de mudança, visando o
desenvolvimento da indústria nacional. (BEZERRA, 2018).

JOGOS DE VIDEOGAME: SOFTWARES OU OBRAS AUDIOVISUAIS?

A definição do que deveria ser entendido como videogame, em razão do


necessário rigor terminológico quando se trata de matéria tributária, tem sido um dos
grandes problemas no tratamento destes produtos, sendo que, os entendimentos
basicamente se dividem em duas interpretações: a que entende os jogos de
videogame como softwares e a que os vê como obras audiovisuais.
Com relação a primeira visão, cabe destacar que a definição de software
prevista no artigo 1º da Lei 9.609 de 1998 (Lei do Software), parece abarcar
perfeitamente o que se compreende por jogo de videogame, pois assim dispõe:

Art. 1º Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado


de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte
físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas
automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou
equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para
fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.

Já a corrente que entende os jogos de videogame como obras audiovisuais se


baseaia na definição trazida pelo artigo 5º, inciso VIII, da Lei de Direitos Autorais que
dispõe:

Art. 5, inciso VIII, i): obra audiovisual: produto da fixação ou transmissão


de imagens, com ou sem som, que tenha a finalidade de criar a impressão
de movimento, independentemente dos processos de captação, do
suporte utilizado inicial ou posterior sua veiculação, reprodução,
transmissão ou difusão;
761

Um dos possíveis critérios para solucionar esta dicotomia seria a ação humana
executada na fruição de seus conteúdos (SCHMIDT, GONÇALVES, 2014), assim, ao
fazer uso de uma obra audiovisual se tem uma postura notadamente passiva diante
do aparelho que reproduzirá o conteúdo ali contido, entretanto, no caso dos
videogames há a presença marcante da ação humana em conduzir o desenvolvimento
daquele conteúdo, uma das razões que os torna tão atrativos, portanto a série de
comandos e escolhas que o jogador adota ao longo da narrativa proposta pelo
videogame o leva a funcionar de um modo específico podendo gerar inúmeros
resultados. A partir desta análise, percebe-se que os videogames se assemelham
mais a softwares do que a obras puramente audiovisuais, havendo ainda a
possibilidade de, em alguma medida, serem considerados como produtos híbridos.

A HERANÇA DOS JOGOS DE AZAR E A TRIBUTAÇÃO NO MERCADO DE


VIDEOGAMES BRASILEIRO

Na decada de 1940 a exploração dos “jogos de azar” passou a ser considerada


contravenção, incluída no capítulo “Das Contravenções Relativas à Polícia de
Costumes”, conforme o artigo 50 da Lei de Contravenções Penais sendo apenas
expecionado pelo Decreto-Lei nº 4.866 de 23 de outubro de 1942 que concedia
licenças para o funcionamento de cassinos-balneários apenas no Distrito Federal e
em estâncias hidroterápicas, balneárias ou climáticas, autorizadas e regulamentadas
por decreto específico. Porém, com a chegada de Eurico Gaspar Dutra ao poder,
fundamentando-se apenas em questões morais e religiosas e para a defesa dos
chamados “bons costumes”, editou o Decreto-Lei nº 9.215 cassando as licenças
concedidas aos estabelecimentos existentes. (SCALEA, 2017)
No início da industria de jogos eletrônicos no Brasil, muitos empreendedores
morais, em razão da dificuldade, da competitividade e do lucro gerado pela nova
tecnologia, buscaram fazer uma analogia entre os fliperamas e demais jogos operados
por fichas ou moedas (“coin-op machines”) com o previsto no artigo 50, parágrafo 3º,
alínea “a” da Lei de Contravenções Penais:

Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessivel


ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
§ 3º Consideram-se, jogos de azar:
a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente
da sorte;

Para a atmosfera social criada em torno daquela nova forma de entretenimento


se dá o nome de pânico moral, situação em que uma parcela da sociedade é definida
como uma ameaça aos valores e interesses da coletividade, sendo que a amplificação
desta ideia se dá, em grande medida, pelos meios de comunicação, e dando lugar a
reações da parte dos porta-vozes da moralidade – os “moral entrepreneurs”, que no
neste caso, se baseavam no discurso consignado na lei criada pelo presidente Dutra.
(GOMES, 2013)
Com o passar dos anos, a prática continuou a mesma: alta carga tributária e
desestíimulo a indústria nacional, entretanto a justificativa, agora se pauta na
aplicação do Príncipio da essencialidade, segundo o qual, produtos que não sejam
essenciais, sofreriam maior tributação em relação aos tidos como essenciais, o que
também se apresenta questionável em relação aos possíveis benefícios que o
estímulo ao setor poderia trazer.
762

OS INCENTIVOS FISCAIS NA ZONA FRANCA DE MANAUS E A “PEC DOS GAMES”

O recebimento de incentivos como a isenção do pagamento de IPI e do II na


Zona Franca de Manaus representou uma alternativa factível para o investimento de
grandes empresas do mercado de jogos como Sega e Nintendo, nos anos 90,
entretanto com o surgimento de uma geração de consoles que se utilizada
principalmente de CD, tais empresas se retiraram do país em razão do crescimento
do mercado informal. Apenas em 2008 com a vinda do segmento de games e consoles
da Sony na Zona Franca de Manaus é que o mercado formal começou a ressurgir,
sendo também marcante a chegada da Microsoft em 2016. (SCHMIDT, GONÇALVES,
2014).
Uma nova iniciativa disposta a incentivar a mudança neste setor é a chamada
“PEC dos Games”, uma proposta iniciada pela plataforma “e-Cidadania” que, contou
com 75.926 apoios, passando em muito o requisito de 20.000 apoios, e vindo a se
tornar a Sugestão nº 15 de 2017 que tem como objeto acrescenta a alínea “f” ao inciso
VI do artigo 150 da Constituição Federal, instituindo uma imunidade tributária sobre
os consoles e jogos para videogames produzidos no Brasil, já tendo recebido parecer
favorável da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa.
O projeto apresenta como justificativa a importância do segmento, tanto em
relação às suas possibilidades econômicas quanto aos seus aspectos culturais,
considerando ainda que, em razão da complexidade do sistema de competências e
alíquotas de impostos interestaduais, a única efetiva de promover uma mudança real
na tributação sobre o segmento seria por meio de proposta de emenda à Constituição.
A Sugestão nº 15 de 2017 ainda considera o respeito ao pacto federativo e que
apesar do impacto na arrecadação específica, no contexto geral, a mudança deverá
promover um incremento de arrecadação para os entes federativos, respeitando
assim a Lei de Responsabilidade Fiscal.

CONCLUSÃO

O setor da industria de videogames tem se mostrado um campo


economicamente promissor tanto no Brasil como no exterior, tendo isto em vista, e a
partir de uma revisitação das motivações que geraram o pânico moral em relação aos
videogames como opositores dos chamados “bons costumes” em razão de sua
equivocada vinculação aos “jogos de azar” proibidos no Brasil no governo Dutra, é
necessária uma revisão da forma de tributação destes produtos de forma a promover
a indústria e a cultura nacional gerando empregos e maior arrecadação ao Poder
Público.
A principal forma de incentivo implementada até hoje, o estabelecimento da
Zona Franca de Manaus, possibilitou, em certa medida, a produção de consoles e
videogames no país, entretanto, falta uma política de incentivo específica para o setor
de forma a torná-lo mais competitivo e benéfico tanto a empresarios como a
consumidores, sendo a principal proposta a chamada “PEC dos Games” que , apesar
de, em primeiro momento, parecer um privilégio ao setor, se aprovada, terá a
capacidade de aumentar a arrecadação tributária e gerar empregos ligados a
tecnologia, além de, com a diminuição dos custos, combater a pirataria.

REFERÊNCIAS
763

BEZERRA, Vítor César Rodrigues. Análise dos impactos da Sugestão Legislativa


(SUG) 15/2017 a respeito da tributação de games e consoles no mercado
brasileiro e no comportamento do consumidor. Rio de Janeiro, Universidade
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http://periodicos.unichristus.edu.br/index.php/opiniaojuridica/arti cle/view/205>.
Acesso em: 17 out. 2018.
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panorama e a evolução do mercado de “Games” no Brasil. Disponível em:
<https://bibliotecas.sebrae.com.br/chronus/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/9d1
a01803afb08188249685444987b01/$File/4287.pdf >. Acesso em: 16 out. 2018.
764

LIMITES SOCIAIS E LEGAIS DA ELISÃO FISCAL: REAÇÃO DO CONTRIBUINTE


SOB UMA ANÁLISE TRIBUTÁRIA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
SOCIAL AND LEGAL LIMITATIONS OF FISCAL ELISM: TAXPAYER'S REACTION
UNDER A TAX ANALYSIS OF THE DEMOCRATIC STATE OF THE LAW

Elivelton dos Santos dos Santos


Antenógenes Farias Conceição

Resumo: O trabalho em espeque tem como escopo a ascensão dos limites sociais e
legais da elisão fiscal precária ilegal, demonstrando-os como margem legal para o
planejamento tributário, com analise dos tributos em espécie protagonizando o
imposto como balizador da força tributante do Estado por este ser de não vinculado e
de arrecadação não afetada. Invoca-se para a construção compreensiva, analise
interpretativa dos escândalos políticos que norteiam a administração pública no ensejo
de demonstrar o fundamento da descrença popular sobre a finalidade dos recursos
angariados pelos tributos. Verifica-se como legislações fundamentais deste estudo a
Constituição Federal de 1988, Código Tributário Nacional de 1941 e a Lei nº 8.137, de
27 de dezembro de 1990. E por derradeiro porquanto do conceito da moral, questiona-
se a eficácia da carga tributária frente ao condicionamento limitador legal das práticas
elesivas.
Palavras-chaves: Planejamento tributário, limitação das práticas elesivas, Reação do
contribuinte.

Abstract: The work in question has as scope the rise of the ethical, moral and legal
limits of illegal precarious tax avoidance, demonstrating them as legal margin for tax
planning, with analysis of the taxes in kind leading to the tax as a marker of the taxing
force of the State by this being of non-bound and of unaffected collection. It is invoked
for the comprehensive construction of an interpretative analysis of the political
scandals that guide public administration in order to demonstrate the basis of popular
disbelief on the purpose of the resources raised by the taxes. The Federal Constitution
of 1988, the National Tax Code of 1941 and the (Tax Crimes Law) are verified as
fundamental legislation of this study. Finally, through the concept of morality, the
effectiveness of the tax burden is questioned in the face of the legal limiting
conditioning of the legal practices.
Key-words: Tax planning, limiting the practices of the taxpayer, Taxpayer reaction.

INTRODUÇÃO

Com fulcro em penetrar aspectos subjetivos e objetivos do relacionamento


decorrente da obrigação de pagar, no qual figura como devedor o contribuinte que
praticou ato típico de fato imponível de um tributo e como credor o Estado que a
depender da espécie de tributo, apenas executa a tarefa de arrecadação, conforme
prevê tributo não afetado como o Imposto, vem de forma sintética trazer à baila
demonstração simples, entrementes efetiva de fatos substanciais e importantes que
configura o fundamento fulcral das prática elisivas ilegais, ou seja, que estão fora dos
limites previstos em lei, por perceberem pela natureza tributante brasileira a falta de
retorno e má administração dos recursos públicos que é colocado sob a gerencia dos
entes federativos ora credores por meio das receitas derivadas.

DESENVOLVIMENTO
765

ESTADO FISCAL E RECEITA PÚBLICA: ASPECTOS FINANCEIROS DA ORDEM


TRIBUTÁRIA

Difere o planejamento financeiro do Estado do planejamento em comum dos


particulares em que pese, naquele verifica-se os ativos para somente depois planejar
os passivos, já neste o Estado primeiro alimenta a máquina pública por meio da
manutenção dos gastos das suas políticas públicas/prestação de serviço público,
exercício do seu poder de polícia e intervenção do domínio econômico, para somente
depois por meio de orçamento público organizar as receitas, isso porque o Estado é
gerenciador dos recursos financeiros que sustenta os pilares existenciais do Estado
democrático de direito conforme preceitos da Constituição da República Federal do
Brasil de 1988.
Ao falarmos de Estado, importa dizer que por força do art. 1º da CFRB/88,
compreendesse como União, Estados, Municípios e Distrito Federal, motivo pelo qual,
vem neste parágrafo traçar conceito da administração pública objetivando clara
compreensão entre os entes federativos que compõe a administração pública direta.

a administração direta – de natureza puramente estatal – compreendendo


os entes estatais políticos: a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, e B – a administração indireta – de natureza híbrida – incluindo
tanto (1) entes administrativos estatais, instituídos como desdobramentos
do Estado com personalidade de direito público, para atuar por direito
próprio. (MOREIRA NETO, 2014, p. 354)

A administração pública direta, formada pelos entes políticos quais sejam,


União, Estados, Municípios e Distrito Federal é responsável por gerir os recursos
públicos, advindos da receita originária aquela que é proveniente de uma relação
jurídica de direito privado entre Estado e particular, por meio de empréstimos, títulos
públicos, comercialização de patrimônio e industrias e/ou, receita derivada que
emana de uma obrigação tributária onde o estado será receptor de valor pecuniário
advindo de uma obrigação de pagar do contribuinte (aquele que praticou ou incorreu
no fato gerador de um tributo).

Em relação às receitas derivadas, o que as distingue das receitas


originárias. Outro fundamento dessa divisão é a diferente origem dumas e
doutras receitas: as originárias saem do próprio setor público, isto é, do
patrimônio do Estado, ao passo que as derivadas são exigidas do
patrimônio ou das rendas dos particulares. (BALEEIRO, 1986, p. 117)

Todas as receitas seja ela originária ou derivada pertinentes ao estado estão


ligadas ao direito financeiro com um todo, pois este engloba em seu amago o direito
orçamentário e o direito tributário, desta forma considera-se o direito financeiro como
mãe/matriz e o direito tributário como filho/filial, por ser subsidiário a este, com
pertinência este trabalho terá como foco tributos, que por seu turno é receita derivada
proveniente do direito tributário.

O Direito Tributário cuida especificadamente das receitas derivadas do


patrimônio particular transferidas para o tesouro público mediante
“obrigação tributária” previstas em lei. A ênfase do Direito Tributário
centra-se na relação jurídica e não na atividade estatal de obtenção de
receitas. (COÊLHO, 2008, p. 34).
766

Segundo o Ministério da Fazenda por meio do Site do Tesouro Nacional, em


2017 a carga tributária brasileira foi responsável por 32,36 % do PIB (Produto Interno
Bruto), percebe-se assim, o papel do Estado em administrar os recursos angariados,
principalmente com receita derivada, pela evidencia da grande força tributária nacional
presente no PIB, de modo que é substancial para o desenvolvimento de uma nação a
manutenção de políticas públicas que venham a cumprir papel no avanço tecnológico,
erradicação da pobreza e fomento no mercado comercial.
Nos termos do art. 3º do Código Tributário Nacional de 1941 os tributos são
definidos da seguinte forma: “Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória,
em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato
ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente
vinculada.” Em dizeres coloquiais trata-se da obrigação de pagar dinheiro, motivo pelo
qual é tema do próximo tópico a reação do devedor ora contribuinte em detrimento
desta obrigação de pagar.

REAÇÃO DA CONTRIBUINTE FRENTE A ONEROSIDADE TRIBUTÁRIA

Pela sombra interpretativa da leitura avulsa do art. 4º, II, do CTN/41 é legível o
entendimento superficial de que o recurso adquirido pelos tributos tem destinação
certa, ou seja, predefinida, entrementes é de interesse de uma compreensão assertiva
e coerente perceber que: 1º Tributo é Gênero, 2º São espécies de Tributos: Impostos,
Taxas, Contribuição de Melhoria, Empréstimo Compulsório e Contribuição Especial,
conforme art. 5º do CTN/41 c/c art. 148 e 149 CFRB/88.
Pela concepção da Teoria Pentapartida, detemos cinco espécies de tributos,
entrementes o entendimento de outrora era sob a Teoria Tripartida onde apenas
Impostos, Taxas e Contribuição de melhoria faziam parte do arcabouço das espécies
de tributário.
A par dessa compreensão podemos falar sobre a afetação da arrecadação
tributária, pois não é douto conjecturar que todo tributo tem destinação de seus
recursos previamente estabelecidos. Os Tributos de arrecadação vinculada/afetada
são aqueles que previamente a sua arrecadação já existe trilha orçamentária
estabelecida, tem-se como tributo afetado as Taxas, Empréstimo Compulsório,
Contribuição de Especial e Contribuição de Melhoria, doutro modo e por seu turno o
Imposto não tem arrecadação vinculada, ou seja, os recursos provenientes a este são
de livre aplicação orçamentária, assim assevera Ricardo Alexandre in verbis infra:

São vinculados os tributos cujo fato gerador seja um “fato do Estado”, de


forma que, para justificar a cobrança, o sujeito ativo precisa realizar uma
atividade específica relativa ao sujeito precisa realizar uma atividade
específica relativa ao sujeito passivo. São vinculadas, portanto, as taxas
e contribuições de melhoria. Nestas, o sujeito ativo precisa realizar uma
obra da qual decorra valorização em imóvel dos sujeitos passivos;
naquelas é necessária a prestação de um serviço público específico e
divisível ou o exercício do poder de polícia. São não vinculados os tributos
que têm por fato gerador um “fato do contribuinte”, são sendo necessário
que o Estado desempenhe qualquer atividade específica voltada para o
sujeito passivo para legitimar a cobrança. Todos os impostos são não
vinculados, uma vez que seus fatos geradores são manifestações de
riqueza dos contribuintes (renda, patrimônio, consumo) independentes de
atividade estatal. (ALEXANDRE, 2016, p. 17)

Em detrimento da peculiaridade da arrecadação não afetada do imposto este


é objeto de grandes questionamentos, fatores sociais, econômicos e morais são
767

suscitados pela liberdade administrativa do poder executivo seja ele federal, estadual
ou municipal, em manipular seus proventos ainda que prima facie em consonância
com a lei.

Em sede de aspectos sócios, econômicos e morais o país nos últimos 20


anos tem sofrido grandes abalos decorrentes da corrupção no auto
escalão do governo federal, estadual e municipal, a exemplo elenca-se
operações de combate a corrupção como o Manda pra fora de 1996 a
2000 que mostrou rombo ao erário público de R$ 42 bilhões no Estado do
Paraná, Chama o Van Helsing de 1990 a 2004 que mostrou rombo de R$
2,4 bilhões no Ministério da Saúde, Escândalo do Mensalão que ocorreu
entre 2005-2006, que mostrou rombo de R$ 101 milhões em Brasília e
Lava Jato de 2014 a atual (2018), que mostrou rombo atual de R$ 8
trilhões em movimentação financeiras e R$ 11,5 bilhões em dinheiro já
foram recuperado.

Todos estes casos supracitados emana um alto teor de insegurança política


social do contribuinte para com aqueles que fazem parte do manejo dos recursos
públicos, motivo pelo qual isso reflete mundialmente, segundo pesquisa do THE
GLOBAL COMPETITIVESS REPORT 2017-2018 da WORLD ECONOMIC FORUM,
os fatores problemáticos para fazer negócios no país são:

1º Taxas de impostos (18.6), 2º Regulamentação trabalhista restritiva


(12.5), 3º Corrupção, (12.3) 4º
Burocracia governamental ineficiente (12.0), 5º Fornecimento inadequado
de infraestrutura (10.4), 6º Instabilidade política (7.4), 7º Regulamentos
fiscais (5.4), 8º
Acesso ao financiamento (5.2), 9º Instabilidade do governo / golpes (4.2),
10º
Mão de obra inadequadamente educada (4.0), 11º Inflação (2.1), 12º
Crime e roubo (1.9),13º Capacidade insuficiente para inovar (1.8), 14º
Má ética de trabalho na força de trabalho nacional (1.1), 15º Pobre saúde
pública (1.1), 16º Regulamentos em Moeda Estrangeira (0.1).

Pelos dados desta pesquisa o Brasil é o 13º país com mais problemas para o
desenvolvimento da nação, defronte a esta realidade fática é de se considerar uma
insegurança não somente por parte de outras nações, bem como também dos
concidadãos da nação em espeque. Frente a tais fatos invoca-se preceitos morais e
éticos nos termos infra:

A moral é o que se refere aos usos, costumes, hábitos e habitualidades.


De uma certa forma, ambos os vocábulos [ética e moral] se referem a duas
idéias diferentes, mas relacionadas entre si: os costumes dizem respeito
aos fatos vividos, ao que é sensível e registrado no acervo do grupo social
como prática habitual. A idéia contida na moral é a relação abstrata que
comanda e dirige o fato, o ato, a ação ou o procedimento. A moral explica
e é explicada pelos costumes. A moral pretende enunciar as regras,
normas e leis que regem, causam e determinam os costumes, inclusive
muitas vezes, anunciando-lhes as consequências (KORTE, 1999, p. 1-64-
115)

Pelo ar de incerteza e desaprovação do gerenciamento do dinheiro público,


cada vez mais o contribuinte assume comportamento que tem como ponto nevrálgico
o afastamento do ato que resulte na hipótese de incidência tributária, de forma a evitar
768

sua subsunção entre fato e norma, para que não haja o nascimento da obrigação
tributária, daí por tanto denomina-se tal comportamento de Planejamento Tributário.

PLANEJAMENTOS TRIBUTÁRIOS

O planejamento tributário é caracterizado por práticas que evitem a ocorrência


do fato gerador do tributo é, contudo uma forma de evitar a soma do fato imponível
com a hipótese de incidência, considera-se fato imponível o ato fático social que
caracteriza enquadramento no tipo tributário, por seu turno é chamado de hipótese de
incidência a previsão legal pretérita ao fato imponível que dispõe sobre o conceito do
tipo de ato social que encadeará o fato gerador de um tributo, nestes termos e pela
perfeita concatenação destes dois institutos observamos o fenômeno da subsunção
gerando por si o obrigação tributária. Desta forma alude o CTN/41 nos art. 114 e 115
sobre o fato gerador do tributo:

Art. 114. Fato Gerador da obrigação principal é a situação definida em lei


como necessária e suficiente à sua ocorrência. Art. 115. Fato Gerador da
obrigação acessória é qualquer situação que, na forma de legislação
aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato que não configure
obrigação principal.

Na égide desta percepção é assertivo o concito de planejamento tributário de


Nilton Latorraca infra aduzido

Costuma-se denominar de Planejamento Tributário a atividade


empresarial que, desenvolvendo-se de forma estritamente preventiva,
projeta os atos e fatos administrativos com o objetivo de informar quais os
ônus tributários em cada uma das opções legais disponíveis. O objeto do
planejamento tributário é, em última análise, a economia tributária.
Cotejando as várias opções legais, o administrador obviamente procura
orientar os seus passos de forma a evitar, sempre que possível, o
procedimento mais oneroso do ponto de vista fiscal. (LATORRACA, 2000,
p. 37).

Em ratificação conceitual Láudio Camargo Fabretti prescreve;

O estudo feito preventivamente, ou seja, antes da realização do fato


administrativo, pesquisando seus efeitos jurídicos e econômicos e as
alternativas legais onerosas denomina-se Planejamento Tributário. Assim
sendo, o planejamento tributário é um recurso disponível para as
empresas que procuram reduzir a carga fiscal de forma lícita. A maneira
legal chama-se elisão fiscal e a forma ilegal denomina-se evasão ilícita ou
sonegação fiscal, trata-se, portanto, do estudo prévio à concretização dos
fatos administrativos, dos efeitos jurídicos e econômicos de determinada
decisão gerencial, com o objetivo de encontrar a alternativa legal menos
onerosa para o contribuinte. (FABRETTI, 2009, p. 08).

Frente a forte impulso conceitual como se vê supra, estamos diante de um


mecanismo de fuga ao gigante tributário denominado Estado, que como se asseverou
anteriormente concentra seus gastos na arrecadação de tributos, especialmente os
impostos pois sobre este não incide afetação ou vinculação em sua arrecadação,
sendo a gerencia de seus recursos como melhor aprouver o chefe do executivo nos
limites legais e orçamentários.
769

LIMITES DA EVASÃO FISCAL SOB O PRISMA CRIMINAL

O planejamento tributário é compreendido como sinônimo de evasão fiscal,


todavia é importante trazer hipóteses que intentam a mostrar uma linha ainda que
tênue entre ambos os institutos, preliminarmente e como já exposto neste trabalho, o
planejamento fiscal tem como fulcro nevrálgico a organização de possíveis fatos que
possam gerar uma obrigação tributária.
Porquanto a evasão fiscal busca o mesmo objetivo do planejamento tributário,
entrementes carrega em seu âmago um plus que neste trabalho considerasse como
“desconsideração da margem da legalidade”, observa-se para o feito em espeque, a
transgressão da norma maior ou das normas infraconstitucionais na busca da
dispensa da obrigação tributária. Nesta assertiva a jurisprudência corrobora:

RECURSO EM "HABEAS CORPUS". CRIME DE EVASÃO FISCAL.


OMISSÃO DE POSSE DE VALORES NO ESTRANGEIRO. ALEGAÇÃO
DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PLEITO PELO TRANCAMENTO
DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. TESES DE
INIMPUTABILIDADE E ATIPICIDADE DO FATO.
APROFUNDAMENTO NO ACERVO PROBATÓRIO. REQUISITO
INTRÍNSECO DA DENÚNCIA PREENCHIDO. EXISTÊNCIA DE
INDÍCIOS DE AUTORIA. JUSTA CAUSA PRESENTE. PEDIDO DE
RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA
EM ABSTRATO. PREJUDICADO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 438/STJ.
PRECEDENTES. 1. As provas indiciárias demonstram que o recorrente
residia em território nacional, tendo apresentado declaração de imposto
de renda no ano base do fato. Ademais, tinha pela taxa de conversão da
moeda americana na data-base de 31.12.2002 ativo em dólares fora do
território nacional que lhe impunha a obrigação de de o declarar ao
Banco Central do Brasil, portanto conclusão diversa demandaria um
aprofundamento do acervo probatório. 2. Em tese, parece tipificada a
infração penal por ele praticada e por isso, passível da persecução
criminal. 3. Se a peça acusatória narra satisfatoriamente a conduta
imputada, mesmo que com descrição mínima da relação do réu com os
fatos delituosos, está ela em consonância com o princípio constitucional
da ampla defesa, preenchendo o requisito intrínseco preconizado no art.
41, do Código de Processo Penal. 4. A data limite para o cumprimento
da obrigação (31.5.03) confrontada com a pena máxima em abstrato
cominada ao caso (6 anos) de reclusão não permite o reconhecimento
da prescrição (art. 109, III, do Código Penal). 5. Incidência da Súmula
n.º 438/STJ. 6. Recurso em "habeas corpus" a que se nega provimento.
(STJ - RHC: 44225 BA 2014/0002652-1, Relator: Ministro MOURA
RIBEIRO, Data de Julgamento: 26/08/2014, T5 - QUINTA TURMA,
Data de Publicação: DJe 01/09/2014).

Deste modo, faz-se mister a demonstração de que, mesmo frente a forte


existência em nosso ordenamento jurídico de forte aparato tributário, por leve
percepção é possível verificar a má aplicação dos recursos advindos do poder
tributante, é defeso ao contribuinte a pratica de atos lesivos a dignidade da justiça,
torna a apresentar neste intendo a continuidade dos bons costumes e da moral, razão
pela qual é punível criminalmente os atos de evasão fiscal que transcendam os limites
legais.
Nesta feita, nos termos da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, a
inobservância da margem limite do planejamento tributário é punido com pena de
multa e pena privativa de liberdade, incidindo sobre o indivíduo transgressor pena de
reclusão de até 5 anos nos termos do art. 1º conforme se verifica abaixo:
770

Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo,


ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes
condutas:
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades
fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou
omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido
pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou
qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou
deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou
documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de
serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a
legislação.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Por assim expressar nos fundamentos acima expostos, importa considerar a


elisão fiscal como forma de planejamento tributário frente a forte carga tributária
prevista e efetivamente ativa em nosso país, não é possível se valer de aspectos
éticos e morais frente a revolta social dos escândalos de corrupção que norteiam
grandes somas em dinheiro. Destarte neste diapasão toma-se como encurralado o
contribuinte que tem a obrigação de pagar tributo, pois ao tempo que este não pode
se escusar de seu dever legal de pagar, outras leis limitam sua capacidade de escape
dos fatos imponíveis que consubstanciam a obrigação tributária em soma da hipótese
de incidência.

CONCLUSÃO

Em sede preliminar este trabalho teve como objetivo principal perceber


aspectos intrínsecos e extrínsecos entre o contribuinte sujeito ativo e Estado/Fisco
sujeito passivo, de modo a fazer emanar projeção relevante sobre o direito de
arrecadar e dever de pagar tributo, entrementes no desencadeamento da pesquisa foi
de forte percepção aspectos outros não objetivados em sede inicial.
Conforme todo o exposto no desenvolvimento, o Brasil possui uma das maiores
cargas tributárias mundiais correspondendo a mais de 30% do seu PIB, detendo 5
espécies tributárias com peculiaridades distintas, nos últimos 20 anos foi a nação em
foco centro de diversos escândalos políticos e econômicos que juntos ultrapassa o
PIB dos últimos 2 anos juntos e por derradeiras práticas de intento desvinculam-te a
obrigação de pagar são de forma severa punidas com pena de reclusão.
Por estas informações é possível constituir premissa que é aspecto intrínseco,
ou seja, forma mais próxima entre contribuinte e Estado, o pelo pagamento da
obrigação tributária que por seu turno é coercitivamente forçado a realizar pelas
penalidades legais impostas pelo mesmo ente receptor desta obrigação. Por quanto
torna-se aspecto extrínseco as práticas aqui chamadas de planejamento tributário que
busca distanciar da maior forma possível o cidadão de uma obrigação tributária, neste
aspecto há observância as normas limites de tal pratica.
Por fim, denota-se como verdade real o ensejo do planejamento tributário em
práticas de evasão fiscal que em seu exagero sem percepção do limite legal enseja
uma elisão fiscal precariamente ilegal. Por tanto buscou-se com este estudo
demonstrar a necessidade de maior abonamento tributário ou solução com efeito
771

semelhante, que objetive melhoria para o contribuinte ora lesado pelo atual cenário
brasileiro.

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772

TECNOLOGIA E SIMPLIFICAÇÃO TRIBUTÁRIA: MEDIDAS PARA UMA GESTÃO


DE TRIBUTOS MAIS EFICIENTE
TECHNOLOGY AND TAX SIMPLIFICATION: MEASURES FOR MORE EFFICIENT
TAX MANAGEMENT

Lucienne Michelle Treguer Cwikler Szajnbok

Resumo: A existência de uma ampla gama de tributos, acompanhada por uma


extensa e complexa legislação tributária e por uma grande diversidade de obrigações
acessórias gera inúmeras dificuldades e implica em altos custos para a realização de
uma gestão de tributos eficiente, tanto para o contribuinte, quanto para os entes
tributantes. Especificamente no tocante às obrigações acessórias, a tecnologia pode
desempenhar um papel crucial para a simplificação de procedimentos e para a
redução de custos, além de tornar mais ágil a prestação de informações, melhorar a
qualidade da informação prestada e colaborar na fiscalização e na prevenção da
sonegação fiscal. Nesse sentido, algumas medidas já foram tomadas, mas ainda há
um longo caminho a percorrer que passa pela redução na quantidade de tributos e
por uma maior amplitude na utilização da tecnologia.
Palavras-chave: Simplificação tributária; Tecnologia

Abstract: The existence of a wide range of taxes, accompanied by an extensive and


complex tax legislation and by a great diversity of ancillary obligations generates
numerous difficulties and implies in high costs for the accomplishment of an efficient
tax management, for both the taxpayer and the tax entities. Specifically with regard to
ancillary obligations, technology can play a crucial role in streamlining procedures and
reducing costs, in addition to make more agile the information provision, to improve
the quality of information provided and to assist in the surveillance and prevention of
tax evasion. In this sense, some measures have already been taken, but there is still
a long way to go that involves the reduction in the amount of taxes and a greater
amplitude in the use of technology.
Keywords: Tax simplification; Technology

INTRODUÇÃO

Inicialmente, convém destacar que o ambiente tributário brasileiro é


caracterizado por uma ampla gama de diferentes tributos, instituídos em três níveis
de competência (federal, estadual e municipal), cada qual com o seu correspondente
arcabouço normativo e obrigações acessórias correlatas.
Inserido em um cenário tributário altamente complexo, o contribuinte, no
cumprimento das obrigações acessórias, se vê diante da exigência de prestar
inúmeras informações e dados aos fiscos federal, estadual e municipal, mediante o
preenchimento de inúmeros informes e declarações que, por sua vez, implicam custos
que, no caso de contribuintes pessoas jurídicas, provocam dois principais impactos: o
aumento do preço do produto comercializado ou do serviço prestado e uma redução
no nível de competitividade das empresas se comparadas com suas concorrentes
internacionais.
De outra monta, a complexa legislação tributária e a grande quantidade de
informações prestadas pelos contribuintes igualmente levam a Administração Pública
a incorrer em maiores custos com as atividades de fiscalização e prevenção de evasão
fiscal.
773

Feitas tais considerações, o presente trabalho se propõe a uma reflexão sobre


o impacto das ferramentas tecnológicas para a simplificação das obrigações
tributárias acessórias.

1. COMPLEXIDADE TRIBUTÁRIA

Atualmente, no Brasil, vigoram mais de 90 (noventa) diferentes tributos, dentre


impostos, taxas e contribuições, com competência distribuída entre a União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
A ampla gama de diferentes tributos, cada qual com seu próprio arcabouço
normativo e obrigações acessórias correlatas, torna árdua a tarefa do contribuinte em
calcular os valores a pagar, bem como em preencher os variados informes e
declarações exigidos.
Vale citar que, no período entre 1988 (ano da promulgação da atual
Constituição Federal) até setembro de 2018, foram editadas no Brasil 390.726 normas
tributárias, o que corresponde à cerca de 1,92 norma por hora útil.1
Como aponta estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação
(IBPT), somente em âmbito federal,

foram editadas 166.241 normas desde a promulgação da Constituição


Federal, passando por 6 emendas constitucionais de revisão, 100
emendas constitucionais, 2 leis delegadas, 104 leis complementares,
5.967 leis ordinárias, 1.461 medidas provisórias originárias, 5.491
reedições de medidas provisórias, 12.643 decretos federais e 140.466
normas complementares (portarias, instruções normativas, ordens de
serviço, atos declaratórios, pareceres normativos, etc.).2

Cabe ressaltar que, dada a complexidade da legislação tributária, muitas vezes


o contribuinte acaba por cometer equívocos, quer na edificação do crédito tributário a
recolher, quer no cumprimento de obrigações acessórias, que trazem, como
consequência, a lavratura de autos de infração ou inscrições em dívida ativa com a
correspondente propositura de execuções fiscais.
Nesse cenário de grande complexidade, o Estado também se vê diante de
inúmeras dificuldades relacionadas à fiscalização e ao recebimento de tributos.
Destarte, o panorama descrito faz com que o Brasil ocupe a 184ª posição,
dentre 190 países, quanto à dificuldade na gestão de tributos, conforme estudo
elaborado pelo World Bank.3
Ainda, segundo esse mesmo estudo, devido à complexidade e ao nível de
exigência de obrigações instrumentais e formais, o Brasil ocupa a última posição
quando o tema é o tempo gasto pelo contribuinte para as atividades relacionadas à
gestão de tributos. Nesse caso, o contribuinte pessoa jurídica gasta, no Brasil, uma
média de 1958 horas ao ano, enquanto os países da OCDE gastam, em média, 160,7
horas ao ano. A média brasileira é, inclusive, bem superior àquela apurada nos países
da América Latina e do Caribe, que se situa em 332,1 horas ao ano.4
Destaque-se que, no tocante às obrigações acessórias, algumas medidas já
foram tomadas no sentido de simplifica-las, a exemplo da implantação do Sistema

1
INSTITUTO BRASILEIRO DE PLANEJAMENTO E TRIBUTAÇÃO. Quantidade de normas editadas no Brasil: 29 anos da
Constituição Federal de 1988. Disponível em: <https://d335luupugsy2.cloudfront.net/cms/files/61974/1539622689estudo-ibpt-
normas-30-anos.pdf>. Acesso em: 15 out. 2018.
2
INSTITUTO BRASILEIRO DE PLANEJAMENTO E TRIBUTAÇÃO, op. cit.
3
WORLD BANK. Doing Business 2018. Disponível em: <http://portugues.doingbusiness.org/data/exploretopics/paying-taxes>.
Acesso em: 11 out. 2018.
4
Ibid.
774

Público de Escrituração Digital (SPED), da nota fiscal eletrônica e do E-Social. No


entanto, há ainda um longo caminho a percorrer.

2. TECNOLOGIA E SIMPLIFICAÇÃO TRIBUTÁRIA

Historicamente, vivenciou-se, a partir de década de 60, a chamada revolução


digital, que teve como fatos marcantes o desenvolvimento dos semicondutores, da
computação em mainframe, da computação pessoal e da internet. A virada do século,
entretanto, marcou o início de uma nova fase na evolução tecnológica, com a
denominada quarta revolução industrial, cujo escopo vai além dos sistemas e
máquinas inteligentes e conectadas.5
Ao descrever o amplo escopo da quarta revolução industrial, Klaus Schwab
destaca que “ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente em áreas que
vão desde o sequenciamento genético até a nanotecnologia, das energias renováveis
à computação quântica”6.
Ainda segundo Schwab, o que diferencia a atual revolução industrial das
demais “é a fusão dessas tecnologias e a interação entre os domínios físicos, digitais
e biológicos”7.
Dentro desse contexto, estudo realizado pela PricewaterhouseCoopers aponta
oito tecnologias consideradas emergentes. São elas: (i) inteligência artificial; (ii)
realidade aumentada; (iii) blockchain; (iv) drones; (v) internet das coisas; (vi) robôs;
(vii) realidade virtual e (viii) impressão 3D.8
Ao que tudo indica, a evolução tecnológica é um fenômeno inexorável e
irrefrenável, cabendo à Administração Pública se adaptar e acompanhar as ondas de
inovação, aplicando e desenvolvendo ferramentas digitais e tecnológicas que
busquem a simplificação tributária.
Nesse sentido, mencione-se que algumas medidas já foram implementadas,
todas relativas às obrigações acessórias, sendo certo que, em tais casos, a tecnologia
ocupa papel de destaque.
Primeiramente, cite-se o Sistema Público de Escrituração Digital (SPED),
instituído pelo Decreto nº 6.022, de 22 de janeiro de 2007, cujo escopo é simplificar
as obrigações acessórias prestadas pelo contribuinte às administrações tributárias e
aos órgãos fiscalizadores.
Dentre objetivos do SPED, têm-se: (a) a promoção da integração dos fiscos,
mediante a padronização e compartilhamento das informações contábeis e fiscais; (b)
a racionalização e a uniformização das obrigações acessórias para os contribuintes,
com o estabelecimento de transmissão única de distintas obrigações acessórias de
diferentes órgãos fiscalizadores e (c) a maior celeridade na identificação de ilícitos
tributários, com a melhoria do controle dos processos, a rapidez no acesso às
informações e a fiscalização mais efetiva das operações com o cruzamento de dados
e auditoria eletrônica.9
A Nota Fiscal Eletrônica, por sua vez, tem validade em todos os estados da
federação e já é uma realidade na legislação brasileira desde outubro de 2005, com a
aprovação do Ajuste SINIEF 07/05 que a instituiu nacionalmente. Trata-se de um
documento de existência apenas digital, emitido e armazenado eletronicamente, e que
5
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016. p. 16.
6
Ibid., p. 16.
7
Ibid., p. 16.
8
PRICEWATERHOUSECOOPERS. Tech breakthroughs megatrend: how to prepare for its impact. Disponível em:
<https://www.pwc.com/gx/en/issues/technology/tech-breakthroughs-megatrend.pdf>. Acesso em: 12 out. 2018.
9
SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Sped: sistema público de escrituração digital. Disponível em:
<http://sped.rfb.gov.br/pagina/show/967>. Acesso em: 13 out. 2018.
775

tem por objetivo documentar as operações de compra e venda de mercadoria, assim


como as prestações de serviços.10
Ademais, cite-se o Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais,
Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial), sistema de registro federal, padronizado e
simplificado, que permite o envio das informações relativas aos trabalhadores, como
vínculos, contribuições previdenciárias, folha de pagamento, comunicações de
acidente de trabalho, aviso prévio, escriturações fiscais e informações sobre o FGTS,
além de possibilitar a comunicação ao governo, de forma padronizada e unificada, de
15 obrigações acessórias de cunho fiscal, previdenciário e trabalhista, reduzindo
custos e tempo na elaboração e envio das informações.11
Porém, há ainda um amplo espaço para a simplificação tributária e, nesse
sentido, em agosto de 2017, a Secretaria de Receita Federal, em conjunto com a
Confederação Nacional da Indústria (CNI) e o Encontro Nacional de Administradores
Tributários (ENAT), promoveu o Fórum de Simplificação e Integração Tributária, no
qual foram divulgadas algumas medidas direcionadas à simplificação das obrigações
acessórias12.
Dentre as medidas anunciadas, houve a assinatura de um protocolo de
cooperação entre estados, municípios e empresas, para a implementação de um
projeto-piloto, cuja finalidade será a de mapear e reduzir as obrigações acessórias no
âmbito do SPED.
Será também instituído um padrão nacional para a Nota Fiscal de Serviços
Eletrônica (NFS-e), pois atualmente o contribuinte se vê diante da obrigatoriedade de
observar a legislação e as especificidades adotadas por cada município, no tocante à
emissão da nota fiscal de prestação de serviços.
Indo além das medidas já adotadas e das que estão por ser implantadas, como
acima destacado, deve-se também trazer ao debate a possibilidade de adoção de
novas tecnologias, a exemplo do sistema blockchain, para a simplificação na
prestação de obrigações tributárias.
Conceitualmente, blockchain, também conhecido como “protocolo da
confiança”, consiste em “bases de registros e dados distribuídos e compartilhados que
possuem a função de criar um índice global para todas as transações que ocorrem
em uma determinada rede”.13
Pode-se dizer, ademais, que a tecnologia blockchain consiste em “um sistema
descentralizado de operações de forma segura, estável e sem intermediários, na qual
todas as transações são registradas criptograficamente em uma rede distribuída peer-
to-peer”14.

10
MINISTÉRIO DA FAZENDA. Nota fiscal eletrônica. Disponível em:
<http://www.nfe.fazenda.gov.br/portal/perguntasFrequentes.aspx?tipoConteudo=47FIo72z99s=>. Acesso em: 13 out. 2018.
11
PORTAL ESOCIAL. Conheça o eSocial. Disponível em: <http://portal.esocial.gov.br/institucional/conheca-o>. Acesso em: 13
out. 2018.
12
FÓRUM DE SIMPLIFICAÇÃO E INTEGRAÇÃO TRIBUTÁRIA, ago. 2017, Brasília. Disponível em:
<http://idg.receita.fazenda.gov.br/sobre/acoes-e-programas/forum-de-simplificacao-e-integracao-tributaria>. Acesso em 11. Out.
2018.
13
CHICARINO, Vanessa R. L. et al. Uso de blockchain para privacidade e segurança em internet das coisas. In: SIMPÓSIO
BRASILEIRO EM SEGURANÇA DA INFORMAÇÃO E DE SISTEMAS COMPUTACIONAIS, 17., nov. 2017, Brasília.
Minicursos... Distrito Federal: Universidade de Brasília, 2017. p. 2. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/321966650_Uso_de_Blockchain_para_Privacidade_e_Seguranca_em_Internet_das
_Coisas>. Acesso em: 12 out. 2018.
14
BATISTA, Alex Oliveira Abreu; DIAS, Emillie Rebecca Bastos; SILVA, Murilo Borges. Identificação digital baseada em
blockchain: um conceito disruptivo no ciberespaço. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE INOVAÇÃO EM MÍDIAS INTERATIVAS,
5., 2018, Goiânia: Anais... Goiás: Universidade Federal de Goiás, 2018. p. 307. Disponível em:
<https://siimi.medialab.ufg.br/up/777/o/28_-_Alex_Batista.pdf>. Acesso em 12 out. 2018.
776

Além disso, considera-se que tal sistema “pode proporcionar segurança de


acesso e confiabilidade nas informações desde transações complexas, de caráter
documental ou financeiro, a cadastros básicos em sites e redes sociais”15.
É de se notar que, muito além do contexto das bitcoins, o sistema blockchain
possui outras funcionalidades que poderiam ser aplicadas em ambiente tributário, o
que garantiria maior celeridade nas informações prestadas, pois substituiria parte do
trabalho de inclusão de dados, que ainda é feita de forma manual.
Destarte, a tecnologia blockchain poderia simplificar o cumprimento de
obrigações tributárias acessórias, pois as informações seriam disponibilizadas pela
rede e não mais pelos contribuintes, sendo que a confiabilidade das informações
facilitaria o trabalho de fiscalização e auxiliaria a redução da margem para evasão
fiscal.16
Convém ponderar que, se o objetivo for a real e efetiva simplificação tributária
e a inserção do país entre aqueles de maior competitividade no quesito tributário, há
ainda um longo caminho a percorrer, que passa também pela redução na quantidade
de tributos atualmente vigentes.
Como dito alhures, vigoram no Brasil mais de 90 diferentes tributos. Trata-se
de uma quantidade exorbitante de tributos, ainda mais se considerar que cada um
deles conta com o seu próprio regramento e com suas respectivas obrigações
acessórias.
Certamente, a existência de uma quantidade menor de tributos,
indubitavelmente, ocasionará uma redução na gama de normativos e no rol de
obrigações acessórias, trazendo com consequência a simplificação tributária, tão
necessária e urgente ao país.

CONCLUSÃO

Partindo-se da premissa que, atualmente, os contribuintes se deparam com


uma extensa quantidade de tributos, atrelada a uma ampla e complexa legislação
tributária, do que decorre a exigência de cumprimento de inúmeras obrigações
acessórias, surge a discussão de medidas para a simplificação tributária.
Nesse sentido, algumas medidas já foram adotadas, a exemplo do SPED, da
Nota Fiscal Eletrônica e do eSocial, todas no sentido de trazer as obrigações
acessórias ao universo digital.
Contudo, ainda pende um longo caminho a percorrer, que passa eventualmente
por um debate sobre a utilização de novas tecnologias, a exemplo, do sistema
blockchain, assim como pela redução na quantidade de tributos, o que poderia ser
logrado com a realização de uma reforma tributária.
A simplificação tributária, assim, torna-se assunto relevante na pauta de
discussões quanto à competitividade brasileira, uma vez que a complexidade do atual
sistema tributário implica em altos custos, tanto para o contribuinte quanto para o
Estado, tornando o Brasil um país pouco atrativo à realização de investimentos
produtivos.

REFERÊNCIAS

15
BATISTA, Alex Oliveira Abreu; DIAS, Emillie Rebecca Bastos; SILVA, Murilo Borges, op.cit., p. 307.
16
BICHARA, Luiz Gustavo A. S.; MONTENEGRO, Rafaela Monteiro. A relação entre blockchain e obrigações acessórias: os
desafios da simplificação tributária no brasil. Revista dos Tribunais, on line, v. 994, p. 1-11, ago. 2018. p. 7. Disponível em:
<http://www.bicharalaw.com.br/uploads/biblioteca/ee73756a6e3f9f7438afca7252d145cd.pdf>. Acesso em: 13 out. 2018.
777

BATISTA, Alex Oliveira Abreu; DIAS, Emillie Rebecca Bastos; SILVA, Murilo Borges.
Identificação digital baseada em blockchain: um conceito disruptivo no ciberespaço.
In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE INOVAÇÃO EM MÍDIAS INTERATIVAS, 5.,
2018, Goiânia: Anais... Goiás: Universidade Federal de Goiás, 2018. p. 307-320.
Disponível em: <https://siimi.medialab.ufg.br/up/777/o/28_-_Alex_Batista.pdf>.
Acesso em 12 out. 2018.
BICHARA, Luiz Gustavo A. S.; MONTENEGRO, Rafaela Monteiro. A relação entre
blockchain e obrigações acessórias: os desafios da simplificação tributária no brasil.
Revista dos Tribunais, on line, v. 994, p. 1-11, ago. 2018. p. 7. Disponível em:
<http://www.bicharalaw.com.br/uploads/biblioteca/ee73756a6e3f9f7438afca7252d14
5cd.pdf>. Acesso em: 13 out. 2018.
BRASIL. Decreto nº 6.022, de 22 de janeiro de 2007. Institui o Sistema Público de
Escrituração Digital - Sped. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 jan. 2007.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2007/Decreto/D6022.htm>. Acesso em: 13 out. 2018.
CHICARINO, Vanessa R. L. et al. Uso de blockchain para privacidade e segurança
em internet das coisas. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO EM SEGURANÇA DA
INFORMAÇÃO E DE SISTEMAS COMPUTACIONAIS, 17., nov. 2017, Brasília.
Minicursos... Distrito Federal: Universidade de Brasília, 2017. p. 1-51. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/321966650_Uso_de_Blockchain_para_Pri
vacidade_e_Seguranca_em_Internet_das_Coisas>. Acesso em: 12 out. 2018.
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Disponível em: <http://idg.receita.fazenda.gov.br/sobre/acoes-e-programas/forum-de-
simplificacao-e-integracao-tributaria>. Acesso em 11. Out. 2018.
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normas editadas no Brasil: 29 anos da Constituição Federal de 1988. Disponível
em: <https://d335luupugsy2.cloudfront.net/cms/files/61974/1539622689estudo-ibpt-
normas-30-anos.pdf>. Acesso em: 15 out. 2018.
MINISTÉRIO DA FAZENDA. Nota fiscal eletrônica. Disponível em:
<http://www.nfe.fazenda.gov.br/portal/perguntasFrequentes.aspx?tipoConteudo=47F
Io72z99s=>. Acesso em: 13 out. 2018.
PORTAL ESOCIAL. Conheça o eSocial. Disponível em:
<http://portal.esocial.gov.br/institucional/conheca-o>. Acesso em: 13 out. 2018.
PRICEWATERHOUSECOOPERS. Tech breakthroughs megatrend: how to prepare
for its impact. Disponível em: <https://www.pwc.com/gx/en/issues/technology/tech-
breakthroughs-megatrend.pdf>. Acesso em: 12 out. 2018.
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda.
São Paulo: Edipro, 2016.
SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Sped: sistema público de
escrituração digital. Disponível em: <http://sped.rfb.gov.br/pagina/show/967>. Acesso
em: 13 out. 2018.
WORLD BANK. Doing Business 2018. Disponível em:
<http://portugues.doingbusiness.org/data/exploretopics/paying-taxes>. Acesso em:
11 out. 2018.
778

Grupo de trabalho:

DIREITO, EDUCAÇÃO E
METODOLOGIAS DO
CONHECIMENTO
Trabalhos publicados:

A EDUCAÇÃO EM GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL E O PLANO EDUCACIONAL


DE MATO GROSSO DO SUL (2014-2024): DA CONQUISTA DA CIDADANIA À
CONSAGRAÇÃO DA JUSTIÇA SOCIAL

A MEDIAÇÃO ESCOLAR, A EDUCAÇÃO E A FORMAÇÃO HUMANA

APANHADO HISTÓRICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO


PROFISSIONAL NO BRASIL: DUALIDADE ESTRUTURAL E ESPECIALIZAÇÃO DA
FORÇA DE TRABALHO

AS METODOLOGIAS LÚDICAS E AS NOVAS FRONTEIRAS NA EDUCAÇÃO


SUPERIOR
779

A EDUCAÇÃO EM GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL E O PLANO


EDUCACIONAL DE MATO GROSSO DO SUL (2014-2024): DA CONQUISTA DA
CIDADANIA À CONSAGRAÇÃO DA JUSTIÇA SOCIAL
THE EDUCATION IN GENDER AND SEXUAL DIVERSITY AND THE
EDUCATIONAL PLAN OF MATO GROSSO DO SUL STATE (2014-2024): FROM
THE CONQUEST OF CITIZENSHIP TO THE CONSECRATION OF SOCIAL
JUSTICE

Antônio Rodrigues Neto


Maurinice Evaristo Wenceslau

Resumo: O presente resumo, extraído de pesquisa em desenvolvimento, tem o


escopo de evidenciar de que forma se dá a previsão da Educação em Gênero e
Diversidade no Plano Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul (2014-2024),
analisando-se, qualitativamente, sobretudo, a sua importância para a construção da
cidadania (ARENDT, 1991, p. 22), voltada à consagração da Justiça como equidade
(RAWLS, 2009, §17, p. 121). Dessa forma, a partir de pesquisa bibliográfica e
documental e aplicando-se o método dedutivo, referido trabalho, aproveitando-se de
seu caráter descritivo e exploratório, visa reunir informações que possibilitem uma
futura análise das ações, programas e demais políticas públicas eventualmente
criadas pelos órgãos educacionais competentes, com o especial fim de aplicar nos
ambientes escolares sul-mato-grossenses (educação básica) a Educação em Gênero
e Diversidade Sexual, tal como proposto pelo PEE/MS (2014-2024).
Palavras chave: Cidadania. Educação em Gênero e Diversidade Sexual. Plano
Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul.

Abstract: This summary, extracted from research in development, has the purpose of
evidencing how the Gender and Sexual Diversity Education is predicted in the State
Plan of Education of Mato Grosso do Sul (2014-2024), analyzing, qualitatively, its
importance for the construction of citizenship (ARENDT, 1991, p.22), aimed at the
consecration of justice as equity (RAWLS, 2009, §17, p.112). In this way, based on a
bibliographical and documentary research and applying the deductive method, this
work, taking advantage of its descriptive and exploratory character, aims to gather
information that allows a future analysis of the actions, programs and other public
policies eventually created to the special purpose of applying the Education in Gender
and Sexual Diversity in the school environments (basic education) of Mato Grosso do
Sul State, as proposed by the PEE-MS (2014-2024).
Keywords: Citizenship. Education in Gender and Sexual Diversity. State Plan for
Education of Mato Grosso do Sul.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Ao final de 2018, o Plano Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul


(PEE/MS) (2014-2024) terá completado 4 anos de existência. Em seu conteúdo,
verifica-se não apenas a previsão de diretrizes e metas estabelecidas como estratégia
educacional sul-mato-grossense para o período de dez anos, nos termos do artigo
214 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), e em consonância ao Plano Nacional de
Educação (PNE) (2014-2024), mas também uma representativa conquista em Direitos
Humanos: a previsão da educação em Gênero e Diversidade Sexual nas salas de
aula. (MATO GROSSO DO SUL, 2014, p. 57)
780

Assim, a presença das temáticas de gênero e diversidade sexual no bojo das


projeções educacionais do Estado, para o próximo decênio, representa que Mato
Grosso do Sul reconhece constitucional a educação que propõe difundir, entre
crianças e adolescentes integrantes da educação básica, informações acerca de
temas tais como “representação de gênero”, “autodeterminação”, “binarismo”,
“transgenia”, “educação sexual”, “feminismo”, entre outros, que compõem um robusto
e complexo conjunto de informações sobre gênero biológico, representações de
gênero e orientação sexual; por entendê-la uma educação pela igualdade e pela
transformação social, ou melhor, uma educação em e para Direitos Humanos, voltada
ao respeito às diversidades e à construção da paz social.
Dito isso, o presente resumo – que integra parte de pesquisa de mestrado em
desenvolvimento - consiste em um trabalho de caráter descritivo, bibliográfico e
documental, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, que objetiva demonstrar
de que forma a previsão formal da Educação em Gênero e Diversidade, a partir do
PEE/MS (2014-2024), está intrinsicamente relacionada à construção da cidadania
(ARENDT, 1991, p. 22) e ao respeito às diferenças e, mais que isso, à consagração
da Justiça como equidade idealizada por Rawls (2009, §17, p. 121).
Para tanto, parte-se do seguinte problema: de que forma a previsão da
Educação em Gênero e Diversidade Sexual pelo Plano Estadual de Educação de
Mato Grosso do Sul afeta a construção da cidadania e a consagração da Justiça como
equidade?
Dessa forma, o presente resumo será dividido em duas partes. Inicialmente, se
ocupará de conceituar a Educação em Gênero e Diversidade Sexual como Educação
em Direitos Humanos e evidenciar - dentre o conteúdo do PEE/MS (2014-2024) – a
previsão desta a partir das metas, estratégias e princípios estabelecidos no
documento, a fim de que sejam, posteriormente, relacionados qualitativamente ao
ideal de cidadania como “direito a ter direitos” (ARENDT, 1991, p. 22) e de Justiça
como equidade (RAWLS, 2009, §17, p. 121).
Como resultado do presente estudo, pretende-se reunir informações para
futuras pesquisas sobre o tema e, principalmente, possibilitar uma futura análise das
ações, programas e demais políticas públicas eventualmente criados pelos órgãos
educacionais competentes, com o especial fim de aplicar nos ambientes escolares
sul-mato-grossenses (educação básica) a Educação em Gênero e Diversidade
Sexual, tal como proposto pelo PEE/MS (2014-2024).

1 A EDUCAÇÃO EM GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL E SUA PREVISÃO NO


PEE/MS

Antes de se relacionar a Educação em Gênero e Diversidade Sexual e a


Educação em Direitos Humanos, é preciso compreender de que forma o ambiente
escolar, por si só, representa um espaço formador de identidades, justificando-se a
necessidade de se ensinar o respeito às diferenças em todos os níveis da educação.
Nesse sentido, acompanha-se o entendimento de Aguilera Urquiza e Mussi (2013, p.
188), que explicam:

A própria sociedade estabelece modelos padronizados de indivíduos e


busca estabelecer quais são os atributos considerados “normais”
conforme o padrão sócio-histórico e cultural vigente. Cria-se um modelo
social do indivíduo que nem sempre corresponde à realidade. Alguém que
pertença a uma categoria com atributos diferentes ou incomuns é pouco
781

aceito pelo grupo social e até mesmo discriminado. O indivíduo “diferente”


ou em condições de vulnerabilidade pode não ser considerado em sua
totalidade e sua capacidade de ação e de transformação, tornando-se,
assim, ameaçado e podendo, até mesmo, limitar o desenvolvimento de
suas potencialidades. Nesse contexto, como vimos, a escola pode tanto
reforçar como combater esses processos, de forma que nas próprias
situações de conflitos, gerados pelo estigma e pela discriminação, busque
resolvê-los respaldando-se em valores éticos. O indivíduo, independente
de qualquer característica que venha a ser enquadrado, merece que sua
dignidade seja respeitada.

No mesmo caminho, está o pensamento de Pereira, Normanton e Stempliuk


(2018, p. 14), que afirmam:

A democracia brasileira depende de uma educação que crie as bases da


sociedade democrática, que respeite a diversidade e reproduza os
princípios e valores constitucionais para que assim, tais valores e
princípios sejam reproduzidos nas práticas sociais. Para isso a
Constituição Federal adota, de forma expressa, uma concepção de
educação que prepare os e as estudantes para o exercício da cidadania,
que respeite a diversidade e que assim seja capaz de viver em uma
sociedade plural com as mais diversas expressões religiosas, políticas,
culturais, étnicas, de sexualidade ou de gênero. Ainda, além de previstos
na Constituição Federal, tais objetivos de uma educação democráticas
estão expressos na Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais
e Culturais e no Protocolo de San Salvador, demonstrando a preocupação
da comunidade internacional na educação democrática. Por sua vez os
estudantes devem aprender sobre tais valores para que com isso a vida
em uma sociedade plural e diversa seja possível. (grifos nossos)

Com isso, tem-se demonstrada a relevância da abordagem escolar das


questões de gênero e diversidade sexual, uma vez que a dinâmica estabelecida pela
interação de indivíduos (alunos, professores e demais agentes envolvidos) nas
escolas com realidades socioculturais, identidades e noções de cidadania tão distintos
(e ora também similares) é o que torna a experiência da educação tão representativa:
seja pela sua relevância na difusão de saberes, seja pela sua importância na formação
de futuros cidadãos.
Acerca da definição da Educação em Direitos Humanos, portanto, o Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) (BRASIL, 2007, p. 25)
estabelece:

A educação em direitos humanos é compreendida como um processo


sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de
direitos, articulando as seguintes dimensões: a) apreensão de
conhecimentos historicamente construídos sobre direitos humanos e a
sua relação com os contextos internacional, nacional e local; b) afirmação
de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos
humanos em todos os espaços da sociedade; c) formação de uma
consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis cognitivo, social,
ético e político; d) desenvolvimento de processos metodológicos
participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais
didáticos contextualizados; e) fortalecimento de práticas individuais e
sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da
proteção e da defesa dos direitos humanos, bem como da reparação das
violações. Sendo a educação um meio privilegiado na promoção dos
direitos humanos, cabe priorizar a formação de agentes públicos e sociais
para atuar no campo formal e não-formal, abrangendo os sistemas de
782

educação, saúde, comunicação e informação, justiça e segurança, mídia,


entre outros.

No que se refere ao PEE-MS (2014-2024), documento que ampara e justifica a


presente pesquisa, evidencia-se uma preocupação do legislador em direcionar a
educação para “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na
promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação” (art.
2º, inciso III) e para “a promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à
diversidade e à sustentabilidade socioambiental” (art. 2º, inciso X). (MATO GROSSO
DO SUL, 2014, p. 11) (grifos nossos)
Não obstante, a meta 7.33 do aludido documento (PEE-MS, 2014-2024), traz
como estratégia, expressamente, a Educação em Gênero e Diversidade Sexual, como
se observa:

[...] 7.33 - Implantar e desenvolver, até o segundo ano de vigência do PEE-


MS, políticas de prevenção e combate à violência nas escolas, com
capacitação dos profissionais da educação para atuarem em ações
preventivas junto aos (às) estudantes na detecção das causas como:
violência doméstica e sexual, questões étnico-raciais, de gênero e de
orientação sexual, para a adoção das providências adequadas,
promovendo e garantindo a cultura de paz e um ambiente escolar dotado
de segurança para a comunidade. (MATO GROSSO DO SUL, 2014, p.
57) (grifo nosso)

No mesmo sentido, está a meta 7.34 que traz como objetivo:

[...] 7.34 - Promover e garantir a formação continuada dos profissionais da


educação, incluindo gestores e servidores das secretarias de educação,
sobre: direitos humanos, promoção da saúde e prevenção das DST/Aids,
alcoolismo e drogas, em sua interface com as questões de gênero e
sexualidade, questões étnico-raciais, geracionais, situação das pessoas
com deficiência, na vigência do PEE-MS (MATO GROSSO DO SUL, 2014,
p. 57) (grifo nosso).

Assim, o que se busca com a Educação em Gênero e Diversidade Sexual, na


verdade, é que, a partir do acesso a informações capazes de descontruir estigmas
sociais, papéis de gênero, binarismos, dentre outros, o futuro cidadão consiga
direcionar sua conduta de acordo com os valores de igualdade e respeito às
diferenças, independente de sexo biológico, gênero ou orientação sexual. Busca-se,
portanto, o estabelecimento de uma nova cultura de gênero e diversidade sexual a ser
alcançada, também e essencialmente, por meio da educação, considerando a sua
relevância para a conquista da cidadania e a (re)afirmação de direitos, tema que será
melhor explorado no próximo tópico.

2 O PAPEL DA EDUCAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA

Conforme já demonstrado, levar a educação em Direitos Humanos até os


espaços escolares apresenta-se como medida de fundamental interesse se
considerados os objetivos para a educação no País de alcançar o “pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988), estabelecidos no texto constitucional,
porque é entre os muros da escola que o cidadão em formação primeiro se relacionará
783

com as diversidades e é lá, também, que ele poderá aprender sobre como respeitá-
las, pautando-se, para tanto, na Educação em Direitos Humanos.
Seguindo-se essa perspectiva, portanto, a educação vincula-se à construção
da cidadania, aqui entendida como “direito a ter direitos” (ARENDT, 1991, p. 22), pela
sua importância na formação psicossocial dos indivíduos notadamente pela sua
capacidade de gerar autorreflexão. Ao permitir que o aluno, especialmente, o que
desconhece e transgrede as prerrogativas de Direitos Humanos, especialmente no
tocante às temáticas de gênero e diversidade sexual, possa alcançar o
reconhecimento de seu papel social enquanto membro da coletividade, a educação
estabelece-se, também, como de fundamental importância na construção do ideal de
Justiça como equidade, proposto por Ralws (2009, §17, p. 121).
Nesse sentido, é o que também dispõe Ranieri:

[...] a educação possibilita a difusão da democracia e dos direitos


humanos, “valores cruciais” no mundo contemporâneo. Observa, ainda,
tratar-se de um direito e dever fundamental social, regido pelo princípio da
dignidade humana, bem como de um imperativo dos direitos humanos,
sustento e guardião da vida, acrescentando que ela permite a
consolidação da cidadania como “direito de ter direitos” de que nos fala
Hannah Arendt.

De igual forma, está o pensamento de Aguilera Urquiza (2016, p. 23), como se


observa:

[...] cidadania tem a ver com a prática, com o exercício de direitos e não
apenas com uma forma de conhecimento. Ser cidadão ou cidadã é ter
garantidos os seus direitos e ter consciência de que se devem cumprir os
seus deveres. Para exercer a cidadania, o primeiro passo está no
conhecimento dos direitos, para colocá-los em prática.

Não se pode deixar de mencionar, também, que além da formação para a


cidadania, a Educação em Gênero e Diversidade Sexual propõe o reconhecimento e
respeito às diferenças, o que nos remonta aos ensinamentos de Santos (2003, p. 51),
pelo qual:

[...] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza;
e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos
descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as
diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza
as desigualdades.

Dessa forma, portanto, a previsão da Educação em Gênero e Diversidade


Sexual no PEE-MS representa não apenas o reconhecimento da importância de
instituir-se uma política de enfrentamento das desigualdades e valorização da
diversidade, promovendo-se a cultura de paz e um ambiente escolar inclusivo à
comunidade, mas também permite a aplicação do modelo de alcance da Justiça como
equidade, tal qual proposto por Ralws (2009, §17, p. 121) e de construção da
cidadania, enquanto “direito a ter direitos” (ARENDT, 1991, p. 22), ou seja, expandindo
a noção de cidadania enquanto conhecimento/gozo de direitos e a consciência da
necessidade do cumprimento de deveres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
784

É no ambiente escolar que os/as estudantes podem construir suas identidades


individuais e de grupo, podem exercitar o direito e o respeito à diferença (BRASIL,
2009).
Ao prever a Educação em Gênero e Diversidade Sexual em seu conteúdo, o
PEE-MS reconhece necessária a criação de uma nova cultura de gênero e diversidade
sexual, na qual as ameaças e violações a Direitos Humanos perpetradas contra
quaisquer indivíduos em razão de seu gênero biológico, identidade de gênero ou
orientação sexual ceda espaço para uma lógica de respeito às diferenças. Mais que
isso, o Plano Educacional de Mato Grosso do Sul entende, ainda, que a escola tem
papel determinante na formação para a diversidade, superando-se preconceitos e
reduzindo-se os índices de violência e exclusão, inclusive educacional.
Tal previsão, por sua vez, remonta à formação para cidadania estabelecida no
artigo 205 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), ao expandir a noção de direitos e
o pensamento fraterno e coletivo, levando-se, também, ao fortalecimento da Justiça
como equidade: incluindo-se grupos marginalizados e garantindo-lhes participação
laboral, econômica, política, cultural, entre outros e, sobretudo, dignidade humana.
Ademais, a partir da análise das metas, princípios e estratégias trazidas no
PEE-MS (2014-2024) para a Educação em Gênero e Diversidade Sexual, serão
cabíveis ações, programas e políticas públicas voltadas, dentre outros, à: a)
capacitação de profissionais para a ensino/aprendizagem dos temas de gênero e
diversidade sexual; b) realização de atividades (semanas educativas, palestras,
eventos, entre outros) de conscientização sobre igualdade, diversidade, respeito às
diferenças, atinentes a gênero e diversidade sexual; c) formulação de materiais
didáticos, pedagogicamente estruturados, para a abordagem dos referidos temas; d)
criação de políticas públicas a serem aplicadas nos ambientes escolares para
integração e diminuição de discriminações; e) estabelecimento de índices a fim de
demonstrar (e corrigir) eventuais defasagens/evasões/abandonos educacional,
preconceito, violência, com base em discriminações de gênero e diversidade sexual,
entre outros.
Como próximo passo do presente estudo, resta descobrir se o PEE-MS (2014-
2024) tem recebido a devida atenção da Administração Pública estadual e se a
Educação em Gênero e Diversidade Sexual tem sido, de fato, aplicada nas escolas
do estado, bem como quais os possíveis reflexos da inserção/supressão desses
conteúdos nas salas de aula para a construção da cidadania e da Justiça como
equidade.

REFERÊNCIAS

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Cultural. In: Nascimento: os Direitos Humanos nas fronteiras (Brasil e Europa).
Antonio H. Aguilera Urquiza (org.). Campo Grande – MS: Ed. UFMS, 2016
______; MUSSI, Vanderleia P. Leite. Direito à aprendizagem e o ambiente
educacional. In: Direitos humanos e cidadania: desenvolvimento pela educação em
direitos humanos. GUTIERREZ, José Paulo; AGUILERA URQUIZA, Antonio H.
(orgs.). Campo Grande: Ed. UFMS, 2013.
ARENDT, Hannah. The origins of totalitarism. Nova York: Harcourt Brace
Jovanovitch, 1991. Pp. 299-302. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos:
um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras,
1988, pp. 146-166.
785

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 30
abr. 2018.
______. Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm>. Acesso
em: 30 abr. 2018.
______. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Comitê Nacional de
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Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007.
_____. Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em Gênero,
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PEREIRA, Ana Clara T. A.; NORMANTON, Anna Catharina M.; STEMPLIUK, Pâmela
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São Paulo: Saraiva, 2013.
RAWLS, J. A Theory of Justice. Revised Edition, Cambridge: Harvard University
Press, 2000.
786

A MEDIAÇÃO ESCOLAR, A EDUCAÇÃO E A FORMAÇÃO HUMANA


THE SCHOOL MEDIATION, THE EDUCATION AND THE HUMAN FORMATION

Virginia Grace Martins de Oliveira

Resumo: Este projeto de artigo pretende analisar se a mediação escolar pode


contribuir para a formação humana. No ano de 2015 foi sancionada no Brasil a Lei nº
13.140/2015, a Lei de mediação, que regulamenta a utilização do mecanismo
autocompositivo de resolução de conflitos denominado mediação. A regulamentação
abrange a sua utilização nos ambientes extrajudiciais, bem como, nos judiciais. E a
mencionada Lei determina a utilização das regras, no que couber, às mediações
escolares. Dessa forma, a pesquisa problematiza se a utilização da mediação escolar
pode contribuir para a formação humana, além de ser concebido e utilizado como um
mecanismo de desjudicialização e meio adequado de resolução de conflitos, diretrizes
propagadas, mesmo antes da sanção da mencionada Lei. Isto porque toma-se por
base que os ambientes escolares além de possuírem objetivos específicos voltados à
aprendizagem, visam também a formação humana.
Palavras-Chave: Mediação escolar; Educação; Formação humana.

Abstract: This article’s project intend to analyze if the school mediation when used in
the area of Education can contribute to human formation. In the year 2015, was
approved in Brazil the Law no. 13.140 / 2015, the Law of mediation, regulating the use
of the autocompositive mechanism of conflict resolution named mediation. The
regulation include the use in extrajudiciaries environments, as well as in the judiciaries.
And the this Law sets the using of rules, in what apply, to school mediations. In this
way, the research problematizes if the use of the school mediation can contribute to
the human formation, besides being conceived and used as a mechanism of no
adjudication and an adequate means of conflict resolution, guidelines propagated
before the sanction of the mentioned Law. Because it is understood that the school
environments have specific objectives and procedures purposed at learning, but also
aim at human formation.
Keywords: School mediation; Education; Human Formation.

INTRODUÇÃO

O presente estudo visa analisar se a mediação extrajudicial ao ser utilizada nos


ambientes escolares, nomeada como mediação escolar, pode contribuir para a
formação humana. Isto porque a mediação é um mecanismo autocompositivo
introduzido no Brasil pela Política Judiciária Nacional por meio da publicação da
Resolução n. 125/10 editada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Este
dispositivo concretizou as ideias propostas nos movimentos que propunham novos
ideais de acesso à Justiça, a desjudicialização e tratamento adequado de conflitos de
interesses por meio da autocomposição, que surgiram com o início da crise instalada
no Poder Judiciário.
E em 2015, foram sancionadas a Lei n. 13.140/15, a Lei de mediação e a Lei
n. 13.105/15, que instituiu o Novo Código de Processo Civil. O primeiro dispositivo
regulamenta especificamente o mecanismo nomeado como mediação. O segundo,
traz definição e institui o uso nos meios judiciais. A Lei de mediação regulamenta a
mediação judicial e extrajudicial. E consoante a isto, determina que as suas regras
também sejam aplicadas, no que couber, às mediações comunitárias e escolares.
787

Desta forma, o presente estudo tem como objetivo analisar se a mediação


escolar pode contribuir para a formação humana. Entretanto, para isto, baseia-se nas
diretrizes legais e propostas as quais sustentam que a educação visa a formação
humana, além da aprendizagem formal.
E, este estudo ao tomar por base as concepções construídas juntamente com
as diretrizes legais vigentes acerca do mecanismo mediação e as teorias e pesquisas
que embasam os princípios e ideias contidos nas políticas educacionais que propõem
uma articulação entre a educação e a formação humana, pretende analisar se a
mediação escolar pode contribuir para a formação humana, além de cumprir com o
que já está posto, que é promover o acesso à Justiça, a desjudicialização dos conflitos
e ser um método adequado na resolução de conflitos de interesses.
Isto porque, a educação é uma área que contempla pesquisas, concepções e
propostas sobre os diversos ambientes educativos, entre eles, a escola. E a escola é
um ambiente que demanda concepções e propostas que contemplem objetivos e
procedimentos peculiares, voltados à aprendizagem formal do ser humano. Mas, além
disto, há proposições que defendem a articulação da ação educativa na escola com a
formação do ser humano.
Desta feita, utilizando-se da técnica de pesquisa bibliográfica e documental e
do método dedutivo de abordagem analisa-se a mediação e seus contornos legais e
doutrinários. E em seguida, expõe-se a concepção que sustenta a articulação entre
educação e formação humana. Analisa-se os contornos e peculiaridades da mediação
escolar. E por fim pretende-se analisar se a mediação escolar pode contribuir para a
formação humana.

A MEDIAÇÃO: DEFINIÇÃO, LEGISLAÇÃO VIGENTE E CONCEPÇÕES


CONSTRUÍDAS

A mediação é um dos mecanismos autocompositivos de resolução de


conflitos1, que possui como essência a decisão consensual de um conflito, pois as
partes emanam a decisão auxiliadas por um terceiro imparcial, o que muito o difere
da tutela jurisdicional, que é heterocompositiva, pois há um terceiro imparcial, o
Estado -Juiz, que decide a lide por meio da imposição (CALMON, 2013, p. 47 e 113).
O Brasil adotou oficialmente a autocomposição por meio publicação da
Resolução n. 125/10 pelo CNJ, como resposta a crise que atingiu o Poder Judiciário.2
E com isso o país optou pela utilização da mediação e da conciliação. 3 No entanto,
este dispositivo legal trouxe a autocomposição para o âmbito do Poder Judiciário. E
mesmo antes de sua publicação, a comunidade jurídica discutia e propunha ideias
sobre os princípios, objetivos e formas de aplicação da autocomposição.
A Resolução n. 125/10, além de instituir a utilização dos mecanismos, trouxe a
ideia de que estes podem contribuir para reduzir a excessiva judicialização dos
conflitos, para amenizar a crise instaurada no Poder Judiciário, bem como, podem
servir como forma de tratamento adequado de conflitos, instrumentos efetivos de
pacificação social e de acesso à justiça4.
1
Existem outros mecanismos autocompositivos de resolução de controvérsias e os mais conhecidos são: negociação, mediação
e conciliação (CALMON, 2013, p. 86).
2
Este tema foi abordado, submetido e aprovado para apresentação, sob o formato de artigo, para o XXVII Congresso Nacional
do CONPEDI que ocorrerá em Porto Alegre/RS, entre os dias 14 e 16 de dezembro de 2018, sob o título: Mediação como forma
de desjudicialização e adequada na gestão de conflitos, em coautoria com a autora do presente resumo expandido e com Prof.ª
Dra. Adriana da Silva Maillart. O artigo aguarda apresentação. Portanto, a publicação encontra-se em fase de elaboração.
3
Apesar da Política Pública de tratamento adequado de conflitos adotar a mediação e a conciliação, esta pesquisa, dedica-se a
analisar o instituto da mediação.
4
Texto no Preâmbulo da Resolução n. 125/10:
[...]
788

E, em 2015, foram sancionadas a Lei n. 13.140 de 28 de junho de 2015, a Lei


de mediação5 e a Lei n. 13.105 de 16 de março de 2015 que instituiu o Novo Código
de Processo Civil.6 A Lei de mediação definiu o instituto como instrumento
autocompositivo que é conduzido por um terceiro imparcial que não possui poder
decisório7.
Além da definição do mecanismo, a Lei de mediação regulamentou sua
utilização em âmbitos extrajudiciais e enfatizou a função do terceiro imparcial nesse
tipo de autocomposição, que é o de conduzir o processo de comunicação entre as
partes com o fim de obter o consenso8.
O Novo Código de Processo Civil contribuiu também para a definição da
mediação e da conciliação9,pois salienta que o mecanismo mediação deve ser
utilizado preferencialmente nos casos em que houver um vínculo anterior entre as
partes, enfatizando o restabelecimento da comunicação com o fim de obter a solução
consensual10.
Percebe-se que os mencionados dispositivos legais trouxeram inovações11,
principalmente a Lei de mediação12 que ampliou a aplicação de suas regras aos
ambientes escolares naquilo que for pertinente.
E ambos dispositivos enfatizam que a função do mediador é conduzir e
restabelecer o procedimento de comunicação entre as partes para que estas emitam
uma decisão. Por isto, este estudo entende que a legislação trouxe inovações
importantes, pois, o mecanismo é visto como um facilitador para gerir as relações
intersubjetivas que são instrumentalizadas pela comunicação entre as partes13.
Entende-se que a condução adequada do procedimento de comunicação inserido no
trabalho autocompositivo pode preservar as relações intersubjetivas, mas segue além

CONSIDERANDO que o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal além da vertente formal
perante os órgãos judiciários, implica acesso à ordem jurídica justa e a soluções efetivas;
CONSIDERANDO que, por isso, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de tratamento adequado dos problemas jurídicos
e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional,
não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que possam sê-lo mediante outros mecanismos
de solução de conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação;
[...]
CONSIDERANDO que a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de
litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já implementados no país tem reduzido a excessiva judicialização dos
conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças;
5
Publicada no DOU 29.06.2015
6
Publicada no DOU 17.03.2015
7
Texto da Lei: Art.1o Esta Lei dispõe sobre a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a
autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública.
Parágrafo único. Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido
ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia.
8
Texto da Lei: Art. 4o O mediador será designado pelo tribunal ou escolhido pelas partes.
§ 1o O mediador conduzirá o procedimento de comunicação entre as partes, buscando o entendimento e o consenso e facilitando
a resolução do conflito.
9
Apesar de o objeto deste estudo ser a mediação, esta pesquisa informa que o referido Código definiu os dois mecanismos e
uniformizou no Brasil a terminologia destes, pois nem sempre houve uma combinação terminológica na literatura (CALMON,
2013, p. 86).
10
Texto da Lei: Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização
de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e
estimular a autocomposição.
[...]
§ 3o O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos
interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da
comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.
11
Idem a nota explicativa n.02
12
Texto da Lei: Art. 42. Aplica-se esta Lei, no que couber, às outras formas consensuais de resolução de conflitos, tais como
mediações comunitárias e escolares, e àquelas levadas a efeito nas serventias extrajudiciais, desde que no âmbito de suas
competências.
13
Idem a nota explicativa n. 02.
789

do conflito interno pertencente aos envolvidos, pois pode contribuir para as práticas
do diálogo e da cooperação no meio social14.
E somando-se as inovações legislativas às pesquisas acadêmicas que trazem
uma abordagem sistêmica sobre a mediação, é possível conceber esse mecanismo
como algo que age nas relações sociais transformando-as. Como bem apontam
Zapparolli e Krähenbühl (2012, p. 38), “[...], a mediação age com o sujeito
interrelacionado no mundo”. Por isto, entende-se que a utilização do mecanismo pode
oferecer novas possibilidades de gestão de conflitos sociais ao atuar na convivência
humana no meio social, indo além de ser algo para a solução de uma disputa pontual
entre as partes envolvidas, bem como, promover a desjudicialização e o acesso à
justiça.

UMA CONCEPÇÃO SOBRE A EDUCAÇÃO E A FORMAÇÃO HUMANA

A educação é um direito fundamental consagrado no capítulo dos direitos


sociais da Constituição Federal de 1988 em seu artigo 6º no caput15. E o texto
constitucional consagra no artigo 20516 o objetivo da educação, que visa, entre outros,
“o pleno desenvolvimento da pessoa”. Na legislação infraconstitucional, há entre
outros dispositivos, a Lei n. 9.394/96, a LDB, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional e menciona nos artigos 1º17 e 2º18 as expressões: “convivência
humana” e “pleno desenvolvimento do educando”. E no mesmo dispositivo legal há o
artigo 35, inciso III19, que determina como uma das finalidades do ensino médio, “o
aprimoramento do educando como pessoa humana”. Além disso, o referido dispositivo
traz no artigo 3º20 os princípios norteadores da educação escolar, entre eles,
“vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais”.
Este estudo entende que as expressões legais, “convivência humana”, “pleno
desenvolvimento da pessoa” e ou “do educando” ou “aprimoramento como pessoa
humana”, “vinculação entre a educação escolar, o trabalho e práticas sociais” se
referem ao desenvolvimento do ser humano de forma plena, o que equivale a dizer
que as ações educativas não se restringem a obtenção de informação e o
conhecimento, pois seguem além, abrangendo o ser humano em suas muitas esferas
de existência. Nesse sentido, Campos ao fazer menção sobre o princípio do artigo 3º
acima mencionado, enfatiza (2009, p. 51) que, “Esse último princípio norteador- a

14 Neste sentido, Zapparolli e Krähenbühl (2012, p.31): Os meios adjudicatórios de administração de conflitos, disputas,
demandas, problemas, prevenção e gestão de crises nos sistemas podem contribuir de forma significativa no campo
intersubjetivo e também oferecer espaços de construção coletiva, promovendo o fortalecimento comunitário e trazendo aos atores
as ferramentas para a gestão dos conflitos não só intersubjetivos, mas comunitários e sociais.
15
Texto do artigo 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.
16
Texto do artigo 205: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.
17
Texto da Lei: Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência
humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
manifestações culturais.
18
Texto da Lei: Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho.
19
Texto da Lei: Art. 35 O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades:
[...]
III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia
intelectual e do pensamento crítico;
20
Texto da Lei: Art. 3º - O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
[...]
XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.
[...]
790

vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais- torna-se o


desafio atual de uma educação para a formação humana”.
Isto posto, entende-se que a legislação determina que as ações educativas
invistam no processo de formação humana visto sob um conceito amplo, que integre
a obtenção de conhecimento e informação e os relacionamentos intersubjetivos, para
que esta junção produza reflexos no convívio social, pois este, além de ser objeto do
processo ensino- aprendizagem, também perpassa toda a trajetória de vida do ser
humano (CAMPOS, 2009, p.48). Nesse sentido Campos aponta (2009, p. 48) que,
“[...], compreender a educação e a formação como processos articulados nas
dimensões sócio-histórica e psicológica de toda experiência humana; [...].

A MEDIAÇÃO NOS AMBIENTES ESCOLARES

Em capítulo anterior, abordou-se que a Lei de mediação determinou a aplicação


das regras contidas em seu texto, no que couber, à mediação escolar. Entretanto,
mesmo antes desse momento, pesquisadores e estudiosos acadêmicos têm debatido
em torno do tema que envolve a discussão dos princípios, objetivos e peculiaridades
da mediação inserida nos ambientes escolares, denominada de mediação escolar,
pois esses ambientes requerem especificidades em sua estrutura, pois a ação
educativa se consubstancia em educar e ensinar pessoas que são, em sua maioria,
crianças e ou adolescentes.
Sabe-se que projetos e experiências que envolvem a mediação escolar
iniciaram-se nos Estados Unidos, por volta de trinta anos atrás em média, como uma
solução para combater a violência que se instaurara nas escolas desse país
(CHRISPINO; CHRISPINO, 2011, p. 69).
A educação brasileira passou por transformações, pois a escola, um espaço
comunitário, que antes lidava com iguais, após a democratização do ensino passou a
lidar com a diversidade presente nos âmbitos sociais, culturais, econômicos, étnico,
enfim, na forma como cada um concebe o mundo (CHRISPINO; CHRISPINO, 2011,
p. 08 e 67).
Essa diversidade, que deriva de divergências, entre outras, as sociais, gerou
novos conflitos nos ambientes escolares, pois trouxe situações com as quais a escola
não estava habituada a lidar, o que acabou por causar muitas vezes a violência no
interior desses espaços. E nesse contexto a mediação é inserida nos ambientes
escolares, denominando-se mediação escolar (CHRISPINO; CHRISPINO, 2011, p.
15-22).
Em maio de 2016 o CNJ publicou a Resolução n. 225, que dispõe sobre a
Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, cujo enfoque
do trabalho está explícito em seu artigo 1º21, ou seja, visa à conscientização sobre os
conflitos e a violência. Entende-se que a Justiça Restaurativa pretende abordar
principalmente situações que se configurem em violência.
Nesse cenário, em 2017, o CNJ publicou em seu próprio site uma notícia sobre
a aplicação da técnica da Justiça Restaurativa em solução de conflitos nas escolas
como fruto de uma parceria entre o Poder Judiciário e o sistema educacional paulista.
A notícia veiculou que o objetivo dessa aplicação é “promover a paz nos ambientes
escolares e evitar que novos processos judiciais nasçam desses conflitos”. E consta

21
Art. 1º. A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e
atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e
violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na
seguinte forma:
[...]
791

também que a técnica “propõe um olhar humanizado e corresponsável entre todos os


envolvidos no conflito”22.
Desse modo, percebe-se que há um movimento no Brasil em torno da
mediação escolar com o fito de buscar a pacificação social ao lidar com os conflitos
presentes nos relacionamentos intersubjetivos que desencadeiam muitas vezes a
violência no interior das escolas.
Isto posto, o presente estudo entende que o enfoque da mediação escolar é
atuar no procedimento de comunicação entre as partes, pois conforme exposto, a
violência que ocorre nas escolas deriva dos conflitos relacionados à diversidade, que
existe no meio social, o que gera conflitos afetivos e sociais que interferem nos
relacionamentos intersubjetivos. E essa diversidade pode ser organizada por meio da
adequada condução da comunicação entre as partes (CHRISPINO; CHRISPINO,
2011, p. 67).
Isto porque, acredita-se que o aprimoramento do diálogo pode atuar nos
relacionamentos intersubjetivos contribuindo para trazer aos ambientes escolares, a
tolerância, o respeito à diversidade, a cooperação, como princípios pertencentes a
cultura de mediação de conflitos, tanto na sociedade quanto nos ambientes escolares.
(CHRISPINO; CHRISPINO, 2011, p.77 e 93).

CONCLUSÃO

Como se pôde observar a mediação é um mecanismo de solução de conflitos


que foi regulamentado no Brasil visando obter a desjudicialização das controvérsias
para desafogar o Poder Judiciário. É uma ação que pertence a uma política pública
de tratamento adequado de conflitos, visto como instrumento efetivo de pacificação
social, pois pode atuar transformando as relações sociais.
A educação é um direito fundamental que possui uma legislação que postula
princípios norteadores, e estabelece a educação em toda sua abrangência, ao
mencionar “convivência humana” e, “a vinculação entre a educação escolar, o trabalho
e as práticas sociais”. Constatou-se que existe na educação a articulação entre a ação
educativa e a formação humana. E esta visão concebe o ser humano em seus vários
aspectos, posto que atua, inclusive, nos relacionamentos intersubjetivos trazendo
reflexos para a convivência social na trajetória de vida do ser humano.
A mediação foi inserida nos ambientes escolares, com o fim de conter a
violência que se instaurou nesses espaços após a democratização do ensino. E esta
inserção deu ao mecanismo a denominação de mediação escolar. Observa-se que na
prática a mediação escolar atua em conflitos que envolvem violência, por isso o
mecanismo é visto como instrumento para promover a pacificação social.
Constatou-se que os conflitos advêm da diversidade. E esta pode ser amparada
pelo diálogo, o que torna possível a convivência entre os diferentes, pois atua nos
relacionamentos afetivos e sociais, trazendo a tolerância, o respeito à diversidade e a
cooperação, princípios que perfazem as práticas sociais.
Como se pôde observar a mediação escolar atua em ambientes coletivos, de
modo a amparar a convivência humana, auxiliando no aprimoramento do diálogo entre
as partes, ao mesmo tempo em que participa das ações educativas que se articulam
com a formação humana, pois nestas ações, os relacionamentos intersubjetivos e o
convívio social são objetos do processo ensino-aprendizagem, bem como, perfazem
a trajetória de vida do ser humano.

22
As informações aqui expostas foram obtidas por meio de consulta ao site do CNJ, conforme indicado nas Referências.
792

Dessa forma, conclui-se que a mediação escolar pode contribuir para a


formação humana, visto sob um conceito amplo, além de contribuir para a
desjudicialização dos conflitos, promover o acesso à justiça, ser meio adequado de
resolução de conflitos e contribuir para promover a pacificação social.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado


Federal, 1988.
______. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 125 de 2010, que dispõe sobre
a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no
âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. CNJ. Brasília, 2010. Disponível
em: <http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/Resolucao_n_125-
GP.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2018.
______. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 225 de 2016, que dispõe sobre
a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras
providências. CNJ. Brasília, 2016. Disponível
em:<http://www.cnj.jus.br/images/atos_normativos/resolucao/resolucao_225_310520
16_02062016161414.pdf>. Acesso em: 09 out. 2018.
______. Conselho Nacional de Justiça. Mediação de conflitos nas escolas em busca
de pacificação social. CNJ. Brasília, 2017. Disponível em:<
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85116-mediacao-de-conflitos-nas-escolas-em-
busca-da-pacificacao-social>. Acesso em: 09 out. 2018.
______. Código de Processo Civil. Instituído pela Lei n. 13.105 de 16 de março de
2015. 17. ed. Organizador: Editora Saraiva. São Paulo: Saraiva. 2017.
______. Lei n. 13.140 de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre
particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de
conflitos no âmbito da administração pública; altera a Lei n o 9.469, de 10 de julho de
1997, e o Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972; e revoga o § 2o do art. 6o da Lei
no 9.469, de 10 de julho de 1997. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm>Acesso
em: 21 jul. 2018.
______. Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>Acesso em: 03 out. 2018.
CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro:
Forense, 2008.
CAMPOS, Regina Célia Pereira. A formação humana: reflexões sobre educação e
trabalho. In: COELHO, Maria Inês de Matos; COSTA, Anna Edith Bellico da. (Org.). A
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CHRISPINO, Alvaro; CHRISPINO, Raquel S. P. A mediação do conflito escolar. 2.
ed. São Paulo: 2011.
ZAPPAROLLI, Célia Regina; KRÄHENBÜHL, Mônica Coelho. Negociação,
mediação, conciliação, facilitação assistida: prevenção, gestão de crises nos
sistemas e suas técnicas. São Paulo: LTr, 2012.
793

APANHADO HISTÓRICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO


PROFISSIONAL NO BRASIL: DUALIDADE ESTRUTURAL E ESPECIALIZAÇÃO DA
FORÇA DE TRABALHO
HISTORICAL ASSESSMENT OF PUBLIC POLICIES OF PROFESSIONAL
EDUCATION IN BRAZIL: STRUCTURAL DUALITY AND SPECIALIZATION OF THE
WORKFORCE

Matheus Silveira de Souza

Resumo: O artigo objetiva realizar uma breve análise histórica das políticas públicas
de educação profissional e tecnológica (EPT) no Brasil, passando, para tanto, pela
República Velha, Estado Novo e Ditadura Militar de 1964. Assim, inicia-se a análise
pela criação de 19 Escolas de Aprendizes e Artífices pelo Presidente Nilo Peçanha,
em 1909, fato que é considerado um marco à criação da Rede Federal de Educação
Profissional e Tecnológica. A abordagem histórica demonstra que a EPT foi marcada,
durante o século XX, por um caráter assistencialista e por uma dualidade estrutural,
que oferecia ensino propedêutico aos filhos da classe dirigente e educação técnica às
camadas populares da população. O método utilizado para alcançar os objetivos foi a
revisão bibliográfica. Por fim, para sabermos com mais clareza onde estamos na EPT
é necessário compreendermos de onde viemos, fato que é melhor esclarecido a partir
de uma análise história sobre a educação profissional.
Palavras-chave: Educação profissional; políticas públicas; dualidade estrutural

Abstract: The article aims to carry out a historical analysis of the public policies of
vocational and technological education (VTE) in Brazil, passing, for that, by the Old
Republic, Estado Novo and Dictatorship of 1964. The analysis is initiated by creation
of 19 Schools of Apprentice and Artificers by Nilo Peçanha in 1909, a fact that is
considered a milestone in the creation of the Federal Network of Vocational Education.
The historical approach demonstrates that the VTE was marked during the 20th
century by a charitable and structural duality that offered propedeutic teaching to the
children of the ruling class and technical education to the poor population. The method
used to reach the objectives was the bibliographic review. Finally, to know more clearly
where we are at VTE, it is necessary to understand where we have come from, a fact
that is best clarified from a historical analysis of vocational education.
Key-words: Vocational education; public policies; structural duality

1. INTRODUÇÃO

A história da formação da educação profissional no Brasil é marcada,


inicialmente, por políticas assistencialistas e corretivas por parte do Estado, voltadas
menos para a valorização do trabalho e suas técnicas, e mais para a “restauração
moral” de menores em situação de rua, a partir do ensino de ofícios manuais. Além
disso, há uma forte dualidade na história da educação brasileira, de modo que a
educação propedêutica e clássica era voltada aos filhos das classes dirigentes,
enquanto os filhos dos trabalhadores e das camadas populares tinham acesso apenas
à educação técnica1.
Tendo essa problemática como pano de fundo, o presente trabalho abordará,
brevemente, a educação profissional na República Velha, no Estado Novo e no

1
MOURA, Dante Henrique. Educação Básica e Educação Tecnológica: dualidade histórica e perspectiva de integração. Holus,
ano 23, vol. 2. Natal: 2007. Disponível em: <http://goo.gl/tPBJV>. Acesso em: 15 de Maio de 2018.
794

Regime Militar de 1964, buscando desvelar as marcas que essa formação deixou na
educação profissional do país.

2. METODOLOGIA

A presente pesquisa vale-se do método dedutivo e se desenvolve por meio de


pesquisa bibliográfica. Dessa forma, utiliza-se das obras que abordam a história da
educação profissional no Brasil, a partir de uma revisão de literatura, guardando foco
para as obras de Luiz Antônio Cunha.

3. DESENVOLVIMENTO

3.1 ANECEDENTES HISTÓRICOS

O primeiro estabelecimento destinado à educação profissional no Brasil foi


criado em 1809, denominado Colégio das Fábricas, sendo este constituído de artífices
e aprendizes vindos de Portugal. O referido colégio se dedicava ao ensino
manufatureiro. Importante destacar que a criação desse e de outros estabelecimentos
só se tornaram possíveis em virtude da publicação de um alvará em 1º de abril de
1808 que revogava o de 1785, que não permitia a instalação de manufaturas no
Brasil2. Esse decreto do século XVIII proibia a existência de fábricas no país, pois a
riqueza de produtos do Brasil, se fosse alinhada com a existência de fábricas e
indústrias, traria o risco de emancipação da colônia em relação à metrópole.
Entre os anos de 1840 e 1856 são criadas dez Casas de Educandos e Artífices,
destinadas ao ensino de ofícios manufatureiros inspirados na aprendizagem militar,
de regime hierarquizado e disciplinar. Ressalta-se que esses primeiros locais de
aprendizagem de ofícios possuíam um caráter assistencialista, com o propósito de
tirar da mendicância e criminalidade crianças e jovens, ensinando-lhes alguma
habilidade manual.

3.2 REPÚBLICA VELHA E A CRIAÇÃO DAS ESCOLAS DE APRENDÍZES E


ARTÍFICES

O caráter assistencialista da EPT era tão forte que o Juizado de Órfãos era o
órgão responsável pela supervisão da educação profissional até 1889. Todavia, cinco
meses após a proclamação da República, foi criado o Ministério da Instrução Pública,
Correio e Telégrafos, que mantinha funções relacionadas à instrução pública e ao
ensino profissional, ocupando o lugar do Juizado de Órfãos.
Vale destacar que essa alteração de comando institucional revela alguma
mudança na visão dos governantes em relação a esse segmento do ensino. Embora
ainda houvesse forte influência do caráter assistencialista do ensino técnico no país,
começou a surgir uma preocupação com a qualificação dos trabalhadores para a
indústria que começava, a passos curtos, a ser criada.3
Nilo Peçanha teve enorme importância para a EPT no século XX. Já em 1909,
como Presidente da República, foi responsável pelo decreto 7.566 de 23 de setembro,
que criou 19 escolas de Aprendizes e Artífices, uma em cada estado do país. Essas
escolas possuíam uma sistemática própria, com metodologia, processo seletivo para

2
CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
3
CORDÃO, Francisco Aparecido. Educação profissional no Brasil: síntese histórica e perspectivas. São Paulo: Editora SENAC
São Paulo, 2017
795

ingresso e currículo que se diferenciavam de todas as demais instituições de EPT


presentes no Brasil4. Há uma peculiaridade na criação das Escolas de Aprendizes e
Artífices (EAA) no que diz respeito a sua centralidade administrativa. O seu
funcionamento era de responsabilidade da União e todas as EAA’s eram
regulamentas por uma mesma legislação, constituindo o primeiro sistema educacional
de abrangência nacional.5
Pode-se apontar que tanto a criação das cinco escolas profissionais no Rio de
Janeiro, enquanto Nilo Peçanha era governador daquele estado, como as 19 escolas
de Aprendizes e Artífices, como Presidente da República, tinham uma função em
comum: preparar a força de trabalho para as demandas da nascente industrialização
do país. A exposição de motivos encontrada no Decreto 7.566 de 23 de setembro de
1909 demonstra a funcionalidade do EPT para a época:

“Considerando: que o aumento constante da população das cidades exige


que se facilite às classes proletárias os meios de vencer as dificuldades
sempre crescentes da luta pela existência: que para isso se torna
necessário, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o
indispensável preparo técnico e intelectual, como faze-los adquirir hábitos
de trabalho profícuo, que os afastara da ociosidade ignorante, escola do
vicio e do crime; que é um dos primeiros deveres do Governo da Republica
formar cidadãos uteis à Nação: Decreta”

Pela descrição da disposição normativa podemos perceber que a educação


profissional durante a República Velha, ainda que tivesse obtido um considerável
avanço ao acrescentar a ideia de qualificação para o trabalho, guardava um caráter
assistencialista e de fragmentação da educação, considerando que o preparo para o
exercício de atividades manuais era função exclusiva das classes “desfavorecidas”.
Podemos apontar, ainda, uma certa inclinação do decreto em considerar as classes
populares, em alguma medida, inclinadas à “ociosidade e à escola do vício e do
crime”.
Sobre a composição geográfica da EPT, ressaltamos que a distribuição de uma
escola em cada estado da federação não correspondia à realidade da expansão
industrial no Brasil, tendo em vista que o desenvolvimento da industrialização estava
concentrado no Centro-Sul, especialmente em São Paulo. Dessa forma, houve uma
desproporção entre o número de alunos do ensino profissional e o número de
operários em cada estado. Para ilustrar essa incongruência, é possível citar os casos
extremos como São Paulo, que possuía 326 alunos e 24.186 operários e Espírito
Santo, que possuía 4 alunos e 90 operários.6

3.3 ESTADO NOVO

A Constituição de 1934, que trazia grandes avanços para a educação no Brasil,


com garantias de vitaliciedade e inamovibilidade aos professores, orçamento
vinculado para investimento no ensino pelos entes federativos, entre outras
disposições, durou apenas 3 anos, sendo revogada com a instauração do Estado
Novo e com a Constituição outorgada de 1937. A preocupação de Getúlio Vargas
nesse período, com a educação profissional, é visível, conforme observamos na
própria Constituição do Estado Novo:

4
CUNHA, Op. Cit.
5
CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização. São Paulo: Editora Unesp, 2000
6
CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização. São Paulo: Editora Unesp, 2000
796

Art. 129. (...) O ensino pré-vocacional profissional destinado às classes


menos favorecidas é em matéria de educação o primeiro dever de Estado.
Cumpre-lhe dar execução a esse dever, fundando institutos de ensino
profissional e subsidiando os de iniciativa dos Estados, dos Municípios e
dos indivíduos ou associações particulares e profissionais.

Esse artigo estabelecia, ainda, como dever das industrias e sindicatos


econômicos a criação de escola de aprendizes, destinadas aos filhos dos operários.
Dessa forma, podemos visualizar que, embora já começasse a aparecer a
funcionalidade da educação profissional para o aprimoramento da força de trabalho,
o caráter fragmentário dessa educação era evidente, pois além de destinar o ensino
técnico às classes “menos favorecidas”, traçava um universo de possibilidades
profissionais iguais às proles das classes populares, ao instituir o dever dos industriais
em criar uma escola técnica aos filhos dos operários. Aqui, a educação assume um
papel não muito de formação humana, mas sim de reprodução da estrutura de
classes.7
Uma das principais alterações da lei orgânica no Estado Novo foi o
deslocamento de todo o ensino profissional para o ensino médio. Assim, as próprias
escolas primárias tinham a função de selecionar os alunos com mais capacidade
pedagógica para a continuidade dos estudos. Nesse sentido, iam para a escola
técnica os alunos menos preparados para o prosseguimento da escolarização, devido
a sua origem social e cultural.
Em 1931 foi criado no Brasil o Instituto de Organização Racional do Trabalho,
inspirado por Taylor, objetivando superar a crise a partir de uma nova organização do
sistema de produção. Essa nova organização pregava um barateamento e aceleração
da educação profissional. Assim, foram adotadas novas técnicas de organização do
trabalho. Os exames psicotécnicos, por exemplo, eram essenciais para identificar
onde cada trabalhador deveria estar, bem como para evitar a contratação de
agitadores, tais como trabalhadores despedidos de outras empresas por motivos
ideológicos. Embora o Instituto de Organização Racional do Trabalho tenha sido
criado antes da instauração do Estado Novo, destacamos esse instituto exerceu
grande influência nas políticas de educação da ditadura getulista.
Nesse sentido, um dos projetos levados a cabo pelo Estado Novo foi a
industrialização do Brasil, sendo dessa época a criação do Companhia Vale do Rio
Doce e da usina de Volta Redonda. Durante esse período também há um avanço da
produção industrial frente à produção agrícola, de tal forma que em 1920 a produção
agrícola era de 79% e a industrial de 21%. Já em 1940 essa taxa equipara-se para
57% e 43% respectivamente8. Nesse contexto de crescente industrialização fica clara
a necessidade de força de trabalho qualificada para fazer frente às necessidades de
produção do país.
Por fim, houve uma disputa de interesses durante a regulamentação do ensino
profissional no Estado Novo, principalmente no final de 1939. Assim, uma disputa que
antes era feita entre o Ministério da Educação e Saúde, liderado por Capanema, e
grupos que reivindicavam uma educação liberal progressista, desloca-se para uma
disputa entre o Ministério da Educação e Saúde e o Ministério do Trabalho, associado
ao empresariado, que defendem uma concepção pragmática da educação

7
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis:
Vozes, 2008 [1970].
8
CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização. São Paulo: Editora Unesp, 2000
797

profissional. Relevante destacar o conteúdo existente na ideia do empresariado,


representada por Roberto Simonsen, presidente da FIESP à época, da necessidade
de oferecer uma educação moral e cívica aos operários, como forma de “corrigir os
desvios do caráter dessa classe”. Assim, não é necessário apenas qualificar
profissionalmente os trabalhadores, mas também modelar sua moral e caráter em
sintonia aos interesses da produção. No fundo, a disputa entre esses dois grupos
representava o conflito sobre quem tomaria as rédeas da educação moral e
profissional do trabalhador: o Estado ou o empresariado

3.4 A COMPULSORIEDADE DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NA DITADURA DE


1964

O ensino de 1º e 2º grau passou por uma profunda reforma durante o regime


militar, com a aprovação da Lei 5.692/71, que entre várias outras disposições, tornou
obrigatório e compulsório o ensino profissional para os estudantes do 2º grau (ensino
médio), impondo que em um curto prazo todas as escolas públicas e privadas
deveriam tornar-se profissionalizantes.
Há uma faceta dupla em relação às ideias que levaram os militares à
concretização do caráter compulsório do ensino profissional. Explica-se. Os militares
afirmavam em seus discursos que a reforma permitiria que o Brasil formasse uma mão
de obra especializada e qualificada para atender às demandas de mercado no país.
Assim, um aluno que terminasse o ensino médio já sairia habilitado para ingressar no
mercado de trabalho e as indústrias poderiam contar com uma força de trabalho
qualificada para o processo produtivo. Entretanto, segundo Cunha, o principal objetivo
do governo era garantir a diminuição da demanda pelo ensino superior, a partir da
terminalidade do 2º grau, tendo em vista que o governo sofria com a pressão dos
excedentes do ensino superior9. Um dos motivos desse excedente de alunos
aprovados ocorria porque o vestibular não era classificatório, de modo que todos os
estudantes que tivessem determinada nota poderiam adentrar à universidade. Com a
reforma, os estudantes que terminassem o 2º grau poderiam ingressar no mercado de
trabalho sem a necessidade de realizar uma graduação para obter uma habilitação
profissional, o que poderia diminuir a procura pelas universidades.
Nesse sentido, a Lei 5.692/71 dispunha no §1º do art.5º que:

“Observadas as normas de cada sistema de ensino, o currículo pleno terá


uma parte de educação geral e outra de formação especial, sendo
organizado de modo que:
a) no ensino de primeiro grau, a parte de educação geral seja exclusiva
nas séries iniciais e predominantes nas finais;
b) no ensino de segundo grau, predomine a parte de formação especial.”

Assim, o ensino de 1º grau teria uma parte majoritária do currículo voltada para
a educação geral, mas já com algum grau de formação especial, enquanto o 2º grau
focaria especificamente na formação especial, termo usado para se referir ao ensino
profissional. A LDB de 1971 ainda apontava que a parte de formação especial do
currículo “terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho, no
ensino de 1º grau, e de habilitação profissional, no ensino de 2º grau” (art. 5º, §2º, a).
Dermeval Saviani aponta que essa ideia de educação, elaborada pela ditadura
civil militar, tinha forte inspiração na Teoria do Capital Humano (TCH), pautada nos

9
CUNHA, L. A. O legado da ditadura para a educação brasileira. Educação e Sociedade, Campinas, v. 35, n. 127, p. 357 –
377, abr-jun. 2014. Disponível em: www.cedes.unicamp.br
798

princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, bem como vinculada a uma


visão produtivista da educação10. Dessa forma, a educação já não é um fim em si
mesmo e um instrumento de formação humana, mas sim uma espécie de criado a
serviço do mercado de trabalho. A TCH considera o valor econômico da educação,
equivalente a um bem de produção a ser investido para potencializar o
desenvolvimento econômico do país. Assim, deixa em segundo plano os agentes
(professor e aluno) e dá prioridade para os meios e recursos, pautando-se sempre na
busca pela eficiência, racionalidade e produtividade, com o objetivo de obter o máximo
de resultados com o mínimo de dispêndio11.
Essa concepção de educação remonta os apontamentos de Marx sobre o
trabalhador se transformar, dentro do sistema capitalista, em mais uma mercadoria,
necessária para a reprodução de outras mercadorias. A TCH recupera essa lógica ao
considerar o indivíduo como um capital a ser investido, uma mercadoria que deve ser
qualificada para possibilitar a maximização da produção de outras mercadorias. Nesse
ponto, podemos nos perguntar se os seres humanos estavam trabalhando com
máquinas ou trabalhando como máquinas.12

CONCLUSÃO

A análise histórica do ensino profissional e tecnológico (EPT) no Brasil


evidencia a existência de uma educação dual, sendo que o ensino propedêutico e
clássico era voltado para as classes dirigentes, que ocupariam cargos de destaque na
hierarquia social, enquanto o ensino profissional era destinado aos filhos dos
operários, para exercerem funções manuais, muitas vezes desvinculando esse ensino
da transmissão de uma cultura geral13. Assim, a própria educação torna-se um
mecanismo de reprodução das classes sociais. O caráter assistencialista sempre
esteve muito presente durante a formação da EPT, sendo que apenas na metade do
século passado a educação profissional começou a ser pensada, de forma mais
consistente, como uma ferramenta de qualificação dos trabalhadores e do
aprimoramento de suas técnicas. Embora a difusão do EPT fosse de elevada
importância para a qualificação dos operários, a valorização do trabalho intelectual em
detrimento do trabalho manual, bem como a delimitação de um público alvo específico
para a EPT no século XX demonstrava uma necessidade de reconstrução da própria
lógica do ensino profissional.
Uma das alternativas apresentada pelos estudiosos14 do assunto para superar
essa dualidade estrutural é a integração do ensino médio e do EPT e a constante
aproximação e construção de uma educação politécnica, que defenda a vinculação
do trabalho produtivo com a educação, ou em outras palavras, de formação geral com
formação profissional. Assim, pretende-se articular a formação geral e profissional
com a produção material, objetivando superar a dualidade histórica entre trabalho
manual e trabalho intelectual, propiciando a todos a compreensão integral do processo
produtivo.

REFERÊNCIAS

10
SAVIANI, Dermeval. O legado educacional no regime militar. Caderno Cedes, vol. 28, n. 76, pag. 291-312. Campinas, 2008.
11
PIMENTEL, F. C.; MORAES, R. A. A teoria do capital humano e a concepção produtivista na educação brasileira: EAD em
foco. Revista Contrapontos – Eletrônica. V. 17. N. 2 - Itajaí, Abr-Jun. 2017
12
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos; tradução Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010.
13
MOURA, Dante Henrique. Educação Básica e Educação Tecnológica: dualidade histórica e perspectiva de integração. Holus,
ano 23, vol. 2. Natal: 2007. Disponível em: <http://goo.gl/tPBJV>. Acesso em: 15 Nov. 2015.
14
MOURA, Dante. Op. Cit.
799

CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização. São


Paulo: Editora UNESP, 2000.
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2005.
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Profissional de saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2009. Disponível em:
http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/trapriedu.html
CORDÃO, Francisco Aparecido. Educação profissional no Brasil: síntese histórica e
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ditadura-para-a-educacao-no-brasil/
800

AS METODOLOGIAS LÚDICAS E AS NOVAS FRONTEIRAS NA EDUCAÇÃO


SUPERIOR
THE PLAYFUL METHODOLOGIES AND THE NEW BORDERS IN HIGHER
EDUCATION

Camila Ferrara Padin


Michelle Asato Junqueira

Resumo: A busca pelo amplo acesso à educação é o elemento central de


fortalecimento da República Federativa do Brasil. Não apenas como eixo estruturante
de promoção da cidadania, como também chave fundamental desenvolvimento social,
econômico, cultural e científico. Propõem-se esta pesquisa a estudar um tema que
compõe a órbita da educação superior, as metodologias de ensino e, dentro desse
universo, a aplicação de metodologias lúdicas para o desenvolvimento do
conhecimento dos jovens e adultos universitários. Essas práticas pedagógicas são
muito utilizadas na educação infantil e apresentam resultados muito positivos no
desenvolvimento das crianças tanto a nível técnico quanto social. A proposta desse
estudo, portanto, é entender quais seriam as principais dificuldades encontradas pelos
educadores do ensino superior quando da utilização de atividades lúdicas como
método de aprendizagem. A problemática a ser desenvolvida neste trabalho se
respalda em metodologia hipotético-dedutiva com procedimento de cunho
bibliográfico de forma a permitir a concreta conclusão a que se propõe o presente
estudo.
Palavras-chaves: educação lúdica, ensino superior, metodologias de ensino.

Abstract: The pursue for broad access to education is the central element of the
strengthening of the Federative Republic of Brazil. Not only as a structuring axis for
the promotion of citizenship, but also a fundamental element of social, economic,
cultural and scientific development. This research is proposed to study a theme that
composes the orbit of higher education, the teaching methodologies and, within this
universe, the application of playful methodologies for the development of knowledge
of university students and adults. These pedagogical practices are widely used in early
childhood education and present very positive results in the development of children
both at a technical and social level. The proposal of this study, therefore, is to
understand what would be the main difficulties encountered by higher education
educators when using playful methodologies as a learning method? The problem to be
developed in this work is supported by a hypothetical-deductive methodology with a
bibliographic procedure in order to allow the concrete conclusion that the present study
proposes.
Key words: playful methodologies; higher education; teaching methodologies.

INTRODUÇÃO

A crise enfrentada atualmente pelo sistema de ensino superior pode ser


resumida em três principais eixos, quais sejam, o aumento dos alunos que desistem
do curso; a diminuição da retenção de conteúdo pelo aluno em aulas meramente
expositivas e a formação de alunos com pouca ou quase nenhuma base para a vida
profissional.
801

O modelo atual de ensino inspirado em elementos retóricos sofistas em que o


aluno é considerado desprovido de qualquer saber e a construção de seu
conhecimento somente seria possível através do professor, está em amplo declínio.
Com a crescente inserção de tecnologias diversas nos ambientes acadêmicos,
não é mais possível crer que as salas de aula se limitariam aos laboratórios de
informática e projeção de vídeos. A construção do conhecimento vai além da relação
aluno-professor e é a partir dessa concepção que novas formas de ensino jurídico têm
sido constantemente desenvolvidas.
Sob este prisma, portanto, é que as metodologias lúdicas têm ganhado espaço
nas abordagens educativas do ensino superior. A utilização de jogos e dinâmicas
coletivas nas salas de aula está permeando a quebra de inúmeros paradigmas
educacionais que pareciam intransponíveis ou, até mesmo, inadequados.
A problemática a ser desenvolvida neste trabalho que se respalda em
metodologia hipotético-dedutiva com procedimento de cunho bibliográfico e tem como
elemento central de investigação a identificação dos maiores impasses enfrentados
pelos educadores do ensino superior na aplicação de atividades lúdicas como método
de aprendizagem?
Segundo Covos, Rodrigues e Ouchi a aplicação de atividades lúdicas em sala
de aula dão ensejo a algumas dificuldades enfrentadas pelos docentes como: a falta
do conhecimento do docente sobre o jogo didático; orientação inadequada sobre o
jogo; falha no estabelecimento de regras; e atuação inadequada do docente como
medidor; nem todos os conceitos podem ser explicados por meio dos jogos; se o
professor interferir com frequência, perde a ludicidade1
Esse novo modelo de aprendizagem pressupõe a quebra total de qualquer
barreira entre o detentor do conhecimento e a forma com que ele é reproduzido. O
aluno torna-se elemento ativo neste processo que envolve aprendizagem,
experimentação, desenvolvimento de novas habilidades por meio do raciocínio lógico,
a fim de reinventar e solidificar seu conhecimento, promovendo uma valorização de
seu protagonismo na construção pedagogia.
A inserção de práticas ativas no ambiente pedagógico confere mais
produtividade ao desempenho acadêmico, promovendo um ambiente colaborativo,
participativo e engajador capaz de otimizar o tempo em sala de aula e estimular os
professores a renovarem seu método de ensino.
A finalidade de instituir novos métodos de ensino em que o aluno é colocado
em posição central, decorre da urgência de reunir esforços destinados à melhoria da
educação, a formação de profissionais mais capacitados e cidadãos mais engajados.

DESENVOLVIMENTO

Segundo Almeida, o lúdico tem sua origem na palavra latina ‘ludus’ que significa
‘jogo’. O estudo do lúdico em sua essência passou a ser reconhecido como um
aspecto essencial da psicofisiologia do comportamento humano, de modo que a
definição da palavra passou abranger não somente a atividade lúdica em si como
também um estudo das próprias variantes do comportamento humano.2

1
COVOS, Jacqueline Sardela; COVOS, José Fernando; RODRIGUES, Fernanda Ribeiro Rodrigues; OUCH, Janaina Daniel. O
Novo Perfil de Alunos no Ensino Superior, e a Utilização de Jogos Lúdicos para Facilitação do Ensino
Aprendizagem. Teresina: Revista Saúde em Foco, 2018. Disponível em:
<http://unifia.edu.br/revista_eletronica/revistas/saude_foco/artigos/ano2018/007_O_NOVO_PERFIL_DE_ALUNOS_NO_ENSIN
O_SUPERIOR.pdf>. Acesso em: 25 out. 2018.
2
ALMEIDA, Anne. Ludicidade como instrumento pedagógico. Cooperativa do Fitness, Belo Horizonte, jan. 2009. Seção
Publicação de Trabalhos. Disponível em: <http://www.cdof.com.br/recrea22.htm>. Acesso em: 21 out. de 2018.
802

A aplicação dos jogos educativos, segundo Nunes Almeida, nasce com os


colégios jesuítas, que modificaram o paradigma do uso de jogos exclusivamente para
o universo infantil de forma a valorar o comportamento humano por meio dessas
práticas3.
No contexto brasileiro, a atividade lúdica já foi incorporada na atividade
legislativa desde 1959 quando foi reconhecida sua relevância pela Organização das
Nações Unidas (ONU) por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos que
afirma em seu artigo 7º que toda criança terá direito de brincar e divertir-se cabendo
à sociedade e às autoridades públicas garantir a ela o exercício pleno desse direito 4.
Inobstante a Constituição brasileira de 1988 assegura no art. 227 a educação
e o lazer as crianças brasileiras que é complementado pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente5 que em seu art. 4º determina que é dever da família, da comunidade, da
sociedade e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização e à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária.
Ocorre que, quanto se pensa em educação lúdica, a primeira imagem é sempre
aquela atrelada a aspectos infantis e as crianças em geral, no entanto, afirma Paulo
Freire que quanto mais o adulto experimenta a ludicidade maior será a possibilidade
de conhecer seus aspectos íntimos, incluindo capacidades e limitações, pois o adulto
que aprende de forma lúdica resgata sentimentos da infância e abre espaço para
maior internalização do conteúdo que é proposto pela atividade.6
Ghelli7 afirma que o verdadeiro processo de aprendizagem do aluno
universitário ocorre quando há a construção, descoberta e incorporação dos
elementos aprendidos na sua forma de pensar e ver determinada situação.
Complementa ainda afirmando que o estudante tem uma tendência a buscar
significados que possibilitem reconstruir seu conhecimento. De forma que quando as
atividades são bem conduzidas permitem que o professor perceba o processo de
aprendizado do discente, colocando-o como elemento central nesse processo.
O grande desafio, portanto, está na implementação dessas práticas no Ensino
Superior, razão pela qual se propõe a investigar quais seriam os maiores impasses
enfrentados pelos educadores do ensino superior na aplicação de atividades lúdicas
como método de aprendizagem?
Segundo Militão e Militão8 alguns sentidos devem ser considerados na
preparação de um jogo: habilidade e idade dos participantes, ambiente de realização,
riscos, segurança, material utilizado e duração. Ou seja, é preciso adequar o método,
conteúdo do jogo, mensurar o nível de riscos, o que se vai utilizar e duração. São
precauções que o facilitador deve tomar para não prejudicar os resultados e
conclusões. Com isso, os participantes precisam estar inteiros, literalmente,
envolvidos até o final.

3
ALMEIDA, Paulo Nunes. Educação lúdica: técnicas e jogos pedagógicos. São Paulo: Loyola, 2003
4
ONU - Organização das Nações Unidas no Brasil, Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso em 24 de out. de 2018.
5
BRASIL. Constituição (1990). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e
dá outras providências. Brasília. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069Compilado.htm>, acesso em
24 out. de 2018.
6
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. São Paulo Paz e Terra, 1979. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.
7
GHELLI, Guilherme Marcos. A Construção do saber no ensino superior. Cadernos FUCAMP, v. 3, n. 3, 2004.
Disponível em: <http://www.fucamp.edu.br/wp-content/uploads/2010/10/5-A-
constru%23U00c3%23U00a7%23U00c3%23U00a3o-do-saber-Guilherme.pdf>. Acesso em: 24 out. 2018.
8
MILITÃO, Albigenor; MILITÃO, Rose. Jogos, dinâmicas e vivências grupais. Rio de Janeiro: Qualimark, 2000, p. 27.
803

Desta forma, o objetivo geral desse trabalho é analisar a importância do lúdico


como ferramenta didática no ensino superior, bem como destacar as dificuldades
enfrentadas pelos docentes. A estrutura a que se propõe o presente trabalho é
apresentar um panorama sócio histórico da ludicidade; entender qual seria a
importância da utilização de ferramentas lúdicas no ensino superior e, por fim, mapear
os principais desafios que os docentes enfrentam quando da utilização dessas
ferramentas, propondo, assim, uma metodologia participativa que privilegia a atuação
coletiva e ativa.

CONCLUSÃO

A educação funde-se, ao mesmo tempo, em conservação e transformação de


valores e práticas que uma determinada sociedade, deliberadamente, decide
transmitir às gerações futuras9. A educação é conceituada pela sociologia, analisada
pela pedagogia e associada a direito no âmbito das ciências jurídicas. Tamanha é a
sua amplitude, que não se nega a sua essencialidade ao ser humano10
Não há desenvolvimento social sem o amplo acesso à educação e, de nada
adianta, promover o amplo acesso à educação sem a conjugação de esforços para
que as metodologias aplicadas sejam correspondentes aos anseios dos jovens e
adultos, focando, principalmente, na efetividade do aprendizado individual e coletivo.
Tem-se por assertiva que o resultado esperado quando se empregam
metodologias lúdicas é a verdadeira retenção do conhecimento por meio de atividades
que conectam aspectos conceituais, com dinâmicas reflexivas e coletivas, de modo a
permitir que o aluno extrapole sua habilidade essencialmente teórica para a
experimentação de atividades em grupo, atuando ora como protagonista e ora como
colaborador de um processo contínuo de aprendizagem.
Essa mudança de paradigma dentro das salas de aula, colocando o aluno como
ponto focal de desenvolvimento, permite um real avanço para a pedagogia e a
descoberta de novas formas de ensinar que vão muito além das metodologias
tradicionalmente empregadas em salas de aula. A transformação dos novos alunos
para serem cidadãos atuantes, vai além da formação do bacharelado. As
Universidades devem sim se preocupar com o conteúdo que é oferecido em sala de
aula, mas também se preocupar em como ele é transmitido para garantir o verdadeiro
aprendizado do aluno e a incorporação destes elementos em seu cotidiano.
Deve-se pensar a educação como um processo acumulativo que visa à
formação para a cidadania, a qualificação para o trabalho e, consequentemente,
contributivo para o desenvolvimento econômico11.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Anne. Ludicidade como instrumento pedagógico. Cooperativa do


Fitness, Belo Horizonte, jan. 2009. Seção Publicação de Trabalhos. Disponível em:
<http://www.cdof.com.br/recrea22.htm>. Acesso em: 21 out. de 2018.
ALMEIDA, Paulo Nunes. Educação lúdica: técnicas e jogos pedagógicos. São
Paulo: Loyola, 2003

9
PINTO, Felipe Chiarello de Souza; JUNQUEIRA, Michelle Asato. Educação para o desenvolvimento: objetivo do Estado
Democrático e Social de Direito. Revista Direito e Justiça (URI), v. 14, p. 77, 2014. p. 78.
10
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Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, 2016. p. 15.
11
PINTO, Felipe Chiarello de Souza; JUNQUEIRA, Michelle Asato. Educação para o desenvolvimento: objetivo do Estado
Democrático e Social de Direito. Revista Direito e Justiça (URI), v. 14, p. 77, 2014. p. 78.
804

ARBACHE, Ana Paula. A Formação de educadores de pessoas jovens e adultos


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BRASIL. Congresso Nacional. Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe
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1988.
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Superior, e a Utilização de Jogos Lúdicos para Facilitação do Ensino
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PINTO, Felipe Chiarello de Souza; JUNQUEIRA, Michelle Asato. Educação para o
desenvolvimento: objetivo do Estado Democrático e Social de Direito. Revista Direito
e Justiça (URI), v. 14, p. 77, 2014. p. 78.
ONU - Organização das Nações Unidas no Brasil, Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Disponível em: <,https://nacoesunidas.org/wp-
content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>.
805

Grupo de trabalho:

DIREITOS DA CRIANÇA,
ADOLESCENTE, IDOSO E
ACESSIBILIDADE
Trabalhos publicados:

DIREITO À EDUCAÇÃO: SOLUÇÃO PARA O ADOLESCENTE EM CUMPRIMENTO


DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

DIVÓRCIO E DIREITO DA PERSONALIDADE: A PROTEÇÃO DO MENOR E O


PERFIL DO POSSIVEL ALIENADOR

ENFRENTAMENTO À CIBERPEDOFILIA PARA A PROTEÇÃO DA CRIANÇA E


ADOLESCENTE

GUARDA E O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

O QUE FAZ VOCÊ FELIZ? DIREITO À FELICIDADE COMO BASE DA


CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS INFANTO-JUVENIS NOS 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E TRANSINDIVIDUAIS DAS CRIANÇAS E


ADOLESCENTES E OS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E PARTICIPAÇÃO
APLICADOS EM PROL DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL DAS PRESENTES E
FUTURAS GERAÇÕES
806

DIREITO À EDUCAÇÃO: SOLUÇÃO PARA O ADOLESCENTE EM CUMPRIMENTO


DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA
RIGHT TO EDUCATION: SOLUTION FOR ADOLESCENT IN COMPLIANCE WITH
SOCIO-EDUCATIONAL MEASURES

Ariolino Neres Sousa Junior

Resumo: O tema em estudo se caracteriza como de importante relevância,


objetivando analisar o direito fundamental à educação, com base no ordenamento
constitucional e do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), e sua implicação
perante o cumprimento de medidas socioeducativas em prol do adolescente infrator.
Assim sendo, estabelece-se uma análise dialógica entre os dispositivos legais da
vigente Constituição com os da legislação infraconstitucional do ECA, a fim de discutir
quais daqueles dispositivos estão direcionados para dar solução e garantia no
cumprimento de medidas socioeducativas em virtude de eventuais práticas
infracionais realizadas por adolescentes infratores. Logo, as regras constitucionais
vigentes e da legislação do ECA ajudaram também a garantir o reconhecimento dos
direitos humanos em prol do adolescente infrator.
Palavras-chave: Adolescente infrator; Educação; Estatuto da Criança e do
Adolescente.

Abstract: The subject under study is characterized as of important relevance, aiming


to analyze the fundamental right to education, based on constitutional order and ECA
(Child and Adolescent Statute), and their implication in the fulfillment of socio-
educational measures for the adolescent offender. Therefore, a dialogical analysis is
established between the legal provisions of the current Constitution and those of ECA
infraconstitutional legislation,
in order to discuss which of those devices are targeted to give solution and guarantee
in the fulfillment of socio-educational measures due to possible infractional practices
carried out by teenage offenders. Soon, the current constitutional rules and ECA
legislation have also helped to guarantee the recognition of human rights in favor of
the adolescent offender.
Keywords: Adolescent offender; Education; Child and Adolescent Statute.

1. BREVE ABORDAGEM HISTÓRICA INTRODUTÓRIA DA EDUCAÇÃO

A história da educação no Brasil iniciou com a chegada dos padres jesuítas,


que vieram catequizar os índios, dando ênfase ao respeito e submissão que deviam
para Portugal. Posteriormente, fundaram suas escolas de ensino humanista e a
educação ficou a encargo da Igreja, visto que o Governo mantinha apenas as escolas
militares, ressaltando-se que a educação nesta fase não era popular.
Com a expulsão dos jesuítas do Brasil e a chegada da família real foi que
D.João deu impulso na educação, mas foi só com a proclamação da independência e
o início do Império que houve a popularização da educação com a criação de escolas
em todas as cidades, vilarejos e povoados.
A Educação foi incluída na Constituição de 1824, mas nada, além disso, foi
alçado neste campo. Somente com a Constituição de 1934 é que a Educação foi
tratada em um capítulo inteiro, demonstrando deste modo, o espírito democrático da
Constituição, mas estas determinações legais nem chegaram a ser implementadas,
807

pois com a Constituição de 1937 e Estado Novo Ditatorial, vários artigos foram
suprimidos.
Foi a Constituição de 1946 que proporcionou a primeira grande reforma do
ensino no Brasil. Com o Golpe Militar que culminou com a ditadura em nosso País,
veio a Constituição de 1969 que determinou a educação como direitos de todos e
dever do Estado.
A Ditadura Militar começou a demonstrar seus insucessos, fracassos e os
movimentos populares intensificaram-se no País caminhando para a promulgação da
Constituição Federal de 1988, que garantiu a educação como Direito Fundamental.
A Constituição Federal de 1988 incluiu a Educação no capítulo referente aos
Direitos Sociais no art. 6º e no art. 205 garantindo a Educação como direitos de todos
e dever do Estado e da Família, devendo ser incentivada pela sociedade, para que
haja o pleno desenvolvimento da pessoa, com o seu preparo para o exercício da
cidadania e trabalho, podendo-se afirmar que é um verdadeiro direito natural, pois é
inerente à pessoa humana, independentemente de sua idade ou condição social. No
dizer de José Celso Mello Filho:

A educação objetiva propiciar a formação necessária ao desenvolvimento


das aptidões, das potencialidades e da personalidade do educando. O
processo educacional tem por meta: (a) qualificar o educando para o
trabalho; e (b) prepará-lo para o exercício consciente da cidadania. O
acesso à educação é uma das formas de realização concreta do ideal
democrático (MELLO FILHO, 1986, p. 326).

Garantiu que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo


e que o seu não-oferecimento pelo poder público ou sua ofertas irregular, importa em
responsabilidade da autoridade competente, sendo esta uma das grandes inovações
Constitucionais, pois trouxe a possibilidade de se poder recorrer judicialmente para
garantia destes direitos de forma individual ou coletiva, através das ações civis
públicas, conforme assevera Maria Cristina de Brito Lima:

E em se tratando, portanto, de direito subjetivo, tem-se-no como uma


faculdade de obrigar, isto é, o credor (cidadão) tem o direito de exigir do
devedor (Estado) o cumprimento da obrigação, sendo certo que a coação,
no caso, far-se-á através do próprio Estado, pela sua função jurisdicional
(Poder Judiciário), que se incumbirá de interpretar a norma constitucional,
no tocante à educação básica, como determina a Carta Magna vigente
(LIMA, 2003, p. 30).

Como direito público subjetivo, a educação agregou dois princípios


fundamentais do Estado Democrático de Direito que são: a cidadania e a dignidade
da pessoa humana, visto que a sua concretização leva a garantia dos referidos
princípios.
Ressaltamos que não basta que este direito esteja expresso na Constituição,
sendo necessário que sejam gerados os efeitos que se espera para que esta garantia
não se torne letra morta, pois sabemos das grandes dificuldades enfrentadas por
nossa população para o acesso a educação, que ainda é muito limitada em termos
econômicos, tendo em vista a má distribuição de renda que leva a existência de um
verdadeiro abismo cultural. Vejamos:

O acesso à educação no país é ainda limitado como também seletivo em


termos econômicos, A estratificação social no Brasil é extremamente
concentrada, levando a diferenciações culturais. Em função destes
808

contrastes culturais e econômicos existentes, a distancia social e cultural


a ser percorrida pelos indivíduos é relativamente grande, o que torna a
mobilidade social uma questão complexa (LIMA, 2003, p. 30).

A grande parcela da população pobre de nosso país fica à parte desta garantia
constitucional da Educação para todos, pois sabemos que não basta que o poder
público ofereça vagas para o ensino público, necessário se faz que sejam criados
mecanismos para que as famílias carentes tenham condições de manter seus filhos
nos bancos escolares.
O desemprego e a luta pela sobrevivência, normalmente, levam a evasão
escolar e ao trabalho infantil, grandes chagas de nosso país que estampa em cada
sinaleira de nossas ruas as desigualdades sociais.
Esta população que não teve acesso à educação na idade ideal, bem como em
idade posterior acaba sem oportunidade de profissionalizar-se, aumentando o número
da grande massa de mão-de-obra desqualificada de nosso País, pois não possui o
mínimo necessário de educação para qualificação de seu trabalho.
Por fim, considerando a breve narração introdutória procedida alhures, de
natureza histórica educacional em sua contextualização, torna-se imperioso
esclarecer que o tipo de pesquisa utilizado foi a bibliográfica por intermédio da
investigação doutrinária relativa ao tema, a partir do uso de livros, artigos científicos e
legislações específicas. Com isso, tem-se a finalidade de compreender e analisar, por
intermédio de uma abordagem qualitativa, os motivos que têm levado para discussão
acerca da análise do direito fundamental à educação, com base no ordenamento
constitucional e do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), e sua implicação
perante o cumprimento de medidas socioeducativas em prol do adolescente infrator.
Para auxiliar esse estudo, o método utilizado é o comparativo, cuja função é discutir e
comparar importantes posicionamentos doutrinários relativos à temática central
proposta.

2. A EDUCAÇÃO SOB A ÓTICA DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE

O art. 227 da Constituição Federal, abaixo transcrito, consagrou a Doutrina da


Proteção Integral, considerando crianças, adolescentes e jovens sujeitos de direitos,
merecedores de prioridade absoluta, responsabilizando a família, a sociedade e o
Estado pela garantia dos direitos fundamentais desta parcela da população. Vejamos:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à


criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL,
2010, p. 116).

A Magna Carta adotou um conjunto de princípios expressos no artigo retro


citado, que reconhece e declara os direitos integrais e fundamentais das crianças,
adolescentes e jovens, sendo a primeira vez dentro da história pátria, que uma
Constituição consagrou Prioridade Absoluta, para estes sujeitos de direitos,
estabelecendo o dever de proteção e responsabilidade entre a família, a sociedade e
o Estado, sendo inseridos definitivamente no ordenamento jurídico nacional de forma
809

integral, onde foi reconhecida sua condição especial de pessoa em desenvolvimento,


estabelecendo a Doutrina da Proteção Integral.
Após o advento da nova Constituição, em 13 de julho de 1990, foi promulgado
o Estatuto da Criança e do Adolescente, que regulamentou os princípios expressos
no Art. 227 do referido diploma legal, não podendo ficar de fora das novas regras
estatutárias a garantia fundamental a educação.
O art. 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente garantiu o direito à educação
para esta parcela da população, preparando-a para o desenvolvimento da cidadania
e qualificação para o trabalho, assegurando-lhes ainda: a igualdade de condições para
o acesso e permanência na escola; o direito de ser respeitado por seus educadores;
o direito de contestar critérios avaliativos podendo recorrer às instâncias escolares
superiores; direito de organização e participação em entidades estudantis; o acesso à
escola pública e gratuita próxima de sua residência. Considerou ainda como direito
dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como a
possibilidade de participar das definições das propostas educacionais.
Determinou o art. 55 a obrigatoriedade dos pais ou responsáveis matricularem
seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino, elencando no art. 54 como deveres
do Estado à garantia do ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os
que a ele não tiveram acesso na idade própria; a progressiva extensão da
obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; o atendimento educacional
especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de
ensino; o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de
idade; o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada um; a oferta de ensino noturno regular,
adequado às condições do adolescente trabalhador e o atendimento no ensino
fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde. Ressaltando-se que o não
oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público ou sua oferta irregular importa
responsabilidade da autoridade competente, através de ações individuais ou coletivas
como já previa a Constituição Cidadão de 1988.
O art. 208 do Estatuto a seguir transcrito demonstra que não basta conceder
direitos para crianças e adolescentes, necessário se faz que sejam demonstrados
também os mecanismos, as condições e os instrumentos para que tais direitos
concedidos sejam assegurados e concretizados, preocupação esta também refletida
na Constituição Federal de 1988, conforme visto no tópico anterior.

Art. 208. Regem-se pelas disposições desta lei das ações de


responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao
adolescente, referentes, ao não-oferecimento ou oferta irregular:
I – o ensino obrigatório;
II – de Atendimento educacional especializado aos portadores de
deficiência;
III - de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis
anos de idade;
IV - de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;
V - de programas suplementares de oferta de material didático-escolar,
transporte e assistência à saúde do educando do ensino fundamental;
VI – de serviço de assistência social visando à proteção à família, à
maternidade, à infância e à adolescência, bem como ao amparo às
crianças e adolescentes que dele necessitem;
VII - de acesso às ações e serviços de saúde;
VIII - de escolarização e profissionalização dos adolescentes privados de
liberdade.
810

Parágrafo único. As hipóteses previstas neste artigo não excluem da


proteção judicial outros interesses individuais, difusos ou coletivos,
próprios da infância e da adolescência, protegidos pela Constituição e pela
Lei (BRASIL, 2010, p. 54/55).

A educação como prioridade absoluta para crianças e adolescentes, mais do


que um direito fundamental é um direito natural, inerente à pessoa humana, seja qual
for sua idade ou condição social, não podendo limitar-se ao ensino formal, mas deve
principalmente estar voltada para o exercício da cidadania e profissionalização.

3. A EDUCAÇÃO E O ADOLESCENTE EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA


SOCIOEDUCATIVA

A Doutrina da Proteção Integral, preceituada pelo Estatuto da Criança e do


Adolescente, trouxe um novo modelo de responsabilização do adolescente a quem for
atribuída à autoria de ato infracional, através da aplicação de medidas sócio-
educativas.
Dentro desta nova ótica, o Art. 112 do Estatuto elencou as medidas sócio-
educativas que podem ser aplicadas ao responsabilizar os adolescentes – sujeitos de
direitos - a quem for atribuída à autoria de ato infracional, que é entendido como toda
conduta descrita como crime ou contravenção penal, nos termos do Art. 103 do citado
diploma legal. Essas medidas são diferenciadas em um grupo privativo de liberdade
(internação e semiliberdade) e outro onde não há a privação de liberdade
(advertência, reparação de dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade
assistida e medidas protetivas), devendo ser aplicadas de acordo com a capacidade
do adolescente de cumpri-la, as circunstâncias do ato e a gravidade da infração,
destacando que compete ao Poder Judiciário à aplicação e o controle da execução
das medidas sócio-educativas, velando pelo seu cumprimento que tem por
pressuposto a existência de programas adequados para inserção do adolescente e
que por ser um processo sócio-educativo, a educação desempenha papel relevante
em seu desenvolvimento.
Ressaltamos que a aplicação de uma medida sócio-educativa a um
adolescente a quem foi atribuída à autoria de ato infracional, tem o escopo de
socializá-lo através de um processo educativo, devendo prestar-lhe atendimento
psicossocial, pedagógico, profissionalizante e que leve a sua reinserção social.
Não podemos perder de vista que a educação em sentido amplo abrange tanto
o ensino regular, como as atividades educativas informais e até mesmo quando são
aplicadas medidas sócio-educativas aos adolescentes que passam pelo processo de
socialização.
Destacamos que os adolescentes a quem for determinado o cumprimento de
uma medida sócio-educativa, devem passar pelo processo de socialização e de
educação que é exigido tanto as medidas de meio aberto como as de meio fechado,
mas na de meio aberto à família tem obrigação de acompanhar o desempenho do
adolescente, bem como a equipe técnica responsável pela execução e cumprimento
da medida aplicada.
Já no cumprimento de medida sócio-educativa em meio fechado (internação e
semiliberdade), a responsabilidade do desenvolvimento educacional do adolescente
é da equipe da Entidade responsável pela execução do programa, que normalmente
pertencente ao Estado. Por tal razão que foi explicitado no inciso VIII do art. 208 do
ECA, que a sua oferta irregular ou o seu não oferecimento são passíveis de ações de
responsabilidades a quem ofender estes direitos.
811

Na medida de semiliberdade a instrução escolar e a formação profissional são


elementos constitutivos de seu cumprimento. O trabalho externo, a freqüência em
cursos, em atividades de integração e reinserção do adolescente são realizados
durante o dia na escola ou no trabalho e à noite recolhe-se à Entidade.
A internação que é a medida mais severa prevista no Estatuto, somente poderá
ser aplicada quando forem praticados atos infracionais cometidos com grave ameaça
ou violência à pessoa; por reiteração no cometimento de outras infrações graves ou
por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta,
entretanto, apesar de ser privativa de liberdade, em seu cumprimento, o adolescente
poderá realizar atividades externas, desde que a equipe interdisciplinar entenda
conveniente e não exista qualquer determinação judicial expressa que justifique o
contrário.
Apesar das garantias legais e fundamentais concedidas na Constituição
Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, observamos dentro de nosso país,
até mesmo pelas notícias divulgadas pela imprensa, que a grande maioria das
Entidades destinadas ao cumprimento de medidas fechadas encontram-se
desestruturadas, inexistindo ou existindo de forma precária propostas pedagógicas,
educacionais, programas ou políticas que promovam a reeducação e reinserção social
dos adolescentes, sendo, na realidade prática, verdadeiras “prisões Juvenis”,
tornando-se verdadeiros “barris de pólvora”, pois encontram-se superlotadas, sem
mecanismos de educação e as autoridades constituídas só tomam conhecimento de
sua existência, quando ocorre uma rebelião ou homicídio dentro das Unidades. Neste
momento, todos buscam um responsável, culpando, normalmente, por esta
deficiência do sistema, apenas os funcionários ligados a essas instituições,
esquecendo que foram eles mesmos - estas autoridades - que não quiseram ou
souberam resolver estas situações de sua competência, para evitar que fosse gerada
violência.
Aliada a todas estas situações, o maior e grave empecilho para o
desenvolvimento da educação é o baixo nível de escolaridade formal dos
adolescentes o que dificulta sua profissionalização, apesar de entendermos que se
houvesse a efetiva implantação da proposta pedagógica preconizada pelo Estatuto e
o desenvolvimento do ensino curricular e profissionalizante, esses adolescentes
poderiam sair das Entidades de Atendimento com um ofício e possibilidades de
ingressar no mercado de trabalho. Diante da realidade prática e dos mecanismos
precários que vem sendo desenvolvido nesses programas, fica claro que estas
medidas passam a ser impostas apenas em seu aspecto repressivo e retributivo,
como diz Antônio Fernando do Amaral e Silva “A inexistência ou a oferta irregular de
propostas pedagógicas fazem com que as medidas socioeducativas resultem
impostas apenas no aspecto repressivo e, o que é pior, sem observância do critério
da proporcionalidade” (SILVA, 1999, p. 60), fato que coloca a medida apenas em seu
caráter punitivo.
Através de muitas lutas e movimentos sociais conseguimos avançar, pois há
mais de vinte anos foi promulgado o Estatuto, que trouxe em seu bojo estas novas
propostas de direitos e garantias para nossa população infanto-juvenil, sendo de suma
importância à divulgação deste sistema de direitos e garantias estatutárias, inclusive
com a possibilidade de cobrança para as autoridades competentes, para que todos os
responsáveis integrem-se em rede e implantem onde é inexistente ou melhorem o
atendimento onde existe de forma precária.
A estruturação de programas que reduzam os efeitos negativos da privação de
liberdade dos adolescentes a quem for atribuída à autoria de ato infracional é
812

fundamental, pois a efetiva reeducação, ressocialização, reinsserção social irão trazer


mudanças de comportamento, de paradigmas e sem a realização efetiva destas
propostas, com certeza no futuro, teremos a sensação de fracasso, visto que as lutas
para sua conquista foram intensas e sua implantação efetiva ainda não foi realizada a
contento. Não podemos permitir que a aplicação de medidas sócio-educativas torne-
se um meio meramente sancionatório e punitivo e, tampouco, relegar o sistema sócio-
educativo como forma de transição para o sistema penal, quando este jovem atinge a
maioridade penal.
Apesar destas conquistas alcançadas e de algumas boas experiências em
nosso País, ainda precisamos travar muitas batalhas para a verdadeira e efetiva
implantação do Estatuto com o desempenho adequado da educação formal e
profissionalizante para os adolescentes em cumprimento de medidas sócio-
educativas, visto que a garantia da educação é a única solução possível para garantir
o desenvolvimento desta parcela da população, não mais fechando os olhos e não
esquecendo também, que a responsabilidade é de todos.

4. CONCLUSÃO

Nossa normativa legal pátria garante o direito fundamental à educação a todas


as crianças e adolescentes de nosso país, inclusive aos adolescentes a quem foi
atribuída à autoria de ato infracional, mas infelizmente em nossa rotina diária
observamos que a realidade é outra e que ainda precisamos avançar muito.
Em um país continental como o Brasil e que muito necessita desenvolver-se
em todas as áreas, a educação há muito deveria tornar-se prioridade absoluta dos
Governos em todos os níveis de atuação, mas a realidade é outra, pois é normal no
início de ano, a mídia noticiar as filas enormes que se formam nas escolas públicas
de todo o país, com os pais ou responsáveis tendo que pernoitar na porta das escolas,
para tentar conseguir vagas para seus filhos, mesmo com os avanços da internet.
Verificamos que a cada ano piora o atendimento público escolar com falta de vagas,
professores mal pagos, sem reciclagens e conseqüentemente, a piora na qualidade
de ensino, levando a maior procura do ensino da iniciativa privada, que não é
freqüentada pela maioria esmagadora da empobrecida população brasileira.
Esta indiferença com a educação da criança e do adolescente parece um mal
incurável e que a sociedade já se acostumou. A situação de caos social com esta
parcela da população torturada, abandonada, violentada, envolvida com atos
infracionais é o resultado lógico e conseqüente desta grande indiferença e do
descumprimento das leis pelos pais, Estado e Sociedade.
Dentro da esfera do sistema sócio-educativa e de cumprimento de medidas
sócio-educativas pelos adolescentes a quem foi atribuída à autoria de ato infracional,
a situação também é preocupante, visto que há mais de 20 (vinte) anos da
promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, ainda não temos implantadas
de forma efetiva e eficaz as políticas públicas que garantam a educação como meio
de reforçar a cidadania. Devemos lutar para a implementação efetiva destas normas,
visto que há necessidade primordial de garantia efetiva do direito à educação e
profissionalização destes adolescentes.
A educação tem que ser levada a sério e voltada para o exercício da cidadania
plena, pois é a chave que reforça a Democracia e a Justiça Social de um País,
constituindo-se como o direito a participar da vida do mundo moderno e de viver com
dignidade.
813

5. REFERÊNCIAS

BRASIL, Constituição (1988). Lex: Legislação Federal. São Paulo: Editora Saraiva,
2010.
BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lex: Legislação Federal. São Paulo:
Editora Saraiva, 2010
CURY, M; GARRIDO, P; MARÇURA, J. Estatuto da Criança e do Adolescente
Anotado. 2ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
CURY, M. et al (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 3ª Edição,
2ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
FIRMO, Maria de Fátima. A Criança e o Adolescente no Ordenamento Jurídico
Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1999.
ISHIDA, Valter. Estatuto da Criança e do Adolescente. Doutrina e Jurisprudência. São
Paulo: Editora Atlas S.A, 2010.
LIBERATI, Wilson. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo:
Malheiros Editores Ltda., 2002.
_______ . (Coord). Direito à Educação: Uma Questão de Justiça. São Paulo:
Malheiros Editores, 2004.
LIMA, Maria Cristina. A Educação como Direito Fundamental. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Júris, 2003.
SILVA, Antônio Fernando. O Controle Judicial da Execução das Medidas Sócio-
educativas. Políticas Públicas e estratégias de atendimento sócio-educativo ao
adolescente em conflito com a lei. Série Subsídios. Tomo II. Ministério da Justiça,
Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e Departamento da Criança e do
Adolescente. Brasília: 1999.
VERONESE, Josiane. Interesses Difusos e direitos da Criança e do Adolescente. 1ª
Edição. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1997.
814

DIVÓRCIO E DIREITO DA PERSONALIDADE: A PROTEÇÃO DO MENOR E O


PERFIL DO POSSIVEL ALIENADOR
DIVORCE AND PERSONALITY LAW: THE PROTECTION OF THE MINOR AND
THE PROFILE OF THE POSSIBLE ALIENER

Ellaysse Braaga Ribeiro Gonçalves


Marcelo Negri Soares

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar o possível perfil do alienador
do menor, como meio principal de garantir a proteção do menor, nesse sentido busca
se uma conceituação e caracterização desse possível alienador. Intenta ainda
primordialmente aplicar o princípio da dignidade da pessoa humana, e do melhor
interesse do menor como forma de argumentação irrefutável na garantia e aplicação
de tal segurança. A metodologia utilizada para o desenvolvimento desse tema foi à
pesquisa bibliográfica aliada à análise da legislação nacional, e como método de
investigação para confirmação de tais argumentos aqui aplicados se utilizou dados de
casos concretos.
Palavras-chave: Direitos da personalidade; Proteção do Menor; Alienação parental.

Summary: The objective of this work is to analyze the possible profile of the alienator
of the minor, as the main means of guaranteeing the protection of the minor, in this
sense he seeks a conceptualization and characterization of this possible alienator. It
also seeks primarily to apply the principle of the dignity of the human person and the
best interest of the minor as a form of irrefutable argumentation in guaranteeing and
applying such security. The methodology used for the development of this topic was
the bibliographic research allied to the analysis of the national legislation, and as a
research method to confirm these arguments applied here, concrete case data were
used.
Keywords: Personality rights; Child Protection; Parental alienation.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho fundamenta-se em violações temporárias ou permanentes a


direitos e princípios garantidores de um desenvolvimento, físico, mental e social do
menor, não os permitindo um crescimento saudável no seio familiar.
Diante disto, e atendendo a essa deficiência social, se tornou perceptível, que
os prejuízos causados advinham na maioria das vezes de indivíduos com traços de
formação de personalidade característicos.
Visto que por maioria das vezes o menor que tem seus direitos violados,
desenvolve comportamentos adversos daqueles considerado adequado, afetando seu
desenvolvimento e até causando o distanciamento do convívio social.
Deste modo surgiu a necessidade de traçar o perfil desses indivíduos, para que
se pudesse efetivamente conceituar, caracterizar os danos causados, e
fundadamente buscar métodos de responsabilização eficaz e imediata. Assim quando
comportamentos adversos se sobressaíssem por parte de um menor, a própria
sociedade já teria conhecimento de que condutas e princípios foram desobedecidos
causando danos, não apenas ao menor, mas a toda uma sociedade presente e futura.

2. DIVORCIO
815

A origem do termo divórcio remonta a divertere, que significa voltar-se para


direções diferentes. O prefixo dis remete a “fora”, mais vertere, “virar-se para, tornar”.
Mais especificamente, no latim encontramos o verbete divortium, que significa
separação de um casal com a dissolução do casamento.
O divorcio teve sua criação em 1916, antes era regido pelo Decreto nº
181/1980, porém com outra nomenclatura, foi instituído oficialmente com a emenda
constitucional 9, de 28 de junho de 1977, regulamentada pela lei 6.515 do referido
ano.
Nesse sentido, o divórcio compreende a dissolução matrimonial de um
casamento válido, ou seja, a extinção do vínculo matrimonial (CC, art. 1.571, IV e §1º),
que se opera mediante sentença judicial ou escritura pública, habilitando as pessoas
a convolar novas núpcias.
No Brasil, foi só com a criação da emenda constitucional nº 9, é que se passou
a permitir que a pessoa pudesse divorciar se e casar novamente quantas vezes
quisesse.

(a) LEGISLAÇÃO

No decorrer dos séculos o homem criou e tentou aplicar leis, que


aparentemente para sua época se mostravam mais favoráveis e davam aos menores,
proteção e cuidados necessários, porém, o que se tem percebido que em nenhum
tempo as crianças gozaram de tais cuidados de fato, sendo estas, desrespeitadas
pela sociedade em que vivem.
Deste modo o que podemos observar é que apenas com a criação da lei do
divorcio em dezembro de 1977 (6.515/19770), lei que regulamentou a situação da
mulher casada em agosto de 1962 (4.121/1962), criação do ECA em julho de 1990
(8.069/1990) e mais recentemente a lei de alienação parental em agosto de 2010
(12.318/2010), é conseguimos observar alguns avanços em prol de ofertar aos
menores uma vida mais segura e um desenvolvimento mais saudável.

(b) ATUALMENTE NA PRÁTICA

Hoje tendo em vista que a sociedade evoluiu, de forma que em alguns casos é
difícil fazer andar em harmonia a evolução social e as leis, podemos dizer que tivemos
avanços significativos, quando se desrespeita a proteção do menor, no entanto , ainda
temos aspectos que precisam urgentemente de uma reestruturação, de adaptação
das leis ao seu tempo, de leis que se façam expressamente clara ao seu tempo, para
que haja melhor compreensão daqueles que a tiverem de usar.
As crianças precisam de maior proteção real, e que deixemos de ser
garantidores de direito na teoria e passemos a executar atos que não visem nossos
próprios interesses, mas que garantam uma sociedade mais solidaria, liberta de
individualismo, onde os menores não se sintam oprimidos e sem harmonia, inclusive
no próprio âmbito familiar.

3. DA PROTEÇÃO DO MENOR

A proteção implica nos sentidos de abrigo, acolhimento, agasalho, coberta,


escondedouro, esconderijo, guarita, recanto, refúgio, toca, aconchego, conforto,
ninho, teto... Assim, como podemos observar, a palavra proteção já garante um maior
cuidado a quem dela se acoberta, deste modo ao decorrer dos séculos o homem tem
816

cada vez mais tentado garantir essa proteção ao menor, assegurando as crianças e
adolescentes, métodos para garantir a eles os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sendo que estes devem ser respeitados prioritariamente não apenas
pela família e pela sociedade, como também pelo Estado, estando ambos sob pena
de responder pelos danos causados.
Até o inicio do século XX não se tem muitos relatos sobre politicas sociais
brasileiras, as populações carentes economicamente eram entregues aos cuidados
da igreja católica que através de algumas instituições como a Santa casa de
Misericórdia, acolhia órfãos e doentes, e por meio de donativos aparavam esses
desfavorecidos, esse era um sistema vindo da Europa que objetivava o amparo de
crianças abandonadas.
Em 1927 houve algumas mudanças, o que garantiu que o registro das crianças
entregue essas instituições agora fossem obrigatórias. Só em 1954 que o ensino
também tornou se obrigatório, porém ainda tinha suas restrições, pois os escravos, os
não vacinados não podiam ter acesso ao ensino, deste modo podemos observar que
essas restrições apenas se aplicavam a famílias de classes baixas, pois estas não
possuíam meios de obter tais recursos.
Quanto ao trabalho realizado pelo menor, houve um Decreto de nº 1.313, no
ano de 1891 que estipulou idade mínima de 12 anos para o trabalho, porém isso não
teve aplicabilidade na prática, pois fabricas e trabalhos voltados para a agricultura,
constantemente contavam com mão de obra infantil.
No inicio do século XX (entre 1900 – 1930), no Brasil houve o inicio das lutas
sociais lideradas pelo proletariado urbano. Em 1917 durante a greve geral foi criado o
comitê de defesa do proletariado, que entre muitas reivindicava a proibição do trabalho
por menores de 14 anos. No ano de 1927 teve se a promulgação do primeiro
documento legal para o menor de 18 anos, conhecido como Código Mello Mattos.
Nos anos que ficou conhecido como Estado Novo, houve grandes mudanças
no senário, como a revolução de 30 que representou a derrubada das oligarquias
rurais do poder politico, esse período deu se entre aos anos de 1937 e 1945, e ficou
marcado por seu autoritarismo alargado, alcançando até a assistência ao menor com
a criação da SAM, um órgão ligado a justiça equivalente ao sistema penitenciário para
a população menor de idade, esse sistema previa tratamento diferenciado para
adolescentes autores de atos infracionais, bem como menores carentes e
abandonados.
O Governo Vargas é deposto em 1945 e uma nova constituição é promulgada
em 1946, nesse momento histórico e politico do país é também momento de uma nova
organização social. Foi em meio a esse cenário no ano de 1950, que instalou se o
primeiro escritório do UNICEF no Brasil, na cidade de João Pessoa, na Paraíba e o
primeiro projeto destinou-se a proteção da criança e da gestante. E o inicio da década
de 60 foi marcada por uma sociedade civil mais organizada.
Em 64, com o golpe militar, o Brasil tornou se o cenário principal diante do
panorama internacional, a ditadura foi instituída e nesse momento interrompeu se por
20 anos a democracia de todo uma nação. Só em 1967 foi elaborada uma nova
constituição, que deu novas diretrizes para a vida civil.
No período do governo militar, dois documentos foram criados para a área da
infância:
 A Lei que criou a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Lei 4.513
de 1/12/64)
 O Código de Menores de 79 (Lei 6697 de 10/10/79)
817

O objetivo da FUNABEM era formular e implantar a Política Nacional do Bem


Estar do Menor, seu intuito era de assistência à infância, tanto para abandonados,
carentes, como infratores, seu principal foco.
Na década de 80 a democracia outra vez se faz realidade com a promulgação
da constituição cidadã em 88, e com ela veio toda uma reorganização do Estado, e
com um novo olhar em torno do tema infância. Nesse momento o país vivia a defesa
da infância em uma nova carta constitucional, e dividia se em duas vertentes, os
menoristas e os estatutistas.
Os menoristas defendia que se mantivesse o código dos menores e se
regularizasse a situação da criança e adolescente irregular.
Já os estatutistas defendiam amplos direitos criança e adolescente, tornando
os sujeitos de direitos e politica proteção integral, desse modo o estatutistas
defendiam uma grande mudança no código.
Foi só em outubro de 1988 com a promulgação da carta magna que marcou se
os avanços na área social, introduzindo as políticas sociais e trazendo avanços
normativos internacionais para a população infanto-juvenil Brasileira, então estava
lançada as bases do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Após longos anos de luta para garantir direitos humanos a criança e ao
adolescente, foi em 13 de julho de 1990, que se promulgou o ECA, consolidando
assim uma grande conquista não apenas das crianças e adolescentes, mas também
de toda uma sociedade.
Desde que o ECA entrou em vigor, o Estado e alguns setores de âmbitos não-
governamentais, uniram-se para por em pratica as medidas determinadas neste novo
dispositivo. Pelo caminho já percorrido por esta causa, a certeza é que ainda há um
grande caminho a ser trilhado, para que se possa garantir plenos direitos às crianças
e adolescentes, ofertando a elas instituições sólidas e mecanismos que operem com
eficiência.

(a) LEGISLAÇÃO

Ao falamos de legislação de proteção ao menor, devemos nos atentar que o


Brasil por muitas décadas não tinha olhos voltados para essa questão, visto que até
mesmo a mulher demorou bastante tempo para conseguir direitos básicos na
sociedade (votar, divorciar se), consequentemente não fora diferente com os menores
da nossa sociedade, os filhos até meados do século XX eram visto apena como
heroísmo o chefe da casa por ter a honra de possuir herdeiros homens, por outro lado
as filhas servia de ajuda nas tarefas do lar para as mães enquanto ate pouco tempo
sua maior missão era não envergonhar seu pai, pois tinha ele a obrigação de dar a
ela um “bom casamento”.
De uma sociedade totalmente machista, onde menores não tinham sua
proteção como pilar da família e da sociedade, onde crianças trabalhavam na
agricultura, na criação de gado ou nas fabricas, foi onde começamos a sentir a
necessidade de criar meios para que estas crianças deixassem de ser vistas como
mais uma mão de obra e começassem a serem observadas como a garantia de um
país desenvolvido, seguro e equilibrado.
Mas como tudo demora longos anos para se desenvolver, se criar ou readaptar-
se, no Brasil não foi diferente, somente em 1990, com a criação do ECA é que
conseguimos de fato dar um grande salto para uma evolução na proteção do menor e
em garantia de seus direitos.
818

(b) ATUALMENTE NA PRÁTICA.

Hoje após 28 anos da conquista de um documento legal (ECA), que veio


garantir ao menor proteção, cuidados e direitos que ainda lhes eram negados, temos
ainda que olhar para os menores do nosso país com um olhar especial, exigindo que
se cumpram todos os requisitos dispostos nessa lei, pois apesar do reconhecimento
de tal conquista, ainda temos uma dificuldade de por em pratica cada ponto dessa lei.
Podemos dizer que, isso se dá não por falta de vontade social, mas talvez por
não termos uma sociedade totalmente preparada e orientada nesse aspecto. Talvez
pudéssemos dizer que maiores investimentos em politicas públicas fosse um ponto a
se destacar nesse assunto em um momento futuro, mas o certo é que apesar de tantas
lutas por proteção ao menor, hoje temos em nossas mãos o ECA, que podemos
reconhecer como uma grande conquista não apenas do menor, mas também de toda
uma sociedade.

4. O PERFIL DO ALIENADOR

Em que pese à sociedade tenha suas definições para o alienador, por um


ângulo mais claro e reconhecido no meio da psicanalise e de estudiosos de
comportamentos que caracterizam o individuo.
Reconhecido como alguém sórdido, pelos comportamentos desenvolvidos, e
que diante de situações indesejadas se comporta como vitima, a pessoa do alienador
não sente culpa pelos atos praticados, mesmo que esses atos causem danos ao
menor sob seus cuidados, característica essa bem típica de psicopatas. O alienador
costuma transformar o menor em um “ser não pensante”, onde este tem a função
eficaz de realizar seus desejos, também é característico do alienador não sentir
emoções ou ao senti-las não exprimi-las, geralmente se tornam intolerantes, não
admitindo ser contrariado ou frustrado quanto a seus planos.
Existem estudos da psicologia, psicanalise e áreas a fins, onde se afirma que
o alienador não se formou em tal individuo em um momento repentino, em regra o que
esses estudos mostram é que crianças que vivem em lares desorientados, sem
estrutura (econômica, social e psicológica), entre outros, são mais propensos a
desenvolverem esse tipo de comportamento.
É um comportamento “doentio”, muitas vezes não percebido pelo próprio
alienador e que pode gerar graves consequências para o desenvolvimento do menor
que interage com essa situação, comportamentos estes que podem ir desde
isolamento social, depressão e agressividade até tornar-se também um possível
alienador na fase adulta.

(a) INTRODUÇÃO HISTÓRICA

Hoje quando voltamos um pouco o olhar ao passado vemos que, mesmo em


épocas onde não se tinha definido o alienador como tal, ele sempre esteve presente,
como mostra a psicologia em séculos anteriores muitas vezes o próprio “pai”, aquele
que detinha o poder familiar, tomava a forma da figura do alienador.
Ao analisarmos essa afirmação, podemos notar que na família dos séculos
passados, a mãe não tinha voz ativa, a vontade do pai prevalecia, os filhos deviam a
ele mais que apenas respeito, deviam obediência e cumplicidade, mesmo que estas
se apresentassem e desfavor da figura materna, eles eram ensinados a obedecer
inquestionavelmente sempre.
819

Talvez por tais motivos hoje possamos observar que traços de um alienador já
se fazia presente nas famílias em séculos passados.

(b) LEGISLAÇÃO

Após anos na luta contra comportamentos de alienação, buscando melhorar o


convívio social e o desenvolvimento mental e psicológico do menor, a sociedade hoje
tem a lei de alienação parental (12.318/2010), que veio para proteger o menor de
situações danosas ao seu desenvolvimento individual e social.

(c) ATUALMENTE NA PRÁTICA

Depois da lei 12.318/2010, tivemos grandes ganhos quanto a proteção do


menor, claro que sempre teremos que estar nos adaptando a novas situações, mas o
fato de ter uma legislação que trata com especial cuidado dos menores, é um avanço
para o país, visto que, por longos anos esses menores nem se quer foram vistos como
dignos de qualquer cuidado especial.
Contudo, ainda temos que melhorar “ampliar” essa proteção aos menores, com
mais fiscalização, incentivos relativos a políticas publicas entre outros, para que a
sociedade se sinta amparada qualitativa e quantitativamente em relação aos menores.
Se tratando na figura do alienador atualmente, existe uma linha de pensamento,
a qual se devem voltar os olhos um pouco para evitar futuros danos, quando a figura
do alienador é identificada, a grande preocupação da sociedade é afasta-lo do
convívio familiar, ou seja, tirar o menor do ambiente dessa pessoa, porem as medidas
tomadas quanto ao próprio alienador devem ser observadas com mais perspicácia.
Em estudos e debates o que se percebe é que o alienador em muitas das vezes
é distanciado da família, porém com o passar dos anos ele pode formar nova família,
o que pode resultar em um novo processo de alienação, tais cuidados devem também
tomar forma mais ativa por nós, sociedade de forma geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que se pese a nossa sociedade ainda tenha muito em que se desenvolver


quanto a esse tema, estamos certos que os avanços dados ate o momento é de
grande valia, até mesmo para que possamos dar novos passos e garantir melhores
recursos de proteção, no foco de que no futuro possamos sanar tais problemas sociais
com mais agilidade e perspicácia.
No decorrer desse trabalho ao ler artigos, leis e pesquisas, a conclusão que se
pode chegar é que mesmo em meio a tantas dificuldades, a longos anos de batalhas
e grandes perdas nesse percurso, a conquista de uma lei que olhe por uma classe
especial do país é sem duvidas uma vitória, porem em face disso ainda temos como
sociedade, grandes caminhos a trilhar.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n° 12.318, de 26 de agosto de 2010. Disponível em:


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MIRANDA JUNIOR, H. C. Um psicólogo no tribunal de família: a prática na interface
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821

ENFRENTAMENTO À CIBERPEDOFILIA PARA A PROTEÇÃO DA CRIANÇA E


ADOLESCENTE
CONFRONTATION FOR CYBERPEDOFILIA FOR THE PROTECTION OF
CHILDREN AND ADOLESCENTS

Maria Lenir Rodrigues Pinheiro


Nina Soraya Pinheiro de Jesus

Resumo: O presente trabalho visa apresentar as diferentes ações de enfrentamento


à ciberpedofilia, consistente na pedofilia que utiliza o mundo virtual para as práticas
advindas de transtorno de preferência sexual, onde ocorre a atração sexual de um
indivíduo adulto, direcionada à crianças pré-púberes ou no início da puberdade, de
forma a proteger, garantir e assegurar os direitos fundamentais das crianças e
adolescentes, para que se desenvolvam de forma integral. A Metodologia empregada,
na Fase de Investigação foi o Método Indutivo, com Tratamento dos Dados
Cartesiano e foram acionadas as técnicas da pesquisa bibliográfica e do fichamento.
Palavras-chave: Criança; Adolescente; Ciberpedofilia; Ciberpedófilo; Proteção e
Enfrentamento.

Abstract: The present work aims to present the different actions of coping with cyber-
pedophilia, consisting of pedophilia that uses the virtual world for the practices arising
from sexual preference disorder, where the sexual attraction of an adult individual
occurs, directed at prepubescent children or at the beginning of puberty, in order to
protect, guarantee and ensure the fundamental rights of children and adolescents, so
that they develop in a comprehensive way. The Methodology employed in the
Investigation Phase was the Inductive Method, with Cartesian Data Processing, and
the techniques of bibliographic research and of the file were triggered.
Keywords: Child; Adolescent; Cybertopophilia; Cyberpedophile; Protection and
Coping.

INTRODUÇÃO

A internet está presente em nosso cotidiano, principalmente fazendo parte da


vida das crianças e adolescentes que nascem inseridas nesse mundo virtual, com
acesso a diversos tipos de aparelhos informatizados, informações sem limitações, nos
defrontamos com uma grande preocupação a ser enfrentada pela nossa sociedade, a
ciberpedofilia.
Com os avanços tecnológicos, especialmente a internet, a sociedade teve
acesso a muitos benefícios e vantagens; mas ela trouxe também diferentes
modalidades de delitos, por conta da sensação de liberdade e anonimato
proporcionados pelas sociais, dentre elas, a ciberpedofilia.
Abordar-se-á, neste trabalho as questões concernentes à ciberpedofilia, a sua
tipificação como crime, assim como os aspectos que dificultam a identificação dos
ciberpedófilos e a grande necessidade de regulamentação da utilização do
ciberespaço visando a proteção da criança e adolescentes que foi amenizado com a
tipificação criminal de delitos informáticos pela Lei nº 12.737/12.
Destacar-se-á os preceitos constitucionais que garantem a proteção da
criança e do adolescente, bem como, também os dispositivos infraconstitucionais que
concretizam essa proteção, como o Código Penal e Estatuto da Criança e do
822

Adolescente. Serão apresentadas as diversas visões doutrinárias citadas no decorrer


deste para que se fixe a importância de tal assunto dentro do ordenamento jurídico.
Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de Investigação
o Método utilizado foi o Indutivo, na fase de Tratamento dos Dados, o Cartesiano e
foram acionadas as técnicas da pesquisa bibliográfica e do fichamento.

1. UM OLHAR TÉCNICO SOBRE A PEDOFILIA

Pedofilia é uma palavra de origem greco-latina composta pelos seguintes


elementos: o grego paidíon, paidós que significa criança e filia – amizade, carinho,
benevolência-, composta por philein – amor - e philos – amante, amigo Inicialmente,
a palavra indicava alguém que gosta de crianças; entretanto, com o passar do tempo,
seu significado passou a ser aplicado à perversão que leva uma pessoa a ter atração
sexual por crianças.
Furlaneto Neto (2004, p. 6) tece considerações acerca do afastamento
etimológico da palavra e destaca que

[...] na medida em que o gostar ultrapassa limites razoáveis de


comportamento, o termo pedofilia passa a ter outras dimensões, conforme
abordado pela Medicina Legal e pela Psiquiatria. A pedofilia é uma espécie
de parafilia – transtorno de identidade do gênero – caracterizada quando o
portador de pedofilia satisfaz sua lascívia com criança ou adolescente. Assim,
a exploração sexual infanto-juvenil está criminalizada por vários tipos penais,
dentre os quais o estupro de vulnerável e os crimes previstos nos artigos 241
e 241-A a E, do Estatuto da Criança e do Adolescente, em que o autor de tais
crimes pode ser ou não portador de pedofilia.

Os pedófilos sentem atração tanto por meninas quanto por meninos, com
preferência por meninas, em regra, com menos de 13 anos de idade, cujas atividades
incluem: despir a criança e olhá-la, expor-se para elas, masturbar-se na sua presença,
acariciá-la, engajar-se em sexo oral com a criança e penetrar-lhe a vagina, a boca ou
o ânus com os dedos ou com o pênis, com uso ou não de força (a criança não estar
ciente da natureza inapropriada da ação) ou ameaças de punições para impedi-las de
relatar aos outros as atividades (HOLMES, 1997).
A Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio de sua Classificação
Internacional de Doenças – CID, apresenta a seguinte classificação: CID 10 – F65 =
Transtorno da preferência sexual; CID 10 – F65.4 = Pedofilia (MEDICINANET, 2018).
Questão interessante é quanto à existência ou não de tratamento os pedófilos.
Muitas técnicas vêm sendo aplicadas, como tratamento com medicamentos que
alteram o impulso sexual, terapias comportamentais e psicoterapias, terapia cognitivo-
comportamental, choques elétricos, “castração química judicial” - tratamento imposto
por condenação judicial -, utilização, em homens, de medicamentos disponíveis para
o câncer de próstata, e hormônios femininos, para diminuir a libido, e evitando-se
abusos sexuais antes que aconteçam (OLIVEIRA, 2015).
Não é necessário que o indivíduo coloque seus desejos em prática para que
o mesmo seja identificado como pedófilo. Ao abordar a questão conceitual, sobre o
indivíduo a ser considerado pedófilo, Salter esclarece:

Há um subgrupo de abusadores de crianças que fazem isso apenas porque


são atraídos sexualmente por elas. Há aqueles que cometem o abuso porque
são antissociais ou mesmo psicóticos e simplesmente sentem que têm o
direito. Há ainda outros que usam a criança para obter uma intimidade, que
823

são tímidos ou deficientes demais para obter de adultos. E há outros que


abusam por razões que não entendemos de forma alguma. (SALTER, 2009).

Há quem defenda que a pedofilia não é crime e sim uma doença, podendo o
pedófilo nunca praticar o crime. Neste ponto é relevante citar os dispositivos do nosso
Código Penal – CP que falam sobre os crimes sexuais, que violam a dignidade, como
o estupro (art. 213), molestamento, coação sexual (art. 216-A) e estupro de vulnerável
(art. 217-A).
A despeito de ser crime ou enfermidade, França (2004, p. 141) pontua que a
referida doença em indivíduos de baixa renda, quase sempre vem acompanhada do
consumo de bebidas alcoólicas e em muitos casos envolvem contatos incestuosos
com filhos, enteados ou parentes próximos, por vezes associado aos maus-tratos às
crianças e divulgação de imagens em sítios nas redes sociais, visitados por
pervertidos.
Destarte, segundo a norma do nosso país, aquele que pratica ato criminoso
deve ser punido, como dispõe o art. 227, §4º da Constituição Federal1 que prevê
punição severa para o abuso, a violência e a exploração sexual de crianças e
adolescentes, bem como o art. 240 da Lei 8.069/90 que pretende punir a produção,
reprodução, filmagem, registro de cenas entre outros meios que contenham sexo
explícito ou pornográfico envolvendo crianças e adolescentes, com pena de reclusão
de quatro a oito anos.

2. A CRIMINALIZAÇÃO DA PEDOFILIA E A CIBERPEDOFILIA

São indiscutíveis as vantagens e progresso advindos da tecnologia pelos


meios de comunicação, agregando ao homem um novo modo de vida. Entretanto, a
internet, maior representante desse progresso, com toda a sua praticidade e
benefícios, trouxe consigo, os cibercrimes.
A grande dificuldade é a identificação dos cibercriminosos, como pondera
Santos et al (2010, p. 10): “[...] este novo meio de interação social surge um ambiente
propício à ação de criminosos que utilizando desta ferramenta a seu favor tendem a
cometer atos prejudiciais à coletividade.”
Sobre essa dificuldade, Kaminski aduz que:

É preciso que a sociedade tenha em mente que o crime está sempre à frente
da polícia, e o que define se essa polícia é eficiente, ou não, é a distância
entre o crime e a polícia, para que diminua o crime deve-se maximizar a
cooperação entre as policias nacionais e internacionais, treinando policiais
com técnicas atualizadas de investigações que sejam rápidas e eficientes
como exige a era digital. Há algum tempo o FBI vem formando os Cybercops,
isto é, policiais especializados para o combate desses crimes considerados o
desafio criminal do século. (KAMINSKI, 2008)

Há uma grande dificuldade em combater os crimes ocorridos pela internet. Os


cibercrimes desafiam o sistema jurídico brasileiro, diante da impunidade dos
criminosos que ficam impunes, devido à grande dificuldade de sua identificação do
infrator e a ausência de instrumentalidade da Lei nº 12.737/2012, que tipifica os crimes
informáticos.
A internet possibilita os mais diversos desfrutes sexuais para os pedófilos,
uma dessas modalidades está demonstrada pela pornografia infantil propriamente

1
Art. 227, § 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
824

dita, em decorrência da facilidade de acesso a vasto material pornográfico envolvendo


crianças e adolescentes, alimentando a ciberpedofilia ou pedofilia virtual, que se
consuma com a exploração sexual infantil.
Os pedófilos cometem o crime de abuso de crianças ou produção de
pornografia infantil, sendo este último o mais praticado pelos ciberpedófilos, nos
exatos termos do art. 240 da Lei nº 8.069/90, que tem a finalidade de combater à
produção, venda e distribuição de pornografia infantil, assim como a aquisição e posse
de tal material, além de outras condutas que estejam relacionadas à pedofila na
internet.
Importante pontuar que o ECA ampliou as hipóteses envolventes da
pornografia infantil a fim de abranger os cibercrimes, como o art. 241-A do ECA,
alterado pela Lei nº 11.829/2008; de igual forma, alterou o ECA (art. 241-B a 241-E)
com o fim de aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia
infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras
relacionadas à pedofilia na internet.
Em 2012 foi sancionada a Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012 que
promoveu algumas alterações no Código Penal Brasileiro, ao tipificar os crimes
informáticos que ocorrem no ciberespaço, começando a descortinar o nosso
ordenamento jurídico em relação aos cibercrimes.
Após dois anos, temos a Lei nº 12.965/2014, conhecida como o Marco Civil
da Internet, cujo objeto é a regulamentação do uso da internet e consequentemente
dos cibercrimes, com a instituição de princípios, garantias, direitos e obrigações para
os usuários e Estado, dando um novo direcionando, antes inexistente.
Nesta esteira, afirmam Rodrigues e Simas Filho que:

A psicóloga Dalka Chaves de Almeida Ferrari, coordenadora do Centro de


Referência às Vítimas de Violências do Instituto Sedes Sapientiae – CNRV –
, na capital paulista, também alerta para os perigos virtuais a que estão
expostas as crianças. “Pela via online é mais fácil aliciar os pequenos”,
afirma. Foi identificado, segundo Dalka, que o público-alvo desses aliciadores
são crianças internautas com oito anos em média. “É que, nessa idade, as
crianças têm pouca, ou quase nenhuma, capacidade de evitar o assédio ou
resistir a ele”, explica.( RODRIGUES E SIMAS FILHO, 2004)

A forma de abordagem utilizadas pelos ciberpedófilos são diversas, utilizam-


se, segundo Rodigues e Simas Filho ( 2004, p. 50-55), de mecanismos habilidosos
como: utilização de linguagem infantil, perfis falsos com o objetivo de cesso conquistar
a criança e pré-adolescente para a prática sexual ou buscar nessa criança o objeto
para a exposição de fotografias em situações eróticas ou ainda “jogar para as crianças
imagens pornográficas sem a menor cerimônia e, a partir delas, estabelecer um
vínculo promíscuo”, utilizando-se de links “entre uma palavra comum ao vocabulário
das crianças – como, por exemplo: kids, Mickey, ninfetas, chiquititas e outras – e os
mecanismos de busca”.
Dentre os diversos problemas encontrados para a penalização dos
ciberpedófilos, está, a territorialidade; em nosso país, o criminoso virtual identificado
só será alcançado pela lei se estiver em território nacional e como ciberpedofilia é
ultrapassa as fronteiras e cada país tem legislação própria, dificultando o combate à
pedofilia virtual.(RODRIGUES, Alan; SIMAS FILHO, 2004)
Diante dessas condutas é relevante chamar à responsabilidade, para a
proteção da criança e adolescente, toda a sociedade, para a garantia dos direitos
fundamentais, conforme disposto nos art. 4º, 18 e 70 do ECA, pois somente assim,
825

haverá um enfrentamento no combate contra as práticas abusivas dos pedófilos e


ciberpedófilos.

3. ENFRENTAMENTO À CIBERPEDOFILIA.

É importante destacar, que o combate contra a exploração sexual de crianças


e adolescentes por esses meios virtuais, consiste em informar sobre o dever de todos
de zelar pelos direitos das crianças e adolescentes, bem como incentivar que sejam
realizadas denúncias das páginas de internet que promovam ou publiquem imagens,
vídeos e dados de pornografia.
É fundamental que haja a conscientização da comunidade, sociedade e do
Estado, quanto ao seu papel de zelar pelos direitos e pela integridade das crianças e
adolescentes, assim como é primordial.um diálogo aberto entre os entes familiares,
sendo esse o meio mais eficaz para evitar futuros problemas. Devem os pais
conversar e conscientizar seus filhos sobre como utilizar a internet de maneira segura.
O primeiro passo seria educar as pessoas sobre a melhor maneira de
utilizarem a internet da melhor forma possível, ou seja, aproveitarem e usufruírem de
todos os recursos que essa rede proporciona. Além disso, conscientizá-los sobre os
perigos que se escondem no ambiente virtual, aconselhando sobre as maneiras de se
proteger dos delitos e de ter mais segurança ao utilizarem essa ferramenta.
Para tanto, tendo em vista que o alvo da ciberpedofilia são pessoas que estão
em pleno desenvolvimento, inclusive moral, o resgate de valores ético-sociais
fundamentais constituem-se em poderoso alheado nessa árdua batalha de combate
aos ciberpedófilos. Tal tese é defendida por Garcia e Furlaneto Neto, como se
constata abaixo:

Na Internet, isso significa compatibilizar as condutas que vêm se firmando


numa autodisciplina com as decisões judiciais sobre conflitos na rede. A
Internet é um espaço propício para o exercício das aptidões de consciência e
responsabilidade, isto é eticidade. Isto se dá porque a rede proporciona
recursos aos usuários para manifestarem seu pensamento e denunciarem
violações às leis morais fundamentadoras dos princípios fundamentais
constitucionalmente assegurados. (GARCIA E FURLANETO NETO, 2012).

Desta feita, qualquer informação postada nas redes sociais pode circular o
mundo todo, inclusive com exposição indevida de imagens de conteúdo sexual,
potencializando danos em diferentes áreas, principalmente em crianças e
adolescentes que estão em desenvolvimento integral, ou seja, físico, mental, social,
espiritual e moral.
Em nosso país, a ONG Safernet Brasil2 realizou levantamento, considerando
dados fornecidos pela Polícia Federal e Ministério Público, onde constatou que o
compartilhamento de fotos íntimas em endereços eletrônicos e aplicativos de
smartphone dobrou nos últimos anos. O levantamento releva que em 2013, a
organização assistiu 101 casos, enquanto no ano de 2012, contabilizou 48 denúncias
em que pessoas tiveram imagens íntimas disseminadas ilegalmente na Internet
(TOMAZ, 2015).
Em outra pesquisa, realizada pela Safernet, no ano de 2013, constatou-se que
20% de 2.834 jovens brasileiros entrevistados declararam ter recebido conteúdo

2
Organização não governamental, sem fins lucrativos, que reúne profissionais com a missão de defender e promover os direitos
humanos na Internet.
826

erótico e sexual, envolvendo ou não a prática do sexting3, e que 6% deles afirmaram


terem repassado as mensagens para terceiros (Tomaz, 2015).
Com o fito de otimizar o enfrentamento às violações de Direitos que
acontecem via intenet, o governo federal criou o Humaniza Redes – Pacto Nacional
de Enfrentamento às Violações de Direitos Humanos na Internet, para garantir mais
segurança na rede, principalmente para as crianças e adolescentes, coordenado pela
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em parceria com a
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Secretaria de Políticas para
as Mulheres, Ministério da Educação, Ministério das Comunicações e Ministério da
Justiça e será composto por três eixos de atuação: denúncia, prevenção e segurança,
com a proposta de garantir aos usuários brasileiros, com prioridade às crianças e
adolescentes, uma Internet livre de violações de Direitos Humanos (Humaniza Redes,
2015).
A atuação do Humaniza Redes tem o foco específico na denúncia e prevenção
das violações dos direitos da criança e adolescente, enfrentando, dessa forma, os
ciberpedófilos e combatendo a ciberpedofilia:
Como cada vez mais pessoas usam a internet diariamente, e a maioria
desses usuários é composta de jovens de menos de 25 anos, é fundamental
que seja construído um ambiente livre de violações e seguro, principalmente
para as crianças e jovens. [...] Por isso, o Humaniza Redes vai zelar pelo uso
responsável da internet e aplicativos, com a divulgação de dicas de
segurança aos usuários da rede, com apoio de entidades provedoras de
aplicações de internet, que ampliarão suas iniciativas de promoção de um
ambiente digital legal e seguro, que contribua para a construção de uma
sociedade inclusiva, não discriminatória e livre de abusos. [...] O MEC e a
SDH disponibilizarão orientações para professores, pais e alunos sobre a
importância de uma internet segura e livre de violações de Direitos Humanos.
(Humaniza Redes, 2015)

Segundo Morais (2018, s. p), a SaferNet define algumas medidas que podem
ser tomadas pelos pais para evitarem que seus filhos sejam assediados por
ciberpedófilos, entre elas estão:
1. Usar o computador e a internet junto com a criança, criando condições para
que lhe mostre os sites por que navega;
2. Instalar o computador em um cômodo comum da casa;
3. Sempre que puder, verificar as contas dos e-mails das crianças;
4. Procurar saber quais os serviços de segurança usado nos computadores
das escolas e das lan houses frequentadas por seus filhos;
5. Orientar para que não se encontrarem com pessoas que conheceram pela
internet;
6. Instruir as crianças a não postarem fotos pela internet;
7. Ensinar as crianças a não divulgarem dados pessoais (idade, endereço e
telefone) em salas de bate-papo;
8. Dizer às crianças para nunca responderem a mensagens insinuantes ou
agressivas;
9. Explicar para as crianças os perigos da pedofilia na internet;
10.Conhecer os amigos que a criança faz no mundo virtual. Assim como
podem surgir boas amizades, também podem aparecer pessoas com más intenções;

3
O termo sexting, que advém da aglutinação das palavras sex (sexo) e texting (enviando mensagens – usualmente por meios
eletrônicos), representa o envio unilateral ou recíproco de conteúdo sexual na rede mundial de computadores
827

11.Explicar à criança que muitas coisas vistas na Internet podem ser verdade
ou não. Porém a principal delas é que os pais tenha uma comunicação com os filhos,
essa conversa entre pais e filhos é a melhor arma contra os perigos da pedofilia na
internet.
Os meios ainda são poucos em número e eficácia; acredita-se que a
consciência e divulgação da relevância do combate à ciberpedofilia está conseguindo
cada vez mais adeptos, o que facilitará o papel e a atuação do Estado frente a esta
situação e aplicabilidade da legislação susomencionada como meios de coibir a
prática dos ciberpedófilos.

CONCLUSÃO

A ciberpedofilia é uma das principais violações de direitos na internet, sendo


a pornografia infantil, prática ligada à pedofilia. No ordenamento brasileiro não há o
crime intitulado da “pedofilia”, por esta tratar-se de um transtorno de personalidade,
considerada, esta forma, uma enfermidade que necessita de tratamento e controle.
Entretanto, as práticas advindas dos comportamentos do pedófilo e suas
consequências são consideradas crimes. Desta forma, o abuso de crianças ou
adolescentes, a produção de pornografia infantil, sua veiculação ou quaisquer usos
indevidos, principalmente utilizando as redes sociais é que constituem danos e os
ciberpedófilos ser punidos nos termos da lei.
Um dos maiores problemas enfrentados, quando se trata da ciberpedofília,
não é a falta de legislação, mas a identificação dos ciberpedófilos, que são difíceis de
serem localizados devido ao anonimato proporcionado pela internet e os provedores
não passam as informações suficientes para que se chegue até os indivíduos que
praticam a ciberpedofilia por meio das redes sociais.
Em nosso país, a nossa Carta Magna dispõe sobre a proteção à criança e
adolescente como exposto neste trabalho, assim como se observa um grande avanço
na regulamentação de práticas criminosas no ciberespaço, como a Lei nº 12.737/12 e
o Marco Civil da Internet, a Lei nº 12.965/14, que assim como o Código Penal, o
Estatuto da Criança e do Adolescente tipificam os atos pedófilos enquadrados nas
condutas dos crimes contras a dignidade sexual, com especial atenção às vítimas,
quando essas são crianças ou adolescentes.
Como medidas de enfrentamento à prática da ciberpedofilia e seus
desdobramentos, verifica-se que há necessidade de ação maior, mais abrangente de
forma a levar mais segurança à internet (espaço aberto e livre) impedindo que os
direitos da criança e adolescente sejam violados pelos ciberpedófilos e assim, possam
desenvolver-se normalmente de forma integral como disposto no Estatuto da Criança
e Adolescente.
Os familiares tem um papel preponderante no monitoramento das crianças e
adolescentes quanto ao uso do ambiente virtual, devendo ser fiscalizadas com mais
afinco, ter uma atenta observação quanto a comportamentos atípicos e a verificação
dos sítios que as crianças e adolescentes estão utilizando.
Assim, somente por meio das ações conjuntas entre família, sociedade e
Poder Público, com a finalidade de sempre proteger a integridade, o desenvolvimento
das crianças e adolescentes é que se poderá assegurar e zelar pelos seus direitos
fundamentais para que não fiquem tão vulneráveis e expostos aos ciberpedófilos e,
às vítimas, a disponibilização do acompanhamento psicológico para que possam
recuperar-se dos danos e voltar a conviver em sociedade.
828

REFERÊNCIAS

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830

GUARDA E O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR


GUARD AND THE RIGHT TO DAMILY LIVING

Gleisson Roger de Paula Coêlho

Resumo: O presente resumo tem como objetivo analisar o direito à convivência


familiar dos filhos com seus pais nos casos de dissolução do casamento ou da união
estável, com fundamento na proteção integral e no melhor interesse da criança e do
adolescente. De um lado o filho que quer conviver com ambos genitores e do outro os
pais que não mantem mais um relacionamento afetivo, mas que possuem o
direito/dever de zelar pelos seus filhos. Partindo da análise do instituto da Guarda,
com destaque a modalidade da guarda compartilhada ou conjunta que será aplicada
sempre que possível, concluindo pela prevalência do convívio familiar com os
genitores sempre que for possível.
Palavras-chaves: Criança e adolescente; Convivência Familiar; Guarda.

Abstract: This summary aims to analyze the right to family of the children living with
their parents in cases of dissolution of marriage or stable union, based on full protection
and in the best interests of the child and adolescent. On the other hand the son who
wants to live with both parents and the other parents who do not keep another affective
relationship, but who have the right/duty of looking out for their children. From the
Institute's analysis of the guard, with the mode of joint custody or joint that will be
applied where possible, concluding by the prevalence of family living with the parents
whenever possible.
Keywords: Child and adolescent; Family Living; Guard.

INTRODUÇÃO

Partindo da premissa da proteção integral e do melhor interesse do infante, o


presente trabalho tem como objetivo refletir sobre o direito de cada criança ou
adolescente ter resguardado o direito a convivência familiar.
O direito a convivência familiar compreende um aspecto da dignidade humana
na medida que é na família que o indivíduo se desenvolve.
Com a dissolução do casamento ou da união estável os filhos se deparam com
a possibilidade se serem privados do convívio de um de seus genitores.
A falta de afeto, de amor e do convívio familiar pode gerar a criança e o
adolescente graves consequências, visto que os pais servem de suporte psíquico e
são responsáveis pela formação intelectual e moral de sua prole.
O respeito a convivência familiar representa ao infante proteção e segurança
de sua integridade emocional e física.
A elaboração deste trabalho foi subsidiada por análise de documentação
indireta pertinentes ao tema.

1. GUARDA E O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

Não é raro encontrar cônjuges ou companheiros que passam por processo de


separação, independentemente dos motivos que justificam o termino do
relacionamento, é direito dos filhos continuarem a conviver com ambos os genitores.
831

A proteção integral do infante está ligada ao seu grau de vulnerabilidade e


dependência, necessitando de maior cuidado por parte do Estado na tutela da infância
e juventude.
A Doutrina da Proteção Integral tem como origem a Declaração de Genebra de
1924, que determinou a necessidade de proporcionar proteção especial à criança e
ao adolescente, sobrevindo pela Declaração Universal dos Direitos Humanos das
Nações Unidas de 1948 e pelo Pacto de São José da Costa Rica de 1969, ao destacar
que toda criança terá direito às medidas de proteção que sua condição de menor
requer, por parte da família, da sociedade e do Estado (art. 19).
Paulo Lôbo (2018, p. 188) destaca que a cessação da convivência entre os pais
não faz cessar a convivência familiar entre os filhos e seus pais, ainda que esses
passem a viver em residências distintas. Nessa perspectiva não cabe a criança
escolher entre os pais, mas sim ter contato e possibilidade de usufruir em ambas
linhagens.
Mais do que a guarda, concebida tradicionalmente como poder sobre os filhos
de um pai contra o outro, a proteção dos filhos constitui direito primordial destes e
direito/dever de cada um dos pais (LÔBO, 2018, p. 189).
Também independe que quem teve a culpa pelo término do vínculo conjugal, o
que se busca proteger é o interesse existencial da criança ou do adolescente. Para a
concessão da guarda deve se levar em consideração as condições psicológicas,
morais.
A guarda consiste no direito/dever dos pais terem os filhos em sua companhia
e sob sua custódia patrimonial, cultural e material. Ao ser estabelecida e ao
regulamentar as visitas, implica consequentemente a exclusão de um dos genitores
de parte das atividades cotidianas de seu filho.
Rolf Madaleno (2018, p. 428) afirma que a guarda é atributo do poder familiar,
e se refere à convivência propriamente dita, constituído do direito de viver com o filho
menor ou incapaz na mesma habitação, com o correlato dever de assumir a
responsabilidade direta de velar pelos interesses do filho.
A guarda pode ser: unilateral ou exclusiva - modalidade em que um dos pais
possui exclusivamente a guarda, cabendo ao outro o direito de visita; alternada - os
genitores revezam períodos exclusivos de guarda; nidação ou aninhamento - com a
finalidade de evitar a mudança de ambiente, da casa do pai para a da mãe, a criança
permanece no mesmo domicilio em que vivia o casal, os genitores que revezam a
permanência na residência; atribuída a terceiros - quando por algum motivo nenhum
dos genitores pode se responsabilizar pelo descendente, havendo preferência por
membro da família; e, compartilhada ou conjunta - modalidade preterida em nosso
sistema jurídico, não havendo exclusividade para nenhum genitor, ambos são
responsáveis pela condução da vida dos descendentes.
O Código Civil dispõe em seu art. 1.583:

Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.


§ 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos
genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5o) e, por guarda
compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e
deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes
ao poder familiar dos filhos comuns.
§ 2º Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser
dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em
vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.
§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos
filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos.
832

§ 4º (VETADO).
§ 5º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a
supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão,
qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar
informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em
assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física
e psicológica e a educação de seus filhos.

A guarda conjunta passou a ser modalidade preferível desde a Lei nº


11.698/2008, e de regime prioritário com a Lei nº 13.058/2014, conclusão que se
chega ao observar o § 2º do art. 1.584 do CC: Quando não houver acordo entre a mãe
e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda
compartilhada.
Referida modalidade de guarda é sem dúvida a que traz mais benefícios aos
filhos, pois não priva a presença de um dos genitores do seu convívio diário. E mesmo
quando deferida não impede a fixação de alimentos (arts. 1.964 e 1.965 do CC), afinal
os pais são responsáveis pela manutenção das despesas de seus filhos, não eximindo
um dos genitores ser o responsável financeiro pela prole.
Venosa (2018, p. 210) destaca que essa modalidade de guarda dita
compartilhada não se torna possível, de forma ampla, quando os pais se apresentam
em estado de beligerância, ou quando residem distante um do outro.
No entanto não é raro se deparar com casais que deixam de pensar no que é
melhor para seus filhos e pensam em apenas no ressentimento pelo término do
relacionamento, fato que pode acarretar danos psicológicos.
Porém embora a guarda compartilhada seja a regra geral até mesmo no
deferimento da guarda provisória, invocando os princípios da proteção integral e da
dignidade humana presentes na Carta Magna o Juiz poderá em alguns casos, ao
observar provável dano à esfera existencial do descendente, deferir a guarda para um
dos pais1.
O direito ao convício entre pais e filhos deve ser resguardado, mesmo nos
casos em que a guarda for atribuída a terceiros, tendo os genitores o direito a visitação
(art. 33, § 4ª do ECA).

A visitação não é somente um direito assegurado aos pais, mas também


um direito do próprio filho de com eles conviver, desdobrando-se ainda a
outros parentes, tais como avós, tios, padrastos, padrinhos, irmãos, etc.,
assim como nas relações homoafetivas, ainda que o filho seja do parceiro
(AMORIM, 2016, p. 263).

A criação de obstáculos ao direito de um dos genitores de conviver com sua


prole, pode caracterizar a prática de ato de alienação parental.
De outro modo não importa se o divórcio foi administrativo, judicial, litigioso ou
consensual, o divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos
filhos (art. 1.579 do CC).
As relações parentais não podem diminuir em hipótese alguma os direitos dos
descendentes, devem baseados no afeto, construir um ambiente saudável onde possa
a criança ou adolescente se desenvolver plenamente.

O afeto, ou afetividade é o vínculo que fundamenta as relações


interpessoais, implicando na formação de famílias quando presentes

1
STJ. REsp 1.629.994 - RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 06 de dezembro de 2016. Ementa: CIVIL. PROCESSUAL
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DIVÓRCIO. GUARDA COMPARTILHADA. NÃO DECRETAÇÃO. POSSIBILIDADES. Julgado em:
06/12/2016. Publicado em: DJe 15/12/2016.
833

outros requisitos como a ostensibilidade e o caráter duradouro da relação,


a exemplo da união estável ou da união de facto, também da
socioafetividade, da qual decorre, como o exercício da posse de estado
de filiação, relações de parentesco de origem não-biológica
(CAVALCANTI, 2016, p. 125).

Segundo Rodrigo da Cunha Pereira (2016) não é qualquer afeto que estabelece
ou compõe o núcleo familiar, o mesmo deve ser acompanhado de outros elementos
como solidariedade, responsabilidade, cumplicidade, convivência e vivência. Gagliano
e Pamplona Filho (2018, p. 1152) por sua vez asseveram que é na afetividade que
forma e justifica o vínculo entre os membros da família, construindo-a.
E mesmo com o fim do casamento ou da união estável o afeto e a
responsabilidade dos pais para com os filhos permanece.

CONCLUSÃO

A convivência dos genitores com os seus descendentes é imprescindível para


seu desenvolvimento psicossocial, é no lar que se tem as primeiras noções de direitos,
deveres, ética e cidadania.
Não há duvida que a convivência com os filhos institui um dos mais importantes
deveres inerentes ao poder familiar dos pais, que não deixa de ser um direito
fundamental e personalíssimo, que deve prevalecer mesmo após o divórcio ou a
dissolução da união estável.
Uma vez havendo a dissolução do casamento ou da união estável deve ser
regulada a forma em que será o convívio dos pais com seus filhos, se a guarda será
alternada, unilateral, compartilhada, nidal.
Porém independentemente de quem detenha a guarda, o direito-dever de
conviver não pode ser prejudicado pelo fim do casamento ou da união estável.
O direito dos genitores em ter em sua companhia seus descendentes, mesmo
que dele não possua a guarda, não pode interferir em seu poder familiar.
Conclui-se que deve prevalecer o melhor interesse da criança, afinal como
pessoa em formação e gozando de direitos, tem prioridade absoluta na proteção de
sua dignidade, respeito e convivência familiar (art. 227 da CF).

REFERÊNCIAS

AMORIM, Ana Mônica Anselmo de. Manual de direito das famílias. Curitiba: Juruá,
2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso: 15/10/2018.
_______. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acessado em 15/10/2018.
_______. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. 2002.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso:
15/10/2018.
CAVALCANTI, Camilla de Araújo. Famílias pós-modernas: a tutela constitucional
à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Curitiba: Juruá, 2016.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil. 2.
ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
834

LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
MADALENO, Rolf. Repensando o direito de família. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007.
_______. Direito de família. 8. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
VENOSA. Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 18. ed. São Paulo: Atlas,
2018. V.
835

O QUE FAZ VOCÊ FELIZ? DIREITO À FELICIDADE COMO BASE DA


CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS INFANTO-JUVENIS NOS 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
WHAT MAKES YOU HAPPY? RIGHT TO HAPPINESS AS A BASIS FOR THE
CONSTRUCTION OF INFANT-JUVENILE RIGHTS IN THE 30 YEARS OF THE
FEDERAL CONSTITUTION OF 1988

Michelle Asato Junqueira


Ana Cláudia Pompeu Torezan Andreucci

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a construção histórico-


legislativa dos direitos infanto-juvenis na Constituição Federal de 1988 a partir da
dogmatização do princípio da proteção integral e da prioridade absoluta, tendo em
conta as suas interfaces com o direito à felicidade. Questiona, ainda, o conteúdo
jurídico da felicidade e seu papel na efetivação dos princípios. Utiliza-se, para tanto,
do método hipotético-dedutivo e o procedimento da revisão bibliográfica e da pesquisa
jurisprudencial para justificar a abordagem temática, sem descurar da abordagem dos
princípios que fundamentam a interpretação constitucional e normativa, sem descurar
do entendimento construído e em construção adotado pelo Supremo Tribunal Federal.
Palavras-Chaves: Direito à felicidade; Prioridade Absoluta; Direito da Criança e do
Adolescente

Abstract: The present work aims to analyze the historical-legislative construction of


children's rights in the Federal Constitution of 1988 from the dogmatization of integral
protection and absolute priority and its interfaces with the right to happiness. It also
questions the legal content of happiness and its role in the realization of principles. The
hypothetical-deductive method and the procedure of bibliographic review and
jurisprudential research are used to justify the thematic approach, without neglecting
the approach of the principles that underlie the constitutional and normative
interpretation, without neglecting the understanding built and under construction
adopted by the Federal Supreme Court.
Key Words: Right to hapiness; Absolute Priority; Child and Adolescent Right

INTRODUÇÃO

O que faz você feliz?


O sistema constitucional é responsável não só pela estruturação do
funcionamento do Estado como também por estabelecer os direitos fundamentais,
representando, assim, o pacto social de um povo. A partir daí, a Constituição traça a
atuação do Estado e o proceder de cada um dos poderes.
Seria, portanto, o Estado responsável por promover a felicidade? A felicidade é
mensurável? É a mesma para todos e para qualquer um?
No âmbito nacional, a Constituição de 1988 não faz menção à felicidade, ao
contrário do contido em Constituições como a dos Estados Unidos da América, Coreia
do Sul e Butão, mas pode ser extraído de todo o contexto da Constituição Social e
Dirigente que edifica o Estado Brasileiro.
Ao traçar a dignidade da pessoa humana como fundamento da República e ao
estabelecer objetivos que permeiam a igualdade, a liberdade e a Justiça Social, não
há como se afastar o complexo sistema dos Direitos Fundamentais do Direito à
Felicidade ou, ao menos, no direito à busca da felicidade.
836

Objetiva-se, portanto, com o presente artigo, a discussão do direito à felicidade,


seu conteúdo jurídico e a aplicação aos direitos das crianças e dos adolescentes como
premissa para a concretização das políticas públicas e consolidação do princípio da
prioridade absoluta.
O método de abordagem empregado é o hipotético-dedutivo e o procedimento
constitui-se na revisão bibliográfica e na análise jurisprudencial, especialmente do
Supremo Tribunal Federal.
Para iniciarmos nosso artigo a grande indagação quanto ao tema e sua
positivação no Direito Brasileiro com status constitucional e bússola hermenêutica do
intérprete reside no conceito de felicidade e como alcançá-lo e trazemos
preliminarmente à colação esta citação que se traduz como ferramenta pragmática
para compreensão do conceito a ser jurisdicizado no Texto Magno de 1988:

Quais as relações entre o processo civilizatório e a felicidade humana? Os


benefícios da civilização são tangíveis e passíveis de mensuração. Um
conjunto expressivo de indicadores biomédicos, sociais e econômicos
atesta os ganhos objetivos em termos de longevidade, saúde,
escolarização, acesso a bens de consumo e tantos outros feitos derivados
do progresso científico e do aumento da produtividade. Mas quais têm sido
os efeitos de todas essas brilhantes conquistas no tocante à felicidade, ou
seja, tendo em vista a nossa satisfação em viver e o grau de realização
que esperamos e alcançamos em nossas vidas? Até que ponto a
civilização moderna tem promovido ou dificultado a busca da felicidade? 1

Eis a reflexão que se inicia.

PRIORIDADE ABSOLUTA E PROTEÇÃO INTEGRAL DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES NA CF/88 OU PODE CHAMAR DE CONCRETIZAÇÃO DO
DIREITO À FELICIDADE

O Texto Constitucional, no âmbito dos direitos da criança e adolescente,


representa uma nova narrativa e um marco divisório para compreensão do status
desse público alvo, personagens, a partir daí, considerados como protagonistas, ou
na expressão dogmática, sujeitos de direito em desenvolvimento.
Com a Assembleia Constituinte- idos de 1987 e 1988- houve uma forte atuação
dos movimentos sociais para a inserção da temática “criança e adolescente”, na
tessitura do Texto Maior Pátrio, sendo divididos precipuamente, e com maior
destaque, em dois grupos: os Menoristas e os Estatutistas.
O grupo de Menoristas defendia a manutenção do Código de Menores com o
fortalecimento da “Doutrina da Situação Irregular”, enquanto os Estatutistas
advogavam por inovações e fortes alterações na legislação com vistas a acompanhar
ordenamentos internacionais, os quais garantiam às crianças e aos adolescentes o
status constitucional de sujeitos de Direito, alicerçados pela “Doutrina da Proteção
Integral”.
Também por ocasião das discussões da Assembleia Nacional Constituinte,
responsável pela construção do texto da Constituição Cidadã, na Subcomissão da
Família, do Menor e do Idoso, Florestan Fernandes apresentou a Emenda 34, que
visava a conjugação dos direitos à vida, à saúde, à alimentação e à felicidade como

1
GIANNETTI, Eduardo. Felicidade. Diálogos sobre o bem estar da civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.10.
Disponível em: <http://baixardownload.jegueajato.com/Eduardo%20Giannetti/Felicidade%20(461)/Felicidade%20-
%20Eduardo%20Giannetti.pdf> Acesso em: 10.ago.2018.
837

imprescindíveis em todas as fases do desenvolvimento da criança. Contudo, a


Emenda foi considerada prejudicada, sob o argumento que: “Não podemos garantir,
no texto constitucional, o direito à felicidade, mas, sim, à vida, à saúde e à
alimentação, fatores essenciais ao pleno desenvolvimento do ser humano e, pois, à
sua felicidade e realização pessoal”.
Ainda, na Emenda 189, esta parcialmente aprovada e também proposta por
Florestan Fernandes, discutia-se, conforme a justificativa apresentada, os elementos
cruciais ao crescimento biológico, psicológico e cultural da criança (ainda chamada de
‘menor”), com a garantia do bem estar pleno que dá sentido à vida. Nesta emenda,
vida, saúde, alimentação, proteção de um lar, educação, recreação e felicidade são
enumerados como inerentes aos prazeres e aos valores da infância e da juventude.
Há, portanto, como se observa uma correlação do direito à felicidade como
expressão sinônima de bem-estar.2
Ao eleger como a base o que se convencionou nominar de “Doutrina da
Proteção Integral”, quis o legislador sublinhar a necessidade de proteção plena e
especial ao público infantojuvenil, a qual se justifica em virtude da maturidade física e
mental em desenvolvimento.
Também, o art. 227, caput, e o § 1º da Magna Carta trazem a obrigatoriedade
da intervenção estatal em relação à criança e ao adolescente. Dessa forma, não é
apenas o Estado que tem o dever de atuação, mas também toda a sociedade. Surge,
assim, o “dever de cooperação da sociedade”, bem como da família, com o Estado,
para assegurar os direitos fundamentais da criança, do adolescente.3
Deste modo, o art. 227 da CF/88 - inspirado nos ditames da Declaração
Universal dos Direitos da Criança de 1959 e fruto de grandes deliberações - traduziu
um querer, um mens legislatoris dos Constituintes de 1988, em especial, garantindo
às crianças e adolescentes um status constitucional diferenciado, responsável por
desencadear políticas públicas e interpretações judiciais mais contemporâneas e que,
no fim do percurso, conduzirão à igualdade e a promoção da justiça e do bem-estar
social na sociedade brasileira.
Não estaria aqui de maneira implícita o Direito à felicidade? Seria a felicidade
um direito liberal, ao resumir-se em sua busca ou um direito social a ser provido pelo
Estado?
A resposta pode estar, como na melhor das expectativas, no centro. O direito à
felicidade, deve apresentar-se como expressão da própria dignidade da pessoa
humana e, em assim sendo, materializa-se na conjugação das liberdades clássicas
essenciais com o provimento de direitos essenciais ao desenvolvimento integral de
crianças e adolescentes.
Deve ser dito que para a arquitetura dos direitos infanto-juvenis na Constituição
Federal de 1988 muitos textos normativos internacionais foram conclamados para
aportes paradigmáticos e nestes textos há menções à felicidade como direito das
crianças e adolescentes. Em um primeiro momento necessário se faz citar a
2
Neste sentido ver “A felicidade da superação das fomes humanas, inclusive do respeito aos direitos humanos, que
correspondem à idéia da dignidade humana, atualmente é esperança. Mas não é “mera esperança”, como algo que se posterga
indefinidamente e deva ser classificado entre as ilusões ou, quem sabe, entre as superstições da humanidade. É esperança
fundada na realidade, porque o desenvolvimento científico e técnico e a capacidade de produção dos homens já tornou este
sonho apto a tornar-se realidade, só sendo necessária a conjunção das condições objetivas com as subjetivas, ou seja, a
superação da “estultice culpada”, dos enganos e desvios políticos e morais, da decisão humana e da liberdade. Em outros termos,
para que a felicidade coletiva possa começar a tornar-se realidade, o desenvolvimento necessário é mais do plano da “vontade
política”, do aperfeiçoamento cultural e psicológico, do que antes se diria como “espírito”, pois as condições materiais estão
dadas.” ALBORNOZ, S. G. Ernst Bloch e a Felicidade Prometida. Revista Possibilidades, a. 02, n. 5, p. 6-9, 2005. Disponível
em: . Acesso em: 21 out. 2018.
3
SMANIO, Gianpaolo Poggio. A concretização da doutrina da proteção integral das crianças e dos adolescentes por meio
de políticas públicas. In CARACIOLA, Andrea Boari; ANDREUCCI, Ana Claudia Pompeu Torezan ; FREITAS, Aline da Silva.
Estatuto da Criança e do Adolescente, 20 anos. São Paulo: LTr, 2010, p.63.
838

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 reconhece que a criança, para
o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio
da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão, que deve estar
plenamente preparada para uma vida independente na sociedade e ser educada
especialmente com espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e
solidariedade.
Ademais, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 da Organização das
Nações Unidas declarou expressamente que “a criança tenha uma infância feliz e
possa gozar, em seu próprio benefício e no da sociedade, dos direitos e das
liberdades”.
A Organização das Nações Unidas, em assembleia realizada em 13 de julho
de 2011, conceituou a busca da felicidade como meta fundamental humana, cabendo
citar:

[...] reconhecendo a necessidade de promover o desenvolvimento


sustentável e atingir as Metas de Desenvolvimento do Milênio, 1. Convida
os Estados Membros a
perseguirem a elaboração de indicadores adicionais que melhor capturem
a importância da busca da felicidade e do bem-estar no desenvolvimento,
com vistas a orientar suas políticas públicas [...].

Quanto ao tema merece destaque a Proposta de Emenda Constitucional, a


PEC 19/2010, de autoria do senador Cristovam Buarque que tramitou no Senado
Federal buscando alterar o art. 6º, com a vocação de comungá-los como um conjunto
essencial de direitos necessários para a busca da felicidade. Para Buarque a
positivação desse direito se faz indispensável para a humanização da política,
deixando de ser o desempenho da sociedade brasileira medido apenas pela Renda
per capita (PIB), mas sim em consonância com direitos sociais e políticos, cabendo
ao Estado atingir este objetivo:

Felicidade é uma questão pessoal, mas o caminho para ela depende do


entorno social onde a pessoa vive; e esse entorno é construído ou
desconstruído pela política, pela família, cidade, país e até mesmo pelo
mundo. Por isto, o caminho para a busca da felicidade pessoal depende
das políticas que administram a sociedade.4

Há uma linha de linha de pensamento de que advoga que o Direito à felicidade


encontra-se de forma explícita na CF/88 e se traduz como um dos corolários do Estado
de Bem-Estar social:

O que defendemos, portanto, é que a Constituição Federal de 1988


ampara o direito à felicidade explicitamente, quando trata do bem-estar e,
implicitamente, quando possibilita que ele ingresse no ordenamento
jurídico brasileiro aliado a outros dispositivos constitucionais, como o
direito à liberdade (direito à busca da felicidade) ou o direito à saúde
(direito prestacional à felicidade). 5

O Supremo Tribunal Federal já mencionou expressamente o direito à busca da


felicidade ao manifestar-se acerca do conflito entre paternidades socioafetiva e
biológica.

4
BUARQUE, Cristovam. Felicidade e política. Disponível em:<http://www.lexml.gov.br>. Acesso em: 07 set. 2018.
5
LEAL, Saul Tourinho. Direito à Felicidade. São Paulo: Almedina, 2017, p.271.
839

O direito à busca da felicidade, implícito ao art. 1º, III, da Constituição, ao


tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-
político, reconhece as suas capacidades de autodeterminação,
autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, proibindo
que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a
persecução das vontades particulares. Precedentes da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América e deste Egrégio Supremo Tribunal
Federal: RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 26/08/2011;
ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 14/10/2011. 7. O indivíduo
jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das
vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade
protege o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a
sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei.6.

Em outra oportunidade, o valor do direito à felicidade como princípio norteador


da interpretação é patente:

O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa -


considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) -
significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e
inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País, traduz,
de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós,
a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito
constitucional positivo. Doutrina. - O princípio constitucional da busca da
felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o
postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo
relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos
fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como
fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência
possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias
individuais. - Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o
direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito,
que se qualifica como expressão de uma idéia-força que deriva do
princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Precedentes do
Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte americana. Positivação
desse princípio no plano do direito comparado 7.

Depreende-se, portanto, que tal como o princípio da dignidade da pessoa


humana, que deve nortear toda a interpretação acerca dos direitos fundamentais, o
direito à felicidade deve ser o fim buscado pelas políticas públicas, em especial às
voltadas para a proteção das crianças e adolescentes, diante do cenário traçado pela
Constituição Cidadã.

CONCLUSÕES

Consideramos que o direito à felicidade no âmbito da salvaguarda de crianças


e adolescentes encontra-se traduzido nos princípios da proteção integral e prioridade
absoluta declarados constitucionalmente como os núcleos essenciais da temática.
Proteção integral e prioridade absoluta encontram seus fundamentos nos
diplomas internacionais paradigmáticos bem como são os responsáveis pela

6
STF, RE 898060, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO
REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-187 DIVULG 23-08-2017 PUBLIC 24-08-2017.
7
STF. RE 477554 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 16/08/2011, DJe-164 DIVULG 25-08-
2011 PUBLIC 26-08-2011 EMENT VOL-02574-02 PP-00287 RTJ VOL-00220-01 PP-00572.
840

arquitetura de legislações projetivas no âmbito do Direito da Criança e do Adolescente


com destaque, em especial, para o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/90,
bem como o Marco Legal da Primeira Infância, Lei 13.257/2016, ambos voltados para
a articulação de políticas públicas de desenvolvimento infanto-juvenil.
Enfatizamos que o direito à felicidade ao ser considerado como um conceito
indeterminado, etéreo ou apenas no plano na idealidade pode obstaculizar a sua
efetiva dogmatização e pragmatismo. Ao contrário disso ao pensarmos na busca da
felicidade como direito constitucional ao desenvolvimento, ao bem-estar social e para
a consolidação de sujeitos de direito em desenvolvimento a concretude se faz
presente no necessário protagonismo do Estado na efetivação de Direitos Sociais em
prol de crianças e adolescentes no Brasil.
Acreditamos que na celebração dos 30 anos da Constituição Federal de 1988,
a dogmatização crescente de direitos, a consciência social para a articulação de
demandas e o papel do Poder Judiciário têm sido de extrema importância para a
efetivação do Direito à felicidade, que se para alguns não se encontra explícito, para
nós já vêm sendo aos poucos concretizado.

REFERÊNCIAS

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02, n. 5, p. 6-9, 2005. Disponível em:
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Estatuto da Criança e do Adolescente, 20 anos. São Paulo: LTr, 2010.
841

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E TRANSINDIVIDUAIS DAS CRIANÇAS E


ADOLESCENTES E OS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E PARTICIPAÇÃO
APLICADOS EM PROL DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL DAS PRESENTES E
FUTURAS GERAÇÕES
THE FUNDAMENTAL AND TRANS-DIVIDENTIAL RIGHTS OF CHILDREN AND
ADOLESCENTS AND THE PRINCIPLES OF PREVENTION AND PARTICIPATION
APPLIED FOR THE SOCIAL DEVELOPMENT OF THE PRESENT AND FUTURE
GENERATIONS
Neusa Messias Migliorini

Resumo: O presente resumo expandido tem por objetivo demonstrar que os


Princípios da Prevenção e Participação presentes no Estatuto da Criança e do
Adolescente garantem direitos transindividuais de suma importância não só para as
crianças e adolescentes, mas para toda a sociedade, pois o bem estar das crianças e
adolescentes é de interesse de todos, além de indispensáveis à manutenção,
desenvolvimento e aprimoramento dos direitos e garantias fundamentais das
presentes e futuras gerações, cuja lesão a estes direitos, mesmo de forma reflexa,
poderá atingir a todos indistintamente. Para tanto, a partir da análise do
desenvolvimento saudável e os direitos fundamentais, apresenta a proteção das
crianças e adolescentes e a aplicação dos princípios da prevenção e participação, a
responsabilidade sobre a efetividade dos direitos fundamentais das crianças e
adolescentes, e por fim, o Estatuto da Criança e do Adolescente como instrumento de
participação nas políticas direcionadas às crianças e adolescentes.
Palavras-chave: Estatuto da Criança e do Adolescente; Princípios; Prevenção e
Participação. Direitos Fundamentais; Direitos transindividuais.

Abstract: The purpose of this expanded summary is to demonstrate that the Principles
of Prevention and Participation in the Child and Adolescent Statute guarantee trans-
individual rights of paramount importance not only for children and adolescents, but for
society as a whole, since the well-being of children and adolescents is in everyone's
interest, as well as indispensable for the maintenance, development and improvement
of the fundamental rights and guarantees of present and future generations, whose
harm to these rights, even in a reflexive way, can affect all indistinctly. To that end,
based on the analysis of healthy development and fundamental rights, it presents the
protection of children and adolescents and the application of the principles of
prevention and participation, responsibility for the effectiveness of the fundamental
rights of children and adolescents, and finally, the Statute of the Child and Adolescent
as an instrument of participation in the policies directed to children and adolescents.
Keywords: Statute of the Child and Adolescent; Principles; Prevention and
Participation. Fundamental rights; Transindividual rights.

INTRODUÇÃO

O presente resumo traz à reflexão os Princípios da Prevenção e Participação


encontrados no Estatuto da Criança e do Adolescente e quer chamar atenção para
sua importância não só para as crianças e adolescentes, destinatários da norma
estatutária, mas para todos os seres humanos, assim compreendidas as presentes e
futuras gerações, uma vez que são destinados à proteção integral dos direitos
fundamentais das crianças e adolescentes, e, a proteção destes, é um dever de toda
842

a sociedade, caracterizando-se como um direito difuso, ou seja, transindividual, cuja


lesão atinge a todos indistintamente.
Nos dias atuais não há como pensarmos como interesse privado a forma com
que muitos pais ou responsáveis estão conduzindo a formação psicológica e
educacional de seus filhos, assim como a violência empregada com a suposta
justificativa de educar, bem como acreditarmos que é de estrita responsabilidade do
poder Público à condução das políticas Públicas relacionadas às crianças e
adolescentes que estão em situação de risco ou irregular, uma vez que este
direcionamento faz com que pessoas que ainda não tem seu desenvolvimento
psicológico completo apresentem deficiências que não poderão ser revertidas ou que
sua possível melhora pode onerar em demasia toda a sociedade, não sendo esta
onerosidade entendida apenas no sentido financeiro, mas com relação a danos,
violência e bem estar.
A reflexão sobre o tema se mostra de grande relevância diante dos vários
argumentos trazidos pela sociedade a qual hoje é mais sensível ao sofrimento alheio
e muito mais quando se fala do sofrimento de crianças e adolescentes, haja vista sua
visível vulnerabilidade. Podemos citar como exemplo de comoção social dois crimes
que vitimaram crianças e sua grande repercussão social, tendo como protagonistas:
a menina Isabella e o menino Bernardo.
Portanto, faremos a exposição de maneira breve e sucinta de tópicos
relacionados ao tema que nos levam a concluir a importância da proteção integral dos
direitos fundamentais das crianças e adolescentes e da participação da sociedade na
defesa desses direitos, haja vista ser a destinatária de seus reflexos.
Pretende-se, nesse estudo, angariar fundamentos para reforçar que o bem
estar das crianças e adolescentes não é algo de interesse apenas de seus pais e
familiares, mas de todos, haja vista ser um direito difuso, cuja lesão atinge a todos
indistintamente, assim como para afirmar que os direitos fundamentais das crianças e
adolescentes estão estritamente atrelados aos princípios da prevenção e participação
e são indispensáveis para o desenvolvimento social das presentes e futuras gerações.
Para tanto, temos como tópicos fundamentais: o desenvolvimento saudável e
os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, a proteção das crianças e
adolescente e a aplicação dos princípios da prevenção e participação, assim como a
responsabilidade sobre a efetividade dos direitos fundamentais das crianças e
adolescentes e as politicas de participação da sociedade trazidas pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente.

1. O INTERESSE PRIVADO E O INTERESSE PÚBLICO

A discussão sobre o interesse na defesa de um direito sempre foi fundamental


para exigir-se do Estado sua proteção.
Na sociedade moderna tornou-se meta de justiça o coletivo prevalecer sobre o
individual, mas nem sempre foi assim.
Os direitos coletivos já eram discutidos na Revolução Francesa, que
recordemos tinha como lema: liberdade, igualdade e fraternidade. Há maior exemplo
de interesse coletivo do que a fraternidade? Ser fraterno é ser irmão e verdadeiros
irmãos compartilham o que tem: os pais, a casa, a comida, os objetos, as alegrias, as
tristezas.
É assim que pensamos quando temos que conceituar o direito difuso, ou seja,
aquele que é compartilhado por todos e sua divisão pode desqualificá-lo ou ser
843

impossível, haja vista uma de suas características e sua indivisibilidade, desta forma
trata-se de um interesse de todos.
Todavia tecnicamente o conceito de direito difuso é encontrado no código de
defesa do consumidor em seu artigo 81, parágrafo único I do Código de Defesa do
Consumidor, sendo aqueles transindividuais (metaindidividuais, supraindividuais,
pertencentes a uma coletividade), de natureza indivisível (só podem ser considerados
como um todo), e cujos titulares sejam pessoas indeterminadas (ou seja,
indeterminabilidade dos sujeitos não havendo individualização, ligadas por uma
situação de fato e não existindo um vínculo comum de natureza jurídica. (Diddier
Junior, 2002, fl.76).
Portanto, tratando-se de direito difuso, o interesse no bem-estar de todas as
crianças e adolescentes é imprescindível a toda sociedade sua efetividade.

2. O DESENVOLVIMENTO SAUDÁVEL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Podemos garantir que o ordenamento jurídico reconheceu que as crianças e


adolescentes apenas se desenvolverão de forma saudável física e psicologicamente
se usufruírem dos direitos fundamentais desde o nascimento.
O Estatuto da Criança e do Adolescente preocupou-se com a saúde das
crianças antes mesmo de seu nascimento, ou seja, desde a sua concepção, deixando
claro que às crianças e adolescentes são indispensáveis à manutenção,
desenvolvimento e aprimoramento dos direitos e garantias fundamentais das
presentes e futuras gerações e da mesma forma que o bem ambiental devem ser
preservados e protegidos por toda a sociedade, uma vez que no futuro serão elas que
ocuparão os cargos de comando e operacionais das instituições públicas e privadas
e decidirão os caminhos de sua época em todas as funções existentes na sociedade
e apenas valorizarão as lutas para a obtenção dos direitos fundamentais e entenderão
sua importância para a evolução dos direitos humanos se usufruírem destes desde o
nascimento.

3. A PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTE E A APLICAÇÃO DOS


PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E PARTICIPAÇÃO.

Para que as crianças e adolescentes sejam protegidas da negligência,


discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão é necessário a aplicação
dos Princípios da Prevenção e Participação, pois um dano ou omissão aos direitos
fundamentais das crianças e adolescentes tem consequências imensuráveis podendo
refletir na sociedade, assim entendida como família, comunidade e Estado.
Esses reflexos podem ser sentidos a curto ou longo prazo dependendo da
intensidade do dano ou omissão.
Desta forma disciplinando a Política de Prevenção, encontramos os artigos 70
a 85 do Estatuto da Criança e do Adolescente, os quais regulamentam o artigo 227
da Constituição Federal, no que se refere à prevenção da ocorrência de ameaça ou
violação aos direitos das crianças e dos adolescentes, além de reforçar que o dever
da prevenção é da família, da sociedade e do Estado.
Havendo violação ou ameaça aos direitos fundamentais das crianças e
adolescentes, deve-se por em prática a Política de Proteção para fazer cessar de
imediato, lesão ou ameaça aos direitos destes, colocando-os a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão; considerando suas
necessidades pedagógicas e tendo como ponto principal o fortalecimento dos vínculos
844

familiares e comunitários, haja vista o desenvolvimento saudável das crianças e dos


adolescentes ser benéfico não só para família, mas para todos.
Essas medidas de proteção devem ser aplicadas objetivando os fins sociais
a que se destinam e ter como meta garantir o restabelecimento do pleno exercício dos
direitos fundamentais das crianças e adolescentes, visando seu desenvolvimento
como pessoa, ilidindo ou minimizando danos posteriores a eles e à sociedade em
geral. Porém, não temos como pensar em prevenção e proteção dos direitos da
infância e juventude se não existir uma participação de toda a sociedade para atingir-
se esta meta.

4. A RESPONSABILIDADE SOBRE A EFETIVIDADE DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES

O artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente atribui à família, à


comunidade e à sociedade em geral, bem como ao Poder Público, o dever de
assegurar, com absoluta prioridade, a efetividade dos direitos referentes à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência família e comunitária,
direitos fundamentais das crianças e adolescentes.
Também está regulamentado no mesmo artigo, em seu parágrafo único, que
as crianças e adolescentes têm primazia em todas as Políticas Públicas e que esta
primazia compreende a proteção e socorro em circunstâncias como: a precedência
de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; a preferência na
formulação e na execução das políticas públicas e a destinação privilegiada de
recursos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

5. O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE COMO INSTRUMENTO DE


PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE NAS POLÍTICAS DIRECIONADAS ÀS CRIANÇAS
E ADOLESCENTES.

Frisamos que encontramos no Estatuto da Criança e do Adolescente


instrumentos de participação de toda a sociedade na defesa dos direitos das crianças
e dos adolescentes, sendo que destacamos os Conselhos Municipais, Estaduais e
Nacionais dos direitos da Criança e do Adolescente, os conselhos Tutelares e o direito
de ação, individual e coletivo.
Por sua vez, somente uma comunidade informada e educada para a
necessidade da defesa dos direitos da infância e juventude e os reflexos que a lesão
a estes direitos podem trazer à sociedade, conscientemente escolherá os membros
dos conselhos de direitos das Crianças e Adolescentes, dos Conselhos Tutelares e
das organizações em defesa destes direitos, visando à efetividade das diretrizes
asseguradas na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, por
meio de uma Política de atendimento que tem como base a participação, em conjunto,
de ações governamentais e não governamentais, da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste momento, só nos resta concluir que o tema é vasto e garante uma
pesquisa mais profunda, porém com base nas alegações trazidas afirmamos que não
devemos nos distanciar do pensamento que os adultos, que hoje estão nos cargos de
845

comando e operacionais, que são os chefes de família, administram empresas, criam


políticas públicas e são responsáveis pelo desenvolvimento econômico e social do
País e do mundo serão substituídos no futuro pelas crianças e adolescentes, os quais
estão se desenvolvendo e formando suas convicções e que têm no adulto o exemplo
e modelo de crenças e valores, que poderão se perpetuar, se aprimorar ou se perder
dependendo da maneira que seus direitos fundamentais são preservados e assimilam
os valores estruturantes da sociedade em que vivem, sendo de suma importância a
conscientização de todos da necessidade de garantirmos o bem estar das crianças e
adolescentes indistintamente para esperarmos uma sociedade mais justa e igualitária.

REFERÊNCIAS

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Comentários Jurídicos e sociais. Coordenador Munir Cury. são Paulo Malheiros
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lei. Florianópolis: jurisprudência Catarinense, 1992.
BENGEL DE PAULA, Dirce Maria. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado.
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Paulo: Saraiva, 1996.
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Comentários ao Código de Menores. São Paulo. Saraiva,
1988.
PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da Criança e do Adolescente. Uma Proposta
Interdisciplinar. Rio de janeiro: Renovar, 2008.
846

Grupo de trabalho:

DIREITOS HUMANOS I
Trabalhos publicados:

A EFICÁCIA DA TIPIFICAÇÃO PENAL DE CRIMES COMETIDOS CONTRA


PESSOAS LGBTIS POR QUESTÃO DE GÊNERO E/OU ORIENTAÇÃO SEXUAL

A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE REFUGIADO E A LEI N. 13.445 DE 2018

A ORIGEM DOS ESTADOS NACIONAIS E SUA RELAÇÃO COM OS POVOS


TRADICIONAIS NA FRONTEIRA DO MATO GROSSO DO SUL: BREVES
ANOTAÇÕES ACERCA DOS DIREITOS HUMANOS E SUA EFETIVIDADE

DIREITO HUMANO E FUNDAMENTAL À SAÚDE NOS PRESÍDIOS FEDERAIS


BRASILEIROS

ERRO DE PESSOA EM RAZÃO DA TRANSEXUALIDADE: ANULAÇÃO DE


CASAMENTO E SEUS POSSÍVEIS EFEITOS CRIMINAIS À LUZ DOS DIREITOS
HUMANOS DA PESSOA TRANSEXUAL

NEM SÍSIFO NEM ASVERO: A GRANDE NARRATIVA FRATURADA E A


DESCOLONIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

O BULLYING HOMOFÓBICO NAS ESCOLAS COMO ÓBICE AO


DESENVOLVIMENTO DA CIDADANIA EM UMA PERSPECTIVA DE DIREITOS
HUMANOS

O LIMITE DAS OBRIGAÇÕES DO ESTADO NO FORNECIMENTO DE


MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO A PACIENTES COM NEOPLASIA MALIGNA
(CÂNCER)
847

A EFICÁCIA DA TIPIFICAÇÃO PENAL DE CRIMES COMETIDOS CONTRA


PESSOAS LGBTIS POR QUESTÃO DE GÊNERO E/OU ORIENTAÇÃO SEXUAL
LA EFECTIVIDAD DE LOS DELITOS DELICTIVOS COMETIDOS CONTRA LAS
PERSONAS LGBT COMO CUESTIÓN DE GÉNERO Y/O ORIENTACIÓN SEXUAL

Pedro Henrique de Jesus Silva


Lucilo Perondi Júnior

Resumo: O presente trabalho visa analisar a eficácia da tipificação penal de crimes


cometidos contra pessoas LGBTIs por questão de gênero e/ou orientação sexual.
Objetiva-se analisar eventual necessidade de mutação da norma penal para reger a
problemática dos crimes motivados pelo preconceito, intolerância e discriminação, em
razão do gênero e orientação sexual. Optou-se pela pesquisa bibliográfica doutrinária
e legal, utilizando-se o método dedutivo. Justifica-se a pesquisa pelos altos índices de
violência sofrida por pessoas LGBTIs, revelados nos dados do relatório de violência
lgbtifobica, no ano de 2013, no Brasil e no relatório do Movimento Gay da Bahia
publicado em 2016. Esses dados indicam que há a necessidade de ampliação ou
modificação da legislação penal vigente para proteger essa minoritária, a fim de
alcançar uma igualdade substancial baseada no princípio da igualdade e na Dignidade
da Pessoa Humana.
Palavras-chave: orientação sexual; identidade de gênero; crimes.

Resumen: El presente trabajo pretende analizar la efectividad de la tipificación


delictiva de los delitos cometidos contra las personas LGBT como cuestión de género
y/o orientación sexual. Se pretende analizar la eventual necesidad de mutar la norma
penal para regir el problema de los delitos motivados por los prejuicios, la intolerancia
y la discriminación, debido al género y a la orientación sexual. Se eligió la investigación
bibliográfica y jurídica, utilizando el método deductivo. Se justifica investigar los altos
niveles de violencia sufridos por las personas LGBT, revelados en los datos del
informe de violencia lgbtifobica, en el año 2013, Brasil y el informe del movimiento gay
de Bahia publicado en 2016. Estos datos indican que es necesario ampliar o modificar
el actual derecho penal para proteger a esta minoría a fin de lograr una igualdad
sustancial basada en el principio de igualdad y la dignidad de la persona humana.
Palabras clave: orientación sexual; identidad de género; crímenes.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 traz como fundamento, em seu artigo 1°, inciso
III, a Dignidade da Pessoa Humana, e tem como princípio fundamental a igualdade,
prevista em seu artigo 5° caput. Partindo dessas premissas, no que tange a promoção
dos direitos e garantias para a minoria sexual, mais precisamente para as pessoas
LGBTIs (gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais), o Brasil
ainda se encontra entre os países que mais violam os direitos dessas pessoas, tanto
por ações quanto por omissões, o que enseja a marginalização e maior
vulnerabilidade dessa pequena comunidade. Isso porque, os direitos LGBTI ainda são
pouco debatidos no campo político, midiático e social, o que gera cada vez mais
violações à honra, à integridade física ou à vida dessas pessoas.
Esse cenário demonstra que não há, no País, legislação protetiva penal que
vise proibir e erradicar as violações supramencionadas, o que, de maneira indireta,
contribui com a prática de crimes cometidos por aversão a orientação sexual ou
848

identidade de gênero, distintas da tradicional. Isso faz com que esse grupo social viva,
em sua maioria, em situação de marginalização e subalternização em relação aqueles
que se enquadram no padrão tradicional ou, para alguns, heteronormativo.
O Direito como ciência social aplicada tem o papel de acompanhar e tutelar as
mudanças que a sociedade sofre ao longo do tempo, seja regendo situações para
toda uma sociedade, seja para resguardar a honra, a vida e a integridade física de
grupos específicos, a exemplo da comunidade LGBTI. Assim, a omissão legislativa
mencionada, enseja no aumento dos índices de crimes cometidos em face dessa
comunidade.
Somente pelos altos índices de violações auferidos, como consequência da
omissão legislativa, tem-se a certeza de que a criminalização e uma maior
reprovabilidade das condutas lgbtifobicas são necessárias, para que a igualdade e a
dignidade da pessoa humana sejam eficazes, eficientes e efetivas no País.
No entanto, tal política penal impõe variada gama de intervenções, fazendo
com que a cultura de preconceito, discriminação e intolerância seja cada vez mais
desestimulada, fazendo da igualdade e dignidade humana fatores que fomentam e
movem o respeito ao próximo.
Deve o Poder legislativo criar e alterar normas que visem propiciar um efetivo
controle social das condutas discriminatórias, mais precisamente lgbtifobicas, uma vez
que há no País a Lei n°. 7.716 de 1989, denominada Lei do Racismo, a qual proíbe
qualquer manifestação discriminatória em razão de religião, cor e raça ou etnia, porém
não abarca as condutas supramencionadas, nesse sentido:

É enorme preconceito de que são alvo, a perseguição que sofrem, a


violência de que são vítimas. E ainda assim não existe uma legislação que
reconheça direitos a gays, lésbicas bissexuais, travestis e transexuais, ou
criminalize os atos homofóbicos de que são vítimas. Pontes de Miranda,
o nosso jurista maior, diz que a lei carimba um fato, atribuindo-lhe uma
consequência jurídica. Grosso modo esta é a função do legislador:
apreender um fato social, o transformar em uma norma jurídica e prever
uma sanção para o caso de descumprimento. Portanto, as leis servem de
norte de como as pessoas devem agir. Criam pautas de conduta, modelos
de comportamentos que irão reger a vida em sociedade. Este é o
significado maior da atividade legiferante. (...)
O lado mais perverso desta omissão é que manifestações homofóbicas,
por não serem reconhecidas como crime, asseguram a impunidade, o que
acaba incentivando a prática de crimes de ódio.1

Assim, diante dos altos índices de crimes cometidos contra as pessoas LGBTIs,
ensejados pela aversão à orientação sexual e à identidade de gênero, as quais fogem
dos padrões tradicionais, pergunta-se: Seria necessária a tipificação dos crimes
cometidos por aversão à orientação sexual ou à identidade de gênero? Diante dessa
problemática, objetiva-se analisar eventual necessidade de mutação da norma penal,
a fim de reger a problemática dos crimes motivados pela intolerância e discriminação
em razão de gênero e orientação sexual.
Para desenvolvimento da pesquisa, a metodologia de trabalho centrou-se nos
principais aspectos estabelecidos para uma pesquisa interdisciplinar, a qual envolve
temas de Direito Penal, Direitos Humanos e Direito Constitucional.
Para análise do tema proposto, foi utilizada como técnica de pesquisa a revisão
bibliográfica doutrinária e legal, bem como estudos especializados, principalmente em
1
Maria Helena Diniz. A homofobia e a omissão do legislador, 2012, p.1. Disp. em:
http://mariaberenice.com.br/uploads/a_homofobia_e_a_omiss%E3o_do_legislador_-_rlatorio_azul.pdf, data de acesso
07/10/2017.
849

direito das pessoas LGBTI, assim como literatura especializada na criminalização da


lgbtifobia. Para o desenvolvimento do estudo e suas correlatas conclusões, utilizou-
se o método dedutivo, uma vez que se têm como marco inicial o relatório estatístico
de violência homofóbica no Brasil no ano de 2013 e o relatório 2016 de assassinatos
de LGBT no Brasil, bem como o posicionamento doutrinário para verificar a validade
de alguma das hipóteses iniciais, objetivou-se ainda, encontrar uma solução para a
problemática que ensejou a presente pesquisa.
Optou-se pelo método procedimental estatístico, uma vez que como
mencionado a pesquisa partiu da análise dos dados auferidos nos relatórios
supramencionados.

DESENVOLVIMENTO

O primeiro capitulo, aborda os principais conceitos, significados e expressões


necessários para maior compreensão do tema estudado; a priori é feita minuciosa
diferenciação entre identidade de gênero e orientação sexual e a posteriori é feita a
conceituação do termo discriminação, bem como é analisada a sigla LGBTI, com a
inclusão da letra I, a fim de dar maior visibilidade as pessoas intersexuais.
O tópico seguinte, trata sobre a violência sofrida pelas pessoas LGBTIs, de
forma que serão apresentados os dados auferidos pelo Ministério dos Direitos
Humanos, bem como pelo Movimento Gay da Bahia, para que, a partir desses dados,
seja analisada de forma mais ampla a omissão legislativa, levando em consideração
os projetos de lei propostos, bem como a sua tramitação até a conclusão do trabalho,
no Congresso Nacional.
O terceiro item da pesquisa discorre sobre o princípio constitucional da
República, qual seja a igualdade, assim como um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito, denominado Dignidade da Pessoa Humana, levando em
consideração a omissão legislativa acerca do tema estudado, apontando eventual
violação tanto ao texto constitucional, quanto a tratados de direitos humanos
ratificados pelo Brasil.
O quarto capitulo, por sua vez, analisa a necessidade de tipificação dos crimes
cometidos em face dos membros da comunidade LGBTI, bem como a legislação penal
a ser alterada pelo Poder Legislativo, uma vez que se entendeu necessária maior
reprovabilidade penal para crimes cometidos com o cunho discriminatório, ensejados
pela aversão a orientação sexual e identidade de gênero que fogem da seara
tradicional, denominada de heteronormativa.
Ao final, é feito mapeamento dos países que garantem proteção às pessoas
LGBTIs e que punem manifestações discriminatórias em face desse grupo objeto de
estudo.

CONCLUSÃO

Postos tais esforços acima, não se pode mais o Poder Legislativo omitir-se e
não garantir proteção penal para a minoria sexual LGBTI, uma vez que, enquanto
minoria, essas pessoas merecem uma proteção penal específica, que lhes garanta
segurança, inviolabilidade a sua orientação sexual e identidade de gênero, punindo
todas as condutas preconceituosas, discriminatórias e intolerantes, que desrespeitem
a sua honra e imagem, assim como as que ofendam a integridade física e psíquica ou
até mesmo a vida das pessoas que pertencem ao grupo.
850

Deve-se, ainda, intensificar e buscar cada vez mais iniciativas para um contínuo
aprimoramento e adaptação da legislação e demais normatizações em vigor, visando
à superação do componente cultural, arraigado à tradição das antigas práticas, com a
educação e capacitação das pessoas para o respeito ao próximo, de sorte a facilitar
as pessoas LGBTIs viverem em igualdade com os demais membros da sociedade,
bem como para que vivam com o mínimo de dignidade humana possível de modo que
não sejam obrigados a viver em condição de marginalidade e subalternização social.
Ora, não pode os legisladores se omitirem de forma a privilegiar um modelo ou
grupo social pelo simples fato de se enquadrarem no padrão tradicional, que sempre
foi bem visto pela sociedade, de modo que exclua as pessoas que não se enquadram
no padrão denominado de heteronormativo, pois, ao agir de tal forma, eles estariam
violando princípios e fundamentos esculpidos na Carta Maior do ordenamento jurídico
pátrio.
Por sua vez, deve-se ainda facilitar o controle social e a participação popular
nas políticas públicas, dando maior eficiência e efetividade na busca de promoção dos
direitos e garantias constitucionais.
Assim, conclui-se como necessária a mutação da norma penal vigente, para
que se adequem a novas práticas, novas formas de orientação sexual e identidade de
gênero, de modo que o Estado Democrático de Direito cumpra o seu papel, conforme
determina o texto constitucional, bem como os tratados de direitos humanos
ratificados pelo país.

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852

A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE REFUGIADO E A LEI N. 13.445 DE 2017


LA EVOLUCIÓN DEL CONCEPTO DE REFUGIADO Y LA LEY N. 13.445 DE 2017

Ana Carolina dos Santos


Vladimir Oliveira da Silveira

Resumo: Neste trabalho discute-se a evolução do conceito de refugiado por meio dos
principais documentos internacionais e domésticos sobre o assunto. Considerando o
amadurecimento legislativo brasileiro, trabalha-se com a hipótese de que o conceito
de refugiado foi ampliado gradativamente para se adequar aos novos fluxos
migratórios existentes. Dessa forma, o presente estudo tem por objetivo descrever e
analisar as principais conceituações advindas com os instrumentos internacionais
acerca dos refugiados e o que a Lei n. 13.445 de 2017 aborda a respeito, com escopo
de refletir se o conceito restou entendido ou restringido. Por se tratar de um estudo
descritivo e exploratório, utiliza-se o método dedutivo, bem como a revisão
bibliográfica e histórica dos temas em questão.
Palavras chave: Estatuto dos Refugiados; Lei de Migração; Fluxos Migratórios.

Resumen: En este trabajo discute la evolución del consentimiento de refugiados para


dos principales documentos internacionales y nacionales. Considerando o alterando
la legislación brasileña, se debe suponer que el acuerdo de refugiados se ha extendido
gradualmente para acomodar los nuevos existentes fluviales migratorios. De esta
forma, o presente estudio tiene por objetivo describir y analizar como principales
concepciones surgidas con instrumentos internacionales sobre dos refugiados y lo que
la Ley n. 13.445 de 2017 trata con respeto, con el concepto de entenderse o restringir.
Por tratarse de un estudio descriptivo y exploratorio, se utiliza o un método deductivo,
como revisión bibliográfica e histórica, dos temas en cuestión
Palabras clave: Estatuto de los Refugiados; Ley de Migración; Flujos Migratorios.

INTRODUÇÃO

A busca por melhores condições de vida faz parte da evolução da espécie


humana. O instinto de sobrevivência leva as pessoas a saírem de seus países para
outros, mesmo sem saber o que vão encontrar pela frente razão da proteção à vida.
É nesse contexto que surgem os fluxos migratórios de refugiados, pós 2ª Guerra
Mundial, e o Estatuto dos Refugiados de 1951 e, adiante, novos instrumentos de
proteção internacionais e domésticos.
Com efeito, considerando a quantidade de pessoas que se deslocaram no
continente europeu durante e após a Segunda Guerra Mundial surgiu a necessidade
de se regulamentar as obrigações dos Estados receptores, com o escopo de evitar
que a solicitação de abrigo, consubstanciado na proteção a vida, interferisse no poder
e na soberania estatal. O primeiro instrumento internacional a apresentar diretrizes
aos Estados europeus para garantir a entrada de pessoas de outras nacionalidades,
pós Segunda Guerra Mundial, foi o Estatuto dos Refugiados de 1951, o qual também
delimitou o âmbito de validade da referida norma, bem como, o conceito de refugiado.
Num primeiro instante pensava-se que o Estatuto dos Refugiados de 1951 seria
o suficiente para controlar o fluxo migratório pós-guerra, o que de fato não aconteceu,
uma vez que a circulação de pessoas estava em ascensão por diversos motivos,
sendo necessário, novamente, outras políticas de apoio. Nesse contexto, no cenário
internacional foram negociados e aprovados o Protocolo Adicional ao Estatuto dos
853

Refugiados de 1967, a Convenção da Organização de Unidade Africana de 1969 e a


Declaração de Cartagena de 1984.
No panorama brasileiro, a Constituição Federal de 1988 ao positivar o princípio
da dignidade humana, como fundamento da República Federativa do Brasil, criou
subsídios para regulamentar, consoante às normas internacionais ratificadas, a
condição dos refugiados em solo brasileiro. Isso restou caracterizado com o advento
do Estatuto dos Refugiados de 1997. Ainda no cenário doméstico, recentemente o
Congresso Nacional aprovou a Lei do Migrante, Lei n. 13.445 de 2017.
Assim sendo, considerando as definições sobre refugiados oriundas dos
instrumentos internacionais e a evolução normativa brasileira, o presente estudo tem
por objetivo descrever e analisar as principais conceituações expostas nos seguintes
documentos: Estatuto dos Refugiados de 1951, o Protocolo Adicional ao Estatuto dos
Refugiados de 1967, a Convenção da Organização de Unidade Africana de 1969 e a
Declaração de Cartagena de 1984; bem como, as disposições da Constituição Federal
de 1988, do Estatuto dos Refugiados de 1997 (norma doméstica) e a positivação da
Lei do Migrante; com escopo de refletir se o conceito restou entendido ou restringido.
Por fim, por se tratar de um estudo descritivo e exploratório, utiliza-se o método
dedutivo, bem como a revisão bibliográfica documental e histórica do tema em debate.

1 PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS

O fluxo migratório de refugiados é um tema atual e que merece uma análise


detida. Trata-se de uma realidade que bate à porta dos Estados diariamente sendo,
então, imperioso o conhecimento desta temática para a efetivação dos direitos
humanos.
Antes da elaboração do Estatuto dos Refugiados de 1951 o mundo suportou
uma das guerras mais violentas e marcantes da história, a Segunda Guerra Mundial,
na qual houve violações à vida humana sem precedentes, “especialmente aos
horrores praticados nos campos de concentração da Alemanha nazista” (GUERRA,
2014, p. 129). Em razão disso, com o fim da guerra os líderes mundiais dos países
aliados (vencedores) se preocuparam em evitar que outros conflitos se valessem dos
mesmos artifícios, surgindo, então, uma política de proteção da vida humana, iniciada
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 19481.
Em 1950, observando o número de pessoas que se deslocavam para fugir dos
conflitos armados, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou um braço de sua
organização denominada de Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados (ACNUR), o qual tem por incumbência zelar pela aplicação das normas
internacionais referentes aos refugiados e evitar que o caráter social e humanitário de
proteção se torne um problema para os Estados receptores (ONU, ACNUR, 2001).
Gustavo Pereira afirma que o ACNUR “consagra-se como órgão específico para tratar
e lidar com as questões ligadas aos refugiados e apátridas, tentando garantir a
sobrevivência aos seres humanos nessas condições” (PEREIRA, 2014, p.14-15).
Seguindo esse raciocínio, em 1951 ocorreu a Convenção de Genebra, a qual
deu origem ao Estatuto dos Refugiados, cujo objetivo não era somente ratificar o
posicionamento internacional acerca desses seres humanos em situação de risco,
1
“A Declaração Universal dos Direitos Humanos, como se percebe da leitura de seu preâmbulo, foi redigida sob o impacto das
atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, e cuja revelação só começou a ser feita — e de forma muito parcial,
ou seja, com omissão de tudo o que se referia à União Soviética e de vários abusos cometidos pelas potências ocidentais —
após o encerramento das hostilidades. (...) Seja como for, a Declaração, retomando os ideais da Revolução Francesa,
representou a manifestação histórica de que se formara, enfim, em âmbito universal, o reconhecimento dos valores supremos
da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens, como ficou consignado em seu artigo I”. (COMPARATO, 2017,
p.238).
854

mas, também, deixar expresso um acordo que protegesse esse grupo específico de
pessoas, visto que ao saírem de suas nações poderiam ou não ser recebidos em
outras e permaneciam em situação jurídica instável. Destarte, tem-se que a
conceituação e a proteção inicial dos refugiados estão diretamente ligadas à
quantidade de pessoas que se deslocaram ante os conflitos armados da Segunda
Guerra Mundial.

1.1 ESTATUTO DOS REFUGIADOS DE 1951

A Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos


Refugiados e Apátridas de 1951, também conhecida como Convenção de Genebra,
adotou em 1951 o Estatuto dos Refugiados, com o fito de regulamentar o alto fluxo
migratório decorrente dos conflitos armados da Segunda Guerra Mundial. O aludido
estatuto delimitou de início quem poderia ser considerado refugiado, bem como o
alcance de aplicação geográfico do novo regramento internacional. Desta maneira,
nos termos do Estatuto dos Refugiados de 1951 eram considerados refugiados os
deslocados nas seguintes situações:

[...] Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de


janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país
de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não
quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade
e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em
consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido
temor, não quer voltar a ele. (ONU, 1951).

Detrai-se do trecho transcrito que o estatuto apenas atinge os eventos ocorridos


na Europa até 1951, ou seja, a própria Convenção que originou a norma em comento
restringiu não só o lapso temporal, mas também o continente de aplicação. Essa
restrição estava vinculada diretamente aos acontecimentos da Segunda Guerra
Mundial e antecedentes, uma vez que o objetivo era tão somente distribuir os
deslocados até este conflito armado, sem qualquer menção ou importância a outros
eventos armados em andamento ou que viessem a ocorrer.
Outro ponto referente ao Estatuto dos Refugiados de 1951 que merece
destaque é o enquadramento estratificado dos indivíduos aptos a solicitarem a
condição de refugiados. Isso porque, para se valer do instrumento normativo
internacional o requerente deveria necessariamente estar sendo perseguido por
motivos de: raça, religião, nacionalidade, políticos ou grupo social, ou seja, a norma
excluiu quaisquer outras possibilidades de refúgio, como, por exemplo, as precárias
condições de vida em países afetados de menor desenvolvimento econômico,
demonstrando, mais uma vez, a preocupação tão somente do fluxo migratório oriundo
da Segunda Guerra Mundial. Ainda nesse sentido, pondera Liliane Jubilut (2007. p.
84-85):

A existência desta limitação geográfica é decorrência da pressão dos


Estados europeus que se sentiam prejudicados com a enorme massa de
refugiados em seus territórios, e que queriam que houvesse uma
redistribuição desse contingente. O atendimento desta reivindicação seria,
no entanto, impossível, caso se incluíssem refugiados provenientes de
outras localidades, especialmente de países em desenvolvimento e de
menor desenvolvimento relativo.
855

Há que se mencionar também que o Estatuto dos Refugiados de 1951 de certa


maneira influenciou as normas posteriormente advindas, proporcionando uma
evolução no pensamento de proteção da vida humana impactada direta ou
indiretamente pelos conflitos armados. Por fim, tem-se que no âmbito interno o Brasil
incorporou o estatuto em tela por meio do Decreto n. 50.215 de 1961.

1.2 PROTOCOLO ADICIONAL AO ESTATUTO DOS REFUGIADOS DE 1967

Percebendo o surgimento de novas categorias de refugiados e a ausência de


um instrumento normativo válido que pudesse assegurar mínimas condições de
proteção, o Conselho Econômico e Social (ECOSOC) e a Assembleia Geral das
Nações Unidas, convocaram os membros e interessados em 1966 para discutirem a
situação dos novos fluxos migratórios existentes e a necessidade de uma
regulamentação internacional. Restando aprovado, então, Protocolo Adicional ao
Estatuto dos Refugiados de 1961 em 1967, denominado de Protocolo de 1967.
O Protocolo de 1967 não trouxe quaisquer alterações no conceito de refugiado,
permanecendo incólumes as disposições conceituais previstas no Estatuto dos
Refugiados de 1951. Há de se destacar que a grande novidade advinda com o
Protocolo de 1967 tange à ampliação geográfica para a aplicação de proteção
internacional aos refugiados, assim como, a ampliação temporal para se valer do
aludido instituto.
Assim sendo, o referido protocolo assevera que não existe limitação espacial
para que um indivíduo seja considerado refugiado, ou seja, cai por terra a necessidade
de estar no continente europeu para solicitar o refúgio. Ademais, o protocolo amplia
para qualquer tempo a solicitação, ou seja, não se aplica somente aos episódios
ocorridos até 1951, mas, sim, a todos os eventos independentemente de prazo.
Convém observar ainda, que o fato de um Estado ser signatário do Estatuto
dos Refugiados de 1951 não significa dizer que o Protocolo de 1967 terá aplicação
imediata. Isso porque, o próprio regramento em seu artigo 5º determina que a “adesão
far-se-á pelo depósito de um instrumento de adesão junto ao Secretário Geral da
Organização das Nações Unidas”. Atualmente, consoantes informações do Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados existem 145 países signatários
do Estatuto e 146 países signatários do Protocolo (ONU, UNHCR, 2017), sendo que
o Brasil o incorporou no cenário doméstico por meio do Decreto Executivo n. 70.946
de 1972.
Finalmente, embora o Protocolo de 1967 não tenha alterado o conceito formal
de refugiado é de suma importância para a caracterização do instituto do refúgio, uma
vez que ampliou o rol temporal e geográfico de aplicação.

2 DEFINIÇÃO DE REFUGIADO NA ÁFRICA

O aumento do fluxo migratório no continente africano e a condição restritiva de


refugiado imposta pelo Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu respectivo Protocolo
de 1967 levaram a Organização de Unidade Africana (OUA) a repensar a definição de
refugiado em seus Estados signatários, o que acabou culminando na Convenção da
Organização de Unidade Africana 19692. Consoante a Convenção da Organização da
Unidade Africana de 1969 são considerados refugiados:

2
Convenção da Organização da Unidade Africana de 1969. Preâmbulo: 1 - Registramos com inquietação a existência de um
incessante número crescente de refugiados em África e, desejosos de encontrar os meios de atenuar a sua miséria e sofrimento
e de lhes assegurar uma vida e um futuro melhores. (BRASIL, UFMG)
856

Artigo I - Definição do termo Refugiado. 1 - Para fins da presente


Convenção, o termo refugiado aplica-se a qualquer pessoa que, receando
com razão, ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade,
filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontra
fora do país da sua nacionalidade e não possa, ou em virtude daquele
receio, não queira requerer a proteção daquele país; ou que, se não tiver
nacionalidade e estiver fora do país da sua anterior residência habitual
após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude desse receio, não
queira lá voltar. 2 - O termo refugiado aplica-se também a qualquer pessoa
que, devido a uma agressão, ocupação externa, dominação estrangeira
ou a acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa
parte ou na totalidade do seu país de origem ou do país de que tem
nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da residência habitual para
procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de
nacionalidade (BRASIL, UFMG).

Dessa maneira, no sentido de adequar a condição de refugiado frente aos


eventos enfrentados especificadamente pelo continente africano, não só os
perseguidos por motivos de raça, religião, nacionalidade, políticos ou grupo social
poderiam requerer o reconhecimento do status de refugiado, mas, também, aqueles
que em razão de agressão, dominação estrangeira, ocupação externa ou outros
episódios que atinjam a ordem pública precisem deixar seus países por questões de
sobrevivência. Pela primeira vez após a Segunda Guerra Mundial, uma organização
internacional se preocupou, de fato, com o fluxo migratório real, que ultrapassa a
barreira da perseguição e chega ao nível de proteção ao direito de migrar para salvar
a vida.

3 REFUGIADOS E A DECLARAÇÃO DE CARTAGENA DE 1984

Semelhante a Convenção da Organização de Unidade Africana de 1969, a


Declaração de Cartagena de 1984 também é oriunda da necessidade de proteção de
refugiados em âmbito regional, nesse caso do continente americano. Nesse contexto,
ainda seguindo os ideais propostos pela Convenção da OUA de 1969, o instrumento
normativo de Cartagena ampliou o conceito de refugiado advindo na convenção
africana, sem, contudo, rechaçar as disposições previstas no cenário global, por meio
do Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu respectivo Protocolo de 1967. Dessa
maneira, conforme a terceira conclusão é considerada refugiado:

[...] a definição ou o conceito de refugiado recomendável para sua


utilização na região é o que, além de conter os elementos da Convenção
de 1951 e do Protocolo de 1967, considere também como refugiados as
pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança
ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a
agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos
humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a
ordem pública (ONU, ACNUR, 1984).

Nota-se que a Declaração reconhece como refugiado os indivíduos que por


quaisquer razões tenham saído de seus países com o fim de proteger à vida, à
segurança ou à liberdade, em razão de violência generalizada, agressão estrangeira,
conflitos internos ou ainda violação dos direitos humanos, uma clara ampliação do
disposto no Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu respectivo Protocolo 1969, bem
857

como, do apregoado pela Convenção Africana de 1969. Para Liliane Jubilut (2007, p.
135):

A partir dessa ampliação [conceito de refugiado] a violação de quaisquer


direitos humanos, e não somente dos direitos consagrados como civis e
políticos, retomando a indivisibilidade dos direitos humanos, pode ensejar
a proteção de alguém na condição de refugiado, assegurando-se, de tal
modo, o efetivo gozo dos direitos humanos pelos indivíduos.

No mais, apesar de só ter aplicação nos países signatários e ser restrita ao


continente americano, a Declaração de Cartagena de 1984 pode ser considerada,
assim como, a Convenção da OUA de 1969, um avanço na consolidação dos direitos
humanos por se preocupar com outros tipos de refugiados que não sejam os oriundos
dos conflitos armados, se adequando aos novos fluxos migratórios existentes no
continente americano.

4 A CONDIÇÃO DE REFUGIADO NO BRASIL

A Constituição Federal de 1988 apresenta os fundamentos básicos de proteção


à vida de qualquer pessoa em solo brasileiro, independentemente de serem nacionais
ou estrangeiros. A própria norma dispõe como fundamento básico da República
Federativa do Brasil o princípio da dignidade humana3. No mesmo sentido, dispõe em
seu artigo 3º, inciso X, que as relações internacionais do Brasil serão pautadas pelo
princípio da concessão de asilo político. Acerca do tema Liliane Jubilut (2007, p. 181)
aponta que:

Com base nesses princípios, pode-se afirmar que os alicerces da


concessão do refúgio, vertente dos direitos humanos e espécie do direito
de asilo, são expressamente assegurados pela Constituição Federal de
1988, sendo ainda elevados à categoria de princípios de nossa ordem
jurídica. Sendo assim, a Constituição Federal de 1988 estabelece, ainda
que indiretamente, os fundamentos legais para a aplicação do instituto do
refúgio pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Seguindo esse pensamento, demonstrando preocupação com o crescente


fluxo migratório e visando melhor aplicação ao instituto do refúgio no cenário interno
o Congresso Nacional aprovou a Lei n. 9.474 de 1997, cujo teor “define mecanismos
para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras
providências” (BRASIL, 1997). Segundo a lei citada, são considerados refugiados:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I - devido a


fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu
país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção
de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes
teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em
função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave
e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país
de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

3
“A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente
e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um
mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas
limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as
pessoas enquanto seres humanos45 e a busca ao Direito à Felicidade”. (MORAES, 2017, p.18).
858

Nota-se que na mesma direção da Convenção da Organização da Unidade


Africana de 1969 e da Declaração de Cartagena de 1984, a norma brasileira ampliou
o conceito de refugiado para se adequar à realidade enfrentada e, principalmente para
compreender e abrigar os indivíduos que tiveram seus direitos humanos violados e
precisaram deixar seus países em busca de sobrevivência.
No mesmo pensamento evolutivo de proteção, o Brasil, novamente, deu um
passo a frente ao aprovar a Lei n. 13.445 de 2017, denominada de Lei de Migração,
que adveio para substituir o Estatuto do Estrangeiro de 1980. A Lei de Migração não
substitui ou minimiza o poder de aplicação do Estatuto dos Refugiados de 1997, pelo
contrário, é uma norma que pode ser utilizada em conjunto com o aludido estatuto
com o objetivo de proteger o refugiado em solo brasileiro, uma vez que amplia
garantias e concede outros benefícios. Contudo, em se tratando de conceituação é
válido destacar o instituto da “acolhida humanitária” introduzido pela Lei de Migração.
Isso porque, o visto temporário concedido para essa categoria de pessoas se
assemelha a condição de refugiado e, ao mesmo tempo, amplia o rol de pessoas em
situação não considerada de refúgio para fins jurídicos, mas consideradas à luz dos
direitos humanos.

Art. 14. § 3o - O visto temporário para acolhida humanitária poderá ser


concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de
grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de
calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave
violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou
em outras hipóteses, na forma de regulamento (BRASIL, 2017).

Diante do que até aqui foi exposto, pode-se afirmar que, se o solicitante do
refúgio, no Brasil, não se enquadrar nas hipóteses previstas no Estatuto dos
Refugiados de 1997, como, por exemplo, a categoria de refugiados ambientais,
poderá se valer da Lei de Migração na condição de acolhido humanitário para adentrar
legalmente em solo brasileiro.

CONCLUSÃO

O fluxo migratório de pessoas em busca de melhores condições de vida sempre


foi e será um assunto de destaque, vez que à medida que surgirem novas formas de
afronta à vida ou violações de direitos humanos, haverá a necessidade de nova
regulamentação internacional e doméstica.
No presente trabalho a reflexão foi sobre a evolução do conceito de refugiado.
Assim, procurou-se analisar as acepções dadas pelas mais notórias normas
internacionais sobre o assunto, o Estatuto dos Refugiados de 1951, o Protocolo
Adicional ao Estatuto dos Refugiados de 1967, a Convenção da Organização de
Unidade Africana de 1969 e a Declaração de Cartagena de 1984; até chegar às
disposições constitucionais do Brasil e as normas internas, Estatuto dos Refugiados
de 1997 e, em especial, a Lei de Migração.
Observou-se que o conceito de refugiado não foi alterado pela Lei de Migração.
Contudo, há uma nítida ampliação no entendimento de que não existem só os
refugiados, assim denominados pelos instrumentos internacionais e pelo Estatuto dos
Refugiados de 1997 (Brasil), que necessitam de proteção. Portanto, considerando o
amadurecimento legislativo brasileiro, conclui-se que o ordenamento jurídico
doméstico ultrapassou a esfera conceitual para adentrar na esfera real de proteção
859

dos direitos humanos, adequando as normas internas ao princípio fundamental da


dignidade humana.

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860

A ORIGEM DOS ESTADOS NACIONAIS E SUA RELAÇÃO COM OS POVOS


TRADICIONAIS NA FRONTEIRA DO MATO GROSSO DO SUL: BREVES
ANOTAÇÕES ACERCA DOS DIREITOS HUMANOS E SUA EFETIVIDADE
THE ORIGIN OF NATIONAL STATES AND THEIR RELATIONSHIP WITH
TRADITIONAL PEOPLES IN THE MATO GROSSO DO SUL BORDER: BRIEF
NOTES ON HUMAN RIGHTS AND ITS EFFECTIVENESS

Marco Antônio Rodrigues


Andréa Lúcia Cavararo Rodrigues
Antonio Hilario Aguilera Urquiza

Resumo: O presente artigo é fruto do projeto de pesquisa em andamento, intitulado


“A Dinâmica Migratória dos Povos Tradicionais Fronteiriços no Estado do Mato Grosso
do Sul e os Reflexos da Mensagem de Veto nº 163/2017”. O artigo tem o intuito de
pesquisar a formação do Estado soberano com base no pensamento de Egídio
Romano e suas contribuições para a formação do Estado de se compreender os
conceitos de fronteira e mobilidade humana decorrentes da origem do Estado, além
de se analisar o tema em uma ótica antropológica. A pesquisa buscará entender as
fronteiras e a mobilidade humana como tendo sua gênese na origem Estado, cujas
distorções se refletem até hoje na esfera dos povos tradicionais do MS, pois para os
indígenas não existem fronteiras, buscando-se desvincular a mobilidade dos povos
tradicionais da ideia de migração. Por meio da pesquisa bibliográfica e dos conceitos
o artigo buscará chegar ao resultado esperado.
Palavras-chave: Formação do Estado. Mobilidade Humana. Fronteiras Nacionais.

Abstract: This article is the result of an ongoing research project entitled "The
Migration Dynamics of Traditional Border People in the State of Mato Grosso do Sul
and the Reflexes of Veto Message No. 163/2017". The article intends to investigate
the formation of the sovereign state based on the thought of Egídio Romano and his
contributions to the formation of the State to understand the concepts of frontier and
human mobility arising from the origin of the State, besides analyzing the theme in an
anthropological perspective. The research will seek to understand borders and human
mobility as having its genesis in the State origin, whose distortions are reflected until
now in the sphere of the traditional peoples of the MS, because for the indigenous
there are no borders, seeking to untie the mobility of traditional peoples of the idea of
migration. Through bibliographic research and concepts the article will seek to reach
the expected result.
Keywords: State formation. Human Mobility. National Borders.

INTRODUÇÃO

A pesquisa se propõe, através do estudo bibliográfico, efetuar o estudo da livre


mobilidade dos povos tradicionais através das fronteiras nacionais a partir da
formação do Estado e de seus teóricos, dentre eles Egídio Colonna de Roma 1, pois a
partir deste referencial e de outros do seu tempo, é possível compreender como foram
formados os Estados Nacionais, e qual a sua gênese, o que poderá contribuir para a
compreensão dos atuais problemas enfrentados pelos povos tradicionais, como
1
Também chamado de Gil de Roma ou Egidio, Roma, 1247-Avignon, 1316; teólogo e filósofo italiano. Grande personalidade
intelectual de seu tempo, era um discípulo de São Tomás de Aquino, professor da Universidade de Paris (1285-1295), tutor
para o futuro Filipe IV de França (para o qual escreveu De regimine principum), vigário geral da Ordem dos Agostinianos (1292-
1295). Suas ideias universalistas contribuíram para a formação do Estado moderno (nota do autor).
861

dificuldades quanto à livre mobilidade dentre as fronteiras políticas estabelecidas com


base na noção hobbesiana de ser humano e Estado, que não se coadunava com o
direito e os costumes das populações locais, gerando conflitos e agressões de
diversas ordens.
Analisar a formação do Estado a partir do direito natural para se entender
fronteira e mobilidade humana faz-se imprescindível a partir do momento em que se
pretende analisar o processo histórico de formação de fronteiras, entendendo-se
como elas foram estabelecidas e quais impactos foram produzidos sobre as
populações tradicionais.
A histórica Doutrina do Descobrimento, que no tempo das navegações garantia
a posse definitiva dos territórios achados à soberania da coroa a que se submetia o
navegador, mesmo que no território fossem encontradas civilizações.
Nas Américas, essa ordem jurídica seiscentista levou à instalação de colônias,
cujo processo secular resultou na constituição dos Estados soberanos, reconhecidos
mundialmente.
Ao se tratar do conceito de ocupação da terra, cumpre destacar alguns pontos
importantes quanto ao conceito de território e sua inviolabilidade, definido no período
de formação do Estado. Segundo Isidoro de Sevilha 2 (1878, v. 82 apud. HEYDTE,
2014, p. 324), civitas terá o mesmo significado de cidade. “Uma civitas é, em si, um
conjunto de pessoas unidas pelo laço da comunidade”. Para Isidoro de Sevilha, o
Estado não é o território, mas sim o povo e os membros da liga política, e o poderio
político não é tanto o poder sobre a Terra, mas o poder sobre as pessoas, e as
fronteiras de um tal poder não são estabelecidas geograficamente, na medida em que,
pela definição de fronteiras, certos pontos da superfície terrestre são designados
como o limite do respectivo poder de uma ou outra parte.
Nos dizeres de Heydte (2014, p. 330), território será a definição de objeto e
elemento definidor de domínio político e, mais do que uma unidade de domínio, é um
espaço legal, onde se impunha o direito à terra.
Nessa lógica, ao se definir o conceito de ocupação da “terra de ninguém”,
Heydte (2014, p. 341) recorda que além da conquista bélica, aparecia a hipótese de
ocupação do território que não estava sob o domínio de ninguém, possibilitando ao
soberano cumprir seus deveres senhoriais, como proteção dos moradores desse
território contra inimigos externos com fundamento no direito romano de que a terra
de ninguém que é ocupada torna-se propriedade de quem a ocupa3.
Dessa forma, o estabelecimento dos Estados nacionais no caso das fronteiras
brasileiras também seguiu o modelo tradicional, baseado na força e na imposição de
uma estrutura de poder que não respeitou os povos tradicionais que já se encontravam
no território, forçando-os a migrar em virtude de conflitos, massacres e falta de
alimento em alguns casos.
Nesse panorama, as cidades fronteiriças do Mato Grosso do Sul tornam-se
verdadeiros laboratórios de estudo do processo de inserção dos migrantes, sendo um
espaço privilegiado para a discussão dos temas acerca da diversidade e da trajetória
histórica e cultural de povos indígenas (AGUILERA URQUIZA, 2013, p. 07).
Dentro do processo de construção dos Estados Nacionais, via de regra, houve
a privação da liberdade dos povos indígenas em praticar seus deslocamentos
espaciais, valendo recordar Colman (2015, p.21 apud. VAINER E MELO, 2012), ao
afirmar que migrar está intrinsecamente ligado ao movimento espacial de uma
população, e essa autora reitera que os deslocamentos espaciais podem ocorrer em

2
Isidoro de Sevilha, Etymologias, XV, 2.ed. v.82. Paris: 1878, Sp. 536 (nota dos autores)
3
Princípio do Direito Romano denominado uti possidetis. (nota dos autores).
862

virtude de catástrofes naturais, guerras, perseguições e outros fatores decorrentes da


ação humana.
Diante disso, os conflitos pela posse da terra nas regiões de fronteira do Mato
Grosso do Sul terminam por revelar o descaso do Estado brasileiro para com os povos
tradicionais, seja por desconhecimento ou por falta de vontade política, onde os
Acordos e Tratados sobre Direitos Humanos são “letra morta” nessas regiões.

DESENVOLVIMENTO

A partir do momento em que o Estado passa a ser visto como uma ordenação
do povo com o fim de alcançar objetivos políticos, registra-se uma grande e decisiva
mudança no século XIV, desenvolvendo-se o Estado e a comunidade de Estados
conforme se verifica na atualidade, porém a partir de uma hierarquia orgânica e
multifacetada das ligas senhoriais, cujo maior degrau terreno e bicéfalo é o império e
a Igreja, corporificados nas pessoas do imperador e do papa (HEYDTE, 2014, p. 55).
De acordo com De Boni (1995, p. 227), o conceito domínio era o conceito-chave
para Egídio, o qual elabora uma teoria desse termo com o intuito de explicar a relação
entre os dois poderes. Egídio Romano desenvolveu uma interpretação própria, em
vários pontos de seu postulado, em relação às fontes que lhe deu inspiração. O termo
dominium era utilizado por ele tanto para indicar a propriedade no sentido de
superioridade entre os homens e as coisas tanto quanto designar o senhorio, isto é,
dominação de um homem sobre o outro.
Segundo as ideias de Egídio Romano, haverá um Estado nacional e um outro
Estado mundial, que irão interagir de forma que não existirá mais a figura de um único
príncipe para afastar o perigo, mas a presença de vários reis e comunidades com os
mesmos direitos, que se juntam, resultando em um equilíbrio de vontades que irão ser
controladas por uma nova unidade de poder, representada pelo Estado centralizado
(ROMANO, 1989, p. 12).
Comparando o raciocínio de Sayad (1998, p. 105) com a mobilidade dos povos
tradicionais, baseada no costume e na cosmologia desses povos, deduz-se que esse
tipo de mobilidade não faz parte de um sistema de ideias pré-concebidas pela
instituição “Estado”.
Nesse panorama, a mobilidade dos povos tradicionais acaba sendo rechaçada
por não integrar um sistema em que o cidadão migrante é visto como um clandestino
onde suas práticas sociais e costumes são resumidas ao fator trabalho, haja vista os
povos tradicionais não encaixarem no senso comum, ou seja, a lógica do trabalho e
do capital imposta pelo Estado quando se fala em migração.
Com isso, é necessário estabelecer dois parâmetros a partir de então.
Primeiramente, compreender que os povos tradicionais não representam uma massa
de indivíduos que migram em busca de trabalho. Em segundo, entender que os povos
tradicionais baseiam sua mobilidade na cosmologia, nas relações de parentesco e
outros fatores antropológicos, cuja lente do Estado e do senso comum são incapazes
de alcançar.
O povo Guarani, que vivia a centenas de anos em toda essa região (bacia do
Rio da Prata e do Rio Paraguai, nas fronteiras entre Brasil, Paraguai e Argentina),
simplesmente é desconsiderado em suas especificidades e direitos de autonomia
sobre seu território e, aos poucos, foram sendo “empurrados” e separados pela lógica
da colonização, além de serem destituídos da quase totalidade dos seus territórios
tradicionais.
863

Carvalho (2013, p. 102) lembra que essa constante mobilidade espacial ocorre
por conta das relações sociais de “reciprocidade” mantidas entre membros de aldeias
localizadas tanto próximas, quanto distantes umas das outras. Acontecem
basicamente por dois determinantes socioculturais: – um, pelas próprias relações de
parentesco, que envolvem vários fatores: – a busca de casamentos com indivíduos
pertencentes a outras aldeias; – a formação de famílias numa ou outra aldeia; as
visitas aos parentes em outras aldeias que podem durar meses ou anos; e ainda, a
mudança pelas famílias de uma para outra aldeia; nesse contexto trocam-se também
informações, pajelanças, medicamentos, sementes, também se dá os encontros de
lideranças, dentre outras formas de reciprocidade.
Na ótica da mobilidade, Mura (2006, p.121) ressalta que a relação entre os
Guarani-Kaiowá e a terra ganha outro significado. Enfatizando-se a noção de tekoha
enquanto espaço que garantiria as condições ideais para efetuar essa relação, os
índios procuram reconquistar e reconstruir espaços territoriais étnica e religiosamente
exclusivos a partir dessa relação umbilical que entretêm com a terra (elemento que se
sobressai das demandas fundiárias dos Kaiowá do Mato Grosso do Sul), ao passo
que flexibilizam e diversificam a organização das famílias extensas.
Nos dizeres de Barbosa (1995, p.117), a América Latina é o reflexo de sua
realidade histórica e social: na verdade, um amontoado de espelhos partidos.
Sociedades forjadas pela cruz e pela espada, na coragem desmedida do colonizador
na sua crueldade e intolerância, plasmadas na cobiça, na aventura e no desejo pela
conquista desenfreada do território, da exploração desmedida dos metais preciosos,
seguida de genocídios e demais violações à vida humana em todos os sentidos.
Nessa lógica, as terras indígenas são alvo dos plantadores de soja e
madeireiros, mas também objetos de invasão pelos camponeses paraguaios. Assim,
as principais vítimas da expansão capitalista nessa região são os indígenas. O
processo de modernização agrícola do agronegócio de monocultura para exportação,
tem sido acompanhado de práticas sociais extremamente injustas como o esbulho e
a escravidão indígena.
Constata-se, dessa forma, que as frentes de expansão no Paraguai
reproduzem quase os mesmos processos contraditórios do Brasil, na relação com
seus povos tradicionais, em que essas fronteiras agrícolas e comerciais dão origem a
diversas violações legais e aos Direitos Humanos, como expropriação dos territórios
tradicionais, escravidão indígena, conflitos, tentativas de integração e destruições
étnicas.
Cabe destacar que as memórias coletivas dos povos tradicionais, em especial
os indígenas, foram formadas a partir das interações sociais, tendo como substrato a
questão territorial, com o qual eles mantêm a sua vinculação resultante de fatores
como as relações de parentesco e a ancestralidade, de forma similar aos nacionais
de um Estado.
Contudo, essas peculiaridades não foram respeitadas no decorrer do processo
de expansão das fronteiras nacionais na América do Sul, sobretudo na região
fronteiriça do Mato Grosso do Sul, dominada sem regras ou limites.
A partir do Estado Novo de Vargas surge em relação às fronteiras a ideologia
de segurança nacional, criada a partir da figura do “inimigo interno”, capaz de se opor
ao “regime”, que infelizmente persiste até os dias de hoje como justificativa da política
empreendida pelo Estado nas regiões fronteiriças (SPRANDEL, 2005, p.174).
De acordo com Volkmer (2003, p. 45), desde o início da colonização, além da
marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um Direito nativo e
864

informal, a ordem normativa oficial implementava, gradativamente, as condições


necessárias para institucionalizar o projeto expansionista lusitano.
Nos dizeres de Curi (2012, p. 07), para caracterizar o direito indígena como um
direito consuetudinário ou costumeiro, podemos, de modo geral, levantar dois traços
específicos: 1) ele se encontra imerso no corpo social, firmemente entrelaçado com
todos os outros aspectos da cultura, com o qual forma uma unidade compacta; 2) ele
extrai sua força e seu conteúdo da tradição comunitária expressa nos usos e
costumes.
Conforme se verifica, há o predomínio de uma visão cosmológica de uns contra
os outros, fazendo com que as relações de poder sejam perpetuadas, em clara
oposição aos costumes e mesmo aos acordos e tratados internacionais ratificados
pelo Brasil.
Tal afirmação é constatada por meio da Mensagem de Veto nº 163/2017, que
proibiu o livre trânsito dos povos tradicionais pelas fronteiras e terras tradicionalmente
ocupadas, indo na contramão do direito internacional público e de decisões da Corte
Internacional de Justiça (SIMIONI & VEDOVATO, 2018, p. 311).
Dessa forma, Simioni & Vedovato (2018, p. 313) ressaltam que na Declaração
das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Assembleia
Geral da ONU, em 2007 (ONU, 2008) e a convenção nº 169 da OIT (ONU, 2015) há
dispositivos claros de proteção aos povos indígenas, que poderiam ser também
aplicados às populações tradicionais, tendo em vista as decisões da Corte
Internacional de Justiça, a cuja jurisdição o Brasil está submetido.

CONCLUSÃO

O presente artigo teve como objetivo pesquisar as origens do Estado soberano


na ótica de Egídio de Roma, figura principal por onde gravitou as principais ideias
desenvolvidas neste trabalho.
Em um primeiro momento, foram trazidos pelos autores os conceitos e
fundamentos do Estado soberano, em uma ótica do direito natural, buscando-se um
melhor entendimento das bases desse direito, que fundamentou a teoria do Estado e
foi responsável pela formulação dos primórdios de uma governança global.
Segundo Bobbio (2004), a conquista dos direitos é um caminho contínuo, que
pode ser interrompido em algumas ocasiões, mas que inevitavelmente culminará no
reconhecimento dos direitos do cidadão de cada Estado até o reconhecimento dos
direitos do cidadão perante o mundo, conforme ocorreu na Declaração Universal dos
Direitos do Homem.
Por conseguinte, o artigo fez uma incursão no princípio da ocupação da “terra
de ninguém”, que surgiu como corolário do princípio do direito romano do uti
possidetis, como uma marca da legitimidade da força e da imposição do Estado, que
resultou, no caso da América latina, na divisão de territórios e delimitação de fronteiras
sem se considerar os direitos e costumes dos povos tradicionais dessas regiões, que
já as ocupavam bem antes da própria formação do Estado.
Uma das garantias de um país justo e democrático é a cidadania, por garantir
ao cidadão a sua participação na administração do Estado. Cumpre ao Estado agir
em ordem a incentivar a participação dos indivíduos na coisa pública, para melhor
atender aos seus interesses e diminuir desigualdades.
Necessário se faz que o Estado brasileiro confira aos povos tradicionais
cidadania, para que se sintam cidadãos integrados, e os seus direitos sejam
respeitados, dentre os quais o direito à vida e à dignidade do ser humano, que em
865

escassos momentos têm sido respeitados pelos grandes proprietários e latifundiários,


ávidos por lucros e ganhos com o seu negócio, esquecendo dos direitos fundamentais
das pessoas.
De fato, a propriedade tem sua importância desde tempos longínquos, e deve
ser respeitada, tanto pelos povos tradicionais como pelos grandes proprietários de
terras que geram renda com a produção e exploração de alimentos.
O povo Guarani, que vivia há centenas de anos em toda a região (bacia do Rio
da Prata e do Rio Paraguai, nas fronteiras entre Brasil, Paraguai e Argentina),
simplesmente foi desconsiderado em suas especificidades e direitos de autonomia
sobre seu território, e aos poucos, foram sendo “empurrados” e separados pela lógica
da colonização, além de serem destituídos da quase totalidade dos seus territórios
tradicionais.
Ao compararmos a disposição do parágrafo 2º do art. 1º da Lei nº 13.445/2017
(Nova Lei de Migração), suprimido por meio da mensagem de veto nº 163/2017
(BRASIL, 2017), constata-se uma mostra inequívoca dos padrões culturais arraigados
na consciência política brasileira, que ainda não se desvinculou de sua forma
autoritária e discriminatória ao privar os povos tradicionais do direito a se deslocar
livremente.
Ao restringir a mobilidade dos povos tradicionais com base no argumento
simplório da segurança nacional, bem como da soberania, o Estado brasileiro revisita
o insidioso processo de povoamento de suas fronteiras, que vai na contramão dos
tratados e acordos internacionais aceitos pelo Brasil, com vistas à construção de um
Estado mais justo, solidário e que atenda ao bem comum e á dignidade humana.

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867

DIREITO HUMANO E FUNDAMENTAL À SAÚDE NOS PRESÍDIOS FEDERAIS


BRASILEIROS
DERECHO HUMANO Y FUNDAMENTAL A LA SALUD EN PRISIONES
FEDERALES BRASILEÑAS

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira

Resumo: Este trabalho tem como objeto o Sistema Penitenciário Federal no Estado
Brasileiro, considerando o regime de isolamento e as consequências para o preso. A
justificativa: a inobservância das garantias constitucionais e de direitos humanos. A
inclusão e manutenção de presos em estabelecimentos penais federais de segurança
máxima deveria ser medida excepcional. Inúmeros são os casos de suicídios e morte
no Sistema. A metodologia de pesquisa utilizada é bibliográfica e de campo. Dentre
os objetivos deste trabalho: expandir o debate acerca do tema a fim de colaborar com
a expansão de medidas administrativas que garantam a efetivação dos direitos em
comento e compreender a evolução histórica de conquistas. A custódia nesse Sistema
gera danos psíquicos, submetendo os presos a malefícios que não se limitam à
privação de liberdade. Sendo fundamental, o desrespeito ao direito à saúde macula
uma conquista histórica, garantida constitucionalmente.
Palavras-chave: Direito Humano; Saúde Mental; Presídios Federais

Resumen: Este trabajo tiene como objeto el sistema penitenciario Federal en el


estado brasileño, teniendo en cuenta el régimen de aislamiento y las consecuencias
para el preso. La razón de ser: la falta de respeto de garantías constitucionales y
derechos humanos. La inserción y mantenimiento de los presos en establecimientos
penales de máxima seguridad federal deben ser excepcional. Numerosos son los
casos de suicidios y muerte en el sistema. La metodología de investigación es
bibliográfico y de campo. Uno de los objetivos de este trabajo: a ampliar el debate
sobre el tema con el fin de colaborar con la expansión de medidas administrativas
para asegurar la aplicación de los derechos de comentario y entender la evolución
histórica de las conquistas. Custodia en este sistema genera daños psicológicos,
someter a los presos a hacer daño que no se limitan a la privación de la libertad.
Fundamentales, la falta de respeto al derecho a la mácula de salud un logro histórico,
garantizándose constitucionalmente.
Palabras clave: Derecho Humano; Salud Mental; Prisiones Federales

INTRODUÇÃO

O direito humano e fundamental à saúde nos presídios federais brasileiros,


considerando o severo regime de isolamento e as consequências psicológicas
decorrentes dele são de extrema relevância, pois necessária a análise de garantias
constitucionais e da carta de direitos humanos relacionados ao tema, a fim de verificar
e/ou buscar que sejam observadas tais garantias.
O Sistema Penitenciário Federal no Estado Brasileiro foi implementado em
2006, como uma reprodução do modelo de unidades de segurança máxima norte-
americanas, as “SUPERMAX”, com o uso ostensivo de artefatos de vigilância e a
reclusão individual do preso como os pilares do sistema.
No entanto, o que está a ocorrer é a subversão da ordem de todo um sistema:
está tornando regra o que deveria/deve ser excepcional e provisório.
868

No Relatório Especial do Conselho de Direitos Humanos sobre tortura e outros


tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, de Juan Mendez 1,
destaque-se: “O Relator tem consciência do esforço arbitrário que é definir o momento
a partir do qual um regime já prejudicial se torna prolongado e, portanto, capaz de
infligir uma dor inaceitável”.
O Relator conclui que o prazo de 15 dias representa o marco que separa o
“regime de isolamento” ao “regime de isolamento prolongado”, porque, a partir deste
momento, de acordo com a literatura pesquisada, alguns dos danos psicológicos
causados pelo isolamento se tornam irreversíveis.
Esse sistema do Estado Brasileiro é de fato um regime de isolamento
prolongado. E é extremamente rigoroso e gravoso ao preso, em especial pelo que se
destaca a seguir:
1) Longo período de isolamento, perpetrado pelo recolhimento em cela
individual por cerca de vinte e duas horas por dia, com a consequente privação de
maior contato humano diário;
2) Distanciamento da região que habitava, e, principalmente, distanciamento
do seu núcleo familiar;
3) Atualmente sem visitas intimas, apenas com visitas coletivas nos pátios,
gravadas e monitoradas;
4) A Proibição de visitas social nos pátios das esposas que estiverem
respondendo a quaisquer investigações policiais, ou mesmo, a processos judiciais em
curso, ficando estas pela visitação limitadas por um vidro blindado.
É, portanto, medida extrema e de isolamento e não se sabe ao certo o alcance
dos efeitos psicológicos e psiquiátricos que isso acarreta.
Além dessas, temos outras arbitrariedades, fazendo desse sistema
penitenciário, um erro, na medida em que afronta os preceitos constitucionais da
Constituição da República, principalmente o da dignidade da pessoa humana e da
proibição de aplicação de penas cruéis ou de banimento.
Os fundamentos da Constituição da República Federativa do Brasil são os
constantes dos incisos I a V, do artigo 1º. Para o nosso estudo, destaque-se o inciso
III: a Dignidade da pessoa humana.
Segundo MENDES DE SOUZA 2, tal princípio “retrata a preocupação do
constituinte com o homem, tanto sob o aspecto moral quanto sob o material. Ao elevar
a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental da comunidade estatal, o
constituinte coloca o ser humano como fim último de nossa sociedade”.
O direito à Saúde, previsto no artigo 6˚ da Constituição Federal, acrescente-se,
é destacado pela doutrina como um dos aspectos indispensáveis à realização do
fundamento da Dignidade da pessoa humana.
Com tais considerações, identificando evidente afronta a tal princípio, convém
ressaltar que a inclusão e manutenção de presos em estabelecimento penais federais
de segurança máxima deveria ser medida excepcional e por prazo determinado,
observados os seus direitos, nos moldes da lei nº 11.671/2008.

SUCESSIVAS RENOVAÇÕES E SUAS CONSEQUÊNCIAS

A legislação Federal brasileira, na Lei de Execuções Penais (Lei 11.671/2008)


aduz:

1
2011, ONU, pg.09, parágrafo 29
2
MENDES DE SOUZA, 2009, p.63.
869

“Art. 10. A inclusão de preso em estabelecimento penal federal de segurança


máxima será excepcional e por prazo determinado.
§ 1o O período de permanência não poderá ser superior a 360 (trezentos e
sessenta) dias, renovável, excepcionalmente, quando solicitado motivadamente pelo
juízo de origem, observados os requisitos da transferência.

A dicção da lei aduz que o período de permanência não poderá ser superior a
360 (trezentos e sessenta) dias. Ou seja, o prazo de permanência não é de 360 dias,
mas de até 360 dias, prorrogáveis, excepcionalmente.
A inclusão em presídio federal é uma medida excepcional e assim deve ser
entendida. É uma medida drástica deslocar um preso da unidade em que ele está
recolhido para outro local longínquo, em um país das dimensões continentais como é
o caso do Brasil.
Em 1990, a Assembleia Geral adotou a resolução 45/111, contendo os
Princípios Básicos Relativos ao Tratamento de Reclusos e em seu Princípio 7º
estabelece que devem ser empreendidos e encorajados esforços com vistas a abolir
ou restringir o regime de isolamento, como medida punitiva.
O Comitê de Direitos Humanos, no parágrafo 6º de seu Comentário Geral Nº
20, ressaltou que o regime de isolamento prolongado da pessoa detida ou presa pode
equivaler a um dos atos proibidos pelo artigo 7º do Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos.
Já o Subcomitê de Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes recordou que: “o regime de isolamento
prolongado pode equivaler a um ato de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes...” 3
Não obstante, a Corte Europeia de Direitos Humanos tem enfatizado
reiteradamente que o regime de isolamento, mesmo quando é apenas parcial, não
pode ser imposto a um preso por tempo indeterminado 4
No Relatório Conselho de Direitos Humanos sobre tortura e outros tratamentos
ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, o Relator especial se pronunciou no
parágrafo 76: “o Relator Especial reitera que, em sua opinião, qualquer imposição de
regime de isolamento que exceda 15 dias constitui tortura ou outro tratamento ou pena
cruel, desumano ou degradante, dependendo das circunstâncias” 5
Nessa toada, o Relatório do Conselho de Direitos Humanos sobre tortura e
outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes explicita: “O uso de
regime de isolamento somente pode ser aceito em circunstâncias excepcionais,
quando sua duração for a mais breve possível e por um período determinado
devidamente anunciado e informado” 6
Devido ao seu isolamento, presos mantidos em regime de isolamento por
tempo indeterminado ou prolongado podem facilmente ser esquecidos pelo sistema
judiciário e, portanto, proteger seus direitos se torna ainda mais difícil, mesmo em
Estados com alto grau de respeito ao estado de direito. 7
E segue: “No entanto, quanto maior for a duração do regime de isolamento ou
mais incerta a sua duração, maior será o risco de dano grave e irreparável à pessoa

3
CAT/OP/PRY/1, para. 185.
4
Ramírez Sanchez v. França, Petição Nº 59450/00, Corte Europeia de Direitos Humanos. p.145.
5
Juan Mendez, 2011, ONU
6
Juan Mendez , 2011, ONU
7
SMITH, Peter Scharff . “Solitary Confinement: An introduction to the Istanbul Statement on the Use and Effects of Solitary
Confinement”, p.1.
870

detida, o que pode constituir tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante ou


até mesmo tortura”.
O sentimento de incerteza causado pela falta de informação sobre a duração
do regime de isolamento aumenta a dor e o sofrimento das pessoas sujeitas a este
regime.
Nas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (ou
Regras de Mandela) se garantiu: “Regra 88: 1. O tratamento dos presos deve enfatizar
não a sua exclusão da comunidade, mas sua participação continua nela”.
Percebe-se, portanto, que o Estado Brasileiro vem cometendo arbitrariedades
e abusos intermináveis, transformando o que deveria ser uma estadia excepcional em
algo rotineiro, e, ainda, desrespeitando de forma escancarada os dispositivos
constitucionais e tratados de direitos humanos, consagrando o regime da total e
inexorável desesperança!
É inegável que as sucessivas renovações que vem sendo aplicadas na prática
estão trazendo sérias patologias mentais aos custodiados das Penitenciárias
Federais.
O isolamento individual de 22 (vinte duas horas), a escassas visitas, o
distanciamento de sua cidade e de seus costumes, a rigorosíssima disciplina, a falta
de perspectiva de retorno à sociedade, tudo isso junto, não tem como não virar uma
verdadeira tortura psicológica.
No Habeas corpus nº: 0057899-92.2016.8.19.0000, impetrado por Lucas
Nepomuceno, filho de um dos reclusos com 10 (dez) anos no sistema federal, em
favor do mesmo, Márcio Nepomuceno, narra-se: “... há 10 (dez) anos não vê uma
televisão ou ouve um rádio e é mantido isolado por 22 (vinte e duas) horas diárias,
período em que não vê ninguém, apenas escuta vozes de comando de agentes
penitenciários quando chega a hora de sua alimentação, que é entregue por um
pequeno espaço existente na porta da cela”.
A narrativa acima demonstra de forma clara o vilipendio ao princípio da
humanidade das penas, o que transforma as penitenciarias federais em “fábricas” de
distúrbios psicológicos, inclusive com registros oficiais de casos de suicídios, o que
mostra que o regime de isolamento imposto é de fato enlouquecedor e afronta,
indiscutivelmente, o artigo 1º, III, da Constituição de nossa República Federativa, que
traz como pilar da democracia, a dignidade da pessoa humana.
Inúmeros são os casos de suicídios e morte no Sistema Penitenciário Federal
(sem contar a tentativas que não são divulgadas). Vejamos:
a) 25/05/2010 – Renildo dos Santos Nascimento em Catanduvas/PR;
b) 05/05/2011 – Adão Oliveira Silva em Campo Grande/MS
c) 15/10/2013 – Caso do Italiano em Campo Grande/MS;
d) 25/04/2014 – Robson Ribeiro da Silva Sobrinho em Catanduvas/PR;
e) 02/06/2014 – Osmano Canuto de Araújo em Catanduvas/PR.
À exceção dos períodos de banho de sol (2 horas diárias), os internos passam
o resto do dia isolados nas celas. O isolamento quase que absoluto, agravado pela
configuração das celas (inteiramente de cor branca), não se mostra salutar para a
saúde mental dos presos.
A quase totalidade dos internos faz uso de antidepressivos, medida largamente
utilizada pela administração para arrefecer os danos psicológicos causados pelo
regime disciplinar imposto.8

8
Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/cnpcp-1/relatorios-de-inspecao-1/relatorios-de-inspecao
2010/2010relatorio_ms.pdf.
871

Tal procedimento, porém, favorece a dependência dos internos em relação a


estes medicamentos, subvertendo completamente os ideários de humanidade.
Essa é também a situação atual dessas vítimas que, conforme laudos e
prontuários médicos, sobrevivem à base de remédios controlados.
Percebe-se, através dos prontuários médicos e psicológicos, os denunciantes
relatam, em comum, os sintomas de: insônia, ansiedade e depressão. Todos fazem
uso de antidepressivos, principalmente do bupropiona 150 mg.
Nota-se que tais fatos são de conhecimento do Estado Parte. Logo, este regime
não deveria continuar a ser aplicado ou, no mínimo, ser adequado aos preceitos
fundamentais da constituição pátria e às normas de direitos humanos das quais somos
signatários.
A já citada Lei de Execução Penal no Brasil veio com a função declarada no
seu artigo 1º: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença
ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do
condenado e do internado”.
E ainda, conforme a Carta de Direitos Humanos: 48 “Períodos longos de
isolamento não contribuem para a reabilitação ou ressocialização dos presos”.
Cabe destacar para o tema em debate, a interessante obra de Graciliano
Ramos, Memórias do Cárcere 9, resultante da experiência do autor, preso em março
de 1936, acusado de ligação com o Partido Comunista.
Este destaque para refletirmos que a história do cárcere, diga-se, sempre foi
um pesadelo para aqueles que o viveram. Na obra em comento, o País passava por
um regime ditatorial 10.
E atualmente, qual o sentido do encarceramento desumano, completamente
contrário aos ditames de um estado democrático de direito?
Graciliano Ramos, ao narrar sua história não se diz injustiçado, embora o tenha
sido. Memórias do Cárcere narra acontecimentos da vida de Graciliano Ramos e de
outras pessoas que estiveram presas durante o Estado Novo e se direciona a
situações vivenciadas por outras pessoas.
O que o autor retrata, e é o que mais interessa em Memórias do Cárcere, é um
olhar de quem foi preso, algo que é muito mais abrangente do que se fixar no olhar
do narrador. O discurso, regido pela égide da opressão é caracterizado pelo
desdobramento: pois é psicológico, e, ao mesmo tempo, um documentário; é
particular, mas universaliza-se. 11
É inevitável afirmar que a custódia no Sistema Penitenciário Federal está a
gerar danos psíquicos e emocionais, submetendo os condenados a malefícios que
não se limitam à privação de liberdade.
Cumpre relembrar que os direitos fundamentais têm, dentre as características:
a universalidade, a imprescritibilidade, historicidade, irrenunciabilidade e
inalienabilidade.
O direito à saúde, dotado de todas as características, de direito fundamental, é
direito de segunda geração e o seu desrespeito macula uma conquista histórica,
garantida constitucionalmente.

9
A obra foi escrita em 4 volumes e sem o capítulo final, pois o autor faleceu antes de poder concluir.
10
Memórias do Cárcere é o testemunho de quem viveu em porões imundos, sofreu com torturas e privações provocadas por um
regime ditatorial (denominado Estado Novo, no Brasil).
11
Disponível em: https://www.passeiweb.com/estudos/livros/memorias_do_carcere. Acesso em 10 de julho de 2018.
872

O Estado tem a responsabilidade para concretizar um ideal de vida digno na


sociedade.12 E neste ideal, inclui-se o direito social à saúde, que não se limita aos
cidadãos livres.

CONCLUSÃO

A Constituição da República, como norma matriz, veda a adoção de penas


cruéis e de caráter perpétuo (art. 5º, inciso XLVII, da CF), garante a individualização
na execução da pena (art. 5º, inciso XLVIII, da CF) e assegura os presos o respeito à
integridade física e moral (art. 5º, inciso XLIX, da CF).
No Brasil, portanto, não existe pena de morte tampouco perpetua, mas adota
um sistema que, na prática, compromete a saúde mental dos detentos.
O problema e diferença em relação aos países desenvolvidos é que os nossos
encarcerados voltarão ao convívio social e teremos que conviver com eles. A dúvida
que fica: esse convívio será saudável?
Que meios estão sendo empregados para garantir o retorno ao meio social com
segurança e com o objetivo da pena, de não apenas punir, mas ressocializar?
Deve-se ter em mente: devemos encarcerar e punir o indivíduo que cometeu o
delito, mas jamais devemos privá-los dos seus direitos outros, aqueles que estão além
da liberdade legalmente comprometida, objeto da pena.
Em outras palavras, a pena deve se limitar aos termos da sentença, atingindo
exclusivamente os direitos ali delimitados, não se prestando à execração pública, ao
exílio, à vingança ou ao sensacionalismo.
Não devemos e não podemos retirar direitos a custo de “fazer justiça”, a custo
da saúde, física e mental. Não podemos seguir distorcendo justiça e direitos humanos.
Devemos primar pela justiça, que se faz em observância à estrita legalidade.
Dentre os direitos assegurados aos condenados está aquele de cumprir a
reprimenda imposta em estabelecimento prisional próximo de sua família, como forma
de manter os vínculos afetivos e garantir a assistência familiar, emocional e social,
contribuindo para a harmônica integração social.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília-DF: Senado:


1988.
BRASIL. Lei n º11.671 de maio de 2008. Brasília-DF: 2008.
BRASIL. Lei nº 7.210 de julho de 1984. Brasília-DF, 1984.
MENDES DE SOUZA, Paulo de Tarso. Apontamentos de Direito Constitucional.
Brasília/Teresina: Fundação Astrojildo Pereira, 2009.
PRISÕES: Os novos manicômios. Disponível em:
http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2010/11/705437
prisoes+os+novos+manicomios.html. Acesso em 24 de setembro de 2018.
SANCHES, Ramírez v. França. Petição Nº 59450/00, Corte Europeia de Direitos
Humanos. p.145.
SMITH, Peter Scharff. Solitary Confinement: An introduction to the Istanbul
Statement on the Use and Effects of Solitary Confinement, p.1.
RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. São Paulo: Martins, 1969.

12
Disponível em: https://www.lfg.com.br/conteudos/artigos/geral/direitos-fundamentais-de-primeira-segunda-terceira-e-quarta-
geracao. Acesso em 10 de julho de 2018.
873

ERRO DE PESSOA EM RAZÃO DA TRANSEXUALIDADE: ANULAÇÃO DE


CASAMENTO E SEUS POSSÍVEIS EFEITOS CRIMINAIS À LUZ DOS DIREITOS
HUMANOS DA PESSOA TRANSEXUAL
ERROR OF A PERSON DUE TO TRANSGEDERISM: MARRIAGE ANNULMENT
AND ITS POSSIBLE CRIMINAL EFFECTS IN LIGHT OF THE HUMAN RIGHTS OF
TRANSGENDER PERSON

Amanda Lopes Ferreira Fernandes de Moraes

Resumo: Através dos postulados constitucionais somados à ratificação de pactos


internacionais, o Brasil está vinculado a promover a dignidade dos indivíduos, do que
depende resguardá-los de tratamentos discriminatórios, objetivo fundamental do país.
Para tanto, preceitua comprometimento em perseguir os direitos fundamentais à
liberdade e igualdade, chamados direitos humanos no âmbito supranacional. Essa
proteção deve recair, sobretudo, sobre as minorias políticas que, em decorrência das
características de suas diversidades, são submetidas a medidas excludentes, seja
pelo particular intolerante, seja pelo Estado que se nega a revisar posicionamentos
antiquados. Diante disso, este estudo busca auxiliar na compreensão de que a
garantia de direitos às pessoas transexuais depende da reformulação do Direito,
abordando especificamente a problemática do reconhecimento da transexualidade
anteriormente desconhecida como erro essencial de pessoa em razão da contração
de matrimônio.
Palavras-chaves: transexualidade, direitos humanos, erro de pessoa.

Abstract: Due to its constitutional postulates in addition to the ratification of


international accords, Brazil is compelled to promote the dignity of individuals, which
depends on the provision of protections from discriminatory treatment, the fundamental
objective of the country. In order to achieve this, commitment to following the
fundamental rights of liberty and equality known as human rights in the global stage.
This protection must be directed towards, most significantly, political minorities that, as
a result of the characteristics of their diversity, are subject to exclusionary measures,
be them by intolerant individuals or by the State which refuses to revise antiquated
positions. Thus, this papers aims to aid in the understanding that the preservation on
the human rights of transgender individuals depends on the reformulation of the Law,
specifically in the acceptance of the discovery of previously unknown transgederism
as an essential error of an individual in the contexto of marriage.
Palavras-chaves: transgederism, human rights, error of a person.

1. INTRODUÇÃO

A partir do advento da Constituição Federal democrática, de 1988, o Brasil tem


como fundamento a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF), estabelecendo
como objetivo fundamental a ser perseguido o de construir uma sociedade livre, justa
e solidária e sem preconceitos ou quaisquer formas de discriminação (arts. 3º, I e IV,
CF).
No mesmo sentido, compõem o Ordenamento Jurídico brasileiro documentos
internacionais supralegais e cogentes, tais como o Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos (aprovado pelo Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992) e a Convenção
Americana de Direitos Humanos (também conhecida como Pacto de San José da
Costa Rica, aprovada pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992). Através deles,
874

o Brasil se comprometeu a respeitar os direitos e liberdades neles previstos,


garantindo o livre exercício a toda pessoa sujeita a sua jurisdição, sem discriminação
por qualquer motivo.
Dessa maneira, mister concluir que o ordenamento jurídico brasileiro contempla
a proteção ao que Roger Raupp Rios (2008) chama de direito à antidiscriminação,
como maneira de efetivação dos direitos humanos das pessoas que são
marginalizadas em razão de suas características, como deficiência, cor da pele,
origem étnica, e orientação sexual diversa da estabelecida pelo conjunto social como
padrão. A título de exemplo, é possível citar a ratificação da Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, que resultou na formulação do Estatuto da
Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146 de 2015), que, por sua vez, estabeleceu
diversas mudanças em todo o ordenamento jurídico brasileiro visando o fim da
estigmatização da pessoa com deficiência.
Contudo, ao direito à antidiscriminação, amparado pela busca à concretização
dos direitos humanos, ainda são opostas barreiras no Brasil, em especial no que toca
à pauta da comunidade LGBTTI (formada por pessoas lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais e intersexuais). Isso, porque a assunção de postura includente
de tal grupo pelos políticos se mostra impopular, devido a não aceitação dessas
pessoas pelos socialmente conservadores, quadro que tende a piorar, dado o
crescimento da extrema direita também no Brasil. Assim, os representantes do povo
coadunam (seja pela omissão, seja pela incitação direta) com o massacre dessa
comunidade, que vai desde a negação ao exercício de direitos básicos até o homicídio
motivado pela discriminação.
Diante dessa situação, inclusive, o Poder Judiciário já se viu obrigado a avocar
para si a atividade parlamentar, quando decidiu pela equiparação de casais
homossexuais aos heterossexuais quanto ao casamento e união estável 1 e sucessão
“causa mortis”2, ante a inércia legislativa proposital.
Ocorre que outras normas jurídicas ainda precisam ser submetidas a controle
de constitucionalidade e de convencionalidade, pois se apresentam como violadoras
dos direitos humanos e fundamentais das pessoas LGBTTI’s. É o caso da
interpretação doutrinária aos enunciados jurídicos que constam dos artigos 1556 e
1557, I, do Código Civil, que reflete no tipo penal previsto no artigo 236, do Código
Penal, que versam sobre o casamento contraído com erro essencial de pessoa.

2. A SITUAÇÃO SOCIOJURÍDICA DA PESSOA TRANSEXUAL NO BRASIL

A despeito das normas internas e internacionais, diversas são as


manifestações de violência em razão da expressão trans de gênero na realidade
brasileira. A que mais salta aos olhos são os recorrentes casos de agressão e
homicídio da referida população. De acordo com mapeamento feito pela Associação
Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA3, somente no ano de 2017, foram
assassinados 179 (cento e setenta e nove) travestis e transexuais no Brasil. Uma das
vítimas desses crimes de ódio foi Dandara dos Santos, espancada e assassinada por
homens que gravaram as cenas de tortura, deixando nítida a sua motivação.

1 Trata-se do reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade família, através do julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, no ano de 2011, pelo Supremo
Tribunal Federal; bem como da Resolução nº 175 de 2013 do Conselho Nacional de Justiça, que obriga os cartórios não
oficiosos a realizarem a escritura pública de união estável vivida por casais homossexuais que a requererem.
2 Trata-se do julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal em sede do Recurso Extraordinário nº 646721/RS, no ano
de 2017.
3 Dados retirados do “Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017”, elaborado pela Associação
Nacional de Travestis e Transexuais.
875

Além de enfrentar repulsa nada velada de parte considerável da sociedade –


que vai de olhares tortos até agressões físicas e morte –, as pessoas trans ainda são
negligenciadas pelo Estado, sobre quem recai o ônus de combater a discriminação,
tendo em vista seu papel de garantidor da igualdade e da dignidade de todas as
pessoas. Isso, porque ainda existem muitos resquícios de discriminação
institucionalizada no átrio do Poder Público. A exemplo disso, é possível narrar o caso
Luiza Melinho vs. Brasil, apreciado no ano de 2016 pela Comissão Interamericana de
Direitos Humanos – CIDH, da Organização dos Estados Americanos.
Após tentativa de suicídio, Luiza, mulher trans, passou a ser atendida pelo
Hospital de Clínicas da UNICAMP (1997), para se submeter às cirurgias de
adequação de sexo através do Programa de Afirmação Sexual do Hospital (no qual
foi aceita em 2001). Todavia, o referido hospital parou de realizar tais procedimentos,
devido à complexidade e à inexistência de equipe multidisciplinar conforme exigido
pelo Conselho Federal de Medicina, o que levou Melinho a mutilar seu órgão genital
(2002). Em ação ajuizada em face do hospital (2002), fora-lhe negado o pedido de
realização das cirurgias através do Sistema Único de Saúde - SUS, sentença
confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (2006). Diante disso,
Melinho recorreu à CIDH (2009).
Em sua defesa, o Estado brasileiro sustentou ser inadmissível o ingresso
perante o organismo internacional, vez que não foram esgotadas todas as vias
internas, bem como não ter havido violação da Convenção Americana de Direitos
Humanos. Inobstante a essas alegações, em 14 de abril de 2016, a CIDH acolheu o
pedido de Melinho, pela injustificada morosidade na tramitação do processo judicial e
pela violação da integridade pessoal, das garantias judiciais, da proteção da honra e
da dignidade, da igualdade, da proteção judicial e do desenvolvimento progressivo,
tutelados pela mencionada convenção.
Diversas são as pessoas que passam por situações análogas à de Luíza, afinal,
somente 5 (cinco) hospitais estão habilitados junto ao SUS para realização do
processo transexualizador4, sendo inúmeros os depoimentos de pessoas que
aguardam há aproximadamente 10 (dez) anos na fila.
A fim de alterar o quadro de discriminação por orientação sexual e identidade
de gênero, o Projeto de Lei nº 134/2018, proposto pela Ordem dos Advogados do
Brasil – OAB com o apoio da Aliança Nacional LGBTTI, tramita perante o Senado. O
PL, que visa instituir o Estatuto da Diversidade Sexual, propõe alterações como a
proibição do enquadramento da comunidade LGBTTI como grupo de risco e sem
direito de doar sangue (art. 48); a criminalização da intolerância por orientação sexual
ou identidade de gênero (art. 97); e a criação de delegacias especializadas para o
atendimento de denúncia por preconceito de sexo, orientação sexual e identidade de
gênero (art. 81). Ocorre que o referido projeto não traz à baila o debate proposto neste
trabalho, sendo escassas as discussões sobre o tema no mundo jurídico.

3. ANULAÇÃO DE CASAMENTO FUNDAMENTADA NA TRANSEXUALIDADE

3.1 TRANSEXUALIDADE COMO ERRO DE PESSOA

4 São eles o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás – GO, o Hospital das Clínicas de Porto Alegre, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – RS, o Hospital Universitário Padre Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro – RJ, e o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife – PE, conforme informação
constante do site do Governo do Brasil.
876

Os artigos 1.5565, e 1.557, inciso I6, do Código Civil, preveem a possibilidade


de anulação do casamento por erro essencial na pessoa do outro cônjuge, que guarde
relação com identidade, honra e boa fama deste, desde que seja capaz de tornar
insuportável a vida em comum e que o conhecimento tenha se dado em momento
posterior ao enlace. Sendo reconhecida a causa de anulabilidade pelo Poder
Judiciário, extinguem-se todos os efeitos do casamento retroativamente (art. 1.563,
CC). O direito de ação prescreve em 3 (três) anos, contados a partir da data da
celebração (art. 1.560, inciso III, CC), e a coabitação posterior à ciência convalida o
negócio (art. 1.559, CC).
Tais dispositivos, de acordo com Flávio Tartuce (autor civilista renomado nos
cursos de graduação), apoiado na doutrina e jurisprudência, concedem a quem se
casou com pessoa transexual o direito de requerer a anulação do casamento. Em
suas palavras:
d) Casamento celebrado havendo erro essencial quanto à pessoa do outro
cônjuge (art. 1.550, III, 1.556 e 1.557 do CC)
(...)
Inciso I – No que diz respeito a identidade, honra e boa fama do outro
cônjuge, sendo esta uma informação de conhecimento ulterior pelo
nubente e que torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado.
(...) Vários são os exemplos apontados pela doutrina e jurisprudência
sendo interessante citar os seguintes: casamento celebrado com
homossexual, com bissexual, com transexual operado que não revelou
sua situação anterior (...) (TARTUCE, 2017, p. 68) (grifei).

Idêntico posicionamento é defendido por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald


(2017), embora, de modo contraditório, considerem inadmissível a caracterização da
anulabilidade do casamento a partir de alegação de homossexualidade do cônjuge,
por ser esta questão ligada às liberdades de expressão e autodeterminação da
pessoa, resguardadas por força da Constituição Federal.
A fim de averiguar se essa interpretação é acolhida pela magistratura, foi
realizada pesquisa jurisprudencial nos bancos de dados de todos os Tribunais de
Justiça estaduais, utilizando-se o termo de busca “anulação”, “casamento” e
“transexual”, não tendo sido localizado nenhum processo. Acredita-se que tal
resultado advenha da própria dificuldade em realizar as cirurgias e tratamentos
hormonais de adequação do sexo, como já fora comentado, vez que a demora no
procedimento pode dificultar a alteração das características sexuais secundárias e
resultar na exposição do sexo biológico da pessoa perante seu círculo de convívio.
Desse modo, o conhecimento da qualidade de transexual seria mais fácil, não
podendo ser alegada após o casamento para anulá-lo.
Inobstante o vazio jurisprudencial, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto
de Lei 3875/2012, que visa incluir menção expressa da transexualidade como causa
de anulabilidade do casamento no artigo 1557 do Código Civil, o que confirma a
importância do debate acerca do assunto. Salienta-se que, no dia 08 de maio de 2018,
o Relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania – CCJC se
manifestou pela constitucionalidade, juridicidade e, no mérito, pela aprovação do
projeto.
Diante do exposto, mostra-se relevante a discussão sobre os efeitos civis e
penais do reconhecimento do erro essencial de pessoa em razão da realização de

5 Dispõe que “o casamento pode ser anulado por vício de vontade, se houver por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro
essencial quanto à pessoa do outro”.
6 Dispõe que “considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: I – o que diz respeito à sua identidade, sua honra
e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado”.
877

cirurgia de adequação sexual na esfera sociojurídica da pessoa transexual, debate


com o qual se pretende contribuir através do presente trabalho.

3.2 ANÁLISE À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS

A nível regional, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (aprovada


no plano interno pelo Decreto nº 678 de 1992), também conhecida como Pacto de San
José da Costa Rica, estabelece que os Estados pactuantes, além de terem a
obrigação de respeitar os direitos e liberdades reconhecidos no documento, devem
garantir seu livre e pleno exercício a todo ser humano sem qualquer tipo de
discriminação (art. 1), haja vista a igualdade de todos e todas perante a lei, pelo que
devem dela receber igual proteção (art. 24). Diante desses preceitos, prescreve a
convenção em comento que toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao
reconhecimento de sua dignidade, sendo defeso ao Estado ser arbitrária ou
abusivamente ingerente com relação à vida privada de casa indivíduo e a sua família,
entre outros (art. 11).
Dispositivos semelhantes compõem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos (Decreto nº592 de 1992), de caráter global, também ratificado e
internalizado ao ordenamento jurídico pelo Brasil (art. 2, item “1”; art. 26; e art. 17,
respectivamente).
Conclui-se, portanto, que as garantias acima referidas são consideradas
direitos humanos – essenciais que são à existência digna de qualquer pessoa –, bem
como todas aquelas prerrogativas que delas decorrem, como é o caso do direito à
antidiscriminação e ao esquecimento, plenamente aplicáveis para afastar a
possibilidade de reconhecimento da transexualidade como erro de pessoa.
Conceber que o(a) transexual está obrigado a comunicar esse fato a qualquer
pessoa com que se envolva (ou pretenda) não se harmoniza com o respeito a suas
privacidade e identidade pessoais, decorrentes da dignidade e da honra. Tais
garantias se desdobram no direito de viver sem se sujeitar à eterna lembrança do
momento de sua vida em que se sentia desajustado(a), o que caracteriza o direito ao
esquecimento.
A violação de tais garantias compromete a integração da pessoa trans na
sociedade, que é incentivada a continuar acreditando que a transexualidade é anormal
e problemática em si. Em resumo, não há justificativa para forçar a pessoa transexual
a se identificar como tal caso prefira ocultar, se não aquelas fundadas em
pressupostos discriminatórios, com os quais o ordenamento jurídico brasileiro,
sistematicamente interpretado, não coaduna.
Por fim, cumpre dizer que o rol do art. 1557, CC, que elenca as situações
consideradas erro para fins de anulação do casamento, já foi alterado, justamente por
incompatibilidade com os direitos humanos. Isso, porque os incisos III e IV violavam
os direitos da pessoa com deficiência. Com a vigência do estatuto respectivo (Lei nº
13.416/2015), o inciso III passou a prever expressamente que o defeito físico
irremediável só pode ensejar a anulabilidade se não caracterizar deficiência, e o inciso
IV (que versava sobre o desconhecimento de doença mental grave) foi extirpado do
ordenamento jurídico.

3.3 DIVÓRCIO COMO DIREITO POTESTATIVO

Mister ressaltar que a natureza jurídica do divórcio é de direito potestativo.


Assim, é efetivado com simples manifestação de vontade de um dos cônjuges,
878

independentemente de qualquer justificação ou da aceitação do consorte. Portanto,


tendo descoberto a transgenericidade, o cônjuge que julgar insuportável manter o
relacionamento por esse motivo pode simplesmente requerer o divórcio.
Note-se que não se pretende obrigar quem se sentir enganado a continuar
casado, ou sequer puni-lo por ato discriminatório (que seria repudiar o cônjuge
unicamente por ser transexual), haja vista que o divórcio pode ser realizado sem
mesmo a necessidade de se apresentar justificativa para a vontade de se separar e
já não possui a carga negativa que outrora carregava. Objetiva-se tão somente
garantir que, através da legislação, não sejam estabelecidas medidas discriminatórias,
vez que injustificadas, que perpetuem a marginalização de pessoas em razão de sua
identidade de gênero.

3.4. CRIME CONTRA O CASAMENTO: INDUZIMENTO A ERRO ESSENCIAL

Seguido o entendimento de que a transexualidade configura erro de pessoa,


além do efeito civil até agora elucidado, a pessoa trans ainda incorre em crime contra
o casamento, podendo responder penalmente pela omissão de sua condição. Isso,
porque o artigo 236 do Código Penal tipifica a conduta de “contrair casamento
induzindo em erro essencial o outro contraente, ou ocultando-lhe impedimento que
não seja casamento anterior: Pena – detenção de seis meses a dois anos”.
Conforme lição de Guilherme de Souza Nucci (2017), o erro essencial de que
trata o artigo é uma norma penal em branco, que deve ser interpretada de acordo com
o artigo 1557, CC. Sustenta ainda que o tipo penal exige conduta comissiva, isto é, o
induzimento a erro não se caracterizaria por mera ocultação de fato, senão pela
intenção, o dolo de enganar.
Ocorre que, para Rogério Greco (2017), o crime pode se dar mediante omissão
imprópria. Assim, caso se perpetue a ideia de que o indivíduo trans tem o dever de
comunicar a sua condição, para evitar que a pessoa se engane quanto a sua
identidade, consequentemente se concluiria estar caracterizada a situação prevista
no artigo 13, §2º, alínea “c”, CP, segundo a qual a omissão é penalmente relevante
quando o omitente deveria agir para evitar o resultado, sendo o dever decorrente de
ter ele próprio, por comportamento anterior, criado o risco.
No que toca à averiguação jurisprudencial na esfera criminal, esclarece-se que
a sentença anulatória do casamento é indispensável para a propositura da ação penal
de iniciativa privada personalíssima (artigo 236, parágrafo único, CP). Desta feita, haja
vista que não se encontrou julgado concedendo a anulação do casamento por
transexualidade, também não pode haver sentença criminal por induzimento a erro
com base no mesmo motivo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo das considerações tecidas ao longo desse texto, conclui-se que não
se mostra razoável a aceitação da alegação de erro de pessoa por motivo de
transexualidade, uma vez que não há nenhum engano quanto ao outro cônjuge. A
identidade de gênero engloba aspectos sociais e psicológicos da construção social
dos gêneros, sendo responsável por situar o indivíduo na sociedade, e não pode
continuar sendo considerada como equivalente ao sexo biológico, definido pela
morfologia sexual no momento do nascimento e/ou a designação cromossômica.
A descoberta de simples realização de uma cirurgia de mudança de sexo em
nada altera a convivência do casal ou a personalidade e identidade da pessoa
879

operada, se não pelo preconceito do consorte, que não pode ser referendado pelo
mesmo ordenamento jurídico que se dispõe a promover a dignidade, a liberdade e a
igualdade.
Uma vez garantido o direito potestativo ao divórcio, a anulabilidade não poder
ser utilizada para livrar o cônjuge que discrimina a pessoa transexual – e, só por isso,
considera insuportável continuar casado – dos efeitos decorrentes do casamento,
porquanto viola direitos tutelados tanto pela Constituição Federal quanto por tratados
internacional de direitos humanos. Pelos mesmos motivos, a conduta de omitir a
realização da cirurgia não pode ser aceita como ensejadora da retaliação na esfera
penal.
A plena inclusão da comunidade transexual na sociedade, com a qual o Estado
brasileiro formalmente se comprometeu, deve começar pela extinção de toda e
qualquer restrição, civil ou criminal, que a pessoa possa sofrer por essa sua condição.

5. REFERÊNCIAS

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Travestis e Transexuais no Brasil em 2017. 2018. Disponível em:
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1988. Disponível em:
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______. Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992. Promulga a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 22 de
novembro de 1969. Disponível em:
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______. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de setembro de 1940. Código Penal. Disponível
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sexo-sao-realizadas-pelo-sus-desde-2008>. Acesso: 17 ago. 2018.
881

NEM SÍSIFO NEM ASVERO: A GRANDE NARRATIVA FRATURADA E A


DESCOLONIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
NEITHER SÍSIFO NOR ASVERO: THE SHATTERED GREAT NARRATIVE AND
THE HUMAN RIGHTS DECOLONIZATION

Caio Henrique Faustino da Silva


Thayná Augusta da Mata Carvalho
Davi Avelino Leal

Resumo: A história da humanidade perfaz uma grande narrativa progressista que se


confunde com o ideário dos direitos e, sobretudo, com a noção de direitos humanos.
Contudo, o sonho de progresso da humanidade foi capaz de produzir assombros.
Diante disso, a presente investigação se deu a partir de uma revisão bibliográfica e
documental cujo objetivo foi repensar a crença universalista dos direitos humanos.
Para tanto, fora empreendida uma revisitação crítica norteada pela perspectiva dos
estudos pós-coloniais à grande narrativa progressista dos direitos humanos sendo,
em seguida, discutido o problema da eficácia do Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Ademais, apoiada na perspectiva dos estudos pós-coloniais a presente
investigação objetivou constituir um fiel contributo às discussões que se seguem com
o intuito de fomentar o desenvolvimento de uma perspectiva inclusiva em matéria de
direitos humanos, capaz de franquear voz aos povos das regiões periféricas do globo.
Palavras-chave: Direito Humanos, Teoria crítica do Direito, Estudos decoloniais.

Abstract: The history of mankind is a great progressive narrative that is confused with
the ideals of rights and, above all, the notion of human rights. However, the dream of
progress of humanity was responsible for some monstrosities. Therefore, the present
investigation performed a bibliographical and documentary review whose objective
was to rethink the universal belief in human rights. Therefore, a critical review was
performed, guided by the post-colonial studies perspective, to the great progressive
narrative of human rights in order to discuss the efficacy of international human rights
law problem. In addition, based on the perspective of the post-colonial studies the
present investigation was a reasonable contribution to the following discussions aiming
to promote an inclusive human rights perspective development, namely, capable of
raising peripheral regions peoples` voices.
Key-words: Human Rights, Critical Legal Studies, Postcolonial studies.

1. INTRODUÇÃO

Se o período colonial se mostrou violento e implacável, o século XIX


acompanhado dos movimentos de formação e independência dos Estados Nacionais
latino-americanos, representaria o inicio do fim para esses povos. No interior das
recém-criadas repúblicas, a dominação colonial se fez igualmente persistente e letal.
Os índios agora deveriam ser incorporados a todo custo às novas nações.
Reinvocando a noção de progresso e, apoiado em um cientificismo racista, os anos
1800`s seriam responsáveis pela pacificação de povos inteiros. Era preciso “pacificar”
as resistências ainda que de forma violenta.
Nestes contextos, o surgimento dessas novas nações representou uma nova
oportunidade de ganho no quadro de um capitalismo quase contemporâneo. Se nos
séculos que antecederam o XIX, o domínio direto era exercido pela coroa detentora
do território, agora, estes espaços estavam acessíveis àqueles que dispusessem dos
882

meios necessários para explorar as potencialidades da região. Assim, a África, a Índia


e a Amazônia estariam mais do nunca conectadas. Ao passo que se escreviam os
capítulos mais recentes da crença gestada a partir da racionalidade modernista, as
riquezas fluíam das minas de Potosí às Gerais, dos castanhais e dos campos de
seringa do alto Rio Negro e do Içá para os cofres das coroas européias e suas velhas
praças de comércio.
Diante disso, a presente investigação se deu a partir de uma revisão
bibliográfica e documental cujo objetivo foi repensar a crença universalista dos direitos
humanos. Para tanto, fora empreendida uma revisitação crítica norteada pelo
perspectivismo dos estudos pós-coloniais à grande narrativa progressista dos direitos
humanos sendo, em seguida, discutido o problema da eficácia do Direito Internacional
dos Direitos Humanos.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 Direitos Humanos: uma grande narrativa fraturada.

Os movimentos de reformulação do Estado que se desenrolaram na Europa da


segunda metade do século XVII (especialmente na Inglaterra) e seus genitores
intelectuais divergentes como Hobbes, Locke e Rousseau; valeram-se dos direitos
humanos para defender posições antagônicas. Tinha-se, nos direitos humanos, o elixir
da vida capaz de curar todas as enfermidades e malogros dos discursos em conflito,
isto é, “o medicamento admirável! – capaz de tudo curar até as doenças que ele
mesmo produziu!” (VILLEY, 2016, p. 162). Antes o direito natural, agora os direitos
humanos, ambos serviriam à diferentes senhores, tendo sua tradição contribuído para
“repetidas e brutais violações da dignidade e da igualdade que tem acompanhado a
modernidade como sua inescapável sombra” (DOUZINAS, 2009, p. 82).
Valer-se-ia deste remédio sucessivas vezes. Às portas do iluminismo e das
revoluções do século XVIII; viu-se uma invocação sem precedentes, a declaração da
universalidade dos direitos do homem e do cidadão. Agora sob os auspícios das
“verdades auto evidentes” eram gerados grandes textos sob pressão (HUNT, 2009, p.
13). Tais verdades espantam, sobretudo, quando o olhar se lança para as bocas que
as professaram, sendo “espantoso que homens como Jefferson, um senhor de
escravos, e Lafayette, um aristocrata, pudessem falar dessa forma dos direitos auto
evidentes e inalienáveis de todos os homens” (HUNT, 2009, p. 17).
Apesar de sua “auto evidência”, “os direitos humano tornaram-se tão ubíquos
na atualidade que parecem requer uma história igualmente vasta (HUNT, 2009, p. 17);
fazendo-os cair no paradoxo da auto evidencia cuja ideia consiste em:

Se a igualdade de dos direitos é tão auto evidente, por que essa afirmação
tinha de ser feita e por que só era feita em tempos e lugares específicos?
Como podem os direitos humanos ser universais se não são
universalmente reconhecidos? (HUNT, 2009, p. 18).

O golpe dado pelos deputados do Terceiro Estado e a instituição unilateral de


uma Assembleia Nacional em 17 de julho e, em seguida, a definição da tarefa de
produzir uma Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão ia além. Sabia-se que:
“O ato de declarar não resolvia todas as questões” (HUNT, 2009, p. 133); nestes
termos, “declarar era mais do que esclarecer artigos de doutrina: ao fazer a
declaração, os deputados se apoderavam efetivamente da soberania” (HUNT, 2009,
883

p. 133). A linguagem dos direitos humanos serviria, agora, para refundar a ideia de
Estado.
Neste tocante, os movimentos revolucionários, marcos solenes e iniciais de
uma virada universalista, manifestam em suas declarações o hiato existente entre o
real e o ideal, sendo que “a declaração é falsa, mas a distância entre sua realidade
inexistente e sua futura aplicação é o espaço onde os direitos humanos se
desenvolvem” (DOUZINAS, 2009, p. 110). Mesmo em seu contínuo progresso, o
espectro declaratório não abandonaria o corpo errante da humanidade, sendo
elemento constantemente presente nos idos do século XIX, curso do século XX e na
fase legislativa dos direitos humanos.
O fim da Primeira Grande Guerra deixou evidente que a o ideário kantiano e o
projeto de uma paz perpétua universal (KANT, 1989) seriam sepultados nos termos
do tratado de Versalhes (VERSAILLES, 1919). Assim, o sonho da razão produziriam
monstros mais uma vez. O que se veria nas décadas seguintes seria o abandono da
razão e uma verdadeira escalada à violência sistemática, isto é, à ferocidade antiga
seria adicionada a astúcia (SOREL, 1992, p. 216). Os fantasmas do affaire Dreyfus
voltariam com força às vésperas da Segunda Grande Guerra. Dessarte, no interstício
entre as duas guerras, fica claro que “não se deve examinar os efeitos da violência
partindo dos resultados imediatos que ela pode produzir, mas de suas consequências
remotas” (SOREL, 1992, p. 65). Talvez não tão remota assim.
Se, após a Primeira Grande Guerra, ainda existia um resquício de crença no
crescente progresso da humanidade, brevemente o que restaria dela deveria ser
liquidado. Os tribunais ad hoc, as bombas atômicas e a justiça dos vencedores seriam
marcas evidentes da grande contradição que perfaz o caminho do homem em
sociedade rumo ao progresso. A carta da ONU de 1945 e a Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948 compreendem o novo grito universalista progressista – o
retorno às declarações afirmativas das verdades universais e auto evidentes – cujas
bases ainda guardam estreita relação com os motes iluministas revolucionários
(HUNT, 2009, p. 201).
Neste tocante, o persistente desejo/necessidade em declarar direitos faz com
que os revolucionários franceses e norte-americanos do século XVIII sejam
reavivados pelos legisladores internacionais sem considerar os mais de 150 anos que
separam ambos os momentos. Assim, segundo Douzinas, “é como comparar um
romance de Jane Austen à sua adaptação com costumes de época para a televisão”
(2009, p. 128), isto é, o uso de formulas antigas protegidas sob o verniz da
universalidade.
Por seu turno, os Pactos de 1966 representariam muito mais que organização
sistemática dos direitos humanos. Compreenderiam a negação de sua indivisibilidade,
complementariedade, interdependência e inter-relacionariedade, nos termos do
parágrafo 5º da Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993 (CONFERÊNCIA
MUNDIAL SOBRE DIREITOS HUMANOS, 1993); na medida em que, ao separar o
complexo de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais em dois
documentos, foi possível estabelecer mecanismos de aplicação, fiscalização e
controle diversos. Assim, restava claro que:

le developpment global se presente ainsi comme um système


économique, um ordre économique mondial, une idéologie humanitaire de
l’universalité des droits de lhomme qui est l’embryon d’um ordre politique
884

dit démocratique, une idéologie ou une inquietude écologique du village


global qui surdétermine l`effet unificateur (HOURS, 1998, p. 128)1.

Dessa forma, era evidente que os sujeitos situados à margem das discussões
“globais”, que antecederam as grandes cartas e declarações do século XX, cobrariam
o seu momento de fala. Viu-se, portanto, que “les pays du sud ne sont homogènes ni
par leur ressources ni par leur culture et leurs habitants, ni par leurs organisations
politique” (HOURS, 1998, p. 128)2. Sendo assim, era preciso repensar, em nível
regional, os valores euro-norte-americanos pretensamente universal. A moralidade
dos direitos humanos deveria ser alçada a um novo nível, mais próximo dos Estados
e dos indivíduos, com estruturas que facilitassem o law enforcement desses direitos.

2.2 A VELHA JUSTIÇA PARTICULAR ARISTOTÉLICA E O PROBLEMA DA


EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS

Neste novo cenário e a fim de atender a tais exigências, surgem os chamados


Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos. Funcionando de forma
complementar ao Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos (Sistema ONU),
as experiências europeia, interamericana e africana correspondem a um novo
momento dos direitos humanos. Seria a hora de questionar, a partir de um conceito
relativamente simples de direito, se aos direitos humanos é reconhecida “a legalidade
conforme o ordenamento, a eficácia social e a correção material” (ALEXY, 2009, p.
15).
Dessarte, partindo de uma acepção de validade sociológica, “uma norma é
socialmente válida quando é observada ou quando sua não observância é punida”
(ALEXY, 2009, p. 101). Aqui surgem os primeiros questionamentos: Teriam (os
sistemas global e regional) a capacidade de fazer cumprir a observância dos direitos
humanos? Se sim, quais seriam as consequências ou limites às consequências de
sua não observância? Seria possível considerar os direitos humanos (e seu arcabouço
normativo) um conjunto de normas socialmente eficazes? A fim de responder a tais
indagações é preciso considerar que:

A eficácia social e, por conseguinte, a validade social de uma norma é


uma questão de grau. Assim, uma norma que é observada em 80% de
todas as situações de aplicação e cuja não observância é punida em 95%
dos casos tem um grau de eficácia muito alto. Em contrapartida, é muito
insignificante, o grau de eficácia de uma norma que só é observada em
5% de suas situações de aplicação e cuja não observância é punida em
apenas 3% dos casos (ALEXY, 2009, p. 102).

Diante disso, o que falar dos direitos humanos? A fim de chegar a resposta para
estas questões, é preciso lançar mão de outras duas balizas ou critérios: “o da
observância e o da punição da não observância” (ALEXY, 2009, p. 101); centrados,
ambos, na exigência de que as normas jurídicas incluem o exercício da coação a qual,
nos atuais sistemas jurídicos, é organizada e instituída pelo Estado (ALEXY, 2009, p.
102).

1
“o desenvolvimento global se apresenta como um sistema econômico, uma ordem econômica mundial, uma ideologia
humanitária de universalidade dos direitos do homem a qual é o embrião de uma ordem politica dita democrática, uma ideologia
ou uma inquietude ecológica da comunidade global que reafirma o efeito unificador” (Tradução livre).
2
“Os países do Sul não são homogêneas, quer nos seus recursos ou a sua cultura e seu povo nem suas organizações políticas”
(Tradução livre).
885

O problema se mostra ao passo em que a análise se afasta dos mecanismos


formais de controle previstos em convenções, declarações, tratados e protocolos e se
debruça sobre o funcionamento dessas instituições. Em outros termos, qual a eficácia
das sentenças condenatórias prolatadas pelas cortes regionais? Nesta altura,
recomenda-se rememorar que nenhum sujeito deve ser juiz e parte de uma mesma
lide, esbara-se mais uma vez no velho problema da justiça particular aristotélica
(VILLEY, 2016, p. 43).
Assim, significa dizer que: se determinado Estado parte é condenado por uma
Corte (de um sistema regional ou pela CIJ), seria essa sentença condenatória
(consequência da não observância das normas de direitos humanos vigentes) dotada
de poder coativo a ser exercido sobre o Estado responsável? Se a resposta for não,
estar-se-ia diante de “um sistema normativo que não se impõe a outros ordenamentos
coativos normativos, não sendo socialmente eficaz em termos globais” (ALEXY, 2009,
p. 107). Nestes termos, conclui-se que “um sistema jurídico que não seja socialmente
eficaz em termos globais entra em colapso como sistema jurídico” (ALEXY, 2009, p.
110); sendo assim, estar-se-ia rumando para o declínio do modelo universal dos
direitos humanos?
Talvez fosse o momento de repensar as bases epistemológicas da noção
contemporânea de direitos humanos. É chegado o momento (preocupação constante)
de repensar a experiência e a história universal (ou universalizada) dos direitos
humanos. Universalidade cuja crença é “vital para uma perspectiva de esperança
quanto ao futuro” (RAZ, 2004, p.3). E, ao reconhecer o dito credo, deve-se considerar
que a universalidade depende da “compreensão correta da diversidade real dos
valores” (RAZ, 2004, p. 3), isto é, da variabilidade da própria noção de direito. Em
matéria de direitos humanos, a universalidade empírica é imaginária (DOUZINAS,
2009, p. 219), o que se confirma quando verificada à debilidade da elaboração dos
elementos que integram o arcabouço normativo internacional em matéria de direitos
humanos, ou ainda, quando observados os mecanismos de implementação dos
direitos humanos (previstos em tratados, convenções e protocolos); em ambos os
casos o que se tem é a garantia de “que o escudo da soberania nacional não seja
gravemente rompido” (DOUZINAS, 2009, p. 131).
Deve-se, ao passo em que se apregoa a universalidade dos direitos humanos,
reconhecer as identidades de grupo, as quais são baseadas e definidas pela memoria,
cultura e as responsabilidades comuns que delas advém (RAZ, 2004, p. 34) e assim
superar a velha contenda universalismo versus relativismo; equilibrando-a com os
valores universalizados, compreendidos enquanto portadores dos genes da
generalidade, a atemporalidade e universalidade (RAZ, 2004, p. 52). Nestes termos,
os direitos humanos devem ser compreendidos como “o grito do oprimido, do
explorado, do despossuído” (DOUZINAS, 2009, 157) cuja energia e vitalidade “vem
daquelas vidas que foram arruinadas pela opressão ou pela exploração” (DOUZINAS,
2009, 157).

2.3 DESCOLONIZANDO OS DIREITOS HUMANOS: QUANDO NOVOS ATORES


DEVEM ENTRAR EM CENA.

No período que se estende dos idos do século XV ao inicio do século XX, o


projeto colonial, ou ainda, colonialista, passou por profundas transformações.
Abandonou-se a dominação formal, explícita e institucional (QUIJANO, 1992, p. 12)
experimentada, por exemplo, pelo continente africano até o ultimo quartel do século
XX; assumindo-se um conjunto de relações de dominação cultural. Erigiu-se um
886

complexo jogo centrado nas categorias “oriente-ocidente, primitivo-civilizado,


mágico/mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno” (QUIJANO, 2000, p.
211)3, manifestações de uma dominação mais difusa.
Neste sentido, Mignolo assinala que “modernidad/colonialidad son dos caras
de una misma moneda. La colonialidad es constitutiva de la modernidad; sin
colonialidad no hay – no puede haber – modernidad” (2001, p. 43)4; as Américas
seriam o laboratorio pernicioso para o desenvolvimento do projeto colonial mais
duradouro e plural. A pluralidade/complexidade do referido projeto alcança os mais
variados campos do saber, o Direito não escaparia.
Intenta-se, portanto, questionar as bases universalistas dos direitos humanos
e, assim, desafiar “as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso”
(BHABHA, 1998, p.21); isto se dá, em certa medida, pelo reconhecimento das fraturas
que marcaram o corpo racionalista pós-iluminista das grandes narrativas e
evidenciaram o seu provincianismo (BHABHA, 1998, p.23). Entre o moderno e o pós-
moderno está o além, a fronteira cujas barreiras começam a trincar a partir do
reconhecimento dos limites epistemológicos do etnocentrismo ou, mais
especificamente, do eurocentrismo. Pará além desta, agora frágil fronteira, existe
“uma gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes” (BHABHA, 1998,
p.24).
Dessarte, toma-se de assalto a grande narrativa dos direitos humanos na
tentativa de subvertê-la, a fim de que se torne possível “reinserir, reinscrever o
colonizado na modernidade, não como outro do Ocidente, sinônimo do atraso, do
tradicional, da falta, mas como parte constitutiva essencial daquilo que foi construído,
discursivamente como moderno” (COSTA, 2006, p. 121). Isto só é possível a partir da
real superação da dicotomia sujeito e objeto (BONNICI, 1998, p.14), ferindo o cânone
colonial inscrito, também, nos direitos humanos.
Em termos práticos, significa, preliminarmente, reconhecer que os direitos
humanos, tal como são amplamente concebidos e alardeados, são “um projeto moral,
jurídico e politico criado na Modernidade Ocidental e que, depois de ter sido
suficientemente desenvolvido e amadurecido, foi exportado ou transplantado para o
resto do mundo” (BRAGATO, 2014, p. 205) para, em seguida, reivindicar o direito de
vez e voz das populações e povos dos quais se fala, sobre os quais, mas para os
quais não se fraqueia o testemunho. Deve-se, portanto, romper o pensamento abissal
(SANTOS, 2007), ou a fronteira do pensamento (BHABHA, 1998), e redesenhar “o
autorretrato da modernidade” (BRAGATO, 2014, p. 217) em seus mais variados
matizes, tendo, nos direitos humanos um importante locus de afirmação, e não mais
de negação, da diversidade cultural, social e política dos povos.
É chegada a hora dos subalternos falarem (SPIVAK, 1988) a partir de uma
descolonização geográfica (SIDAWAY, 2000), cultural (BHABHA, 1998), política e
econômica (QUIJANO, 2012). Não se tratam das luzes do progresso, da modernidade
ou de uma velha racionalidade, versa-se sobre o sair da escuridão do silêncio. Silêncio
forçado e violentamente alimentado.

3. CONCLUSÃO

Em seus mais de vinte séculos, a história da sociedade ocidental, herdeira do


legado helênico-judaico-cristão, foi constantemente reescrita, ganhando e perdendo

3
"Oriente-Oeste, primitivo-civilizado, mágico / mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno" (Tradução livre).
4
"Modernidade / colonialidade são dois lados da mesma moeda. A colonialidade é constitutiva da modernidade; sem
colonialidade há - não pode haver - modernidade" (Tradução livre).
887

sujeitos, reinscrevendo posições de poder e subalternidade, vociferando


mandamentos, silenciando, marginalizando e excluindo resistências. Entre os grandes
atos que compõem a narrativa romântica de uma história universal de progresso e
desenvolvimento do homem em sociedade, em meio aos faustosos testemunhos
escritos e contatos pelas fontes “oficiais” responsáveis pela preservação do enredo,
encontram-se outras tantas histórias, crônicas, memórias que constantemente exigem
o seu lugar nos anais dos lieux de memoire daquela coletividade.
No curso de sua grande narrativa, nada restou imutável à passagem do tempo.
Presos entre o passado e o futuro, viu-se que os tesouros nunca foram reais, era tudo
uma miragem. As construções imaginárias clássicas desapareciam e tornariam a
surgir da mesma forma que foram criadas, abruptamente. Depois delas, nos séculos
seguintes, outras tantas crenças seriam erigidas, arrastando uma turba de sujeitos
que, em breve, desvanecer-se-ia para, mais adiante, encontrarem outra quimera. A
humanidade se situaria em algum lugar entre Sísifo e o judeu Asvero.
Diante disso, resta imperioso superar esta esgarçada, cansada e carcomida
narrativa. Uma grande narrativa fraturada nascida a partir da tradição helênica-
judaico-cristã que resiste sob a proteção do manto de um humanitarismo universalista.
Um humanitarismo que não passa da visão de um punhado de sujeitos projetada
sobre todo o restante, fruto da própria crença modernista de progresso globalizado,
ou ainda, universalizado. Neste cenário, a referida crença faz do direito o seu
estandarte. Norteado pela velha formula que insiste em recondicionar velhas práticas,
estratégias e discursos de poder, a crença modernista recondiciona velhas fórmulas
e as apresenta como um novo passo rumo ao progresso final, um secular reinventar
da roda. A defesa dos direitos humanos é, como outrora, o argumento daqueles que
os violam. E, se antes a missão era civilizadora, conversora pela fé, hoje, o ato
missionário repousa sobre a garantia dos direitos humanos.
Neste sentido, a eficácia social e a correção material dos direitos humanos é
tão seletiva quanto a sua universalidade, isto é, o human rights empowerment é só
uma questão de voluntas. É o paradoxo dos direitos humanos, direitos criados para
proteger os sujeitos da violência legalizada dos Estados, mas dependentes diretos da
vontade destes para garantir a sua efetividade.

4. REFERÊNCIAS

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VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. São Paulo: Martins fontes, 2016.
889

O BULLYING HOMOFÓBICO NAS ESCOLAS COMO ÓBICE AO


DESENVOLVIMENTO DA CIDADANIA EM UMA PERSPECTIVA DE DIREITOS
HUMANOS
HOMOPHOBIC BULLYING IN SCHOOLS AS AN OBSTACLE TO THE
DEVELOPMENT OF CITIZENSHIP FROM A HUMAN RIGHTS PERSPECTIVE

Marco Antônio Moreira Carrasco


Antônio Rodrigues Neto

Resumo: O presente resumo, decorrente de pesquisa em andamento, tem o escopo


de evidenciar o impacto do bullying homofóbico enquanto óbice ao desenvolvimento
da cidadania (ARENDT, 1991, p. 22) e do respeito à igualdade que reconhece as
diferenças (SANTOS, 2003, p. 56), bem como contraria os propósitos estabelecidos
pela Educação em Direitos Humanos. Desse modo, a partir de pesquisa bibliográfica
e documental e aplicando-se o método dedutivo, propõe-se demonstrar que o bullying
homofóbico, entre outros, pode lesar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1998). O
referido trabalho, aproveitando-se de seu caráter descritivo e exploratório, visa reunir
informações para futuras pesquisas sobre a temática, bem como elevar a importância
da criação de ações, políticas públicas, por parte da Administração Pública, que
combatam práticas discriminatórias nas salas de aula, considerando ser este,
também, um dos efeitos da Educação em Direitos Humanos.
Palavras chave:. Educação em Direitos Humanos. Bullying Homofóbico. Cidadania.

Abstract: This summary, drawn from research in development, aims to highlight the
impact of homophobic bullying as an obstacle to the development of citizenship
(ARENDT, 1991, p.22) and respect for equality that recognizes differences (SANTOS,
2003, p. 56), and to demonstrate how prejudice precludes the purposes established
by Human Rights Education. From a bibliographical and documentary research and
applying the deductive method, it is proposed to demonstrate that homophobic bullying
can harm the person's full development, his preparation for the exercise of citizenship
and his qualification for work (BRASIL, 1998). This descriptive and exploratory work
aims to gather information for future research on the subject, as well as to raise the
importance of creating actions and public policies to confront discriminatory practices
in classrooms, considering that this is also one of the effects of Human Rights
Education.
Keywords: Education in Human Rights. Homophobic Bullying. Citizenship.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O bullying homofóbico, enquanto prática discriminatória, afeta indivíduos cuja


orientação sexual não corresponde ao padrão heteronormativo culturalmente
estabelecido como “normalidade”, sendo possível evidenciá-lo em diferentes espaços
(públicos ou privados), dentre os quais se destaca, para fins da presente pesquisa, o
ambiente escolar.
Aludido fenômeno homofóbico, por sua vez, acarreta em violações a Direitos
Humanos, cujos reflexos perpassam diferentes âmbitos da vivência social do
indivíduo, mas, sobretudo, lesam sobremaneira a formação de suas identidades, a
construção de suas cidadanias e o respeito às suas dignidades humanas, podendo
ser considerados como impedimentos “à desenvoltura da liberdade de atuação do ser
890

humano como um agente autônomo” (MOREIRA, 2009, p. 242), em uma perspectiva


na qual “todas as pessoas têm o direito de desfrutar de todos os direitos humanos
livres de discriminação por sua orientação sexual ou identidade de gênero” (BRASIL,
2006, p. 12-13).
Dessa maneira, o presente estudo encontra sua relevância com base em
índices alarmantes de violência1 perpetrada contra homossexuais masculinos e
femininos, além dos impactos sociais, laborais, educacionais, econômicos, culturais,
dentre outros, que são causados em razão da discriminação ocasionada por suas
orientações sexuais. Nesse sentido, associar temas tais como cidadania, igualdade e
diversidade sexual e de gênero torna-se míster em uma perspectiva de Educação em
Direitos Humanos e, especialmente, dos propósitos estabelecidos para a educação
no Brasil de buscar o “pleno desenvolvimento da pessoa”, seu “preparo para o
exercício da cidadania” e a sua “qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988).
Dito isso, o presente resumo – que integra parte de pesquisa em
desenvolvimento - consiste em um trabalho de caráter descritivo, bibliográfico e
documental, que objetiva demonstrar de que forma o bullying homofóbico obsta o
desenvolvimento da cidadania, enquanto “direito a ter direitos” – (ARENDT, 1991,
p.22), e do respeito à igualdade pela diferença, tal como proposto por Santos (2003,
p. 56).
Para tanto, se fundamenta no seguinte problema: de que maneira a Educação
em Direitos Humanos deve estar voltada ao combate do bullying homofóbico nas
escolas, considerando os seus impactos na conquista da cidadania e na efetivação
da igualdade pela diferença?
Assim sendo, o presente trabalho será fragmentado em dois segmentos. A
princípio, se ocupará de discutir a importância do direito à igualdade pela diferença
(SANTOS, 2003, p. 56) para a conquista da cidadania (ARENDT, 1991, p. 22), a fim
de que seja possível, em um segundo momento, a análise qualitativa dos efeitos do
bullying homofóbico em uma perspectiva de Direitos Humanos: seja na construção de
identidades, seja na efetivação de uma sociedade baseada na promoção da igualdade
de oportunidades e da equidade, no respeito à diversidade e na consolidação de uma
cultura democrática e cidadã (BRASIL, 2007, p. 11).
Como resultado da presente pesquisa, pretende-se reunir informações que
possibilitem futuros estudos acerca do tema, bem como elevar a importância da
criação de ações, políticas públicas, por parte dos órgãos públicos, que defrontem
práticas discriminatórias nas salas de aula, considerando ser este, também, um dos
efeitos da Educação em Direitos Humanos.

1. O DIREITO À IGUALDADE PELA DIFERENÇA E A CONQUISTA DA


CIDADANIA

Com o intuito de se alcançar a justiça social a partir da efetivação da igualdade


plena (que reconhece e respeita as diferenças), a garantia da inclusão de
homossexuais nos ambientes laboral, social, cultural, econômico, político e,
principalmente, educacional, torna o respeito às diversidades como fundamental para
a consagração da paz social e da proteção da dignidade humana. Nesse sentido,
também está o pensamento de Santos (2003, p. 51), que afirma:

1
No que se refere à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, os dados de violência contra a comunidade
LGBT constatam que no Brasil morreram 445 pessoas em 2017 vítimas da homotransfobia: 387 assassinatos e 58 suicídios. Um
aumento de 30% em relação a 2016, quando registraram-se 343 mortes. (Grupo Gay da Bahia, 2017)
891

[...] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza;
e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos
descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as
diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza
as desigualdades.

Por isso, antes de se demonstrar de que forma a Educação em Direitos


Humanos identifica e estabelece meios de se combater o bullying homofóbico nas
salas de aula – a partir do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
(PNEDH) (BRASIL, 2007), faz-se necessário compreender de que maneira a
igualdade, por si só, representa a consagração da cidadania enquanto “direito a ter
direitos” (ARENDT, 1991, p. 22), justificando-se a importância de se concretizar o
respeito às diferenças sob risco de comprometer a “[...] desenvoltura da liberdade de
atuação do ser humano como um agente autônomo” (MOREIRA, 2009, p. 242).
Nesse sentido, os princípios de Yogykarta, importante documento internacional
que versa sobre a aplicação da legislação internacional de Direitos Humanos em
relação à identidade de gênero e orientação sexual, estabelece:

Todas as pessoas têm o direito de desfrutar de todos os direitos humanos


livres de discriminação por sua orientação sexual ou identidade de gênero.
Todos e todas têm direito à igualdade perante à lei e à proteção da lei sem
qualquer discriminação, seja ou não também afetado o gozo de outro
direito humano. A lei deve proibir qualquer dessas discriminações e
garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer uma
dessas discriminações. A discriminação com base na orientação
sexual ou identidade gênero inclui qualquer distinção, exclusão,
restrição ou preferência baseada na orientação sexual ou identidade
de gênero que tenha o objetivos (sic) ou efeito de anular ou
prejudicar a igualdade perante à lei ou proteção igual da lei, ou o
reconhecimento, gozo ou exercício, em base igualitária, de todos os
direitos humanos e das liberdades fundamentais. A discriminação
baseada na orientação sexual ou identidade de gênero pode ser, e
comumente é, agravada por discriminação decorrente de outras
circunstâncias, inclusive aquelas relacionadas ao gênero, raça, idade,
religião, necessidades especiais, situação de saúde e status econômico.
(BRASIL, 2006, p. 12-13) (grifo nosso)

Dessa maneira, a não observância do respeito às diferenças acarreta na


manutenção das ameaças ou violações a Direitos Humanos contra indivíduos
homossexuais e a sua não integração ao meio social nos quais estão inseridos,
mantendo-os marginalizados e lesando o seu desenvolvimento integral (MOREIRA,
2009, p. 239).
Como consequência disso, o indivíduo que sofre discriminação acaba sendo
privado de acessar espaços e gozar direitos, ou seja, de alcançar a sua cidadania
plena. Com isso, perde também a democracia, considerando que a Constituição de
1988, em seu artigo 5º, garante a inviolabilidade do direito à liberdade e à igualdade
(BRASIL, 1988), como direitos fundamentais.
No mesmo caminho, a Constituição (BRASIL, 1988) também prevê, em seu
artigo 205, que a educação será promovida “[...] visando ao pleno desenvolvimento
da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho”. Com isso, a fim de que sejam consagrados os preceitos constitucionais
supramencionados, faz-se necessário a aplicação do princípio de respeito à liberdade
e apreço à tolerância.
Por sua vez, o PNEDH dispõe que:
892

O Estado brasileiro tem como princípio a afirmação dos direitos humanos


como universais, indivisíveis e interdependentes e, para sua efetivação,
todas as políticas públicas devem considerá-los na perspectiva da
construção de uma sociedade baseada na promoção da igualdade de
oportunidades e da eqüidade, no respeito à diversidade e na consolidação
de uma cultura democrática e cidadã. (BRASIL, 2007, p. 11)

Assim, o que se busca com o respeito às diferenças, na verdade, é garantir-se


o desenvolvimento das liberdades individuais, com respeito às identidades, com a
finalidade de que os cidadãos homossexuais se desloquem da marginalização para a
efetiva cidadania, sendo considerados por sua autenticidade no meio social.
Por isso, é de extrema relevância para o avanço da cidadania que os indivíduos
aprendam a viver com as diferença, fazendo assim, com que a sociedade entenda,
compreenda e respeite a dissemelhança, permitindo o reconhecimento da diversidade
sexual para a concretização da paz e da Justiça Social.

2. O BULLYING HOMOFÓBICO COMO LIMITADOR DA CIDADANIA: DAS SALAS


DE AULA ÀS POLITICAS PÚBLICAS

Como já mencionado, a discriminação por motivos de orientação sexual, além


de limitar as liberdades individuais, também prejudica a integração social e o respeito
às diferenças, uma vez que os indivíduos afetados pela imposição forçada de um
padrão heteronormativo e o preconceito, nos diferentes espaços que convive, podem
não alcançar o seu pleno desenvolvimento e, também, a conquista de suas
cidadanias, enquanto “direito a ter direitos” (ARENDT, 1991, p. 22).
Tais limitações, por sua vez, assumem especial contraste se observadas de
uma perspectiva educacional. Ou seja, a prática do bullying homofóbico no ambiente
escolar não apenas contraria os objetivos estabelecidos para a Educação em Direitos
Humanos (BRASIL, 2007) como é evidenciada em baixa autoestima, medo,
ansiedade, sentimentos de vingança, ausência de estímulos, entre outros, nas
vítimas, além dos efeitos educacionais, tais como: evasão, abandono, violência nas
escolas, dentre outros.
Desse modo, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH)
traz como meta para a Educação em Direitos Humanos:

[...] 9. fomentar a inclusão, no currículo escolar, das temáticas relativas a


gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual,
pessoas com deficiências, entre outros, bem como todas as formas de
discriminação e violações de direitos, assegurando a formação continuada
dos(as) trabalhadores(as) da educação para lidar criticamente com esses
temas; (BRASIL, 2007, p. 33) (grifo nosso)

Nesse prisma, aceitar atitudes humilhantes e discriminatórias significa


contrariar direitos fundamentais e constitucionais garantidos a todo e qualquer ser
humano, uma vez que eles representam a valorização da pessoa humana -
embasamento estrutural do Estado Democrático de Direito. A escola, nessa
perspectiva, se mostra um espaço privilegiado para a construção do respeito à
diferença, conforme aponta Aguilera Urquiza (2016, p. 21):

Nesse contexto de interação entre os diferentes, sejam eles indivíduos,


grupos ou sociedades, um elemento fundamental é o processo
educacional, espaço onde as gerações assumem, através da escola, o
893

dinâmico processo de transmissão cultural e formação de novos


elementos e padrões culturais. A escola é o espaço privilegiado para a
desconstrução e construção de novas práticas culturais e
identitárias. Advém desse papel privilegiado a aposta das políticas
públicas sobre a diversidade, direitos humanos e outros, centrados no
processo educacional. A educação torna-se, dessa forma, um Direito
Humano fundamental. O acesso ou não a esse direito atua, ora como
causa ora como consequência da pobreza e exclusão social. (grifo nosso)

Em vista disso, a educação está intrinsicamente vinculada à conquista da


cidadania aqui entendida como “direito a ter direitos” (ARENDT, 1991, p. 22), pela
capacidade de gerar ao cidadão reflexões enquanto indivíduo inserido em um meio
social composto por diferenças, ou seja, a educação é capaz de apresentar a todos
os sujeitos a dimensão do mosaico cultural em que se vive e a importância de respeitar
a autenticidade do outro, construindo, assim, sua identidade a partir de suas
experiências.
No mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990),
dispõe que “é dever de todos velar pela dignidade da criança do adolescente, pondo-
os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor”. Portanto, o sistema educacional deve atentar-se para a ocorrência do
bullying nas escolas, sob o risco de impedir que o indivíduo de usufrua de sua
autodeterminação (PEREIRA, VARELA e SILVEIRA, 2015, p. 1500), além do
desenvolvimento de sua identidade.
Pereira, Normanton e Stempliuk (2018) apresentam os dados mais recentes
que evidenciam a existência de preconceitos dentro dos ambientes escolares, dentre
outros em razão do gênero ou de orientação sexual:

De acordo com a pesquisa Preconceito e Discriminação no Ambiente


Escolar, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas a
pedido do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), 94,2% têm preconceito étnico-racial, 93,5% de gênero,
87,5% socioeconômico e 87,3% com relação à orientação sexual, entre
outras percepções de preconceitos. Por sua vez, a Pesquisa Nacional
sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2016 constatou que dentre os
estudantes LGBT, 73% foram agredidos verbalmente e 36% foram
agredidos fisicamente nas escolas. Sendo assim fundamental a
inclusão do debate acerca de gênero e sexualidade na educação, a
fim de diminuir as desigualdades de gênero, a violência contra
mulheres e o preconceito em razão de orientação sexual e identidade
de gênero. A UNESCO no Brasil se manifestou, no sentido de acreditar
que o debate sobre sexualidade e gênero contribui para uma educação
mais inclusiva, equitativa e de qualidade, entendendo, sem dúvidas, que
é necessário que a legislação brasileira e os planos de educação
incorporem perspectivas de educação em sexualidade e gênero (2018, p.
15-16) (grifo nosso).

Por conta disso, é mister a intervenção do Estado Democrático, transformador


da realidade social, para que introduza novas e eficazes conjunturas políticas a fim de
transfigurar o atual panorama social e jurídico, voltando o olhar dos agentes públicos
às ameaças e violações a Direitos Humanos perpetradas com base em homofobia,
bem como eliminar o bullying discriminatório dos ambientes escolares (PEREIRA,
VARELA e SILVEIRA, 2015, p. 1495).
Portanto, o Plano Nacional de Desenvolvimento de Educação em Direitos
Humanos retrata não somente a instituição de políticas públicas de combate à
desigualdade e a consagração da cidadania, propiciando-se uma cultura de paz no
894

meio social, mas também a aplicação da igualdade pela diferença, tal como proposto
por Santos (2003, p. 56), isto é, transfigurando a noção de cidadania enquanto “direito
a ter direitos” (ARENDT, 1991, p. 22).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prática do bullying discriminatório com base em orientação sexual nos


ambientes escolares se mostra como óbice ao desenvolvimento da cidadania - aqui
compreendida como o “direito a ter direitos” de que nos fala Arendt (1991, p. 22) - e
do respeito à igualdade - como sendo aquela que reconhece as diferenças - tal como
proposta por Santos (2003, p. 56), por não permitir o pleno desenvolvimento de
identidades e, mais que isso, o acesso a diferentes espaços e direitos.
Assim, a atenção estatal à proteção a crianças e adolescentes estabelecida no
texto constitucional, bem como os propósitos delimitados para a educação no Brasil,
reafirmam como necessária a dignidade destes em todos os espaços em que habitam,
dentre eles a escola, de forma que se torna imperioso introduzir conjunturas políticas
eficazes e competentes a fim de transfigurar o atual cenário jurídico e social, na qual
os usuários da educação básica acabam sendo privados de direitos ou vindo a ou
tendo suas sofrer ameaças e violações a Direitos Humanos perpetradas com base no
bullying homofóbico.

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Diversidade Cultural. In: Nascimento: os Direitos Humanos nas fronteiras (Brasil e
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SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do
cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
895

O LIMITE DAS OBRIGAÇÕES DO ESTADO NO FORNECIMENTO DE


MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO A PACIENTES COM NEOPLASIA MALIGNA
(CÂNCER)
THE LIMIT OF THE OBLIGATIONS OF THE STATE IN THE PROVISION OF HIGH
COST MEDICINES TO PATIENTS WITH MALIGNA NEOPLASIA (CANCER)

Brendha Figueiredo Rodrigues


José Cláudio Monteiro de Brito Filho

Resumo: O presente trabalho analisa o limite das obrigações do Estado na garantia


do direito à saúde na distribuição de remédios de alto custo às pessoas em tratamento
de Neoplasia maligna. Tem o objetivo de definir qual a responsabilidade do Estado na
distribuição destes remédios de forma justa e distributiva, atendendo a necessidade
de todos aqueles que buscam, de alguma forma, assegurar seu direito à vida. O
direito à saúde pertence ao rol de direitos sociais previstos na Constituição da
República de 1988, que reconhece que é um direito fundamental de todos e que o
Estado deve atender e garantir que seja efetivado, por meio de políticas públicas que
possam preservar o acesso universal e igualitário de todos a esse direito, à luz do
ideal da Justiça Distributiva de John Rawls.
Palavras-chaves: Direito à saúde. Fornecimento de Medicamentos. Neoplasia
Maligna.

Abstract: The present study analyzes the limits of the State's obligations to guarantee
the right to health in the distribution of high-cost medicines to people receiving
treatment of malignant neoplasia. Its purpose is to define the State's responsibility in
the distribution of these remedies in a fair and distributive manner, taking into account
the need of all those who seek, in some way, to ensure their right to life. The right to
health belongs to the list of social rights provided for in the 1988 Constitution, which
recognizes that it is a fundamental right of all and that the State must address and
ensure that it is implemented through public policies that can preserve universal
access and equal to all of this right, in the light of John Rawls's ideal of Distributive
Justice.
Keywords: Right to health. Supply of Medications. Malignant neoplasm.

INTRODUÇÃO

O problema da escassez de recursos para a área da saúde é um assunto que


constantemente é debatido na sociedade. Filas enormes para conseguir atendimento,
falta de leitos nos hospitais, falta de médicos e o pouco fornecimento de remédios
necessários. Este é o cenário da saúde no Brasil.
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, trouxe
diversos direitos fundamentais, à semelhança dos já previstos nos Tratados
Internacionais e reconhecidos como Direitos Humanos. Dentre os elencados está o
direito à saúde, disposto no rol de direitos sociais, previsto no artigo 6º de forma mais
ampla e nos artigos 196 a 200 de forma mais específica.
A dignidade da pessoa humana é o principal fundamento pelo que o Estado
tem o dever de proteger as pessoas em seus direitos e necessidades básicas,
garantindo que os indivíduos possam ter o básico para viver de forma digna, com
todas as suas necessidades básicas sendo disponibilizadas de forma plena e
896

acessível, como moradia, saúde, educação, trabalho lazer e outros. Neste sentido,
Flávia Piovesan (2000, p. 54) diz que:

“A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio matriz da


Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a
interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e
Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as
exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a
todo o sistema jurídico brasileira.”

O Direito à Saúde foi disposto em lei pela primeira vez na Carta Magna de 1988
como um dos direitos sociais, que têm o objetivo de garantir melhorias nas condições
de vida dos hipossuficientes, visando a igualdade social e a consagração das
condições básicas para que as pessoas possam cumprir seus projetos de vida.
Assim, a valorização do direito à saúde se deve ao fato de ele ser
essencialmente um direito fundamental do ser humano, tendo em vista que a saúde é
“um dos principais componentes da vida, seja como pressuposto indispensável para
sua existência, seja como elemento agregado à sua qualidade. Assim, a saúde se
conecta ao direito à vida” (SCHWARTZ, 2001, p. 52).
Diante disso, o legislador constitucional, no artigo 196 da CRFB de 88, previu
que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais
e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação” (texto digital). Ou seja, o Estado é o maior garantidor da saúde pública
e deve atender aos anseios da população.
No entanto, o Estado constantemente alega a dificuldade que encontra em
cumprir com o dever de garantia deste direito, principalmente em se tratando de
efetivar a prestação de concessão de medicamentos de alto custo, em especial para
pacientes em tratamento de neoplasia maligna.

PROBLEMA

A questão que se impõe na pesquisa é: qual o limite da obrigação do Estado


na garantia do Direito à saúde na distribuição de medicamento de alto custo a pessoas
em tratamento de neoplasia maligna?

OBJETIVO

Analisar o limite das obrigações do Estado na garantia do Direito à saúde na


distribuição de medicamentos de alto custo a pacientes em tratamento de neoplasia
maligna (câncer).

METODOLOGIA

A metodologia utilizada foi bibliográfica e documental, com destaque para a


pesquisa de livros e dissertações de mestrado, com a análise jurídico-filosófica do
limite das obrigações do Estado no fornecimento de medicamentos de alto custo a
pacientes com Neoplasia Maligna.

DISCUSSÃO E RESULTADOS
897

A Neoplasia maligna, também conhecida como câncer, é uma enfermidade que


necessita de medicamentos para conseguir um resultado mais efetivo ao paciente que
sofre deste mal, sendo comum que sejam demandados dos Estado, tendo em vista
que são os caros e indispensáveis.
Contudo, apesar do texto constitucional garantir a obtenção destes remédios,
e de tratamento, para os casos de neoplasia maligna, o mesmo também, ao menos
de forma aparente, limita os recursos orçamentários do Poder Público quanto a isso.
Para que sejam fornecidos os medicamentos, o interessado terá que comprovar a
requisição firmada por médico da rede pública, que prescreverá os produtos e a
dosagem adequada para o paciente, desde que aprovados pelo Ministério da Saúde
e que estejam disponíveis no país.
O Estado, em sua política de saúde, reforça o propósito de atender ao princípio
da razoabilidade e da proporcionalidade, na pressuposição de que se fornece estes
medicamentos a apenas uma pessoa, pode prejudicar milhares outras. Diante desta
situação, o Estado tende a fazer escolhas sobre quais as suas prioridades e, quanto
a isto, se pauta, especialmente, no Princípio da Reserva do Possível.
Nesse sentido, a busca por tratamento digno e fornecimento de medicamentos
para pessoas em tratamento de neoplasia maligna entra em debate impregnada por
essa variável, ou seja, quanto aos limites para a aplicação do princípio da reserva do
possível, tendo em vista o alto custo destes remédios, e o fato de que as necessidades
de cada paciente não são as mesmas, logo reforçando a ideia de que o Estado deve
agir conforme a racionalidade e a proporcionalidade de cada indivíduo dentro da
sociedade como um todo.
Assim, apesar de o Estado ter o dever de prestar este direito, ele impõe um
limite à sua atuação, reforçando que o indivíduo deve, além de estar protegido pelo
direito fundamental à saúde, deve também estar submetido aos limites orçamentários
e de responsabilidade sobre a possibilidade destes fornecimentos, visando atender
apenas o mínimo existencial e não todas as necessidades individuais de cada um.
De forma oposta, segundo a teoria da justiça como equidade de John Rawls
(2008), e que permite uma leitura mais favorável ao indivíduo, em relação à questão
debatida, a distribuição dos direitos, dentre eles, indicamos, o direito à saúde, deve
considerar não somente que o Estado deve garantir todas as necessidades básicas
das pessoas, na perspectiva dos menos favorecidos, mas, mirando, também as
particularidades de cada indivíduo.
Teorias limitadoras do direito à saúde, nesse sentido, não somente não são
compatíveis com disposições constitucionais expressas, mas, ainda, negam uma ideia
básica de justiça, de que ao menos o mínimo deve ser garantido a todas as pessoas.

REFERÊNCIAS

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SOUZA, Renilson Rehem de, Secretário de Assistência à Saúde. O programa de
medicamentos excepcionais. Disponível em <www.saude.gov.br> Acesso em 03
agost 2018.
899

Grupo de trabalho:

DIREITOS HUMANOS II
Trabalhos publicados:

A INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DO BIODIREITO NA RETIFICAÇÃO DE


REGISTRO CIVIL DE TRANSEXUAIS

A ROTA DE INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA (RILA) E A PROTEÇÃO DOS


DIREITOS HUMANOS

EUTANÁSIA: UMA ANÁLISE DO DIREITO À VIDA SOB A ÓTICA DA DIGNIDADE


DA PESSOA HUMANA.

FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS NOS TRIBUNAIS SUPERIORES: UM ESTUDO SOBRE


A PLURALIDADE E O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NO RECONHECIMENTO
DE DIREITOS

HISTORICIDADE DO MOVIMENTO TRANSGÊNERO

MOBILIDADE DE MULHERES PRETAS E BRANCAS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


DO ESTADO DE SÃO PAULO

O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA COMO MÍNIMO EXISTENCIAL


E SUA EFETIVAÇÃO À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

OS DESAFIOS PARA A INCLUSÃO DOS REFUGIADOS NA SOCIEDADE


BRASILEIRA

POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO AO TRABALHO ANÁLOGO À DE


ESCRAVO: UM CAMINHO PARA A ERRADICAÇÃO
900

A INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DO BIODIREITO NA RETIFICAÇÃO DE


REGISTRO CIVIL DE TRANSEXUAIS
THE INCIDENCE OF THE PRINCIPLES OF BIOLAW IN THE RECTIFICATION OF
THE CIVIL REGISTRY OF TRANSSEXUALS

Allex Jordan Oliveira Mendonça


Valmir César Pozzetti

Resumo: O objetivo desta pesquisa é o de analisar o fenômeno da transexualidade,


visando identificar se o ordenamento jurídico brasileiro consagra o respeito a estas
minorias, bem como analisar se os princípios do Biodireito auxiliam o ordenamento
jurídico no estabelecimento de parâmetros que garantam a dignidade e a vida plena
dos transexuais. A metodologia utilizada nesta pesquisa foi a do método dedutivo;
quanto aos meios a pesquisa foi a bibliográfica, com uso da doutrina, legislação e
jurisprudência; quanto aos fins, a pesquisa foi qualitativa. Concluiu-se que os
princípios do Biodireito fortalecem e subsidiam a legislação pátria no tocante à
dignidade de pessoas transexuais e auxiliam no comportamento ético de profissionais
que lidam com a questão de alteração do nome civil.
Palavras-chave: Biodireito; transexuais; registro civil.

Abstract: The objective of this research is to analyze the phenomenon of


transsexuality in order to identify whether the Brazilian legal framework enshrines
respect for these minorities and to analyze whether the principles of the Biolaw help
the legal ordering in establishing parameters to ensure the dignity and full life of
transsexuals. The methodology used in this study was the deductive method; As to the
means the research was the bibliography with the use of doctrine and legislation and
jurisprudence; As for the purposes the research was qualitative. It was concluded that
the principles of the Biodireito strengthen and subside the homeland legislation
regarding the dignity of transgender people and assist in the ethical behavior of
professionals who deal with the issue of changing the civil name.
Key-words: Biolaw; transsexual; civil record.

INTRODUÇÃO

A orientação sexual é inata ao ser humano, e independe de sua vontade. Ao


longo da história da humanidade se pode verificar a luta travada pelas pessoas que
possuem um corpo físico diferente do “ser espiritual”. Dessa forma, muitas têm sido
as perseguições e humilhações sofridas pelos transexuais.
Questões pessoais sobre a diversidade do ser humano afetam a ética do
profissional quando se fala em transexualidade. Apenas atualmente é possível falar
em uma proteção – ainda que ínfima – de direitos e garantias, por parte do Estado, às
pessoas transexuais. Assim, necessário é se falar em Biodireito como mecanismo de
proteção da vida humana no que tange aos avanços científicos e tecnológicos.
O Estudo do Biodireito deriva da Bioética, sendo aquele considerado uma
consequência deste ramo da ciência. A problemática do tema gira em torno da
seguinte indagação: os princípios do Biodireito consagram o reconhecimento jurídico
e social da retificação do registro civil de pessoas transexuais?
Neste sentido, a presente pesquisa se justifica porque pessoas transexuais têm
direito à dignidade, tem direito a trabalho, vida social e religiosa; entretanto isso lhe
tem sido negado e, dessa forma, hodiernamente já se consegue falar do assunto, pois
901

a disciplina Biodireito nasce como uma Ciência que permite a análise da


transexualidade, visando identificar se o ordenamento jurídico pátrio consagra o
respeito a estas minorias no tocante à retificação do registro civil, levantando a
hipótese de que pessoas transexuais possuem plena possibilidade de alteração do
seu nome.
A relevância do estudo se mostra necessária tanto por questões sociais de
aceitação destas minorias na sociedade, quanto por questões jurídicas no que diz
respeito à sua autonomia para alterar seu nome. Desta forma, analisar os princípios
do Biodireito no que tange a tutela de transexuais auxilia o ordenamento jurídico no
estabelecimento de parâmetros que garantam a dignidade de vida plena destas
pessoas.
O método adotado para a realização desta pesquisa será o dedutivo; quanto
aos meios, utilizar-se-á a doutrina, a legislação e a jurisprudência; quanto aos fins
utilizar-se-á a pesquisa qualitativa.

1 O BIODIREITO

O Biodireito é ciência nova e considerada atual, sendo definido a partir do


século XX, conforme aponta Henrique Mioranza Koppe Pereira que o define como “um
subsistema da ciência jurídica que tem a vida como objeto de tutela. Dessa forma,
segundo Pereira (2018, p. 2) “o Biodireito não é uma derivação da bioética, mas sim
a face jurídica que dialoga diretamente com os dilemas morais discutidos nesta área
filosófica”.
Para discorrer a respeito do Biodireito e da sua dinâmica no ordenamento
jurídico brasileiro, principalmente no que dizem respeito à pessoa transexual, alguns
conceitos sobre Bioética merecem ser postos, pois o Biodireito é considerado a face
jurídica desta área da ciência.
A Bioética é ramo da ciência que nasceu, segundo Namba (2015, p. 9), “em
1971, através da obra de Van Rensselaer Potter, alcunhada como Bioethics: bridge
tothe future”. De lá para cá este ramo se tornou instrumento que auxilia a humanidade
no que diz respeito a procedimentos científicos que visam à evolução da vida.
Assim, Namba (2015, p. 9) assevera a respeito da conceituação da bioética:

Não se pode negar a importância da bioética e a árdua tarefa de


compreendê-la. Outros já o tentaram, com vistas ao meio ambiente, à
saúde, à vida, à ética etc. Ela representa um vetor do conhecimento que
procura conciliar a vida interdisciplinar mente, com o avanço técnico-
científico.

Dessa forma, a Bioética é matéria dotada de princípios que busca o bem-estar


da humanidade quando posta como objeto de procedimentos científicos e
tecnológicos. Dentre os principais documentos sobre estudos da Bioética, tem-se o
chamado Informe Belmont– ou Relatório Belmont – documento que comporta os
princípios da Bioética com a finalidade de nortear a investigação da ciência sobre o
ser humano.
A Bioética, segundo Namba (2015, p. 11), “é guiada pelos princípios da
autonomia – cada pessoa tem direito de escolha em relação ao seu corpo, seus
valores e crenças –; da beneficência, que diz respeito a não causar danos que
comportem grande risco; e por fim, o princípio da justiça, que norteia a Bioética sobre
o prisma da imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios de todas as
pessoas, indistintamente”.
902

Nesse sentido Pereira (2018, p. 3) esclarece que “a Bioética é matéria que atua
diretamente sobre a conduta dos indivíduos, no sentido de trazer parâmetros éticos e
profissionais de atuação, enquanto que o Biodireito é conseqüência desta matéria,
pois cria normas jurídicas que visam à proteção dos indivíduos dentro deste contexto”.
Na mesma linha de raciocínio, Leite (2018, p. 3) esclarece:

O objeto do Biodireito é matéria complexa, heterogênea e que confronta


normas existentes que na maioria das vezes lhe são estranhas. A base
principiológica está na Constituição Federal Brasileira de 1988 onde
constam os valores primordiais de nossa sociedade, traduzindo, em sua
maioria direitos fundamentais do homem. Desta forma, os princípios
constitucionais devem constituir os princípios do Biodireito.Entre os
valores fundamentais estão a vida, a dignidade humana, a liberdade e a
solidariedade e sua proteção e enquanto direitos tornaram-se as pedras
angulares da bioética moderna.

Os avanços tecnológicos e científicos e a complexidade dos sentimentos do ser


humano trouxeram debates intensos de como o profissional deve agir perante as
diferenças de cada pessoa. Assim, necessário a formulação de princípios jurídicos e
normas que limitem este progresso técnico-científico de procedimentos médicos. Esta
é a finalidade do Biodireito: atuar na análise de valores morais, éticos e sociais ligados
a questões apresentadas pelas ciências médicas desde que respeitado o princípio da
dignidade da pessoa humana.
Parise (2018, p. 22) define o Biodireito da seguinte forma:

Definido como o ramo do Direito que trata da teoria, da legislação e da


jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana em
face dos avanços da Biologia, da Biotecnologia e da Medicina3, é uma
área que oferece grande diversidade de abordagens, como por exemplo,
a polêmica das células-tronco e a manipulação de embriões humanos, as
técnicas de reprodução assistida, transplante de órgãos e tecidos
humanos, clonagem humana, técnicas de alteração de sexo, eutanásia,
aborto por anencefalia e outras questões emergentes.

O Biodireito está ligado aos direitos fundamentais, sendo inseparáveis, pois


aquele contém matéria relacionada à dignidade, privacidade dos indivíduos, plenitude
de vida e bem-estar, para Fabriz (2003, p. 288) “representando a passagem do
discurso ético para a ordem jurídica, não podendo, no entanto, representar uma
simples formalização jurídica de princípios estabelecida por um grupo de sábios, ou
mesmo proclamada por um legislador religioso ou moral”.
Pereira (2015, p. 16) disserta que “o ramo do Biodireito é transdisciplinar,
mesmo tendo apenas um objeto, que é a vida. Isto porque é preciso a observação de
vários campos do saber a respeito da vida do ser humano que envolve questões
individuais, sociais e ambientais”. Além disso, o autor ressalta que existem dois
princípios que auxiliam o Biodireito, quais sejam o Princípio da Inviolabilidade e o
Princípio da Intangibilidade.
O Princípio da Inviolabilidade sobreleva a vida como um bem intocável, ou seja,
no campo do Biodireito significa que nenhum procedimento técnico-científico tem o
direito de tirar a vida de um ser humano. Tal premissa é considerada um direito à
autodeterminação: cada indivíduo possui a incumbência de propiciar a melhor
qualidade de vida para si.
Este princípio deve ser relacionado e complementado com o princípio da
intangibilidade da vida, que segundo Pereira (2015, p. 23) “esse princípio possui um
903

entendimento derivado dos imperativos categóricos kantianos, os quais auxiliam a


refletir sobre“a vida” e como ela deveria ser de acordo com um ideal de bom em uma
perspectiva moral”.
Tais princípios podem ser exemplificados no caso de retificação de registro civil
de pessoas transexuais, no sentido de proteger a vida dessa minoria: o nome que
pessoas transexuais se identificam, quando não reconhecido, causa demasiado
sofrimento, o que afeta sua vida plena.
Assim, necessária a incidência do Princípio da Inviolabilidade no sentido de que
ninguém pode impedir que uma pessoa transexual viva sua vida plenamente,
impedindo-a de alterar seu nome para o qual se identifica; além da incidência do
princípio da intangibilidade, que demonstra o nome social como algo que deveria ser
bom e imprescindível para a plenitude de vida.
Parise (2018, p. 33) elenca alguns dispositivos na Constituição Federal de 1988
que incidem na matéria do Biodireito, como, por exemplo, o Princípio da Dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III); o artigo 5º, caput, além dos incisos III, XXXV, XLI; artigo
196 e artigo 225.
Parise (2018, p. 34) identifica, também, o Direito Civil como “um dos pilares do
Biodireito, pois se relaciona com os direitos da personalidade e direitos que dizem
respeito à disposição do próprio corpo ou partes dele, além de estabelecer parâmetros
de vida e morte”.
Considerando a temática da pesquisa, necessário averiguar os meandros da
transexualidade e como o Direito Civil – ramo do direito que está intimamente ligado
ao Biodireito – regula os direitos da personalidade.

2 O BIODIREITO E A TRANSEXUALIDADE

Postos os estudos sobre Biodireito, merece enfoque analisar o tratamento que


é dado aos transexuais, a fim de verificar a possibilidade ou não do Biodireito
resguardar o reconhecimento da retificação do nome como forma de proteção aos
transexuais.
Isto porque embora haja o reconhecimento jurídico da possibilidade de
retificação do registro civil para transexuais através do julgamento da ADI 4.275, ainda
há muita resistência por partes de profissionais que são levados por questões
pessoais e preconceituosas, o que retarda a plena vida destas pessoas.
Em seu voto, o Ministro Celso de Mello ressalta a importância da nova
concepção da corte no que diz respeito a retificação de registro civil por transexuais:
a nova interpretação dada pelo STF representa avanço contra o preconceito, a
discriminação e exclusão de grupos marginalizados.

Com este julgamento, não hesito em afirmar que o Brasil dá um passo


significativo contra a discriminação e contra o tratamento excludente que
têm marginalizado grupos minoritários em nosso País, como a
comunidade dos transgêneros, o que torna imperioso acolher novos
valores e consagrar uma nova concepção de Direito fundada em nova
visão de mundo, superando os desafios impostos pela necessidade de
mudança de paradigmas, em ordem a viabilizar, como política de Estado,
a instauração e a consolidação de uma ordem jurídica genuinamente
inclusiva.

Assim, analisar o Biodireito pela perspectiva transexual pode trazer parâmetros


éticos e profissionais de atuação.
904

Para Tartuce (2016, p. 119), “o transexual é uma forma ‘wannabe’, ou seja, um


‘querer ser’ do outro sexo”.
Já para Mello (2017, p. 118), o transexual é a pessoa que “não aceita sua
conformação física, rejeitando, pois, o seu sexo biológico e, psicologicamente,
identifica-se como o sexo oposto, mesmo não sendo portador de qualquer anomalia”.
Wunsch (2011, p. 31) reporta que tal condição já foi considerada transtorno de
identidade sexual, inscrito no CID (Classificação Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde) e alcunhada como “transexualismo”.
Em 2018 a Organização Mundial da Saúde retirou a transexualidade da lista de
doenças mentais, sendo denominada atualmente como condição relativa à saúde
sexual.
Esta mudança de paradigma se deve à Bioética e ao Biodireito:
contemporaneamente a transexualidade é considerada uma condição sexual – na
qual há a vontade de viver e ser aceito como pessoa do sexo oposto.
Proibir que o/a transexual tenha o nome com o qual se identifica viola a garantia
da dignidade da pessoa humana, impedindo que a pessoa desenvolva sua
personalidade livremente. Qualquer ato contrário ao direito de retificação de registro
civil de transexuais afronta o direito a felicidade, a vida privada, a intimidade, a honra
e a imagem da pessoa transexual, deixando-a em um estado de angústia que atinge
sua dignidade. Farias e Rosenvald (2015, p. 186) expõem da seguinte forma:

A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana,


encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de
expressar todos os atributos e características do gênero imanente a cada
pessoa. Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida
a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real
por ele vivenciada e que se reflete na sociedade.

Inegavelmente o Direito deve se abrir e se reestruturar quando há novas


realidades sociais postas. A idéia de identidade sexual, com a retificação do registro
civil para transexuais é amparada pelo ordenamento jurídico.
Entretanto, restrições de cunho segregativo, discriminatório e de intolerância
ainda existem em meios profissionais. Por isso, necessário a incidência do Biodireito
nestes casos: trata-se de uma atuação que busca determinadas posturas de cunho
social e jurídico.

3 DIREITOS DA PERSONALIDADE E REGISTRO CIVIL

Como abordado em tópico anterior, os direitos da personalidade é tema que


encontra amparo nas abordagens do Biodireito.
Segundo Mello (2017, p. 135), vários direitos fazem parte dos direitos da
personalidade: a vida, a integridade psicofísica, a honra, a sexualidade, etc.

O vocábulo pessoa, do latim persona, significa cada ser humano


considerado na sua individualidade física ou espiritual, portador de
qualidades que se atribuem exclusivamente à espécie humana, quais
sejam, a racionalidade, a consciência de si, a capacidade de agir conforme
fins determinados e o discernimento de valores.

Farias e Rosenvald (2017, p. 128), antes de abordarem os Direitos da


personalidade ressaltam a importância de contextualizar tal tema a partir da
observância da dignidade da pessoa humana como valor fundamental do
905

ordenamento jurídico. Isto porque a vida moderna apresenta-se aberta, plural e


multifacetada, sendo necessário o postulado que reconhece a pessoa humana e sua
vida, afirmando o respeito à integridade física e psíquica – isto garante a autonomia
individual e o livre desenvolvimento da personalidade.
Este princípio apresenta duas formas, uma de eficácia positiva, na qual serve
para vincular e impor obrigações ao Estado e aos particulares no que diz respeito à
legislação, afirmando a dignidade. A outra forma, de eficácia negativa, apresenta-se
como uma restrição ao Estado e às pessoas quando exercerem direitos. Conforme
esclarecem Farias e Rosenvald (2017, p. 132), a pessoa humana é todo aquele sujeito
de direitos e obrigações; ser pessoa significa “poder ser sujeito das inúmeras relações
jurídicas, sempre dispondo de uma proteção básica e elementar, tendendo a promover
a sua inexorável dignidade”.
A personalidade se apresenta como algo intrínseco à pessoa, conceituada por
Farias e Rosenvald (2017, p. 134) como “aptidão genérica reconhecida a toda e
qualquer pessoa para que possa titularizar relações jurídicas. Ou seja, a
personalidade jurídica sempre foi vista apenas como um atributo genérico reconhecido
a uma pessoa para que viesse a ser admitida como um sujeito de direitos”.
Neste sentido a personalidade jurídica é acobertada por direitos que atuam na
proteção da pessoa, para que sejam respeitados os múltiplos aspectos do ser
humano: físico, social, psíquico, cultural. Dentre suas características a personalidade
da pessoa se apresenta como intransmissível e inalienável, de modo que não é
possível dispor da sua própria vida em caráter real e absoluto. No que tange os bens
jurídicos tutelados pelos direitos da personalidade tem-se o nome; é a característica
que distingue e qualifica o indivíduo na sociedade em que está inserido. Farias e
Rosenvald (2017, p. 239) o conceituam como “sinal exterior pelo qual são
reconhecidas e designadas as pessoas, no seio familiar e social”
O nome caracteriza-se como uma forma de individualização da pessoa natural
e uma importante ferramenta de promoção da dignidade humana. Em razão disso, o
Direito confere a este instituto uma série de garantias. Uma das garantias é o princípio
da imutabilidade do nome, que visa a garantir a segurança jurídica e a estabilidade
dos atos da vida civil. Em razão disso, o artigo 58 da Lei 6.015/73 (Lei de Registros
Públicos) estabelece que o prenome seja definitivo.
Não obstante, a Lei assegura a possibilidade jurídica de alteração, conforme
dispõe o artigo 58, parágrafo único, da Lei nº 6.015/73. Incluída na fundada coação a
qual alude o artigo encontram-se as hipóteses nas quais o nome expõe a pessoa ao
ridículo. Nesses casos, em razão do princípio constitucional da dignidade humana,
admite-se a alteração de nome para preservar a pessoa de insinuações pejorativas,
gozações e brincadeiras vexatórias, das quais possam gerar inúmeros
constrangimentos.
No caso de pessoas transexuais não há que se falar em simples
descontentamento com o prenome, e sim, em um verdadeiro abalo psicológico
causado em função deste. A justificativa para a retificação, nestes casos, não deriva
de meros caprichos ou aborrecimentos do cotidiano: trata-se da impossibilidade de
conviver com o mesmo, em face do visível desequilíbrio psicológico e emocional que
este lhe pode causar. O nome causa constrangimentos durante a vida inteira,
limitando pessoas transexuais na busca pela felicidade, direito inerente à qualquer ser
humano.
906

A jurisprudência nacional1 aponta para a possibilidade de flexibilização do


princípio da imutabilidade do nome quando o prenome ocasione constrangimento,
desde que não haja qualquer dano ao princípio da segurança jurídica e à estabilidade
das relações jurídica. Esta flexibilização decorre de uma análise civil-constitucional
dos direitos da personalidade. Segundo Tartuce (2016, p. 97), a Constituição Federal
traz prerrogativas garantidoras de uma vida digna, com liberdade e igualdade
indistintamente:

Tais garantias são genéricas, mas também são essenciais ao ser humano,
e sem elas a pessoa humana não pode atingir sua plenitude e, por vezes,
sequer pode sobreviver. Nunca se pode esquecer da vital importância do
art. 5º da CF/1988 para o nosso ordenamento jurídico, ao consagrar as
cláusulas pétreas, que são direitos fundamentais deferidos à pessoa.

Ainda nas lições de Tartuce (2016, p. 101), o mesmo ressalta que os direitos
da personalidade abarcam os modos de ser de cada indivíduo: características físicas
e morais, sendo o nome um dos institutos de prestígio dos direitos da personalidade,
com proteção nos artigos 16 a 19 do Código Civil, além da Lei de Registros Públicos
- Lei nº 6.015/1973.

CONCLUSÃO

A problemática que induziu a essa pesquisa foi a de verificar de que forma o


Biodireito poderia subsidiar a proteção dos indivíduos transexuais, utilizando-se da
doutrina e jurisprudência. Os objetivos foram cumpridos na medida em que se fez uma
análise da legislação nacional e das investigações doutrinarias a respeito do tema.
Dessa forma, os avanços que o Biodireito trouxe, adequando novas situações
da humanidade no que diz respeito a posturas éticas, as pessoas transexuais
obtiveram a possibilidade expressar publicamente a identidade que deseja ter.
A partir da evolução da ciência foi possível estabelecer novos padrões éticos e
profissionais de comportamento, de modo que antes a diversidade sexual era
considerada desvio psicológico permanente e, atualmente, com o desenvolvimento do
Biodireito, pode se constatar que tal questão trata mais sobre a individualidade do ser
humano. Esta nova concepção tenta inibir qualquer ato que segregue ou exclua
transexuais do convívio social, recreativo, laboral e religioso.
Conclui-se que, atualmente, a interpretação dada à Carta Constitucional, assim
como a legislação infraconstitucional, amparam o pleito de retificação do registro civil
por pessoas transexuais. Ressalta-se que questões pessoais, de cunho íntimo, afetam
o tratamento que é dado a estas pessoas – tratamento que excluiu e segregou por
muito tempo, caracterizando a transexualidade como doença.
No caso de retificação de registro civil de transexuais constata-se a incidência
de princípios constitucionais, como a igualdade, a dignidade da pessoa humana–
reconhecidos através da Ação Direta de Inconstitucionalidade – e dos princípios do
Biodireito: o princípio da inviolabilidade e o princípio da intangibilidade.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do. Brasília, DF, Senado, 1998.

1
A partir do julgamento da ADI 4.275, proposta pela Procuradoria Geral da República, O Supremo Tribunal Federal (STF)
entendeu ser possível a alteração de nome e gênero no assento de registro civil mesmo sem a realização de procedimento
cirúrgico de redesignação de sexo.
907

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4.275 de julho de 2009. Voto Ministro Celso de Mello. Disponível em:
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TARTUCE, Flávio. Direito civil: volume único – 6ª ed. São Paulo: Método
WUNSCH, G.; SCHIOCCHET, T. O Reconhecimento do Transexual como um
Sujeito de Direito das Famílias: o Biodireito Frente aos Desafios da
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Anais do XX Encontro Nacional do CONPEDI. Florianopolis: CONPEDI, 2011.
Disponível em: <https://unisinos.academia.edu/TaysaSchiocchet>Acesso em 15 de
outubro de 2018.
908

A ROTA DE INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA (RILA) E A PROTEÇÃO DOS


DIREITOS HUMANOS
THE LATIN AMERICAN INTEGRATION ROUTE (RILA) AND THE HUMAN RIGHTS
PROTECTION
Aldo Almeida Nunes Filho
Ynes da Silva Felix

Resumo: Dentre os novos projetos de integração regional, encontra-se a Rota de


Integração Latino-Americana (RILA), na qual Brasil, Paraguai, Argentina e Chile
acordaram pela criação de um corredor bioceânico que possibilite melhora de acesso
a diferentes mercados. Este trabalho busca demonstrar que os Estados-parte da RILA
devem ser responsáveis, em conjunto com empresas privadas que se beneficiem
diretamente da rota, pela proteção e promoção dos direitos humanos em seu âmbito.
A relevância da presente pesquisa se justifica pela necessidade de proteção e
promoção de direitos humanos direcionada aos habitantes das regiões afetadas pelo
projeto. O método de pesquisa utilizado foi o dedutivo, com pesquisa bibliográfica e
documental.
Palavras-Chave: Integração regional. Rota de Integração Latino-Americana. Direitos
humanos.

Abstract: Among the new regional integration projects, is the Latin American
Integration Route (RILA), whereby Brazil, Paraguay, Argentina and Chile agreed to
create a bioceanic corridor that allows better access to different markets. This paper
seeks to demonstrate that the States parties in the agreement to create the RILA
should be responsible, together with private companies that are directly benefited from
it, for the protection and promotion of human rights within the Route. The relevance of
this research is justified by the need for protection and promotion of human rights
directed to the inhabitants of the regions affected by the project. The research method
was the deductive, with bibliographical and documentary research.
Keywords: Regional integration. Latin American Integration Route. Human rights.

INTRODUÇÃO

Este trabalho está dividido em duas partes, onde se aborda inicialmente o


desenvolvimento da integração regional da América Latina durante as últimas
décadas, seguido de um estudo sobre as potencialidades da Rota de Integração
Latino-Americana (RILA) na efetivação desta integração, após o qual se traça um
histórico dos direitos humanos e explica a potencialidade da RILA como meio de
proteção e promoção destes direitos, além de determinar os responsáveis por estas
ações e seus possíveis beneficiários.
De forma preliminar, o que se busca demonstrar é a importância da integração
regional para os países latino-americanos, principalmente no atual contexto de
globalização, em que integração pode significar aumento de competitividade de seus
envolvidos no mercado internacional.
Com isso, avança-se para tratar diretamente do projeto da RILA como promotor
de integração regional na América do Sul – tendo em vista sua composição formada
por quatro países desta região –, além de analisar os aspectos do Acordo que propôs
esta realização e as intenções dos países signatários a partir do que dispõem suas
cláusulas.
909

Na segunda parte do estudo, o enfoque é dado ao processo de afirmação


histórica dos direitos humanos, a partir do qual foram garantidos os direitos
econômicos, sociais e culturais, além dos direitos de solidariedade e ao
desenvolvimento, estes que estão diretamente relacionados às possibilidades de
proteção e promoção à partir da RILA.
Por fim, busca-se apontar quem devem ser os responsáveis pelas ações
defendidas no item anterior, demonstrar que estes atores devem ter papel ativo e não
podem se furtarem de seus deveres.

1 ROTA LATINO-AMERICANA DE INTEGRAÇÃO

1.1 A importância da integração regional para a américa latina

A integração regional dos países da América Latina é um desejo histórico das


comunidades locais, sendo que apenas durante o último século, dezenas de
propostas com objetivos e níveis de implementação diversos surgiram no cenário
regional, fomentadas, a cada novo ciclo, por novos atores e integradas por diferentes
países.
Nas palavras de Miguel Ángel Ciuro Caldani1: “La integración de diversos
Estados es uno de los caminos para superar las limitaciones de la
globalización/marginación que, con numerosas tenciones entre la mundialización y las
reacciones de los Estados y las regiones, se produce em nuestro tiempo. [...]”
Em busca de tal superação, e, tratando especificamente da América Latina,
diferentes modelos de uniões e organizações internacionais foram implementados,
como ressalta Noemí B. Mellado2:

En el espacio suramericano coexisten distintos processos: a nível sub-


regional – CAN, MERCOSUR, ALBA – y regional – UNASUR, CE-LAC –
[...]”, os quais passaram a trabalha,r em busca de seus objetivos, com
variados temas. “Ellos tienen como rasgos distintivos su diferente
natureza, la amplitud temática – medioambiente, infraestructura, inclusión
y cohesión social, participación social. democracia, derechos humanos,
asimetrías – y la no exclusividad de sus miembros.

Estes exemplos demonstram a importância da integração dos países da


América Latina para o crescimento de sua competitividade global, quando se trata da
esfera macroeconômica, mas também para a promoção de inclusão social,
democracia e direitos humanos, de modo geral, para os indivíduos habitantes destas
localidades.

1.2 A INTEGRAÇÃO REGIONAL A PARTIR DA ROTA DE INTEGRAÇÃO LATINO-


AMERICANA

A Rota de Integração Latino-americana (RILA)3 é uma destas propostas e


consiste num Corredor Bioceânico, parte de um plano de integração da América do
Sul por meio de projetos de infraestrutura com o objetivo de interligar via rodoviária,

1
CALDANI, Miguel Ángel Ciuro. Aportes metodológicos para la integración del MERCOSUR. In Revista de la Secretaría del
Tribunal Permanente de Revisión. Assunção: MERCOSUR, 2013, p. 109.
2
MELLADO, Noemí B.. Regionalismo sudamericano: sus características. In Revista de la Secretaría del Tribunal
Permanente de Revisión. Assunção: MERCOSUR, 2013, p. 139.
3
Apesar da nomenclatura do projeto se referir à América Latina, o âmbito de seu desenvolvimento se restringe a quatro países
da América do Sul: Brasil, Paraguai, Argentina e Chile.
910

ferroviária e hidroviária as costas atlântica e pacífica do subcontinente, de forma a


agilizar o processo de escoamento das produções dos países sul-americanos para os
demais continentes, evitando-se grandes deslocamentos por água através dos
caminhos já conhecidos do comércio marítimo, sabidamente o Canal do Panamá ou
o contorno pelo sul, via Patagônia.
A RILA têm ultrapassado as principais barreiras técnicas, sendo que em
dezembro de 2015 foi assinada pelos presidentes de Brasil, Paraguai, Argentina e
Chile, reunidos na XLIX Reunião Ordinária do Conselho do Mercado Comum e Cúpula
de Chefes dos Estados Partes do MERCOSUL e Estados Associados, a Declaração
de Assunção sobre Corredores Bioceânicos, em cujo texto os países afirmam seu
compromisso com a integração da América do Sul, como se pode conferir no
preâmbulo do texto:

[...] reiteram seu decidido compromisso com o progresso de integração


regional, por meio das atividades no âmbito da Iniciativa para a Integração
da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e o Conselho
de Planejamento da UNASUL (COSIPLAN) para a melhoria
substancial da infraestrutura física, da facilitação do trânsito
transfronteiriço e da agilização dos procedimentos aduaneiros,
destinados a fazer mais expedita a circulação de pessoas e bens entre
seus respectivos países, de modo a alcançar uma alta eficiência
logística, maior competitividade econômica e uma integração regional
mais efetiva.

Observa-se a forte vocação econômica da proposta, que se confirma na parte


dispositiva da declaração, a partir do item 2, em que os países acordam:

2. Iniciar um plano piloto voltado à agilização dos procedimentos em


fronteira que possibilitem avançar para uma maior eficiência,
sistematização e homogeneização dos mecanismos de inspeção e
controle entre os quatro países. 3.Avançar em uma informatização
integrada com sistemas de dados e formulários uniformes que permita
a agilização do transporte de cargas, veículos e passageiros.
4.Realizar estudo conjuntamente com o setor privado que avalie o
funcionamento dos distintos modos de infraestrutura e transporte.

Tem-se, a partir destas constatações, portanto, que o que se busca alcançar a


partir de referida integração não é, em primeiro plano, a proteção e a promoção dos
direitos humanos das áreas afetadas pelo corredor, embora deva ser encarada como
uma oportunidade para a efetivação dos direitos humanos.4
A prioridade dada à capacidade econômica do projeto não exclui a
possibilidade de um desenvolvimento de outras potencialidades a partir deste,
levando-se em conta suas grandes proporções, como se verá mais adiante.
Apesar da multilateralidade da Declaração e a abrangência da RILA, o projeto
tem tomado forma, principalmente pelos esforços políticos de Brasil e Paraguai. Isto
porque os maiores investimentos necessários em infraestrutura partirão destes
países.
Para a criação de uma rota rodoviária5 que atravesse Brasil e Paraguai, além
da Argentina e Chile, de forma que se concretize a integração desejada, foram criados

4
RIBEIRO, Maria de Fátima; MACIEL, Lucas Pires. Direitos fundamentais do contribuinte: Efetividade e limitações. In
MENEZES, Wagner (org.). Direito Internacional em expansão – Volume X. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017, p.184.
911

grupos de estudos6 com interessados de todos esses países para análise da


viabilidade técnica do projeto, por meio do mapeamento da rota e estudos acerca da
principal implantação estrutural necessária: a ponte sobre o Rio Paraguai.
O acordo bilateral para a construção da ponte, diferentemente daquele
multilateral em que fazem parte também Argentina e Chile, faz menção à necessidade
de observação dos direitos das populações locais e ao potencial desenvolvimento
sustentável a partir da integração regional, como se pode observar em seu
preâmbulo7:

[...] Tendo presentes os princípios de igualdade de direitos e obrigações,


responsabilidade socioambiental e respeito às populações locais,
transparência, igualdade de oportunidades e de participação, em
conformidade com suas respectivas legislações nacionais, Acordam o
seguinte: [...]. (grifo nosso)

As discussões internas acerca da construção da ponte também já foram


realizadas, sendo que no Brasil foi debatida e aprovada na Comissão de Assuntos
Econômicos do Senado e no Paraguai encontra-se em estado avançado de licitação8.
Considerados os aspectos econômicos e formais da implantação da RILA, o
que se abordará a seguir é a possibilidade de proteção e promoção de direitos
humanos a partir dela, notadamente os direitos econômicos, sociais e culturais para
as populações locais, que serão diretamente afetadas pela rota, além dos direitos de
solidariedade.

2 PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DA RILA

2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS

Ao se levar em conta a historicidade dos direitos humanos, observam-se pontos


de ruptura e mudança de paradigma do pensamento histórico-filosófico, sendo que,
estão entre estes, para Norberto Bobbio9, as declarações de direitos dos últimos
séculos, por meio das quais “[...] a proclamação dos direitos do homem dividiu em dois
o curso histórico no que diz respeito à concepção da relação política.”
Dentre as gerações de direitos humanos, o enfoque deste estudo se dará,
principalmente, sobre a segunda e terceira gerações, sendo a dos direitos sociais a
que guarda maior relação com as possibilidades de proteção e promoção a partir da
RILA, em conjunto com a dos direitos de solidariedade.
Segundo Bobbio10, a respeito da segunda geração, “[...] em sua dimensão mais
ampla, os direitos sociais entraram na história do constitucionalismo moderno com a
Constituição de Weimar.” Esta geração se diferencia da primeira, não apenas pelos
direitos que garante, mas também pelo início da afirmação de direitos que exigem do
estado posição ativa na busca de sua efetivação.

6
Dentre estes grupos, uma rede universitária – UNIRILA – é a responsável por boa parte dos estudos de viabilidade técnica do
projeto. Maiores informações podem ser encontradas no endereço eletrônico de divulgação da Rede:
<http://www.uems.br/midiaciencia/unirila/> Acesso em: 07/05/2018
7
Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/sem-categoria/588-aviso-as-redacoes/14183-acordo-entre-o-brasil-e-o-
paraguai-para-a-construcao-de-uma-ponte-rodoviaria-sobre-o-rio-paraguai-entre-porto-murtinho-e-carmelo-peralta> Acesso
em: 10/05/2018.
8
Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2018/04/cae-debate-criacao-da-rota-de-integracao-latino-
americana> Acesso em: 10/05/2018.
9
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. COUTINHO, Carlos Nelson. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 94.
10
Ibidem, p. 94.
912

Os direitos garantidos por ela – econômicos, sociais e culturais – para Silveira


e Rocasolano11“[...] situam a pessoa humana, a partir de uma perspectiva individual,
como integrada numa coletividade”.
Celso Lafer12, de forma mais específica, para explicar a peculiaridade desta
geração frente à anterior postula que:

De segunda geração, são, pois, os direitos ao trabalho, à saúde, à


educação, dentre outros, cujo sujeito passivo é o Estado, que tem o dever
de realizar prestações positivas aos seus titulares, os cidadãos, em
oposição à posição passiva que se reclamava quando da reivindicação
dos direitos de primeira geração.

Completa ainda Fábio Konder Comparato13, ao analisar o surgimento desta


geração, que ela põe fim ao abstrativismo antes consolidado quando se falavam nos
titulares de direitos, reconhecendo-se a partir de então como diretamente titulares
cada grupos de vulneráveis.
Somada a esta, a terceira geração importa para o presente estudo a partir do
momento que reconhece direitos difusos e coletivos, de forma a pacificar a
compreensão de que certos direitos devem ser inerentes a cada coletividade. Sobre
esta geração, Comparato14 afirma que “É com base na unidade essencial dos direitos
humanos que se pôde falar, no plano nacional e internacional, de um direito ao
desenvolvimento.
Portanto, tendo em vista o estudo histórico dos direitos humanos, entende-se
que a responsabilidade de proteção e promoção destes direitos pertence aos Estados
nacionais e que estas devem ser realizadas de forma ativa, visando sempre o bem-
estar de suas populações, como assevera André de Carvalho Ramos15, quando diz
que “the State must ensure the basic rights to all people under its jurisdiction, whether
domestic or foreign, even if it is against the will of the majority.”

2.2 A PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DE DIREITOS HUMANOS A PARTIR DA RILA

Com a ideia tratada anteriormente da necessidade de prestação positiva do


Estado em relação aos direitos humanos de segunda e terceira gerações, se pode
relacionar o projeto da Rota de Integração Latino-americana com a efetiva proteção e
promoção destes direitos.
Isto porque quando se fala de integração, não é possível excluir a garantia dos
direitos humanos, sobretudo no âmbito de tratados regionais, nas palavras de José
Souto Maior Borges16, “uma consideração teleológica revela que, no âmbito do
ordenamento internacional, e em particular no ordenamento comunitário, a proteção
dos direitos humanos vem sendo privilegiada como um dos objetivos mais eminentes.”
Completa ainda que17 “[...] aos poucos vai se consolidando o entendimento de
que a proteção interestatal dos direitos humanos não pode ser desconsiderada em

11
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos Humanos: conceitos, significados e funções. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 175.
12
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 127.
13
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 8. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2013, p. 66.
14
Ibidem, p. 293.
15
RAMOS, André de Carvalho. The counter-majoritarian essence of the international human rights processes: how to achieve
the dialogue among courts?. In Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional – Volume 103. Belho Horizonte:
Arraes Editores, 2017, p. 331.
16
BORGES, José Souto Maior. Curso de Direito Comunitário. São Paulo: Saraiva, 2009, p.326.
17
Ibidem, p. 329-330.
913

qualquer espaço comunitário. É um imperativo do fenômeno da globalização –


sobretudo, não exclusivamente, tecnológica – que a todos os povos governa.”.
Tal afirmação fica ainda mais clara quando considerado que, no caso particular
que trata este trabalho, todos os Estados que promovem a Rota de Integração
assinaram tratados como a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), a
Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Interamericana, todos
afirmando, de modo reiterado, em seus textos, o compromisso dos signatários com a
proteção e promoção prioritária dos direitos humanos.
A forma exata pela qual deve se dar esta prestação, entretanto, ainda deve ser
objeto de estudos aprofundados, que visem determinar quais ações concretas serão
necessárias para a efetiva consolidarão da proteção e promoção dos direitos humanos
a partir da RILA.
Apesar disso, o que se pretende ressaltar, e que melhor explica Flávia
Piovesan18, ao constatar que “A globalização econômica tem agravado ainda mais as
desigualdades sociais, aprofundando as marcas da pobreza absoluta e da exclusão
social.”, é que “É preciso reforçar a responsabilidade do Estado no tocante à
implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais.”
É sabido que, para a proteção e promoção dos direitos humanos a partir da
RILA, é necessário garantir que as ações futuras neste sentido impactem diretamente
as regiões pelas quais a Rota passará. Para isso, a ação ativa dos estados brasileiro,
paraguaio, argentino e chileno serão fundamentais. Essas ações, porém, podem ser
potencializadas por outros atores.
Para explicar esta possibilidade de ampliação, Flávia Piovesan19 arrola outros
dois possíveis atores além dos Estados: as agências financeiras internacionais e o
setor privado.
Tendo em vista o formato de financiamento da RILA e os potenciais
beneficiados, é sobre este segundo que deve ser lançada parte da responsabilidade
da proteção e promoção de direitos humanos na região da Rota. Isto porque [...]
importa encorajar sejam condicionados empréstimos internacionais a compromissos
em direitos humanos; sejam adotados por empresas códigos de direitos humanos
relativos à atividade de comércio; sejam impostas sanções comerciais a empresas
violadoras de direitos sociais, entre outras medidas.20
Portanto, devem fazer parte dos esforços para a proteção e promoção dos
direitos humanos neste âmbito, como forma de cumprimento de suas
responsabilidades social e de solidariedade, as empresas privadas que venham a se
beneficiar da nova Rota para o desenvolvimento de suas atividades de distribuição de
seus produtos no mercado global.
Esta responsabilidade deriva da terceira geração de direitos, em atenção à qual
pode-se afirmar que a ideia de sustentabilidade e de valores solidários gera para as
empresas a responsabilidade de solidariedade, cabendo, por conta disso, às
empresas, estenderem sua atuação para além do campo econômico e social,
abrangendo a proteção ambiental sob a ótica da solidariedade.21

18
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu,
interamericano e africano. 6. ed. Ver. ampl., e atual,. – São Paulo:
Saraiva, 2015, p. 62.
19
PIOVESAN, Flávia. Globalização econômica, integração regional e direitos humanos. In: Interesse Público. Belo Horizonte,
2002. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/31236>. Acesso em: 21/04/2018, p. 63.
20
Ibidem, p. 66.
21
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; SANTOS, Queila Rocha Carmona dos. Responsabilidade corporativa na perspectiva da
sustentabilidade. In: MACHADO, Ednilson Donisete; BENACCHIO, Marcelo (coord.). Direitos humanos e teoria jurídica do
desenvolvimento sustentável: reflexões sobre empresa e estado. 1. Ed. – São Paulo: Letras Jurídicas, 2015, p. 24.
914

Desta forma, entende-se que a proteção e a promoção de direitos humanos


que aqui se propõe pode e deve ser de responsabilidade dos atores mais poderosos
da sociedade, quais sejam o Estado, historicamente reconhecido como tal, e as
empresas privadas, que possuem importância e poder crescentes na ordem global.

CONCLUSÃO

Em conclusão, é possível afirmar que a integração dos países da América


Latina é um desejo histórico que cresceu em importância à medida que passou a ser
entendida como uma forma de ganho de competitividade no mercado internacional,
sendo que o MERCOSUL promoveu certo nível de integração entre os países da
América do Sul, de forma a permitir a elaboração de projetos como o da Rota de
Integração Latino-Americana (RILA), que, apesar do nome que indica maior
abrangência, envolve apenas os quatro países sul-americanos pelos quais desenha
seu caminho.
Idealizado em Assunção, no ano de 2015 por Brasil, Paraguai, Argentina e
Chile, o texto da declaração que estabelece a RILA foi escrito com forte apelo
econômico, observando-se, apesar disso que, levando em conta a evolução histórica
dos direitos humanos, que culminaram na garantia dos direitos econômicos, sociais e
culturais, além dos direitos de solidariedade e ao desenvolvimento, cabe ao Estado
garantir de forma ativa essas prestações à sua população.
Com isso, entendeu-se que, mesmo o projeto da RILA possuindo forte vocação
econômica, o fato de todos os participantes do acordo serem signatários de
declarações internacionais de direitos humanos não permite que os mesmos
debruçem-se somente sobre o desenvolvimento econômico, devendo, de forma
prioritária, agir ativamente em busca da proteção e promoção dos direitos humanos,
visando sempre o bem-estar de suas populações.
Por fim, ressalta-se que não é objetivo do presente trabalho esgotar a temática
– que é nova e pouco explorada –, mas sim traçar possibilidades para que o
desenvolvimento do projeto sobre o qual se trata aconteça com o maior respeito aos
direitos humanos.

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Internacional em expansão – Volume X. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017.
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Ednilson Donisete; BENACCHIO, Marcelo (coord.). Direitos humanos e teoria
jurídica do desenvolvimento sustentável: reflexões sobre empresa e estado. 1. Ed.
– São Paulo: Letras Jurídicas, 2015.
916

EUTANÁSIA: UMA ANÁLISE DO DIREITO À VIDA SOB A ÓTICA DA DIGNIDADE


DA PESSOA HUMANA.
EUTHANASIA: AN ANALYSIS OF THE RIGHT TO LIVE FROM THE POINT OF
VIEW OF THE DIGNITY OF THE HUMAN PERSON

Vander Santos Viana Júnior


Adalberto Oliveira Santos Neto
Fábio Periandro de Almeida Hirsch

Resumo: O presente artigo trata sobre a eutanásia, discorrendo sobre a temática a


luz do princípio da dignidade da pessoa humana, do direito à vida e do tratamento
dado pelo direito brasileiro ao tema. A dignidade da pessoa humana é princípio
fundamental da República Federativa do Brasil, reconhecido expressamente na
constituição, assim como o direito à vida. No entanto, é preciso estabelecer os limites
e os conceito desses direitos de forma adequada, observando o contexto histórico, e
a experiencia de outros países para sabermos até que ponto a há divergência entre o
direito à vida e a dignidade humana nem torno da eutanásia.
Palavras-Chave: Eutanásia. Dignidade. Vida.

Abstract: This article deals with euthanasia, bringing debates about the dignity of the
human person, the right to life and the treatment given by Brazilian law to the subject.
The dignity of the human person is a fundamental principle of the federative republic
of Brazil, expressly recognized in the constitution, also the right to life is recognized as
a fundamental right, but it is necessary to establish the limits and the concept of these
rights in an appropriate way, and the experience of other countries to know to what
extent there is a divergence between the right to life and human dignity around
euthanasia.
Keywords: Euthanasia. Dignity. life.

1. INTRODUÇÃO

A eutanásia é uma prática presente na história da humanidade, desde tempos


remotos até os dias de hoje, a morte é considerada a solução em certos casos para
assegurar a dignidade de alguém a quem a vida só traz sofrimento e dor. Apesar de
antiga, a eutanásia é proibida em muitos países, principalmente os de forte influência
cristã, como o Brasil e a Itália.
Há algum tempo a eutanásia tem constantemente entrado em discussão, a
influência liberal da vontade livre, o surgimento de Estados laicos e a difusão do
pensamento científico abrem espaço para que a vida seja pensada de forma racional,
afastando a ideia de sacralidade da vida no imaginário coletivo, o que termina gerando
intensos debates no ceio da comunidade.
É certo que em todo o mundo a vida possui algum tipo de proteção, no Brasil,
por exemplo, é um direito fundamental a inviolabilidade do direito à vida, visto que não
há garantia de direito algum sem que se garanta o direito de permanecer vivo. No
entanto, os direitos fundamentais devem ter sua esfera de conteúdo delimitada, e
mesmo a vida com toda sua importância deve dar espaço à dignidade em momentos
de extremo sofrimento desesperança.
A dignidade da pessoa humana é prevista na Constituição de 1988, sendo um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a definição de dignidade da
pessoa humana é ainda muito discutida e ampla, mas uma definição bastante
917

adequada ao nosso ponto de vista é que a dignidade da pessoa humana consiste em


tratar o ser humano sempre como um fim em si mesmo, e nunca como um meio, ou
seja, o ser humano não pode ser tratado como um objeto. Por esse motivo a
manutenção da vida a qualquer custo vai na contramão da dignidade da pessoa
humana, uma vez que, o indivíduo não deveria ser mantido vivo apenas para cumprir
a finalidade de proteção à vida quando esta não o interessa mais.
Muitos países do mundo já legalizaram a eutanásia, com o intuito de garantir
que os pacientes em estado terminal tenham uma morte digna, sem que a vida seja
postergada de forma desarrazoada.

2. CONCEITO DE EUTANÁSIA

Etimologicamente o vocábulo eutanásia, de raiz greco-romana, é composto


pelas palavras gregas “eu” (bem) e “thanatos” (morte), exprimindo a ideia de boa
morte, morte piedosa, morte tranquila, pois se costuma relaciona-lo a alguma espécie
de sofrimento a que se quer poupar.
Sem embargo, necessário ressaltar que o termo tem sido geralmente atribuído
ao filosofo inglês Frances Bacon, que em sua obra “Historia vitaes et mortis” buscou
delimitar o tratamento apropriado para doenças tidas até então como incuráveis e,
assim, definir a conduta do médico nestas circunstâncias.
Segundo o supracitado filosofo a função precípua do médico não é somente
voltada a aliviar dores e sofrimentos, mas se a cura afigurar-se impossível deveria o
mesmo conduzir o paciente a uma transição suave entre a vida e a morte. Eis então
a eutanásia em sua modalidade terapêutica, a qual iremos analisar em tópico próprio
neste presente artigo.
Em suma, trata-se a eutanásia de uma antecipação da morte quando, por
alguma razão, a vida não mais parece ser a melhor escolha.

3. CONTEXTO HISTÓRICO

A prática da eutanásia é tão antiga quanto a história do homem. Encontram-se


relatos desde os tempos primitivos, quando havia pouco ou nenhum excedente na
produção de alimentos e em um cenário de escarces justifica-se findar a vida de
alguém que não poderia desempenhar atividades básicas para a sobrevivência do
grupo.
No Egito, Cleópatra (69 a.C. à 30.a.C.) da dinastia de Ptolomeu, fundou
uma Academia para estudar modos de morte menos dolorosas. Na Grécia, a pratica
da eutanásia ocorria em larga escala contra crianças raquíticas, velhos, enfermos
incuráveis e aleijados. Especificamente em Atenas, o Senado tinha poderes para
ordenar a eliminação dos ancisões em banquetes especiais, com uma bebida
adulterada “conium maculatum”.
Na modernidade, através da moral cristã, o direito à vida ganhou uma imensa
robustez, de forma que o bem jurídico “vida” é sempre colocado em um patamar
superior a qualquer outro, assim a eutanásia passou a ser considerada homicídio e,
portanto, crime, ainda que o paciente tenha de forma aberta e consciente declarado
seu desejo de abrir mão da vida.
A partir da segunda metade do século XX a eutanásia tem entrado em
discursão sob uma influência liberal, de autonomia da vontade para contrapor a ideia
de sacralidade da vida no imaginário coletivo.
918

5. DIREITO À VIDA

O direito à vida é reconhecido expressamente pelo ordenamento brasileiro,


porém não é exclusivamente no âmbito do direito que a vida gera debates, não há
talvez na história da humanidade um fenômeno tão pouco compreendido, tanto que
até os dias de hoje muito da ideia de vida permanece eivada de valores oriundos de
crenças religiosas. Certo é que a vida merece uma elevada proteção seja por questões
religiosas ou jurídicas, uma vez que não se pode assegurar qualquer direito sem que
antes se assegure o direito à vida.
O direito à vida é reconhecido pela Constituição da República Federativa do
Brasil, promulgada em 1988, no caput do artigo 5º onde reconhece a inviolabilidade
de tal direito. Deveras, o constituinte buscou proteger o processo vital, que envolve a
concepção e todas as etapas naturais que ocorrem a partir daí até que a vida deixe
de existir e passe então a ser morte.
Embora os direitos fundamentais como o direito à vida sejam ditos, inalienáveis,
intransferíveis, inegociáveis e irrenunciáveis, a renúncia a tais direitos pode ser
verificada em situações cotidianas. Como exemplo das referidas situações temos o
direito à privacidade, renunciado por participantes de reality show, o direito de
propriedade de alguém que doa todos os seus bens por questões espirituais, e o direto
à integridade física, renunciada por atletas de artes marciais, pessoas que fazem
tatuagem ou colocam piercings.
A renúncia de direitos fundamentais está diretamente ligada ao direito
fundamental da autonomia da vontade que, por sua vez, está ligado à dignidade da
pessoa humana. Dessa forma, dentro de um patamar de razoabilidade é abertamente
aceito por toda a sociedade e pelo direito a renúncia a direitos fundamentais.
A eutanásia ocupa papel de destaque quanto a discussão sobre a renúncia do
dos direitos fundamentais, pois, trata-se nada mais que da renúncia ao direito à vida.

6. CONCEITO DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A importância de conceituarmos a dignidade da pessoa humana reside na


abertura proposta pela Constituição Brasileira para o surgimento de novos direitos
fundamentais, afinal qualquer direito que se candidate a ser reconhecido como direito
fundamental deverá possuir uma estreita relação com a dignidade da pessoa humana,
em razão disso é que a problemática a respeito da eutanásia ganha relevância, uma
vez que abre a possibilidade do reconhecimento do direito de morrer ou abrir mão da
vida como forma de assegurar a dignidade humana em situações peculiares.
A justiça, a liberdade, a igualdade e a solidariedade, são, na lição de George
Marmelstein, direitos tão antigos quanto à própria sociedade, obviamente não se fala
em direitos positivados, como hoje se conhece os direitos fundamentais, mas de
valores ligados à dignidade da pessoa humana, que existe pelo simples fato da
existência do homem. Tais direitos foram reconhecidos em maior ou menor grau a
depender de cada época, se na idade média a liberdade foi deixada em segundo
plano, no início da revolução industrial a solidariedade deu espaço à produtividade,
com base na igualdade formal e no livre mercado tão defendido pela doutrina do
Laissez-faire.
Dentre os valores que dão forma à dignidade da pessoa humana e manifestam
o seu conteúdo estão a não coisificação do ser humano (o ser humano é um fim em
si mesmo), o respeito à integridade física e moral e o respeito à autonomia da vontade.
919

Ressalta-se que tal discussão não destoa da abordagem a respeito da


eutanásia. Em verdade, a prática da eutanásia não ofende, nem poderia ofender o
princípio em comento, porquanto existem situações onde a saída mais adequada para
assegurar a aplicação do mesmo seja pôr fim à vida, de forma piedosa, tranquila e
indolor.

7. A EUTANÁSIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Neste tópico examinaremos o tratamento dado pelo ordenamento brasileiro ao


tema, observando desde a Constituição Federal até o Direito Penal, entendido este
como ultima ratio.

7.1. EUTANÁSIA NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

No período constituinte tentou-se acrescentar à constituição o direito a uma


existência digna, segundo José Afonso da Silva:

Esse conceito de existência digna consubstancia aspectos generosos de


natureza material e moral; servia para fundamentar o desligamento de
equipamentos médico-hospitalares, no caso em que o paciente estivesse
vivendo artificialmente (mecanicamente), a prática da eutanásia, mas
trazia implícito algum risco como, por exemplo, autorizar a eliminação de
alguém portador de deficiência de tal monta que se viesse a concluir que
não teria uma existência digna. Por esse risco, talvez tenha sido melhor
não acolher o conceito. (SILVA, 2005)

Assim, o legislador constituinte deixou de acrescentar à Constituição uma


importante fonte de legitimidade para a prática de eutanásia. O que ocorre é que o
conceito de existência digna não foi aceito pelos constituintes, e por esse motivo, o
tratamento dado à eutanásia no Brasil é de crime contra a vida, e pode se enquadrar
em diversos tipos penais a depender do caso concreto.
No entanto, o rol de direitos fundamentais contidos na constituição é
exemplificativo como prevê o §2º do art. 5º da Constituição. Tal dispositivo
constitucional prevê que novos direitos e garantias previstos na constituição não
excluem outros decorrentes dos princípios por ela adotados. É importante ressaltar
que o inciso III do art. 1º da Constituição aponta a dignidade da pessoa humana como
fundamento da República Federativa do Brasil. Portanto, apesar de ter se dispensado
o conceito de existência digna, a próprio conceito dignidade da pessoa humana
fortalece a argumentação em favor da eutanásia.

7.2. O TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL DA EUTANÁSIA

Como já foi dito no tópico anterior, o ordenamento brasileiro trata a eutanásia


como crime contra a vida, se enquadrando em diferentes espécies delitivas a
depender do caso concreto.
Se a eutanásia é ativa, espécie em que se induz a morte, o crime cometido é o
homicídio na modalidade comissiva, se a eutanásia é passiva, espécie em que se
deixa de aplicar tratamento que estenda o processo de morte, o crime é homicídio na
modalidade omissiva. Há situações em que o crime enquadrado é o de induzimento,
instigação ou auxilio ao suicídio.
Em todo caso as penas podem variar de um ano, na hipótese de
enquadramento no tipo penal de instigação ou auxilio ao suicídio, caso o resultado
920

morte não se consume e o paciente sofra lesões graves, à 30 anos. Caso a eutanásia
seja enquadrada no tipo penal de homicídio e seja qualificado por conta do meio
empregado, a exemplo, veneno.
Porém, deve incidir em favor do réu a causa de diminuição prevista no §1º do
art. 121 do Código Penal. O dispositivo prevê a diminuição de 1/3 (um terço) a 1/6 (um
sexto) se o agente comete o homicídio impelido por relevante valor moral ou social,
como defende a doutrina majoritária, o qual utilizamos como expoente Rogerio Greco:

Quando o agente causa a morte do paciente já em estado terminal, que


não suporta mais as dores impostas pela doença a qual está acometido,
impelindo por esse sentimento de compaixão, deve ser considerado um
motivo de relevante valor moral, impondo-se de redução obrigatória da
pena. (GRECO, 2009)

Tal entendimento corrobora com a tese de que a eutanásia tem implicações


éticas e morais de grande relevância, está ótica sobre o tema possui muita importância
quanto ao reconhecimento da eutanásia como forma de assegurar a dignidade dos
pacientes.

8. TESTAMENTO VITAL E AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

É de grande importância para o debate sobre a eutanásia esclarecer os pontos


relativos à vontade do paciente. Quanto ao consentimento do paciente a eutanásia
pode ser classificada em três tipos, a eutanásia voluntária, a involuntária e a não
voluntária. A primeira ocorre quando atende a uma vontade do paciente, a segunda é
realizada contra a vontade do paciente, e a terceira é quando o paciente não manifesta
vontade alguma.
No Brasil, a resolução 1.995/2012 do Concelho Federal de Medicina orienta o
médico a não prosseguir o tratamento quando assim o paciente desejar. Na hipótese
em que a falta de tratamento resultar em morte do paciente, o que ocorrerá é a
eutanásia passiva ou ortotanásia. Esta resolução dispõe sobre as diretivas
antecipadas da vontade do paciente, segundo a mesma, o paciente deve expressar
sua vontade antecipadamente sobre os tratamentos que quer ou não receber.
Ademais, salienta-se que nenhuma dessas vontades, seja do paciente,
familiares ou representantes, serão consideradas caso estejam em desacordo com o
código de ética médica.
Não só as diretivas de antecipadas da vontade dão ensejo ao reconhecimento
da vontade de não se submeter a tratamentos indesejados, existe também o chamado
testamento vital, o qual não passa de um documento onde se expressa a vontade de
não ser submetido a tratamentos que prolonguem a vida de forma degradante e sem
perspectivas de avanço positivos no quadro de saúde ou o revés. Assim como nas
diretivas, os pacientes podem a qualquer tempo renunciar ao testamento e aceitar os
tratamentos que outrora dispensou.
Esse tipo de documento não encontra previsão no ordenamento brasileiro,
porém se amolda a princípios constitucionais assim como as diretivas antecipadas de
vontade, que também não são previstas em lei, mas em resolução do Concelho
Federal de Medicina. Desse modo, não há segurança em afirmar que a ortotanásia
voluntaria é permitida no Brasil, uma vez que, a conduta do médico ao atender a
vontade do paciente pode se enquadrar no tipo penal de homicídio na modalidade
omissiva.
921

9. ANÁLISE DO DIREITO ESTRANGEIRO

A eutanásia é tema controvertido não somente no território nacional mas em


todo o mundo. Alguns países já permitem a eutanásia terapêutica, dentre elas a ativa
e a passiva, outros permitem apenas a eutanásia passiva, enquanto que em muitos
países a prática é proibida ou não regulamentada.
A não regulamentação da eutanásia por parte de países como o Brasil possui
efeito semelhante ao de proibição, uma vez que o médico pode ser responsabilizado
criminalmente por atentar contra a vida de outrem, já que não há instrumento
normativo que diferencie a eutanásia do crime de homicídio.
No Uruguai, o código penal atribui poder ao juiz para exonerar da pena quem
tenha cometido homicídio piedoso, após reiterados pedidos da vítima. O termo
homicídio piedoso parece ser mais amplo que a termo eutanásia, porém é inegável
que há uma abrangência do conceito de eutanásia terapêutica voluntária, uma vez
que, para ser piedoso o homicídio deve libertar alguém de situação degradante, e por
ser permitido apenas após reiterados pedidos, faz-se presente o elemento volitivo do
paciente.
Na Europa, a Holanda foi o primeiro país a permitir a eutanásia, acompanhada
logo em seguida pela Bélgica, nesses países há uma série de requisitos para que seja
feia a eutanásia, entre eles estão, o pedido do paciente de forma voluntaria, a
informação completa ao paciente sobre o seu quadro, as possíveis medidas paliativas
que podem ser tomadas juntamente com as consequências que podem advir dessas
medidas, a opinião de um outro médico independente e o estudo junto ao paciente de
possíveis alternativas.
O posicionamento da Holanda e da Bélgica quanto à eutanásia é de grande
importância para o debate, esses países não se limitaram a não criminalização da
eutanásia, mas previram as circunstancias onde uma decisão como essa pode ser
tomada, o que diminui as chances de equivoco, pois, se tratando de um assunto dessa
relevância, qualquer erro tem consequências drásticas.
Outros avançaram de forma mais tímida, exempli gratia da França e da
Alemanha, em que a eutanásia ativa não é permitida, porém o paciente em estado
terminal pode escolher não se submeter a tratamentos. Nesses casos os médicos
tratam das dores administrando analgésicos, até que as enfermidades por si só findem
a vida do paciente, ou induzem os doentes ao coma artificial, até que morram de fome
ou sede, em outras palavras, nesses países é permitido a eutanásia passiva ou
ortotanásia.

10. CONCLUSÃO

Discorrer sobre eutanásia é sempre delicado, ainda há muito receio quanto a


ideia de morte principalmente se provocada. Mas é inegável que a pauta tem
avançado no ponto de vista popular.
O direito à vida é de grande importância para a manutenção do tecido social,
inimaginável assegurar qualquer direito como à liberdade e a solidariedade sem que
haja uma proteção adequada do direito à vida. Pela relevância dada ao objeto desse
direito, é que se torna muito compreensível a rigidez com que o ordenamento e a
população tratam o direito à vida, mas é preciso que haja flexibilidade em momentos
de transformação.
Se outrora o estudo do corpo humano foi considerado uma heresia, hoje a
medicina ostenta uma posição de respeito e admiração. Nesse campo, houve um
922

grande avanço científico e tecnológico, ao ponto de atualmente ser possível estender


a vida de alguém em estado terminal por um longo tempo, essa prática é conhecida
como distanásia e causa grande sofrimento ao paciente, porém o mantem vivo, o que
está perfeitamente de consonante como o direito à vida se visto fora do contexto da
dignidade humana. Além disso a vida não é perfeitamente protegida e salva em casos
como esse, o que há na verdade é um prolongamento do processo de morte, que
inevitavelmente ocorrerá.
É preciso abrir os horizontes para a valoração desses bens jurídicos, para saber
até que ponto a vida é a melhor escolha, e em que ocasião a proteção da vida e a
dignidade já não se harmonizam.
Importante discorrer que em casos como esses o papel do legislador é ainda
mais relevante, ao passo que não há segurança em praticar eutanásia baseado
apenas em teorias, resoluções ou até mesmo jurisprudências. Quando se trata de
direitos fundamentais e em especial do direito à vida, é preciso agir com cuidado, a
exemplo do que fizeram a Bélgica e a Holanda que ao tratarem sobre eutanásia se
preocuparam em estabelecer requisitos, garantindo tanto a isenção do médico que
qualquer responsabilização penal, quanto o paciente de qualquer arbitrariedade por
parte dos médicos.

11. REFERÊNCIAS

BACON, Francis, O progresso do conhecimento / Francis Bacon; tradução,


apresentação e notas Raul Fiker. — São Paulo: Editora UNESP, 2007.
BRASIL. Concelho Federal De Medicina. Resolução n º 1.995, de 1012. Dispõe sobre
as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diario Oficial da União, Brasilia,
DF, 31 de ago. 2012. Seção 1, p. 269-70.
GRECO, Rogerio. Curso Direito Penal: parte especial . 6. ed. Niterói RJ: Impetus,
2009. 660 p. v. 11.
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008.
551 p.
SANTOS, Sandra Cristina Patrício dos – Eutanásia e suicídio assistido: o direito e
liberdade de escolha. Coimbra: [s.n.], 2011.
SILVA, Jose Afonso. Curso de direito constitucional positivo : revista e atualizada
nos termos da reforma constitucional. 25. ed. São Paulo SP: Malheiros, 2005. 904 p
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro: parte geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. 796 p
923

FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS NOS TRIBUNAIS SUPERIORES: UM ESTUDO


SOBRE A PLURALIDADE E O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NO
RECONHECIMENTO DE DIREITOS
LGBTI FAMILIES IN SUPERIOR COURTS: A STUDY ON PLURALITY AND THE
ROLE OF PUBLIC ADVOCACY IN THE RECOGNITION OF RIGHTS

Ramon Silva Costa


Samuel de Oliveira Rodrigues
Denis Franco Silva

Resumo: O artigo trata sobre o reconhecimento de direitos para famílias homoafetivas


nos tribunais superiores brasileiros e tem como objetivo investigar como ocorre o
acesso a esses direitos e o debate sobre eles, considerando-se a pluralidade social
brasileira, a majoritária participação da advocacia privada nesses processos, o papel
da Defensoria Pública e a interseccionalidade de opressões que agem sobre essas
populações. A metodologia empregada é a análise de decisões, publicadas entre 2011
e 2018 e coletadas nos sites dos tribunais, somada a revisão bibliográfica. Sendo
assim, são propostos mecanismos iniciais para um reconhecimento complexo dos
direitos de famílias LGBTI no Brasil.
Palavras-chave: Famílias Homoafetivas, Tribunais Superiores, Reconhecimento de
Direitos.

Abstract: The article analyzes the recognition of rights for LGBTI families in Brazilian
Higher Courts and aims to investigate how the access to and debate on these rights
occur, taking into account the Brazilian social plurality, the majority participation of
private advocacy in these processes, the role of Public Defender offices and the
intersectionality of oppressions that act upon these populations. The methodology
used is the analysis of decisions published between 2011 and 2018 and collected on
the courts' websites, along with bibliographic review. Thus, we propose initial
mechanisms for a complex recognition of the rights of LGBTI families in Brazil.
Keywords: LGBTI Families, High Courts, Recognition of Rights.

INTRODUÇÃO

No processo de reconhecimento de direitos para as famílias homoafetivas


ocorreram decisões judiciais de destaque, como o julgamento conjunto da ADI 4.277
e ADPF 132 pelo Supremo Tribunal Federal que conferiu o direito à união estável para
casais homoafetivos por meio da aplicação analógica do art. 1.723 do Código Civil.
Contudo, tal fato não encerrou a demanda por reconhecimento destes sujeitos e
restou em novos desafios para a efetivação de direitos deste grupo. Assim, tais direitos
ainda geram um relevante debate sociopolítico (CARDINALI, 2018).
Nesse sentido, a questão posta em evidência é: como o reconhecimento de
direitos pelos tribunais superiores pode contemplar a pluralidade encontrada em
relações homoafetivas? Dessa forma, o presente trabalho investiga como ocorre o
acesso à justiça e reconhecimento de direitos de pessoas em relações homoafetivas
nos tribunais superiores brasileiros, apontando a expressiva participação da
advocacia privada nesses processos, além de analisar os conteúdos decisórios que
se reiteram nestes Tribunais nos últimos sete anos e que indicam um panorama
judicial afastado de debates presentes em outras ciências sociais e humanas no que
tange questões de gênero e sexualidade, assim como de muitas pautas e abordagens
924

defendidas pelo movimento social LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis,


transexuais, transgêneros e intersexos).
A metodologia se constitui na análise qualitativa de decisões envolvendo uniões
homoafetivas, utilizando como recorte institucional, os casos levados ao Supremo
Tribunal Federal (STF) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos últimos sete anos
(2011-2018), tal escolha se deu pela relevância e possibilidade dos tribunais
superiores influenciarem decisões de outras instâncias ou vincularem todos os
membros do Poder Judiciário. Já o marco temporal escolhido pretendeu observar os
processos afetados pelo julgamento da ADI 4.277 e ADPF 132, quando as uniões
estáveis homoafetivas passam a ter legitimidade no Judiciário. Os dados
analisados foram coletados nos sítios do STF (www.stf.jus.br) e STJ (www.stj.jus.br)
no período de 01 de maio de 2011 a 01 de maio de 2018, na busca na área de
pesquisa jurisprudencial por termos como “união civil entre pessoas do mesmo sexo”;
“casamento homoafetivo”; “união homoafetiva”; “ADI 4.277”; “ADPF 132”. Na coleta
feita no STF foram encontrados: 11 Acórdãos; 68 Decisões Monocráticas. Na coleta
feita no STJ foram encontrados: 13 Acórdãos; 124 Decisões Monocráticas.
Além disso, há um processo exploratório de teorização crítica por meio de
pesquisa bibliográfica de um material constituído por livros, artigos, dados e relatórios
sobre as pautas do movimento LGBTI, com enfoque em um estudo interdisciplinar
com os demais campos das ciências sociais e humanas para um panorama amplo do
contexto social das lutas por reconhecimento de direitos desta população.

DESENVOLVIMENTO

Os dados coletados no Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de


Justiça, no período de 2011 a 2018 evidenciam que grande parte dos conflitos judiciais
acerca de relações homoafetivas se trata de ações de reconhecimento da vida em
comum, através da instituição da união estável. As decisões afastam a necessidade
do caráter “diversidade entre os sexos” para configurar uma união estável e, assim,
os tribunais têm reconhecido a união estável de pessoas de mesmo sexo, por uma
interpretação extensiva ou analógica do art. 1.723 do Código Civil, desde que sejam
demonstrados: convivência pública, contínua e duradoura estabelecida com o objetivo
de constituir família e ausência dos impedimentos ao casamento previstos no art.
1.521 do Código Civil de 2002.
O julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 4.277 e da Ação
de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, pelo Supremo Tribunal Federal
em maio de 2011, formalizou a família homoafetiva no ordenamento jurídico brasileiro
ao estender o regime jurídico da união estável às uniões homossexuais em todos os
estados da federação brasileira. As ações se fundamentaram em princípios
constitucionais e defenderam que o não reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo implicaria em violação dos princípios constitucionais da dignidade da
pessoa humana (art. 1º, inciso III), da proibição de discriminações odiosas (art. 3º,
inciso IV), da igualdade (art. 5º, caput), da liberdade (art. 5º, caput), e da proteção à
segurança jurídica. O STF entende que o art. 3º, inciso IV veda as discriminações
odiosas ao afirmar o dever de: “promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”; o princípio
da segurança jurídica foi citado pela ADI nº 4.277/2011 e ADPF nº 132/2011 para
conferir a possibilidade dos casais homoafetivos disporem de direitos e garantias
constitucionais de forma satisfatória.
A concepção de segurança jurídica fortalecida nesses processos possibilitou
925

posteriormente a exigência de que os cartórios de registro civil registrassem a


declaração de união civil entre pessoas de mesmo sexo. No entanto, mesmo com a
autorização do registro da união estável ainda havia questões acerca de sua
conversão em casamento. Nesse sentido, surge a Resolução nº 175, de 14 de maio
de 2013, aprovada durante a 169ª Sessão Plenária do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), a qual estabeleceu que os cartórios de todo o País não poderiam mais recusar-
se à conversão da união civil em casamento e permitiu a celebração de casamentos
civis entre pessoas do mesmo sexo (CARDINALI, 2018).
A partir do reconhecimento da união estável e do casamento civil homossexual,
observa-se nos tribunais um relevante número de ações sobre dissolução das uniões
e a consequente meação dos bens, guarda de filhos, pensão aos cônjuges entre
outras questões inerentes ao fim dessas relações. Na maioria dos casos analisados,
o judiciário concedeu o direito à meação dos bens adquiridos a título oneroso na
constância do relacionamento, ainda que eles tenham sido registrados em nome de
apenas um dos parceiros, não se exigindo a prova do esforço comum, o que
demonstra um respaldo ao informativo nº 0472 do Superior Tribunal de Justiça que
estipulou tal entendimento.
No que tange os processos envolvendo direitos previdenciários, as decisões
referentes à pensão post mortem, seguem o determinado pela Instrução Normativa nº
25 de 07/06/20006, regulada pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que
garante o direito à concessão de benefício ao companheiro ou companheira
homossexual, tal entendimento foi ratificado definitivamente pela Instrução Normativa
do INSS nº 45, de 2010, em seu art. 25, que determinou que por força da decisão
judicial proferida na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0, companheiros ou
companheiras homossexuais inscritos no Registro Geral da Previdência Social,
integram o rol dos dependentes, restando apenas comprovar a vida em comum e
concorrem, para fins de pensão por morte e de auxílio-reclusão, com os dependentes
preferenciais elencados no inciso I, do artigo 16, da Lei nº 8.213/1991, para óbito ou
reclusão ocorridos a partir de 05 de abril de 1991, conforme o disposto no art. 145 do
mesmo diploma legal (INSS, 2010).
Ainda na seara previdenciária, percebe-se uma interpretação dos tribunais
superiores correlata com a Lei nº 12.873, de 24 de Outubro de 2013, que concede
direitos de licença maternidade equiparados entre homens e mulheres e que ratificou
um entendimento jurisprudencial que já existia acerca do benefício de licença
maternidade/paternidade, o qual teve sua interpretação estendida por analogia aos
pais solteiros e pais homossexuais, a partir da Lei 12.010/2009 que dispõe sobre a
adoção e que conferiu direito à licença para adotantes. Assim, tal direito foi estendido
e consolidado na jurisprudência para homens solteiros e homens homossexuais,
baseando-se nas evoluções dos conceitos de família, ao incluir os arranjos familiares
monoparentais e homoafetivos e priorizando os princípios da dignidade humana e de
proteção à infância.
A adoção em famílias homoparentais também aparece nas decisões
analisadas, principalmente em questões sobre o registro dos filhos adotados por
casais homossexuais. A adoção pode ser conceituada como uma modalidade de
filiação constituída por meio do amor e das relações puramente afetivas entre pais e
filhos, gerando vínculo de parentesco por opção, sem que haja a necessidade da
conexão biológica (DIAS, 2000).
No Supremo Tribunal Federal, destaca-se o julgamento do Recurso
Extraordinário 846102/ PR interposto pelo Ministério Público do Paraná contra decisão
do Tribunal de Justiça do Paraná que concedeu o direito de adoção por um casal
926

homoafetivo formado por dois homens, o MP alegou que eles não constituíam uma
família. No entanto, o STF acabou por reconhecer pela primeira vez o direito de
adoção por casal homossexual com o julgamento ocorrido em 05 de março de 2015
A análise feita sobre os 24 acórdãos e 192 decisões monocráticas pesquisados
para este artigo nos tribunais superiores brasileiros, indica uma totalidade de decisões
afastadas de argumentações jurídicas voltadas para um campo interdisciplinar entre
o direito e demais ciências sociais e humanas, sendo os argumentos jurídicos voltados
exaustivamente para princípios basilares como a igualdade e liberdade, assim como
para o uso expressivo de menções ao conteúdo do julgamento da ADI 4.277 e da
ADPF 132, o que demonstra na amostra coletada, a reiteração de uma estrutura
argumentativa comum entre os casos envolvendo relações homoafetivas.
Segundo Judith Butler (2018), a precariedade vivenciada por indivíduos nas
estruturas sociais está estritamente ligada às normas de gênero, uma vez que aqueles
que não cumprem as expectativas heteronormativas e não vivem seu gênero de
formas inteligíveis estão expostos a um risco mais elevado de assédio, patologização
e violência, o que leva a autora a questionar a proteção legal, indicando uma tendência
institucional de privação de direitos civis e estigmatização para indivíduos não
heteronormativos, o que ocasiona, por exemplo, em barreiras para assistência à
saúde perante a lei e invisibilidade de relações íntimas e de parentesco. Sendo assim,
a autora expressa a importância da questão do reconhecimento pela presunção de
que todos os sujeitos humanos são igualmente reconhecíveis, mas aponta que a
normatividade de gênero cria uma condição de aparecimento no meio social, o que
restringe o campo do reconhecível.
Nancy Fraser (2007) concebe o reconhecimento como uma questão de justiça.
Na luta de grupos através dos movimentos como o LGBTI; o “reconhecimento da
diferença” emergiu como o principal conflito contra a dominação cultural do século.
Nesse contexto, distinguem-se duas formas de compreensão da injustiça: a primeira
seria a injustiça econômica, estabelecida na estrutura política e econômica da
sociedade; e a segunda, a injustiça cultural ou simbólica, contida nos padrões sociais
de representação, interpretação e comunicação (FRASER, 2006).
E, diante da complexidade que tal reconhecimento envolve, as reflexões sobre
as demandas pelo reconhecimento da diferença ocorrem por meio do caso a caso e
acaba por considerar identidades específicas e as particularidades dos indivíduos.
Assim, torna-se essencial a construção de um paradigma de justiça que recupere
padrões institucionalizados de reconhecimento e de valoração cultural, com o objetivo
de assegurar a real igualdade de oportunidade de estima social. Trata-se da “condição
intersubjetiva” de paridade participativa, no intuito de excluir normas
institucionalizadas que sistematicamente depreciam algumas categorias de pessoas
e as características associadas a elas (FRASER, 2007).
Nos casos de grupos historicamente oprimidos, como os LGBTI, direitos
diferenciados de proteção e de benefício configuram-se como estratégias
necessárias, e podem ser legitimados no intento de equilibrar desigualdades
historicamente constituídas, para dar espaço social a esses indivíduos, com a devida
visibilidade de suas questões e, por conseguinte, acesso aos bens sociais. Sendo
assim, estes direitos diferenciados se justificariam em um novo sentido de justiça,
estritamente correlacionado com uma política verdadeiramente democrática,
orientada para uma dissolução das desigualdades historicamente institucionalizadas
que determinam a opressão distributiva (YOUNG, 2000). Assim, a constituição de
uma política democrática que insira pessoas LGBTI por meio de manifestações,
esforços legislativos ou demandas por políticas públicas precisam fazer reivindicações
927

em nome desses sujeitos, mas este processo não pode ocorrer sem uma atitude
crítica, que desnaturalize a ideia de sujeito político, como descritivo de uma essência
previamente dada, pois deve reconhecer o caráter contingente de sua construção,
salientando as exclusões que perpassam a constituição desses sujeitos (BUTLER,
1998, 2002).
Dentre os diversos aspectos da pluralidade brasileira que podemos visualizar
efeitos na realidade LGBTI, a pesquisa empreendida, destaca-se como resultado
retirado da amostra de onze (11) acórdãos analisados do STF e treze (13) do STJ,
que em ambos os tribunais não existem acórdãos oriundos de processos em que as
partes tenham sido patrocinadas pela Defensoria Pública. Em relação às decisões
monocráticas, o Supremo Tribunal Federal tem oito (8) processos em que os sujeitos
LGBTI foram representados pela Defensoria Pública, de um total de sessenta e oito
(68) decisões monocráticas analisadas. Ao passarmos a análise para os dados
coletados no Superior Tribunal de Justiça, identificamos onze (11) decisões
monocráticas, nas quais os direitos foram tutelados pela Defensoria Pública, em um
total de cento e vinte e quatro (124) decisões. Tais resultados demonstram que a
advocacia privada assume papel majoritário nos tribunais superiores brasileiros em
casos envolvendo direitos previdenciários, casamento, união estável, dentre outros
direitos oriundos de uniões homossexuais.
Nesse sentido, adentra-se no aspecto da Defensoria Pública Brasileira como
agente transformador da realidade social e ao qual incumbe a defesa de direitos às
minorias marginalizadas, visto que a Defensoria Pública no Brasil foi criada dentre
outras finalidades, para a implementação de políticas inclusivas como estipula a
Constituição Federal em seu art. 5º que assegura a igualdade entre todos perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se direitos como a liberdade e
igualdade. O inciso LXXIV do mesmo artigo ainda afirma que o Estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
No que tange a definição de indivíduos hipossuficientes, entende-se sem
recursos financeiros, bem como abrange a insuficiência organizacional para
implementação dos direitos de categorias que do ponto de vista estrutural são
hipossuficientes. Pode-se afirmar então que a Defensoria Pública também é um meio
pelo qual o indivíduo conhece e reconhece seus direitos, suas obrigações,
abrangendo assim, assistência e consultoria, nutrindo-se os aspectos democráticos
no meio jurídico, como prevê a Carta Magna.
Dessa forma, a Defensoria Pública tem como missão a orientação jurídica, a
promoção dos direitos fundamentais e a defesa dos direitos individuais e coletivos, de
forma integral e gratuita aos necessitados. Assim, a Defensoria Pública deve expandir
seu papel, no sentido de o cumprir da forma mais ampla possível no processo de
reconhecimento de direitos e garantias para pessoas LGBTI.
Assim, a introdução de um debate acerca da interseccionalidade ganha espaço
nas questões de pluralidade social. A interseccionalidade, refere-se a uma teoria
transdisciplinar, cujo objetivo é entender a complexidade das identidades e das
desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado. Assim, a
interseccionalidade refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos
da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça,
etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional ultrapassa
o limite do simples reconhecimento das múltiplas opressões que operam por meio
dessas categorias, ao visualizar uma interação entre essas categorias na produção e
na reprodução das desigualdades sociais.” (BILGE, 2009; HIRATA, 2014).
Nesse sentido, de acordo com Prado e Machado (2008), o papel da sociedade
928

na manutenção ou rompimento da subalternidade nas relações de poder é


fundamental, visto que, o reconhecimento das minorias sociais requer a visibilidade
dos antagonismos. A opressão do grupo LGBTI é uma lógica de hierarquização
oriunda de discursos hegemônicos que conduzem os sujeitos não heterossexuais a
se posicionarem de forma subalterna, seja pela lógica da excentricidade e/ou pelo
preconceito, o que alinhado a demais contextos opressivos vivenciados na pluralidade
social impõe a ultrapassagem de barreiras opressivas interseccionadas que atuam de
forma conjunta sobre estes indivíduos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O reconhecimento auferido pelo STF e STJ aos direitos relacionados às uniões


homossexuais e suas conjunturas familiares carece de um olhar crítico, no intuito de
verificar a real efetividade concedida por meio do Judiciário às questões LGBTI.
Assim, torna-se crucial a busca pela igualdade complexa, que alcance o pluralismo
social e que nos leve a estratégias diferenciadas, locais e subjetivas como a
redistribuição de renda, o controle democrático do investimento, o reconhecimento e
a valorização da diversidade cultural e a extensão do papel da Defensoria Pública
para a solução de problemas oriundos da pluralidade.
A partir das análises, estudos e reflexões feitos diante da amostra de decisões
coletadas nos tribunais superiores, compreende-se que um reconhecimento complexo
e plural da diversidade LGBTI e de suas relações familiares pelo Judiciário necessita
inicialmente das contribuições construídas em estudos de gênero e sexualidade, para
que haja uma real compreensão das questões que estão embutidas em suas
realidades não só de forma objetiva, mas para que ocorra um olhar crítico sobre as
posições sociais desses indivíduos, assim como das violências vivenciadas pelo grupo
e de suas múltiplas características que muitas vezes acabam lhes conferindo formas
de opressão interseccionadas, seja por questões étnicas, raciais, culturais,
socioeconômicas ou até mesmo por suas particularidades e subjetividades.
Portanto, uma via para o reconhecimento da pluralidade que circunda as
relações, organizações, práticas e identidades não heterossexuais no meio social
efetiva-se a partir da construção conjunta de forças sociais empreendidas pelos
movimentos político-sociais arquitetados pela população LGBTI e da atuação de um
Estado comprometido em afastar conjunturas socioculturais opressivas e
discriminatórias de suas políticas, agentes e instituições, ou seja, que vise uma
espécie de emancipação estatal por vias verdadeiramente democráticas, que o livre
das estruturas normativas atuantes sobre os sujeitos e suas realidades e identidades
multifacetárias e interseccionais.

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HISTORICIDADE DO MOVIMENTO TRANSGÊNERO


HISTORICITY OF THE TRANSGENDER MOVEMENT

Paulo Joviniano Alvares dos Prazeres


Karla Luzia Alvares dos Prazeres
João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira

Resumo: A articulação do movimento LGBTTT, e de igual forma o Movimento


Transgênero, decorre de batalhas sociais travadas que desencadearam a
disseminação das ideias de proteção coletivas, consequentemente na sociedade
esses movimentos ganharam forma e se estruturaram a ponto de atualmente estarem
inseridos em movimentos políticos transnacional, sendo portador de uma agenda de
lutas contra as discriminações de tais coletivos. O objetivo a que se propõe é de
reflexão sobre o surgimento de novas identidades transexuais, pensando de que
forma as associações e redes internacionais do Movimento Transgênero podem
contribuir na constituição de novas identidades trans, levando em conta o local e o
global, e no enfrentamento das discriminações contra transgêneros.
Palavras-chave: Transexualidade; Historicidade Trans; Transgênero

Summary: The articulation of the LGBTTT movement, and in the same way the
Transgender Movement, stems from social battles fought that triggered the
dissemination of collective ideas of protection, consequently in society these
movements took shape and were structured to the point that they are currently inserted
in transnational, being bearer of an agenda of struggles against the discriminations of
such groups. The objective is to reflect on the emergence of new transsexual identities,
thinking about how the international associations and networks of the Transgender
Movement can contribute to the constitution of new trans identities, taking into account
the local and the global, and the confrontation of discrimination against transgenders.
Keywords: Transsexuality; Trans Historicity; Transgendered

1 INTRODUÇÃO

A acepção do termo transgênero faz referencia a pessoa que sente a pertença


de personalidade ao gênero oposto ao seu sexo genético, ou ainda não enquadrável
a nenhum dos gêneros classificáveis, se incluindo travestis, transexuais, intersexuais,
Drag Queens e Drag Kings. Ainda que a comunidade dos transgêneros abarque o
reconhecimento como pertencente a comunidade LGBTTT, o movimento transgênero
se diferencia daquele, haja visto possuir reivindicações próprias (GARII, 2007), como
por exemplo o extermínio de propostas de medicalização ou patologização da
transexualidade, assim como políticas publicas de serviços especializados de saúde,
e reconhecimento de direitos da personalidade com não discriminação em razão do
gênero, dentre outras.
Ao final do século XX o movimento trans desponta na forma de desdobramento
do movimento LGBTTT, mobilizando recursos para mudanças jurídicas e políticas na
sociedade (GARII, 2007) nos mais distintos rincões do mundo.

2 DEFINIÇÃO DE TRANSEXUALIDADE

O movimento LGBTTT houve contribuído para refletir as vivencias da


sexualidade nos âmbitos públicos e provados, seja na pratica individual, seja na
932

pratica social e política, buscando a desconstrução do binarismo das categorias de


gêneros existentes masculino/feminino, heterosexual/homossexual, homem/mulher,
havendo consequentemente a observância as violações dos direitos humanos desses
grupos, sendo a pauta de reivindicação de igualdade de direitos o fator de maior
destaque no cenário mundial. (GARRI, 2007). O objetivo do presente trabalho é refletir
sobre o contexto do reconhecimento de novas identidades trans dentro do contexto
de transnacionalização do Movimento Transgênero do ponto de vista da diáspora
queer, através da análise de associações internacionais direcionadas a transexuais
masculinos1, também chamados de FTM (female to male), transmasculinos, homens
transexuais, ou, ainda, homens trans, nos apoiando teoricamente nas contribuições
dos “estudos trans” (trans studies) e da teoria queer.
A denominação transexual foi originada derradeira a elaboração de um artigo
do sexólogo David Cauldwell, no ano de 1949, onde se fazia citar o pleito de
“transmutação” de uma mulher para a condição de homem, sendo nominado tal
situação por transexualismo (SCHILT, 2008).
No ano de 1953 o cientista Harry Benjamin, em uma perspectiva de ordem
biológica, apresenta a teoria de que o “sexo” se compõe de diversas estruturas, ou
vários sexos, a saber: genética, gonadico, fenotípico, psicológico, jurídico...
compreendendo que o sexo cromossomático seria o detentor determinante do sexo e
do gênero.

“o transexual se sente uma mulher (...) e se sente atraído por outros


homens. Isso faz dele um homossexual se seu sexo for diagnosticado de
acordo com seu corpo. No entanto, ele se autodiagnostica segundo seu
sexo psicológico feminino. Ele sente atração por um homem como
heterossexual, ou seja, normal” (Benjamin, 2001, p.30 citado por Bento,
2006, p. 151).

No ano de 1975 Robert Stoller, sob o fundamento da teoria psicanalista,


assevera que se uma criança gosta de brincadeira, ou apresenta predileção em
vestimentas por vestuário que indicam pertença sexual diversa de seu gênero, teria
apresentado assim um indicativo de sexualidade anômala, havendo a explicação a
esta transexualidade no relacionamento “da relação da criança com sua mãe, que, ao
invejar os homens e ter um desejo inconsciente de ser como eles, ficaria tão feliz com
o nascimento do filho que transfere seu desejo para ele” (Stoller citado por Bento,
2006, p. 137).
Destaque-se que Stoller põe em duvida um diagnostico de transexualidade na
hipótese de o individuo não ter uma mãe nas características por ele teorizada (Bento,
2006). Dessa forma Robert Stoller e Harry Benjamin houvera definido critérios para
diagnosticar o “verdadeiro transexual”, o que fora paradigma nas décadas de 1960 e
1970 onde os clínicos começaram a usar a acepção do termo (“Verdadeiro
Transexual”), como forma de designar os que na perspectiva médica teriam melhor
condição de vida após um curso terapêutico que desembocaria na cirurgia de
transgenitalização.
No ano de 1973, John Money, Norman Fisk e Donal Laub criaram o conceito
denominado de “disforia de gênero” (Castel, 2001), que designou a transexualidade
como distúrbio de gênero (Athayde, 2001). No ano de 1987, a transexualidade,

1
Mulheres que se identificam com o gênero masculino através da nominação, vestimenta e transformações corporais como
pertencentes ao gênero masculino.
933

nominada transexualismo, fora acrescida no Diagnostic and Statistical Manual of


Mental Disorders – DSM III (Manual Diagnóstico e estatístico das Desordens Mentais)
(Castel, 2001), sendo classificado aos indivíduos que possuíssem “disforia de gênero”
e que possuíssem ao menos dois anos ininterruptos de interesse em modificar seu
gênero e o status social.
Em 1994, o DSM-IV (Manual Diagnóstico e estatístico das Desordens Mentais)
modificou a nomenclatura Transexualismo por Desordem da Identidade de Gênero, a
qual de igual forma se encontra no CID - 10 (Classificação Internacional de Doenças)
(Athayde, 2001). Na versão de 2001, o DSM substituiu “Desordem” por “Transtorno
de Identidade de Gênero” (García, 2009).
Os discursos de ordem biomédica sobre assuntos relacionados a
transexualidade remetem ao conceito de que pessoas trans assumam uma forma
biomédica que as patologiza, seja no âmbito físico, aos que desejam realizar cirurgia
de transgenitalização; seja no âmbito mental, as que desejam modificar a identidade
de gênero, sujeitando-as a aparato de regulação medica, vez que na maioria dos
países o reconhecimento da identidade de gênero é condicionada a cirurgia de
redesignação sexual (García, 2009).
Por outros termos implica dizer que os transexuais buscam significações
“cientificas”, e dos conjuntos de acepções cientificas que se busca a explicação de si
próprio para legitimar os atos pessoais e coletivos na seara político social. Joan
Vendrell Ferré, afirma que:

“dado o prestígio da ciência em nossa sociedade atual, resulta difícil dar-


se conta de que os saberes científicos são tão êmicos como qualquer
outro saber ‘folk’ que poderíamos encontrar em qualquer cultura não
ocidental, ou ‘não científica’, para dar conta de alguma das numerosas
formas constatadas de transversalidade de gênero” (Ferré, 2009, p. 63).

Repercussões sobre medicalização e patologização do transexual reflete no


cotidiano do transmasculino, que seja por tornar-los “doentes” necessitados de
tratamento o qual não possui ingerência alguma, que seja por se submeter a decisões
de profissionais de saúde, por não ser permitido aos sujeitos vivenciarem sua
realidade de gênero da forma que lhes convém, ou ainda por não permitir os sujeitos
vivenciarem sua identidade de gênero da forma que lhes convém, haja visto não
possuírem estes reconhecimento social, o que os torna vitimas de preconceitos e
estigmas sociais, ou ainda simplesmente em derradeiro ao reconhecimento social,
sequer modificar seu nome em conformidade sua identidade de gênero.
Autores contemporâneos como Judith Butler (2006), Daniela Murta (2008) e
Marie-Hélène Boucier e Pascale Moliner (2008) tecem severas criticas e realizam
problematização ao conceitualmente da experiência ou condição transexual na forma
de anormalidade, indicando novas classificações sociais da experiência trans,
merecendo destaque a teoria queer.
Daniela Murta (2008), define que “o sujeito transexual não se encaixa em
nenhum dos modelos propostos de identidade sexual segundo as práticas discursivas
do século XIX”, o que demonstra ser insuficiente as categorias sexuais, as quais,
conforme sugestiona, vem subverter nossas crenças acerca dos conceitos de sexo,
gênero e identidade (MURTA, 2008).

3 MOVIMENTO TRANS
934

Barbara Garii (2007), afirma que o Movimento Transgênero moderno teve


marco com dois eventos no derradeiro final da década de 1960, nos Estados Unidos,
que gerou a publicação de dois livros em vinte anos após. O primeiro evento
aconteceu no ano de 1966, em um episodio onde a polícia retirou clientes da Cafeteria
Compton, em Tenderloin, San Francisco, em hum bairro habitado por travestis,
transexuais femininas e transgêneros, os quais eram vítimas freqüentes de
discriminação legal.
Em resposta a comunidade local partiu ao confronto, o que resultou tumulto e
prisões. Tal evento mostrou a necessidade de ação sustentada pela comunidade,
havendo um grupo local de transexuais femininas fundar no ano seguinte o COG
(Conversion Our Goal, or Change: Our Goal), o qual, inobstante sua curta duração,
houve lançado bases a outras similares organizações no Estado da California, a
exemplo do National Transsexual Counseling United, e a Transsexual Action
Organization (BEEMYN, 2008).
O segundo evento ocorreu no ano de 1969, no estado de Nova York onde a
policia invadiu o Stonewall Inn, bar de Greenwich Village, o qual também atendia
pessoas do bairro Tenderloin. Um grande numero de drag queens, butchs, assim
como transgêneros entraram em confronto com a policia, o que desencadeou a revolta
de Stonewall, a qual ficou conhecida como marco de resistência inicial na luta pelos
direitos dos homosexuais (GARII, 2007).
De igual modo ocorreu em São Francisco, e tal incidente teve importância a
criação do STAR (Street Transvestites Action Revolutionaries) e do Queens Liberation
Front (BEEMYN, 2008).
Assim, como nessas resistências os participantes da comunidade transgênero
foram denominados como integrantes da comunidade gay, não sendo destacada em
separado, o movimento gay prestou reconhecimento desde sempre a comunidade
transgênero na condição de heróis da revolta (GARII, 2007).
Os livros a que se referiu Barbara Garii são Sex Changes: The Politics of
Transgenderism, publicado em 1987 por Pat Califia, um teórico transmasculino, e
Stone Butch Blues, publicado em 1993 pela ativista Leslie Feinberg.
A obra de Pat Califia houve examinado de forma mais acurada a significância
da dicotomia de gênero, ao passo que houve explorado a significância dicotômica de
gênero, iniciando uma discussão de ordem publica ao que diz respeito a
questionamentos de gênero, identidade de gênero e atribuição em conformidade ao
gênero.
Por seu turno a obra de Leslie Feinberg confronta limitações tradicionais de
questões de identidade de gênero nos limites da razoabilidade e na limitação da
política e sexo da década de 1960 a década de 1990, emergindo a violência policial
em desfavor dos transgêneros.
Os fatos ocorridos na Cafeteria Compton e a Revolta de Stonewall receberam
pouca, ou nenhuma, cobertura da mídia, ainda que ambos os eventos sejam ícones
dentro da comunidade LGBTTT, da mesma forma que os livros de Pat Califia e Leslie
Feinberg. Contudo tais eventos desencadearam o Movimento Transgênero moderno.
Esse movimento, de forma similar ao movimento dos direitos civis da década
de 1960, imperou o reconhecimento social e apoio, direitos legais, políticos e recursos
para a comunidade transgênero, definida clinicamente ou socioculturalmente (GARII,
2007).

4 MOVIMENTO TRANSGÊNERO E AGENDA POLÍTICA TRANSNACIONAL


935

A associações e organizações transsexuais que se formaram ao final da


década de 1970 e 1980 tiveram como paradigmas o apoio pessoal e socialização ao
invés de militância ativista política. Contudo na década seguinte a militância e
organização política das comunidades trans, houveram se expandido e diversificado,
surgindo especificamente grupos locais em todo os Estados Unidos, por exemplo, o
que culminou o desenvolvimento de diversas organizações nacionais naquele pais e
ainda ao crescimento de movimentos em prol dos direitos da pessoa transexual e pelo
fim de violências contra pessoas trans (BEEMYN, 2008).
A ausência de observância da população a crise da AIDS, ao fim da década de
1980 e início de 1990, houve renovado a militância do Movimento LGBTT, inspirando
a geração seguinte dos ativistas trans. O Transgender Nation, formado no ano de
1992 tendo por base o Queer Nation de São Francisco, houve sido a organizado em
sua primeira composição, derradeiro a onda de ação direta que desafiou a transfobia
do movimento LGBTT e da sociedade como um todo (BEEMYN, 2008).
Observa-se ainda que a presença de transexuais masculinos nessas
organizações eram ínfimas, e por poucas vezes tinham por satisfeitas suas
pretensões. O Labyrinth Foundation Counseling Service, criada por Mario Martino ao
fim da década de 1960 em Nova York foi exceção.
Tal situação foi modificada a partir de 1986, com a fundação do grupo de poio
local a transexuais masculinos, fundado por Lou Sullivan em São Francisco, o qual
teve crescimento e se transformou na organização internacional FTM, principal
organização de defesa para os FTMs (BEEMYN, 2008).
Hoje em dia a FTM possui ramificações em mais de vinte países, contando com
a participação de milhares de membros, aparentando ser esta organização a primeira
transnacional do movimento trans.
Ainda nesse cenário se destaca o surgimento da transnacional organização
International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans And Intersex Association (ILGA), qual se
apresenta como uma federação de ordem global que tem como característica
congregar grupos locais e nacionais que se dedicam a defesa de direitos de lésbicas,
gays, bissexuais, transgêneros e intersexuados (LGBTI) em todo o mundo.
Organização que teve sua fundação no ano de 1978 tem entre seus membros mais
de 670 organizações, o que representa a inserção de mais de 110 países, de todos
os continentes.
Desde pequenos coletivos a grupos de ordem nacional, a ILGA consegue
congregar ate mesmo cidade inteiras. Na atualidade a ILGA é a única federação de
ordem internacional que logra reunir Organizações Não-Governamentais e outras
entidades sem fins lucrativos que concentram em sua atuação a luta pelo fim da
discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.
A ILGA-Europa, que fora fundada e, 1996, houveram assumido a
responsabilidade de apoio ao desenvolvimento do movimento LGBT Europeu,
havendo de intermediar relações com a União Européia, com o Conselho Europeu e
Organização para a Segurança e Cooperação na Europa. A ILGA-Europa houve
trabalhado de forma exclusiva na base dos recursos voluntários, contudo em 2001
tiveram potencial contribuição as políticas da União Européia contra a discriminação
(previsto no artigo 13 º do Tratado de Amsterdam) 2 e fora reconhecida por meio de

2
O Tratado de Amsterdam foi assinado em 2 de Outubro de 1997 e é o resultado de dois anos de estudos e negociações no
âmbito de uma Conferência dos representantes dos governos dos Estados-membros. Entrou em vigor após ter sido ratificado
pelos quinze Estados-membros da União Européia, segundo as respectivas regras constitucionais. O objetivo deste tratado foi
criar as condições políticas e institucionais necessárias para permitir à União Européia enfrentar os desafios do futuro, face, entre
outras circunstâncias, à rápida evolução da situação internacional, à globalização da economia e suas repercussões no emprego,
936

concessão de financiamento. Tal fato houve permitido a ILGA-Europa a montagem


em Bruxelas de um escritório, assim como a formação de uma equipe permanente e
realização de amplo programa de trabalho relacionado a discriminação por orientação
sexual no âmbito do Estados-Membros e os países candidatos à adesão.
Com o auxilio monetário do Sigrid Rausing Trust, a ILGA-Europe teve como
ampliar de suas atividades em áreas que não houveram sido alcançadas por fundos
comunitários, especificamente a Europa Oriental, assim como questões relacionadas
aos transgêneros.
Esse contexto do Movimento Trans que nos permitiu a confirmar a integração
do movimento LGBTTT, e, por via de consequência a inserção num movimento
político transnacional responsável por uma agenda de combate as discriminações
sofridas por este coletivo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observamos que o Movimento trans compreende uma gama de interesses


sociais e políticos de um coletivo que se sente violado com a padronização antiquada
e opressora de sexo e sexualidade em conformidade com o gênero. Determinado
coletivo reivindica antes de mais nada tratamento igualitário e o fim do preconceito.
As reivindicações e pautas de agenda são os pontos principais que os Estados devem
atentar, cuidando assim das questões de proteções e equiparação dos direitos desse
coletivo, especificamente os que são ligados a personalidade e identidade.

REFERÊNCIAS

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Metab. Vol 45, n. 4, Agosto 2001.
BENTO, Berenice. A reinvenção corpo: sexualidade e gênero na experiência
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BUTLER, Judith. Deshacer el gênero. Barcelona: Paidós, 2006.
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“fenômeno transexual” (1910-1995). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21,
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FERRÉ, Joan Vendrell. ¿Corregir el cuerpo o cambiar el sistema? La
transexualidad ante el orden de gênero. Sociológica, año 24, n. 69, 2009.
GARII, Barbara. "Transgender Movement.". Encyclopedia of Activism and Social
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considerações sobre a psiquiatrização da transexualidade. Fazendo gênero 8 –
Corpo, violência e poder. Florianópolis, 25 a 28 de agosto, 2008.
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Nouvelle Femme. Cahiers du Genre, N. 45, 2008.
PELLEGRIN, Nicole; BARD, Cristine. Femmes travesties: un «mauvais genre» -
Introduction. Clio. Histoire, femmes et societés. N. 10, 1999.

na luta contra o terrorismo, na criminalidade internacional e no tráfico de droga, nos desequilíbrios ecológicos e nas ameaças
para a saúde pública.
937

SCHILT, Kristen. "Transsexual". Encyclopedia of Gender and Society. 2008. SAGE


Publications. [online], Disponível em: <http://www.sage-
ereference.com/gender/Article_n427.html>. Acesso em 24 abr. 2018.
STEINBERG, Sylvie. «L’histoire du travestissement féminin à l’épreuve de la
pluridisciplinarité».
938

MOBILIDADE DE MULHERES PRETAS E BRANCAS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


DO ESTADO DE SÃO PAULO
MOBILITY OF BLACK AND WHITE WOMEN IN THE COURT OF JUSTICE OF THE
STATE OF SÃO PAULO

Renata Miranda Lima


Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci

Resumo: A presente pesquisa visa compreender os arranjos de gênero e raça no


Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo TJ-SP entre 1874 a 2017. Para tanto, é
delineado questões de gênero, a figura do negro na sociedade e a consequência do
encontro dessas duas categorias em uma pessoa. A partir desse cenário, o estudo
tem como finalidade compreender as possibilidades de acesso de mulheres no TJ-SP
investida em cargos de cúpula e qual o espaço de mulheres brancas e negras. Para
responder tais inquietações, o estudo se baseou em dados fornecido pelo Conselho
Nacional de Justiça-CNJ e TJ-SP os quais viabilizaram a elaboração de gráficos e
tabelas que demonstram quem são aqueles que o compõe e como se dá a promoção
de homens e mulheres brancas e pretas neste espaço. É utilizada como metodologia
a pesquisa bibliográfica e documental, estudo de caso e análise estatística.
Palavra chave: Mobilidade, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Gênero e
Raça.

Resume: The present research aims to understand the gender and race arrangements
in the Court of Justice of the State of São Paulo TJ-SP between 1874 and 2017. To do
so, it outlines gender issues, the figure of the black in society and the consequence of
meeting these two categories in one person. Based on this scenario, the study aims to
understand the possibilities of access of women in the TJ-SP invested in top positions
and the space of white and black women. In order to respond to such concerns, the
study was based on data provided by the National Justice Council-CNJ and TJ-SP,
which enabled the elaboration of charts and tables that demonstrate who are the
members and how to promote men and women white and black in this space.
Bibliographic and documentary research, case study and statistical analysis are used
as methodology.
Key words: Mobility, Court of Justice of the State of São Paulo, Gender and Race.

INTRODUÇÃO

Conforme dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o quadro de


desembargadoras até 2017 era de 28 mulheres e 361 homens, quanto aos
desembargadores substitutos o número é 61 homens e 21 mulheres. Como um todo,
a Segunda Instância do Judiciário paulista é composta por 389 desembargadores
(1Sic-TJ/SP, 2017). Quanto a magistratura de primeira instância do TJ-SP, até o ano
de 2017, era constituída por 1.184 juízes na capital e 1.363 atuam no interior de São
Paulo, ao todo há 2.547 juízes atuando em São Paulo (Sic-TJ/SP, 2017). Dentre os
magistrados que estão na capital de São Paulo 373 são juízas e 340 são juízes.

1
Informação adquirida pelo serviço de informações ao cidadão em cumprimento à Lei 12.527/11. Disponível no site:
<http://www.tjsp.jus.br/CanaisAtendimentoRelacionamento/FaleConosco>
939

Tal discrepância em relação a gênero nos quadros da magistratura entre a


primeira e segunda instância do Estado de São Paulo TJ-SP, se manifesta como
resquício histórico do patriarcado que marca as construções de laços sociais em
relação a espaços e papeis e assim, mantem viva uma estrutura hierarquia que faz
com que por mais que mulheres sejam maioria na base da magistratura, os cargos de
cúpula de tal órgão preservam a ordem de poder, uma vez que a promoção de
mulheres a tais cargos é lenta. Daí a importância do estudo de gênero.
A partir de tal inquietação o presente estudo olha para além do gênero à raça
com a finalidade de compreender peculiaridades que as interseccionam, o que se
justifica por compreender que a mulher negra enfrenta uma estrutura de discriminação
diferenciada, pois quando a discriminação recai sobre diferentes grupos sociais
marginalizados, está também vai pressupor tratamento diferenciado e específico
àquele grupo social. Daí a necessidade de um estudo com recorte de raça e gênero,
pois o racismo causa reflexos diferentes dos que se causam no sexíssimo, assim
como o sexíssimo conjugado com racismo em uma mesma pessoa causará trará
diferentes nuances.

DIREITO A IGUALDADE: GÊNERO & RAÇA: Mulheres no Tribunal de Justiça do


Estado de São Paulo: Porque não?
Tempo Rei!
Oh Tempo Rei!
Oh Tempo Rei!
Transformai
As velhas formas do viver
(Gilberto Gil)

O trecho da canção acima faz emergir uma reflexão referente à dicotomia que
o tempo propõe, no sentido de que apesar de todo dia o tempo ser novo ele é ao
mesmo que sempre existiu. Apesar de todos os dias haver oportunidade de viver
novas coisas, rotineiramente a sociedade reproduz os mesmos vícios que fluem das
velhas formas de viver. A extensão deste raciocínio para o ser mulher e o ser homem
em sociedade ainda é impregnada por sentidos que reportam a uma velha forma de
viver o qual corrobora a repetição de vícios passados ao determinar a forma de ser
desses sujeitos, seus espaços, deveres, papeis e direitos.
Exemplo disso é o TJ-SP que foi formado em 1874, mas o ingresso de mulheres
na magistratura paulista só veio ocorrer em razão de pressão da comissão de
mulheres advogadas da OAB/SP que questionou a necessidade de identificação das
candidatas (Melo, 2005, p. 4) o que culminou na lei 9351/96 a qual previa no artigo 1°
que no concurso de ingresso na magistratura da justiça comum será “vedada, nas
duas primeiras fases, que haja a identificação do candidato” (Lei Estadual n° 9.351,
1996). Ou seja, o ingresso de mulheres na magistratura de São Paulo só se deu 106
anos após a criação do Tribunal.
A ausência de medidas legais que inviabilizavam a discriminação em razão do
sexo trouxe reflexos, segundo dados do TJ-SP apenas em 1997 foi nomeada a
primeira mulher ao tribunal2. Entre 1997 a 2017 a segunda instância do TJ-SP foram
nomeados 213 homens e 28 mulheres. E desde a criação do TJ-SP em 1874 a 2017
passaram pelo TJ-SP 1.219 desembargadores e 35 desembargadoras ao todo, sendo
que dessas até a presente data, 6 dessas mulheres se aposentaram.

2
Luzia Galvão da Silva, nomeada desembargadora do TJSP em 1997, critério de ingresso: quinto constitucional. (TJSP livro
digital do Tribunal de justiça do Estado de São Paulo e seus desembargadores)
940

Quanto a presidência do TJ-SP até 2017 foram eleitos apenas homens brancos
(Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP, 2017). Segue tabela, formulada
pela autora, com base em dados do TJ-SP que informam o ingresso de mulheres ao
Tribunal por ano desde 1874 a 2017 (tabela 1) assim como a quantidade de homens
e mulheres ingressantes no TJ-SP em 2017 (tabela 2).

TABELA 1
N° de ingressantes mulheres Ano de ingresso no TJ-SP

0 1874 a 1996
1 1997
1 2003
12 2005.
2 2010.
2 2011.
2 2012.

4 2013
6 2014
2015.
2 2016.
2 2017.
Total: 35 Quantidade de anos: 143
(3Fonte: livro digital do Tribunal de justiça do Estado de São Paulo e seus desembargadores).

TABELA 2
N° de Mulheres ingressantes em 2017 N° de Homens ingressantes em 2017
2 10
(4Fonte: livro digital do Tribunal de justiça do Estado de São Paulo e seus desembargadores).

O baixo número de desembargadoras no TJ-SP bem como a ausência de


presidentas nesse órgão é nomeado por Mônica de Melo como “fenômeno da
masculinização do comando e de feminização da subalternidade” (2005, p. 3). Esse
fenômeno demonstra que, mesmo frente aos espaços conquistados pelas mulheres,
“o poder de mando permanece na fiel lógica da cultura masculina” (Melo, 2005, p. 3).
Conforme 5Anne Biogeol, em razão das construções de papeis na sociedade,
o acesso à magistratura em cargos considerados de cúpula por mulheres é minado
por uma espécie de telhado de vidro, que funciona como mecanismo que dificulta e
por vezes barra o acesso de mulheres as instâncias superiores (2013). Tal telhado
encontra sustentação por meio da combinação de critérios merecimento e
antiguidade, pois mulheres ingressarem 106 após a criação do tribunal na
magistratura, portanto, pelo critério antiguidade, elas entrarão sempre em menor
número na segunda instância mantendo uma desigualdade implantada no passado.

ONDE ESTÃO AS MULHERES NEGRAS?

De acordo com o Ministério das Relações Exteriores o Brasil é o país que tem
a maior população negra, atrás apenas da Nigéria (AZEVEDO. 2010) com percentual
de 54% de população negra (Secretária de combate ao Racismo – CUT, 2010, p.2).

3
Disponível no site: <http://www.tjsp.jus.br/Download/Biblioteca/Curriculum/Curriculum.pdf>. Acessado em: 09/08/2017
4
Disponível no site: <http://www.tjsp.jus.br/Download/Biblioteca/Curriculum/Curriculum.pdf>. Acessado em: 09/08/2017
5
Pesquisadora que estudou, sob um olhar histórico, dificuldade das mulheres no acesso a magistratura da França.
941

Apesar disso, apenas em 2017 ocorreu o primeiro encontro da magistratura negra do


país. O anseio em realizar esse encontro nasceu de dados do CNJ de 2014 ao
constatar que magistrados e magistradas negras correspondem a 15% a âmbito
nacional (Amaerj, 2017).
Entretanto, diante da especificidade do tema segue tabela feita pela autora a
partir de dados fornecidos pelo sistema de informação ao cidadão (Sic) junto ao site o
TJ-SP, que viabilizam ter um panorama geral da magistratura paulista feminina branca
e preta.

TABELA 3
Tabela do Quadro da Magistratura Paulista 2017
CAPITAL
Juízes 340
Juízas 373
Juízes Substitutos em 2º Grau 61
Juízas Substitutas em 2º Grau 21
Desembargadores 361
Desembargadoras 28
Total de Magistrados da Capital 1184

INTERIOR
Juízes 904
Juízas 459
Total de Magistrados do Interior 1363
Total Geral 2547
(Fonte: Sic-TJ/SP, 2017).

TABELA 4
Tabela de quadro de magistratura paulista preta em 2017
Cargo/Raça Negra Parda

Desembargadora 1 3

Juíza de Direito 6 10

(Fonte: Sic-TJ/SP, 2017).

Os dados corroboram que apesar da população negra corresponder a 32% da


população de São Paulo, na magistratura paulista há 20 juízas negras de 2.547 juízes
sendo que dessas 20, 4 são desembargadoras pretas de 471 desembargadoras e
desembargadores incluso os substitutos (Sic-TJ/SP, 2017). Tal quadro evidencia que
a estrutura de desigualdade que a mulher negra está inserida é diferente da mulher
branca e tal fato encontra explicação no período do império que trouxe insegurança a
ter direitos básicos, dentre eles o direito a educação. Segundo o regulamento de 22
de agosto de 1887 da província do Estado de São Paulo no seu artigo 143 § 5° dizia
que “não serão admitidos a matricula nas escolas de primeira cathegoria: Os
escravos, salvo nos cursos nocturnos e com consentimento dos senhores”.
Consequentemente, a população negra em sua grande maioria era analfabeta.
Outro reflexo decorrente do regulamento 22/1887 foi a dificuldade de acesso a
educação superior da população negra. As faculdades foram implantadas no Brasil
desde 1808, mas permitida apenas a homens. Em 19 de abril de 1879 o Decreto n°
7.247 permitiu mulheres acessarem o ensino superior, mas só as mulheres brancas
estavam em condições de cursarem o ensino superior, pois a população negra no
942

geral só acessou educação básica muito depois. Dados do IBGE de 2010 da Cidade
de São Paulo, dão conta de evidenciar que esse abismo criado ainda se mantém na
realidade ao informar que 186.952 pessoas que se auto declaram brancas entre 18 e
24 anos de idade estavam frequentando o ensino superior e 50.069 que se declararam
pretos com igual idade estavam frequentando a universidade em 2010, ou seja, a
população branca é quase quatro vezes superior à população negra nas
universidades (IBGE, 2010). Este abismo é corroborado nos dados do TJ-SP que
informam ser a primeira instância majoritariamente composta majoritariamente por
mulheres, mas quem são essas mulheres?

Gráfico 3.1

Juizes de 1° grau em TJ-SP Capital


16
homem
340
373 mulher branca
mulher negra

(Fonte: Sic-TJ/SP, 2017)

Essas mulheres são majoritariamente brancas. Tal situação, não é um caso


particular que ocorre apenas na cidade de São Paulo, pois com base em dados
nacionais de 1995 a 2013 no âmbito do poder judiciário o gráfico 3.1.3.1 deixa em
evidência que o número de magistrados negros, segundo ano de ingresso, é muito
inferior ao ingresso da população branca e a população indígena na magistratura já
atingiu o índice de 0,4% (CNJ, 2014, p. 38).
Em outro dado levantado pelo Censo do Poder judiciário no TJ-SP em 2013,
que observa cor, mas não observa gênero, informa que 96,6% dos magistrados do
TJ-SP se autodeclaram brancos, 3,2% se autodeclaram pretos ou pardos. Em censo
realizado pelo CNJ em 2014 o gráfico 3.1.3.3 constatou que o percentual de
magistrados no Brasil em todos os ramos da justiça era de 19,1% (CNJ, 2013, p. 39)
e no gráfico 3.1.3.6 constatou que na justiça estadual os juízes negros representam o
percentual de 15,6% e os indígenas são 0,1% no Brasil (CNJ, 2014, p. 42).
Os dados revelam que a democracia racial é um engano, o que existe é uma
desigualdade e um racismo estrutural. Quanto a inexpressiva quantidade de negras
no tribunal encontra explicação histórica e se mantem porque a população negra
continua sendo negligenciada quanto a direitos sociais básicos como a educação, pois
o ter poucas negras no tribunal se dá em razão de que elas são poucas na
magistratura e elas são poucas na magistratura porque tem maior dificuldade de
acessar a educação superior diante das barreiras que historicamente se mantém e
isso é racismo estrutural, que causa discriminação no acesso a direitos iguais. Nesse
sentido Djamila Ribeiro expõe que:

“Para a população negra não se criou mecanismos de inclusão. Das


senzalas fomos para as favelas. Se hoje a maioria da população negra é
pobre por conta dessa herança escravocrata e por falta da criação desses
mecanismos. É necessário conhecer a história deste País para entender
porque certas medidas, como ações afirmativas, são justas e necessárias.
Elas precisam existir justamente porque a sociedade é excludente e
injusta para com a população negra. Cota é uma modalidade de ação
afirmativa que visa diminuir as distâncias. O racismo institucional impede
943

a mobilidade social e o acesso da população negra a esses espaços”


(2015).

CONCLUSÃO

Apesar das discrepâncias evidenciadas nos dados em relação a gênero e raça,


as mulheres têm batido as portas de altos cargos no poder judiciário, contudo, as que
alcançam a cúpula dos cargos, trilham percursos de exceção dedicando-se totalmente
à careira por vezes demonstrando que são até melhores que os homens para poder
crescer em um espaço majoritariamente masculino. Portanto, suas trajetórias não
podem ser vistas como exemplos de que há igualdade nesse acesso a cargos
superiores em relação ao gênero, pois elas se esforçam para além do exigido a um
homem branco.
Os dados trabalhados na pesquisa demostram que, o que era para ser
considerada história ou reminiscência do período colonial, permanece “vivo no
imaginário social e adquire novos contornos e funções em uma ordem social
supostamente democrática, que mantém intactas as relações de gênero segundo a
cor ou raça instituída no período da escravidão” (Carneiro, 2011, p. 1). Portanto se
depreende do presente estudo que o que se encontra em crise não é o fundamentar
a força ou existência do direito a igualdade, mas sim de como protegê-los.
Para tanto é preciso pensar em mecanismos que promovam igualdade de fato
e promove igualdade a parti da solução do que causou a desigualdade. É preciso olhar
gênero e raça para formular políticas públicas no acesso à educação. Quanto ao TJ-
SP, na primeira instância do judiciário e na segunda instância é necessário ampliar o
ingresso principalmente de mulheres indígenas, de mulheres negras e de mulheres
brancas a partir da formulação de políticas públicas pensadas e criadas pela
população excluída de tais cargos, para que possam ser desenhadas e implantadas
a partir da realidade das pessoas que mais são atingidas por essa desigualdade.
Conclui-se que o atual meio de nomeação de desembargadoras (es) e o acesso
a presidência do TJ-SP é contrário aos fundamentos e objetivos da República
Federativa do Brasil expressos nos artigos 1° inciso II e III, 3° e 5° caput e inciso I
(CRFB, 1988). Enquanto não for estabelecido cotas de raça e de gênero, tanto na
promoção de juízas a 2° instância quanto na eleição a presidência do TJ-SP, e
enquanto se aplicar o critério antiguidade sem levar em consideração a igualdade de
fato; a presença de mulheres será sempre menor que a dos homens e não haverá
pessoas de outra cor a não ser a branca naquele espaço; uma vez que antiguidade
mantém a estrutura desigual, tratando o que não é igual como se o fosse.
Portanto, a curto prazo, é necessária à criação de cotas raciais e de gênero nas
três esferas da federação no âmbito do poder judiciário de pelo menos 50% não
somente, para o ingresso na carreira da magistratura, mas também cotas de gênero
e raça aos cargos de nomeação, comissão, indicação e os que são atingidos por
eleição como a presidência do TJ-SP. A finalidade é que gênero e raça se encontrem
em um futuro próximo, em situação equânime de participação em todas as instâncias
de poder e de decisão do TJ-SP.
A longo prazo, é necessária criação de políticas públicas robustas direcionadas
a superar o racismo institucional que também passeia na sociedade, assim como
ampliação das cotas para o percentual de no mínimo 50% nas universidades públicas
e federais para que em um futuro mais próximo se rompa essas estruturas de violência
e não seja mais necessário se falar em cotas e que diferenciar não faça sentido, e que
se fale apenas mulher; que se fale apenas Ser Humano.
944

REFERÊNCIAS

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945

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946

O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA COMO MÍNIMO EXISTENCIAL


E SUA EFETIVAÇÃO À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA1
THE FUNDAMENTAL RIGHT TO DWELLING ON AN EXISTENTIAL MINIMUM,
AND ITS REALIZATION IN THE LIGHT OF THE PRINCIPLE OF HUMAN DIGNITY

Ariane Daruichi Coelho de Souza


Geziela Iensue

Resumo: O presente resumo propõe uma análise sobre o processo de efetivação do


Direito Humano Fundamental à Moradia, que emerge da proclamação da Dignidade
da Pessoa Humana como garantia constitucional prevista no rol de Direitos Sociais da
Constituição Federal de 1988. Verifica-se a teoria do mínimo existencial sob o prisma
do princípio constitucional da Igualdade e a evolução histórico-constitucional da
garantia fundamental à moradia e sua anexação na sistemática jurídica, ao analisar o
tratamento judicial quanto à sua característica prestacional. Neste resumo, a noção
de mínimo existencial correlaciona-se à Dignidade da Pessoa Humana em
conformidade à sua alteridade. Cabe ao poder público como agente da produção do
espaço público urbano e responsável pela execução e controle de políticas públicas
que fundamentam e ofereçam critérios para implementação de políticas habitacionais.
As políticas públicas voltadas à habitação quando omissas, encontram no Poder
Judiciário a possibilidade de concretização.
Palavras-chave: Constituição Federal; Mínimo Existencial; Direito Fundamental à
Moradia.

Abstract: This paper proposes an analysis of the process of effecting the Fundamental
Human Right to dwelling , which emerges from the proclamation of the Dignity of the
Human Person as a constitutional guarantee provided for in the list of Social Rights of
the Brazilian Federal Constitution of 1988. It is verified the theory of existential
minimum under the prism of the constitutional principle of equality and the historical-
constitutional evolution of the fundamental guarantee to housing and its annexation in
legal systematics, when analyzing the judicial treatment as to its yours characteristics.
In this abstract, the notion of existential minimum correlates with the dignity of the
human person in conformity with its otherness. And it is up to the public power as agent
of the production of the urban public space and responsible for the execution and
control of public policies that base and offer criteria for the implementation of housing
policies. They public policies aimed at housing when they are omitted find in the
Judiciary the possibility of realization.
Keywords: Federal Constitution; Minimum Existential; Fundamental Right to Housing.

INTRODUÇÃO

Constitui, categoricamente, a dignidade da pessoa humana – circunscrita no


Art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 – um axioma central do
ordenamento pátrio e fundamento basilar para o Estado Democrático de Direito, sendo
um dos princípios da República e parâmetro orientador das relações entre o intitulado
mínimo existencial e os processos de efetivação do direito humano fundamental à
moradia. O fim último dos direitos fundamentais é a garantia da dignidade humana
(ALEXY, 2015, p. 40). A noção de mínimo existencial é intrinsecamente

1
Trabalho resultante de pesquisa pelo Programa Institucional De Iniciação Científica Voluntária – PIVIC.
947

correlacionada à concepção de dignidade da pessoa humana que, por conseguinte,


reconhece o ser humano em conformidade à sua alteridade, conforme se demonstra,

a dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca e distintiva


reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito
e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando neste
sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem
a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua
participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e
da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido
respeito aos demais seres que integram a rede da vida. (SARLET, 2010,
p. 70).

Cotejando, assim, os conceitos, vê-se que a dignidade é predicado da essência


da pessoa humana, como algo inerente e intrínseco à própria condição de humano,
não se tratando, portanto, de mera criação constitucional, mas de concretização dos
direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana não pode ser entendida apenas
como um princípio da ordem jurídica, já que é fator essencial da ordem política, social,
econômica e cultural – searas que respaldam, dentre outros, o chamado direito à
moradia.
A metodologia utilizada para este trabalho caracteriza-se por uma abordagem
qualitativa, de natureza exploratória e, como métodos de procedimento, as pesquisas
bibliográfica e documental, amparadas na legislação constitucional pátria; Declaração
Universal dos Direitos Humanos; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA COMO MÍNIMO EXISTENCIAL


E SUA EFETIVAÇÃO À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

O Direito à Moradia emerge da proclamação da Dignidade da Pessoa Humana,


sendo garantia constitucional expressamente prevista no rol de Direitos Sociais, no
artigo 6º da Constituição Federal de 1988, doravante CRFB/1988, consagrado
mediante Emenda Constitucional de número 26 no ano de 2000 2, e encontra amparo
na teoria do mínimo existencial, que institucionaliza uma malha de proteção aos
direitos fundamentais e sociais. É recente a inclusão do direito à moradia no rol dos
direitos fundamentais sociais, contudo, constata-se que, em algum grau, o
ordenamento pátrio já reconhecia e protegia a moradia mesmo no plano constitucional
(Art. 7º, Inciso IV, CRFB/1988).

Além disso, sempre haveria como reconhecer um direito fundamental à


moradia como decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana
(art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), já que este reclama, na sua
dimensão positiva, a satisfação das necessidades existenciais básicas
para uma vida com dignidade, podendo servir até mesmo como
fundamento direto e autônomo para o reconhecimento de direitos
fundamentais não expressamente positivados, mas inequivocamente
destinados à proteção da dignidade. (SARLET, 2008, p. 5).

2
Por força da PEC nº 60/98, Deputada Federal Almerinda Carvalho, relatora.
948

Verifica-se ter sido em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos


da Organização das Nações Unidas (ONU), o momento em que, pela primeira vez,
restou assinalado o reconhecimento pela ordem internacional dos assim denominados
direitos econômicos, sociais e culturais, dentre os quais o direito à moradia. Se no
plano interno o trato da matéria foi recentemente codificado no âmbito internacional,
dentre os instrumentos incorporados ao ordenamento brasileiro por força do Art. 5º,
§2º da Constituição Federal de 1988, destacam-se a Declaração Universal de Direitos
Humanos de 1948 da ONU; O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais (PIDESC), 1966 e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 19693
da Organização dos Estado Americanos (OEA), porque são plenamente consoantes
ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana e fundamentam, direta ou
indiretamente, quer estejam positivados, quer não, os direitos humanos e
essencialmente, os direitos fundamentais, alcançando, portanto, o Direito à Moradia.
Entende-se por Direito à Moradia Digna, a posse de um lugar que ampare e
resguarde a intimidade, com condições para que se desenvolvam práticas
substanciais da vida. Trata-se de uma garantia deveras elementar, sendo instrumento
de conjunção e acesso aos demais direitos, como o direito à cidade, ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado e todos aqueles entendidos por fundamentais.

A moradia consiste em bem irrenunciável da pessoa natural, indissociável


de sua vontade e indisponível, que permite a fixação em lugar
determinado, não só físico, como também a fixação dos seus interesses
naturais da vida cotidiana, exercendo-se de forma definitiva pelo indivíduo
e, secundariamente, recai o seu exercício em qualquer pouso ou local,
mas sendo objeto de direito e protegido juridicamente. O bem da “moradia”
é inerente à pessoa e independente de objeto físico para a sua existência
e proteção jurídica. Para nós, “moradia” é elemento essencial do ser
humano e um bem extrapatrimonial. “Residência” é o simples local onde
se encontraria o indivíduo. E a habitação é o exercício efetivo da “moradia”
sobre determinado bem imóvel. Assim, a “moradia” é uma situação de
direito reconhecida pelo ordenamento jurídico. (SOUZA, 2004, p. 45).

O direito à moradia, a partir da sua condição de direito fundamental, insere-se


no contexto daquilo que dispõe o artigo 5º, parágrafo 1º, da CRFB/1988, ou seja, as
normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são imediatamente aplicáveis
e vinculam diretamente as entidades estatais e os particulares.
Analisa-se, na esteira do cumprimento do direito fundamental à moradia,
oportuna discussão que se institucionaliza na doutrina e nos tribunais brasileiros. A
dualidade dos debates se apresenta, por um lado, na defesa de que a efetivação
desse direito, imprescindível para manutenção da integridade e da vida humana, deva
ser observada de forma obrigatória e imediata e, por outro lado, na alegação de que,
tocante à seara econômica, cabe à Administração Pública analisar e arbitrar sobre os
custos relativos para execução e cumprimento de tais direitos.
De acordo com a segunda interpretação, o ente público poderia se valer da
chamada “reserva do possível”4 a fim de eximir-se de sua obrigação prestacional. Este
instituto, pode ser compreendido como uma limitação fática e jurídica oponível, ainda
que de forma relativa, à realização de direitos fundamentais, em virtude de uma
escassez econômica que pode ser real ou ficta de recursos, cujo efeito é uma limitação

3
Subscrita em San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1966.
4
Instituto originário da experiência da Corte Constitucional alemã (Vorbehalt des Möglichen), em 1970. Versou sobre a
pretensão dos estudantes em aumentar a quantidade de vagas ofertadas nas universidades públicas daquele país.
949

ao exercício, sobretudo, do processo de efetivação dos direitos sociais. (SARLET;


FIGUEIREDO, 2008, p. 216).
Pondera-se, entretanto, que um dos papeis fundamentais do Estado é a busca
pelo cumprimento dos direitos consagrados pela legislação, independentemente de
sua natureza político-administrativa, bem como de sua política econômica, se
ortodoxa ou heterodoxa, de modo a efetivamente garantir o dito mínimo existencial.
Nesta toada, tem-se o poder público como agente da produção do espaço público
urbano, enquanto responsável pela execução e controle de políticas públicas que
fundamentem e ofereçam critérios para implementação de políticas habitacionais,
sendo inconfundível política urbana e política habitacional. As políticas públicas
voltadas à habitação – que deveriam, a priori, ser realizadas pelo Poder Executivo
mediante programas governamentais que atendam uma demanda coletiva – quando
omissas, encontram no Poder Judiciário a possibilidade de concretização e de
efetivação do Direito à Moradia.
Nesse sentido, tem-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal na
ADPF nº 45 MC/DF, que tem gerado divergência e expôs as situações passíveis de
intervenção do poder Judiciário nas políticas públicas efetivadoras de direitos
econômicos, sociais e culturais, em face da liberdade de conformação do legislador e
consequente controle destas. No âmbito da mesma ADPF, tratou-se a questão do
custo dos direitos e da escassez de recursos em sua amplitude. A ADPF em questão,
confere legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder judiciário em
tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de
abusividade governamental; dimensão política da jurisdição constitucional atribuída
ao Supremo Tribunal Federal e oponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos
direitos sociais, econômicos e culturais. Por consequência, o Direito à Moradia se
insere nesse rol.

CONCLUSÃO

Quando o Estado não atende uma determinada demanda, o Poder Judiciário é


provocado e se utiliza de remédios próprios, buscando que a Administração Pública
cumpra determinada ordem. Entende-se necessário remediar – dialogicamente –
essas remissões políticas, sendo o poder judiciário o catalisador deliberativo na
promoção de diálogo institucional. José Joaquim Gomes Canotilho é um crítico da
concepção, afirmando que se aderiu à construção dogmática da reserva do possível
para traduzir a ideia de que os direitos sociais só existem enquanto houver
disponibilidade nos cofres públicos, e, um direito social sob “reserva dos cofres cheios”
não equivale a nenhuma vinculação jurídica. (CANOTILHO, 2004, p. 481).
Leciona Flávia Piovesan que "a violação aos direitos sociais, econômicos e
culturais é resultado tanto da ausência de forte suporte e intervenção governamental,
como da ausência de pressão internacional em favor dessa intervenção". (PIOVESAN,
2013. p. 200).
Na observação prática que versa sobre alegações estatais de impossibilidade
de prestação positiva face ao Direito à Moradia, o Supremo Tribunal Federal vem, em
suas decisões, afastando a recepção da reserva do possível como um argumento
válido, que não justificam, por si, o descumprimento pelo Estado de seus deveres,
especialmente nos casos em que o direito pleiteado incorpora o mínimo existencial.
O que se evidencia na experiência urbana e habitacional brasileira é que,
apesar de toda conjuntura normativa que determina, conduz e oferece parâmetros
pela implementação de políticas habitacionais, e da cinesia democrática popular,
950

mediante movimentos sociais e demais entidades, o país registrou em 2015, segundo


os Dados Estatísticos sobre o Déficit Habitacional Brasileiro – recolhidos pela
Fundação João Pinheiro em parceria com o Ministério das Cidades, Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) – um déficit habitacional de 6.186.503 em total absoluto de
moradias.

As causas desse fenômeno multifacetado são muitas e incluem não


apenas a pobreza extrema, mas também a falta de moradias de interesse
social, a especulação no mercado de terra e moradia, a migração urbana
forçada ou não planejada e a destruição ou deslocamentos causados por
conflitos, desastres naturais ou grandes projetos de desenvolvimento.
(ROLNIK, 2009).

Ocorre que a Constituição Federal brasileira vigente – em seus Títulos VI - Da


tributação e do orçamento; VII - da Ordem Econômica e Financeira; e VIII - Da Ordem
Social – preconiza o afastamento do caráter meramente programático das normas
sociais, uma vez que existe respaldo formal sobre a atribuição de competências para
efetivação de direitos instituídos no próprio texto constitucional. A legislação pátria, ao
assegurar determinado direito, traz em seu arcabouço aparatos jurídicos com
respostas econômicas e financeiras para a concretização destas garantias
fundamentais.
Portanto, a otimização da eficácia jurídica e social do direito à moradia e dos
direitos fundamentais sociais, depende majoritariamente, de uma escolha política que
verse sobre uma eficiente maneira de conduzir as políticas públicas voltadas para
moradia e habitação.

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952

OS DESAFIOS PARA A INCLUSÃO DOS REFUGIADOS NA SOCIEDADE


BRASILEIRA
CHALLENGES FOR THE INCLUSION OF REFUGEES IN BRAZILIAN SOCIETY

Kaleandra de Castro Lima


Renata Cristina Araújo
Newton Teixeira Carvalho

Resumo: O presente trabalho, cuja linha de pesquisa subsidiou a elaboração do


projeto intitulado “Os desafios para a inclusão dos refugiados na sociedade brasileira”
tem por objetivo, através de dados estatísticos e informativos, depoimentos e
pesquisas mostrar as principais dificuldades enfrentadas pelos refugiados ao adentrar
no território brasileiro. Por ser um país signatário da convenção de 1951, o Brasil tem
recebido um número considerável em seu território. Diante desse fluxo de indivíduos,
ficou evidente as dificuldades que existem no acolhimento, decorrentes da ausência
de programas e atuação estatal. A pesquisa proposta pertence a vertente
metodológica jurídico-sociológica e o tipo de investigação escolhido foi, na
classificação Witker (1985) e Gustin (2010), o tipo jurídico-interpretativo.
Palavras Chave: Crise dos Refugiados; Desafios; Inclusão.

Abstract: The present works, whose research line supported the elaboration of the
project entitled “Challenges for the inclusion of refugees in Brazilian society" aims,
through statistical and informational data, testimonials and researches show the main
difficulties faced by refugees when they entering in the Brazilian territory. For being a
signatory country of the 1951 convention, Brazil has received a considerable number
in the territory. It was evident the difficulties that exist in the reception of these people,
although the absence of programs and state action. The proposed research belongs
to the juridical-sociological methodological aspects and the type of research chosen
was, in the Witker (1985) and Gustin (2010) classification, the juridical-interpretative
type.
Keywords: Refugee Crisis; Challenges; Inclusion.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A atual crise de refugiados tem atingido o mundo inteiro. Conforme dados


fornecidos pelo relatório da ONU, em 2016, o grupo de pessoas que se deslocou de
seus países fugindo de perseguições políticas e guerras chegou a 65,6 milhões.
Diante disso, os refugiados estão em busca, cada vez mais, do Brasil como território
de sua nova morada. Essa busca decorre de uma série de fatores, como a política de
bom acolhimento conhecida no exterior, ausência de conflitos internos e externos,
fatores climáticos e territoriais, dentre outros.
No entanto, existem uma série de dificuldades encontradas pelos indivíduos
que estão em estado de refúgio desde o momento que eles saem de seu país de
origem, entram no Brasil e tentam se estabelecer.
Logo, objetiva-se, com o trabalho, analisar como essas dificuldades,
decorrentes de aspectos burocráticos, sociais e culturais prejudicam ainda mais a
inserção do indivíduo em estado de refúgio em uma nova sociedade, dificultando sua
socialização, recepção e o início de uma vida nova.
Esta pesquisa pertence à vertente jurídico-sociológica. O raciocínio
desenvolvido na pesquisa será predominantemente dedutivo. Desta forma, a pesquisa
953

se propõe a constatar os problemas que ocorrem, verificar a importância do tema e


analisar dados e estatísticas em relação a recepção e acolhimento dos refugiados na
sociedade brasileira.

2. O REFÚGIO

O refúgio é um direito dos estrangeiros resguardado pela Convenção de 1951,


no âmbito internacional, a qual é criadora do Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados (ACNUR). Estipula regras que tem por finalidade a constituição de
um instituto jurídico universal que proteja as pessoas que se veem em situação de
perseguição por motivos religiosos, raciais, opiniões políticas, grupos sociais, e que
por isso tenham que sair do seu país de origem.
A convenção define como refugiado:

1) Que foi considerada refugiada nos termos dos Ajustes de 12 de maio


de 1926 e de 30 de junho de 1928, ou das Convenções de 28 de outubro
de 1933 e de 10 de fevereiro de 1938 e do Protocolo de 14 de setembro
de 1939, ou ainda da Constituição da Organização Internacional dos
Refugiados; 2) Que, em conseqüência dos acontecimentos ocorridos
antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de
raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se
encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude
desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não
tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência
habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido
ao referido temor, não quer voltar a ele. (ONU, 1951).

Tendo em vista as novas realidades mundiais e os novos conflitos, a convenção


foi emendada em 1967, de modo a abrigar todos os refugiados, retirando a delimitação
imposta no inciso I do antigo texto.
O Brasil, além de ser signatário da ACNUR, também legisla sobre o assunto no
âmbito interno através da Lei 9.474/97, a qual institui o Comitê Nacional para
Refugiados (CONARE), órgão responsável por cuidar da situação dos refugiados em
todos os aspectos. Essa Lei define como refugiado, além dos já considerados pela
convenção, os que “devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é
obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”(
BRASIL,1997).

3. AS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELOS REFUGIADOS

Segundo dados divulgados pelo CONARE no relatório “Refúgio em Números”,


o Brasil reconheceu, até o ano de 2017 um total de 10.145 refugiados de diversas
nacionalidades. Além disso, nesse mesmo ano, foram solicitados 33.866 pedidos de
refúgio, número muito elevado se comparado com os anos anteriores, a exemplo de
2016 que foram apenas 6.287 pedidos. Esses dados mostram como o país vem
crescendo como opção de refúgio, porém é possível dizer que cresce com esses
número o despreparo para recepcionar essas pessoas.
A dificuldade dos refugiados começam antes de chegar ao Brasil com a
solicitação de visto. De acordo com a artigo 7 da lei 9474 a solicitação de refúgio é
feita em território nacional. A lei dispõe nos seguintes termos: “O estrangeiro que
chegar ao território nacional poderá expressar sua vontade de solicitar
reconhecimento como refugiado a qualquer autoridade migratória que se encontre na
954

fronteira, a qual lhe proporcionará as informações necessárias quanto ao


procedimento cabível.”(BRASIL,1997).
Por conta deste requisito os refugiados acabam tendo que arcar com todos os
custos para a documentação e obtenção do visto, dificultando assim a vinda para o
país nos casos de ser o país de origem distante no Brasil.
Em relação aos países que fazem fronteira, como é o caso da Venezuela, a
principal dificuldade encontra-se em passar pela polícia federal e pelos próprios
moradores locais, que fazem resistência a sua chegada e os expulsam de volta
contrariando o § 1º do artigo 7 da lei 9474, que diz que em hipótese alguma poderá
ser feito a deportação nos casos indicados por essa lei (BRASIL,1974). Exemplo disso
foi os vários casos de expulsão dos refugiados venezuelanos realizados por meio de
ônibus e com a ajuda da polícia federal que ocorreu no norte do país . Nesse sentido:

A gente estava deportando porque estava gerando um impacto social


muito grande, essas pessoas no sinal pedindo dinheiro. Então vinha uma
cobrança da sociedade roraimense em cima da Polícia Federal para tomar
alguma medida contra isso. A única medida que tínhamos à disposição
era deportar",.Mas isso [as deportações] é praticamente enxugar gelo,
você tira hoje e amanhã está tudo de volta. E agora todos eles já
descobriram a palavra mágica do refúgio, então não dá nem mais para
realizar tantas deportações, disse à DW Brasil o chefe da Delegacia de
Polícia de Imigração do estado de Roraima, delegado Marcos Ribeiro
(ESTARQUE, Marina. 2016)

Ao entrarem no país a solicitação é feita, e o documento provisório é entregue


para ser utilizado enquanto o pedido é avaliado. No entanto, esse processo passa a
ser demorado, uma vez que a própria polícia federal não tem o conhecimento do
procedimento a ser feito, e por isso passam para órgãos voluntários o papel de instruir
os recém chegados, com isso contrariam mais uma vez o artigo 7. Além disso, muitas
instituições não aceitam o documento provisório como é o caso dos bancos.
Entendem como arriscado a abertura de contas, por exemplo, para pessoas que estão
em situação instável, e sem endereço fixo, outro problema que será comentado mais
à frente. Há também a recusa de instituições como o Sistema Único de Saúde, fato
que gera indignação por ser um órgão público que não reconhece um protocolo que é
expedido por um órgão do Poder Público também.
A integração dessas pessoas na sociedade também é bastante complicada.
Começando com o fato do preconceito derivado das informações midiáticas e
irresponsáveis que colocam o refugiado como ameaça tanto social como econômica,
essas pessoas passam a ter problemas com sua cor, nacionalidade e cultura, tendo
que se restringir por medo de represálias. Nesse aspecto, é preciso considerar que:

Os noticiários de TV, as manchetes de jornal, os discursos políticos e os


tuítes da internet, usados para transmitir focos e escoadouros das
ansiedades e dos temores do público, estão atualmente sobrecarregados
de referências à “crise migratória”- que aparentemente estaria afundando
a Europa e sinalizando o colapso e a dissolução do modo de vida que
conhecemos, praticamos e cultivamos. (BAUMAN, 2016, p.7).

A língua também é um fator que dificulta a permanência dessas pessoas no


país. A dificuldade de comunicação fazem com que essas pessoas fiquem aquém de
serviços essenciais a sua existência e manutenção no Brasil, como é o caso da
obtenção de empregos.
955

Juntamente com a dificuldade da língua e o preconceito, temos o problema de


conseguir moradia e trabalho para essas pessoas. Muitos pessoas preferem não
alugar suas casas para refugiados, por ter em mente uma visão preconceituosa em
relação aos refugiados. Esse problema é amenizado com a ajuda das ONG’s, porém
não é completamente resolvido. Alguns abrigos limitam a estadia a 3 meses, devido
ao número crescente de refugiados que chegam ao Brasil. Mas como já dito, o
preconceito limita os lugares para que possam fazer morada. Além disso, existe ainda
uma a resistência em dar trabalho para essas pessoas, mesmo tento elas
capacidades além do requisitado para o emprego, restando para elas trabalhos
precários e sem os benefícios e proteções trabalhistas concedidas pelo direito
brasileiro.

Nas partes “desenvolvidas” do planeta, em que tanto migrantes


econômicos quanto refugiados buscam abrigo, os integrantes
empresariais desejam com firmeza (e dão boas vindas) o influxo de mão
de obra barata e de habilidades lucrativamente promissoras(...) para a
massa da população, já assombrada pela fragilidade existencial e pela
precariedade de sua condição e de suas expectativas sociais, esse influxo
sinaliza ainda mais competição pelo mercado de trabalho, uma incerteza
mais profunda e chances declinantes de melhoramento: um estado mental
politicamente explosivo - com políticos oscilando com dificuldade entre os
desejos incompatíveis de satisfazer seus amos detentores de capital e
aplacar o medo dos eleitores. (BAUMAN, 2016, p.9-10)

Por fim, há a dificuldade em validar os diplomas e o acesso ao Ensino Superior.


A validação tem um custo elevado no país que segundo a ADUS (Instituto de
Reintegração de Refugiados) é em torno de três mil reais. Já o acesso ao Ensino
Superior exige documentação referentes à conclusão de ensino médio, histórico
escolar entre outros, porém a maioria dos refugiados não trazem consigo tais
documentos e é extremamente complicado requerê-los.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base no exposto acima é notório que existem uma série de problemas que
dificultam a inserção do refugiado na nossa sociedade. Essas dificuldades resultam
de diversos segmentos, como a burocracia inerente ao aparato Estatal, o preconceito
e a xenofobia intrínseca na comunidade e as avenças culturais encontradas em
diversas condutas, mesmo que diárias.
Verifica-se ainda que, mesmo o país sendo signatário de diversos tratados
internacionais e possuir a própria Lei do Refúgio, apresenta diversos casos graves de
violação à essas leis e aos direitos humanos. Logo, fica claro que apenas a redação
de um texto legal não é suficiente, devendo haver uma maior fiscalização de
organismos de proteção aos direitos humanos.
Ademais, foi trabalhado durante o texto problemas derivados diretamente dos
trâmites administrativos como a expedição de certificados e a tentativa de inclusão no
ensino superior. De fato, é evidente que uma relativização desses procedimentos
poderia contribuir para a diminuição do problema relativo a contratação dos
refugiados, visto que eles possuiriam um diploma emitido diretamente pelo governo
brasileiro.
Percebe-se por fim que a inserção em um grupo social também é um problema,
mas como abordado no trabalho, é minimizado graças a diversas instituições, como
as ONG´s e igrejas, presentes em diversos estados brasileiros, que contribuem com
956

moradia, trabalho e serviços básicos, que em muitos casos seriam papel


governamental. É cada dia mais recorrente campanhas online, feiras e eventos com
o intuito único de ajudar a incluir refugiados na sociedade brasileira.

5. REFERÊNCIAS

AGÊNCIA DA ONU PARA REFUGIADOS. ACNUR. Deslocamento forçado atinge


recorde global e afeta uma em cada 113 pessoas no mundo. Disponível em:
<http://www.acnur.org/portugues/noticias/noticia/deslocamentoforcado-atinge-
recorde-global-e-afeta-uma-em-cada-113-pessoas-nomundo/>.Acesso em: 17 de
outubro de 2018.
BAUMAN, Zygmunt. Antropológicas versus temporárias: as raízes do ódio. In:
BAUMAN, Zygmunt, Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. p. 119.
BRASIL (Município). Projeto de Lei nº 01-00142/2016 do Executivo, de 2016. . São
paulo, 2016. Disponível em:
<http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/ direitos_humanos/PL
142_2016_Pt.pdf>. Acesso em: 15 de abril de 2018.
BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9474.htm>.Acesso em: 15 de setembro de 2018.
BRASIL. Ministério da Justiça e Cidadania. Comitê Nacional para Refugiados -
CONARE. Sistema de refúgio brasileiro: desafios e perspectivas. Brasília:Ministério
da Justiça, 2016b.
DOM TOTAL. Uma geração de crianças perdida pelos traumas da guerra na Síria.
Disponível em: <http://domtotal.com/noticia/1132198/2017/03/uma-geracao-de-
criancas -perdida-pelos-traumas-da-guerra-na-siria>. Acesso em: 26 de abril de 2018.
ESTARQUE, Marina. PF aumenta deportações em RR por "cobrança da sociedade".
Made For Minds..Disponível em:< https://www.dw.com/pt-br/pf-aumenta-
deporta%C3%A7%C3%B5es-em-rr-por-cobran%C3%A7a-da-sociedade/a-
36735273>. Acesso em: 17 de outubro de 2018.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Convenção relativa ao estatuto
dos refugiados de 1951, de 28 de julho de 1951. Genebra. Disponível em:
<http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_
ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf?view=1>. Acesso em: 13 de outubro de 2018.
957

POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO AO TRABALHO ANÁLOGO À DE


ESCRAVO: UM CAMINHO PARA A ERRADICAÇÃO
PUBLIC POLICIES FOR PREVENTION OF LABOR ANALOGUE OF SLAVERY: A
WAY FOR ERADICATION

Jéssica Yume Nagasaki


Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis
Eduardo Henrique Lopes Figueiredo

Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo apresentar e discutir a efetividade


das políticas públicas de prevenção ao trabalho análogo à de escravo no Brasil. Tem
o intuito de mostrar que por meio da prevenção é possível atingir a erradicação da
prática e cumprir o estabelecido pela Convenção nº 105 da OIT, cuja ratificação foi
feita pelo Brasil. Utilizar-se-á como metodologia a pesquisa analítica, quanto ao
procedimento técnico utilizado, a pesquisa far-se-á pela combinação de propostas
investigativas, sendo a pesquisa bibliográfica somada à análise de dados, pois visa-
se extrair maiores informações para averiguar a existência e efetivação dessas
políticas. Têm-se como resultado parcial da pesquisa, a existência de políticas
públicas de prevenção ao trabalho análogo à de escravo no país, apresentando um
nível satisfatório de efetividade a erradicação por meio da educação e informação.
Palavras-chaves: Políticas Públicas; Prevenção; Trabalho Análogo à de Escravo

Abstract: The present research aims to present and discuss the effectiveness of
public policies to prevent slave labor in Brazil. It aims to show that through prevention
it is possible to achieve the eradication of the practice and to comply with the
established by ILO Convention 105, whose ratification was made by Brazil. Analytical
research will be used as a methodology, as for the technical procedure used, the
research will be done by a combination of research proposals, being the bibliographic
research added to the data analysis, since it is aimed at extracting more information to
ascertain the existence and effectiveness of these policies. The partial result of the
research is the existence of public policies to prevent slave-like work in the country,
with a satisfactory level of eradication through education and information.
Keywords: Public Policies; Prevention; Slavery

INTRODUÇÃO

A prática de trabalho análogo à de escravo no Brasil é algo recorrente, no


entanto, o país ao ratificar a Convenção nº 105 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) de 1959 por meio do Decreto nº 58.822 de 1966, compromete-se a
abolir a prática no território. Dessa forma, o Estado brasileiro assume um compromisso
em âmbito internacional na erradicação desta prática, se comprometendo a criar
instrumentos de combate, fiscalização e prevenção.
A presente pesquisa visa analisar as políticas públicas de prevenção ao
trabalho análogo à de escravo, a fim de demonstrar sua efetividade na erradicação da
prática. Para tanto, irá pesquisar-se a existência dessas políticas em âmbito nacional
por meio dos órgãos que atuam de forma positiva e enfática na erradicação do
trabalho análogo à de escravo, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Escravo
nem Pensar (ENP), Repórter Brasil, a própria Organização Internacional do Trabalho
e os órgãos governamentais.
958

Justifica-se o estudo do tema, pois embora tenha-se abolido a escravidão pela


lei áurea de 13 de maio de 1888, ela ainda persiste no país, com características que
mesclam entre moldes coloniais e contemporâneos. Além disso, o compromisso
firmado em âmbito internacional assume importante papel, visto que, impõe e espera-
se um comportamento do Estado no cumprimento deste tratado, considerado pelo
direito pátrio equiparado a uma emenda constitucional por versar sobre direitos
humanos na esfera internacional (EC 45/2004).
Diante disso, comprova-se a existência de políticas públicas de prevenção ao
trabalho análogo à de escravo no Brasil, mesmo sendo poucas em comparação com
a extensão do território e de sua importância na conscientização. Entretanto, quando
trata-se da efetividade, percebe-se que muitas atingem sua finalidade, ainda que, em
contrapartida ainda não diminua ou erradique por completo a prática.
Para a realização da presente pesquisa a metodologia adotada é analítica,
quanto ao procedimento técnico utilizado, a pesquisa far-se-á pela combinação de
propostas investigativas, sendo a pesquisa bibliográfica somada à análise de dados,
pois visa-se identificar se há políticas públicas de prevenção no Brasil, bem como sua
efetividade na erradicação do trabalho análogo à de escravo.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O trabalho análogo à de escravo em sua forma contemporânea é delimitado


por meio do Código Penal em seu Art.149 e Art.149-A, de modo que considera-se:
trabalho forçado; jornada exaustiva; condições degradantes ou; restringindo a
locomoção do trabalhador em razão de dívida com o empregador ou preposto. Diante
disso, configurando um desses requisitos, há trabalho análogo à de escravo, tal
alteração do Código Penal pela lei 10.803/2003 possibilitou uma abrangência para
enquadrar a conduta delituosa, não sendo apenas a questão da liberdade (BRITO
FILHO, 2013, p.68).
Diante disso, mesmo tendo respaldo legislativo quanto a criminalidade de quem
submete o ser humano à condições análogas à de escravo, deve-se aderir
instrumentos que possibilitem a conscientização da população quanto a prática e, para
isso, a criação de políticas públicas de prevenção torna-se a melhor forma para atingir
este fim. Considera-se como políticas públicas o “programa ou quadro de ação
governamental, porque consiste num conjunto de medidas articuladas (coordenadas),
cujo escopo é dar impulso, isto é, movimentar a “máquina do governo”, no sentido de
realizar algum objetivo de ordem pública ou, na ótica dos juristas, concretizar um
direito” (BUCCI, 2006, p.14).
Para tanto, uma política pública deve-se atentar e ser pensada de acordo com
o contexto, com o intuito de ser formulada em etapas que possam atingir sua
efetividade, diante disso, deve se atentar a estratégia das fases, sendo composta pela
agenda, elaboração, implementação e avaliação das políticas públicas
(VILLANUEVA, 1993). Assim, quando abordamos na pesquisa as políticas públicas
de prevenção ao trabalho análogo à de escravo, estas devem seguir as quatro fases
para que seja possível alcançar a efetividade no plano real.
Como destaque de políticas públicas de prevenção no Brasil, lista-se algumas
para o embrião da pesquisa, sendo uma delas a Campanha de Prevenção e Combate
ao Trabalho Escravo, organizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), cujo tema
é “de olho aberto para não virar escravo”. Essa política, engloba tanto a frente de
prevenção, quanto combate, pois a equipe da CPT encontra-se nas principais rotas
que presenciam o aliciamento de trabalhadores. Somado a isso, há a promoção de
959

semanas que comunicam e informam sobre modos de prevenção em todo território


nacional, focando principalmente nos estados com mais incidência da prática (CPT,
2010, s/p).
Outra política pública é o Projeto da Escravo nem Pensar (ENP), cujo o meio
de prevenção ocorre pela educação. O projeto conta com a participação de
profissionais multidisciplinares, o objetivo é formar educadores e profissionais da rede
públicas de ensino, que contribuam para a erradicação da prática. Ainda há a
produção de conteúdo, distribuídos gratuitamente, tendo cunho pedagógico e
informativo. Além disso, o projeto conta com parcerias tanto do setor público quanto
do privado para o desenvolvimento de suas ações (ENP, 2018, s/p).
O Projeto ENP atua desde 2007, concentrando-se em localidades que
apresentam um alto índice de trabalhadores em situação análoga à de escravo, no
caso as ações ultrapassam mais de 250 munícipios, compreendo os estados de São
Paulo, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, Bahia, Tocantins, Pará, Maranhão, Ceará
e Piauí. Tais ações, causaram o impacto a 700 mil pessoas, por meio de educação e
informação. Para tanto, percebe-se que o meio utilizado pelo projeto é a educação,
principalmente voltadas para o público infantil e jovem, de modo que é possível aferir
a efetividade ao analisar os resultados dos projetos conforme a atuação em casa
estado do país. Conforme, demonstra o os últimos dados do Projeto da ENP em
relação ao estado do Pará, em que houve a implantação do projeto em 295 escolas
de 47 munícipios do estado, resultando na prevenção de 250.775 pessoas, utilizou-se
a abordagem por meio de uma cartilha educativa (ENP, 2018, s/p). Frisa-se que o
estado do Pará lidera o ranking de estados brasileiros que apresentam um alto índice
de trabalhadores análogos à de escravo, sendo que entre o ano 2003 e 2017 foram
resgatados 9.918 trabalhadores (MPT, 2018, s/p).
Somado a isso, também há a criação do Pacto Nacional pela Erradicação do
Trabalho Escravo, fruto de um consenso da Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República (SEDH), a ONG Repórter Brasil, o Instituto Ethos e a
Organização Internacional do Trabalho (OIT). O objetivo do pacto é atingir as
empresas brasileiras e multinacionais, visando a não utilização de mão-de-obra
escrava, pois a adesão ao pacto é voluntária, cabendo a própria empresa adotar as
diretrizes do expostas no pacto, inclusive na prevenção (OIT, 2008, s/p). O Pacto
conta com dez ações, em que as empresas signatárias devem adequá-las ao seu
regimento, sendo monitoradas e, como resultado podem ser suspensas ou excluídas
do pacto. Como efeito do Pacto, criou-se em 2013 o Instituto Pacto Nacional pela
Erradicação do Trabalho Forçado (InPACTO), seu escopo é atingir de forma direta o
pacto, criando projetos e articulando com as empresas formas de não existir em suas
cadeias produtivas trabalho análogo à de escravo (InPACTO, 2018, s/p).
Percebe-se que as políticas públicas de prevenção tem um papel primordial
para a erradicação da prática, constando como uma das frentes abordadas pelo II
Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, cuja as ações são diversas,
incluindo responsáveis, parceiros e o prazo para a realização desses projetos. Tais
ações formam um ciclo que envolve tanto aspectos gerais; de enfrentamento e
repressão; reinserção e prevenção; informação e capacitação e; por fim, de repressão
econômica (SEDH, 2008).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como resultado parcial da presente pesquisa, comprova-se a existência de


políticas públicas de prevenção ao trabalho análogo à de escravo no âmbito nacional,
960

atuando de forma ativa quanto ao combate e erradicação da prática. No entanto, as


formas de prevenção embora apresentem um nível satisfatório de efetividade,
principalmente as relacionados a educação e informação sobre a existência da
prática, ainda é necessário articular-se com as demais frentes de combate, como a
fiscalização, combate, prevenção a reincidência, ou seja, formando um ciclo.
Embora os planos nacionais e internacionais abordem a prevenção como uma
das medidas, percebe-se que a junção de órgãos governamentais, privados e a
sociedade civil é imprescindível, pois formam um relação triangular, em que a
comunicação deve estar presente. A prevenção deve ocorrer especialmente nas
localidades/munícipios, já que o problema em questão é visto mais facilmente e,
portanto, saber identifica-lo é um caminho para prevenir futuros trabalhadores a
submissão desta prática.

REFERÊNCIAS

BUCCI, Maria Paula Dallari (Org). Políticas Públicas: Reflexões sobre o conceito
jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. II
Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Secretaria Especial dos
Direitos Humanos. – Brasília: SEDH, 2008.
BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Trabalho Descente – Análise Jurídica da
Exploração do Trabalho – Trabalho Escravo e outras formas de trabalho indigno. 3º
ed. Editora Ltr. São Paulo. 2013.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Campanha de Prevenção e Combate ao
Trabalho Escravo. Pub. 03 de mai. 2010. Disponível em: <
https://www.cptnacional.org.br/index.php/component/content/article?id=195:campanh
a-de-prevencao-e-combate-ao-trabalho-escravo>. Acesso em 16 out. 2018.
_______. “de olho aberto para não virar escravo”. Disponível em: <
https://www.cptnacional.org.br/campanhas-e-articulacoes/campanhas/campanha-de-
prevencao-e-combate-ao-trabalho-escravo>. Acesso em 16 out. 2018.
ESCRAVO NEM PENSAR. ENP! Previne 250 mil do trabalho escravo no PA. 15 de
out.2018. Disponível em: < http://escravonempensar.org.br/2018/10/enp-previne-250-
mil-do-trabalho-escravo-no-pa/>. Acesso em 17 out. 2018.
_______. Sobre. Disponível em: < http://escravonempensar.org.br/sobre/>. Acesso
em 17 out.2018.
InPACTO. Quem somos. Disponível em: < http://www.inpacto.org.br/pb/>. Acesso em
17 out.2018.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Observatório Digital do Trabalho Escravo no
Brasil. Disponível em: < https://observatorioescravo.mpt.mp.br/>. Acesso em 16 out.
2018.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Pacto Nacional pela
Erradicação do Trabalho Escravo completa três anos. 20 de maio 2018. Disponível
em: https://www.ilo.org/global/topics/forced-labour/news/WCMS_097929/lang--
es/index.htm>. Acesso 18 out. 2018.
VILLANUEVA, L.F.A. Estudio introductorio. In: Villanueva, L.F.A. La hechura das
Políticas Públicas. México. Porrua Editores. Pp.15-84, 1996.
961

Grupo de trabalho:

DIREITOS HUMANOS III


Trabalhos publicados:

A IMPORTÂNCIA DO CASO BACSZKOWSKI PARA O DIREITO INTERNACIONAL

AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE: UM PASSO RUMO À DIGNIDADE


DO PACIENTE

BREVE ANÁLISE DO DIREITO À SEGURANÇA PESSOAL NAS FRONTEIRAS DO


MERCOSUL SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS
HUMANOS

DIREITOS HUMANOS E O REGIME JURÍDICO DO RESIDENTE FRONTEIRIÇO NO


BRASIL

INTERVENCIONISMO ESTATAL NA FORMALIZAÇÃO DE MODELOS PRÉ-


DEFINIDOS DAS RELAÇÕES AFETIVAS

NORMAS DE PROTEÇÃO À MELHER CONTRA A VIOLÊNCIA BASEADA NO


GÊNERO, NOS PAÍSES DA CPLP – UM ESTUDO COMPARADO

O CASO POVO INDÍGENA XUCURU E MEMBROS VS. BRASIL NA CORTE


INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA SOB O ENFOQUE DA


PARTURIENTE

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA COMO UMA FORMA DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS


FUNDAMENTAIS DA MULHER DURANTE A ASSISTÊNCIA AO PARTO
962

A IMPORTÂNCIA DO CASO BACSZKOWSKI PARA O DIREITO INTERNACIONAL


THE IMPORTANCE OF THE BACSZKOWSKI CASE FOR INTERNATIONAL LAW

Lucas André de Castro de Carvalho


José Guilherme Cardoso Chagas
Valter Moura do Carmo

Resumo: O trabalho discute a importância que o caso Bacszkowski teve para o direito
internacional uma vez que tratou de temas relacionados à liberdade de expressão e à
inserção da população LGBTQIA+ na sociedade. Utilizou-se o método dedutivo, com
pesquisa bibliográfica, principalmente em artigos científicos internacionais, como
forma de embasar a pesquisa e expor os diversos questionamentos acerca do
assunto. Tratou do fato em si, desde os acontecimentos e argumentos usados pelas
partes até a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Segue-se discutindo
como os fatores históricos, tangentes às sentenças reiteradas da Corte Europeia,
auxiliaram na resolução desse caso. Ressalta-se o papel “iluminista” que os juízes
detêm porque a partir de seus ditames, mesmo confrontando a ideologia
predominante em uma nação, conseguem fazer com que novos valores sejam
enraizados na sociedade. Conclui-se, que o veredito de Bacszkowski v. Polônia retrata
um marco para o direito, potencializando os princípios norteadores da justiça.
Palavras-chave: Direito Internacional. Liberdade de Expressão. Inclusão.

Abstract: This paper discusses the importance that the Bacszkowski Case had for
international law, since it addressed issues related to freedom of expression and the
insertion of the LGBTQIA+ population in society. The deductive method was used, with
bibliographical research, mainly in international scientific articles, as a way to base the
research and to expose the various questions on the subject. We addressed the fact
itself, from the events and arguments used by the parties to the decision of the
European Court of Human Rights. This was followed by a discussion on how the
historical factors related to the repeated rulings of the European Court helped in the
resolution of this case. We highlight the "enlightenment" role that judges hold, because
from their judgment, even when confronting the prevailing ideology in a nation, they
are able to make new values be rooted in society. We concluded that the verdict of
Bacszkowski vs. Poland portrays a milestone for law, by enhancing the guiding
principles of justice.
Keywords: International Law. Freedom of Expression. Inclusion.

INTRODUÇÃO

Os direitos das minorias por vezes não são respeitados e o presente trabalho
tem por objetivo estudar um caso relevante no Direito Internacional, que confirmou os
direitos comunidade LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais,
Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromântiques/Agênero, Pan/Poli e mais).
Utilizou-se no estudo o método dedutivo, com pesquisa bibliográfica, tendo como
marco referencial o pesquisador Daniel Borrillo. Quanto ao caso em comento, Tomasz
Baczkowski, juntamente com outros quatro participantes organizavam uma
manifestação pacífica pelas ruas de Varsóvia em nome da fundação a qual faziam
parte, a “Fundação para a Igualdade” (Fundacja Równsci). Manifestação essa
denominada “Dias de Igualdade” que aconteceria entre os dias 10, 11 e 12 de junho
de 2005, contando com marchas pelas principais avenidas da capital polaca e
963

comícios realizados em sete diferentes praças. O movimento seria em prol da


comunidade LGBTQIA+, direitos das mulheres e das pessoas com deficiência.
Seguindo a devida burocracia os representantes da fundação apresentaram
seu pedido ao órgão administrativo competente no dia 12 de maio de 2005, assim
tendo a realização do evento sido permitido legalmente. Entretanto, um representante
do prefeito de Varsóvia negou o pedido em 3 de junho de 2005, alegando que os
requerentes não haviam apresentado documentação devida. Esta deveria
supostamente trazer um “plano de tráfego” para assim acordar com o artigo 65 do
Código de trânsito uma vez que, inevitavelmente um evento desse porte certamente
influenciaria no fluxo de automóveis. Um pouco antes desse fato, no dia 20 de maio
de 2005, a Gazeta Wyborcza publicou uma entrevista feita com o prefeito da cidade,
onde este afirmou que as manifestações acima tratadas não passavam de
propaganda sobre a homossexualidade, portanto isso não conferiria a capacidade de
exercício da liberdade de reunião.
No dia 9 de junho o prefeito reiterou a decisão de seis dias atrás sob as
disposições contidas na Lei de Assembleias de 1990 (deferindo que movimentos de
liberdade de expressão poderiam ser limitados caso oferecesse alguma ameaça à
moral e à saúde), somado ao fato de que, no mesmo dia, permitiu a manifestação de
grupos com ideologias contrárias à Fundacja Równsci tais como “Contra a adoção de
crianças por casais homossexuais” e “Os cristãos que respeitam as leis naturais de
Deus”. Como estes movimentos contrários seriam realizados, ironicamente, no
mesmo dia em que o evento “Dias de Igualdade” o governo alegou que a proibição se
fazia necessária para que não houvesse conflitos entre os manifestantes. Apesar da
decisão tomada no dia 3 de junho de 2005 três mil pessoas foram às ruas de Varsóvia,
em nome da fundação no 11 de junho do mesmo ano, reclamando seus direitos
(ECHR, 2007).

DESENVOLVIMENTO

Os membros da fundação abriram uma reclamação com base no artigo 11 da


Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 1950 que fala sobre Liberdade de
Reunião e Associação. O tribunal polonês havia entendido que, por conta da proibição
do ato, o governo não seria legalmente obrigado a dar suporte policial para proteger
os manifestantes dos possíveis ataques contra eles, desencorajando os integrantes
do movimento. A contra argumentação embasada no Artigo 65 do Código de Trânsito
polonês não foi aceito pela Corte Europeia de Direitos Humanos.
A Fundação trouxe à baila ao seu pedido o artigo 13 alegando que,
internamente, não foram oferecidos remédios constitucionais a tempo para sanar a
problemática. Apesar do governo polonês dizer o contrário (insistindo que haviam
remédios para tal) a Suprema Corte acabou por interpretar que Baczkowski e seus
colegas haviam dado aviso prévio sobre o evento, portanto os erros no que tangem à
burocracia da questão foram do governo e não dos manifestantes.
Por fim os defensores dos direitos da livre orientação sexual utilizaram-se do
artigo 14 (conjugado com o artigo 11) suplicando a devida proibição de discriminação
e gozo de direitos iguais para com outros indivíduos da sociedade. Embasados na
entrevista dada pelo prefeito no dia 20 de maio de 2005 a Corte Europeia reconheceu
a influência ideológica, e não legal, que teve a proibição por parte do governo.
Obviamente que a decisão acima proferida pelo Tribunal Europeu de Direitos
Humanos foi a mais equitativa e justa possível, contudo essa parcela da população
nem sempre gozou de decisões que garantiam os seus direitos. Analisando outras
964

decisões, observa-se uma evolução jurisprudencial no que concerne as minorias aqui


tratadas. Essa mudança foi crescente após a Segunda Grande Guerra e influenciou
sobremaneira o caso aqui tratado.
Em 1956 tivemos um caso de um cidadão alemão, homossexual, que sofreu
sanção de reclusão de sua liberdade pelo simples fato de ser comprovadamente
homossexual. O requerente havia sofrido sanções antes por conta da mesma
“infração”, contudo a do ano de 1956 foi a sua última pena (12 anos de reclusão) após
o mesmo ter saído de um campo de concentração por manter relações homo afetivas
sendo maior de 21 anos. A Comissão (já extinta pelo Protocolo n° 11) rejeitou as
exigências do alemão, que proclamavam incoerência entre o artigo 175 do código
penal alemão (proibindo relações homossexuais entre maiores de 21) e a Convenção,
alegando que qualquer Estado contratante poderia criminalizar a homossexualidade
(BORRILLO, 2017, p. 4).
Conseguimos vislumbrar uma transição para a tolerância da homossexualidade
anos mais tarde, especificamente em 1977. Utilizando-se do artigo 8 da Convenção1
a Comissão começa a olhar com outros olhos as relações homoafetivas e em 1981
recomenda aos países signatários que acabem com a discriminação contra cidadãos
homossexuais. Contemplando a recomendação nas seguintes decisões judiciais
(BORRILLO, 2017, p. 5):
1°- Norris v. Irlanda de outubro de 1988: aqui, o senador irlandês D. Norris
apresentou uma ação em 1977 pedindo para que o governo anulasse as legislações
que criminalizavam sexo entre homens adultos. Após o ocorrido Norris sofreu
ameaças e insultos. O CEDH, por fim, confirmou que houve violação da privacidade
de Sr. Norris, defendendo, pois, a livre orientação sexual (mesmo que indiretamente)
(BORRILLO, 2017, p. 7).
2°- Sutherland v. Reino Unido de julho de 1997: pela primeira vez a Comissão,
com base nos artigos 8 e 14 da Convenção2, igualou as idades de maioridade entre
heterossexuais e homossexuais pois a diferença de idade, segundo o Tribunal, é uma
violação nítida dos mencionados artigos (BORRILLO, 2017, p. 9-10).
3°- Salgueiro da Silva Mouta v. Portugal de março de 2000: após o divórcio do
português com sua ex-cônjuge ele começa a morar com seu parceiro. O homem, já
assumido sexualmente, reclama a custódia da filha de 8 anos alegando que a família
de sua antiga parceira era inadequada por uma série de fatores. Em um primeiro
momento o Tribunal de Lisboa, após confirmar que o fato exposto era real, deu a
custódia da filha ao casal homoparental. Entretanto, o Tribunal da Família entrou em
choque com o CDS (partido conservador cristão de Portugal) pois este reclamou a
custódia da filha à pátria pois, segundo eles, não seria saudável para uma criança se
desenvolver em um ambiente sem a figura materna. Em suma, o caso foi solucionado
pelos artigos já mencionados proferidos pela CEDH (BORRILLO, 2017, p.10-11).
4° EB v. França de janeiro de 2008: uma mulher francesa fora recusada de
exercer adoção de uma criança pelo fato de ser lésbica. Após reclamar para a corte
residente em Estrasburgo, sem muitas complicações, foi confirmada violação dos
artigos integrantes da convenção e concluiu-se discriminação por conta da orientação
sexual da requerente. Esse caso influenciou fortemente outro parecido em 19 de
fevereiro de 2013 na Áustria (BORRILLO, 2017, p. 14-15).

1
Artigo 8, Convenção Europeia dos Direitos dos Homens, 1950. Com as modificações introduzidas pelos Protocolos nos 11 e
14 acompanhada do Protocolo adicional e dos Protocolos nos 4, 6, 7, 12, 13 e 16.
2
Artigos 8 e 14, Convenção Europeia dos Direitos dos Homens, 1950. Com as modificações introduzidas pelos Protocolos nos
11 e 14 acompanhada do Protocolo adicional e dos Protocolos nos 4, 6, 7, 12, 13 e 16.
965

O caso foi dissecado por um grupo de seis juízes 3, presididos por Nicolas
Bratza. A importância desse seleto grupo de aplicadores do direito torna-se clara
quando Barroso (LENZA, 2018, p. 87) elucida que em nome da razão e da justiça,
contra o senso comum dos integrantes da sociedade, o Poder Judiciário empurra-nos
para o progresso social. Assim torna-se nítido o uso da terminologia “iluminista”, pois
mediante à razão e aos princípios norteadores fundamentais do direito que o Judiciário
age muitas vezes. O mesmo autor ainda destaca que tal protagonismo desse papel
deve ser moderado, afinal apresenta um certo risco ao regime democrático pois a
decisão cabe, nesse caso, apenas ao Poder conferido aos magistrados.

CONCLUSÃO

Dados os expostos, fica nítido que, gradativamente, a jurisprudência vem


refletindo o progresso, tanto no campo das ideias quanto no campo do direito, da
equidade de tratamento entre os indivíduos de suas respectivas sociedades. O caso
Bacszkowski é de suma importância, um divisor de águas por assim dizer. Não era
apenas um requerente, por trás havia mais de 3000 pessoas envolvidas diretamente
nas manifestações, erguendo uma bandeira e representando não só os poloneses de
orientação sexual não-majoritária, mas de todos os que se identificam com ela. O
Direito tomou forma e deu o devido respaldo legal, evidenciando para o mundo que
agora a ciência já vai se desprendendo das amarras conservadoras de antigas
doutrinas e ideologias retrogradas. As decisões acima expostas deram segurança
jurídica e reforços legais necessários para que o objetivo de todo um povo fosse
alcançado. Bacszkowski e Outros v. Polônia deve grande parte de sua eficaz
realização para os magistrados pertencentes a Corte que o julgaram gozando de
imensa responsabilidade e bravura, assumiram, pois, o papel “Iluminista”. Este fincara
raízes que darão frutos ideológicos mais justos para as próximas gerações.
Por fim, concluímos que por mais dificultoso que seja, a progressão dentro do
direito no que tange seus princípios fundamentais é evidente. Casos como o aqui
trabalhado e outros foram de suma importância para reiterar pensamentos mais
lógicos e justos do ponto de vista jurídico. O Direito Internacional como ciência conta
com as três grandes Cortes Internacionais de Direitos Humanos, e esta caminha a
largos passos para um futuro melhor. Futuro este que antigos aplicadores, de antes
da virada do milênio, talvez jamais sonhassem. Evidencia-se aqui a enorme
importância que a Fundacja Równsci teve indiretamente no direito, garantindo-lhe um
pouco mais de sentido, pois o que se espera do direito são resultados justos.

REFERÊNCIAS

BORRILLO, Daniel. Homosexualidad y Derechos Humanos. METAXY: Revista


Brasileira de Cultura e Políticas em Direitos Humanos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, mar.
2018. Disponível em: <
https://revistas.ufrj.br/index.php/metaxy/article/view/14154/10148>. Acesso em: 10
nov. 2018.
ECHR. European Court of Human Rights. Case of Baczkowski and others v.
Poland. Application no. 1543/06. 2007. Disponível em:
<https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22fulltext%22:[%22Baczkowski%22],%22docume
ntcollectionid2%22:[%22GRANDCHAMBER%22,%22CHAMBER%22],%22itemid%2
2:[%22001-80464%22]}>. Acesso em: 15 nov. 2018.
3
Nicolas Bratza, J. Casadevall, S. Pavlovschi, L. Garlicki, L. Mijović, J. Šikuta, P. Hirvelä
966

ECHR. European Court of Human Rights. Convenção Europeia dos Direitos do


Homem, 1950. Disponível em:
<https://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf>. Acesso em: 10 nov.
2018.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 22. ed. São Paulo: Saraiva,
2018
967

AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE: UM PASSO RUMO À DIGNIDADE


DO PACIENTE
THE ADVANCED DIRECTIVES OF WILL: A STEP FORWARD THE PATIENT’S
DIGNITY

Mônica Augusta Barroso da Costa

Resumo: Durante certo período de tempo, a relação entre médico e paciente foi
regida pelo paternalismo médico. Essa postura, legitimada, por gerações pela própria
sociedade, no atual estágio de desenvolvimento humano e social, não representa
mais a complexidade que envolve tratamentos médicos. As diretivas antecipadas de
vontade são, portanto, instrumentos capazes de blindar a autonomia da vontade e a
dignidade do paciente. Compreendendo tal contexto, esse trabalho busca analisar as
diretivas, examinar suas características, assim como o tratamento normativo conferido
dentro do Brasil para esses documentos. Além disso, tem-se como objetivo uma
reflexão, sob um viés cultural, da própria concepção da sociedade brasileira sobre tal
tema.
Palavras-chave: Diretivas antecipadas de vontade, dignidade humana, autonomia da
vontade

Abstract: Over a period of time, the doctor-patient relationship was ruled by medical
paternalism. This posture, legitimated during generations by society itself, in the
current stage of human and social development, no longer represents the complexity
that involves medical treatments. Advance directives of will are, therefore, instruments
capable of shielding the autonomy of the will and the dignity of the patient.
Understanding this context, this work aims to analyze the directives, examine their
characteristics, as well as the normative treatment conferred within Brazil for these
documents. In addition, the objective is also to reflect, under a cultural bias, on the very
conception of brazilian society on such a theme.
Key words: Advance directives of will, human dignity, autonomy of the will

1. INTRODUÇÃO

As relações médicas sempre estiveram, para a sociedade humana, envoltas


em um grande misticismo, ainda que se resista em reconhecer tal caráter. A figura do
médico, durante muito tempo, personificou praticamente um papel de deidade.
Tratava-se afinal de sujeito capaz de transpassar os limites biológicos, enganar a
morte, salvar a vida de seu paciente.
Nesse viés de cura irrefreável, a posição do paciente foi relegada ao limbo.
Obviamente que não se fala na completa desconsideração de sua figura, mas
simplesmente na constatação de que, durante esse período, o papel a ser
desempenhado pelo paciente resumia-se ao de ser salvo apenas. A autonomia do ser
humano tornava-se assim embaçada frente à figura do médico-deus.
Esse paternalismo era legitimado não só pelo próprio corpo de profissionais,
mas também pela própria sociedade (BEYER, 2010, p. 2). Por deter um conhecimento
inacessível à maioria dos membros do grupo social, o médico adquire esse status de
detentor de conhecimentos inquestionáveis. Dessa forma, compartilhar decisões
médicas com o paciente tornou-se uma prática avessa ao exercício da Medicina.
Com a insurgência da autonomia da vontade dentro de prática médica,
obviamente a posição paternalista, consagrada até então, inicia seu declínio. O
968

paciente, finalmente, passa a ocupar um papel ativo. Cultiva-se a partir de então a


ideia de que a condição de enfermidade não extirpa a dignidade inerente a cada ser
humano, mas, pelo contrário, a intensifica. Dessa forma, como sujeito titular de direitos
e de vontade, o paciente passa a constituir parte ativa na tomada de decisões que
recaem sobre seu próprio corpo e sua qualidade de vida.
Esse processo reflete a evolução dos debates relacionados à ética médica
conjuntamente com o próprio desenvolvimento científico da Medicina. Com
surgimento de técnicas capazes de prolongar a vida biológica por um período antes
inimaginável, surgem os questionamentos quanto aos limites de tais práticas. Essa
reflexão ganha reforço ainda maior quando incide, sob a situação em análise, a
vontade expressa do paciente em determinado sentido.
Um paciente, detentor de dignidade e de autonomia, ao expressar sua vontade
pela realização ou não de determinado tratamento alcança que repercussão na prática
médica? Esse questionamento orienta um momento completamente novo dentro da
Medicina e também do próprio Direito. Isso porque a manifestação de vontade desse
paciente ultrapassa as barreiras dos meros cuidados curativos e alcança o âmbito de
incidência da ciência jurídica: a proteção de prerrogativas e direitos titularizados por
um sujeito.
É nesse contexto de mudança que as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV)
ganham destaque. Como máximas expressões da autonomia do paciente, esses
documentos irão concretizar, em um momento futuro, a vontade do enfermo. Buscam
assim uma projeção à determinada oportunidade que ainda está por vir, mas que,
quando se concretizar, impossibilitará a expressão desimpedida dos desejos do
paciente. As DAV são, portanto, documentos que apresentam instruções e comandos
acerca de cuidados médicos futuros aos quais o paciente, impossibilitado de
expressar sua vontade, será submetido (DADALTO, 2015, p. 5).

2. DIRETIVAS ANTECIPADAS: CONCEITOS INTRODUTÓRIOS E REFLEXÕES

As DAV, sem sobra de dúvida, correspondem a instrumentos concretizadores


da dignidade humana e da autonomia do paciente. Isso porque elas permitem uma
conservação do desejo do indivíduo. Com a sua elaboração, os profissionais de saúde
atuantes no tratamento médico, a partir do seu conhecimento, ficam vinculados às
previsões contidas, devendo assim tomar todas as medidas para que a vontade
daquele indivíduo seja respeitada.
Como primeira consideração a ser feita especificamente sobre o tema, é
necessário destacar que as Diretivas Antecipadas de Vontade são um gênero que
comporta duas espécies: (i) o mandato duradouro e (ii) o testamento vital. Na primeira
modalidade, o paciente previamente outorgará poderes específicos a um terceiro, de
modo que, em momento que não possa manifestar-se, seu procurador deverá ser
consultado pela equipe médica quanto às diretrizes de cuidado a serem observados.
Já no testamento vital, de maneira diversa da primeira espécie, não há a
atribuição a um terceiro do poder de tomada de decisões médicas. Pelo contrário, o
próprio paciente, em momento prévio, dispõe detalhadamente sobre os parâmetros a
serem adotados pela equipe médica. Constitui assim um documento escrito,
elaborado pelo paciente, informando quais procedimentos deseja que sejam
adotados. À exemplo, em seu testamento vital, um paciente poderá trazer a previsão
de que deseja ser submetido a cuidados paliativos, ao contrário da manutenção de
um tratamento médico fútil.
969

Aproveitando o ensejo, a futilidade é conceito extremamente importante na


abordagem de uma DAV. Isso porque, pelas limitações apresentadas pelo
ordenamento jurídico, nem toda disposição de vontade poderá figurar em um
testamento vital. Existem, portanto, marcos limitadores, impostos pelo próprio sistema
jurídico, quanto ao conteúdo que poderá ser obedecido quando do cumprimento da
diretiva.
No caso específico do ordenamento jurídico brasileiro, por exemplo, um
testamento vital que solicite a realização de eutanásia ou desligamento de máquinas
sem que seja declarada a morte cerebral não poderá ser obedecido (LIPPMANN,
2013, p. 43). Dessa forma, é importante destacar, para a compreensão do tema, que
uma Diretriz Antecipada de Vontade poderá versar apenas quanto aos tratamentos
considerados fúteis ou inúteis para uma melhora no quadro clínico do paciente.
Afinal, não se busca com tais documentos extirpar a missão última dos
profissionais de saúde, que é a de salvar vidas. O conteúdo de uma DAV, portanto,
recai em um espaço relacionado a condutas médicas que, se adotadas, provocariam
simplesmente um prolongamento do sofrimento do paciente e não um progresso em
sua saúde. Assim, incidirá a autonomia do paciente sobre os chamados tratamentos
desproporcionais e extraordinários, que representem mera obstinação terapêutica.
Nas vozes de importantes expoentes do tema, portanto, a matéria abordada
em um testamento vital, por exemplo, girará em torno de tratamentos ou
procedimentos que não apresentarão benefício algum ao paciente, apenas
deteriorando a sua já debilitada qualidade de vida. É nesse sentido, o posicionamento
de Luciana Dadalto (2009, p. 535).

As disposições que digam respeito à recusa de tratamentos fúteis serão


válidas, como, por exemplo, não entubação, não realização de
traqueostomia, suspensão de hemodiálise, ordem de não reanimação,
dentre outros; e a definição de futilidade deve ter em conta a inexistência
de benefícios que este tratamento trará ao paciente. Por esta razão,
disposições acerca da suspensão de hidratação e alimentação artificial
também não serão validades no ordenamento jurídico brasileiro.

Luís Roberto Barroso e Letícia de Campos Velho Martel (2010, p. 241), ao tratar
sobre dignidade e autonomia no fim da vida, também dispõem que “a retirada de
suporte vital (RSV), a não-oferta de suporte vital (NSV) e as ordens de não-
ressuscitação ou de não-reanimação (ONR) são partes integrantes da limitação
consentida de tratamento”.
Vale o destaque obviamente de que o conteúdo previsto na Diretiva versará
sobre tratamentos extraordinários e sua aceitação ou negação. Dessa forma, tanto a
previsão de que devem ser realizados ou que não devem são abarcadas pela figura
da DAV.
Por fim, por ser negócio jurídico, para a produção de regulares efeitos, uma
Diretriz Antecipada deverá cumprir os requisitos de validade previstos no Código Civil.
Por ter regulação normativa esparsa no país, entretanto, há ainda significativa
insegurança quanto aos requisitos de necessária obediência para validade uma
Diretiva Antecipada de Vontade.
Na Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) n. 1.995/2012,
documento mais próximo de uma regulação federal que possuí o país, as diretivas
poderão ser, inclusive, transmitidas oralmente ao profissional de saúde, que anotará
tais disposições no prontuário do paciente, conforme prevê seu art. 2º. §4º.
970

Na concepção daqueles que advogam sobre o tema das Diretivas, há quem


sustente, inclusive, que, para atribuir maior força ao documento e evitar contestações
judiciais, sejam obedecidos os requisitos dos demais testamentos informais previstos
no art. 1.876 do Código Civil (LIPPMANN, 2013, P. 39). Afinal, se observada apenas
a Resolução n. 1.995/2012, por exemplo, não há a obrigatoriedade de testemunhas,
de registro em cartório ou de uma necessária revisão passado determinado período.
Afinal, como atribuir a máxima vinculação a tais documentos quando sua
credibilidade pode ser posta em cheque, por exemplo, pela ausência de testemunhas
que comprovem a lucidez do paciente no momento de sua elaboração? É certo,
portanto, que o vácuo legislativo hoje existente permite que tão importante ferramenta
ainda seja cercada por um ar de inconsistência ou instabilidade.
A própria utilização dessa ferramenta encontra, portanto, barreiras na falta de
regulamentação. Os passos minúsculos dados até o presente momento dentro de
nosso ordenamento jurídico não se demonstram como suficientes para transpor os
óbices na disseminação das Diretivas Antecipadas de Vontade. A inércia legislativa,
aliada a um desconhecimento da população quanto a estes instrumentos, permite
assim que a concretização de princípios tão caros ao ordenamento jurídico fique
relegada ao limbo.

3. A CARÊNCIA DE NORMAS E SEU REFLEXO NO DESCONHECIMENTO DO


TEMA

As Diretivas Antecipadas de Vontade, dentro de outros ordenamentos


jurídicos, já alcançam um patamar de desenvolvimento em muito superior ao do Brasil.
A começar com os Estados Unidos, por exemplo, país pioneiro na previsão desse
documento, sob a alcunha de living will, as DAV foram a muito reguladas. O Patient
Self Determination Act (PSDA), de 1990, representa um marco na consagração da
autonomia do paciente e no reconhecimento de sua dignidade humana.
A partir da experiência norte-americana, as Diretivas Antecipadas espalharam-
se pelo mundo. Afinal, é mais do que certo que o fim da vida, ainda mais um com
qualidade, é matéria que interessa a todo ser humano, independentemente de sua
nacionalidade. Desde então, diversos países já reconheceram a importância do tema,
fomentando um aparato normativo e social para que tais disposições de vontade se
proliferem no âmbito médico.
Um exemplo interessante a ser destacado é o de Portugal. Conjuntamente com
a elaboração de um diploma legislativo que dispôs sobre os aspectos jurídicos das
Diretivas Antecipadas, foi criado, conjuntamente, um banco nacional para depósito
desses documentos. Dessa forma, com a instituição do programa normativo, o
Registro Nacional do Testamento Vital (RENTEV) foi inaugurado pelo governo
português com vistas a democratizar a elaboração e guarda desses documentos.

Artigo 15.º da Lei n. 25/2012 - Criação do Registo Nacional de Testamento


Vital
1 — É criado no ministério com a tutela da área da saúde o Registo
Nacional do Testamento Vital (RENTEV), com a finalidade de rececionar,
registar, organizar e manter atualizada, quanto aos cidadãos nacionais,
estrangeiros e apátridas residentes em Portugal, a informação e
documentação relativas ao documento de diretivas antecipadas de
vontade e à procuração de cuidados de saúde.

A criação de um aparato de tamanha magnitude, apesar de muito interessante,


ainda representa um cenário utópico na realidade brasileira. Apesar dos avanços da
971

medicina, associados à intensificação de debates relacionados à deontologia médica


no seio da sociedade, o tratamento das diretivas antecipadas ainda avança de
maneira lenta e despretensiosa.
Embora o tema seja de nuclear importância para a prestação de um cuidado
assistencial-clínico, as Diretivas Antecipadas ainda permanecem relegadas a um
ostracismo injustificável. Medidas tão essenciais, capazes de consagrar a dignidade
de um indivíduo em um dos momentos mais frágeis de sua existência, não avançam
em debates e permanecem perpetuando um quadro de paternalismo e verticalidade,
onde o paciente, embora possa desejar em sentido contrário, será submetido aos
desígnios de um terceiro, o médico.
A inércia do legislativo reflete na própria condução de projetos de lei que
busquem a regulação dessa matéria. Apesar de diversos países já possuírem
legislações prevendo as Diretivas Antecipadas, inclusive Estados latino-americanos,
como Argentina, Colômbia, Uruguai e Porto Rico, e do fato de que o instituto das
Diretivas já existe há quase 3 décadas, os dois únicos projetos de lei voltados a
normatização das DAV, no Brasil, datam de 2018. Isso significa que até esse ano, não
havia nem mesmo um esboço sendo analisado pelo Poder Legislativo com vistas
normatizar esses documentos.
Ambos os Projetos de Lei são do Senado e corriam pelos números 149/2018,
de autoria do parlamentar Lasier Martins (PSD/RS) e 267/2018, de autoria de Paulo
Rocha (PT/PA). Usa-se a flexão verbal no tempo pretérito, pois há dois meses o PL
n. 267/2018 foi retirado de pauta por seu autor e arquivado sem ao menos receber um
único parecer de qualquer Comissão Legislativa ou emenda pelos parlamentares
integrantes do Senado Federal.
Resta, portanto, em tramitação apenas o PL n. 149/2018. A situação,
entretanto, pode não ser das mais animadoras, tendo em vista que desde março, o
projeto aguarda a elaboração de parecer na Comissão de Assuntos Sociais. Esse
cenário legislativo, no mínimo moroso, apenas salienta a posição de retaguarda que
o país escolheu adotar no trato desse tema.
Essa lentidão com que tal tema é tratado pelo legislativo acabar por refletir um
cenário consagrado pela própria sociedade brasileira. Isso porque, no viés da
interpretação do princípio democrático, o grupo eleito representa os anseios da
população. Assim, se, na atual formação do Congresso Nacional, as Diretivas
Antecipadas de Vontade não compõem pauta política relevante, tal situação decorre
do próprio desprestígio que a sociedade confere ao tema.
Tal desatenção ao tema está inclusive presente no meio dos profissionais dos
quais se esperam o domínio do tema: médicos e juristas. Em estudo realizado entre
médicos, advogados e estudantes de ambas as áreas ficou constatado que menos de
um terço dos sujeitos possuem conhecimento pleno do Testamento Vital (PICCINI et
al, 2011, p. 7). Da amostragem utilizada, apenas 29,2% dos entrevistados informaram
possuir conhecimentos suficientes sobre a matéria.
Se o conhecimento para aqueles que, de forma alguma, compõem o conjunto
dos leigos sobre a matéria já é resumido e escasso, o que dizer de um indivíduo
médio, que não possui qualquer aprofundamento na ciência médica ou jurídica? Tal
desconhecimento, mesmo entre aqueles que, de certa forma, dedicam-se ao
conhecimento da matéria, demonstra uma cultura social que ainda não volta seus
olhos ao morrer digno. O cuidado de pacientes que já não possuam assim chances
de recuperação fica certamente abalado por tal constatação, bem como a autonomia
e dignidade titularizadas por esses indivíduos enfermos, mas ainda assim humanos
detentores de direitos a serem resguardados.
972

4. CONCLUSÃO

Nas palavras de Ronald Dworkin (2003, p. 280), “é uma obviedade afirmar que
vivemos toda nossa vida à sombra da morte; também é verdade que morremos à
sombra de toda nossa vida”. De tal afirmação um tanto poética, pode-se retirar o
entendimento de que, mesmo próximo à morte, um indivíduo conserva os vestígios do
que foi no ápice de sua vida. Dessa forma, não constitui raciocínio lógico forçado a
constatação de que a dignidade do homem o segue até o último instante.
Essa aderência à condição de pessoa humana denota a importância do tema
ora exposto dentro do universo médico e jurídico. Os avanços da medicina podem
permitir, por tempo indeterminado, um prolongamento artificial da vida biológica.
Entretanto, sob a perspectiva de um ser autônomo e digno, é certo acatar a vontade
daqueles que entendem que essa vida plástica não corresponde ao que projetaram
para si mesmos.
Por tal razão as Diretivas Antecipadas de Vontade são mais do que meras
construções jurídicas. Dentro da atual fase de desenvolvimento científico e social, as
DAV representam a concretização da autodeterminação inerente a cada indivíduo.
Representam assim uma nova fase da relação entre médico, paciente e sociedade.
Pois bem mais do que um assistencialismo paternal e absoluto, busca-se, no atual
momento, a conservação da qualidade de vida que aquele indivíduo teve garantida
por toda sua existência.
A experiência do ser humano e do corpo social com a morte mudou. A medicina
possibilita hoje prorrogação praticamente ad eternum da existência de um indivíduo.
Entretanto, bem mais do que uma continuação arbitrária, precisa-se visar a dignidade
e a autonomia do paciente.
A obstinação terapêutica, assim, configurada nos tratamentos extraordinários e
fúteis que apenas prolongam o sofrimento de uma pessoa, mas não necessariamente
importam em uma melhora em seu quadro é certamente matéria sobre o qual o
paciente que a suporta pode versar. O respeito às decisões do paciente é justamente
o principal objetivo das Diretivas Antecipadas de Vontade.
Alguns desejam continuar vivos pelo maior tempo que puderem, enquanto
outros não entendem da mesma maneira. A pluralidade que cerca o fim da vida é
perfeitamente abarcada pelas Diretivas que possibilitam o sim e o não de alguém que,
como durante toda a sua vida, merece, no fim dela, também ser respeitada.

5. REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto; Martel, L. de C.V. A morte como ela é: dignidade e


autonomia individual no final da vida. Revista da Faculdade de Direito UFU. 2010.
Disponível em
<http://www.seer.ufu.br/index.php/revistafadir/article/view/18530/9930>
BEIER, Mônica. Algumas considerações sobre o Paternalismo Hipocrático. Revista
Med Minas Gerais. 2010. Disponível em <rmmg.org/exportar-pdf/320/v20n2a15.pdf>
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 149 de 2018. Dispõe sobre as diretivas
antecipadas de vontade sobre tratamentos de saúde. Disponível em <
https://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=7653326&ts=1539197778543&dis
position=inline&ts=1539197778543>
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 267 de 2018. Dispõe sobre as diretivas
antecipadas de vontade acerca de cuidados médicos a serem submetidos os
973

pacientes nas situações especificadas. Disponível em <


https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?d
m=7737732&ts=1538690016446&disposition=inline&ts=1538690016446>
DADALTO, Luciana. Declaração prévia de vontade do paciente terminal. Revista
Bioética. 2009. Disponível em
<revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/download /515/516>
DADALTO, Luciana. Diretivas Antecipadas de Vontade e Mistanásia por erro médico:
debates e possibilidades. Revista de Direito Civil Contemporâneo. Vol. 4. Revista dos
Tribunais. 2015.
DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010
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974

BREVE ANÁLISE DO DIREITO À SEGURANÇA PESSOAL NAS FRONTEIRAS DO


MERCOSUL SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO INTERNACIONAL DOS
DIREITOS HUMANOS
A BRIEF ANALYSIS OF THE RIGHT TO PERSONAL SECURITY AT MERCOSUR
BORDERS UNDER THE PERSPECTIVE OF INTERNATIONAL HUMAN RIGHTS
LAW

Elio Ricardo Chadid da Silva


Vladimir Oliveira da Silveira

Resumo: Na presente pesquisa aborda-se, sob a perspectiva do Direito Internacional


dos Direitos Humanos, a problemática da criminalidade transnacional nas fronteiras
dos países do Mercosul, como isso afeta os indivíduos e se o direito à segurança
pessoal, entendido como garantia dos direitos à vida e à integridade pessoal, é
salvaguardado pelos atores internacionais. Depois de traçar-se um panorama da
violência decorrente da atividade criminosa e suas vítimas nas regiões fronteiriças,
discute-se se a efetividade dos direitos humanos, naquelas regiões, pode ser
alcançada pelo método tradicional de combate à criminalidade, em que se aplicam
apenas as leis nacionais dos membros do bloco sul-americano, ou se outros
paradigmas, como o da cooperação internacional, podem melhor servir à resolução
da problemática. Utiliza-se, para tanto, o método hipotético-dedutivo, e as técnicas
descritiva, documental e bibliográfica.
Palavras chave: Direito Internacional dos Direitos Humanos; Direito à Segurança
Pessoal; Mercosul.

Abstract: In the present research it is approached, from the perspective of the


international human righs law, the problem of transnational crime at the borders of the
Mercosur countries, as it affects individuals and if the right to personal security,
understood as a guarantee of the rights to life and to personal integrity, is safeguarded
by international actors. After an overview of the violence resulting from criminal activity
and its victims in the border regions, it is discussed whether the effectiveness of human
rights in those regions can be achieved by the traditional method of combating crime,
in which only the laws of the members of the South American bloc, or whether other
paradigms, such as international cooperation, can better serve the solution of the
problem. The hypothetical-deductive method, and the descriptive, documentary and
bibliographic techniques, are used.
Keywords: International Human Rights Law; Right to Personal Security; Mercosur.

INTRODUÇÃO

O atual estágio da globalização, vivenciado principalmente a partir das últimas


décadas do século XX, traz diversas consequências no cenário internacional, sendo
uma delas a mudança do conceito de fronteiras, que anteriormente serviam de limites
entre territórios, dentro dos quais um determinado Estado exercia sua soberania.
Atualmente, não passam de marcos formais, dada a enorme porosidade de tais
regiões, que proporciona enorme fluxo de pessoas e bens entre países contíguos. Por
conta disso, as fronteiras não exercem mais sua função originária de proteção e
vigilância territoriais, o que propicia também o incremento de atividades de
organizações criminosas nessas regiões, consoante se observa por análise de dados
oficiais acerca do assunto.
975

Diante da atuação contundente das organizações criminosas nas fronteiras, as


pessoas que habitam essas regiões ficam mais vulneráveis às ações violentas dos
criminosos transnacionais, necessitando, assim, de atuação mais proativa dos
Estados fronteiriços, com vistas a lhes franquearem, de forma efetiva, o direito à
segurança pessoal, que visa salvaguardar outros direitos correlatos, como o direito à
vida e à integridade física, moral e/ou psíquica.
Partindo-se dessa questão envolvendo o crime organizado transnacional, que
contrasta com a garantia do direito humano à segurança pessoal, a pesquisa objetiva
a análise das razões pelas quais as regiões fronteiriças, especialmente as do
Mercosul, são historicamente violentas, bem como se o atual modelo de
enfrentamento da situação é eficiente.
O trabalho se justifica pela necessidade de analisar-se o nível de proteção
posto à disposição dos cidadãos fronteiriços do Mercosul, uma vez que, em sendo
objetivo do bloco buscar a integração plena entre seus membros, é dever de todos,
via cooperação internacional, propiciar segurança aos habitantes das regiões
limítrofes entre as nações.
A pesquisa iniciará tecendo considerações acerca do direito à segurança
pessoal no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, com análise de seu
conteúdo nas organizações internacionais, dentre elas o Mercosul. Na sequência,
contextualizará como o direito à segurança pessoal vem sendo tratado nas fronteiras
do Mercosul e, finalmente, aventará a possibilidade da utilização da cooperação
regional como possível meio de efetivação do direito em destaque nas regiões objeto
do estudo.
O resumo utilizar-se-á do método hipotético-dedutivo, e das técnicas descritiva,
documental e bibliográfica.

O DIREITO À SEGURANÇA PESSOAL NO DIREITO INTERNACIONAL

No contexto jurídico mundial, o direito à vida é seguramente o direito angular


de todos os direitos em determinados momentos históricos, sendo basilar também no
âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos. A exceção ocorre em países
que admitiram e ainda admitem a pena de morte e outras condutas que relativizam
esse direito de natureza civilizatória.
Tomando-se por base essa premissa, surge a necessidade de se preservar o
direito à vida, para que o ser humano possa dela desfrutar com dignidade e em sua
inteireza. É esse pensamento que faz exsurgir o direito à segurança pessoal, que tem
por objetivo garantir não somente a vida, mas também a integridade física, psíquica e
moral dos indivíduos, razão pela qual passa a ser objeto de preocupação dos Estados
e das organizações internacionais.
Exemplo disso é a disposição do artigo III, da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), que estabelece que “todo ser humano tem direito à vida, à
liberdade e à segurança pessoal” (ONU, 1948). Como se infere da análise do
dispositivo da DUDH, é a partir da perspectiva de asseguramento do direito à
segurança pessoal como garantia do direito à vida (e também à liberdade) que a
questão se desenvolve no ordenamento jurídico internacional, tanto no âmbito da
ONU (sistema global de proteção dos direitos humanos), como nas esferas regionais,
como é o caso da Organização dos Estados Americanos (OEA), em especial na sua
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), e também do Mercado
Comum do Sul (Mercosul).
976

No âmbito da OEA, a preocupação com a garantia do direito à segurança


pessoal se intensifica a partir de 2008, quando se realizou, no México, a “Primeira
Reunião de Ministros em Matéria de Segurança Pública das Américas”, onde foi
firmado o “Compromisso pela Segurança Pública nas Américas”. No documento
estabeleceram-se algumas diretrizes com foco no respeito aos direitos humanos,
destacando-se o “fortalecimento da segurança fronteiriça, conforme os ordenamentos
jurídicos e administrativos dos Estados Membros, como forma de prevenir a
delinquência e a violência, sempre facilitando o fluxo legítimo de pessoas e bens”
(OEA, 2008).
Em 2010, a OEA, por sua Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
elaborou o “Relatório sobre Segurança Cidadã e Direitos Humanos”, que estabelece
recomendações, destacando-se: a) assumir o cumprimento de suas obrigações
internacionais de proteção e garantia dos direitos humanos em relação com a
segurança cidadã a partir da elaboração e implementação de políticas públicas
integrais que desenvolvam, de maneira simultânea, ações específicas e planos
estratégicos sob a ótica operacional, normativa e preventiva; e b) garantir a execução
por parte das forças policiais de todas as atividades operacionais que permitam a
implementação das funções de prevenção, dissuasão e repressão legítima de atos
violentos ou criminosos, como parte da obrigação do Estado de proteger e garantir os
direitos humanos comprometidos diretamente na política de segurança cidadã. (CIDH,
2010).
Já no Mercosul, o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do
Mercosul (IPPDH) lançou, em 2012, o documento “Produção e gestão da informação
e do conhecimento no campo da segurança cidadã: os casos da Argentina, Brasil,
Paraguai e Uruguai”. Consoante consta no documento, “o estudo propôs mapear,
identificar e descrever os tipos de sistemas de informação existentes nas áreas de
Justiça, Interior e/ou Segurança nos Estados parte do Mercosul em matéria de
violência e criminalidade”.
Sobreleva ressaltar que a falta de efetividade das medidas que objetivam a
minoração dos efeitos da prática de crimes transnacionais no Mercosul provavelmente
é fruto das mesmas dificuldades que a organização encontra para se consolidar como
bloco sub-regional de nações. Se o bloco, por diversos fatores, não é capaz nem de
consolidar suas metas de formação, como, por exemplo, as questões de livre
comércio, resta patente que encontrará percalços para implementar medidas efetivas
para oferecer segurança aos cidadãos sul-americanos.

O CONTEXTO DA SEGURANÇA PESSOAL NAS FRONTEIRAS DO MERCOSUL

Os relatórios sobre segurança pessoal elaborados tanto pela OEA quanto pelo
Mercosul apontam que a violência decorrente de práticas delituosas aumenta ano a
ano. O quadro é ainda mais preocupante nas fronteiras do Mercosul, por conta da
atuação de organizações criminosas transnacionais, responsáveis por vários
homicídios ligados a atividades de narcotráfico, tráfico de armas e contrabando. Em
contrapartida, as condutas de prevenção e repressão a esse tipo de atividade, que
põem em risco os habitantes dessas regiões, são escassas ou pouco efetivas.

A FRONTEIRA COMO ELEMENTO FACILITADOR DA PRÁTICA DE CRIMES

Em razão do grande avanço do fenômeno da globalização experimentado


principalmente a partir das últimas décadas do século XX, muito por conta do salto
977

exponencial da revolução tecnológica recente, as fronteiras entre os países passaram


por um processo de ressignificação. Essas regiões não servem mais de barreiras para
o trânsito de pessoas e bens, passando a representar apenas marcos formais, ou
limites de exercício da soberania exercida pelos países.
Junto com essa maior porosidade das fronteiras, que é desejável para uma
maior integração entre os povos, aumentou também a atuação das organizações
criminosas transnacionais nas faixas fronteiriças do Mercosul, haja vista que a baixa
eficácia de controle ou fiscalização das fronteiras, pelas autoridades, permite um
maior trânsito de tais organizações e dos produtos ilícitos (contrabando, armas,
drogas, etc.) decorrentes das atividades criminosas.
Em razão dessa maior permeabilidade das fronteiras, além da possibilidade de
aumento da prática de delitos transnacionais, pode-se observar, também, uma
facilitação de fuga de criminosos para países vizinhos quando se tenta realizar a
repressão legal e legítima dos delitos. Isso porque a jurisdição de determinado país
termina justamente no limite territorial com o país vizinho, o que impede os agentes
do Estado de combater eficazmente o problema, enquanto os criminosos
transnacionais podem circular de forma praticamente desembaraçada entre os
territórios de dois ou mais países, livres das amarras burocráticas estatais.

ANÁLISE DA EFETIVIDADE DA FORMA TRADICIONAL DE COMBATE AOS


CRIMES TRANSNACIONAIS

A partir da análise de estudos oficiais que tratam de crimes transnacionais,


constata-se que há um consenso de que é primordial a conjugação das forças
investigativas e acusatórias de todos os atores internacionais responsáveis para o
enfrentamento eficaz do problema.
Entretanto, a forma tradicional de combate à criminalidade nas fronteiras não
privilegia, como deveria, essa ideia de conjugação de forças entre as nações. É
comum constatar-se que cada país enfrenta o problema utilizando-se de seu próprio
arcabouço jurídico, de forma estanque e sem integração com seus vizinhos, o que
acaba por proporcionar o incremento das atividades criminosas internacionais, haja
vista que, geralmente, basta que o criminoso atravesse a linha de fronteira de volta
para seu país de origem para que se torne muito difícil puni-lo, uma vez que a
persecução criminal pelo país onde o crime foi cometido, esbarraria, na hipótese, na
questão da soberania da outra nação, que “protege” seu cidadão da incidência das
leis de outro país.
A questão fica ainda mais complexa quando se verifica que a persecução
criminal dentro de cada país do Mercosul, em relação a seus nacionais e aos crimes
cometidos nos próprios territórios, é pífia. Assim, se os países membros do bloco não
conseguem combater, eficazmente, nem os crimes praticados em seus próprios
territórios, é evidente que o combate aos crimes transnacionais, que são mais
complexos, resta prejudicado. Tais fatores geram, em relação aos agentes criminosos
internacionais, o que se chama de certeza da impunidade, do que decorre a conclusão
de que a forma tradicional de combate aos crimes transnacionais encontra-se
defasada.

AS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS DA VIOLÊNCIA NAS REGIÕES DE FRONTEIRA

É indubitável que o processo de globalização e, mais especificamente, o de


integração dos povos sul-americanos, com o fluxo de pessoas entre os países
978

contíguos, tende a impactar primeiramente os cidadãos fronteiriços. No contexto


pesquisado, de análise do direito à segurança pessoal, seria lógico pensar que os
governos dos países envolvidos deveriam dar maior atenção aos habitantes das
regiões fronteiriças, com maior suporte social e econômico, principalmente às pessoas
de baixa renda, que, por serem mais vulneráveis socialmente, costumam ser mais
atingidas pelos desmandos impostos pelo crime organizado internacional.
Todavia, parece não ser esse o cenário no bloco sul-americano, mormente na
região de fronteiras. Corrobora essa afirmação um estudo realizado pelo Instituto de
Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (IDESF)1 na região Centro-Oeste
do Brasil, que aponta que cidades fronteiriças do Estado de Mato Grosso do Sul (na
fronteira com o Paraguai e Bolívia), estão: a) entre as com renda per capta mais baixas
do país; b) com baixa empregabilidade; c) com altos índices de evasão escolar ainda
no ensino fundamental e; d) com números proporcionais de homicídios maiores do
que os da cidade do Rio de Janeiro. (IDESF, 2016).
Ainda a título de ilustração, pode-se mencionar o que ocorre na região Norte
do Brasil, no Estado do Acre (na fronteira com Bolívia e o Peru), que experimenta,
desde o ano de 2015, uma escalada de violência sem precedentes, por conta da
disputa travada entre facções criminosas que iniciaram uma verdadeira guerra, tendo
como objetivo a apropriação das rotas internacionais do tráfico de drogas. Desde o
ano de 2015 e até o ano de 2018 o número de homicídios no Estado saltou 150% em
relação a período imediatamente anterior, o que demonstra que o território estadual é
o que mais teve um incremento desse tipo de crime no país, segundo dados
estatísticos apurados pelo Observatório de Análise Criminal do Ministério Público do
Estado do Acre.
Convém frisar, também, que não são raras as vezes em que as populações
fronteiriças, justamente pelo baixo suporte social e econômico por parte dos Estados,
se veem obrigadas a se submeterem às regras impostas pelos criminosos
internacionais, sem contar os episódios em que os residentes dessas áreas são
cooptados pelas organizações criminosas para delas fazer parte.
É de bom alvitre ressaltar, ainda, que a munição do fuzil e o próprio armamento
presente nas comunidades dominadas pelo tráfico de drogas do Rio de Janeiro, ou o
crack que é consumido nas cracolândias dos grandes centros urbanos do país,
invariavelmente passam pelas fronteiras, o que demonstra que as consequências
sociais da violência nessas regiões não se limitam a elas, mas também avançam para
as demais partes dos países que as compõem.

COOPERAÇÃO REGIONAL COMO FATOR DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO À


SEGURANÇA PESSOAL NAS FRONTEIRAS DO MERCOSUL

A vasta região de fronteiras do Mercosul acaba se tornando um facilitador da


prática de crimes, e um dos fatores que certamente contribui para isso são os entraves
que o conceito de Estado soberano, a partir da clássica Teoria Geral do Estado, criam
para uma atuação integrada dos países fronteiriços. Segundo tal teoria, a soberania
do Estado não encontraria limite dentro do próprio território da qual emana, sendo um
poder uno, não contrastável por qualquer outro ente político nacional. Conforme essa
visão minimalista, a soberania bastaria a si própria, e regularia as relações de poder
em uma determinada nação. O problema surge quando esse pensamento é utilizado

1 O IDESF “é uma instituição sem fins lucrativos que objetiva a criação de mecanismos que promovam a igualdade e a integração
entre as regiões de fronteira, o fortalecimento das relações políticas, sociais e econômicas e o combate aos problemas próprios
destas regiões, por meio de estudos, ações e projetos” (http://www.idesf.org.br/).
979

como parâmetro para se sobrepor às normas de direito internacional, quando, então,


o direito nacional teria como optar pelo “reconhecimento” ou não das normas
internacionais.
Nesse contexto, o conceito de soberania, que também tem seu viés político,
pode servir de base para ações dos defensores do nacionalismo exacerbado, que não
raras vezes o utilizam em seus discursos políticos inflamados, principalmente quando
querem fazer valer alguma norma oriunda de seu país em detrimento de norma
estrangeira, ou como tentativa de esquiva de normas de direito internacional. Dallari
alerta para essa questão ao refletir sobre o conceito de soberania:

[...] Por isso mesmo, deu margem ao aparecimento de uma tão farta
bibliografia e à formulação de uma tal multiplicidade de teorias que acabou
sendo prejudicado, tornando-se cada vez menos preciso e dando margem
a todas as distorções ditadas pela conveniência. Essas distorções têm
sido uma consequência, sobretudo, da significação política do conceito,
que se encontra na base de seu nascimento e que é inseparável dele,
apesar de todo o esforço, relativamente bem-sucedido, para discipliná-lo
juridicamente. Atualmente, porém, não obstante a imprecisão ou as
controvérsias, a expressão soberania vem sendo largamente empregada
na teoria e na prática, às vezes até mesmo para justificar as posições de
duas partes opostas num conflito, cada uma alegando defender sua
soberania. Daí a observação feita por Kaplan e Katzenbach, de que não
há no Direito Internacional um termo mais embaraçoso que soberania,
parecendo-lhes que o seu uso impreciso e indisciplinado talvez se deva
ao fato de haver-se tornado um “símbolo altamente emocional”,
amplamente utilizado para conquistar simpatias em face das tendências
nacionalistas que vêm marcando nossa época. (DALLARI, 2009, p.74).

Dentre essas diversas facetas da soberania, e sobre o pretexto de exercê-la,


há ainda os casos (a maioria) em que os Estados conferem algumas prerrogativas
àqueles seus denominados cidadãos, dentre as quais encontra-se a negativa de
extradição de um cidadão nato, sendo que disso decorre, por exemplo, a
impossibilidade de um outro país processar, julgar e cumprir a sentença condenatória
em relação ao estrangeiro, ainda que este tenha cometido crimes no território dessa
outra nação, sejam eles de natureza transnacional ou não.
Constatada a problemática dos entraves que o conceito arcaico de Estado
soberano pode desencadear, cumpre pesquisar a existência de alternativas ao
modelo atual que, ao que parece, é incapaz de debelar as violações do direito à
segurança pessoal nas fronteiras do Mercosul.
Uma alternativa possível e viável seria a mudança de paradigma constitucional
nos países do bloco sul-americano, a partir da migração para o que se denomina de
Estado Constitucional Cooperativo, enunciado por Peter Häberle, nos seguintes
termos:

Estado Constitucional Cooperativo é o Estado que justamente encontra a


sua identidade também no Direito Internacional, no entrelaçamento das
relações internacionais e supranacionais, na percepção da cooperação e
responsabilidade internacional, assim como no campo da solidariedade.
Ele corresponde, com isso, à necessidade internacional de políticas de
paz.
O Estado Constitucional Cooperativo é a resposta interna do Estado
Constitucional ocidental livre e democrático à mudança no Direito
Internacional e ao seu desafio que levou a formas de cooperação.
980

O Estado Constitucional aberto somente pode existir, a longo prazo, como


Estado cooperativo, ou não é um Estado ‘Constitucional’. Abertura para
fora se chama cooperação.
Hoje o Estado Constitucional e o Direito Internacional transformam-se em
conjunto. O Direito Constitucional não começa onde cessa o Direito
Internacional. Também é válido o contrário, ou seja, o Direito Internacional
não termina onde começa o Direito Constitucional.
Os cruzamentos e as ações recíprocas são por demais intensivas para
que se dê a esta forma externa de complementariedade uma ideia exata.
O resultado é o ‘Direito comum de cooperação’.
O Estado Constitucional Cooperativo não conhece alternativas de uma
‘primazia’ do Direito Constitucional ou do Direito Internacional; ele
considera tão seriamente o observado efeito recíproco entre as relações
externas ou Direito Internacional, e a ordem constitucional interna
(nacional), que partes do Direito Internacional e do direito constitucional
interno crescem juntas num todo. (HÄBERLE, 2007, p.4 e 10)

Analisando-se os problemas acima enumerados, decorrentes da violação do


direito à segurança pessoal nas fronteiras do Mercosul, a mudança para o paradigma
proposto poderia ser objeto de ponderação entre os países do bloco, ainda que
inicialmente esta mudança se opere somente em relação a alguns pontos sensíveis
ao problema, para, depois, expandir-se às demais áreas, principalmente àquelas
relacionadas à observância e preservação dos Direitos Humanos.

CONCLUSÃO

O presente trabalho abordou a problemática da segurança pessoal nas


fronteiras do Mercosul. O enfoque emprestado à questão foi o da proteção pessoal
que se deve conferir ao indivíduo, numa perspectiva de direitos humanos, como
garantia do direito à vida e à integridade física, moral e/ou psíquica, em contraponto à
notória atuação, nas fronteiras, de organizações criminosas internacionais
relacionadas ao narcotráfico, tráfico de armas, dentre outros delitos.
Para tanto, pesquisou-se o conteúdo jurídico do direito à segurança pessoal no
âmbito global (ONU) e, ainda, sobre como a questão é tratada no âmbito regional
(OEA e Mercosul), ocasião em que foi possível constatar-se que a temática é objeto
de notória preocupação e tem espaço cada vez maior nos debates e iniciativas
levadas a efeito por tais organizações, o que se conclui pela produção de relatórios e
recomendações aos países membros.
Foi objeto de pesquisa, ainda, o contexto social em que se inserem as pessoas
que habitam as fronteiras, relativamente à temática da violência ocasionada pela
prática de crimes transnacionais, sendo constatável, por análise de relatórios e
documentos citados, que além de atentar contra a vida e integridade dos indivíduos,
a crescente criminalidade transnacional também contribui para o subdesenvolvimento
social, cultural e econômico das regiões de fronteira, que ostentam baixos índices de
empregabilidade e de escolaridade de seus habitantes.
Como possível resposta à problemática, sugeriu-se a implantação de
instrumentos que visem a cooperação entre as nações integrantes do Mercosul, por
meio de conceitos tirados, por exemplo, do Estado Constitucional Cooperativo, com
vistas a efetivar, de forma satisfatória, o direito à segurança pessoal no âmbito
regional.
Constatou-se que pelos anos de construção de uma Teoria Geral do Estado
arcaica, que tem como fundamento a soberania de forma exacerbada, poderá haver
alguns entraves para a integração e cooperação efetiva do bloco. Em contraposição,
981

confirmou-se a premente necessidade de atuação dos membros do Mercosul no


sentido de dialogar e cooperar mutuamente, haja vista que se trata de preservação
dos direitos humanos à vida e à integridade pessoal, que certamente só podem ser
salvaguardados por um efetivo sistema transnacional que privilegie a segurança
pessoal, como preconizado pela ONU e demais organizações internacionais.

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982

DIREITOS HUMANOS E O REGIME JURÍDICO DO RESIDENTE FRONTEIRIÇO


NO BRASIL
HUMAN RIGHTS AND THE LEGAL REGIME OF FRONTIER RESIDENTS IN
BRAZIL.

José Eduardo Melo de Souza


Lívia Cristina dos Anjos Barros
Luiz Rosado Costa

Resumo: O Brasil faz fronteira com quase todos países da América do Sul, o que
proporciona uma intensa circulação de pessoas, aproximação e trocas culturais.
Assim, esta pesquisa, descritiva e exploratória, por meio dos métodos bibliográfico e
documental, visa a analisar o regime jurídico aplicável aos residentes fronteiriços, que
têm a peculiaridade de circular constantemente entre duas jurisdições nacionais por
residirem em um país, mas exercerem algumas atividades da vida civil em outro
limítrofe. Analisa-se ainda, à luz do objetivo constitucional de se formar uma
comunidade latino-americana de nações, quais direitos lhes são conferidos pela
legislação brasileira e pelos instrumentos internacionais no âmbito do MERCOSUL.
Palavras-chave: Fronteira. Direitos humanos. MERCOSUL

Abstract: Brazil boards with most of the countries in South America which provides
an intense course of citizens alongside with strong cultural exchanges. Thus, the
present research, descriptively and exploratory aims to analyse by the means of the
methods bibliographical and documental the juridical regimen applicable to the frontier
residents which have the peculiarity of floating between two national jurisdictions
considering the fact that those population reside in a country but exercise the rights of
civil life in distinct patria. In conjunction with the presented, this work also analyzes
under the scope of the constitutional objective of forming a Latin America community
of nations, which rights are those cross-border workers entitled by the Brazilian law
and by the international apparatus within the purview of the MERCOSUL.
Key-words: Border. Human Rights. MERCOSUL

1 INTRODUÇÃO

As fronteiras brasileiras são extensas e, muito além de demarcarem os limites


territoriais dos Estados, são pontos de contato com a alteridade e de intensas trocas
culturais e comerciais, isto é, significam muito mais do que um mero limite geográfico.
Com a intensificação dos fluxos migratórios decorrentes da globalização e
diante de suas peculiaridades o fluxo de pessoas pelas fronteiras requer um regime
jurídico próprio. Assim, investiga-se neste trabalho, descritivo e exploratório, por meio
dos métodos bibliográfico e documental, o regime jurídico aplicável aos residentes
fronteiriços e os direitos que lhes são conferidos pela legislação brasileira e pelos
instrumentos internacionais no âmbito do MERCOSUL.
Na presente pesquisa, analisa-se, assim, o regime jurídico aplicável ao
residente fronteiriço no Brasil e verificam-se quais direitos são conferidos ao fronteiriço
pela nova lei brasileira de migração (Lei nº 13.445/2017) — que trouxe a
universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos como
princípios da política migratória brasileira — e pelos instrumentos internacionais no
âmbito do MERCOSUL.
983

2 REGIME JURÍDICO DO RESIDENTE FRONTEIRIÇO

O residente fronteiriço é definido pelo art. 1º, IV, da Lei 13.445/2017 como “a
pessoa nacional de país limítrofe ou apátrida que conserva a sua residência habitual
em município fronteiriço de país vizinho” (BRASIL, 2017).
Por sua peculiaridade de circular entre duas jurisdições nacionais (residem em
um país, mas exercem algumas atividades da vida civil em outro, limítrofe), o
fronteiriço goza de um regime jurídico especial. Lopes (2009, p. 350) destaca que: “ao
fronteiriço é atribuído um regime especial porque vivem em uma região de jurisdições
divididas ou sobrepostas: uma zona de transição entre duas realidades nacionais”.
Nos moldes da Lei 13.445/2017 e dos acordos do MERCOSUL, os fronteiriços
poderão pedir, mediante requerimento à Polícia Federal, o documento de fronteiriço
e, assim, poderão exercer, no Brasil e no âmbito da cidade-gêmea, atividades da vida
civil.
Destaca-se, neste sentido, a diferença de regime jurídico entre o imigrante e o
fronteiriço: o imigrante, ao contrário do fronteiriço, não transita por duas jurisdições
diariamente, ele vive no país com ânimo de permanência, sem preservar uma rotina
de vida no outro de origem, ainda que com ele mantenha contato.
O documento de fronteiriço só o autoriza a praticar seus atos da vida civil no
local designado em seu documento, enquanto que o documento do imigrante tem
validade em todo território nacional.
Dessa maneira, fica evidente que os fronteiriços, por estarem situados em
condições limítrofes complexas, detêm direitos que coadunam com as suas
particularidades. Essa proteção especial é necessária haja vista a grande
complexidade do efeito-fronteira que se acentua quando olhamos para os inúmeros
problemas decorrentes da invisibilidade fronteiriça, que passam pela informalidade e
a consequente negação aos direitos trabalhistas e previdenciários e chegam a graves
violações de direitos tais como: trabalho infantil, trabalho escravo, as diversas formas
de discriminação e os desrespeitos à saúde.
Nessa perspectiva, tendo em vista essa peculiaridade e necessidade de
proteção, os próximos tópicos, com base na legislação pátria e internacional de
proteção ao fronteiriço, buscarão fazer uma análise dos direitos humanos e
fundamentais conferidos a esse migrante especial.

3. DIREITOS DOS RESIDENTES FRONTEIRIÇOS

A Constituição Federal de 1988 é reconhecida, dentre outras coisas, pela


grande ênfase que deu aos direitos e garantias fundamentais. Nas palavras de
Sarmento e Souza Neto (2016, p. 170) o texto da “Constituição Cidadã”:

Tem como marcas distintivas o profundo compromisso com os direitos


fundamentais e com a democracia, bem como a preocupação com a
mudança das relações políticas, sociais e econômicas, no sentido da
construção de uma sociedade mais inclusiva, fundada na dignidade da
pessoa humana.

Isso pode ser percebido, por exemplo, quando analisam-se seus objetivos
primordiais a serem perseguidos, que são: a) construir uma sociedade livre, justa e
solidária; b) garantir o desenvolvimento nacional; c) erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; d) promover o bem de
984

todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação (BRASIL, 1988).
Além destes, a Constituição traz como princípios, em seu art. 4º, que regem o
Brasil em suas relações internacionais, diretrizes como a prevalência dos direitos
humanos e a busca pela integração econômica, política, social e cultural dos povos
da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana das
nações (BRASIL, 1988).
Dessa maneira, por meio desses diversos institutos, fica claro que a dinâmica
constitucional está pautada em garantir proteção a todos, sem qualquer tipo de
discriminação. Por isso, além dos nacionais, estariam também cobertos de garantias
todos os estrangeiros submetidos à jurisdição brasileira.
Vale ressaltar que esse reconhecimento não se destina somente ao estrangeiro
que resida no país, situação que poderia ser erroneamente percebida em uma análise
literal e descontextualizada do artigo 5º, caput: “art. 5º Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes (BRASIL, 1988, destaque nosso).
José Afonso da Silva (2005, p. 339) ao analisar esse dispositivo assevera que:
“por esse lado, o texto do art. 5º não é bom, porque abrange menos do que a
Constituição dá”.
Neste mesmo sentido, inclusive, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal,
quando no julgado, em 4 de agosto de 2009, do habeas corpus nº 97.147, de relatoria
do Ministro Cezar Peluso, asseverou que:

Em princípio, pareceria que a norma excluiria de sua tutela os estrangeiros


não residentes no país, porém, numa análise mais detida, esta não seria
a leitura mais adequada, sobretudo porque a garantia de inviolabilidade
dos direitos fundamentais da pessoa humana não comportaria exceção
baseada em qualificação subjetiva puramente circunstancial. Tampouco
se compreenderia que, sem razão perceptível, o Estado deixasse de
resguardar direitos inerentes à dignidade humana das pessoas as quais,
embora estrangeiras e sem domicílio no país, se encontrariam sobre o
império de sua soberania. (BRASIL, 2009).

Ainda que essa interpretação ampliativa dos direitos fundamentais previstos no


artigo 5º esteja consolidada no entendimento do Supremo Tribunal Federal, foi vetado
o inciso I, do §1º do art. 1º da Lei nº 13.445/2017, que trazia o conceito de “migrante”.
A mensagem nº163, de 24 de maio de 2017 trouxe como fundamento para o veto
que:

O dispositivo estabelece conceito demasiadamente amplo de migrante,


abrangendo inclusive o estrangeiro com residência em país
fronteiriço, o que estende a todo e qualquer estrangeiro, qualquer que
seja sua condição migratória, a igualdade com os nacionais, violando a
Constituição em seu artigo 5o, que estabelece que aquela igualdade é
limitada e tem como critério para sua efetividade a residência do
estrangeiro no território nacional. (BRASIL, 2017, destaque nosso).

Observa-se que o veto, visando a restringir direitos aos fronteiriços, apegou-se


a uma interpretação literal e descontextualizada do dispositivo constitucional, o que
levaria à inaceitável conclusão, à luz constitucional, que os estrangeiros não
residentes estariam alijados de direitos fundamentais se em território nacional, mas
nele não são residentes.
985

Esse entendimento restritivo de direitos claramente não coaduna com a


dinâmica interpretativa dos direitos fundamentais que segundo Torrado (2016) deve
ser mais extensiva possível e levar em conta o princípio in dubio pro libertate.
Com base nisso, fica evidente que qualquer estrangeiro ao adentrar em
território nacional, seja residente, seja de passagem, deverá ter direitos e garantias
fundamentais observados, independentemente de sua condição migratória. Assim,
ressalvados o acesso a cargos estratégicos (art. 12, §3º) e o alistamento eleitoral (art.
14, §2), o estrangeiro tem no Brasil os mesmos direitos fundamentais que os
nacionais.
Nas regiões de fronteira, onde o fluxo de pessoas entre duas jurisdições
distintas é recorrente, essa análise da proteção do estrangeiro na jurisdição
constitucional brasileira se faz necessária, vez que não residem no Brasil, mas a todo
momento transitam pelo território brasileiro, os fronteiriços detêm especificidades de
direitos. Além dos direitos humanos e fundamentais inerentes a toda pessoa que
esteja sob a jurisdição brasileira, os direitos específicos dos residentes fronteiriços são
previstos, no âmbito infraconstitucional, pela Lei 13.445/2017.

3.1. A LEI 13.445/2017 NA TUTELA DOS DIREITOS DOS RESIDENTES


FRONTEIRIÇOS

Em 21 de novembro de 2017 entrou em vigor a lei 13.445/2017 (NLM),


responsável pela revogação do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980). O revogado
Estatuto que dava primazia à segurança nacional e aos interesses nacionais deu lugar
a uma nova lei que trouxe à política migratória brasileira um caráter humanizador,
pautado na prevalência dos direitos humanos e em correspondência com o regime
constitucional democrático. A nova lei dispõe “sobre os direitos e deveres do migrante
e do visitante, regula sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes
para as políticas públicas para o emigrante” (BRASIL, 2017).
Ao contrário do Estatuto do Estrangeiro, a lei 13.445/2017 deu um grande
destaque na regulação da migração em zonas de fronteira e colocou como princípio e
diretriz que rege a política migratória brasileira “a integração e desenvolvimento das
regiões de fronteira e articulação de políticas públicas regionais capazes de garantir
efetividade aos direitos do residente fronteiriço” (BRASIL, 2017).
Como novidade, a nova lei, já na definição dos povos de fronteira incluiu o
apátrida como sujeito de direitos fronteiriços. No diploma revogado, essa condição só
poderia ser vista quanto ao natural dos países limítrofes. Essa incorporação dos
apátridas não só nesse, mas em diversos dispositivos da lei 13.445/2017 é
considerada um:

Avanço do ordenamento jurídico brasileiro em relação às obrigações


internacionais assumidas com a promulgação das Convenções de 1951
sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1954 sobre o Estatuto dos Apátridas
e de 1961 sobre a Redução dos Casos de Apatridia. (BICHARA, 2017).

No artigo 23 e seguintes, a lei estabelece as características legais que regem


a migração fronteiriça. Pautada no fortalecimento da integração regional e na livre
circulação de pessoas entre os povos da América latina, o novo diploma concede ao
fronteiriço permissão para a realização de todos os atos da vida civil, mediante
requerimento. Essa permissão ampliou o rol de direitos dos que requerem a
documentação uma vez que no revogado Estatuto esses atos estavam limitados ao
exercício de atividades remuneradas e a educação, somente, e ainda precisavam ser
986

previamente comprovados, o que também muda com a nova lei, que não exige
comprovação.
O novo diploma estabeleceu, também, que, ao requerer o documento, o
fronteiriço indicará o município ao qual deseja usufruir dessas atribuições, gozando
das garantias e dos direitos assegurados pelo regime geral de migração previstos em
lei no limite geográfico ao qual se submeteu. Dentre outros direitos, a eles também é
concedido cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas (art. 4º, XI,
NLM); Tolerância quanto ao uso do idioma por parte das autoridades brasileiras (art.
112, NLM) e Igualdade de tratamento em relação ao acesso à justiça e tramitação de
processos (art. 26, II, CPC).
Todas essas considerações da lei ressignificaram a política migratória
brasileira, pois a visão para o residente fronteiriço não é mais a de um olhar voltado
para a segurança nacional, como fora num passado recente, mas a de um instrumento
de integração regional, pautado pela livre circulação. Por isso, a lei brasileira ao deixar
de colocar o fronteiriço como questão de preocupação nacional dignifica o ser humano
que antes poderia ser tratado com violência, preconceito e ou como criminoso. Isso
significa um grande avanço na garantia de direitos humanos e fundamentais a esses
sujeitos que desejam circular, trabalhar e viver nas cidades limítrofes, o que é a
inevitável à livre circulação de pessoas nesses locais.
Ainda, tomando como base a norma mais favorável ao migrante a lei
13.445/2017 estabelece, em suas Disposições Finais e Transitórias, (Art. 111) que ela
“não prejudica direitos e obrigações estabelecidos por tratados vigentes no Brasil e
que sejam mais benéficos ao migrante e ao visitante, em particular os tratados
firmados no âmbito do Mercosul.” (BRASIL,2017). Nesse sentido, tendo por base que
a fronteira é um verdadeiro laboratório de integração regional (NETO; PENHA, 2016)
analisaremos alguns dos documentos firmados, no âmbito do Mercado Comum do Sul
na proteção dos fronteiriços.

3.2. OS DIREITOS DO FRONTEIRIÇO NO ÂMBITO DO MERCADO COMUM DO SUL


(MERCOSUL)

Instituído a partir da assinatura do Tratado de Assunção, entre a Argentina,


Brasil, Paraguai e Uruguai em 26 de março de 1991, o Mercosul se caracteriza como
o maior órgão de integração da América Latina. Em seus anos iniciais, pelo escasso
tratamento da questão social no Tratado de Assunção, o bloco focou-se
excessivamente em aspectos econômicos, comerciais e tributários da integração
regional, relegando para o segundo plano as demandas sociais geradas por essa
mesma integração.
Após intensas críticas a essa posição, corroboradas com o aumento dos fluxos
inter-regionais de pessoas, foram criados, em seu âmbito, grupos especializados no
debate migratório que, por meio de suas discussões, propuseram acordos com
enfoque no avanço da integração e da livre circulação de pessoas. O primeiro deles
foi o Acordo Multilateral de Seguridade Social, assinado em 1997, que entrou em vigor,
no Brasil, em 2005 por meio do Decreto 5722/2006. Ele garante e reconhece ao
trabalhador que presta ou prestou serviços em algum dos Estados parte os direitos à
seguridade Social. Preserva, assim, os direitos adquiridos em qualquer dos estados
parte e permite uma combinação das contribuições do trabalhador para o
requerimento dessas em um desses países.
Para Lunardi (2016) esse Acordo foi de grande importância para o tratamento
da questão migratória no Mercosul, pois, incentivou e sustentou a mobilidade de
987

trabalhadores no bloco. Antes de sua adoção, sendo o Mercosul uma união aduaneira
imperfeita, Camargo (2010) nos ensina que:

Os trabalhadores que emigravam não possuíam regulamentação


previdenciária que legitimasse seus deslocamentos, o que os tornava
sujeitos a uma precária inserção no mercado de trabalho dos países-
membros para os quais se deslocavam e a uma posição inferior em sua
escala socioprofissional (CAMARGO, 2010).

Assim, em regiões de fronteira, especialmente, onde existe uma maior


facilidade na mudança de trabalho a nível internacional, esse acordo representa um
grande marco, pois garante ao trabalhador de fronteira a mobilidade empregatícia
entre os países membros, garantida por uma futura seguridade social. Desse modo,
além de estimular a integração nas fronteiras ele harmoniza as legislações dos
Estados na proteção dos direitos em âmbito regional.
Na seara trabalhista, pode-se destacar a Declaração Sociolaboral do Mercosul
como um grande instrumento de proteção dos direitos humanos nas fronteiras.
Assinada em uma reunião semestral do Conselho do Mercado Comum, em 1998, ela
se destaca por inserir no âmbito do bloco diversos institutos da Organização
Internacional do Trabalho, como a erradicação do trabalho infantil e a eliminação do
trabalho forçado, bem como normas programáticas de caráter regional, com enfoque
especial às questões de fronteira. Em uma de suas disposições, decorrentes de sua
revisão em 2015, ela assevera que:

Os Estados Partes comprometem-se a adotar e articular medidas


tendentes ao estabelecimento de normas e procedimentos comuns,
relativos à circulação dos trabalhadores nas zonas de fronteira e a levar a
cabo as ações necessárias para melhorar as oportunidades de emprego
e as condições de trabalho e de vida desses trabalhadores, nos termos
dos acordos específicos para essa população, tendo como base os
direitos reconhecidos nos acordos de residência e imigração vigentes.
(MERCOSUL, 2015).

Também estabelece, como forma de promover e acompanhar as


disposições da Declaração, a Comissão Sociolaboral do Mercosul, que tem a
atribuição, dentre outras, de analisar os relatórios anuais dos Estados parte sobre o
cumprimento da Declaração. Dessa forma, evidencia-se a Declaração Sociolaboral
como um importante instrumento de promoção do trabalho e de sua regularização em
âmbito regional, especialmente na proteção dos trabalhadores fronteiriços.

4 CONCLUSÃO

A fronteira se apresenta como um espaço onde os fluxos de pessoas ocorrem


de uma maneira intensa e o ordenamento pátrio, antes da nova lei de migração, ao
tratar das relações fronteiriças, estabelecia a primazia pela segurança nacional em
detrimento de garantias fundamentais. A nova lei de migração, no entanto, mudou de
paradigma em relação à legislação anterior e adotou uma postura voltada à integração
regional de pessoas e à articulação de políticas públicas nas regiões limítrofes.
Com isso, levantou-se a construção de uma plataforma protetiva aos sujeitos
que na fronteira vivem. Assim, a referida lei coerentemente com os Direitos Humanos,
marcou a transformação de política migratória ampliando as possibilidades de livre
circulação.
988

No âmbito dos direitos e garantias fundamentais, previstos na Constituição


Federal, constatou-se que todos os estrangeiros, uma vez submetidos à jurisdição
brasileira, detém, salvo algumas exceções elencadas no texto constitucional, os
mesmos direitos dos nacionais.
Não se exige, assim, tomando-se por base uma interpretação ampliativa dos
direitos fundamentais e que lhes garanta a máxima eficácia, a residência no Brasil
para que o estrangeiro que esteja sob sua jurisdição seja titular de direitos e garantias
fundamentais, assim, os fronteiriços são abarcados pela proteção constitucional
conferida a toda pessoa.
Pelo presente estudo, pôde-se constatar também que, para a proteção efetiva
dos residentes da fronteira, é necessária a cooperação dos países envolvidos no
sentido de evitar situações violadoras de Direitos Humanos em qualquer dos países
lindeiros. Disso decorre a inevitabilidade de uma articulação regional nas questões
fronteiriças, analisada no presente estudo por meio do MERCOSUL. Esse bloco, que
em um primeiro momento de sua história não se debruçava sobre a questão da
circulação de pessoas, trouxe — a partir da década de 1990 — o tema à discussão,
formalizando instrumentos que visaram a desburocratizar a circulação de pessoas
pelo bloco e lhes garantir a proteção a seus direitos humanos.
Tomando-se como parâmetro a caracterização da fronteira como protagonista
da integração regional, torna-se evidente que o fortalecimento da integração e dos
direitos humanos entre os povos da América Latina passa necessariamente pela
consolidação dos direitos nos “limites” nacionais.

REFERÊNCIAS

BICHARA, Jahyr-Philippe. O tratamento do apátrida na nova lei de migração: entre


avanços e retrocessos. Revista de Direito Internacional, v. 14, n. 2, 2017. Disponível
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 16
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_______. Lei. 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Disponível
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_______.Mensagem nº 163, de 24 de maio de 2017. Disponível em:
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_______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 97.147. Relator: Ministro
Cesar Peluso. Brasília, 04 de agosto de 2009. Disponível em:
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Acesso em: 07 mai. 2018
CAMARGO, Sonia de. O processo de integração regional: fronteiras abertas para os
trabalhadores do Mercosul. Contexto int., Rio de Janeiro, v. 32, n. 2, p. 489-517, Dec.
2010. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
85292010000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 25 mai. de 2018.
LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Direito de imigração: o estatuto do estrangeiro
em uma perspectiva de direitos humanos. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2009.
989

LUNARDI, Thamirys Mendes. A política migratória do MERCOSUL: entre discurso e


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Internacionais) – Universidade Federal de Santa Catarina.
MERCOSUL. Declaração Sociolaboral do Mercosul de 2015. Disponível
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Acesso em 4 jun. 2018.
NETO, Walter Antonio Desiderá; PENHA, Bruna. As Regiões de fronteira como
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SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria,
história e métodos de trabalho. 2 ed.,reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
TORRADO, Jesús Lima. El problema fundamental de la emigración desde la
perspectiva del sistema de derechos humanos: el debate sobre la existência del “Ius
igrandi” [sic]. In: URQUIZA, Antonio Hilario Aguilera (org.). Fronteira dos direitos
humanos: direitos humanos nas fronteiras. Campo Grande: UFMS, 2016. p. 89-124.
990

INTERVENCIONISMO ESTATAL NA FORMALIZAÇÃO DE MODELOS PRÉ-


DEFINIDOS DAS RELAÇÕES AFETIVAS1
THE STATE INTERVENTIONISM IN THE FORMALIZATION OF PRE-DEFINED
MODELS OF AFFECTIVE RELATIONS

Camila Andrade da Silva


Bruna Schlindwein Zeni

Resumo: O Estado, ao vislumbrar questões capitalistas (materiais), acaba por


delimitar -como mecanismo de controle, as relações de cunho privado – como, por
exemplo, os afetos. Em direito das famílias, existem “modelos” pré-definidos pelo
legislador para os regimes de patrimônio, inaugurados pelo casamento e pela união
estável, que tem se demonstrado insuficientes para atribuir segurança jurídica para a
pluralidade de entidades familiares existentes. Dessa forma, esse trabalho visa
discutir os efeitos da intervenção estatal na esfera pessoal e humana, bem como
demostrar os fundamentos que perpetuam esta limitação e acabam por ceifar a
liberdade contratual e individual daqueles que não se enquadram nas disposições
legais sobre o tema. É somente por meio das garantias individuais concedidas pela
Constituição Federal de 1988 que os afetos poderão, em sua plenitude, serem vividos.
Para a confecção do trabalho, foram utilizadas as metodologias exploratória e
descritiva, bem como a pesquisa de campo (entrevistas).
Palavras-chave: Afeto. Dignidade da pessoa humana. Intervencionismo estatal.

Abstract: The state, in glimpsing capitalist (material) questions, ends up defining - as


a mechanism of control, relations of a private nature - such as affections. In family law,
there are "models" pre-defined by the legislator for the equity regimes, inaugurated by
marriage and by the stable union, which has proved insufficient to give legal security
to the plurality of existing family entities. In this way, this work aims to discuss the
effects of state intervention in the personal and human sphere, as well as demonstrate
the foundations that perpetuate this limitation and end up reaping the contractual and
individual freedom of those who do not fit the legal provisions on the subject. It is only
through the individual guarantees granted by the Federal Constitution of 1988 that the
affections can, in their fullness, be lived. For the preparation of the work, exploratory
and descriptive methodologies were used, as well as field research (interviews).
Keywords: Affection. Dignity of human person. State intervention.

INTRODUÇÃO

Nos tempos primórdios, não havia o que se dizer sobre a formação familiar, pois o que
existia era o acasalamento entre os seres vivos, seja em decorrência do instinto de
perpetuação da espécie, seja pela verdadeira aversão que todos tinham a solidão.2
E assim ocorreu até o momento em que passa a existir o advento da
propriedade e a “necessidade” de um herdeiro. No Direito Romano a noção de família
ultrapassa a ideia de agrupamento voltado a sobrevivência e

se torna, então, simultaneamente, uma unidade econômica, religiosa


política e jurisdicional. O ascendente comum vivo mais velho era, ao
mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz. Comandava, oficiava o

1
Esse trabalho resulta da pesquisa “Namoro, namoro qualificado e noivado: intervencionismo estatal na formalização de modelos
pré-definidos das relações afetivas, desenvolvida no Programa Institucional de Iniciação Científica da UMC, edição 2018.
2
DIAS, M.B. Manual de Direito das Famílias. 12.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. cit.p. 37.
991

culto dos deuses domésticos e distribuía justiça. Havia, inicialmente um


patrimônio familiar, administro pelo pater. 3

Posteriormente, há o declínio de parte dos ideais Romanos com a chegada da


ideologia de Constantino, que torna a família na reunião da prole e do casal cristão
formado principalmente por preocupações meramente morais. 4
Célio Egídio da Silva5 aduz que no Direito Medieval a família se baseou tanto
no Direito Romano quanto no Direito Canônico. A diferença é que a relação de
casamento era um mal a ser combatido já que a preocupação inicial era ligada a
moralidade e Deus, e se estabelecia certas regras quanto a virgindade e o domínio
dos desejos carnais em prol do bem da pessoa e da sociedade, de acordo com o
previsto nas cartas de Paulo aos Coríntios6. Até que

em um dado momento, obrigou-se a Igreja Católica a ter de apoiar o


instituto do casamento, deixando em segundo plano a defesa da
virgindade e da castidade, pois era nele que via a constituição da família
estável, donde surgiram os homens que a ajudariam a fortalecer a Igreja
de Cristo e a principal base para a expansão da própria fé cristã que se
constituía na meta principal do catolicismo. 7

A igreja então, nesse período, transformou a união entre pessoas em um


sacramento em seu ordenamento, chamado de matrimônio, com intuito de ampliar o
poder econômico, mas dando atenção também ao amor e a concupiscência,
regulando-os. A família passou a não mais derivar de um pater, muito embora
houvesse ainda a ideia de que se fazia necessário um “cabeça” direcionando o casal.
Então, a relação reconhecida era formada por duas pessoas, de sexos diferentes e
com bens, enquanto as relações de casamento revestida por “clandestinidades”
geravam consequências graves como deserdação e condições bem mais
desfavoráveis aos filhos advindos dessas uniões. 8 Talvez nenhum outro tipo de
sociedade jamais tenha acumulado, e num período histórico relativamente tão curto,
uma tal quantidade de discurso sobre o sexo.9
Com o declínio da Idade Média e ascensão da Idade Moderna, Adriana Caldas
do Rego Freitas Dabus Maluf,10 explica que o casamento passou a ser considerado
um contrato solene, apesar de que mantinha algumas características como
indissolubilidade dos votos e a clandestinidade que acarretava nulidade, perdendo em
parte o caráter sacramental.
No Brasil, durante o período colonial, as famílias eram organizadas por
casamentos arranjados ou por interesse, formados por contratos sociais, que
impediam o casamento por amor, tentando manter apenas o status entre as elites. 11
Conforme foram acontecendo as mudanças, houve a vigência das Ordenações

3
GONÇALVES, C. R. Direto de Família. 14.ed. São Paulo: Editora Saraiva Jur, 2017. cit.p. 31.
4
SILVA, C. E. História e Desenvolvimento do Conceito de Família. 2005. Dissertação em Direito das Relações Sociais –
Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. cit. p. 26-30.
5
SILVA, C. E. História e Desenvolvimento do Conceito de Família. 2005. Dissertação em Direito das Relações Sociais –
Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. cit. p. 43.
6
Bíblia de Estudo das Profecias. Belo Horizonte e Barueri, Editora Atos e Sociedade Bíblica do Brasil, 2001. cit. p. 1290-1291.
7
SILVA, C. E. História e Desenvolvimento do Conceito de Família. 2005. Dissertação em Direito das Relações Sociais –
Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. cit. p. 37.
8
PRIORE, M. Del. HISTÓRIA DO AMOR NO BRASIL. 3.ed. São Paulo: Editora Contexto, 2015. cit.p.26
9
FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: A vontade do saber; Tradução Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A.
Guilhon Albuquerque. 5.ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2017. cit. p. 37.
10
MALUF, A. C. R. F. D. Novas Modalidades de Família na Pós-Modernidade. 2010. Tese em Direito – Universidade de São
Paulo, São Paulo. cit. p. 26-32.
11
PRIORE, M. Del. HISTÓRIA DO AMOR NO BRASIL. 3.ed. São Paulo: Editora Contexto, 2015. cit.p.157-164
992

Filipinas, e em seguida, o Código Civil de 1916, que reconheceu como natural a família
legítima, o divórcio, a autoridade marital, entre outras coisas. 12
Com a crescente mudança social, houve a promulgação da Constituição da
República Federativa do Brasil em 1988, que concedeu às relações a pluralidade de
modelos de família, igualdade entre filhos (independente da origem) e entre cônjuges.
Tais mudanças foram reconhecidas na atualização do Código Civil em 2002,
visto que o Código Civil de 1916 não foi recepcionado. Todavia, o atual Código Civil
vigente não se apresenta como uma ferramenta completa, atualizada e moderna para
regular todas as mudanças ocorridas na sociedade em relação à família.13 Pois, desde
2002, vêm-se evidenciando diversas outras formas de constituição de família,
sobretudo, baseadas no afeto, o que gera a necessidade de mudança da postura do
Estado, uma vez que ele regula tais relações no que diz respeito à patrimônio e
consequentemente o afeto, que é algo estritamente pessoal.

DISCUSSÃO

Conforme Zymunt Bauman,14 os relacionamentos e as afetividades ocorrem de


uma maneira diferente para cada pessoa. Isso porque as relações são moldadas tanto
pelas histórias individuais, como pelas pretensões futuras. Além disso, as pessoas
podem se apaixonar mais vezes, por mais pessoas, em um curto espaço de tempo,
ou poderão não se entregar em um relacionamento, com apenas uma pessoa, mas,
ficar com esta ao longo de toda a vida.
A relação basicamente dependerá do estado de espírito em que a pessoa se
encontrará na ocasião, pois, amar é um sentimento intrínseco ao ser humano, assim,
não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer. 15
Dessa forma, tudo se dificulta, porque assim como não se pode definir o que é
o amor para cada pessoa, não se pode definir a forma com que será expresso por
cada uma delas também. Chega a ser impossível enquadrar os sentimentos
inexplicáveis e as características pessoais (forma de ser) numa vertente específica,16
mas, ainda assim, dentro do cenário brasileiro, o casamento é a principal forma de
entidade familiar, sendo subsidiariamente reconhecida a união estável.
O que deve ser dado maior atenção é o fato de que ambos os institutos - que
são quase regra quando trata-se de reconhecimento de relacionamentos - não se faz
possível convencionar a maneira, jurídica e social, de que esse relacionamento será
vivido, mesmo que seja um contrato entre as partes e a liberdade de convencionar
seja determinada pela Constituição da República.
A finalidade do casamento, em tese, está ligada a disciplinação das relações
sexuais entre os cônjuges, proteção à prole e a mútua assistência,17 mas, na prática,
o que se vê é que o casamento se tornou simplesmente a “perpetuação” do vínculo
afetivo. Tanto que as propostas de casamento, consideradas pré-contrato, o noivado,
costumam ser grandiosas e cheias de significados pessoais, apenas, e seu não

12
MALUF, A. C. R. F. D. Novas Modalidades de Família na Pós-Modernidade. 2010. Tese em Direito – Universidade de São
Paulo, São Paulo. cit. p. 35-36.
13
CARVALHO, D.M. Direito das Famílias. 5.ed. São Paulo: Editora Saraiva Jur, 2017. cit.p. 37
14
BAUMAN, Z. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar LTDA., 2014.
cit.p. 1-46.
15
BAUMAN, Z. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar LTDA., 2014.
cit.p.17.
16
Para essa investigação, foi reunido um grupo de 27 (vinte e sete) pessoas, no qual apresentam seus motivos para se casar ou
não, regras entre os parceiros para o relacionamento e o significado de fidelidade para cada um, entre outras qualificações.
17
CARVALHO, D.M. Direito das Famílias. 5.ed. São Paulo: Editora Saraiva Jur, 2017. cit.p.149
993

cumprimento não acarreta ônus jurídico moral ou material de imediato (salvo se não
houver o dano comprovado).18
Hodiernamente, muito se discute sobre a poliafetividade, juridicamente
denominada concubinato impuro. Judicialmente o Conselho Nacional de Justiça
– CNJ, por meio do processo n° 0001459-08.2016.2.00.0000, impossibilitou a
lavratura de escritura pública no caso de união poliafetiva. Choca saber que existem
outros países como a Colômbia, que reconheceram a união estável entre pessoas do
mesmo sexo apenas no ano de 201619, adoção também entre casais do mesmo sexo
em 2018, abre vantagem no avanço social quanto à possibilidade dos, referidos por
eles, triejas escriturarem sua situação de fato resguardando questões importantes
como pensão por morte ou até mesmo sobre o direito da morte digna.20
Em contrapartida, embora existam aqueles que queiram aderir ao casamento e
não o conseguem, existem aqueles que não querem modelos para sua relação e que
não querem que um instituto ligue a união, somente o sentimento21, mas não têm sua
liberdade resguardada, pois são designados a união estável, já que o sistema jurídico
obriga os conviventes a obter tal status que os equipara a casados.
O Legislativo acompanha (as vezes) as modificações sociais existentes das
relações, mas não tem como antecipá-las, com isso, as pessoas não se sentem
atendidas pelo Estado (ou por se enquadrarem onde não querem ou por não se
enquadrarem na forma que gostaria). Salientando que, por vezes, uma pessoa que
não definiu o que quer viver ou não tomou decisões sobre seu relacionamento que
poderia se enquadrar num mero namoro, namoro qualificado, noivado ou em nenhum
desses (já que existem pessoas que não gostariam de aderir a nenhum tipo de modelo
por questões filosóficas e pessoais)22, pode se confundir com a união estável e,
consequentemente, equiparar-se a casado. Ou uma pessoa que já decidiu optar por
se casar com os parceiros que deseja, é coibido por delimitações do Código Civil, o
que é inaceitável. Contudo, conforme dito por Maria Berenice Dias, (...) não lograram
coibir o surgimento de relações afetivas extrapatrimoniais. Não há lei, nem o Deus que
for, nem dos homens, que proíba o ser humano de buscar a felicidade23, tendo assim
o Estado que se adaptar, não as pessoas.24
As escolhas afetivas devem, portanto, serem pessoais e guiadas apenas pela
vontade de cada um. Ninguém deveria ser estimulado a se entregar a escolhas cujo
o qual seu afeto não condiz, bem como a optar por um regime que delimite este afeto
por preocupação puramente patrimonialista do Estado caso não queiram.
Numa tentativa de transformar o fato social em norma - com sanções punitivas
(como por exemplo artigo 1564 CC/2002) para os que de fato não as seguirem –
acaba-se por regular as relações interpessoais, sendo que a norma escrita não tem o

18
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL-ROMPIMENTO DE NOIVADO – INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS – NÃO
CABIMENTO – AUSÊNCIA DE DANO MORAL – FALTA DE PROVA DE DANO MATERIAL (TJMG, Apelação n°
1.0480.12.016815-2/001, Des. Rel. Evandro Lopes da Costa Teixeira. 15.12.2015)
19
G1. Colômbia aprova casamento entre pessoas do mesmo sexo. Disponível em
<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/04/colombia-aprova-casamento-entre-pessoas-do-mesmo-sexo.html>. Acesso no dia
23 de junho de 2018.
20
Os entrevistados Manuel José Bermudez Andrade, John Alejandro Rodriguez Ramirez e Victor Hugo Prada Ardila
contaram sobre a luta judicial travada do trieja para conseguir a escritura pública na Colômbia e o desejo da constituição
do casamento futuramente.
21
Entrevistados A.M.B. e T.D. contam que “(...)não se casam pois são contra sentir-se amarrados um ao outro por um instituto
em vez de serem ligados por sentimentos.”
22
Os entrevistados B. S. Z. e S.C.C. dizem que “Optaram por não se casar devido a uma questão filosófica, pois para
ambos o casamento, cível e religioso, retira das partes a liberdade individual e objetifica o relacionamento.”
23
DIAS, M.B. Manual de Direito das Famílias. 12.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. cit.p.253.
24
Recomendo a reportagem disponível em <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI283759,31047-
Juiz+reconhece+existencia+de+unioes+estaveis+simultaneas>.
994

dom de aprisionar e conter os desejos, as angústias, as emoções, as realidades e as


inquietações do ser humano25 que como já dito anteriormente, é único e individual.
A partir dos afetos e dos desejos, surgem os relacionamentos, e em seguida
iniciam, teoricamente, as famílias que são a base da sociedade e por isso recebem
proteção do Estado (art. 226, “caput”, CRFB/88). Contudo, o que se deveria fazer claro
é a diferença entre proteção e intervenção, pois quando o legislador tratou do assunto
acabou por definir e limitar a entidade familiar.
Outrossim, definir a família para que se organize a vida em sociedade é
bastante complexa já que a visão utilizada é genérica, com intuito de abranger o
máximo de pessoas possíveis, acabando excluindo por certo alguma minoria.
Conforme Maria Berenice Dias

O influxo da chamada globalização impõe constantemente alteração de


regras, leis e comportamentos. No entanto, a mais árdua tarefa é mudar
as regras do direito das famílias. Isto porque é o ramo do direito que diz
com a vida das pessoas, seus sentimentos, enfim, com a alma do ser
humano. O legislador não consegue acompanhar a realidade social nem
contemplar as inquietações da família contemporânea.26

Assim, as normas infraconstitucionais quando criadas deveriam observar a


base dos direitos fundamentais individuais, quais sejam a dignidade humana (art. 1°,
III, CRFB/88), a liberdade, igualdade (art. 5°, “caput”, CRFB/88) e o direito à felicidade,
mas não é o que ocorre efetivamente.

A regulamentação das ações de estado, na perspectiva contemporânea


do fenômeno familiar, afasta-se da tutela do direito essencialmente
patrimonial, ganhando autonomia e devendo ser interpretada com vistas
à realização ampla da dignidade da pessoa humana.
A tutela jurídica do direito patrimonial, por sua vez, deve ser atendida por
meio de vias próprias e independentes, desobstruindo o caminho para a
realização do direito fundamental de busca da felicidade.27

Nesse sentido, Dimas esclarece que:

a liberdade de constituir uma comunhão de vida familiar, fundada no afeto,


na solidariedade, no companheirismo entre seus membros
descentralizada da figura única do casamento, valoriza o relacionamento
afetivo e a felicidade das pessoas. O novo conceito de família afastou o
pressuposto de que se constituía apenas pelo casamento e a exigência
de um par, facultando aos seus membros a liberdade de escolha para
formação da família. 28

O artigo I da Declaração Universal, dos Direitos Humanos dispõe que “todas


pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direito”, ou seja, as questões fáticas é
que acabam modificando as possibilidades de cada um.

CONCLUSÃO

25
DIAS, M.B. Manual de Direito das Famílias. 12.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. cit.p.36
26
DIAS, M.B. Manual de Direito das Famílias. 12.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. cit.p.39
27
STJ, 3ª. TURMA, REsp1.281.236-SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 19.03.2013
28
CARVALHO, D.M. Direito das Famílias. 5.ed. São Paulo: Editora Saraiva Jur, 2017. cit.p. 95
995

Assim, conclui-se que, existem pessoas em relacionamentos que têm a


necessidade se definir por meio do casamento29 deveriam ter liberdade para tanto,
independente de raça, etnia, gênero e quantidade de pessoas. Mas, existem aqueles
que não gostariam de ver seus afetos sendo regulados por institutos que
historicamente possuem significados tão arraigados ao patrimônio e ao patriarcado30.
Tendo em vista que, na atualidade, os relacionamentos estão calcados na afetividade,
desejo e interesses pessoais - os quais dificilmente podem se delimitar em apenas
uma forma ou no que seria correto de acordo as aspirações morais do Estado -,
deveríamos nos aproximar ainda mais da autonomia da vontade, no sentido de
permitir que quem está em um relacionamento afetivo e busque segurança jurídica,
adote o que melhor lhe convier através de um contrato. Contrato este que, à luz da
Constituição, comporte os desejos das partes. Isto porque o contrato é um instrumento
formado pelo acordo de vontades dos contraentes,31 e é uma solução para àqueles
que decidem que nenhum termo ou forma de família (estabelecidas pelo Código Civil)
deve os regular, ou para os casos nos quais eles são insuficientes, tendo receio de
que devam defender seu patrimônio, como já vem acontecendo.32
Quanto àqueles que se relacionam sem decidir o que fazer com o patrimônio,
nada mais justo que o patrimônio não se comunique e o que tiver sido adquirido junto
se divida de acordo com a quota parte de cada um.
, àqueles que querem aderir aos institutos já previstos (não precisando haver
criação de outros ou delimitar os já existentes) abrir a possibilidade a todos sem que
se faça acepção.
É deixar que o amor e a felicidade cumpram com o papel de fazer existir o
relacionamento, que as relações se mantenham humanas, ligada por desejos e
afinidades, carinho, apoio mútuo, e que a fidelidade – característica tão particular –
também possa ser definida por quem realmente se interessa na situação. É fazer
importar o que torna a pessoa um ser humano real, dotado de sentimentos, e não
transformar tudo isso numa palavra ou duas que defina tudo o que tem que viver. 33

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Editora Jorge Zahar LTDA., 2014.
Bíblia de Estudo das Profecias. Belo Horizonte e Barueri, Editora Atos e Sociedade
Bíblica do Brasil, 2001.
BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/l10406.htm>. Acesso em 07.08.2018
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em
07.08.2018.
CARVALHO, D.M. Direito das Famílias. 5.ed. São Paulo: Editora Saraiva Jur, 2017.

29
Consonante ao esclarecido pelos entrevistados Manuel José Bermudez Andrade, John Alejandro Rodriguez Ramirez e Victor
Hugo Prada Ardila é possível compreender a luta judicial travada do trieja para conseguir a escritura pública e o desejo da
constituição do casamento futuramente.
30
A introdução histórica desse trabalho, dá base a entrevista do casal A. M. B. e T.D. que entende o casamento como uma
imposição religiosa e patrimonial.
31
DINIZ, M.H. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. 33.ed. São Paulo:
Editora Saraiva Jur, 2017. cit.p. 56-60.
32
Leia a reportagem de um casal que já aderiu ao contrato de namoro em: https://oglobo.globo.com/ela/gente/cultura-em-
gente/casais-tem-feito-contratos-de-namoro-para-proteger-bens-num-possivel-termino-22758598. Acesso em: 23.10.2018
33
Por meio da entrevista de campo, foi possível visualizar como cada história de cada relacionamento é vivenciada de maneira
diferente, por pessoas com características diferentes, com desejos e escolhas totalmente diversas uma das outras, tornando
como único meio de igualdade o motivo de envolvimento que são os sentimentos de amor.
996

DIAS, M.B. Manual de Direito das Famílias. 12.ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2017.
DINIZ, M.H. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito De Família. 31.ed. São Paulo:
Editora Saraiva Jur, 2017.
DINIZ, M.H. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Das Obrigações Contratuais e
Extracontratuais. 33.ed. São Paulo: Editora Saraiva Jur, 2017.
ENGELS, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 2.ed. Rio de
Janeiro: Editora BestBolso, 2016
FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: A Vontade do Saber; Tradução Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 5.ed. São Paulo: Editora
Paz e Terra, 2017
G1. Colômbia Aprova Casamento Entre Pessoas Do Mesmo Sexo. Disponível em
<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/04/colombia-aprova-casamento-entre-
pessoas-do-mesmo-sexo.html>. Acesso no dia 23 de junho de 2018.
GONÇALVES, C. R. Direto de Família. 14.ed. São Paulo: Editora Saraiva Jur, 2017.
MALUF, A.C.R.F.D. Novas Modalidades de Família na Pós-Modernidade.2010. Tese
em Direito – Universidade de São Paulo, São Paulo.
PRIORE, M. Del. História do Amor no Brasil. 3.ed. São Paulo: Editora Contexto, 2015.
RAMOS, A.C. Curso de Direitos Humanos. 4.ed. São Paulo: Editora Sairava Jur, 2017.
SARLET, I. W.; MARINONI, L.G.; MITIDIERO, D. Curso de Direito Constitucional.
6.ed. São Paulo: Editora Saraiva Jur, 2017.
SILVA, C. E. História e Desenvolvimento do Conceito de Família. 2005. Dissertação
em Direito das Relações Sociais – Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo.
TRATADO INTERNACIONAL. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Disponível em
<http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/2decla.htm
>. Acesso em: 07 de ago. de 2018.
997

NORMAS DE PROTEÇÃO À MULHER CONTRA A VIOLÊNCIA BASEADA NO


GÊNERO, NOS PAÍSES DA CPLP – UM ESTUDO COMPARADO
LEGAL NORMS FOR PROTECTING WOMEN AGAINST GENDER-BASED
VIOLENCE IN CPLP COUNTRIES – A COMPARATIVE STUDY.

Bianca Amaral Rodrigues


Renato Matsui Psciotta

Resumo: O presente projeto discute as leis e medidas normativas de proteção às


mulheres contra a violência baseada no gênero nos nove países-membros da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em promoção ao 25º
aniversário da primeira Decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre
Eliminação da Violência Contra as Mulheres (Declaração sobre a Eliminação da
Violência Contra a Mulher), por meio de uma análise comparativa, buscando levantar
as semelhanças e dessemelhanças sociais e normativas entre estes Estados, de
modo a mapear os caminhos jurídicos que a questão da violência contra a mulher vem
traçando nesse recorte político, a fim de apontar as conquistas auferidas.
Palavras-chave: leis; violência baseada no gênero; CPLP.

Abstract: This project discusses the laws and normative measures to protect women
against gender-based violence in the nine member countries of the Community of
Portuguese Speaking Countries (CPLP), promoting the 25th anniversary of the first
United Nations General Assembly Decision on Elimination of Violence Against Women
(Declaration on the Elimination of Violence Against Women), through a comparative
analysis, seeking to raise the similarities and dissimilar social and normative between
these States, in order to map the legal paths that the issue of violence against women
has been drawing on this political cut, in order to point out the achievements
Keywords: laws; violence based on gender; CPLP.

1. INTRODUÇÃO

Dados publicados em 2018 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) indicam


que 35% das mulheres do mundo já sofreram algum tipo de violência física ou sexual
em algum momento de suas vidas. Diante deste cenário, para comemorar os 25 anos
da primeira Decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre Eliminação da
Violência Contra as Mulheres (Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra a
Mulher), e com o escopo de erradicar as discriminações em razão de gênero que
persistem, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) declarou em
2017, durante a V Reunião de Ministros Responsáveis pela Igualdade de Gênero da
Comunidade Dos Países De Língua Portuguesa, que 2018 seria o “Ano da CPLP por
uma vida livre de violência contra mulheres e meninas”.
São países-membros da CPLP a Angola, o Brasil, Cabo Verde, a Guiné Bissau,
a Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste que,
irmanados pelo idioma, comprometeram-se a cooperarem em todos os domínios.
Posto isso, o presente trabalho tem por escopo mapear os caminhos jurídicos que a
questão da violência contra a mulher, baseada no gênero, vem traçando nesse recorte
político.

2. ASPECTOS CONCEITUAIS DE SEXO E DE GÊNERO


998

Inicialmente, importa distinguir as definições de ‘sexo’ e ‘gênero’, que embora


comumente confundidas, não apostam da mesma natureza conceitual. Para Varikas
(2016, p. 95), o estudo do gênero como “uma verdadeira grade de análise” emergiu
de uma crítica da história social, na década de 1960, período em que se
experimentava diretamente as “estruturas abstratas de dominação e de exploração”
(2016, p. 99), desta feita, tais conceitos podem ser extraídos das experiências
diferentes de homens e mulheres, de modo que, segundo a autora, ‘mulheres’ é grupo
social, ao passo que ‘gênero’ é produto de relações de poder e de diferenciação
hierárquica.
Em outras palavras, o sexo está associado à forma física do ser humano,
classificando-o como ‘homem’ ou ‘mulher’ em virtude de características
essencialmente biológicas; o gênero, por sua vez, consiste no “elemento constitutivo
das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos” (Scott 1995,
p.86), isso é, relaciona-se com a conduta social – feminina ou masculina –
condicionada à cultura prevalente no tempo e no lugar onde os corpos sexuados
vivem.
De acordo com Souza (2013), “o conceito de gênero foi base da formulação do
conceito da violência contra a mulher”, assim, idealizando democratizar globalmente
as relações sociais entre os gêneros, as Organizações internacionais lograram
diversas ações afirmativas, adotando políticas compensatórias para aliviar e remediar
as condições resultantes de um passado marcado pela discriminação, viabilizando o
direito à igualdade (Piovesan, 2005). Dentre as referidas medidas, destaca-se a
Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra a Mulher, de 1993 – a primeira
Decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre Eliminação da Violência
Contra as Mulheres. Para fins deste projeto, recortar-se-á a pesquisa à questão da
violência contra a mulher, baseada no gênero feminino.

3. DA COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA – CPLP

Fundada em 17 de julho de 1996, a Comunidade dos Países de Língua


Portuguesa, conhecida como CPLP, composta pelos 09 países que falam o idioma
português – já especificados na Introdução –, constituiu-se com o objetivo de que
estes Estados irmanados pelo idioma cooperassem “em todos os domínios, inclusive
os da educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, agricultura, administração
pública, comunicações, justiça, segurança pública, cultura, desporto e comunicação
social”, bem como para a “materialização de projetos de promoção e difusão da Língua
Portuguesa” (artigo 3º dos Estatutos da CPLP).

4. DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Definida na Declaração sobre Eliminação da Violência contra a Mulher, em


1993, “violência contra as mulheres” consiste em:
qualquer ato de violência baseado no gênero que resulte, ou possa resultar, em
dano físico, sexual ou psicológico ou em sofrimento para a mulher, inclusive as
ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, podendo ocorrer
na esfera pública ou na esfera privada (artigo 1º).
Reconhecendo a violência contra a mulher, sobretudo, como uma violação aos
direitos humanos da vítima, Silva (2010, p. 560) discorre não compreender a violência
contra as mulheres “apenas como um ou vários atos sistematizados de agressão
contra o seu corpo, seja da ordem do abuso sexual, seja do espancamento, da tortura
999

física ou psicológica”. Para o autor, a violência suportada pelas mulheres está


“enraizada no imaginário social coletivo da nossa sociedade, de homens, mas também
de mulheres, que legitimam a subordinação do sujeito feminino ao domínio do poder
masculino” o qual se mascara nas linguagens cotidianas, razão pela qual repreender
o agressor se torna “uma bandeira de luta não só para as mulheres mas também para
todo aquele que compreende como universal a igualdade entre todos e o
reconhecimento do outro como um do nós” (2010. ps. 564-5650).
Corroborando com a indicação de Silva de que a violência baseada no gênero
é fruto de uma aceitação social, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), em
conjunto com a Organização Mundial da Saúde (OMS) pontua que as agreções
podem ocorrer em todos os estágios da vida (infância, adolescência, vida adulta e
velhice) e que as violências física, sexual e emocional praticadas pelo parceiro são as
formas mais prevalentes – a OPAS/OMS (2015, p. 05) estima que, em 2015, 30% das
mulheres nas Américas já haviam sofrido violência física e/ou sexual praticada pelo
parceiro; e 11%, praticada por um agressor que não seja o parceiro.
Em face desta realidade, a OPAS/OMS percebeu que além dos prejuízos
pertinentes à vida privada da vítima, “a violência contra a mulher é um problema de
saúde pública”, o qual reflete-se nos orçamentos nacionais e no desenvolvimento
econômico do Estado, eis que resulta em custos diretos em saúde, assistência social,
justiça criminal e tribunais de justiça da família. Nesse sentido, um estudo realizado
nos Estados Unidos revelou que, em 2015, “os gastos em saúde foram
aproximadamente 42% maiores para mulheres que sofreram violência praticada pelo
parceiro comparadas às mulheres que não sofreram violência” (OPAS/OMS, 2015, p.
08).
Ademais, as Organizações salientam a ocorrência de custos indiretos
dispendidos às sobreviventes, familiares, empregadores e a sociedade como um todo
devido à perda de produtividade e consequências psicossociais negativas nas
mulheres e seus filhos. (OPAS/OMS, 2015, ps. 08/09).

5. DA ASSINATURA DE NORMAS INTERNACIONAIS

DIREITO INTERNACIONAL DA MULHER


Assinaturas das principais Normas Internacionais
Convenção
Convenção sobre a
sobre Convenção sobre a
Países Eliminação de Todas as
Direitos Nacionalidade da
Formas de Discriminação
Políticos da Mulher Casada
contra as Mulheres
Mulher
Assinou em
Angola Não assinou Assinou em 17.09.1984
17.09.1986
Assinou em
Brasil Assinou em 04.12.1968 Assinou em 01.09.1984
13.08.1963
Cabo Verde Não assinou Não assinou Assinou em 05.12.1980
Guiné Bissau Não assinou Não assinou Assinou em 23.10.1984
Guiné Equatorial Não assinou Não assinou Assinou em 23.08.1985
Moçambique Não assinou Não assinou Assinou em 21.04.1997
Portugal Não assinou Assinou em 21.02.1995 Assinou em 30.07.1980
São Tomé e Príncipe Não assinou Não assinou Assinou em 03.06.2003
Timer Leste Não assinou Não assinou Assinou em 16.04.2003
Países que opuseram Brasil – ressalva ao artigo Brasil – ressalva ao artigo
----------
ressalvas 10. 29, §1º.
Fonte: quadro autoral. Informações disponibilizadas no website da ONU:
https://treaties.un.org/pages/Index.aspx.
1000

6. PAÍSES MEMBROS DA CPLP E SUAS LEGISLAÇÕES ENFRENTAMENTO À


VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

6.1. ANGOLA

A Constituição da República de Angola prevê o Princípio da Igualdade entre as


pessoas (artigo 23º), asseverando que ninguém poderá ser prejudicado, privilegiado
ou privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de sua
ascendência, sexo, raça etc. No âmbito da proteção à mulher contra a violência
baseada no gênero, pode-se citar a Lei nº 25/11 (Contra a Violência Doméstica e o
seu Regulamento).
Para compreender as referidas normas, importa saber que em Angola existe
um conceito expansivo de família, de modo que em alguns lugares do país ainda se
preservam certos traços tradicionais, considerando como ‘família’ a comunidade de
parentes e pessoas próximas. Por este motivo, nesta cultura, a lei considera como
violência doméstica também aquela que é praticada no seio familiar, como também a
que tem lugar em infantários, asilos, hospitais, escolas, internatos e outros espaços
equiparados, consoante artigo 2º da Lei nº 25/11.
A violência praticada entre os cônjuges ou companheiros – podendo ocupar o
polo ativo tanto o homem quanto a mulher – é chamada de “abuso conjugal” e não
encontra respaldo expresso na lei.

6.2. BRASIL

A Constituição Federal brasileira estabelece como direito fundamental a


igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres. No âmbito do Direito
Penal, à vista de garantir o exercício efetivo desta igualdade, possui notória relevância
a Lei nº 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, a qual alterou o Código Penal
Brasileiro, tornando mais rigorosa a punição para qualquer tipo de violência (física,
psicológica, patrimonial ou moral) praticada em face de mulheres, quando ocorridas
no ambiente doméstico e familiar. Esta lei se aplica também para casais homoafetivos,
formados por duas mulheres ou transgêneros que se identificarem com o gênero
feminino. Em 2009, foi apontada pelo relatório ‘Progresso das Mulheres no Mundo:
Gênero e Responsabilização’ como uma das leis de violência doméstica mais
avançadas do mundo (ONU, 2009, p. 85).
Outro importante dispositivo de proteção à violência baseada no gênero é a Lei
do Feminicídio (Lei 13.104/15, sancionada em 9 de março de 2015). Alterando o artigo
121 do Código Penal, incluiu o Feminicídio como uma modalidade de homicídio
qualificado, quando resta comprovado que o motivo para a ocorrência do crime se deu
exclusivamente por questões de gênero, ou seja, quando uma mulher é morta
simplesmente por ser mulher.

6.3. CABO VERDE

Vedando a privação de direitos aos cidadãos em razão de sexo (artigos 1º e


24º da Constituição da República), Cabo Verde resguarda a defesa da família por
meio da tipificação da Violência Doméstica praticada contra qualquer ente familiar
(artigo 82º da Constituição).
Ao notar as diferenças sociais e culturais vivenciadas entre os sexos, frutos das
relações de poder e desigualdades historicamente construídas por homens sobre as
1001

mulheres, o legislador reconheceu a especificidade da violência daquele contra esta,


em razão do seu gênero. Desta feita, para fins de prevenir essa conduta e punir os
coatores, foi aprovada em 2011 a Lei 84/VII (Lei Especial sobre Violência Baseada no
Gênero), a qual limita-se à proteção das mulheres que sofrem violência pelo motivo
de serem mulheres, constituindo verdadeiro avanço legislativo.

6.4. GUINÉ BISSAU

A Constituição guineense não dispõe direitos iguais a ambos os sexos, todavia,


o artigo 37º do seu corpo explicita a proibição de “todas as formas de violência contra
a integridade física e moral dos cidadãos”.
No Código Penal, Título II (Dos Crimes Contra as Pessoas), Capítulo V (Dos
Crimes Contra a Liberdade Sexual), há expressa previsão da violência sexual contra
mulher como ilícito penal, inclusive, agravado hipótese de a vítima estar “numa
situação de dependência familiar, subordinação hierárquica ou sob vigilância ou
confiado à guarda do agente” (artigo 177º, 2., “a”). Há ainda, leis especiais que
defendem exclusivamente a mulher, em razão de alguma peculiaridade social, tal
como a Lei Contra a Violência Doméstica (Lei 6/2014), a qual consiste na defesa da
mulher, no ambiente doméstico, contra as violências física, psicológica, sexual,
patrimonial e contra a restrição de liberdade.
Outra norma específica de grande importância no contexto histórico deste país
é a Lei nº14/2011, a qual criminaliza a prática da Excisão Feminina. O artigo 2º
conceitua “Excisão” como “toda a forma de amputação, incisão ou ablação parcial ou
total de órgão genital externo da pessoa do sexo feminino, bem com todas as ofensas
corporais praticadas sobre aquele órgão por razões sociocultural, religiosa, higiene ou
qualquer razão invocada”.

6.5. GUINÉ EQUATORIAL

Pese os esforços despendidos, não foi possível a levantar informações


referentes à existência de leis ou medidas governamentais na Guiné Equatorial para
o combate de alguma forma de violência contra as mulheres, eis que este país não
disponibiliza quaisquer dados oficiais ou extraoficiais acerca. Ante este impasse,
foram efetuados contatos via telefone e e-mail junto à Embaixada da Guiné Equatorial
no Brasil requerendo referências, todavia, até o momento da submissão deste
trabalho, não sucederam respostas.

6.6. MOÇAMBIQUE

A Constituição da República de Moçambique inclui o Princípio da Igualdade aos


objetivos fundamentais do Estado (artigo 11, “e”). Diante disso, o Legislativo aprovou
a Lei da Família (Lei nº 10/2004), a qual determinou a igualdade de gênero perante a
lei, corrigindo certas discrepâncias promovidas pela lei anterior. À partir de dela,
homens e mulheres passaram a possuir os mesmos direitos de casarem-se,
divorciarem-se, possuírem a guarda sobre os filhos e, finalmente, igualdade na divisão
de bens no casamento.
À vista disso, foi aprovada a Lei nº 29/2009, a qual trata da violência Para fins
desta lei, considera-se a violência doméstica a violência física simples ou grave, a
violência psicológica, moral, sexual, patrimonial e a violência social – 13º a 20º. Apesar
1002

da maior parte do texto utilizar a expressão “mulher” ao se referir à vítima, o artigo 36º
assegura iguais direitos aos homens.

6.7. PORTUGAL

Diante do reconhecimento português ao Princípio da Igualdade disposto no


artigo 13º da Constituição da República, o Código Penal de Portugal estabeleceu em
seu artigo 152º o crime de “Violência Doméstica”, in verbis, “quem, de modo reiterado
ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações
da liberdade e ofensas sexuais em desfavor do cônjuge ou ex-cônjuge, ou de pessoa
com quem mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação
análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação. Em 2009 foi publicada a Lei nº
112/2009, a qual estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência
doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas.

6.8. SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

O Princípio da Igualdade está previsto no artigo 15.º da Constituição Política de


São Tomé e Príncipe, reiterando-se nos artigos 26º/3; 32º; 42º/3; 55.º e 59º. No mais,
foi aprovada em 29 de outubro de 2008 a Lei n.º 11/2008, sobre a violência doméstica,
buscando garantir a proteção das mulheres no ambiente familiar. Para os fins dessa
lei, considera-se violência doméstica qualquer ação ou omissão ocorrida no âmbito da
unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto, que cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, bem como dano moral,
patrimonial ou privação de liberdade (artigos 5º e 7).
Em decorrência disso, foi aprovada, também, a Lei nº 6/2012, a qual institui o
Novo Código Penal são-tomense, no qual restou tipificado, pela primeira vez, o crime
de violência doméstica. Também foram tipificados os crimes contra a liberdade e
autodeterminação sexual (capítulo V), coação sexual e assédio (art.166º), a violação
(art.167º) e o lenocínio (art.173º).

6.9. TIMOR LESTE

A Constituição da República Democrática de Timor Leste preceitua em seu


artigo 17º o Princípio da Igualdade. Em razão disso, visando proteger a vítimas de
discriminações sofridas no seio familiar, o Código Penal nacional tipificou algumas das
condutas que podem gerar dano à pessoa neste ambiente, tais como o homicídio na
sua forma agravada, quando a vítima for cônjuge, descendente, ascendente, colateral,
familiar afim até ao segundo grau – (artigo 139º, “g”) e; os maus tratos a cônjuge
(artigo 154º).
Ademais, foi também aprovada a Lei n.º 7/2010, ficando conhecida como Lei
Contra a Violência Doméstica, considerando como violência doméstica “qualquer acto
ou sequência de actos cometidos num contexto familiar, com ou sem coabitação, por
um membro da família contra qualquer dos seus membros (...) do qual ou dos quais
resultem ou possam resultar, danos ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, abuso
económico, incluindo ameaças e privação da liberdade (...)” (artigo 2ª). Esta lei protege
tanto mulheres, quanto homens. vítimas de violência doméstica.

7. CONCLUSÃO
1003

Diante dos quadros normativos apresentados, foi possível constatar que na


maioria dos países pesquisados, as legislações locais reduzem a amplitude de
variáveis da violência contra a mulher à violência doméstica, fundindo os seus
conceitos, ao invés de reconhecerem esta como apenas uma das formas de ‘violência
baseada no gênero’. Observou-se também que a violência no ambiente familiar é a
modalidade de violência contra a mulher cuja tipificação se apresentou mais
recorrente, tendo todos os oito países criminalizado a conduta – fato que demonstra
o reconhecimento estatal de que o lugar mais inseguro para as mulheres, geralmente,
é o próprio lar. Foi possível analisar, ainda, que as diferenças históricas e culturais
entre essas nações se refletem nas leis promulgadas e, inclusive, no próprio conceito
de “violência doméstica”.
Os dados coletados nesta pesquisa não somente apontam a gravidade e
complexidade das relações abusivas a que muitas mulheres são submetidas, como
também demonstram que a violência baseada no gênero está enraizada nas
sociedades estudadas e, principalmente, estruturadas sobre o ambiente familiar –
fatores que dificultam sobremaneira a desvinculação das vítimas, em relação aos
agressores. Evitar esses episódios é dever do Estado não somente perante essas
mulheres, mas sobretudo em relação à proteção do bem público, tendo em vista os
diversos dispêndios econômicos decorrentes do sofrimento particular da ofendida e
de seus entes próximos – os quais serão, consequentemente, suportados pela
coletividade.
Por fim, conclui-se que, dada a relevância coletiva desta problemática, é
insuficiente a criação de leis punitivas às condutas violentas e discriminatórias
desferidas em face de mulheres em razão de seu gênero, se não acompanhadas de
políticas públicas de conscientização e prevenção do pensamento patriarcal de
submissão do que é feminino, ao masculino. Aposta-se, portanto, que a melhor
maneira de combater a violência baseada no gênero é inserção de preceitos
igualitários ao pensamento social sem, necessariamente, alterar as bases culturais da
respectiva sociedade.

8. REFERÊNCIAS

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1006

O CASO POVO INDÍGENA XUCURU E MEMBROS VS. BRASIL NA CORTE


INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
THE CASE OF THE INDIGENOUS PEOPLE XUCURU AND ITS MEMBERS VS.
BRAZIL IN THE INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS

João Vitor Martin Corrêa Siqueira


Valter Moura do Carmo

Resumo: A pesquisa tem como objetivo estudar a evolução jurisprudencial da Corte


Interamericana de Direitos Humanos quanto ao reconhecimento de sujeitos coletivos,
como vítimas de violações de Direitos Humanos, selecionando, para tanto, os casos
envolvendo os povos indígenas, suas terras ancestrais e os recursos naturais. No
atual estágio de sua jurisprudência, relativa ao exercício de sua competência para o
julgamento de casos contenciosos, dentre a linha de estudo proposto, devemos
evidenciar o último acontecimento, referente ao povo indígena brasileiro Xucuru e
seus membros. Na ação movida, o Brasil foi declarado internacionalmente
responsável pela violação do direito à garantia judicial de prazo razoável, bem como
pela violação dos direitos de proteção judicial e à propriedade coletiva. Para atingir os
objetivos desta, optou-se por realizar principalmente pesquisa do tipo bibliográfica,
com análise jurisprudencial, doutrina Nacional e Estrangeira. Por fim, esta pesquisa
busca analisar a repercussão no Brasil da decisão da Corte interamericana de Direitos
Humanos referente à comunidade Xucuru, e verificar a eficácia dessa decisão no
cenário brasileiro.
Palavras-chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos. Direitos Humanos.
Povo Indígena Xucuru.

Abstract: The objective of this research is to study the jurisprudential evolution of the
Inter-American Court of Human Rights regarding the recognition of collective subjects
as victims of human rights violations, selecting cases involving indigenous peoples,
their ancestral lands and natural resources. In the current stage of its jurisprudence,
regarding the exercise of its jurisdiction for the adjudication of contentious cases,
among the proposed line of study, we must highlight the last event, referring to the
Brazilian indigenous people called Xucuru and its members. In this lawsuit, Brazil was
internationally declared responsible for violating the right to a judicial guarantee with a
reasonable term, as well as for violating the rights of judicial and collective property
protection. In order to reach the objectives of the research project, we opted to carry
out mainly a research of the bibliographic type, with jurisprudential analysis, and
National and Foreign doctrine; finally, this research seeks to analyze the repercussion
in Brazil of the decision of the Inter-American Court of Human Rights concerning the
Xucuru community, and verify the effectiveness of this decision in the Brazilian
scenarios of indigenous territorial demands.
Keywords: Inter-American Court of Human Rights. Human Rights. Indigenous People
Xucuru.

INTRODUÇÃO

O sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos pode apresentar


diferentes âmbitos de aplicação, o sistema global e o sistema regional de proteção
aos Direitos Humanos. Ao lado do sistema global, surge o sistema regional de
proteção, que busca internacionalizar os Direitos Humanos no plano regional. Há,
1007

atualmente, três sistemas regionais principais, o europeu, o interamericano e o


africano. O sistema interamericano tem como principal instrumento a Convenção
Americana de Direitos Humanos de 1969, que estabelece a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A presente pesquisa recai seus olhares na evolução jurisprudencial da Corte
Interamericana de Direitos Humanos visto que é um órgão judicial autônomo que tem
sede em San José (Costa Rica), cujo propósito é aplicar e interpretar a Convenção
Americana de Direitos Humanos e outros tratados de Direitos Humanos. Também faz
parte do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (com sede em Washington). Para atingir os
objetivos desta, optou-se por realizar principalmente pesquisa do tipo bibliográfica,
com análise jurisprudencial, doutrina Nacional e Estrangeira.
Ao que tange a Corte Interamericana de Direitos Humanos, é composta por
sete juízes, de diferentes nacionalidades, nacionais dos estados-membros da
Organização dos Estados Americanos - OEA, esses são juristas de reconhecida
competência, eleitos por meio de voto secreto, sendo cada Estado-parte podendo
indicar até 3 candidatos, e o fazendo, devem indicar, também, ao menos 1 que não
seja nacional (artigo 53, CADH).
Quanto à competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com
base no artigo 62, a mesma tem competência para conhecer de qualquer caso relativo
à interpretação e aplicação das disposições da CADH que lhe seja submetido, desde
que os Estados Partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida
competência, seja por declaração especial, seja por convenção especial. Segundo o
disposto no artigo 63 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a Corte pode
determinar basicamente que seja assegurado o gozo do direito ou liberdade violados,
e se o caso que sejam reparadas as consequências da violação, além do pagamento
de indenização ao lesado. Prossegue o dispositivo esclarecendo que mesmo antes
do final do julgamento a Corte pode tomar providências provisórias, bem como podem
intervir quando o caso ainda estiver na Comissão desde que esta requeira.

DESENVOLVIMENTO

No atual estágio de sua jurisprudência, relativa ao exercício de sua


competência para o julgamento de casos contenciosos, no sistema de petições
individuais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já se pronunciou nos
seguintes casos relativos a reclamos territoriais de povos indígenas:
comunidade Mayagna (Sumo), Awas Tingni contra Nicarágua (2001), o Estado foi
condenado por não efetuar a demarcação do território indígena(GARCIA;LAZARI,
2017, p. 326); Massacre de Plan de Sánchez contra Guatemala (2004) .
Todos os casos seguintes contra o Paraguai: comunidades indígenas Yakye
Axa (2005), Sawhoyamaxa (2006) e Xâkmok Kásek (2010) condenaram o Estado por
ter vendido parte do território indígena para custear parte da dívida da guerra da
aliança, objetivo da causa, é a violação do Estado ao direito de propriedade artesanal
da comunidade, em meio às discussões o povo teria ficado em condições
degradantes, como falta de saneamento básico, cuidados médicos e alimentação,
entre outras questões de reparação, reabilitação, e não repetição, determinou-se
centralmente a devolução das terras, a Corte entendeu que o estado teria cometido
violação dos Direitos Humanos, e determinou que o território fosse devolvido e
protegido, e que os serviços básicos deveriam ser prestados à população indígena,
1008

e a legislação interna fosse adequada sem prejuízo da reparação dos danos


causados a esses.(GARCIA; LAZARI, 2017, p. 325)
Povo Kichwa de Sarayaku contra o Equador (2012), condenando o Estado
equatoriano por ter permitido a exploração de petróleo por empresa privada sem
autorização dos povos que ocupavam o território. O povo teria sido forçado a aceitar
acordos, nesse sentido argumenta-se que não há um diálogo do Estado com o povo
indígena, e que em nenhum momento foi feita a consulta prévia; A Corte deu razão
ao povo, e julgou o Estado como responsável pela violação, estabelecendo como
medidas a serem tomadas: a regularização dos procedimentos de consulta prévia,
reconhecimento da responsabilidade Internacional, e a reparação dos danos.
(GARCIA; LAZARI, 2017, p. 325). Mas recentemente a Corte se debruçou sobre o
Caso Povo Xucuru versus Brasil.
O conflito ensejou esta ação, iniciou em 1989, com a criação do Grupo Técnico
da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), o qual emitiu o Relatório de Identificação, em
6 de setembro, demostrando que os Xucuru tinham direito a uma área de 26.980
hectares. A razão do início desse conflito, começou quando os proprietários de terras
reivindicaram a posse para as áreas fossem sublocadas, visto que a terra ocupada
não acolhia somente os moradores indígenas, mas também por volta de seis pessoas
que não haviam ali nascido.
Ao que se trata, a repartição do território, que posteriormente se tornaria uma
das maiores reservas indígenas do Brasil, o povo Xucuru, em prol de unir os povos
anteriormente separados e oprimidos, não podendo externar sua própria identidade
étnica, como sua língua, seu modo de viver, seus ritos e rituais ligadas com suas
tradições. Visto que há relatos, nos quais é constatada a xenofobia que este povo vem
sofrendo diariamente, não somente com assassinatos, e outras formas de torturas
hediondas, como esquartejamentos dos indígenas entre outras alegações, essas
ressaltadas por Marcos, Cacique do povo Xucuru.
Ao falar perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, mostrando todas
as mazelas que os requerentes do processo passam quanto as demoras das
respostas a quem foram supliciadas ao Judiciário, Executivo e Legislativo brasileiro,
que não apresentaram nenhuma solução, e em relação com os direitos dos povos
indígenas e amorosidade das demarcações em seus territórios para que o caso não
se agravasse mais.
Os dois aspectos apresentados na sentença declaratória referente à Comissão
como os representantes alegaram um agravo ao direito de propriedade coletiva pela
falta de segurança jurídica em duas vertentes: por um lado, sobre o direito de
propriedade a respeito do território Xucuru e a falta de eficácia das ações realizadas
pelo Estado para efetuar o registro e titulação do território e por outro, referente à falta
de segurança jurídica no uso e gozo da propriedade, em decorrência da demora na
desintrusão do território.
Com tudo, a reserva indígena não abriga somente os que ali nasceram como
anteriormente mencionado, no que tange a dignidade humana destes, posso
identificar alguns procedimentos adotados pelo o povo Xucuru, para fornecer
melhores condições de vida aos que ali residem, portanto como forma alfabetização,
as escolas que estão dentro da reserva, chegando na época do referido
caso, capacitavam em torno de 3.000 alunos, somente do povo Xucuru. Pois os que
ali não nasceram, estes contavam com apoio da Prefeitura Municipal de Pesqueira
para o transporte, fazendo o translado dos estudantes, irem as escolas do
destinado Município. Pois a educação aplicada ao ensino dos indígenas é
diferenciada, aplicando suas tradições, costumes, língua e crença a metodologia
1009

de ensino. Quanto ao Sistema de Saúde apresentado aos indígenas que estão dentro
da referida reserva de proteção, estes têm atendimento médico pois ocupam e se
colocam dentro do das limitações territoriais.
Com todos estes dados apresentados, vemos nitidamente que os
povos indígenas, aqui representados pelo povo Xucuru, aparentemente são
sociedades autônomas, visto que os próprios se colocam em sentido extremamente
reservado, conservando suas tradições e costumes, esses são organizados,
fornecendo estruturas e dignidade para os indígenas, e para os que não eram
naturais da reserva e que ali vivem. Porém, é preciso deixar nítido que estes, ainda
com todas as características mencionadas anteriormente, são absolutamente ligados
ao Estado brasileiro, pois pertencem ao território Nacional.
Os dois aspectos apresentados na sentença declaratória referentes à
Comissão como os representantes alegaram um agravo ao direito de propriedade
coletiva pela falta de segurança jurídica em duas vertentes; Por um lado, sobre o
direito de propriedade a respeito do território Xucuru e a falta de eficácia das ações
realizadas pelo Estado para efetuar o registro e titulação do território e por outro,
referente a falta de segurança jurídica no uso e gozo da propriedade, em decorrência
da demora na desintrusão do território.
Em virtude do exposto, a Corte realizou considerações sobre o alcance das
obrigações decorrentes do dever geral de garantia a respeito do artigo 21 da
Convenção bem como sua relação com a noção de “segurança jurídica”, à luz do
Direito Internacional dos Direitos Humanos, com o objetivo de determinar se as ações
e as alegadas omissões do Estado brasileiro comprometem sua responsabilidade
internacional pelo descumprimento da obrigação geral antes citada, bem como pela
ineficácia dos processos administrativos.
A Corte estabeleceu que sua Sentença constitui por si mesma uma forma de
reparação e, adicionalmente, então ordenou ao Estado a garantir, de maneira imediata
e efetiva, o direito de propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru sobre seu
território, de modo que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano, por parte
de terceiros ou agentes do Estado que possam depreciar a existência, o valor, o uso
ou o gozo de seu território e concluir o processo de desintrusão do território indígena
Xucuru, com extrema diligência.
Tendo que efetuar os pagamentos das indenizações por benfeitorias de boa-fé
pendentes e remover qualquer tipo de obstáculo ou interferência sobre o território em
questão, de modo a garantir o domínio pleno e efetivo do povo Xucuru sobre seu
território, em prazo não superior a 18 meses; realizar as publicações indicadas na
Sentença; pagar as quantias fixadas, a título de custas e indenizações por dano
imaterial e no prazo de um ano, contado a partir da notificação desta, e apresentar ao
Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para seu cumprimento.

CONCLUSÃO

Enfim, a falta de segurança e outros aspectos que deixam a desejar referentes


à proteção desses povos, apresenta-se muito mais além do que um
preconceito linguístico ou racial contra os povos Indígenas, mais se concretiza no
verdadeiro desrespeito. Contrariando quaisquer condições positivadas pelos Direitos,
Nacionais e Internacionais de Diretos Humanos. Em suma a Convenção sobre a
Promoção da Diversidade das Expressões Culturais de 20 de outubro de 2005, cujo
foi promulgada no Brasil através do Decreto número 6.177 de 1º de agosto de 2007,
1010

na qual destaca atingir diversos objetivos, como criar diálogos entre as culturas,
promover o respeito entre elas.
A ONU, ciente dos casos contenciosos que atentam com a gravidade
destes, fazendo a Declaração da Nações Unidas, sobre o Direito dos povos indígenas,
aprovada pela a Assembleia da ONU em 07 de setembro de 2007, na qual declarando
alguns aspectos como o direito dos povos indígenas, ou pessoas desfrute a plena
garantia dos Direitos Humanos, e Liberdades Fundamentais, entre outros aspectos
ressaltados na destinada declaração.
Vista a ação da Corte Interamericana em Direitos Humanos com a demanda
territorial do povo Xucuru, e sua sentença favorável aos indígenas, colocando o Brasil
internacionalmente responsável pela falta de segurança Jurídica e territorial da
reserva outrora conquistada pelos indígenas.

REFERÊNCIAS

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OEA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 1969. Disponível em:
<https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso
em: 18 out. 2018.
OEA. Corte IDH. Caso Pueblo Indígena Xucuru y sus miembros Vs. Brasil.
Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 5 de febrero
de 2018. Serie C No. 346. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/cf/Jurisprudencia2/index.cfm?lang=es>. Acesso em: 10 jul.
2018.
ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
2007. Disponível em:
<https://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf>. Acesso em: 10 jul.
2018.
1011

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA SOB O ENFOQUE DA


PARTURIENTE
THE PRINCIPLE OF THE DIGNITY OF THE HUMAN PERSON UNDER THE
PARTURENT'S APPROACH

Tiago Antunes Rezende


Luíza Carla Fábio

Resumo: O presente trabalho ter por objeto de estudo o princípio da dignidade da


pessoa humana. Ademais, o objetivo geral deste artigo é analisar o direito à gestação
digna e como objetivo especifico busca-se verificar as condições de parto das
mulheres que estão encarceradas. Como metodologia de pesquisa adota-se o método
hipotético dedutivo para chegar a uma conclusão cientificamente válida. O marco
teórico referencial deste trabalho são as regras de Bangkok, documento este que
dispõe sobre a dignidade humana das mulheres gestantes em situação de cárcere
privado. Nesse passo, pretende-se analisar neste trabalho a eficácia dos institutos
jurídicos nacionais e internacionais que objetivam proteger as mulheres que estão
cumprindo pena no sistema penitenciário.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Parturiente; Mulher.

Abstract: The purpose of this study is to study the principle of the dignity of the human
person. In addition, the general objective of this article is to analyze the right to a decent
gestation and, as a specific objective, seeks to verify the delivery conditions of women
who are incarcerated. As a research methodology, the hypothetical deductive method
is used to arrive at a scientifically valid conclusion. The theoretical framework of this
work is the rules of Bangkok, a document that deals with the human dignity of pregnant
women in situations of private jail. In this step, we intend to analyze in this work the
effectiveness of national and international legal institutes that aim to protect women
who are serving their sentence in the penitentiary system.
Keywords: Human Rights; Parturient; Woman.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objeto de estudo o princípio da dignidade da


pessoa humana, como objetivo geral estuda-se o direito à gestação digna, já como
objetivo específico se busca analisar as condições das mulheres gestantes que estão
encarceradas.
Como justificativa do tema observa-se que cárcere feminino possui
especificidades, haja vista que as mulheres menstruam, possuem filhos e muitos ficam
ou chegam grávidas ao cárcere.
Como problemática de pesquisa objetiva-se estudar se o Estado brasileiro tem
cumprido as normas de proteção às mulheres gestantes que estão cumprindo pena
no sistema penitenciaria, bem como analisar os avanços e desafios acerca da
proteção dos direitos das parturientes, bem como os possíveis desafios para a
concretização destes direitos.
Nesse passo, almeja-se analisar neste trabalho a eficácia dos institutos
jurídicos nacionais e internacionais que tenha por objetivo proteger as mulheres que
estão em situação de vulnerabilidade no sistema prisional, haja vista seu estado
gravídico.
1012

DESENVOLVIMENTO

Embora a gestação seja algo que acompanha a mulher desde os primórdios da


humanidade, devido às condições desiguais que tal gênero foi colocado na sociedade,
às mulheres sempre sofreram preconceitos e escassez de direitos em detrimentos a
outros gêneros.
Quando se fala em proteção à gestação o tema está fortemente ligado aos
Direitos Humanos e ao chamado princípio da dignidade da pessoa humana, porém
como o direito é uno e indivisível, tal tema possui ligações direitas com outros ramos
do direito. No âmbito internacional os primeiros reflexos da repercussão geral acerca
da necessidade de se proteger as mulheres gestantes podem ser verificados no direito
do trabalho por meio da Convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

A primeira Convenção da OIT sobre o tema “proteção à maternidade” foi


instituída em 1919, que é a de número 3 (três), que trata da “proteção à
maternidade, aplicável à indústria e ao comércio, que prevê diversos
direitos e garantias à mulher durante e após a gestação”. Outras
regulamentações da OIT sobre o tema podem ser encontradas nas
convenções nº 103,110, 102, 136 e nas recomendações nº 95, 4, 144,
114, 157, 128 e 116 (NASCIMENTO, IN OP.CIT., p. 18).

Observa-se que o direito do trabalho procurou tratar do tema de proteção à


mulher gestante de forma precisa, inclusive trazendo um capítulo específico que trata
dos direitos das mulheres parturientes, por força dos reflexos das convenções da OIT.
No entanto, embora os demais ramos do direito busquem tratar a gestação
como um estado natural do gênero feminino, o ramo do direito penal simplesmente
esqueceu-se de considerar às condições físicas e psíquicas das mulheres gestantes
que se encontram cumprindo pena no sistema penitenciário.

As destinações das normas que protegem a maternidade são, sob ângulo


da mulher, para resguardar o físico feminino, pois a mulher carrega dentro
de si uma nova vida durante 9 meses, com diversas alterações em seu
corpo, tanto internamente quanto externamente, além de sua moral, e sob
o ponto de vista da criança, os primeiros meses de vida ultra-uterina visam
a adequação e introdução do mesmo no seio da sociedade, além de
estabelecer as condições mínimas para a sua sobrevivência”
(MANDALOZZO, 1996, p. 35).

O Brasil é o país com a terceira maior popular carcerária do mundo com mais
de 700 mil presos, evidencia-se que há a necessidade de aplicação de Leis não só
para a pretensão punitiva estatal, mas também para a proteção das pessoas humanas
que estão encarcerados, em especial as mulheres gravidas.
Cumpre ressaltar que é de conhecimento popular que alguns estados
brasileiros as mulheres presas dão à luz em condições precárias, inclusive não tendo
o devido acompanhamento (pré-natal). Logo, faz-se necessário o Estado garantir o
direito da mulher de dar à luz ao seu filho em condições salubres e dignas para o ser
humano.
Diante da conduta omissiva do Estado, constata-se que embora os Direitos
Humanos possua o chamado efeito “clique” devendo sempre avançar e nunca
retroagir, para algumas camadas da sociedade ele é desconhecido e pouco difundido.
Assim, observa-se a necessidade de criação de leis para ampliar à proteção do direito
à maternidade das mulheres encarceradas.
1013

Cumpre destacar que em dezembro do ano de 2010, a Assembleia Geral da


ONU (Organização das Nações Unidas), aprovou regras mínimas para o tratamento
da mulher presa, este conjunto de regras ficou denominado como regras de Bangkok,
haja vista o papel do governo da Tailândia na construção e processo de aprovação
destas regras.

As Regras de Bangkok, entre outras considerações, contemplam a


realidade da mulher mãe em situação de prisão; o fato de que atualmente
a grande maioria de mulheres é presa pelo envolvimento com drogas; a
realidade das estrangeiras, a questão de saúde em geral e a saúde
mental, e o direito de contato com sua família (seja por visita ou por
telefone). (CERNEKA, 2012, p. 1-4).

Vale ressaltar que as regras de Bangkok possuem uma particularidade, pois o


objetivo é de estabelecer condições dignas para as mulheres que estejam cumprindo
pena no sistema penitenciário, haja vista sua condição biológica diferenciada do
gênero masculino. Todavia, observa-se que em todos os níveis e camadas sociais as
conquistas por meio de textos normativos para a população feminina chegam de forma
tardia.

Os sistemas prisionais foram construídos para homens, sendo, ao longo


dos anos adaptados às mulheres e, por esse motivo, estão em desacordo
com as necessidades femininas, o que torna as consequências da prisão
ainda mais severas. Não bastasse a inadequação estrutural do sistema
prisional às necessidades femininas, soma-se ao fato de que serviços
essenciais básicos voltados à saúde, tais como absorventes, por exemplo,
são sonegados no sistema prisional. Desse modo, verifica-se que o
cenário é de sistemática violação aos direitos humanos das mulheres em
situação de privação de liberdade. (AREAL; FETZNER; TAVARES, 2018).

Constitucionalmente falando, os direitos das mulheres encarceradas estão


previstos na Magna Carta de 1988, algo que pode ser considerado uma inovação e
também demonstra a necessidade de se ter leis infraconstitucionais para
regulamentar a matéria, pois os presídios são lotados, a falta de manutenção nas
edificações, a escassez de comida e produtos de higiene, sem falar no cultivo de
doenças e infecções, haja vista a falta de acompanhamento médico pelas mulheres
brasileiras inseridas no sistema penitenciário, porém tal situação se torna ainda mais
agravante para a mulher que esta gestante.
Em caráter infraconstitucional a chamada Lei de Execuções Penais – LEP e o
Código de Processo Penal regulam tal matéria, observa-se que além destes
dispositivos infraconstitucionais não há nenhum estatuto ou código específico a fim de
estabelecer condições dignas às mulheres encarceradas durante a gestação.
Destaca-se que o Brasil decidiu seguir as medidas sugeridas na regra nº 24,
após sete anos da aprovação das regras de Bangkok foi sancionada a Lei nº 13343
de 2017 que acrescenta o parágrafo único no artigo 292 do Código de Processo Penal
e proíbe o uso de algemas em mulheres grávidas durante a hora do parto, a referida
lei entrou em vigor em 12 de Abril de 2017, e pode ser considerado um grande avanço
para os direitos das mulheres gestantes encarceradas, tendo em vista que esse
instrumento objetiva trazer mais conforto, dignidade e menos risco à saúde das
mulheres na hora do parto.
A escassa legislação brasileira acerca da proteção das mulheres gestantes no
cárcere ganhou em seu rol um novo texto normativo que veda o uso das algemas
durante o parto, esse cenário demonstra há necessidade de se ampliar ainda mais a
1014

proteção às parturientes encarceradas, inclusive a Lei nº 13343 abre um novo


precedente para a discussão e luta dos direitos das mulheres encarceradas.
Embora seja considerado um avanço, é sabido que essas mulheres possuem
seus direitos violados todos os dias, e os filhos destas mães do cárcere já nascem e
passam seus primeiros meses de vida em um ambiente que viola de forma cristalina
o princípio da dignidade da pessoa humana.
Destarte, que há uma possibilidade já existente para a preservação da
dignidade destas mães presente no Código de Processo Penal em seu artigo 318, que
por sua vez permite a substituição da prisão preventiva pela domiciliar para a gestante
ou a mãe com filho de até 12 anos incompletos.
Observa-se que há no ordenamento jurídico normas que podem garantir a
proteção das mulheres encarceradas em estado gravídico, mas infelizmente não são
aplicadas devido à política brasileira de aprisionamento e negação aos Direitos
Humanos. Diante disso, faz-se necessário que o Estado esteja presente diante de
uma situação de violação de direitos, a fim de garantir que um parto sábio as mulheres
encarceradas.

CONCLUSÃO

A maternidade e a gestação são temas que acompanham a vida da mulher


desde os tempos mais remotos da humanidade, até os presentes tempos
contemporâneos. Embora sempre existentes na sociedade, mulheres sofreram ao
longo de décadas para que a proteção ao direito à maternidade fosse positiva no
ordenamento jurídico.
Não obstante que esta conquista de direitos tenha sido um avanço em alguns
ramos do direito, tais como o direito do trabalho e o direito previdenciário, no que tange
à proteção para com as mães em situação de cárcere, sempre houve uma deficiência
no ordenamento jurídico brasileiro.
No Brasil é um dos países com uma das maiores populações carcerárias do
mundo e estabelecimentos prisionais inadequados e desumanos para o cumprimento
das penas impostas, este cenário contribui para que ocorram graves violações aos
Direitos Humanos, porém com o gênero feminino essas violações são mais
impactantes, haja vista suas condições biológicas de mães e gestantes. Sendo assim
é sabido que diante da violação de direitos da pessoa humana, se faz necessário um
texto legal para estabelecer condições dignas às essas gestantes. As regras de
Bangkok cumprem tal papel e definem parâmetros para os cuidados e proteção da
mãe encarcerada e de seu filho.
O mais recente reflexo das regras de Bangkok no ordenamento jurídico
brasileiro é a Lei nº 11.343 de 2017 que altera o código de processo penal autorizando
a retirada das algemas durante a realização do parto. Ainda que pareça algo
insignificante, tal retirada das algemas procura trazer um pouco de dignidade e
conforto na hora do parto, visando também à humanização deste momento, vale
ressaltar que o uso das algemas durante o parto já ocasionaram o óbito de diversas
mulheres.
Analisando a recente conquista para a população carcerária feminina com a
permissão da retirada das algemas durante o parto, percebe-se que há necessidade
de se criar leis que objetivem regular o tema e ampliar a dignidade da pessoa humana
durante a gestação das mulheres encarceradas, visando-as como seres humanos
sujeitos de direitos, afastando assim o senso comum que ronda a sociedade de que
as mães do cárcere fazem jus à direitos que as protejam.
1015

REFERÊNCIAS

AREAL, Mônica; FETZNER, Néli; TAVARES, Nelson. A mãe presa e a relação com
os direitos da criança: a falta de aplicabilidade dos direitos constitucionais, supralegais
e infraconstitucionais; 2018.
CERNEKA, Heidi Ann. Regras de Bangkok: está na hora de fazê-las valer. Boletim
IBCCRIM, 2012, 20.232: 1-4.
NASCIMENTO, Sônia Aparecida Costa. O trabalho da mulher: das proibições para o
direito promocional. Editora LTr, 1996.
SILVANA SOUZA NETTO MANDALOZZO, in A Maternidade no direito do trabalho,
Juruá, Curitiba, 1996.
SILVESTRIN, Sara Helena Piccoli, et al. As violações aos direitos das mulheres mães
e gestantes nas penitenciárias femininas brasileiras. 2017.
1016

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA COMO UMA FORMA DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS


FUNDAMENTAIS DA MULHER DURANTE A ASSISTÊNCIA AO PARTO
OBSTETRIC VIOLENCE AS A FORM OF VIOLATION OF FUNDAMENTAL RIGHTS
OF WOMEN DURING CHILDBIRTH ASSISTANCE

Larissa dos Santos Pereira Cavaretto


Lívia Gaigher Bosio Campello
Welington Oliveira de Souza dos Anjos Costa

Resumo: A violência obstétrica é considerada um problema de saúde pública que se


caracteriza também como uma forma de violação de direitos fundamentais.
Entretanto, essa forma de violência de gênero pouco foi debatida no direito brasileiro.
O presente trabalho teve como objetivo contextualizar a violência obstétrica no Brasil,
bem como identificar quais os possíveis direitos fundamentais violados durante a
assistência ao parto. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, por meio de pesquisa
bibliográfica sobre o tema. Nota-se que durante a assistência ao parto,
frequentemente ocorre violação de diversos direitos fundamentais, dentre eles a
dignidade, integridade, liberdade e saúde da mulher, bem como a violação de seu
direito à informação. Apesar disso, poucas são as decisões que tratam do tema no
âmbito jurídico. Dessa forma, medidas de intervenção de caráter educativo e, como
ultima ratio, punitivo fazem-se necessárias para garantir uma assistência ao parto
humanizada e livre de violência.
Palavras-chave: violência obstétrica, violência de gênero, direitos fundamentais.

Abstract: Obstetric violence is a public health problem also characterized as a


violation of fundamental rights. However, this form of gender-based violence was
unsatisfactorily debated in Brazilian legal scope. The present study aimed to
contextualize obstetric violence in Brazil, as well as to identify the fundamental rights
possibly violated during childbirth care. For that, was used the deductive method,
through bibliographic research about the theme. It is noted that during childbirth care
often occur violation of several fundamental rights, including the dignity, integrity,
freedom and health of women, as well as the violation of the right to information.
Nevertheless, there are few decisions about the issue in the jurisprudence. Thus,
intervention measures with an educational pourpose and, as ultima ratio, punitive are
necessary to guarantee a humanezed and violence-free childbirth assistance.
Keyword: obstetric violence, gender-based violence, fundamental rights.

INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher apresenta variadas formas de manifestações,


sendo muitas vezes despercebida pela sociedade (GARCIA, 2016). Dentre essas, a
violência obstétrica é uma das mais recorrentes (BARROS, RUVIARO e RICHTE,
2017; COSTA e CHERON, 2017). Durante o parto, muitas mulheres sofrem abusos,
desrespeito e maus tratos nas instituições de saúde. Trata-se de um problema que
ocorre no mundo todo, violando os direitos das mulheres ao cuidado respeitoso. Além
disso, representa ainda uma ameaça ao direito à vida, à saúde, à integridade física e
à não discriminação (OMS, 2014).
No Brasil, esse cenário apresenta-se de forma ainda mais alarmante. O país já
foi considerado o campeão mundial de cesáreas (UNICEF, 2011) e, atualmente,
encontra-se em 2º lugar dentre os países cujos dados estão disponíveis (UNICEF,
1017

2016). Porém, o país não melhorou seus índices, pois a taxa aumentou de 44%
(UNICEF, 2011) para 56% (UNICEF, 2016), apesar da recomendação da Organização
Mundial da Saúde de que a taxa ideal de cesarianas esteja entre 10-15% (OMS,
2014).
A realização de procedimentos desnecessários durante o atendimento ao parto
é algo corriqueiro no país e a altíssima taxa de cesáreas no Brasil é mais um reflexo
dessa assistência inadequada ao parto. Esse tipo de práticas hospitalares pode ser
caracterizado como violência obstétrica já que acaba por atentar contra a dignidade,
integridade, liberdade e saúde da mulher, bem como contra o seu direito à informação
(BARROS, RUVIARO e RICHTE, 2017).
Isto posto, o presente trabalho tem como objetivo contextualizar a violência
obstétrica no Brasil, bem como identificar os possíveis direitos fundamentais violados
durante a assistência ao parto. Para tanto, foi utilizado o método dedutivo realizando-
se pesquisa bibliográfica para caracterizar a violência obstétrica no Brasil, bem como
se realizou um levantamento dos direitos fundamentais previstos na Constituição
Federal de 1988 que possivelmente são violados durante a assistência ao parto na
prática brasileira. O referencial teórico está correlato aos conceitos de saúde sobre o
tema, além de matérias constitucionais e de biodireito.
A discussão existente acerca dessa matéria no âmbito jurídico brasileiro ainda
se apresenta de forma inexpressiva. Por esta razão, busca-se demonstrar a
magnitude dessa forma de violência de gênero em nosso país para que políticas
públicas sejam implementadas para minimizar a sua ocorrência.

DESENVOLVIMENTO

A Constituição da República Federativa do Brasil (1988) traz como princípio


basilar de todo o ordenamento jurídico brasileiro a dignidade da pessoa humana (art.
1º, III). Este assume um importante papel na interpretação e aplicação do direito
constitucional e infraconstitucional, especialmente no que se refere à proteção e
promoção de direitos fundamentais (SARLET, MARINONI e MITIDIERO, 2017).
Nesse sentido, expõe Ricardo Maurício Freire Soares (2010, p. 210-211) que:

O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana se desdobra


em inúmeros outros princípios e regras constitucionais, conformando um
arcabouço de valores e finalidade a ser realizada pelo Estado e pela
sociedade civil, como forma de concretizar a multiplicidade de direitos
fundamentais, expressos ou implícitos, da Carta Magna brasileira e, por
conseguinte, da normatividade infraconstitucional derivada.

Em vista disso, a dignidade da pessoa humana e seus princípios derivados


devem ter sua aplicabilidade no âmbito de qualquer atividade humana, inclusive
durante as práticas voltadas à saúde, dentre as quais se encontra abrangida a
assistência ao parto. Paradoxalmente, o que se observa no Brasil é que o atendimento
à parturiente é repleto de violências que se caracterizam pela violação de diversos
direitos fundamentais (BARROS, RUVIARO e RICHTE, 2017; COSTA e CHERON,
2017).
A violência obstétrica é uma forma de violência contra mulher que por muito
tempo foi tratada de maneira velada, sequer sendo notada pela população em geral
(GARCIA, 2016; PARTO DO PRINCÍPIO / FÓRUM DE MULHERES DO ESPÍRITO
SANTO, 2014). Entretanto, essa forma violência tem assumido maior relevância com
1018

a facilitação de acesso das mulheres às informações e aos meios de denúncia (DINIZ


et al., 2015; COSTA e CHERON, 2017).
A primeira definição jurídica do termo amplamente aceita pela literatura
acadêmica encontra-se no art. 15 da Ley Orgánica sobre el Derecho de las Mujeres a
una Vida Libre de Violencia da Venezuela. Conforme a referida normativa:

Se entiende por violencia obstétrica la apropiación del cuerpo y procesos


reproductivos de las mujeres por personal de salud, que se expresa en un
trato deshumanizador, en un abuso de medicalización y patologización de
los procesos naturales, trayendo consigo pérdida de autonomía y
capacidad de decidir libremente sobre sus cuerpos y sexualidad,
impactando negativamente en la calidad de vida de las mujeres 1
(VENEZUELA, 2007).

A CF/88 trouxe em seu art. 5º importantes exigências que o Estado deve


observar com o objetivo de garantir a aplicabilidade do princípio da dignidade da
pessoa humana, dentre elas a vedação em submeter qualquer pessoa a tratamento
desumano ou degradante (inciso III) (NOBRE JÚNIOR, 2000).
Entretanto, contrariando o que está previsto no inciso III, art. 5º de nossa Carta
Magna, o que se nota é que durante a assistência à parturiente no modelo hospitalar
dominante:

(...) a mulher deve ficar deitada na posição de litotomia 2, com as pernas


abertas, em um ambiente hostil e gelado, imobilizada, desacompanhada
– ou assistida por pessoas desconhecidas – e com o funcionamento do
útero acelerado, com alta probabilidade de intervenções cirúrgicas. É
separada de seus parentes, de suas roupas e de tudo que lhe cause a
sensação de aconchego para entrar na rotina médica e ficar à disposição
do profissional. Esta tecnocracia do nascimento acabou levando a outro
desvirtuamento cultural: o parto é um momento de muito sofrimento, não
só físico, mas também psicológico (...). (CUNHA, 2015, p. 27).

Nesse modelo, a violência obstétrica apresenta-se de forma silenciosa e


institucionalizada, sendo reproduzida de variadas formas nas rotinas dos serviços de
saúde e naturalizadas nos fluxos assistenciais (BARBOZA, MOTA, 2016). Diversos
procedimentos tradicionalmente adotados nas práticas diárias das maternidades do
país não possuem qualquer evidência científica que comprovem a necessidade de
suas aplicabilidades. Dentre as práticas que caracterizam violência obstétrica,
merecem destaque aquelas relacionados no Dossiê elaborado pela Rede Parto do
Princípio (2012) para a CPMI da Violência Contra as Mulheres, que as classificou
como violências de caráter físico, psicológico e sexual:

Caráter físico: ações que incidam sobre o corpo da mulher, que


interfiram, causem dor ou dano físico (de grau leve a intenso), sem
recomendação baseada em evidências científicas.

1
“Entende-se por violência obstétrica a apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres por profissionais da saúde,
que se expressa em um tratamento desumanizador, com abuso de medicalização e patologização dos processos naturais,
trazendo consigo perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando
negativamente na qualidade de vida das mulheres” (tradução livre).
2
Posição de litotomia – variação mais extrema do decúbito dorsal (abdome voltado para cima), na qual os membros inferiores
são elevados e flexionados para expor a região perineal (região entre a vulva e o ânus). É uma postura não natural com grande
potencial de traumas para o paciente. Os riscos aumentam quando a posição é acentuada para atos operatórios na região da
vulva (assim como ocorre no parto) (CARVALHO e BIANCHI, 2016).
1019

Exemplos: privação de alimentos, interdição à movimentação da mulher,


tricotomia (raspagem de pelos), manobra de Kristeller 3, uso rotineiro de
ocitocina4, cesariana eletiva sem indicação clínica, não utilização de
analgesia quando tecnicamente indicada.
Caráter psicológico: toda ação verbal ou comportamental que cause na
mulher sentimentos de inferioridade, vulnerabilidade, abandono,
instabilidade emocional, medo, acuação, insegurança, dissuação,
ludibriamento, alienação, perda de integridade, dignidade e prestígio.
Exemplos: ameaças, mentiras, chacotas, piadas, humilhações,
grosserias, chantagens, ofensas, omissão de informações, informações
prestadas em linguagem pouco acessível, desrespeito ou
desconsideração de seus padrões culturais.
Caráter sexual: toda ação imposta à mulher que viole sua intimidade ou
pudor, incidindo sobre seu senso de integridade sexual e reprodutiva,
podendo ter acesso ou não aos órgãos sexuais e partes íntimas do seu
corpo.
Exemplos: episiotomia5, assédio, exames de toque6 invasivos, constantes
ou agressivos, lavagem intestinal, cesariana sem consentimento
informado, ruptura ou descolamento de membranas sem consentimento
informado, imposição da posição supina para dar à luz, exames repetitivos
dos mamilos sem esclarecimento e sem consentimento (PARTO DO
PRINCÍPIO, 2012).

Além disso, há relatos de que durante a sutura da episiotomia é realizado um


ponto mais apertado, a fim de estreitar a vagina e oferecer maior prazer sexual ao
parceiro (“ponto do marido”) (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012; GUEDES, BORGES,
2017).
Apesar da gravidade dessa violência no país, no âmbito jurídico, o que se
verifica é que ainda são bastante incipientes as decisões referentes a situações de
violência obstétrica, com sentenças falhas que demonstram a falta de compreensão
dos magistrados sobre o tema. Um caso emblemático foi o de Adelir de Góes que no
dia 1º de abril de 2014 foi submetida, compulsoriamente, a uma cirurgia cesárea por
determinação do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul:

Queixando-se de dores lombares, a mãe procurou o Hospital Nossa


Senhora dos Navegantes, em Torres (RS), e, durante o atendimento, foi
informada que, como a criança estava em posição pélvica (sentada) e ela
já tinha feito duas cesarianas, precisava se submeter, de imediato, a mais
um procedimento cirúrgico. Segundo a plantonista médica, se não o
fizesse, haveria risco de romper a cicatriz, causando a morte dela e do
bebê. No entanto, inexistem evidências científicas nesse sentido.

3
A manobra de Kristeller consiste em pressionar a parte superior do útero para facilitar (e acelerar) a saída do bebê, o que pode
causar lesões graves, como deslocamento de placenta, fratura de costelas e traumas encefálicos. Essa prática é perigosa tanto
para a mãe quanto para o bebê, e não há evidências científicas de sua utilidade (GUEDES, BORGES, 2017).
4
A aplicação de soro com ocitocina sintética para acelerar o trabalho de parto é outro procedimento comum na prática
obstétrica, mas que deve ser evitado. A ocitocina é um hormônio produzido naturalmente pelo corpo da mulher, preparando o
feto para o parto, aumentando a resistência dos tecidos à falta de oxigênio e ao trauma do nascimento. No entanto, a aplicação
de ocitocina sintética aumenta o risco de hemorragia pós-parto e as fortes dores causadas pela sua utilização acabam, muitas
vezes, por desencadear mais intervenções, como o pedido de analgesia para superar as dores, a necessidade de um fórceps e
até mesmo uma cesárea para abreviar o parto (GUEDES, BORGES, 2017).
5
A episiotomia consiste no corte na região do períneo feito com a intenção de facilitar a saída do bebê, visando a reduzir a
probabilidade de lacerações graves no períneo e minimizar o risco de trauma fetal, reduzindo a duração do período expulsivo.
No entanto, não há evidências de que esses benefícios realmente aconteçam. Ademais, estudos demonstram que a episiotomia
traz diversas consequências negativas para a vida sexual da mulher, pois pode ocasionar a dispareunia, ou seja, dor nas relações
sexuais, interferindo na excitação sexual e no orgasmo da mulher (GUEDES, BORGES, 2017).
6
Em um parto normal, para a verificação da dilatação do colo do útero, é feito o procedimento conhecido como exame de toque.
Em hospitais escola, é comum ter várias pessoas juntas ou em sequência para realizar exame de toque vaginal. A mulher não é
informada dos nomes, da qualificação, da necessidade e riscos do procedimento, ou mesmo das informações sobre a progressão
do seu próprio trabalho de parto. Ela também não é consultada a permitir ou negar o procedimento (PARTO DO PRINCÍPIO,
2012).
1020

Adelir, sabendo que muitas mulheres, na mesma situação, tiveram seus


filhos por parto normal, e que os exames realizados até ali não indicavam
nenhum risco à sua vida e nem à de seu filho, assinou termo de
responsabilidade e foi para casa. No entanto, foi surpreendida quando
oficiais de justiça, acompanhados de policiais militares, foram até a sua
residência para cumprir a ordem judicial expedida pela juíza titular da Vara
Criminal de Torres, Liniane Mog da Silva, que determinou
encaminhamento da gestante ao hospital local para realização de parto
por meio de cirurgia cesariana. Adelir foi, então, levada à força ao hospital
e submetida ao parto cirúrgico contra a sua vontade, tendo sido seu
marido impedido de assistir ao nascimento de seu filho (GUEDES,
BORGES, 2017).

Portanto, analisando-se as práticas adotadas na assistência obstétrica


brasileira, o que se verifica é a prevalência de uma assistência inadequada, na qual
direitos e garantias fundamentais são ordinariamente violados. Os exemplos citados
demonstram uma evidente violação de direitos à dignidade, à integridade, à liberdade
e à saúde da mulher, bem como contra o seu direito à informação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cenário brasileiro atual de assistência obstétrica evidencia que a violência


obstétrica é um problema complexo e multifatorial que acarreta em uma série de
violação de direitos, dentre esses, direitos fundamentais. Assim, tal situação aufere
crescente importância e repercussão no mundo jurídico. Dentro desse contexto
surgem diversas campanhas de caráter informativo por parte do Ministério Público,
Defensoria Pública e Conselho Nacional de Justiça, o que reflete a magnitude que
esse tema alcançou no Brasil.
Além disso, têm-se realizado campanhas orientativas por parte organizações
internacionais como, por exemplo, a Campanha “Quem espera, espera” lançada pelo
UNICEF em 2017 com o objetivo de auxiliar o Brasil na garantia dos direitos de
mulheres e crianças, desde os primeiros momentos de vida. Nesse documento há um
estímulo às práticas de humanização do parto, que busca o respeito à mulher como
protagonista do processo e o foco na saúde do bebê (UNICEF, 2017).
Contudo, alguns compromissos assumidos pelo Brasil na esfera internacional
para a redução das violências obstétricas não foram devidamente adotados. A
Comissão Interamericana de Mulheres, no Segundo Relatório Hemisférico sobre a
Implementação da Convenção de Belém do Pará, relata que a maioria dos Estados
não possui mecanismos para impedir e punir a violência obstétrica como uma forma
específica de violência. Nesse relatório é recomendado que os Estados incluam
dispositivos que não só tornem a violência obstétrica uma ofensa punível, mas
também contenham os elementos do que constitui um processo natural de pré-parto,
parto e pós-parto, sem necessidade excessiva de medicações, onde as mulheres
sejam devidamente informadas para que possam gozar das garantias necessárias
para assegurar o seu livre e voluntário consentimento em relação aos procedimentos
associados à sua saúde sexual (Inter-American Commission of Women, 2012).
Uma das medidas recomendadas pela Comissão de Experts do Mecanismo de
Acompanhamento da Convenção de Belém do Pará aos seus Estados membros é
que sejam adotados dispositivos para criminalizar a violência obstétrica (Inter-
American Commission of Women, 2012). O Brasil é um dos países signatários da
Convenção de Belém do Pará, porém ainda não há uma norma federal que objetive a
1021

redução da violência obstétrica no país e que disponha sobre meios de


responsabilização dos envolvidos.
Entretanto, há que se falar que algumas iniciativas já foram tomadas. Tramita
desde 2014 na Câmara dos Deputados um projeto de lei (PL 7633/2014) de autoria
do deputado federal Jean Wyllys que “Dispõe sobre a humanização da assistência à
mulher e ao neonato durante o ciclo gravídico-puerperal e dá outras providências”.
Esse projeto visa, além da humanização da assistência ao parto, reduzir o número de
cirurgias cesarianas e a responsabilização administrativa, civil e penal dos
profissionais e instituições que descumprirem a norma (BRASIL, 2014).
No estado de Mato Grosso do Sul foi publicada em 26 de junho de 2018 a Lei
nº. 5217 que “Dispõe sobre a implantação de medidas de informação e de proteção à
gestante e à parturiente contra a violência obstétrica no Estado de Mato Grosso do
Sul, e dá outras providências”. A legislação, que ainda não entrou em vigor, apresenta
uma vasta lista de situações que se enquadram como violência obstétrica. Além disso,
traz a obrigatoriedade de elaboração de material informativo destinado à gestante e
parturiente sobre violência obstétrica (MATO GROSSO DO SUL, 2018). Essa
legislação poderá facilitar a caracterização da violência obstétrica no estado, além de
oferecer a gestante e a parturiente meios de informação acerca de seus direitos.
Ainda assim, nota-se que as medidas de encorajamento das mulheres e
facilitação de acesso aos meios de denúncia ainda não apresentaram resultados
significativos. Verifica-se que no âmbito jurídico há poucas decisões relacionadas a
esse tema, o que não reflete a ausência de casos, mas a falta de notificação e de
confiança no sistema jurídico brasileiro, já que é sabido que 25% das mulheres sofrem
violência durante o parto (FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO E SESC, 2010). É possível
que essa falta de confiança seja decorrente da ausência de normas específicas que
caracterizem adequadamente a violência obstétrica e que, como ultima ratio, criem
medidas de punibilidade aos agentes.

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1024

Grupo de trabalho:

FILOSOFIA E SOCIOLOGIA
JURÍDICA/HERMENEUTICA
JURIDICA/DIREITO, ARTE E
LITERATURA
Trabalhos publicados:

A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO DIREITO NAS ORGANIZAÇÕES JURÍDICAS

APROPRIAÇÃO CULTURAL NO CONTEXTO DA CULTURAMUNDO

ENTRE O PESADELO E O NOBRE SONHO: UMA ANÁLISE DO ATIVISMO


JUDICIAL E DA HERMENÊUTICA EXEGETA

IMIGRANTES SEM DIREITO A VOTO: UMA ANÁLISE DA EXCLUSÃO DA


CIDADANIA POLÍTICA DO ESTRANGEIRO A PARTIR DO CONTO “A VOLTA DO
MARIDO PRÓDIGO” DE JOÃO GUIMARÃES ROSA.

INTERPRETAÇÃO E DECISÃO EM NIKLAS LUHMANN

O CONTRATO SOCIAL-SEXUAL DE CASAMENTO SOB AS PERSPECTIVAS DE


JOHN LOCKE E CAROLE PATEMAN

O DIÁLOGO ENTRE SEMIÓTICA E DIREITO: CONSIDERAÇÕES INICIAS SOBRE


SEMIÓTICA JURÍDICA

O SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO (NEO) INQUISITÓRIO: UMA


REFLEXÃO A PARTIR DO FILME O JUIZ (JUDGE DREDD)

O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA COMO UM AGENTE SÓCIO-CULTURAL NO


MUNDO TRIBUTÁRIO

PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM: BREVE PERSPECTIVA LITERÁRIA E


CONSTITUCIONAL ACERCA DA IGUALDADE DE GÊNERO

PIRATARIA: A RELATIVIZAÇÃO DA ÉTICA NA SOCIEDADE DE CONSUMO


1025

A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO DIREITO NAS ORGANIZAÇÕES JURÍDICAS


THE SOCIAL REPRESENTATION OF LAW IN LEGAL ORGANIZATIONS

Heroana Letícia Pereira


Rafael Lazzarotto Simioni

Resumo: Esta pesquisa versa sobre as diferentes formas como os profissionais do


direito o interpretam, com base nas organizações às quais pertencem, bem como
sobre a existência de assimetrias entre tais organizações. Para tanto, será realizado
um estudo sobre a obra de Niklas Luhmann, quanto às organizações nos sistemas
autopoiéticos. Além disso, uma pesquisa empírica, com o uso do método da Análise
do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), elaborado por Lefèvre e Lefèvre, método este
baseado na Teoria das Representações Sociais, elaborada por Moscovici e
continuada por Jodelet. Esta pesquisa tem como escopo, portanto, a análise conjunta
entre a teoria e a prática do direito. Desta feita, buscar-se-á analisar as representações
sociais do direito nas organizações jurídicas, de centro e de periferia, em Pouso
Alegre/MG. Bem como averiguar a possível existência de assimetrias entre tais
organizações, com base no senso comum existente dentro de cada organização,
sendo elas a Magistratura, o Ministério Público e a Advocacia.
Palavras- chave: organização, decisão, representações sociais.

Abstract: This research deals with the different ways in which legal professionals
interpret it, based on the organizations to which they belong, as well as on the
existence of asymmetries among such organizations. Therefore, a study will be carried
out on the work of Niklas Luhmann, regarding organizations in autopoietic systems. In
addition, an empirical research using the Collective Subject Discourse Analysis (DSC)
method, developed by Lefèvre and Lefèvre, is based on the theory of social
representations, elaborated by Moscovici and continued by Jodelet. This research
therefore has as its scope the joint analysis between theory and practice of law. Thus,
we will seek to analyze the social representations of law in legal, center and periphery
organizations, in Pouso Alegre / MG. As well as to ascertain the possible existence of
asymmetries between such organizations, based on the common sense existing within
each organization, being they the Judiciary, the Public Ministry and the Law.
Keywords: organization, decision, social representations.

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa versa sobre as diferentes formas como os profissionais do direito


o interpretam, com base nas organizações às quais pertencem, bem como sobre a
existência de um possível senso comum e de assimetrias entre tais organizações.
Para tanto, será realizado um estudo sobre a obra de Niklas Luhmann, quanto às
organizações nos sistemas autopoiéticos.
Além disso, uma pesquisa empírica, com o uso do método da Análise do
Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), elaborado por Fernando Lefèvre e Ana Maria
Cavalcanti Lefèvre, método este baseado na Teoria das Representações Sociais,
elaborada por Serge Moscovici e continuada por Denise Jodelet. Esta pesquisa tem
como escopo, portanto, a análise conjunta entre a teoria e a prática do direito, cuja
junção é relativamente recente.
Desta feita, buscar-se-á, analisar as representações sociais do direito nas
organizações jurídicas, de centro e de periferia, presentes em Pouso Alegre/MG. Bem
1026

como buscar-se-á averiguar a possível existência de assimetrias entre tais


organizações, com base no senso comum existente dentro de cada organização,
sendo elas a Magistratura, o Ministério Público e a Advocacia.
Ao final desta pesquisa, espera-se comprovar os fundamentos da teoria das
organizações dos sistemas autopoiéticos, de Niklas Luhmann. Também serão
levantados dados suficientes para analisar os pressupostos da interpretação do
direito, e da tomada de decisões por parte destas organizações, tomando por base
seus discursos coletivos, a possível existência de um senso comum que une tais
organizações, além de relações de poder que venham a afetar as suas relações, seu
trabalho individual e sua forma de interpretar e decidir.

2 OBJETIVOS

O objetivo desta pesquisa é analisar as diferentes formas de representação


social do direito nos sistemas de organização da Magistratura, Advocacia Privada e
Ministério Público, em Pouso Alegre, no Sul de Minas Gerais. E, a partir deste objetivo,
analisar o conceito de sistema de organização na teoria dos sistemas sociais
autopoiéticos de Niklas Luhmann, observar as diferentes perspectivas de sentido do
direito entre as organizações de centro e de periferia, explicitar as diferentes
Representações Sociais do direito nas organizações jurídicas, em Pouso Alegre, no
Sul de Minas Gerais, identificar a existência de relações de poder entre as
organizações jurídicas, em Pouso Alegre, no Sul de Minas Gerais.

3 METODOLOGIA

Esta pesquisa utilizará, para o tratamento de dados empíricos, a Análise do


Discurso do Sujeito Coletivo, metodologia criada pelos professores Fernando Lefèvre
e Ana Maria Cavalcanti Lefèvre, método este baseado na Teoria das Representações
Sociais. O estudo das Representações Rociais foi inaugurado pelo psicólogo social
francês Serge Moscovici, na década de 1960, e este termo representa não somente
um vasto campo de estudos, mas também designa um conjunto de fenômenos (SÁ,
1995, p. 19). Para tanto, Moscovi baseou-se no conceito sociológico de
Representações Coletivas, formulado por Durkheim, para analisar fenômenos como a
religião e os mitos compartilhados no tempo e no espaço pelos grupos sociais. A
diferença entre o estudos das Representações Sociais, formulado por Moscovici, e o
estudo das Representações Coletivas, formulado por Durkheim, reside em sua
amplitude. Enquanto Durkheim analisou uma ampla gama de conhecimentos
compartilhados pela sociedade, Moscovici buscou uma redução desta gama a fim de
analisar os conhecimentos compartilhados por grupos menores de indivíduos em sua
vida cotidiana, de modo que a teoria das Representações Sociais pode ser
considerada uma teoria do senso comum.
A pesquisa com Representações Sociais pode demonstrar a existência de
elementos estáveis, cuja resistência é mais forte às pressões da comunicação, e
elementos periféricos, os quais ficam ao redor dos primeiros e mais expostos à
variabilidade e diversidade (JODELET, 2006, p. 07). Este estudo pode possibilitar uma
análise destes modelos de pensamento e comportamento, hábitos e costumes de um
grupo específico. No Brasil, a Teoria das Representações Sociais passou a ser
estudada por meio do método da Análise do Discurso do Sujeito Coletivo, que se
iniciou no ano 2000, sob a liderança dos professores Ana Maria e Fernando Lefèvre,
com o Instituto de Pesquisa em Discurso do Sujeito Coletivo, e vem se inserindo nos
1027

mais diversos ramos do meio acadêmico, em dissertações, teses e artigos. Há


predominância de estudos na área da saúde, em virtude de sua origem na área de
saúde pública, mas tal metodologia pode ser empregada nos mais diversos meios,
pois seu escopo é a análise de falas de atores sociais, o que torna ampla a sua gama
de pesquisas e torna o método adequado para um estudo a respeito dos sistemas de
organização na teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Niklas Luhmann, uma vez
que o objetivo desta pesquisa é justamente analisar o conhecimento consensual
presente nas organizações jurídicas.
Para realizar a presente pesquisa, foram selecionadas três organizações
pertencentes ao sistema do Direito: Magistratura, Ministério Público e Advocacia, no
município de Pouso Alegre/MG, por critérios de conveniência e acessibilidade. Desta
feita, considerando que atuam no município 16 juízes, 10 promotores e 1919
advogados, foram selecionados os membros da Magistratura e Ministério Público que
aceitaram participar da pesquisa e 10 advogados, em razão da necessidade de
manter um equilíbrio numérico entre os entrevistados. Antes da realização das
entrevistas o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
do Vale do Sapucaí (Univás), por meio da Plataforma Brasil, tendo sido devidamente
aprovado, uma vez que respeitados os trâmites burocráticos para a coleta de dados.
Os dados obtidos por meio das entrevistas serão analisados por meio da
Análise do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), pois serão analisadas as
Representações Sociais de cada organização em separado e de uma em relação à
outra. Será realizado um resgate e posterior reconstrução das Representações
Sociais (RS) preservando-se sua dimensão individual articulada à coletiva (LEFÈVRE
e LEFÈVRE, 2006, p. 519). A Representação Social, como senso comum, é
encontrada em opiniões, posicionamentos, manifestações, posturas de cada indivíduo
em seu cotidiano. Ela sintetiza conhecimentos coletivos entendidos como individuais,
regula as relações do indivíduo com os demais, orienta seu comportamento e intervém
nos processos de difusão e assimilação de conhecimento, na construção de
identidades pessoais e sociais, além de influenciar no comportamento tanto dentro
como fora do grupo (CABECINHAS, 2004, p. 126).

4 DESENVOLVIMENTO

Por muito tempo, o estudo da interpretação jurídica teve como foco de análise
as condições subjetivas do intérprete presentes no ato de decidir. Já a dimensão
organizacional foi deixada em segundo plano. Ainda que as exigências do estudo da
interpretação jurídica voltem-se para as consequências práticas, para as convicções
morais e políticas intrínsecas ao ato de decidir e para os seus impactos na democracia
e nos direitos fundamentais (SIMIONI, 2015, p. 145), é preciso atentar-se para o fato
de que não é fácil responder o que é o conhecimento do direito, seus pressupostos
teóricos e sentidos sociais tidos oficialmente como discurso dos juristas (WARAT,
1982, p. 48). Porém, um estudo da interpretação jurídica precisa ater-se ao fato de
que interpretar não é apenas descobrir o direito, é construí-lo, porque decidir implica
em escolhas entre alternativas, o que significa que interpretar tem duas vias, a escolha
por uma alternativa e a não escolha por outra. Porém, o que determina a interpretação
muda conforme o tempo, valores éticos, morais e políticos, pela dogmática jurídica e
não há ordenamento jurídico que possa prever e controlar este universo de influências
(SIMIONI, 2015, p. 138), até porque o foco da dogmática ainda é a análise da resposta
e não da pergunta quando se trata de observar as estruturas que compõem a
observação da interpretação jurídica (ROCHA, 2011, p. 194).
1028

As formas de comunicação nas organizações, no entanto, não ocorrem


somente quando a decisão se realiza por meios formais, como decisões e sentenças,
pois a interação dentro do sistema organizacional também caracteriza decisão. Isto
significa dizer que as organizações e suas operações, as decisões, operam tanto na
dimensão formal quanto na informal, uma vez que a relação interpessoal também
enseja decisões e também equilibra o funcionamento das organizações. O modelo de
distinção entre organização formal e organização informal demonstra um conflito
existente na relação entre motivações individuais e motivações organizacionais. Isto
se dá em razão da possibilidade de os motivos individuais encontrarem maior
aceitação nos grupos e não na estrutura formal da organização. A organização formal
pressupõe a existência de uma hierarquia de competências de comando a que os
membros estão sujeitos, na qual impera um cerimonial específico de comunicação,
especialmente a comunicação escrita. A organização informal, ao que tudo indica,
move-se de grupos para indivíduos que, de acordo com suas atividades e atitudes
individuais, desenvolvem interesse por determinados contratos sociais consolidados,
dentro dos quais podem encontrar apoio (LUHMANN, 2005, p. 16). A organização
informal tem origem na formação de grupos e pode apoiar os objetivos da organização
formal ou se opor a eles de modo que tanto pode lhe proporcionar sucesso como
causar fracassos. A variável “grupo” adquire tamanha importância que pode adaptar
as transformações da organização às condições locais e construir em seus membros
formas de conhecimento não científico e modos de comportamento padrão.
No conceito de sociedade como autopoiese da comunicação, qualquer
encontro pessoal ou impessoal que gere comunicação realiza a sociedade. Trata-se
da relação de interação que se consuma dentro do próprio sistema da sociedade. Tais
interações são sistemas formados quando há presença de pessoas para resolver o
problema da dupla contingência através da comunicação (LUHMANN, 2006, p. 645).
Neste sentido, as interações operam com base na distinção entre presença e
ausência, já que não é possível haver interação, nem comunicação, sem pessoas. As
organizações também têm a possibilidade de se comunicar com sistemas em seu
ambiente. Elas constituem o único tipo de sistema social que tem essa possibilidade.
Essa comunicação externa pressupõe a autopoiese com base nas decisões. E de fato:
dentro do sistema, a comunicação só pode ser feita na rede recursiva da atividade de
tomada de decisão do sistema, caso contrário, não poderia ser reconhecida como
autocomunicação. A comunicação externa não contradiz, então, o fechamento
operacional do sistema; pelo contrário. As organizações se comunicam
preferencialmente com as organizações e, por isso, tratam os indivíduos como se
fossem organizações ou como se estivessem incapacitados - buscando ajuda e
instruções especiais (LUHMANN, 2006, p. 658).
Para uma análise concreta da teoria da organização sobre a base de decisões,
há três situações distintas a serem analisadas: a decisão sobre o início e o término do
pertencimento, a decisão sobre premissas de decisão oficialmente válidas para outras
decisões e a adaptação ao caso em que se exige um comportamento de decisão.
Neste sentido, não se fala em coisas ou sujeitos, mas em referências e comunicações.
Isto porque, dependendo do sistema de organização ao qual pertence o ator do direito,
suas referências comunicativas e sua racionalidade mudam, justamente porque ele
assume diferentes referências sistêmicas (SIMIONI, 2011, p. 127). A organização à
qual pertence o indivíduo o influencia em suas decisões tanto quanto sua dimensão
subjetiva, porque as organizações possuem regras de comportamento a serem
seguidas e isto, inevitavelmente, influencia na produção de sentido do direito
(SIMIONI, 2017, p. 274). O pertencimento a uma organização; como o Judiciário,
1029

Ministério Público ou Advocacia; gera em seus membros entendimentos


interpretativos e comportamentos específicos. Afinal, espera-se que um Juiz entenda
o direito como prestação da tutela jurisdicional de forma correta e eficiente, um
membro do Ministério Público como defesa dos interesses da lei e do Estado e um
membro da Advocacia como melhor defesa possível dos interesses dos seus clientes
(SIMIONI, 2017, p. 275). Isto significa que, em razão das diferentes referências
sistêmicas, mudam os papéis sociais assumidos por cada ator, sua racionalidade
muda, até mesmo sua percepção da realidade muda (SIMIONI, 2017, p. 161). A
influência da organização é tão decisiva que constrói regimes de verdade internos a
cada grupo, magistrados, promotores e advogados, o que pode se sobressair à
própria função do direito enquanto sistema, já que seus membros podem construir
regimes de verdade não científicos.
Somada a isto está a construção de uma relação de centro e periferia no
sistema do direito, com os tribunais ocupando a posição de centro de sentido,
enquanto as demais instituições preenchem as posições periféricas (SIMIONI, 2017,
p. 158). E aqui parte-se do pressuposto de que é possível, ao se analisar cada
organização, encontrar racionalidades diferentes no modo de produzir e de
compreender o direito. Mais que isso, é possível encontrar, e comprovar por meio de
dados concretos, a existência de uma relação de poder entre elas. E este poder é o
de dizer o que é e o que não é direito. Se assim o é, infere-se que há forças diferentes
atuando em um sistema aparentemente uno e que o exercício da interpretação do
direito perpassa por diferentes forças e diferentes lógicas na sua realização, pois
enquanto membros de uma organização, os profissionais se submetem a regras de
inclusão/exclusão que são condições de possibilidade da identidade do grupo. Neste
sentido, um juiz torna-se bom para os demais membros de sua organização, assim
como promotores e advogados para as suas respectivas. Caso contrário, ela mesma
os exclui, já que o ingresso em uma organização pressupõe restrições de
comportamento específicas, que não valem para qualquer grupo, somente para
aquele. Isto significa que um juiz não pode decidir contra os pressupostos de sua
organização, não pode atentar contra a jurisdição. Já um advogado não pode afirmar
que sua classe causa mais entraves que soluções. A profissão escolhida carrega
consigo uma carga de normatividade a ser seguida como regra de pertencimento e
basta desrespeitar tais regras para ser excluído do grupo, como ocorre com
profissionais que recebem denominações que, por si só, excluem de forma tácita seu
pertencimento, como a denominação “advogado de porta de cadeia” ou a expressão
“juiz ruim” (SIMIONI, 2011, pp. 129-130). Deste modo, eles continuam sendo
profissionais, mas a denominação pejorativa os exclui.
Assim, para um estudo da teoria das organizações, é preciso partir da ideia de
que elas não crescem a bel prazer, tampouco as quantidades de decisão. Portanto, é
preciso compreender como se constroem os elementos do sistema, o decidir e a
complexidade. Ao mesmo tempo, a possibilidade de manipulação e a construção de
modelos de decisão. Um segundo ponto de partida é a análise dos indivíduos como
unidades e como a entrada de novos participantes leva a cabo a seletividade das
relações sociais. Em geral, se diferenciam das necessidades consequentes o
cumprimento categorizante da seleção de relação e a direção é transferida do
problema de seleção a um ou mais papéis, ou se pode determinar um líder cuja função
específica seja a redução da complexidade do grupo e a coordenação de suas
seleções de comportamento (LUHMANN, 1997, p. 42). A distinção que mantém as
organizações em funcionamento é a distinção entre sistema e ambiente, uma vez que
1030

ela precisa, a todo o tempo, mostrar o que é e o que não é (ROCHA e AZEVEDO,
2012, p. 204).
A tese central da teoria dos sistemas de organização, de Niklas Luhmann, é a
de que as organizações reproduzem-se sobre uma base de comunicação de decisões,
fechando-se operacionalmente. Elas não representam o mundo de forma ontológica
e, como sistemas autopoiéticos, operam em uma forma de observação de segunda
ordem, pois observam a si próprias observando. E mais, as incertezas; provenientes
do ambiente, que é mais complexo que o sistema; são a condição de possibilidade da
autopoiese, pois ela se realiza na absorção de incertezas (ROCHA e AZEVEDO,
2012, p. 203). No sistema organizacional ocorre a reprodução da diferença entre
autorreferência e heterorreferência. O ambiente da organização é um constructo da
própria organização a partir da autorreferência. Isso é o que possibilita ao ambiente
validar as decisões das organizações, oferecer os contextos que permitem comprovar
como se decidiu (ROCHA e AZEVEDO, 2012, p. 203). Nesse sentido, há que se
elucidar o uso da teoria como forma de dissolver o paradoxo da observação, e o uso
da observação empírica como forma de adentrar nas organizações para elucidar suas
operações.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A previsão inicial para esta pesquisa é estabelecer como se dá a interpretação


do direito dentro de cada organização pertencente ao sistema. Levantar-se-ão dados
suficientes para elencar os fundamentos e motivações de cada grupo de forma
individual, no tocante às diferenças nos discursos e racionalidades dos sujeitos
membros das organizações do Judiciário, Ministério Público e Advocacia. E, a partir
das primeiras premissas, será possível estabelecer a relação entre cada organização
e as interferências das possíveis relações de poder existentes entre elas na tomada
de suas decisões. Assim sendo, poder-se-á estabelecer se há uma relação de centro
e periferia entre as organizações no sistema do direito, no tocante aos modos de
compreensão de sentido, com base nos discursos construídos a partir da interação
entre membros no seu dia-a-dia.
A área do direito se beneficiará muito desta pesquisa, uma vez que há poucos
estudos de teor empírico realizados no âmbito da interpretação e da argumentação
jurídica. A comunidade científica, de uma forma em geral, também se beneficiará,
tomando por base que o direito está presente diariamente na vida de todas as pessoas
e influencia, de todas as formas, o cotidiano de cada indivíduo, pois conhecer melhor
os meios de funcionamento da relação entre a organização à qual pertence cada
profissional do direito e a sua forma de interpretação é conhecer melhor o homem e
as vertentes que o influenciam na sua concepção de saber e tomadas de decisão.
Neste sentido, é necessário debruçar-se sobre os desenhos institucionais que
comandam a tomada de decisões que constroem o imaginário do sistema do direito
para compreender a racionalidade dos modos de interpretação e argumentação.
A realização de pesquisas de natureza empírica na área do direito é algo novo
e de grande potencial, visto que, esgotados os meios bibliográficos, a pesquisa salta
rumo a novas possiblidades para o ramo, pois torna possível a aproximação entre
teoria e prática, o que é de grande valia para o ensino do direito, para a academia e
para realização prática do direito. Mais que isso, a pesquisa empírica cujo foco sejam
os sistemas de organização e o conhecimento construído a partir da comunicação
diária entre membros, possibilita a compreensão real de como se dá a interpretação
1031

e a decisão, quais elementos influenciam estas operações, nos campos subjetivo e


social.

REFERÊNCIAS

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Fernando; LEFEVRE, Ana Maria Cavalcanti. O sujeito coletivo que fala. Revista
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LEFEVRE, Fernando; LEFEVRE, Ana Maria Cavalcanti. Discurso do sujeito coletivo:
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Florianópolis, volume 23, número 2, p. 502-507, Junho de 2014. Disponível em
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LUHMANN, Niklas. La Sociedad de la Sociedad; traducción de Javier Torres
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MOSCOVICI, Serge. Das representações coletivas às representações sociais:
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ROCHA, Leonel Severo; AZEVEDO, Guilherme de. Notas para uma teoria da
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SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão, organização e risco: a forma da decisão jurídica
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__________. Interpretação jurídica e percepção seletiva: a dimensão organizacional
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__________. Os novos donos do saber jurídico: a disputa pela ocupação dos espaços
de produção de sentido do direito no Brasil. 2017. Inédito.
1032

APROPRIAÇÃO CULTURAL NO CONTEXTO DA CULTURAMUNDO


CULTURAL APPROPRIATION IN THE WORLD-CULTURE CONTEXT

Susana Gercwolf

Resumo: O presente trabalho aborda os aspectos histórico-estruturais atinentes à


apropriação cultural, a partir da noção de cultura-mundo desenvolvida por Lipovetsky
e Serroy, ressaltando a diversidade sociocultural do país e a necessidade de
preservação da cultura nacional – uma vez que esta integra o patrimônio cultural. Para
tanto, utilizou-se o método dedutivo, mediante pesquisa bibliográfica realizada a partir
do levantamento teórico e normativo atinente à matéria. Ao final, conclui-se que a
ampliação dessa discussão no meio acadêmico se mostra necessária, ante a
necessidade de resguardar o direito fundamental à preservação do patrimônio cultural,
bem como de assegurar o processo de formação da memória e da identidade coletiva.
Palavras-chave: cultura-mundo; apropriação cultural; Lipovetsky e Serroy.

Abstract: This work deals with the historical-structural aspects regarding cultural
appropriation, based on the notion of world-culture developed by Lipovetsky and
Serroy, highlighting the country’s sociocultural diversity and the need to preserve the
national culture - once it integrates the cultural heritage. Therefore, it was used the
deductive method, through bibliographical research carried out from the theoretical and
normative survey concerning the matter. At the end, it is concluded that the expansion
of the academic discussion regarding this subject is necessary, given the need to
safeguard the fundamental right to preserve the cultural heritage, as well as to ensure
the process of formation of memory and collective identity.
Key-words: world-culture; cultural appropriation; Lipovetsky and Serroy.

INTRODUÇÃO

Atualmente vivemos um período marcado intensamente pela globalização,


onde o fluxo elevado de informações, conhecimentos e o intenso intercâmbio cultural
ocorrem de maneira cada vez mais rápida com o advento das novas tecnologias da
informação. Além disso, o Brasil é marcado pela vastidão cultural, sobretudo em
termos de etnicidades, crenças, tradições, religiões, culturas e essas nuances da
nossa formação histórico-social se refletem sobremaneira no mundo contemporâneo.
No entanto, por vezes, de maneira negativa.
Feitas essas considerações, o presente trabalho visa analisar, a partir da noção
de cultura-mundo, o fenômeno da apropriação cultural, avaliando a possibilidade de
diálogo entre culturas diversas.
Para tanto, estruturou-se o trabalho em duas partes: no primeiro item, serão
abordados aspectos teórico-estruturais atinentes à cultura, tais como sua
conceituação, sua relação ante as transformações dos tempos hipermodernos, bem
como sua interface enquanto patrimônio cultural. Na segunda parte do trabalho serão
trazidas reflexões acerca dos aspectos inerentes à apropriação cultural, apontando
seus desdobramentos e destacando a possibilidade de diálogo entre culturas diversas
sem que reste caracterizada esta apropriação.
Ao final, o que se propõe com esta análise é a ampliação desse debate no meio
acadêmico, a fim de oferecer alguns esclarecimentos acerca da problemática
referente à apropriação cultural. Com isso, a intenção é de despertar o interesse do
leitor a fim de contribuir para o avanço da discussão, tendo em vista o reconhecimento
1033

da diversidade sociocultural brasileira e considerando ainda a relevância adquirida por


questões atinentes à dominação e ao racismo, que, conforme será demonstrado no
transcorrer da leitura, estão diametralmente relacionados ao fenômeno da apropriação
cultural.

1. CULTURA-MUNDO NA SOCIEDADE DO EXCESSO

Segundo Lipovetsky e Serroy (2011), a era hipermoderna transformou


profundamente o relevo, o sentido, a superfície social e econômica da cultura. Sob o
prisma jurídico, igualmente incidiram grandes mudanças decorrentes dessa nova
estruturação da “cultura-mundo”1.
Salutar que no Brasil, a Constituição Federal de 1988 representa um grande
avanço no que tange ao reconhecimento dos direitos culturais, uma vez que
estabeleceu em seus artigos 215 e 216, que “o Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, apoiando e
incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais”.
Referida previsão constitucional também alçou os direitos culturais à categoria
de direitos fundamentais, assim como os já consagrados direitos civis, políticos,
econômicos e sociais, por exemplo. Além disso, reconheceu ainda os bens culturais
em sua natureza material e imaterial.
No que concerne ao processo de regulamentação do registro de bens culturais
de natureza imaterial, instituído pelo Decreto nº 3.551/2000, representou um relevante
marco legal na recuperação da memória cultural e dos saberes populares. Referido
processo serviu de referência inclusive para outras iniciativas similares.
A título de exemplificação, pode-se mencionar que a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) adotou essa legislação
como modelo de referência para os países-membros. Conceitualmente, segundo
afirma SILVA (2007), ela trata os saberes, as celebrações, as formas de expressão e
os lugares (de memória e práticas) em seus contextos socioeconômicos.
No mais, a Emenda Constitucional 48, de 2005, acrescentou o parágrafo 3º ao
artigo 215 da Constituição Federal, que instituiu o Plano Nacional de Cultura (PNC).
O PNC2, a ser estabelecido por lei, com duração plurianual, é constituído por
um conjunto de princípios, objetivos, diretrizes, estratégias e metas que devem
orientar o poder público na formulação de políticas culturais, contribuindo assim para
o desenvolvimento cultural do país, visando: i) a defesa e a valorização do patrimônio
cultural brasileiro; ii) a produção e a difusão de bens culturais; iii) a formação de
pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; iv) a
democratização do acesso aos bens de cultura; e v) a valorização da diversidade
étnica e regional.
Outro ponto que merece ser discutido diz respeito ao conceito de cultura-mundo
aqui utilizado, posto que conceituar o termo “cultura” não se mostra como sendo uma
simples tarefa.
Parte-se, aqui, da premissa de que a cultura, justamente por possuir uma vasta
gama de concepções, não pode ser reduzida à dimensão simbólica, cidadã e

1
Expressão decorrente da noção de cosmopolitismo, nascida na Grécia Antiga, tendo posteriormente sido utilizada no
cristianismo e mais à frente tomou um novo relevo no iluminismo, com a exaltação do homem e da razão, além de valores como
a liberdade e o progresso. Conforme apontam Lipovetsky e Serroy, essa noção de cultura-mundo identifica-se com o ideal ético
e liberal, com um humanismo universal que se recusa a ver nos outros povos figuras inferiores e considera o amor pela
humanidade superior ao amor pela cidade.
2
Mais informações podem ser obtidas através do sítio virtual do Plano Nacional de Cultura, disponível em <
http://pnc.cultura.gov.br/>. Acesso em 09/10/2018.
1034

econômica3. Também não satisfaz a divisão entre cultura sob a ótica antropológica e
da cultura clássica ou humanista4.
Assim, por ser um termo que se presta às mais diversas finalidades e por
possuir significados históricos distintos, adotou-se a noção de “cultura-mundo”, uma
vez que esta abarca essas perspectivas de maneira ainda mais ampla, demonstrando
ainda uma forte relação com a apropriação cultural, temática que posteriormente será
ventilada.
Nesse sentido:

“(...) Além da cultura erudita e nobre, impõe-se a cultura ampliada do


capitalismo, do individualismo e da tecnociência, uma cultura globalitária
que estrutura de maneira radicalmente nova a relação do homem consigo
e com o mundo. Uma cultura-mundo que não reflete o mundo, mas o
constitui, o engendra, o modela, o faz evoluir, e isso de maneira
planetária.” (LIPOVETSKY e SERROY, 2011, p. 11)

De fato, a modernidade atual, hipercapitalista, tomada pelo individualismo e


impulsionada pelas relações midiáticas, é modelada pelas implicações decorrentes da
cultura-mundo.
Esses reflexos repercutem sobremaneira nas relações sociais. Bauman
descreve tais fenômenos, aos quais atribuiu o caráter de “liquidez”5.
Importante ressaltar ainda que a cultura se mostra como um meio fundamental
de assegurar a cidadania, uma vez que esboça o sentimento de pertencimento dos
indivíduos, viabilizando ainda a inclusão social.
Salutar que as leis regulatórias assumem grande relevância no tocante ao
mercado de arte (propriedade intelectual e proteção patrimonial, por exemplo). As
intervenções das instituições públicas nacionais e locais também possuem relevância,
uma vez que valorizam e dinamizam a variedade e a pluralidade da produção. Isto
porque viabilizam o desenvolvimento e geram visibilidade a diversas produções
culturais.
Assim, tendo em vista as várias dimensões que permeiam o conceito de cultura,
bem como suas implicações, evidencia-se que há de ser priorizado seu lugar em torno
das políticas públicas nacionais.
Há de se pensar, ainda, a cultura enquanto espaço institucional passível de ser
organizado segundo normas, critérios públicos e universais com grande potencial de
democratização das relações sociais, eis que possui o condão de criação de
identidade coletiva.

3 Por meio das metas do Plano Nacional da Cultura, o Ministério da Cultura trabalha a concepção de cultura articulada em três
dimensões: simbólica, cidadã e econômica. A dimensão simbólica aborda o aspecto da cultura que considera que todos os seres
humanos têm a capacidade de criar símbolos que se expressam em práticas culturais diversas como idiomas, costumes,
culinária, modos de vestir, crenças, criações tecnológicas e arquitetônicas, e também nas linguagens artísticas: teatro, música,
artes visuais, dança, literatura, circo, etc. A dimensão cidadã considera o aspecto em que a cultura é entendida como um direito
básico do cidadão. Assim, é preciso garantir que os brasileiros participem mais da vida cultural, criando e tendo mais acesso a
livros, espetáculos de dança, teatro e circo, exposições de artes visuais, filmes nacionais, apresentações musicais, expressões
da cultura popular, acervo de museus, entre outros. A dimensão econômica envolve o aspecto da cultura como vetor econômico.
A cultura como um lugar de inovação e expressão da criatividade brasileira faz parte do novo cenário de desenvolvimento
econômico, socialmente justo e sustentável. Disponível em <http://www.cultura.gov.br/o-ministerio>. Acesso em 09/10/2018.
4
Segundo M´hammed Mellowki e Clermont Gauthier (2004, p.539), “a primeira acepção do conceito de “cultura”, que se pode
chamar de antropológica, remete aos modos de pensar, de ser e de se comportar de uma coletividade, à sua maneira de
representar e de interpretar o mundo, à sua percepção com relação ao Outro e às maneiras de entrar em contato e de se
comunicar com ele. As pessoas passam a vida inteira mergulhadas nessa cultura imediata. (...) A segunda acepção que se pode
denominar de clássica ou humanista, designa o conjunto de conhecimentos, dos mais variados campos, que contribuem para a
formação do senso crítico, do gosto e da capacidade de julgar do indivíduo que os adquire.”.
5
Em Modernidade líquida (2001) e Amor líquido (2004), o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017) discorreu
acerca das condições do mundo, no intuito de compreender a complexidade da vida humana. Em particular tratou da fluidez
atinente às relações sociais e à vida política, abordando aspectos como o imediatismo, o individualismo e o consumismo que
demarcam a modernidade.
1035

Cultura e arte6 são também meios capazes de prover os indivíduos da massa


crítica necessária para se construir uma sociedade mais justa e solidária, permitindo
que cada um possa usufruir de uma vida mais digna.
Incumbe aos agentes públicos considerar os efeitos econômicos e sociais
decorrentes das políticas culturais, que devem promover a criatividade e a efetivação
de direitos, sobretudo no tocante à cidadania, favorecendo a convivência e semeando
a democracia.

2. APROPRIAÇÃO CULTURAL E SUAS IMPLICAÇÕES

A apropriação cultural adquire maior visibilidade diante do contexto do


hipercapitalismo cultural, onde a cultura-mundo figura enquanto uma das principais
marcas desse novo universo, cujas características, segundo Lipovetsky e Serroy
(2011) são:

“(...) a hipertrofia da oferta mercantil, a superabundância de informações


e de imagens, a oferta excessiva de marcas, a imensa variedade de
produtos alimentares, restaurantes, festivais, músicas, que agora podem
ser encontrados em toda parte do mundo, em cidades que oferecem as
mesmas vitrines comerciais. Jamais o consumidor teve à sua disposição
tantas escolhas em matéria de produtos, moda, filmes, leituras; (...) A
cultura-mundo designa a espiral da diversificação das experiências
consumistas e ao mesmo tempo um cotidiano marcado por um consumo
cada vez mais cosmopolítico.”

No entanto, essas mudanças características desse momento vivenciado


atualmente, demonstram uma outra face da globalização:

“Nesse universo caracterizado por um consumo bulímico, pela


intensificação da circulação dos bens, das pessoas, e das informações,
os indivíduos dispõem de mais imagens, referências, modelos, e podem
assim encontrar elementos mais diversificados para construir sua
existência. Se a cultura global difunde em toda parte, via mercado e redes,
normas e imagens comuns, ela funciona ao mesmo tempo como uma
poderosa alavanca de arranque dos limites culturais dos territórios, de
desterritorialização generalizada, de individualização dos seres e dos
modos de vida.” (LIPOVETSKY e SERROY, 2011, p. 15-16)

Não obstante a intensa diversificação social, mercantil e individual, com a


aproximação entre as diversas sociedades espalhadas pelo globo, evidencia-se que
não se tem uma cultura-mundo una, mas sim uma dinâmica permeada pela
hiperindividualização, heteregênea e subjetiva (LIPOVETSKY e SERROY, 2011, p.
16).
Face a esse contexto, surge entre as diversas problemáticas a apropriação
cultural, que é definida por Scafidi (1968) como "tomar a propriedade intelectual, o
conhecimento tradicional, as expressões culturais ou artefatos da cultura de outrem
sem permissão".

6
O linguista Noam Chomsky aduz que a finalidade do artista é transferir o que está retratado para a “esfera da nova percepção”:
“Viktor Shklovskij, no começo da década de 1920, desenvolveu a ideia de que a função da arte poética é “tornar estranho” o
objeto descrito. “Quem vive na beira da praia acostuma-se tanto ao murmúrio das ondas que nunca as ouve. E a prova disso é
que dificilmente ouvimos as palavras que proferimos... Olhamos uns para os outros, mas nem por isso vemo-nos uns aos outros.
Nossa percepção do mundo desfez-se; o que ficou é o simples reconhecimento.” Referido excerto, extraído de Linguagem e
pensamento (1977), reflete em alguma medida a algumas das inquietações que Bauman posteriormente descreveria em
Modernidade líquida.
1036

Grosso modo, o que diferencia a apropriação cultural da troca cultural diz


respeito à relação desequilibrada do forte sobre o fraco. Há, no entanto, uma linha
tênue entre apropriação cultural e inspiração. Além disso, é de sublinhar que as
culturas e suas relações são complexas.
De modo a proceder ao uso apropriado e consciente de uma certa cultura, se
mostra necessária a observância ao significado (é sagrado para essa cultura?); à fonte
(conhecer e entender a cultura); e à similaridade (não realizar uma cópia cabal), tal
como expõe Scafidi. Do contrário, incorre-se em dominação, uma posse indevida que
visa primordialmente exploração e lucro.
De fato, a apropriação implica em alterar sentidos, muitas vezes tornando-os
vazios. Referida implicação está inserida numa estrutura baseada no hipercapitalismo,
que tem o consumismo em sua base, onde o racismo surge enquanto componente
fundamental.
Ao passo que o racismo passa a constituir um viés acerca desse fenômeno,
automaticamente associa-se a certas pulsões de tirania, uma vez que se está diante
de um contexto de dominação, de subjugação de culturas.
Há de se considerar que a história dos povos que integram a sociedade
brasileira remete a um passado igualmente tirânico, de dominação e subjugação.
Atualmente, no entanto, constitui dever constitucionalmente expresso preservar o
patrimônio cultural nacional, em suas já mencionadas dimensões manifestadas em
bens materiais e imateriais.
Com relação a este último, em particular, cumpre destacar que por ser
transmitido de geração a geração, sendo constantemente recriado pelas comunidades
e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua
história, gera um sentimento ainda maior de identidade e continuidade, o que contribui
para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
Com efeito, a Constituição Federal reconhece a inclusão do patrimônio cultural
a ser preservado pelo Estado juntamente com a sociedade, referindo-se aos bens
culturais que integrem as práticas culturais dos diversos grupos formadores da
sociedade brasileira, posto que se referem à sua identidade e à memória.
A discussão sobre a história das sociedades indígena e negra, assim como a
escravidão que se sucedeu e sua relação enquanto um dos pilares estruturais da
formação cultural brasileira, por exemplo, não prescindem de vasta pesquisa crítica
tampouco de reflexão contínua no meio acadêmico.
Nessa esteira, as expressões manifestas através das artes e da cultura
contribuem enquanto matéria elementar para tal reflexão, afinal permeiam, por um
lado, as práticas sociais criativas e de resistência desses povos; e por outro lado,
expressam tradições diferentes daqueles produzidos pela indústria cultural.

CONCLUSÕES

Vislumbra-se que os conteúdos inseridos no conceito de cultura-mundo, suas


premissas político-econômicas e os problemas que se pretendem resolver e/ou
priorizar são determinados a cada momento histórico. Assim, dada a importância da
cultura no atual contexto, cumpre ao governo elevá-la a um outro patamar de
intervenção. Além disso, o fomento e o estímulo por parte do Estado – dada sua
função constitucional na área cultural –, incorre na necessidade de formulação e de
articulação de uma política nacional, que celebre as diferenças e que priorize a
inclusão social. Conseguintemente, evidencia-se que a cultura possui um papel
democratizador.
1037

Instituir políticas culturais e discutir com veemência no meio acadêmico a


influência e o papel dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira –
sobretudo os negros e indígenas –, implica em conhecer a fundo o processo de
formação histórico-social do país. Referida reflexão constitui o ponto de partida, sem
o qual não se torna possível compreender a dinâmica de dominação que vigora nos
dias atuais. Ausente essa compreensão, não se mostra possível gerar a massa crítica
necessária para combater referida dominação.
Diante desse cenário, a apropriação cultural se mostra como uma das
manifestações dessa dominação, constituindo uma ofensa ao direito fundamental da
preservação ao patrimônio cultural, na medida que representa a exploração de uma
cultura por grupos de maior influência que carecem do entendimento necessário e que
não possuem o consentimento do grupo atingido.
Não obstante, verifica-se que é possível o diálogo entre diversas culturas sem
que haja a apropriação de uma sobre a outra, desde que essa relação seja consciente
e baseada no respeito aos elementos, aos símbolos e à história referentes à cultura
explorada, possibilitando, assim, que a experiência seja enriquecedora no sentido de
difundir essa cultura e valorizá-la ainda mais.
Por fim, conclui-se que se revela necessária a ampliação dessa discussão no
meio acadêmico, a fim de resguardar o direito fundamental à preservação do
patrimônio cultural, bem como de assegurar o processo de formação da memória e
da identidade coletiva.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Zahar, 2004.
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1977.
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acompanhamento e análise. Coleção Cadernos de Políticas Culturais, v. 2. Brasília-
DF: Ministério da Cultura, 2007.
1038

ENTRE O PESADELO E O NOBRE SONHO: UMA ANÁLISE DO ATIVISMO


JUDICIAL E DA HERMENÊUTICA EXEGETA
BETWEEN NIGHTMARE AND NOBLE DREAM: AN ANALYSIS OF JUDICIAL
ACTIVISM AND OF EXEGETICAL HERMENEUTICS

Bricio Luis da Anunciação Melo


Mariana Amaral Carvalho

Resumo: A interpretação de normas constitucionais foi entendida por um longo tempo


como sendo a busca da vontade da lei, buscando desvendar o sentido da norma.
Como reação a uma interpretação literal, o ativismo judicial procurou conferir uma
ampla liberdade aos magistrados, com o fim de fazer justiça, podendo, para tanto, ir
de encontro ao texto positivado. A nova hermenêutica, entretanto, busca a
concretização da norma constitucional, revelando um processo criativo, partindo e
sendo limitada pelo texto normativo, a partir de valorações da realidade vivenciada
pelo intérprete. Para tanto, far-se-á uso da técnica de revisão de literatura e do método
histórico.
Palavras-chave: Exegese; Ativismo judicial; Concretização.

Abstract: The interpretation of constitutional norms was understood as the search for
the will of the law, seeking to unveil the meaning of the norm. As a reaction to a literal
interpretation, judicial activism sought to grant ample freedom to magistrates, with the
purpose of doing justice, and, in order to do so, to meet the positive text. The new
hermeneutics seeks to concretize the constitutional norm, revealing a creative process,
starting and being limited by the normative text, based on the experiences of the
interpreter. To do so, we will use the technique of literature review and the historical
method.
Keywords: Exegesis; Judicial activism; Implementation.

1. INTRODUÇÃO

A hermenêutica possui diversas correntes doutrinárias que divergem no tocante


à interpretação do texto constitucional. O texto tratará, essencialmente, do positivismo
clássico, que defende ser a atividade interpretativa a busca do sentido da lei, bem
como de um movimento que hoje se verifica no direito brasileiro denominado ativismo
judicial, que busca conceder uma ampla liberdade aos magistrados na interpretação
do texto constitucional, com o fim de fazer justiça.
O presente texto tem por escopo demonstrar como a nova hermenêutica
enxerga o processo de interpretação de normas jurídicas constitucionais. A atividade
interpretativa deixa de buscar a vontade do legislador e passar a ser encarada como
concretizadora da norma jurídica.
Com tal desiderato, far-se-á uma análise do que seria atividade interpretativa
para duas correntes frontalmente opostas: o positivismo exegeta e o ativismo judicial.
Para tanto, será utilizado o texto A Jurisprudência Americana sob os olhos ingleses:
entre o pesadelo e o nobre sonho, de Herbert Hart, como referencial teórico, para
demonstrar que ambas as correntes, devido aos extremos que pregam, acabam por
não atender a um moderno conceito de interpretação da norma constitucional.
Evidente que, pelas circunstâncias e dimensões do trabalho, a análise não
ultrapassará um nível inicial de debate do tema. Com o fim de se construir uma
moderna concepção teórica sobre a interpretação constitucional, observar-se-á a
1039

seguinte sequência: em um primeiro momento, tentar-se-á expor o problema da


interpretação a partir de dois tipos ideais, aqui metaforicamente reproduzidos como “o
nobre sonho” e o “pesadelo”.
Após, partindo da premissa de que a atividade interpretativa é concretizadora,
sustentar-se-á que a nova hermenêutica não busca o real sentido da norma, mas é,
eminentemente, criativa. Com lastro nesse marco teórico, defender-se-á que há uma
carga valorativa no processo hermenêutico cujo ponto de partida e limite é o texto
normativo. Para o atingimento desse fim, far-se-á amplo uso da técnica de revisão de
literatura sobre interpretação jurídica constitucional, notadamente por ser um trabalho
com questionamentos jurídicos e filosóficos. Por outro lado, serão invocados alguns
aspectos do método histórico, de modo a localizar acontecimentos cujos
desdobramentos auxiliam a compreensão do estado atual da hermenêutica
constitucional.

2. HERMENÊUTICA JURÍDICA E O NOBRE SONHO

Todas as normas jurídicas estão sujeitas a serem interpretadas, ainda que


dotadas de uma clareza patente. Isto decorre da percepção de que interpretar não
significa extrair o real significado da norma. Se assim fosse, apenas seriam passíveis
de interpretação as normas obscuras e difícil entendimento. Interpretar é reconstruir o
significado que o seu autor quis passar, atribuindo sentido ao texto. Revela-se, assim,
um caráter produtivo e não meramente reprodutivo do processo hermenêutico
(STRECK, 2011, p. 114).
Essa visão, porém, não é ainda a que prevalece na comunidade jurídica
brasileira. Com efeito, ainda encontra amplo amparo na cultura jurídica
contemporânea a Escola da Exegese, que nada mais é do que uma tentativa de
reconstruir qual teria sido a “vontade do legislador” quando a promulgação de uma
determinada norma jurídica. A melhor interpretação, portanto, seria aquela que
encontrasse o intuito originário de quem redigiu a norma em análise.
É assente que tal corrente interpretativa parte do pressuposto que a legislação
teria sido editada de forma perfeita e acabada. Assim, a tarefa do magistrado, que não
é visto como um agente interpretativo mas sim um mero operador do Direito, é
encontrar o real e único sentido da norma, presente desde o tempo de sua edição por
parte do legislador. Supõe-se que o legislador é o detentor do verdadeiro sentido
normativo, equiparando-o a um oráculo dos sentidos (SCHMITZ, 2015, p. 94).
É este, então, o nobre sonho mencionado por Hart. Uma crença na
possibilidade de que os juízes aplicam as leis preexistentes e não criam novas normas
jurídicas, mesmo quando se deparam com uma indeterminação dos textos normativos
(HART, 1983, p. 133). Para essa concepção, o direito não é o que os magistrados
pensam ser, mas sim o que ele, efetivamente, é. A tarefa incumbida aos juízes é
aplicar o direito e não ajustá-lo às suas próprias ideias ou concepções.
O magistrado assume, portanto, uma postura neutra, sendo-lhe vedado
enxergar o direito por meio de uma visão crítica de normas editadas no passado, por
um legislador distante da realidade atualmente existente. O juiz torna-se, assim, um
porta-voz dos mortos e de uma tradição jurídica irrefletidamente aceita, não
assumindo qualquer responsabilidade acerca de suas decisões haja vista ser um mero
aplicador da legislação (REIS, 2012, p. 156).
Essa é a máxima do Positivismo Jurídico, corrente filosófica do Direito, ainda
não completamente superada no Brasil. Haveria, na verdade, dois positivismos
jurídicos: o exegético e o normativista (SCHMITZ, 2015, p. 52). O primeiro é aquele
1040

da Escola da Exegese, em que não há qualquer espaço hermenêutico para que o


magistrado valore a norma jurídica uma vez que o código é autossuficiente e pretende
oferecer conceitos universalmente aplicáveis. Criou-se, assim, o dogma da
completude do ordenamento jurídico com nítido caráter ideológico (SCHMITZ, 2015,
p. 54).
Já o positivismo normativista tem base na Teoria Pura do Direito de Kelsen, o
qual constrói uma teoria de ordenamento jurídico positivo com fundamento de validade
em normas superiores, abstraindo-se carga valorativa ao Direito. Assim, seu foco de
atenção é a perfeita estruturação do ordenamento, sem que haja qualquer tipo de
interferência de relativismo valorativo.
Entretanto, no que tange à aplicação do Direito, não seria possível atingir essa
pureza pretendida por Kelsen. Para ele, a questão da individualização da norma
abstrata é um ato subjetivo e relativista, situado não no Direito, mas sim no campo da
política do Direito, sendo impossível determinar como o julgador decidirá no caso
concreto (KELSEN, 1985, p. 393).
Depreende-se, portanto, que a Teoria Pura do Direito, muito precisa enquanto
teoria do ordenamento jurídico, não é suficiente para uma teoria da decisão, pois esta
se situa no âmbito da política do direito.
Desta feita, por não ser um problema do direito, mas sim de política, é possível
a valoração por parte do magistrado no momento de aplicar a norma ao caso concreto.
Com efeito, o juiz sob a ótica do positivismo de Kelsen, não é um mero operador do
Direito, mas valora a norma no momento de sua aplicação. Há espaço para
subjetividade, de modo que a segurança tão propagada pelo positivismo clássico, o
nobre sonho na visão de Hart, não se sustenta uma vez adotada a visão de Kelsen de
ordenamento jurídico positivo.

3. ATIVISMO JUDICIAL E O PESADELO

Com a evolução do constitucionalismo pátrio, em que uma Constituição


extremamente principiológica passou a ser o centro do ordenamento jurídico, surgiu
uma nova forma de atuação jurisdicional, predominantemente criativa, embasada na
hermenêutica jurídica, na qual se revelam aspectos decisionais com vieses políticos,
até então somente utilizados pelos poderes Executivo e Legislativo. Assim, ao aplicar
direitos fundamentais, o magistrado faz usos de sua pré-compreensão, revelando
assim a condição de poder político do Judiciário e fazendo surgir o termo judicialização
da política1.
Com efeito, judicialização da política seria, então, a decisão pelo Judiciário de
questões com caráter político e social, que foram, de certa forma, negligenciadas
pelos Poderes Legislativo e Executivo, como decorrência do princípio da
inafastabilidade da função jurisdicional. O Judiciário passou a assumir o papel de
legitimador, legislador e até de instância recursal das próprias decisões do sistema
político, formado pelo Executivo e pelo Legislativo (FARIA, 2004, p. 17).
Nesse sentido, Garapon explica que a democracia acarretou um acúmulo de
funções por parte do Poder Judiciário na medida em que a justiça tornou-se um “último
refúgio para um ideal democrático desencantado” (GARAPON, 1996, p. 21). Com
efeito, o magistrado passou a ser figura central na sociedade contemporânea,
assumindo o papel de interlocutor privilegiado da sociedade civil e regulador de

1 Segundo Luís Roberto Barroso, haveria hoje uma “fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo,
documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a criação e a interpretação do Direito” (BARROSO, 2015, p. 438).
1041

conflitos, atuando como “ultimo guardião das promessas, tanto para o indivíduo
quanto para a comunidade política” (GARAPON, 1996, p. 23).
Dessa forma, passou-se a esperar do Poder Judiciário mais do que
simplesmente julgar, ante a constatação de que, hoje, tudo se espera da justiça. Isso
porque os magistrados passaram a estipular “o bem e o mal, além de fixar a injustiça
na memória coletiva” (GARAPON, 1996, p. 23).
Há, entretanto, uma diferença marcante entre o ativismo judicial e a
judicialização da política, sendo aquele uma judicialização da política em que há uma
atitude proativa do magistrado. Há um exercício deliberado de jurisdição política. Ativa
no sentido de tomar para si a responsabilidade de efetivar valores e concretizar
direitos (SCHMITZ, 2015, p. 192).
Com efeito, observa-se que, no ativismo judicial, a vontade do julgador vem se
sobrepondo à antiga vontade do legislador e ao próprio direito. Assim, sob o pretexto
de efetivar uma decisão jurídica justa, os magistrados vêm tomando decisões, muitas
vezes, sem qualquer fundamentação jurídica adequada e que divergem frontalmente
ao texto escrito pelo legislador, em uma nítida atividade política. Há, portanto, uma
aposta e confiança na vontade do legislador como critério de definição de justiça.
Essa corrente, extremamente sedutora, defende essa postura ativa por parte
dos juízes em oposição àquele magistrado exegeta, considerado frio e alheio à
realidade. Surge daí a ideia de “bom” ativismo, que é aquele que vai corrigir as
imperfeições da lei e, dessa forma, evitar a perpetuidade de injustiças.
O problema é que, nesse modelo, há a substituição da vontade do legislador
pela do magistrado, de modo que o direito passa a ser definido pelas concepções e
vontades do juiz. E se antes o magistrado era um mero porta-voz dos mortos (REIS,
2012, p. 156), passou a ditar o direito, o qual ficou submetido unicamente às suas
concepções pessoais e, podemos dizer, voluntariedades.
Reside aí a grande falha do ativismo judicial. Ao submeter o direito a uma
grande incerteza jurídica, uma vez que o submete unicamente às suas concepções
pessoais, não traz a mínima segurança que a sociedade precisa. Com efeito, não se
pode falar de bom ou mau ativismo haja vista não haver qualquer compromisso
ideológico por parte desse movimento com uma dentre as várias escolhas
valorativamente possíveis. Afinal, o que efetivamente caracteriza o ativismo é a
substituição da legalidade vigente e do texto constitucional pelo senso de justiça e
pelas convicções pessoais do magistrado (ABBOUD, 2014, ps. 425-426).
Desta feita, consoante sua demanda seja apreciada por este ou aquele
magistrado, a depender do viés ideológico do mesmo, haverá uma decisão
completamente diferente. Magistrados, incluindo os integrantes da Corte Suprema,
elegeram o princípio da proporcionalidade como chave mestra para decidir consoante
seu entendimento pessoal, apontando-o nas decisões, mas se esquecendo de
promover uma fundamentação adequada no que tange à ponderação. Os princípios
constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’,
de modo ao julgador conseguir fundamentar se acordo com o seu posicionamento
pessoal (SARMENTO, 2006, p. 200).
Eis, então, o pesadelo descrito por Hart, no qual as decisões judiciais decorrem
de fatores como intuição, personalidade do magistrado e preconceitos políticos. As
regras, por si sós, não seriam capazes de determinar resultado algum, de modo que
o direito é aquilo que os juízes determinam que ele seja (HART, 1983, p. 130).
Depreende-se, portanto, que o ativismo judicial falhou como forma de
superação da aplicação mecanizada da letra fria da lei no processo hermenêutico.
Procurou-se superar um modelo extremamente exegeta por outro, baseado na ideia
1042

de protagonismo judicial, que trouxe imensa insegurança no que tange à interpretação


do direito. Conferiu-se a atividade criadora do direito apenas nas mãos dos
magistrados, mas se esqueceu que o Judiciário apenas exerce seu poder de maneira
adequada se a motivação das decisões apoiar-se em elementos demonstravelmente
democráticos e não em um poder simbólico da jurisdição (SCHMITZ, 2015, p. 199).

4. A CONCRETIZAÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL

Diante das falhas acima apontadas pela escola da exegese e pelo ativismo
judicial no que tange à interpretação de normas jurídicas, cabe então indagar como
esse processo hermenêutico poderia se dar sem esses sobressaltos.
Este trabalho adotará a visão de Konrad Hesse no que tange à interpretação
da norma constitucional como solução para essa questão. Para o referido autor, a
interpretação seria o processo em que as normas constitucionais adquirem efetiva
vigência (HESSE, 1992, p. 25), não sendo possível falar em descobrimento da
vontade do legislador ou do magistrado.
O fim da interpretação não é a descoberta da vontade da lei, mas sim encontrar
o resultado constitucionalmente correto por meio de um processo de concretização da
norma constitucional, que será racional e controlável, gerando certeza e
previsibilidade jurídicas (HESSE, 1992, p. 26)
A interpretação seria, portanto, um ato criativo, superando-se a busca do
sentido da norma. É bem verdade que a nova hermenêutica compreende uma vertente
valorativa, uma vez que o intérprete não analisa a norma com a mente completamente
vazia, mas a partir de uma pré-compreensão da realidade em que vive.
Dessa forma, a concretização da norma constitucional depende da
incorporação das circunstâncias da realidade que essa norma procura regular, em um
processo hermenêutico racional e controlável. Nesse processo, diferentemente do que
ocorre no ativismo judicial, o texto da norma Constitucional é o limite da interpretação
(GUERRA, 2007, p. 35).
Nem se alegue que a hermenêutica, tomando por base os valores ínsitos ao
intérprete, estaria apartada de uma objetividade. Ora, a objetividade da ciência
repousa na objetividade do método crítico (POPPER, 2004, p. 22), não dependendo
da objetividade do cientista.
Nesse sentido, cabe ressaltar que a isenção de valores, tão propagada pela
escola da exegese, necessária para a obtenção da objetividade nas ciências sociais
é, praticamente, inatingível. Com efeito, a atitude do cientista natural é semelhante à
do social, ambos dotados de valores e percepções, pois a objetividade científica
advém da crítica recíproca, da divisão hostil-amistosa entre cientistas ou de sua
cooperação/competição (POPPER, 2004, p. 23).
Um bom processo interpretativo, destarte, não pode descartar da norma
constitucional o aspecto político (da realidade) nem o fator jurídico, cabendo ao
hermeneuta a ponderação e equilíbrio nesses dois campos.
É o que Richard Posner denomina de abordagem pragmática. Para ele, nossos
valores mais arraigados situam-se abaixo do pensamento e fundamentam nossas
ações, de modo que não haveria como dissociar os valores pessoais como fatores
agentes no ato de julgar. O que poderia ser feito, a fim de evitar o arbítrio já
mencionado, é unir essa vivência do julgador a dados empíricos (POSNER, 1992, p
447).
1043

De fato, ler os autos de um processo ou um artigo legal ou constitucional é um


ato que pressupõe aparato linguístico, cultural e conceitual, de modo que esse
processo hermenêutico envolve tanto criação quanto descobrimento.
Reconhece-se a postura criativa do processo interpretativo, ao vincular
interpretação do direito e concretização, de modo que “inexiste, hoje, interpretação do
direito sem concretização: esta é a derradeira etapa daquela” (GRAU, 2009, p. 29).
Desta feita, a norma é produzida pelo intérprete (e não desvendada), que tem como
ponto de partida e limite elementos do texto normativo (mundo do dever-ser), mas que
também leva em consideração elementos da realidade (mundo do ser), ou seja, o caso
ao qual ela será aplicada (GRAU, 2009, p. 35).
A concretização, então, caracteriza essa nova hermenêutica constitucional, de
modo a torná-la apta a melhor responder aos anseios e demandas de uma sociedade
cada vez mais complexa. Isso ocorre pois valoriza a realidade social, sem, por outro
lado, perder cientificidade, como se dá nos excessos do ativismo judicial.
Então, diferentemente do que muitos pretendem, a função jurisdicional não é
um mero complemento da legislativa, em virtude de aplicar no direito no caso concreto.
Esse enfoque é ilusório haja vista a lei não ser o direito em si mesma. Ela é somente
um dos critérios de apreciação do direito (SANTOS, 1997, p. 9). O legislador edita a
lei e o magistrado passa a interpretá-la, criando a norma. Nesse processo
concretizador, que parte da legislação e é por ela limitado, há uma valoração por parte
do intérprete, que se baseia em elementos da realidade que vive.
Assim, ao conferir uma carga valorativa no processo hermenêutico e fixar como
limite o próprio texto a ser interpretado, torna-se possível a adoção de uma teria
interpretativa sem os excessos ou equívocos do positivismo exegeta ou ativismo
judicial.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de interpretação das normas constitucionais, muito mais do que


uma atividade de descoberta, é uma atividade criativa do direito no caso concreto. O
intérprete, muitas vezes o próprio juiz, parte da legislação e, tomando por base suas
pré-compreensões e valores que carregam consigo, cria a norma jurídica a ser
aplicada, em uma nítida atividade de concretização.
Essa nova hermenêutica, voltada para a realidade social e menos mecânica e
formalista, revela-se cada vez mais importante diante das novas necessidades de uma
sociedade cada vez mais complexa e que espera uma resposta aos seus anseios.
Como parte da legislação e é por ela limitada, não haverá o risco de serem
criados decisionismos sem qualquer fundamentação, sob o pretexto de promover uma
interpretação da legislação quando, na verdade, estar-se-ia diante de uma imposição
da vontade do intérprete sobre a lei. Havendo esse limite na própria legislação, há a
valorização da realidade social, sem que se perca cientificidade.
Dessa forma, essa nova hermenêutica, uma vez que reconhece a influência
das pré-compreensões e valores na interpretação de textos constitucionais, acarreta
uma importante mudança no processo interpretativo, atendendo, assim, de forma mais
satisfatória, a questão da interpretação dos direitos fundamentais elencados na
Constituição.

REFERÊNCIAS
1044

ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2014.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os
conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2015.
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Democrática. Disponível
em:<http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.p
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FARIA, José Eduardo. O sistema brasileiro de justiça: experiência recente e futuros
desafios. Estudos Avançados. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142004000200006>. Acesso em 12 out. 2017.
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direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
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Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
HART, Herbert Lionel Adolphus. Essays in jurisprudence and philosophy.Oxford:
Claredon Press, 1983.
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MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e interpretação do direito. 20. ed. Rio de
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Alegra: Livraria do Advogado, 1998.
POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais. 3. ed.Rio de Janeiro: Tempo
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POSNER, Richard. Legal reasoning from the top down and from the bottom up:
the question of unenumerated constitutional rights. Disponível em:
<http://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2885&context=jour
nal_articles>. Acesso em 22 nov. 2017.
REIS, Isaac. Entre o pesadelo e o nobre sonho: a hermenêutica daincerteza e a
retórica da objetividade. In: JUST, Gustavo; REIS, Isaac (Coords.).Teoria
hermenêutica do direito: autores, tendências e problemas. Recife: Editora
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SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 1997.
SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. São Paulo:
Lúmen Juris, 2006
SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais: a crise na
construção de respostas no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2015.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 8. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2011.
1045

IMIGRANTES SEM DIREITO A VOTO: UMA ANÁLISE DA EXCLUSÃO DA


CIDADANIA POLÍTICA DO ESTRANGEIRO A PARTIR DO CONTO “A VOLTA DO
MARIDO PRÓDIGO” DE JOÃO GUIMARÃES ROSA.
IMMIGRANTS WITHOUT VOTING RIGHT: AN ANALYSIS OF THE EXCLUSION OF
FOREIGNER POLITICAL CITIZENSHIP FROM THE TALE "A VOLTA DO MARIDO
PRÓDIGO” BY JOÃO GUIMARÃES ROSA

José Eduardo Melo de Souza


Luiz Rosado Costa

Resumo: A cidadania, construída pela participação política, além de possibilitar a


defesa e promoção dos interesses dos diversos grupos que compõem a população,
possibilitaria que o imigrante se tornasse um interlocutor e não mero objeto de políticas
públicas, todavia, a Constituição Federal de 1988, apesar de seus avanços no campo
dos direitos fundamentais, nega-lhes o alistamento eleitoral. Assim, o presente estudo,
descritivo e exploratório, por meio dos métodos bibliográfico e documental visa a
analisar, a partir do conto A volta do marido pródigo, de João Guimarães Rosa, o
processo de exclusão dos imigrantes na sociedade brasileira e o déficit democrático
criado por não poderem exercer os direitos de cidadania política.
Palavras-chave: Constituição Federal de 1988. Guimarães Rosa. Direito e literatura.

Abstract: Citizenship, built by political participation, aside from allowing the defense
and promotion of interests of the many groups who compose the population could also
enable the immigrant citizen to become an interlocutor and not solely an object of
public policies. The 1998’s Federal Constitution, in spite of its advances in the
fundamental rights field, denies those citzens the right to electoral enrollment. Thus
the present study, descriptively and exploratory, aims to analyze from the tale “The
return of the prodigal husband”, by João Guimarães Rosa and through bibliographical
and documentary methods the process of exclusion of immigrants in Brazilian society
and the democratic shortfall created by those individuals not being able to exercise the
rights of political citizenship.
Key-words: 1988 Federal Constitution. Guimarães Rosa. Law and litterature.

1 INTRODUÇÃO

O constituinte de 1988, de maneira implícita, reconheceu a importância da


participação dos braços migrantes na construção do Brasil ao estabelecer, no art. 242,
§1º, da Constituição Federal de 1988 que: “ensino da História do Brasil levará em
conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo
brasileiro” (BRASIL, 1988).
Ao considerar a formação multicultural do povo brasileiro, a Constituição
atribuiu elevada importância a que se dê conhecimento sobre os povos que
contribuíram para a formação do Brasil, e dentre os quais os imigrantes, vindos das
mais diversas partes do globo ao longo da história, compõem parcela significativa.
Apesar deste reconhecimento, o texto constitucional manteve os imigrantes
excluídos da cidadania política ao vedar-lhes o alistamento eleitoral. Assim, esta
pesquisa, descritiva e exploratória, por meio dos métodos bibliográfico e documental,
visa a analisar — a partir do conto A volta do marido pródigo (publicado em
Sagarana), de João Guimarães Rosa (1908-1967) — os efeitos da exclusão da
1046

cidadania política aos estrangeiros e de que maneira ela impede que eles possam se
integrar efetivamente à sociedade brasileira.

2 A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ E SEU DÉFICIT DEMOCRÁTICO: A NEGAÇÃO À


CIDADANIA POLÍTICA DO ESTRANGEIRO

Seguindo a tradição das constituições que a antecederam, a Constituição de


1988 ao se referir aos direitos e garantias fundamentais fez remissão apenas aos
estrangeiros “residentes no País”1, o que impende que se analise o alcance dessa
expressão empregada no texto constitucional:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes (BRASIL, 1988, destaque nosso).

Interpretação descontextualizada e literal desse dispositivo constitucional


levaria à inaceitável conclusão de que os estrangeiros não residentes, ainda que em
território nacional, estariam alijados de quaisquer dos direitos e garantias
fundamentais.
À luz da sistemática constitucional de Estado Democrático de Direito, que tem
como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 3º, III) e a prevalência dos
direitos humanos (art. 4º, II), verifica-se que o constituinte na redação do caput do art.
5º dixit minus quam voluit. Neste sentido, José Afonso da Silva (2005, p. 339) ressalta
que: “por esse lado, o texto do art. 5º não é bom, porque abrange menos do que a
Constituição dá”.
A expressão “residentes no País”, todavia, encontra-se no texto constitucional
e não pode ser descartada pelo intérprete (SARLET, 2015), mas deve interpretada à
luz da sistemática constitucional.
Para Celso Ribeiro Bastos (1989), o sentido da expressão foi demarcar o limite
da atuação estatal brasileira, que só poderá agir em face dos que entrem em contrato
com seu ordenamento jurídico. Na mesma linha, Pinto Ferreira (1989, p. 59) destaca
que “o sentido da expressão ‘estrangeiro residente’ deve ser interpretado para
significar que a validade e fruição legal dos direitos fundamentais se exercem dentro
do território brasileiro”.
A universalidade dos direitos fundamentais, que decorre da dignidade da
pessoa humana, não autoriza a exclusão dos estrangeiros não residentes, ou
qualquer outra pessoa, do gozo e garantia de direitos sob a ordem constitucional
brasileira.
Neste sentido, inclusive, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal, quando
no julgado, em 7 de abril de 2008, do habeas corpus nº 94.016, de relatoria do Ministro
Celso de Mello, asseverou que:

O fato de o paciente ostentar a condição jurídica de estrangeiro e de não


possuir domicílio no Brasil não lhe inibe, só por si, o acesso aos
instrumentos processuais de tutela da liberdade nem lhe subtrai, por tais
razões, o direito de ver respeitadas, pelo Poder Público, as prerrogativas
de ordem jurídica e as garantias de índole constitucional que o
ordenamento positivo brasileiro confere e assegura a qualquer pessoa
(BRASIL, 2008).

1
As Constituições de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967 usaram a expressão “estrangeiros residentes no País” ao se referir a
seus direitos, o que fizeram, respectivamente, em seus arts. 72, 113, 122, 141 e 150.
1047

Em síntese, a Constituição coloca a igualdade de tratamento e a vedação à


discriminação entre brasileiros e estrangeiros como regra, mas seu texto reserva
alguns direitos aos nacionais, como o acesso a cargos estratégicos (art. 12, §3º) e
confere direitos de cidadania apenas aos brasileiros quando veda ao estrangeiro o
alistamento eleitoral no art. 14, §2º:

Os estrangeiros não dispõem de direitos políticos, não podendo votar ou


ser eleitos para cargos políticos. Não podem exercer outros direitos de
cidadania como a propositura de ação popular e a subscrição de projetos
de lei de iniciativa popular (MENDES; BRANCO, 2014).

Essa negativa de participação política a quem escolheu viver e trabalhar no


Brasil e, portanto, tem interesse nos assuntos políticos, cria um verdadeiro déficit
democrático (BARALDI, 2011).
Houve, pelo menos, três propostas de Emenda à Constituição que visavam a
assegurar o direito de voto aos estrangeiros2, mas nenhuma logrou avançar e os
estrangeiros continuam sem poder influenciar no rumo das decisões que lhes dizem
respeito.
No plano regional, o Brasil é o único Estado-Parte do MERCOSUL que não
permite que estrangeiros tenham voz nos assuntos públicos, em qualquer âmbito,
através do voto3: Bolívia e Paraguai permitem o voto na esfera municipal; Argentina e
Venezuela permitem nas esferas estadual e municipal; e o Uruguai e Chile permitem
o exercício do voto pleno, em todos os âmbitos (municipal, estadual e federal).
A cidadania, construída pela participação política, além de possibilitar a defesa
e promoção dos interesses dos diversos grupos que compõem a população,
possibilitará que o imigrante se torne um interlocutor e não mero objeto de políticas
públicas, o que caracterizará a transição de um multiculturalismo de convivência de
culturas, sem trocas, mas com imposições, para um multiculturalismo progressista
com diálogo transcultural.

2.1 O ESPANHÓIS QUE NÃO VOTAM NO CONTO “A VOLTA DO MARIDO


PRÓDIGO”: IMAGENS DA EXCLUSÃO DA CIDADANIA POLÍTICA

João Guimarães Rosa foi um dos principais representantes do regionalismo na


literatura brasileira, e o livro Sagarana, como toda sua obra, “nos põe em face do mito
como forma de pensar e de dizer atemporal” (BOSI, 2006, p. 462).
Neste sentido, analisa-se, a seguir, a exclusão dos estrangeiros da cidadania
política no Brasil por meio de sua representação no conto A volta do marido pródigo.
No referido conto, também denominado pelo escritor de Traços Biográficos de
Lalino Salãthiel é narrada a história do mulato Eulálio de Souza Salãthiel, personagem
que carrega no primeiro nome uma de suas maiores características (Éulalos em grego,
significa “bem falante”).
Famoso por contar histórias sobre seus passeios na cidade grande, que não
conhecia senão pelas fotografias, e cansado da vida no interior, Lalino decide, no
início da narrativa, embarcar em uma aventura rumo ao Rio de Janeiro.

2
PEC 14/2007, 88/2007 e 25/2012 (BRASIL, 2014).
3
As constituições da Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela e Chile autorizam e/ou regulam o direito a voto por estrangeiros
em seus arts. 20, 120, 78 e 64, 14, respectivamente.
1048

Para tornar concreto seu sonho, foi capaz de vender além dos seus poucos
bens, sua esposa, Maria Rita, a um homem espanhol chamado Ramiro, que, segundo
os rumores da cidade tinha interesse na mulher.
Ao descrever, na ficção, a trajetória de um mineiro no Rio de Janeiro,
Guimarães Rosa (2015) pontua que “as aventuras de Lalino Salãthiel na capital do
país foram bonitas, mas só podem ser pensadas e não contadas, porque no meio
houve demasia de imoralidade”. E como na narração bíblica da parábola do filho
pródigo, descrita no Evangelho de Lucas, que inspirou a construção da narrativa,
Lalino, após desfrutar seis meses dos mais variados prazeres que a capital federal lhe
oferecia, regressou ao interior mineiro na mais completa saudade e pobreza.
Tendo retornado, o marido pródigo viu frustrada sua tentativa de reaver sua
esposa, que a essa altura morava com o espanhol, Ramiro. Assim, ao buscar um novo
rumo para sua trajetória, o mulato, famoso pela sua esperteza e maestria em inventar
estórias, foi convidado por Oscar para atuar na campanha eleitoral do chefe político
do distrito, Major Anacleto.
Esse homem, caracterizado pelos seus princípios rígidos, foi relutante ao
aceitar a assessoria de Lalino. No entanto, após as considerações de Oscar e de seu
irmão, Laudônio, para quem um mulato desses poderia “valer ouro”, o candidato se
rendeu e aceitou o serviço de Eulálio em sua campanha política, com reservas.
Para o Major, a aversão de Lalino aos espanhóis, pessoas importantes na
cidade por serem possuidoras de terras e com quem mantinha relações comerciais,
poderia prejudicar sua campanha, e já na primeira conversa entre os dois o político
alertou-o: “Não me cace briga com pessoa nenhuma, e nem passe perto da casa dos
espanhóis. Eles são meus amigos, está entendendo?” (GUIMARÃES ROSA, 2015)
Foi como se o Major nada tivesse dito. Eulálio, pouco tempo depois da
conversa, passou em frente à casa de Ramiro dando um “viva o Brasil” e jogando
beijos para Maria Rita, na intenção de provocar o espanhol. Ao saber do acontecido,
indignado, o Major Anacleto queixou-se com Lalino e reafirmou para que cumprisse
suas ordens e não implicasse mais com os espanhóis.
Em resposta, Eulálio falou da importância do patriotismo e mudou de assunto,
destacando os feitos que tinha realizado para a ascensão política do candidato e por
fim, já cansado da insistência do Major nos “galegos azedos” como os chamava,
concluiu com uma assertiva que segundo Carvalho (2013) seria capaz de preocupar
os interesses do candidato:

Está vendo, seu Major, que eu andei muito ocupado com os negócios do
senhor, e não ia lá ter tempo p’ra gastar com espanhol nenhum? Gente
que p’ra mim até não tem valor, seu Major, pois eles nem não votam!
Estrangeiros... Estrangeiro não tem direito de votar em eleição”
(GUIMARÃES ROSA, 2015, grifo nosso).

O Major, intrigado com a resposta do mulato, teve que confirmar com seu irmão,
Laudônio, a veracidade da informação e, mais uma vez, obteve a mesma resposta:
“Não. Não podem. São estrangeiros...” (GUIMARÃES ROSA, 2015)
Essa segunda afirmação a respeito da ausência de cidadania política dos
estrangeiros parece ter sido a causa para a repentina mudança de tratamento do
Major Anacleto a eles e, no desfecho do conto, os direcionamentos do político aos
espanhóis, que antes eram amistosos, se tornaram agressivos e violentos:

Estêvam! Clodino! Zuza! Raymundo! Olhem: amanhã cedo vocês vão lá


nos espanhóis, e mandem aqueles tomarem rumo! É para sumirem,
1049

já,daqui!... Pago a eles o valor do sítio. Mando levar o cobre. Mas é para
irem p’ra longe! (GUIMARÃES ROSA, 2015)

E satisfeito com a certeza da vitória que se aproximava, enfatizou ainda aos


funcionários que “se a espanholada miar, mete a lenha (...) se algum quiser resistir,
berrem fogo!” (GUIMARÃES ROSA, 2015).
Conforme pontua Carvalho (2013), o Major apresenta duas faces que traduzem
seus sentimentos perante os acontecimentos finais do conto: uma amigável a Lalino,
que reconquista sua mulher e sai vitorioso pelos benefícios que trouxe ao candidato e
outra violenta aos espanhóis, que uma vez que não votavam, não se enquadravam
mais em suas “relações de compadrio”.
Nesse sentido, essa inesperada e truculenta expulsão dos espanhóis pelo
Major evidenciada na narrativa, demonstra que apesar da importância dos
estrangeiros na vida local, ela encontra-se limitada pela negativa de alistamento
eleitoral.
O fato de os espanhóis se distanciarem do círculo de interesses de Anacleto,
ou seja, dos olhares políticos do candidato, pois a eles era negado o direito de
participação política, fez com que se representasse na ficção rosiana a exclusão de
seus interesses, que a partir da descoberta do Major, ficaram relegados a segundo
plano e, assim, esses estrangeiros ficaram sujeitos ao arbítrio.

3 CONCLUSÃO

O estrangeiro embora tenha passado à categoria de imigrante, a partir da Lei


13.445/2017, e se tornado sujeito de direitos, ainda não foi alçado à categoria de
cidadão: a Constituição brasileira continua a lhes vedar o alistamento eleitoral e os
mantém excluídos de participação nas decisões políticas que lhes afetam. Assim,
apesar de seus inúmeros avanços no campo dos direitos fundamentais, a Constituição
Federal de 1988 manteve um déficit democrático em relação àqueles que escolheram
(re)construir suas vidas no Brasil, mas dele não são nacionais.
Por meio do diálogo entre o Direito e a Literatura, buscou-se demonstrar as
consequências dessa exclusão política dos estrangeiros que vivem no Brasil
representada no conto A volta do marido pródigo do livro Sagarana, de autoria de João
Guimarães Rosa. Neste sentido observou-se que os espanhóis personagens do
conto, apesar de participarem intensamente da vida social e econômica no interior
mineiro, não detinham a completa fruição da vida comunitária por lhes ser negado o
alistamento eleitoral. Por não possuírem a condição de cidadãos, como foi enfatizado
no conto, a eles nada restou senão a exclusão e a marginalização por parte da
comunidade a qual eles estavam vinculados, ou melhor, tentavam se vincular.

REFERÊNCIAS

BARALDI, Camila. Cidadania, migrações e integração regional – notas sobre o Brasil,


o mercosul e a União Europeia. 3º Encontro Nacional da ABRI – Governança Global
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Acesso em: 03 set. 2018.
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do Brasil: (promulgada em 5 de outubro de 1988), 2. volume : arts. 5. a 17. São Paulo,
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1050

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 48ª ed. São Paulo: Cultrix,
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_______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 94.016, Rel. Min. Celso de
Mello, data de julgamento: 07/04/2008. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000003151&bas
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digital.
MENDES. Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Bonet. Curso de Direito
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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12ª ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2015. Livro digital.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2005.
1051

INTERPRETAÇÃO E DECISÃO EM NIKLAS LUHMANN: TRANSMODERNIDADE E


DESCOLONIZAÇÃO
INTERPRETATION AND DECISION IN NIKLAS LUHMANN: TRANSMODERNITY
AND DECOLONIZATION

Heroana Letícia Pereira


Rafael Lazzarotto Simioni

Resumo: A interpretação jurídica brasileira tem levado em conta um ideário


descontextualizado da sua própria identidade e da ideia de modernidade. Contudo, é
preciso se atentar a novas possibilidades de interpretação. Uma delas é a
necessidade de um conceito de argumentação que possa perguntar pelas condições
de possibilidade e pela função da fundamentação, e que seja capaz de dar conta de
uma visão da interpretação baseada nos problemas da periferia para a periferia. Por
outro lado, ao analisar a interpretação do direito tomando por base distinções como
centro/periferia, bem como os sistemas de funções na organização do direito, nos
deparamos com a necessidade de reavaliarmos em que ponto está inscrita a
modernidade em uma perspectiva latino-americana. Como aportes paradigmáticos
nos estruturamos em Enrique Dussel aliado à teoria dos sistemas de Niklas Luhmann
para compreender a interpretação do direito pelo viés dos sistemas de organização
sob a distinção entre centro/periferia. Para tanto, nos valemos da concepção de que,
para que se construa uma teoria da interpretação e da decisão da periferia para a
periferia é preciso que se realize um diálogo intercultural transversal entre aqueles
que estão na fronteira entre o centro e a periferia.
Palavras-chave: Organização e decisão; centro e periferia; diálogo intercultural.

Abstract: The Brazilian legal interpretation has taken into account a decontextualized
image of its own identity and the idea of modernity. However, we must address to new
possibilities of interpretation. One is the need for a concept of argumentation that can
ask about the conditions of possibility and the function of a legal basis that could be
able to handle a view of interpretation based on problems from the periphery to the
periphery. On the other hand, when analyzing the interpretation of law based on
distinctions as center /periphery, as well as the systems of functions in the organization
of law, we are faced with the need to reassess the point at which modernity is inscribed
in a Latin American perspective. As paradigmatic framework, we follow Enrique Dussel,
allied to Niklas Luhmann's theory of systems to understand the interpretation of law by
the bias of the systems of organization allied to the center/periphery distinction. For
that, we use the idea that, in order to construct a theory of interpretation and decision
from the periphery to the periphery, it is necessary to carry out a transversal
intercultural dialogue between those who are at the border between the center and the
periphery.
Keywords: Organization and decision; center and periphery; intercultural dialogue.

A interpretação jurídica brasileira, por muito tempo, tem levado em conta um


ideário descontextualizado da sua própria identidade e da própria ideia de
modernidade, até porque existe uma clara discrepância entre o ideal de modernidade
europeu e o dos demais locais do globo, como é o caso da América Latina. Valendo-
se de princípios e procedimentos advindos da Europa, ainda se decide os problemas
periféricos com base em um direito vindo do centro, razão pela qual a interpretação
se encontra a uma distância crítica da realidade cultural. Contudo, é preciso se atentar
1052

a outras possibilidades de interpretação. Uma delas é a necessidade de um conceito


de argumentação que possa perguntar pelas condições de possibilidade e pela função
da fundamentação, e que seja capaz de dar conta de uma visão da interpretação
baseada nos problemas da periferia para a periferia.
Ao analisarmos a decisão jurídica, vislumbramos um apanhado de situações
que merecem destaque no panorama da atividade de decidir. Sinaliza-se, aqui, a
relação centro-periferia no imaginário ocidental, tanto pela relação América Latina e
Europa, como pela gradação de funções no sistema do direito, na perspectiva da
teoria dos sistemas autopoiéticos de Niklas Luhmann. Por outro lado, ao analisar a
interpretação do direito tomando por base distinções como centro/periferia, bem como
os sistemas de funções na organização do direito, nos deparamos com a necessidade
de reavaliarmos em que ponto está inscrita a modernidade em uma perspectiva latino-
americana. Para tanto, mostra-se necessária a realização de, em um primeiro
percurso, um levantamento de indagações e pressupostos teóricos a fim de
compreender em que ponto se insere a distinção centro/periferia na interpretação do
direito, em um viés voltado para a história latino-americana.
Como aportes paradigmáticos nos estruturamos em Enrique Dussel, aliado à
teoria dos sistemas autopoiéticos de Niklas Luhmann, para compreender a
interpretação do direito pelo viés da distinção entre centro e periferia. Para tanto, nos
valemos da concepção de que, para que se construa uma teoria da interpretação e da
decisão da periferia para a periferia é preciso que se realize um diálogo intercultural
transversal entre aqueles que estão na fronteira entre o centro e a periferia, um diálogo
da periferia para a periferia, não da periferia para o centro.
No interior dos sistemas de organização do direito facilmente se conclui que
lidamos com distinções internas ao sistema tais como organização forma/informal ou
fins/meios, o que se relaciona à produção de hierarquias. Contudo, esclarecer tais
distinções dentro do sistemas das organizações não é suficiente para afirmar que a
sua essência consiste na sua estrutura hierárquica ou em orientações para o
cumprimento de objetivos previamente postos.
Em uma concepção pré-moderna da sociedade, facilmente se pode estruturá-
la levando em consideração suas desigualdades, realizando uma diferenciação
estratificada e entre centro e periferia, que é uma forma elementar de sociedades
segmentadas, especialmente no tocante à divisão de papéis sociais e do trabalho. Tal
diferenciação provém dos centros, pois eles dependem dela para continuarem sendo
centros, enquanto isso a periferia ainda se mantém em uma diferenciação interna
segmentar (LUHMANN, 2006, p. 525). Destaque-se que pode haver uma
multiplicidade de centros e de periferias, com diferentes graus de aproximação entre
si e que realizam maiores ou menores diferenciações. Contudo, é preciso elencar
outros importantes elementos para além da diferenciação centro/periferia, pois ela
ultrapassa fatores geográficos e possui alto número de complexidades e sensibilidade
às comunicações. Falamos de uma nova forma de diferenciação somente quando
certas peculiaridades estruturais dos centros estão condicionadas pela manutenção
da diferença centro /periferia (LUHMANN, 2006, p. 525).
O aumento da complexidade da comunicação, justamente por exceder
fronteiras, tem importantes efeitos, com destaque para o surgimento de formas de
diferenciação territorial, a capacidade de reflexão em relação à própria identidade e
diversidade e o interesse no controle efetivo do que acontece fora das fronteiras; ou
seja, tendências expansão do domínio territorial. Do mesmo modo, existem centros
que processam sua prioridade de ser um centro com doação de símbolos e
significados, de lá eventualmente para perseguir fins missionários e outros que se
1053

limitam à organização de poder e recursos para a exploração da periferia (LUHMANN,


2006, p. 525). Tais resultados são vistos em larga escala quando se analisa as
grandes expansões territoriais de países europeus sobre o globo que, para além de
demarcações geográficas, também constroem extensões de seus territórios,
instituindo saberes e culturas. Contudo, não se pretende selecionar os limites lineares
do espaço identificáveis entre o centro e a periferia. Centro e periferia continuam
sendo uma forma de diferença (LUHMANN, 2006, p. 525). Do alargamento das
possibilidades de comunicação além das fronteiras do reino surge a necessidade de
distinguir os seres humanos de acordo com sua pertença ao próprio espaço da ordem
ou se eles vivem além das fronteiras (LUHMANN, 2006, p. 525).
Uma estratégia de crescimento libertador transmoderno pressupõe a criação
de um projeto transmoderno. Trata-se de um projeto que vise valorizar a cultura
negada, relegada a segundo plano por uma concepção de que uma cultura
eurocêntrica, dita universal, é a que trata do conhecimento verdadeiro. Contudo, não
basta simplesmente valorizar a cultura periférica de modo combativo em relação à
cultura do centro, pois isto significaria seguir um percurso pelo fanatismo. É preciso,
também, partir de uma crítica interna a partir de uma hermenêutica própria, na medida
em que a valorização da cultura periférica não pode partir de premissas cegas,
precisa, antes de tudo, partir de premissas críticas sobre sua própria cultura. Em
terceiro lugar, os críticos, para serem críticos, devem viver o biculturalismo das
fronteiras e então criar um pensamento verdadeiramente crítico (DUSSEL, 2016,
p.59). A partir destes pressupostos, segundo Dussel, é possível realizar um projeto
descolonial no caminho para a transmodernidade visando o desenvolvimento da
valorização de uma tradição cultural própria.
A ideia de transmodernidade é trazer à baila o surgimento da alteridade de
culturas universais, que respondem aos desafios da modernidade a partir de outro
lugar, do ponto de vista de sua própria experiência cultural, que não é a mesma da
euro-americana. Portanto, que podem responder às suas questões de forma única e
em um movimento transversal, isto é, de periferia para periferia. O diálogo intercultural
deve partir de outro lugar, para além do mero diálogo entre eruditos do mundo
acadêmico ou institucionalmente dominante (DUSSEL, 2016, pp. 63-64) e que não
parte do pressuposto da existência de uma simetria entre culturas que, sabe-se, não
existe, o intelectual crítico deverá ser aquele que se encontra na fronteira entre duas
culturas, do centro e da periferia, mas que dialoga da periferia para a periferia.
Para as culturas ocidentais, a invasão da América pelos espanhóis foi um
marco da construção da Modernidade. A abertura geopolítica da Europa para o
Atlântico, o início da implantação do sistema-mundo e criação do sistema colonial se
deram a partir deste marco histórico. Também pode-se falar que a plenitude da
modernidade somente ocorreu em função da existência do colonialismo, pois a partir
dele floresceu a revolução industrial. E justamente assim a Europa tornou-se o centro
do sistema-mundo, enquanto a América Latina tornou-se a uma periferia deste
sistema, assim como o continente africano.
A partir deste contexto é que se torna necessário estabelecer uma crítica a uma
visão ingênua que pressupõe a possibilidade da realização de um diálogo entre
culturas como possibilidade multicultural simétrica. Tal diálogo não pode ser simétrico
quando se realiza entre culturas de centro e culturas de periferia, pois o eurocentrismo
enraizou a produção de conhecimento e cultura civilizados como sendo os seus,
enquanto o que vem da periferia é conhecimento selvagem. Há um abismo cultural
intransponível neste contexto. As culturas periféricas foram, em parte, colonizadas,
1054

mas a maior parte de suas estruturas de valores foram excluídas, negadas ou que
aniquiladas.
O propósito do uso da filosofia da libertação, como crítica cultural, e da teoria
dos sistemas como crítica estrutural, é gerar uma nova elite cuja ilustração não se
articule ao centro, mas sim à periferia, aos oprimidos. Essa cultura periférica oprimida
pela cultura imperial deve ser o ponto de partida para o diálogo intercultural (DUSSEL,
2016, P. 53) para, a partir dele, em um diálogo da periferia para a periferia realizar a
construção de conhecimento liberta do centro.

REFERÊNCIAS

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Conceti de Fondamentali dela Teoria Dei Sistemi Sociali. Parma: Franco Angeli, 1996.
DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação na América Latina. 2ª Ed. Trad. Luiz João
Gaio. São Paulo: Loyola/UNIMEP, 1977.
DUSSEL, Enrique. Para uma ética da Libertação Latino Americana, Erótica e
Pedagógica. Trad. Luiz João Gaio. São Paulo: Loyola/UNIMEP, 1977.
DUSSEL, Enrique. Transmodernidade e interculturalidade: interpretação a partir da
filosofia da libertação. Revista Sociedade e Estado, Brasília, volume 31, número 1, p.
51-73, Abril de 2016. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
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LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. 3ª ed._ Petrópolis: Vozes, 2011.
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MIGNOLO, Walter. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte
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CLACSO, Ciudad Autônoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro de 2005.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia; in A colonialidade
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Lander (org). Colecciôn Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autônoma de Buenos Aires,
Argentina. Setembro de 2005.
SEGATO, Rita. Raça é signo. In: AMARAL Jr., Aécio &BURITY, Joanildo (Org.).
Inclusão social, Identidade e diferença: perspectivas pós-estruturalistas de análise
social. São Paulo: Annablume, 2006.
1055

O CONTRATO SOCIAL-SEXUAL DE CASAMENTO SOB AS PERSPECTIVAS DE


JOHN LOCKE E CAROLE PATEMAN
THE SOCIAL-SEXUAL MARRIAGE CONTRACT FROM THE PERSPECTIVES OF
JOHN LOCKE AND CAROLE PATEMAN

Yasmin Dolores de Parijós Galende


Camyla Galeão de Azevedo

Resumo: Este artigo pretende discutir o contrato de casamento sob as perspectivas


de John Locke e Carole Pateman. Para realizar esse estudo, por meio de pesquisa
bibliográfica, analisou-se as principais ideias de Locke a respeito do contrato de
casamento, especificamente no que diz respeito a diferenciação de poderes entre o
marido e a esposa dentro do contrato, bem como a teoria de Pateman,
especificamente quanto à ideia de o contrato social liberal de casamento ser, na
verdade, um contrato sexual. Busca-se concluir, ao final, que a formalização do
matrimônio se apresenta de maneira radicalmente diferente para as mulheres, que
são inferiorizadas e subjugadas aos maridos, mesmo em sociedades liberais
supostamente igualitárias.
Palavras-chave: contrato de casamento; contrato social-sexual; desigualdade de
gênero.

Abstract: This article intends to discuss the marriage contract under John Locke's and
Carole Pateman’s perspectives. To accomplish that objective, through bibliographical
research, we analyzed Locke’s main ideas regarding the marriage contract, specifically
in what he lectures about the differentiation of powers between the husband and the
wife in the contract, as well as Pateman’s theory about the idea of the matrimonial
contract to be, actually, a sexual contract of marriage. It is looked for to build, at the
end, the idea that the formalization of the marriage comes in way radically different for
women, who are demeaned and submissive to the husbands, even in liberal and
allegedly equalitarian societies.
Key words: matrimonial contract; social-sexual contract; gender inequality.

1 INTRODUÇÃO

Leciona a cientista política britânica Carole Pateman (1993, p. 15) que “a mais
famosa e influente história política dos tempos modernos se encontra nos escritos dos
teóricos do contrato social”. Essa história descreve como a sociedade civil e suas
principais instituições governamentais, políticas e sociais foram formadas a partir da
elaboração de um contrato social original, de sorte que a “autoridade legal do Estado,
a legislação civil e a própria legitimidade do governo civil moderno são explicadas
como apreensões de nossa sociedade de referenciais desse contrato” (PATEMAN,
1993, p. 15). No entanto, a autora adverte que tal história vinha sendo contada apenas
pela metade, de maneira que o pacto social se configura na realidade como um acordo
sexual-social, mas a sua primeira parte fora sistematicamente ocultada nas análises
das teorias políticas dominantes na filosofia e na tradição jurídica ocidentais.
Nesta senda, o contrato no pensamento liberal possuiria três expressões
principais que traduzem uma sistemática de dominação sobre a mulher: o contrato
social, o contrato de trabalho e o contrato de casamento, estando presentes em todas
estas relações a subordinação e a consequente sobreposição entre os contratantes.
Este trabalho optou por enfocar, dentre tais expressões, na instituição do casamento
1056

civil1 tal qual disposto, em sua literalidade legislativa, como um ato contratual de
registro público que estabelece uma sociedade conjugal de comunhão plena de vida,
esta que deveria ser pautada na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, nos
termos dos arts. 1.511 e ss. do Código Civil Brasileiro, e no art. 226 da Constituição
Federal de 1988.
A igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges de um casamento
heteroafetivo assume crucial relevância no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em
vista que neste, independentemente de raça, sexualidade ou gênero, todos os
indivíduos são considerados formalmente iguais, inclusive em suas relações
contratuais livremente estabelecidas. Desta feita, a importância da pesquisa se
justifica em razão da necessidade de uma análise concreta da relação matrimonial, a
fim de averiguar se a igualdade entre os cônjuges está sendo efetivamente alcançada,
considerando os aspectos sociológicos que envolvem os papeis assumidos pela
esposa e pelo marido após a contratação matrimonial.
O presente trabalho, então, inicia tratando sobre o contrato social de
casamento, a partir da teoria contratualista liberal de John Locke e, em seguida,
analisa-se a perspectiva crítica da teórica feminista Carole Pateman a fim de
compreender o contrato liberal como, em verdade, um contrato de nuance social-
sexual, e avaliar a efetividade dos direitos fundamentais, mais precisamente liberdade
e igualdade, no contexto do casamento entre homem e mulher.

2 O CONTRATO LIBERAL DE CASAMENTO A PARTIR DE LOCKE

No primeiro capítulo do livro Segundo tratado do governo, o contratualista


liberal John Locke explicita suas intenções de encontrar a fonte do poder que rege o
governo da sociedade civil instituída por meio do contrato original, e aduz que esta
adviria do poder político. Ao estabelecer o ele que entende por esta esfera de poder,
o filósofo leciona que:

(...) o poder de um governante sobre seus súbditos se distingue dos


poderes que são exercidos por um pai sobre os seus filhos, por um senhor
sobre o seu criado, por um marido sobre a sua mulher, ou por um senhor
sobre o seu escravo. Ora, uma vez que todos estes poderes, apesar de
distintos, podem ser exercidos por um mesmo homem quando
considerado em cada uma destas relações, torna-se necessário distingui-
los uns dos outros, e mostrar as diferenças que existem entre o
governante de uma comunidade, o pai de família e o capitão de uma galé
(LOCKE, 2007, p. 34) (grifos no original).

Notadamente, portanto, o sujeito detentor do poder político, e de todas as


outras formas de poder no contratualismo lockeano, pertence ao sexo masculino.
Ademais, o teórico desde logo determina que a relação entre o marido e “sua” mulher
está firmada em uma lógica de poder própria, que é liderada pelo homem. Isso é
corroborado no capítulo VII da obra supracitada quando, ao tratar da sociedade
conjugal, o autor evidencia que esta advém de um pacto voluntário entre o homem e
a mulher, mas reforça também que:

Embora marido e mulher tenham um só interesse comum, uma vez que


possuem entendimentos distintos, possuirão, por vezes, vontades

1
O presente trabalho optou por tratar tão somente do casamento enquanto união heteroafetiva para analisar a relação de
submissão da mulher em relação ao homem, tendo em vista também que o casamento homoafetivo apresenta diferentes
nuances e repercussões a partir da sociedade civil e sobre a vida dos contratantes.
1057

igualmente distintas também. Por esta razão, torna-se necessário que um


deles detenha a última palavra, isto é, capacidade para determinar a
vontade do casal. Trata-se de uma competência que é atribuída
naturalmente ao homem, já que é mais apto e mais forte do que a mulher
(LOCKE, 2007, p. 102).

Vê-se que Locke não atribui ao poder do marido o mesmo poder absoluto que
possui um monarca, ressaltando inclusive que ambos os cônjuges têm poderes iguais
sobre a vida um do outro. Isso porque o contratualista faz severas críticas ao modelo
de organização social absolutista, logo, em razão de comparar a organização da
sociedade familiar enquanto uma pequena esfera de poder do homem à esfera política
como a maior esfera do poder masculino, notadamente o filósofo não iria defender a
existência de um poder absoluto, mas tão somente por isto. Outrossim, ele enfatiza
que ao analisar o poder do homem no ambiente doméstico considera o “(...) chefe de
família em todas estas relações que mantém com os subordinados que reúne debaixo
do governo doméstico de uma família: a mulher, os filhos, os criados e os escravos”
(LOCKE, 2007, p. 105) (grifos no original).
Conclui-se, a partir disso, que o poder do homem sobre a mulher não é somente
uma condição necessária para a efetivação do contrato de casamento, mas atribuição
natural daquele pela sua mera existência enquanto tal, uma vez que a ele pertence o
exercício do poder na sociedade civil instituída nos termos do contrato social original.
Nota-se que o paterfamilias, como se viu, não possui um poder absoluto nessa
pequena sociedade, porque o núcleo familiar não deve ser assemelhado a uma
monarquia, e porque a dona de casa (papel atribuído por Locke à mulher na sociedade
conjugal) também exerce a sua própria cota de poder no lar, mas esta deve ser sempre
obediente à palavra final do chefe da família – o marido.
Um dos inúmeros problemas que se apresenta ante o exposto é que a tradição
do pensamento liberal e das sociedades ocidentais se estabeleceu sobre o
sustentáculo das premissas de um estado de natureza que é também um “estado de
igualdade perfeita” entre os indivíduos (LOCKE, 2007, p. 35), e o contrato social é
realizado justamente para que esse estado permaneça em voga e não se torne
desigual. No entanto tal igualdade não se estende a todos os indivíduos que
pertencem a esta comunidade civil, uma vez que as relações de poder são
severamente desiguais e tendem para o lado da liderança masculina sobre a mulher.
Ademais, vê-se que o poder exercido na relação conjugal é politicamente
irrelevante para Locke, posto que o ambiente doméstico pertence à esfera privada, e
não à esfera pública (MOURA, 2014). Essa separação dicotômica entre o público e o
privado foi historicamente prejudicial às mulheres, que demandaram séculos de lutas
e reivindicações sociais para conquistarem o acesso mais básico aos espaços
públicos e aos direitos de cidadania, relação esta que até os dias atuais não se
encontra totalmente satisfeita.
De tal maneira, em antecipação ao argumento da injustiça contextual histórica
da escrita da teoria no contexto do século XVII, o que ora se problematiza são
justamente os impactos negativos nas configurações sociais modernas decorrentes
de tal teoria contratualista liberal, uma vez que em razão da determinação do espaço
público e político como pertencente somente aos homens, a socialização das
mulheres, dentro da esfera privada e familiar, é feita para que desde a infância estas
aprendam e normalizem em seus comportamentos a atribuição de um papel de
inferioridade e de submissão, vinculado predominantemente às tarefas domésticas e
às ideias de maternidade compulsória e casamento heteroafetivo (BEAUVOIR, 1967).
1058

Ainda, em nome desse direito natural ao poder que o homem possui, as


mulheres acabam sendo excluídas do contrato social por serem consideradas
pretensamente inadequadas às relações públicas livres (MOURA, 2014), mas elas
continuam fazendo parte do contrato privado de casamento, o que faz o
contratualismo liberal recair em completa contradição ao lidar com a figura feminina,
uma vez que sequencialmente nega e supõe a capacidade contratual das mulheres.
Nas palavras de Samantha Moura:

O contrato de casamento é um oximoro: a mulher é propriedade, mas


também pessoa. O “contrato exige que sua feminilidade seja negada e
afirmada”, como diz Pateman (1993: 93). A relação contratual, por
conseguinte, cria relações de dominação e de negação da liberdade, ainda
que pressuponha momentaneamente a condição de sujeito da mulher
(MOURA, 2014, p. 22-23).

Dessa forma, a emancipação da mulher nos espaços privados foi objeto de


reivindicações políticas formuladas por teorias feministas, sobretudo dos movimentos
mais contemporâneos que questionaram o fato de as mulheres estarem inseridas em
relações de subordinação nos espaços públicos, nas esferas do labor – com menos
direitos trabalhistas assegurados em relação aos homens, na distribuição de papeis
na sociedade civil, e ao retornarem aos seus lares continuavam sob uma dominação
perpetuada agora em outra forma de relação social contratual: os seus casamentos.

3 O CONTRATO SEXUAL-SOCIAL DE CASAMENTO SEGUNDO PATEMAN

A clássica teoria do contrato social liberal traduz a constituição das principais


instituições da sociedade civil, o que impacta significativamente a vida das mulheres,
sobretudo quanto às questões de cidadania, de trabalho e do seu papel no casamento
e na constituição da família – todas estas relações sociais e contratuais. Sob este viés,
as mulheres ficaram excluídas da participação na vida política, situada na esfera
pública, e acabaram confinadas a um espaço doméstico onde se perpetram suas
próprias relações de poder e de dominação patriarcais – isto é, baseadas no poder do
paterfamilias.
Junto ao contrato social do pensamento político clássico, portanto, é necessário
supor a existência de um contrato sexual que confere aos homens o direito político
sobre as mulheres, seus corpos e seus destinos. Tal contrato sexual “(...) é uma
dimensão suprimida da teoria do contrato, uma parte integrante da opção racional pelo
conhecido acordo original”, este que, por sua vez, “é apenas uma parte do ato da
gênese política descrito nas páginas dos teóricos do contrato clássico dos séculos
XVII e XVIII” (PATEMAN, 1993, p. 11).
Ademais, é mediante a análise do contratualismo sob a luz das teorias políticas
feministas que se consegue enxergar com clareza que o contrato social,
supostamente baseado em consentimentos voluntários e acordos mútuos, é na
verdade reprodutor de padrões de submissão. Sobre isto, aduz Luis Felipe Miguel
(2017, p. 2) que “enquanto na narrativa contratualista, que dominou a filosofia política
dos séculos XVII e XVIII e conheceu um revival a partir dos anos de 1970, o contrato
é o instrumento que formaliza a igualdade civil, a inclusão da categoria ‘gênero’
permite entendê-lo como definidor de assimetrias e exclusões”.
As relações contratuais no pensamento liberal possuem três dimensões
principais que traduzem a sistemática de dominação do homem sobre a mulher: o
contrato social, o contrato de trabalho e o contrato de casamento. Em todos estes está
1059

presente uma relação de subordinação na qual uma autoridade (o pai, o marido ou o


chefe) se sobrepõe à outra parte do contrato (a mulher, ou o trabalhador). E é a partir
disso que tais relações contratuais se transformam em relações de exploração ou de
dominação (PATEMAN, 1993).
Desta feita, é deveras criticável a noção de autonomia contratual presente nas
teorias clássicas, que dizem que as partes exploradas nessas relações assim o são
porque voluntariamente abrem mão de parcela da sua liberdade e de seus direitos em
troca de algum benefício, seja a proteção ou o provimento do pai ou do marido, seja
o salário. Não há como acreditar em uma verdadeira liberdade contratual quando as
partes subordinadas estão sendo politicamente coagidas – ainda que de maneira
simbólica – a assumirem estes papeis, tendo em vista tanto as imposições materiais
do capitalismo sobre a manutenção da subsistência do proletariado, quanto os
históricos impedimentos legais e sociais para que a mulher exerça suas liberdades e
se afirme enquanto sujeito político e titular de direitos e liberdades civis.
Ademais, no próprio contrato de casamento, ao que o homem e a mulher
firmam esta relação há a aquisição de dois papéis: aquele adquire a propriedade da
esposa, de modo que esta se torna um objeto e assume tão somente o “direito” de
obedecer ao marido (PATEMAN, 1993, p. 252). Portanto, o contrato de casamento
não pode ser compreendido nos termos de um contrato liberal clássico, regido pela
autonomia e liberdade iguais dos contratantes, pois se assim o fosse ambas as partes
deveriam ser inseridas na vida civil da mesma forma, ou seja, as esposas deveriam
ser inseridas na vida civil da mesma maneira que os maridos. Isso não ocorre, pois,
as mulheres não têm a possibilidade de alterar os termos do contrato sexual que
marca o seu papel estigmatizado na relação matrimonial (PATEMAN, 1993, p. 226).
O indivíduo liberal compreendido enquanto autoridade em todas as esferas do
contrato social é, portanto, o homem proprietário (e branco, quando inserido nessa
análise o recorte de raça). Dessa forma, “o contrato sexual, que determina a sujeição
das mulheres aos homens, é indissociável do contrato social, que cria uma sociedade
em que esses homens serão pretensamente livres e iguais” (MIGUEL, 2017, p. 6)
(grifos no original). E o contrato original clássico é estabelecido a partir de um acorda
firmado entre os próprios homens para lhes conferir direitos de igual acesso aos
corpos das mulheres, e poder sobre estas.
Outrossim, Thompson afirma que referir-se ao casamento como um contrato é
uma “mentira descarada”, já que não há nessa união, as características mais básicas
de um contrato para que ele seja considerado imparcial e justo. Segundo o referido
autor, um contrato implica em concordância voluntária entre as partes, pois o homem
e a mulher poderiam alterar as cláusulas de comum acordo (THOMPSON, 1970, p.
54-55). Como mencionado, ao casar-se, o marido ganhar poderes com relação à
esposa no casamento, e por adquiri-lo mediante o contrato de casamento não poderá
se desapossar desse poder. Tornar-se um “marido”, portanto, é, segundo Carole
Pateman, obter o direito patriarcal em relação à “esposa” (PATEMAN, 1993, p. 237).
Portanto, mesmo se o marido renunciar o poder sobre a esposa, ela nunca será
efetivamente livre, pois ela estará condicionada à vontade dele em manter a referida
renúncia.
Finalmente, outras autoras da teoria política feminista, como Nancy Fraser,
destacam que já houve certas mudanças nas relações matrimoniais que tornaram o
contrato de casamento não mais um acordo de poder absoluto do marido sobre a
esposa, mas uma espécie de “parceria desigual” em que as mulheres permanecem
em desvantagem (FRASER apud MIGUEL, 2017). De qualquer modo, continua sendo
1060

uma manifestação em detrimento das mulheres de um fenômeno histórico e social


reiterado e avassalador: o patriarcado, ou dominação masculina.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A instituição do casamento civil, como mencionado, em sua literalidade


legislativa considera ambos os cônjuges de igual forma. Deveria haver, portanto,
igualdade de direitos e de deveres na relação. Entretanto, a realidade em que se
evidencia no casamento é outra. Conforme demonstrado em Locke, o sujeito detentor
do poder político é nitidamente masculino, e a lógica de influência e poder no contrato
social e suas derivações deverá ser liderada por um homem. Segundo o filósofo, o
contrato de casamento é realizado de uma forma voluntária entre ambos os cônjuges,
no entanto, apesar do pacto em si ser voluntário, dentro da relação conjugal, se houver
divergência de interesses, é a vontade do homem que deverá prevalecer por ele
possuir a autoridade e por ser “genuinamente mais forte”.
De acordo com Pateman, essa forma de relação matrimonial não pode ser
considerada, efetivamente, um contrato de casamento, a menos que fosse
considerado um contrato sui generis. Isto é, as partes não possuem o mesmo nível de
igualdade na elaboração desse contrato, e apesar de terem a liberdade de escolher
realizar ou não o matrimônio, elas não possuem a liberdade de retirar, incluir ou alterar
as cláusulas socialmente contratuais – já que as atribuições são efetivadas em
detrimento da mulher, na figura de esposa. Portanto, existem cláusulas patriarcais que
são implícitas nos papeis matrimoniais. Se, portanto, este fosse considerado um
verdadeiro contrato aos moldes liberais, além de terem a liberdade de escolher realiza-
lo ou não, as partes poderiam ter a opção de alterar as cláusulas a fim de que sejam
incluídas na vida civil da mesma forma, o que não ocorre com as mulheres.
Para a teórica feminista Carole Pateman, o contrato de casamento, da forma
em que é socialmente apresentado e construído, deve ser considerado
verdadeiramente um contrato sexual. Ao realizar o contrato, o homem adquire a
propriedade da mulher. É ele quem possui o poder patriarcal sobre ela. Já a esposa,
adquire o “direito” de obediência, de aceitar os comandos e as ordens de seu esposo.
E mesmo com as transformações sociais que advieram graças às reivindicações
políticas do movimento feminista em prol da libertação da mulher, o contrato de
casamento ainda possui dois elementos essenciais implícitos que não foram
alterados: a obrigação do marido sustentar a esposa e a obrigação da esposa
obedecer e servir o marido. Ambas podem ser traduzidas pela própria diferença
salarial entre os gêneros, pois o salário do marido se traduz em um verdadeiro “ganha
pão” (PATEMAN, 1993), de modo que vai se sustentar e sustentar sua família, já o
salário da esposa se traduz em um mero complemento da renda familiar, sendo
necessário tão apenas para bancar seus próprios luxos e de seus filhos.
Por socialmente possuir apenas uma renda complementar, apesar de trabalhar
de forma remunerada, a esposa assume a obrigação de servir ao seu marido. Essa
servidão inclui a obrigação de realizar tarefas domésticas, ser submissa socialmente
a ponto de ser considerada na pessoa do seu marido, e inclui a própria servidão
sexual. Ao aderir voluntariamente ao contrato de casamento, a mulher passa a ser um
instrumento de reprodução e de satisfação individual do homem, e isto torna esta
figura um contrato social-sexual de matrimônio.
Pode-se, inclusive, questionar se há verdadeira liberdade nesta contratação
dita voluntária, uma vez que as mulheres são ensinadas que a verdadeira realização
de suas vidas estará na construção de uma família heteronormativa, e que devem
1061

dedicar suas existências enquanto tais para encontrarem e servirem a um marido, pois
assim se tornarão verdadeiramente mulheres, como se ouve nas tradicionais
celebrações de casamento onde os nubentes se tornam ao final “marido e mulher”.
Este questionamento abre portas para futuras discussões sobre a temática, uma vez
que o presente trabalho não pretende esgotá-la.
Constata-se, portanto, que o contrato de casamento não é equitativo. Os papéis
assumidos pelo marido e pela esposa são completamente distintos nos casamentos
tradicionais, pois como supracitado, as mulheres nascem com lugares
predeterminados em suas vidas: de casarem e serem submissas aos seus maridos.
Para que a esposa seja efetivamente livre nesta relação, deveria haver a
desconstrução dos papéis patriarcais socialmente atribuídos à mulher quando esta
ingressa em uma relação contratual matrimonial com um homem.

REFERÊNCIAS

PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. Tradução Marta Avancini. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1993.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Volume 2 (A experiência vivida). Tradução
de Sérgio Milliet. 2ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.
LOCKE, John. Segundo tratado do governo: ensaio sobre a verdadeira origem,
alcance e finalidade do governo civil. Lisboa – Portugal: Fundação Calouste
Gulbekian, 2007.
MIGUEL, Luís Felipe. Carole Pateman e a Crítica Feminista do contrato. Revista
Brasileira de Ciências Sociais – RBCS, Vol. 32, n° 93, fevereiro/2017, p. 1-17.
MOURA, Samantha Nagle Cunha de. A Separação entre Esfera Pública e Privada:
um confronto entre John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Carole Pateman. Revista
Gênero & Direito (1), 2014, p. 13-26.
THOMPSON, William. Appel of one half the human race, women, against the
pretensions of the other half, men, to retain then in political, and thence in civil
and domestic, slavery. New York: Burt Franklin, 1970.
1062

O DIÁLOGO ENTRE SEMIÓTICA E DIREITO: CONSIDERAÇÕES INICIAS SOBRE


SEMIÓTICA JURÍDICA
THE DIALOGUE BETWEEN SEMIOTICS AND LAW: INITIAL CONSIDERATIONS
ABOUT LEGAL SEMIOTICS

Cristiano de Oliveira
Vanderlei Garcia Júnior

Resumo: O presente estudo possui caráter analítico, tendo como objetivo investigar
teorias da Semiologia e Semiótica, com a finalidade de uma possível aproximação
entre Semiótica e Direito. Com isso, por meio de uma Semiótica Jurídica, busca-se
fornecer subsídios através de métodos e técnicas construídas e dotadas de rigor
científico, para que dessa forma, o intérprete e aplicador do direito tenham pilares
sólidos no decorrer do processo de interpretação de decodificação do discurso
jurídico. Para tanto, utilizou-se o método hipotético-dedutivo, a partir de revisões
bibliográficas. No mais, a pesquisa propõe-se a investigar os sistemas de significação
jurídica e sua aplicação nos discursos jurídicos.
Palavras-Chave: Semiótica Jurídica; Interpretação do Direito; Direito.

Abstract: The current study has an analytical character, aiming to investigate


Semiology and Semiotics theories, with the purpose of a possible approximation
between Semiotics and Law. Thus, by a Legal Semiotics, it pursue to provide subsidies
through methods and techniques built and composed by scientific rigor, so that the
interpreter and law enforcer can have solid pillars during the process of interpretation
of legal discourse decoding. For this, the hypothetical-deductive method was used,
based on bibliographic reviews. In addition, the research proposes to investigate the
systems of legal significance and their application in legal discourses.
Keywords: Legal Semiotics; Interpretation of Law; Law;

INTRODUÇÃO

O estudo de Semiótica e Direito, se justifica. Isso porque, o ordenamento


jurídico brasileiro possui em seus diversos diplomas, normas de textura aberta e
abstrata que permitem a valoração da norma pelo intérprete e aplicador do direito.
Isso sem falar nas dificuldades encontradas na linguagem, decorrentes das barreiras
existentes no canal de comunicação, razão pela qual necessita de estudo
interdisciplinar abarcando Filosofia da Linguagem, Hermenêutica, Direito e Semiótica.
Apresentadas essas questões, deve-se dizer que este estudo não pretende, e
nem poderia afastar o papel da Hermenêutica como ciência, o que se busca, é uma
complementariedade, valendo-se das conquistas alcançadas pela Hermenêutica, que
possibilitam uma Semiótica Jurídica.

DESENVOLVIMENTO

A Semiótica, possui diversas concepções, significações, campos de estudo e


desdobramentos teóricos. Para fins de um estudo sobre Semiótica Jurídica, far-se-á
um recorte metodológico, partindo da teoria semiológica de Saussure, da teoria
semiótica de Charles Sander Peirce, estudadas a partir de Umberto Eco, e por fim, a
teoria de A. J. Greimas, a partir da análise realizada por Eduardo Bittar.
1063

De acordo com Lúcia Santaella (1983), a Semiótica enquanto ciência tem como
objeto de sua investigação todas as linguagens disponíveis, isto é, examina o modo
de constituição de todo e qualquer fenômeno que produz significado e sentido.
Para Umberto Eco:

A semiótica estuda tanto a estrutura abstrata dos sistemas de significação


(tais como a linguagem verbal, os jogos de cartas, os sinais viários, os
códigos iconológicos e assim por diante) quanto os processos no curso
dos quais os usuários aplicam na prática as regras desses sistemas com
o fim de comunicar, isto é, de designar estados de mundos possíveis ou
de criticar e modificar a estrutura desses mesmo sistemas. (ECO, 2008,
p. 222)

Com efeito, dos sistemas teóricos alicerçados na Linguística, está a Semiologia


de Ferdinand Saussure, conhecida como linha linguístico-saussureana, que tem como
característica principal o apego ao metamodelo da Linguística. Pode-se dizer que o
objeto da teoria saussureana é fundado no estudo do universo da linguagem em
sentido amplo, isto é, construindo bases na linguagem verbal (escrita ou falada).
Não obstante, a concepção saussuriana de Semiologia compreende uma
abordagem de signos não verbais: gestos, mímicas, etc. Com relação ao conceito de
signo, sob uma perspectiva saussuriana, trata-se de um elemento abstrato que possui
alicerce na relação entre Significante (S) e significado (s).
Por outro lado, a teoria de Charles Sanders Peirce surge como contraponto à
teoria da semiologia saussurena. Peirce alargou o campo investigação sediando-se
em terreno filosófico e aprofundando-se em estudos lógicos e pragmáticos.
Em Peirce, estão presentes as dimensões sintáticas e semânticas da
Semiótica. Vale destacar que na teoria de Peirce, diferentemente do que se vê em
Saussure, há lugar para a investigação de signos não intencionais, isto é, sem a
participação de um emissor sígnico. (ECO, 2001)
Além disso, Peirce considerou como experiência todo o horizonte de
manifestação e interação humana retido com coerência e ordenação. (SANTAELLA,
2009)
Todavia, deve-se advertir, como faz Eduardo Bittar, que a Semiótica para ser
concebida como ciência e método independente e autônomo, não deve apegar-se
nem ao modelo linguístico de Saussure nem a um modelo lógico-filosófico de Peirce.
Essas considerações, contudo, não afastam a contribuição das reflexões de
Peirce para a construção de uma teoria de Semiótica Jurídica.
A respeito da teoria semiótica greimasina, esta foi responsável por emancipar
a Semiótica de seus antigos paradigmas, sejam eles associados à teoria da
semiologia de Saussure ou da Semiótica de Peirce. Eduardo Bittar (2017, p. 49-50)
destaca que “a teoria greimasiana propõe que a Semiótica se desgarre de
pressupostos que a subordinam a outras ciências”.
Nesse sentido, a teoria semiótica greimasiana buscou focar-se nos fenômenos
e fatos sociais, concebendo um sistema semiótico no qual cultura, discurso e
sociedade se produzem e se determinam incessantemente. (BITTAR, 2017)
Isto posto, adverte-se que somente é possível trazer um conceito do que seja
Semiótica Jurídica a partir de uma análise profunda das teorias apresentadas neste
trabalho. Isso porque, no Brasil há uma vasta produção científica em torno da
Hermenêutica e uma escassez de estudos voltados à Semiótica Jurídica.
Nesse sentido, há de se ressaltar que para a construção de um conceito de
Semiótica Jurídica, uma teoria não exclui a outra, mas se complementam.
1064

Conforme acentua Eduardo Bittar (2017, p. 55) “a Semiótica Jurídica não é uma
ciência recente, mas sua estruturação metodológica ainda se encontra em pleno
processo de desenvolvimento”.
Pode-se dizer, com arrimo em Kalinowski, que as primeiras manifestações
sobre Semiótica Jurídica se deram no trabalho de F. Oppenheim, em 1944, intitulado
Outline of logical analysys of law. (BITTAR, 2017)
A Semiótica Jurídica ocupa-se das diversas formas de significação que detém
efeito jurídico, tendo como dimensão o universo do sistema cultural humano e, como
tarefa, investigar os sistemas de significação jurídica.
Esse campo de investigação encontra sua justificativa no próprio Direito. Isto
porque, a exemplo de outras formas de linguagem, o direito manifesta-se por signos,
que para sua aplicação, necessitam de interpretação. É nesse campo que se afloram
as complicações do Direito, isto é, interpretar a norma jurídica de forma objetiva,
garantindo segurança jurídica e estabilidade nas relações jurídicas.
A propósito, este problema de dificuldade de uma interpretação objetiva é
confirmada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1994, p. 270-271), para quem “[...] a
participação do arbítrio humano é, pois, o que torna difícil a tradução e a interpretação.
A realidade, o mundo real, não é um dado, mas uma articulação linguística mais ou
menos uniforme num contexto existencial”.
Ademais, cumpre lembrar que as dificuldades de uma interpretação objetiva do
conjunto de normas jurídicas não se dão somente pelos limites de linguagem e
compreensão do intérprete, vez por outra, o legislador introduz palavras em textos
normativos que não exprimem o significado desejado.
De qualquer forma, por mais incompreensível que possa parecer o conteúdo
de determinado enunciado jurídico, não cabe ao intérprete omitir-se de sua tarefa de
interpretar e aplicar à norma jurídica, sob pena de torná-la letra morta.
Contudo, isto não autoriza interpretações com base no juízo de conveniência e
oportunidade. Cabe ao intérprete, diante de tal dificuldade, valer-se de critérios
objetivos, dotados de rigor científico, a fim de compreender os sistemas de
significação jurídica.
Assim, nesse ambiente de incerteza e diante da necessidade de impor uma
base segura no processo de interpretação dos discursos jurídicos, desponta a
Semiótica Jurídica, fornecendo ao intérprete um caminho sólido para o percurso no
processo de decodificação e interpretação dos discursos jurídicos.
Justificar o diálogo entre Semiótica e Direito não é tarefa fácil, isso porque há
uma certa compreensão de que o processo de interpretação se reduz ao estudo da
normatividade, marginalizando, portanto, todo o restante do discurso jurídico.
Todavia, como alerta Eduardo Bittar (2017), para investigar os sistemas de
significação jurídica deve-se ir além, tendo a juridicidade como parâmetro, visto que o
microssistema de normatividade é somente um dos elementos da juridicidade.
A juridicidade, no conceito elaborado por Eduardo Bittar, compõe-se de uma
realidade de textos, chamada textualidade jurídica, com potencialidade de produzir
sentidos. São partes da juridicidade: o conjunto de práticas textuais jurídico
burocráticas (burocraticidade); as práticas textuais jurídico-decisórias (decisoriedade)
e, ainda, o conjunto de práticas textuais jurídico-científicas (cientificidade).
Como se vê, o método de investigação da Semiótica justifica sua inter-relação
com o Direito.

CONCLUSÃO
1065

Como destacado, problemas de linguagem, signos, significação, interpretação


e decodificação de mensagens, é intrínseco ao Direito, o que implica em buscar
técnicas e métodos seguros de interpretação e decodificação do discurso jurídico.
Dessa forma, a partir das diretrizes apresentadas, buscou-se traçar um
caminho para um possível diálogo entre Semiótica e Direito.
Do desenvolvimento do tema, pode-se concluir que, no Direito, há vasto campo
de investigação semiótica, o que possibilita aplicar uma Semiótica Jurídica com a
finalidade de obter bases seguras para o caminho percorrido na interpretação e
decodificação das mensagens inseridas nos discursos jurídicos, afastando, destarte,
interpretações destituídas de critérios objetivos, com base no juízo de conveniência e
oportunidade.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Clarice von Oertzen. Semiótica do Direito. São Paulo: Malheiros, 2005.
BITTAR, Eduardo C.B. Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito. 7. ed. São
Paulo: Saraiva, 2017.
BRAGA, Maria Lúcia Santaella. O que é Semiótica. 2.ed. São Paulo: Brasiliense,
1983.
ECO, Umberto. Semiótica e Filosofia da Linguagem. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
______. Os limites da interpretação. 2.ed. Tradução Pérola de Carvalho. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica,
decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1994.
NOUGUÉ, Carlos. Suma gramatical da língua portuguesa: gramática geral e
avançada. São Paulo: É-Realizações, 2015.
POPPER, Karl Raymund. Lógica da pesquisa científica. 2.ed. Tradução Leonidas
Hegenberg; Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2013.
______. Os dois problemas fundamentais da teoria do conhecimento. 1.ed.
Tradução Antonio lanni Segatto. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
1066

O SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO (NEO) INQUISITÓRIO: UMA


REFLEXÃO A PARTIR DO FILME O JUIZ (JUDGE DREDD)
THE BRAZILIAN CRIMINAL PROCESS SYSTEM (NEO) INQUISITORY: A
REFLECTION FROM THE FILM JUDGE DREDD

Cristian Lima dos Santos Louback


Eudes Vitor Bezerra

Resumo: O estudo tem por objetivo analisar as semelhanças havidas entre as


funções dos Juízes de Mega City One, cidade fictícia do filme O Juiz (Judge Dredd),
e dos juízes brasileiros. Questiona-se se o sistema processual penal brasileiro é misto
e se há verdadeira separação das funções de acusar e julgar. O método utilizado na
pesquisa foi o hipotético-dedutivo, desenvolvido com base em pesquisa bibliográfica
e na análise do filme O Juiz (Judge Dredd). Conclui-se que, embora a doutrina pátria
aponte o sistema processual penal brasileiro como misto, há o acúmulo das funções
de acusar e julgar nas mãos dos juízes brasileiros, possibilitando a classificação do
sistema processual penal pátrio como (neo) inquisitório.
Palavras-chave: Sistema processual penal. Processo Penal. O Juiz. (Neo)
inquisitório.

Abstract: The purpose of this study is to analyze the similarities between the functions
of the judges of Mega City One, fictional city of the film Judge Dredd, and Brazilian
judges. It’s questioned if the Brazilian criminal procedure system is mixed and if there
is a real separation of the functions of accusing and judging. The method used in the
research was hypothetico-deductive, developed based on bibliographical research and
the analysis of the film Judge Dredd. It’s concluded that, although the Brazilian doctrine
points the Brazilian criminal procedural system as mixed, there is an accumulation of
the functions of accusing and judging in the hands of the Brazilian judges, making
possible the classification of the criminal procedural system as a (neo) inquisitorial.
Keywords: Criminal procedural system. Criminal proceedings. Judge Dredd. (Neo)
inquisitorial.

INTRODUÇÃO

O tema da presente pesquisa é o sistema processual penal brasileiro e tem por


delimitação a verificação de possíveis semelhanças com o modelo inquisitório
apresentado na obra cinematográfica de ficção científica O Juiz (Judge Dredd).
O trabalho justifica-se e mostra-se de grande relevância diante da definição
doutrinária de que o sistema processual penal brasileiro seja misto, enquanto
demonstra resquícios de um sistema processual penal inquisitório, contrário ao ideal
de processo penal constitucional.
O trabalho tem por objetivo geral verificar se o sistema processual penal
brasileiro guarda alguma semelhança com o sistema aplicado na cidade fictícia de
Mega City One. Tem por objetivos específicos verificar as características principais
dos três sistemas processuais penais, apontar as características funcionais dos Juízes
de Mega City One e verificar funções semelhantes atribuídas aos juízes brasileiros
pelo Código de Processo Penal brasileiro.
Foi utilizado o método hipotético-dedutivo com base na pesquisa bibliográfica
e na análise da obra cinematográfica O Juiz (Judge Dredd).
1067

DESENVOLVIMENTO

A obra cinematográfica Judge Dredd, no original, ou O Juiz, conforme título


lançado no Brasil, é um filme de ficção científica norte-americano datado do ano de
1995. Teve a direção de Danny Cannon e foi estrelado por Sylvester Stallone, Diane
Lane, Rob Schneider, Armand Assante e Max von Sydow.
A película é baseada na personagem Judge Dredd das histórias em quadrinhos
da revista britânica 2000 AD. Foi criado por John Wagner e Carlos Ezquerra, e teve
sua aparição no ano de 1977.
A história se passa no ano de 2139 e o mundo se apresenta em total colapso.
Ocorreram mudanças tão radicais no planeta, a exemplo do clima que se tornou
desértico, que o mundo acabou ficando conhecido como A Terra Maldita.
Nessa nova configuração do planeta Terra, a sobrevivência só se torna possível
em razão da construção de megacidades, cercadas por muralhas gigantescas, que
protegem sua população das tempestades de areia do deserto.
A história se passa em Mega City One, a versão futurista de Nova York, uma
cidade obscura e violenta. A violência ascendeu de forma tão abrupta que e o sistema
de justiça convencional não foi capaz de conter a selvageria das ruas.
Assim, com o intuito de reprimir a violência, os Juízes foram para as ruas, mas
acumulando funções. Os chamados Juízes passaram a exercer as funções de polícia
ostensiva, de acusação, de autoridade judicial e de carrasco.
Portanto, locomovem-se em motocicletas equipadas com armamento pesado,
usam fardamento e capacetes intimidadores, portam armas de fogo com várias
funções, inclusive com um sistema de segurança que faz com que a arma exploda ou
libere uma carga elétrica se for empunhada por alguém que não seja um Juiz.
Nesse cenário caótico, Joseph Dredd, interpretado por Sylvester Stallone, é o
mais temido de todos os Juízes. Ele é rígido, incorruptível e cumpridor subserviente
do Código Municipal, a lei que define os crimes e as penas de Mega City One.
Ocorrem duas mortes e o Juiz Dredd é o acusado, pois chega ao conhecimento
da Corte um vídeo em que ele aparece disparando contra as duas vítimas, vestido
com seu uniforme de Juiz e com o distintivo no peito contendo seu nome. Embora
muito bem defendido pela Juíza Hershey, foi condenado diante da irrefutável prova
apresentada pela acusação: a existência de seu DNA nos projéteis retirados das
vítimas. Uma das características das armas dos Juízes é marcar os projéteis com o
DNA de quem faz o disparo.
O Juiz Dredd foi condenado à morte pelos Ministros da Corte. No entanto, por
ser um Juiz da total confiança do Chefe de Justiça Fargo, interpretado por Max von
Sydow, Joseph Dredd é salvo da pena capital. Fargo recorre à tradição da Corte de
acatar o último pedido do Juiz que se aposenta e se retira para o deserto. Então, logo
após a condenação, Fargo apresenta sua aposentadoria e pede a clemência da Corte
na punição de Dredd. O pedido do Chefe de Justiça é acatado e Joseph Dredd é
condenado à prisão perpétua a ser cumprida na penitenciária de Aspen.
Assim, Joseph Dredd, a caminho da prisão, encontra Herman Ferguson,
interpretado por Rob Schneider, a quem havia a pouco condenado de forma rigorosa
a cinco anos de prisão, enquanto Fargo retira-se da cidade em direção ao deserto,
recebendo uma arma para sua proteção e as honras prestadas pelos Juízes. Um
acidente ocorre com a nave de transporte de presos e se inicia uma parceria de fuga
entre Dredd e Herman.
1068

Dá-se início, então, ao plano de dominação de Mega City One, até então
encabeçado pelo Juiz Griffin, interpretado por Jürgen Prochnow, e por Rico,
interpretado por Armand Assante, um Juiz que, após ter sido muito amigo de Dredd,
por este foi julgado e condenado. No entanto, Rico trai o Juiz Griffin, o mata, e põe em
prática seu plano de dominar Mega City One e implantar seus clones como Juízes
para se tornar o imperador da cidade.
Realizada esta breve introdução sobre a obra cinematográfica em análise,
passa-se à reflexão sobre a relação entre o Direito brasileiro e a película comentada,
limitando-se tal reflexão à atuação dos juízes brasileiros no atual sistema processual
penal pátrio em relação à atuação dos Juízes de Mega City One, no que se refere à
acumulação dos poderes de acusar e julgar.
Inicialmente cumpre destacar que o sistema processual penal é o conjunto de
princípios e regras constitucionais que estabelece as diretrizes a serem seguidas
quanto à aplicação do direito penal a cada caso concreto de acordo com o momento
político de cada Estado. (RANGEL, 2015, p. 46).
Tem-se, portanto, duas realidades distintas, pois, enquanto Mega City One vive
tempos caóticos, nos quais a violência impera nas ruas e a ordem só pode ser mantida
mediante a atuação rigorosa e violenta dos Juízes, no Brasil, embora a violência seja
uma preocupação constante, há, de certa forma, controle social, diferentemente do
caos constante da cidade fictícia.
Em razão disso, em Mega City One o sistema processual penal é, de certa
forma, inquisitivo, pois os Juízes que atuam nas ruas acumulam as funções de acusar
e julgar, somadas às funções de polícia ostensiva e de carrasco. O julgamento é
realizado logo após a abordagem do suspeito pelo Juiz e a pena, se for de morte,
executada no local dos fatos, pelo próprio Juiz.
Quanto aos sistemas processuais penais, a doutrina brasileira aponta três: o
inquisitivo, o acusatório e o misto. Para Guilherme de Souza Nucci (2016, p. 46), o
sistema inquisitivo é aquele no qual há concentração de poder nas mãos do juiz, que
também acusa; o sistema acusatório apresenta nítida separação entre acusador e
julgador; e o sistema misto, defendido pelo autor como o sistema brasileiro, que possui
duas fases, uma inquisitiva, a fase policial, e outra acusatória, a fase judicial.
Aury Lopes Junior (2013, p. 118) afirma que a doutrina brasileira defende a
posição de que os sistemas puros são históricos, não guardando correlação com os
modelos atuais e que a divisão do processo penal em duas fases, pré-processual e
processual propriamente dita, possibilita o predomínio da forma inquisitiva na fase
preparatória e a acusatória na fase processual, dando-lhe o caráter misto. No entanto,
para o autor, o modelo brasileiro é o (neo) inquisitório, pois não basta a mera
separação das funções de acusar e julgar para que o sistema seja acusatório, se,
após iniciado o processo, permite-se ao juiz agir de ofício.
Tendo o processo penal, como uma de suas funções, a reconstrução de um
fato histórico, a prova apesenta-se como a espinha dorsal do processo penal, ou seja,
estrutura e funda o sistema.
Nesse sentido, importante destacar o art. 156, do Código de Processo Penal:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém,


facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada
de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a
necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a
realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
1069

O referido dispositivo permite ao juiz, de ofício, ordenar a produção de provas,


o que acaba com a imparcialidade do magistrado, colocando-o, na busca de provas,
lado a lado com Ministério Público, órgão acusador. Ademais, o art. 156, do Código
de Processo Penal, permite ao juiz, também de ofício, realizar diligências para dirimir
dúvidas, ferindo de morte o princípio in dubio pro reo, pois permite ao juiz, em
persistindo dúvidas, buscar dirimi-las, em vez de absolver o acusado.
Desta feita, o art. 156, do Código de Processo Penal em muito se assemelha
às disposições do sistema penal de Mega City One, que permite aos Juízes realizar a
produção de provas, o que cabe à acusação, não ao órgão julgador.
Destaca-se, também, o art. 385, do Código de Processo Penal, que determina
que: “nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda
que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer
agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.”
Tal dispositivo do Código de Processo Penal brasileiro permite ao juiz, órgão
julgador, condenar o réu ainda que o Ministério Público, órgão acusador seja pela
absolvição. No entanto, em um sistema acusatório isso não é possível, pois o poder
punitivo estatal, que está nas mãos do juiz, está condicionado ao exercício da
pretensão acusatória do Ministério Público e, se o órgão acusador abre mão de acusar
não pode o juiz condenar, pois exerceria o poder punitivo sem a pretensão acusatória.
O art. 129, I, da Constituição Federal, dispõe que: “São funções institucionais
do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da
lei;”. Portanto, a função de acusar, salvos casos específicos, pertence ao Ministério
Público. Assim, para que o processo penal alcance o ideal equilíbrio entre a repressão
às infrações penais e o respeito às garantias constitucionais é necessário que guarde
conformidade com a Constituição Federal. (LOUBACK, 2018, p. 102).
Portanto, assim como em Mega City One, o juiz brasileiro, ao se utilizar do art.
385 do Código de Processo Penal para condenar quando for pedida a absolvição ou
para reconhecer agravante sem que nenhuma tenha sido alegada, coloca-se na
posição de acusador e julgador. Fere a Constituição Federal e vai mais adiante, pois
além de acumular as duas funções declara que os Promotores de Justiça e os
Procuradores da República são despreparados, prevaricadores ou incapazes de
concluir uma acusação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra cinematográfica O Juiz (Judge Dredd), embora apresente um cenário


distópico, caótico e violento, bem como Juízes muito diferentes da realidade, por
cumularem as funções de polícia ostensiva, acusador, julgador e carrasco, permite
que se trace, a partir dela, um paralelo com o sistema processual penal brasileiro.
O sistema processual penal brasileiro, embora possua duas fases distintas, a
pré-processual e a processual propriamente dita, nas quais, vigoram o sistema
inquisitivo e o acusatório, respectivamente, não pode ser considerado um sistema
processual misto.
A pesquisa demonstrou que, embora o sistema processual penal brasileiro
apresente separadamente as funções de acusador, pertencente ao Ministério Público,
e de julgador, pertencente aos Magistrados, há certa permissão para que os Juízes
invadam a seara da acusação e ajam de ofício em busca da produção de provas.
1070

A produção de provas pelos juízes não se coaduna com o processo penal


constitucional, tampouco com o sistema acusatório. Afasta o juiz de sua desejada
imparcialidade, bem como impede a vigência do princípio in dubio pro reo.
Verifica-se, portanto, que, assim como ocorre em Mega City One, onde os
Juízes investigam, acusam e julgam, guardadas as devidas proporções, ocorre no
Brasil, onde os juízes, de ofício saem em busca de provas, questionando testemunhas
e acusados, determinando a realização de diligências, sanando dúvidas e
condenando quando não há pedido da acusação e reconhecendo agravantes quando
não alegadas.
Pode-se considerar, portanto, que diante das comparações realizadas e dos
mencionados artigos do Código de Processo Penal, que o sistema processual penal
brasileiro não é misto, como parte da doutrina afirma ser, mas é um sistema que
permite que as funções do juiz e do promotor se confundam, portanto, é um sistema
(neo) inquisitório.

REFERÊNCIAS

BEZERRA, Eudes Vitor. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional - três


modelos de juízes. REVISTA ARANDU (DOURADOS), v. 14, p. 05-10, 2011.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2013.
LOUBACK, Cristian Lima dos Santos. A crise da teoria das fontes: a inidoneidade
da garantia da ordem pública como fundamento da prisão preventiva. Cognitio
Juris, João Pessoa, ano VII, núm. 21, p. 86-110, jun. 2018.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. Rio de
Janeiro: Forense, 2016.
O Juiz. Direção: Danny Cannon. Produção: Charles Lippincott e Beau E. L. Marks.
Intérpretes: Sylvester Stallone, Armand Assante, Diane Lane e outros. Buena Vista
Pictures, 1995. 1 DVD (96 min), cor. Produzido por Hollywood Pictures, Cinergi
Pictures e Edward R. Pressman Film.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. São Paulo: Atlas, 2015.
1071

O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA COMO UM AGENTE SÓCIO-CULTURAL


NO MUNDO TRIBUTÁRIO

Adalberto Pinto de Barros Neto


Talyssa Cristine Cardozo Razini

Resumo: O objetivo deste artigo é demonstrar como os tribunais judiciais brasileiros


têm o poder de influenciar a tributação simplesmente por pertencerem a um tecido
social envolto de poder em detrimento de outras instituições que possuem
conhecimento especializado na área tributária. Não se trata de averiguar qual
instituição social tem mais poder, mas investigar as estruturas de poder em que estão
inseridas e avaliar as possíveis consequências na tributação dessa estrutura. Para
completar este objetivo, serão analisados alguns dos precedentes do Superior
Tribunal de Justiça em que este tribunal se manifesta em matéria tributária.
Palavras-chave: Tributação, Poder, Sociedade, Tribunal Superior

Abstract: The objective of this article is to demonstrate how Brazilian judicial courts
have the power to influence taxation by simply belonging to a social fabric wrapped in
power, to the detriment of other institutions that have specialized knowledge in the tax
area. It is not a matter of ascertaining which social institution has more power, but
rather investigating the power structures in which they are inserted and evaluating the
possible consequences in the taxation of this framework. To complete this objective,
will be analyze some of the precedents of the Superior Court of Justice in which this
court manifests itself on tax matters.
Key words: Taxation, Power, Society, Superior Court

1 INTRODUÇÃO

Tudo é construído. Expressão simples que, além de por em resumo a ideia


central do ‘construcionismo’1, subsidiará a proposta do presente trabalho de
escancarar que as discussões na seara tributária sediadas nas cortes de justiça
superiores- máxime no Superior Tribunal de Justiça- STJ- possuem essência fincada
em uma estrutura de poder complexa e imersa numa malha de interesses,
principalmente, daqueles com ‘poder de realizar intentos’2. Em verdade, todo discurso
científico é prenhe de enunciados- sentenças- e sua significação é naturalmente
construída3, o tributário- e aqui me refiro às digressões na área fiscal residentes na
jurisdição do STJ– não seria diferente. Se verá que a firmação social desse discurso,
constituído muitas vezes sob um pretenso interesse de manifestá-lo como ciência pura
sem laivo algum de subjetividade, depende categoricamente de nuances como o
ambiente no qual é produzido, situação em que é formulado e funções
desempenhadas pelos seus produtores. Dessa forma, a medida em que a estrutura
de poder-cuja abordagem será feita nas linhas porvindouras- se consubstancia no
âmago institucional daquela Corte, pode-se criar um ‘mundo tributário’ portador de
1
O construcionismo, na acepção aqui assumida, nada mais é que uma “teoria da realidade social assentada naquele postulado
fundamental de que tudo é construído: a ‘realidade’, quer natural, quer social são textos construídos por uma atmosfera
semântico-pragmática a partir de sua visada e por seus meios: interpretação, compreensão, invenção, criação, produção,
convenção (em conjunto com outras atmosferas semântico - pragmáticas) em estádios históricos e sociais a que pertença”.
(PUGLIESI, 2017, p. 51).
2
A expressão é de Pugliesi: “A distinção entre operadores e agentes consiste em que os primeiros dispõem de poder para realizar
seus intentos e os segundos apenas se limitam a executar as operações pré-estabelecidas consoante as limitações normativas
postas”. (PUGLIESI, 2015, p. 3927-3928).
3
“Sobre o sentido dos enunciados, é preciso dizer que ele é construído, produzido, elaborado, a contar das marcas gráficas
percebidas pelo agente do conhecimento”. (CARVALHO, 2012, p. 201).
1072

conceitos e princípios próprios com ascendência conceitual arbitrária sobre


formulações científicas engendradas por outros sistemas sociais organizados com
competência especializada.
Este ensaio terá por epicentro a análise da estruturação do poder- seus
agentes, procedimentos e finalidades- que cimenta o tecido social tal como ensina
Pugliesi, em sua obra ‘Teoria do Direito: Aspectos Macrossistêmicos’. O entendimento
de como essa estrutura subsidia, interpenetra e permanece nos julgamentos em
matéria tributária oriundos do STJ auxiliará, como segundo objetivo do ensaio, a
dimensionar a inafastável função política4 que essa corte desempenha no ambiente
em que atua.

2 ANÁLISE PONTUAL DE DOIS JULGADOS DO STJ: O CONCEITO


JURISPRUDENCIAL E O CONCEITO CONTÁBIL DE ‘RECEITA OPERACIONAL’

Comecemos por um cediço julgado do STJ: essa corte plasmou o entendimento


de que no conceito de ‘receita operacional’ da pessoa jurídica inclui-se atividades
estranhas ao seu objeto social. Eis os arestos que ilustram o caso:

TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO


CPC/1973 NÃO CARACTERIZADA. AUSÊNCIA DE CONTRADIÇÃO
INTERNA NO ACÓRDÃO. PIS. COFINS. FATURAMENTO. BASE DE
CÁLCULO. RECEITAS ORIUNDAS DE LOCAÇÃO DE BENS IMÓVEIS.
LEGALIDADE. (...) 2. As receitas decorrentes da locação de bens imóveis
da pessoa jurídica integram a base de cálculo do Pis e da Cofins, pois o
conceito clássico de faturamento abrange as receitas operacionais da
empresa (REsp 929.521/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, DJe
13/10/2009, repetitivo). 3. Recurso Especial não provido. (REsp
1650363/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA,
julgado em 07/03/2017, DJe 19/04/2017).

Outro caso sobre o mesmo tema:

TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. CERTIDÃO


DE DÍVIDA ATIVA - CDA. BASE LEGAL. ART. 3°, § 1°, DA LEI
9.718/1998. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PELO STF.
PRESUNÇÃO DE CERTEZA, DE LIQUIDEZ E DE EXIGIBILIDADE
INALTERADA. APURAÇÃO DE POSSÍVEL EXCESSO POR MEROS
CÁLCULOS ARITMÉTICOS. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DO STJ.
JULGADO SUBMETIDO AO RITO DO ART. 543-C DO CPC. 1. Cuida-se
de Recurso Especial submetido ao regime do art. 543-C do CPC/1973
para definição do seguinte tema: "se a declaração de inconstitucionalidade
do art. 3°, § 1°, da Lei 9.718/1998, pelo STF, afasta automaticamente a
presunção de certeza e de liquidez da CDA, de modo a autorizar a
extinção de ofício da Execução Fiscal". 2. O leading case do STJ sobre a
matéria é o REsp 1.002.502/RS, de relatoria da Ministra Eliana Calmon,
ocasião em que Segunda Turma reconheceu que, a despeito da
inconstitucionalidade do § 1° do art. 3° da Lei 9.718/1998, a CDA conserva
seus atributos, uma vez que: a) existem casos em que a base de cálculo
apurada do PIS e da Cofins é composta integralmente por receitas que se
enquadram no conceito clássico de faturamento; b) ainda que haja outras
receitas estranhas à atividade operacional da empresa, é possível
expurgá-las do título mediante simples cálculos aritméticos; c) eventual
excesso deve ser alegado como matéria de defesa, não cabendo ao juízo

4
Aqui, adota-se o termo ‘política’ contextualizado no ‘agir humano estratégico’, tal como ensina Pugliesi: “A ação humana, por
via de estratégias consolidadas em políticas, estabelece o vínculo entre os dois campos e adquire assim, intrinsecamente, uma
natureza política”. (PUGLIESI, 2015, p. 2423-2424).
1073

da Execução inverter a presunção de certeza, de liquidez e de


exigibilidade do título executivo (REsp 1.002.502/RS, Rel. Ministra Eliana
Calmon, Segunda Turma, DJe 10/12/2009). 3. Essa orientação acabou
prevalecendo e se tornou pacífica no âmbito do STJ: AgRg nos EREsp
1.192.764/RS, Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, DJe
15/2/2012; (...).

Esses arestos foram verberados, entre e sob outras razões, por fazer inserir
atividade empresarial estranha ao objeto social da pessoa jurídica no conceito de
‘receita operacional’. O Comitê de Pronunciamentos Contábeis- CPC, cuja precípua
missão é emitir opinião técnica em matéria de contabilidade5, estatui o conceito de
receita sendo aquela que decorre das atividades usuais da entidade, aquelas que não
são usuais ganham qualificação diversa, são ganhos- não operacional6. Definições
contábeis divergentes que, como se vê facilmente pela leitura dos acórdãos do STJ
transcritos, tratam-nos como convergentes em absoluto.
Não se fita aqui pôr à prova a idoneidade jurídica dos fundamentos das
decisões acima transcritas, esse não é o desiderato da exposição. Esse sistema
adotado no ensaio- ponto da decisão judicial e contraponto contábil- fora feito apenas
para explicitar que, a despeito de estruturas científicas bem fixadas conceitualmente
por órgão com competência e especialização para tanto, o STJ deu a elas roupagem
diversa e será essa que regulará as relações intersubjetivas que exsurgem do
contexto social. Como se verá adiante, essa ‘sobreposição institucional’ não se dá
apenas em razão de caber ao judiciário a tarefa de ‘dizer o direito’ conforme o preceito
constitucional da separação tripartide do poder, como ingenuamente possa se pensar,
mas porque essas cortes figuram numa estrutura social de poder que as privilegia,
cuja análise mais detida será feita no tópico seguinte.

3 UMA ANÁLISE SOBRE A ESTRUTURA DO PODER QUE DIMANA DAS


MANIFESTAÇÕES JUDICIAIS E SUA SOBREPOSIÇÃO INSTITUCIONAL

Tomando por empuxo a primeira frase que principia este ensaio, partiremos da
premissa de que se tudo é construído, toda essa construção requer uma ação. A força
motriz da construção é o ‘agir’. Uma corte de justiça, por exemplo, ao interpretar-
construir, portanto- um texto legal e prolatar um acórdão determinando que ‘a’ deve
dinheiro a ‘b’ exerce claramente uma ação interventiva no mundo social. Nesse
contexto, interpretar é agir interventivamente e construir num determinado espaço
social. Esse encadeamento de ideias é melhor apreendido com a leitura da letra
filosófica de Pugliesi ao traçar uma correspondência entre teorização, interpretação e
construção:

O mundo – palco da práxis – engloba o tempo e é constituído, é um


construto compartilhado, conforme a capacidade e interesse de cada ator,
pela sociedade que se atém, de fato, num primeiro momento, nas
representações sociais como fenômenos, ou seja, formas de saber
defluentes da, também construída, realidade social e que surgem
cotidianamente nas comunicações interpessoais e na busca de controle
do ambiente sócio-físico (situação presente) ou, quando possível, buscar
configurações que satisfaçam aspirações presentes no campo da cultura,

5
O CPC fora criado pelo Conselho Federal de Contabilidade, por meio da Resolução nº 1.055/2005, cuja missão precípua,
segundo os artigos 13 e 14 do seu Regimento Interno, é estudar, pesquisar, discutir, elaborar e deliberar sobre o conteúdo e a
redação de Pronunciamentos Técnicos em matéria contábil. Esses pronunciamentos técnicos estabelecem conceitos
doutrinários, estrutura técnica e procedimentos a serem aplicados na área contábil.
6
Itens 4.29, 4.30 e 4.31 dos Pronunciamentos Técnicos Contábeis de 2012.
1074

algo como: a composição da obra; o buscar sentido para a existência;


tornar-se autor de seu próprios atos etc. (PUGLIESI, 2015, p. 3848-3849).

O que se apreende desse frugal ensinamento do Professor da PUC-SP, na


parte que importa ao construto deste trabalho, é que a interpretação constrói e
intervém, por ser uma manifestação do agir no mundo social e o altera em certo grau
e medida- essa sentença conclusiva é o epicentro do presente ensaio. Na mesma
lição, o Professor destaca que essa alteração do mundo social ocorre de acordo com
a “capacidade e interesse de cada ator” que mais tarde, na obra de onde hauriu-se o
trecho supracitado, identificará esses atores como agentes ‘sócio-culturais’. Essa
expressão vem pela primeira vez cunhada na sua obra em comento no seguinte
contexto:

Ademais, sendo a Cultura o conjunto de todos os projetos de uma dada


sociedade, ao estabelecer textos legais faz-se a narrativa das
expectativas, daqueles que podem estabelecer textos legais, sobre a
conduta esperada dos agentes sócio-culturais em um dado contorno
de influência de uma dada sociedade. (PUGLIESI, 2015, p. 1956-1957,
grifo nosso).

São esses agentes sócio-culturais que, como se infere das citações de Pugliesi,
possuem a capacidade, interesse e poder de influir no mundo social, de alterá-lo e,
portanto, de ingerir na cultura de uma dada sociedade. Volvendo-se para o binômio
interpretar (agir)/ construir alhures levantado, a ele adere-se um terceiro elemento: o
poder. Imprescindível, neste momento, aludir-se a Giddens ao estabelecer um
paralelo entre agir e poder:

A ação, assim, definida, envolve a aplicação de ‘meios’ para assegurar


resultados, na medida em que esses resultados se constituam na
intervenção no curso contínuo dos acontecimentos. Definamos, pois, o
poder como o uso de recursos, de qualquer natureza, para assegurar
resultados. O poder, então, se torna um elemento da ação e diz respeito
à categoria de intervenções de que um sujeito é capaz. O poder, em
sentido amplo, é equivalente à capacidade transformadora da ação
humana – a capacidade dos seres humanos de intervir em uma série de
Acontecimentos de modo a alterar seu curso. Nesse sentido, o poder está
intimamente ligado à noção de práxis, porquanto se relaciona com
condições historicamente constituídas e historicamente mutáveis da
existência material. (PUGLIESI, 2015, p. 3861-3863).

Fica claro, à luz de tais disposições científicas, que a alteração do mundo social
apenas se dá mediante categorias de intervenção por aqueles detentores de poder
entendido aqui na acepção de Giddens, ou seja, como a “capacidade transformadora
da ação humana – a capacidade dos seres humanos de intervir em uma série de
acontecimentos de modo a alterar seu curso.”. Por ora, dessume-se que alteração ou
construção do mundo social se dá em determinadas atmosferas semântico-
pragmáticas por meio de categorias interventivas imbricadas de poder. O nascimento
de um sistema normativo, por exemplo, como objeto de construção da realidade
social, nasce a partir de práticas humanas – interpretação, invenção e convenção- no
processo sócio-histórico. Mais uma vez, importante citar Pugliesi que elucida como se
processa essa construção de realidade social:

(...) a ‘realidade’, quer natural, quer social são textos construídos por uma
atmosfera semântico-pragmática a partir de sua visada e por seus meios:
1075

interpretação, compreensão; invenção, criação, produção, convenção (em


conjunto com outras atmosferas semântico - pragmáticas) em estádios
históricos e sociais a que pertença. Dessarte, a ‘realidade’ existente,
incluindo todos seus aspectos (simbólicos (o Homem é um ser
simbolizador); subjetivos; imaginários etc.) deflui das práticas humanas no
processo sócio-histórico: quer geograficamente localizado, quer na rede
telemática. Incluem-se aí, de pronto, como construções humanas as
línguas, religiões, sistemas normativos, ideias em geral, etc. Mesmo
porque: para a produção de objetos sempre se requer a presença de
projetos. (PUGLIESI, 2017, p. 51).

Tomando ainda o exemplo do sistema normativo, ele, como uma espécie de


construto social, é construído e inventado dentro de um habitat que convergem
determinadas categorias interventiva e agentes capazes- com poder- de utilizar essas
estruturas interventivas. Esses agentes capazes, são os que Pugliesi intitula de
‘operadores sócio-culturais’, termo já aqui mencionado. Segundo o professor, esses
são os que, de fato, diferentemente dos ‘agentes sócio-culturais’, possuem a
capacidade de promover alteração no mundo social significativamente:

O conjunto de todas as políticas que promovem a correlação entre os


campos da civilidade e cultura constitui a Política, que tem como parte
própria –a hermenêutica, e é realizado pelas ações de operadores e
agentes sócio-culturais e jurídicos. A distinção entre operadores e agentes
consiste em que os primeiros dispõem de poder para realizar seus
intentos e os segundos apenas se limitam a executar as operações pré-
estabelecidas consoante as limitações normativas postas. (PUGLIESI,
2015, p. 3927-3928).

Um dado sistema normativo, então, perfilhando o raciocínio que se intenta


construir, é produto de uma construção social que apenas se faz possível se
engendrada por agentes instituídos de poder de ingerência no mundo social. Isso
explica o fato incontroverso da capacidade que o julgados do STJ detêm para construir
‘mundos jurídicos’ que, mesmo em total desarranjo com as acepções de outros grupos
da comunidade científica, são eles os capazes de promover alterações no seio social.
Sobre essa criação desses ‘mundos’, Pugliesi pontifica que eles (i) derivam da
hermenêutica7; (ii) decorrem da coordenação da ação humana, produtora de sentidos
e significados construídos por via de relacionamentos; (iii) é resultado de trocas sócio
e historicamente geradas por pessoas; (iv) seus conceitos e princípios próprios podem
modificar conforme o contexto em que são criados8; (v) e, o que mais importa para o
presente trabalho, os objetos que dimanam desses mundos são tais como são, assim,
para cada construção que deles se faz para finalidades escolhidas por quem os
constrói. Antes de avançar sobre esse último item, em especial- o ‘v’-, transcreve-se

7
No caso do Direito, ele não sobrexiste sem a hermenêutica. Como Sanchís ensina: “O direito é lacunoso e não pode dar
respostas a todo problema mediante o único auxílio da lógica de conceitos, mas o juiz, guiado por uma obediência reflexiva,
dispõe dos valores ou interesses que motivaram ou estimularam as disposições normativas para decidir os interesses em litígio.”
(SANCHÍS, 1993, p.120).
8
Pugliesi, sobre este ponto, ensina que ação é uma categoria situacional, variará com base na situação em que é analisada.
Com a ação que é, pode-se afirmar, então, que a interpretação de textos legais seguem essa lógica, ou seja, variarão com base
no contexto em que é produzida. Nas firmes palavras do Professor:
“A situação (de situ = lugar e actione = ação) representa não apenas a localidade, inclusive discursiva, em que se exerce a
atividade, mas, ainda, o tempo em que se executa a ação, vez que esta não é instantânea, e constituirá, em nosso modelo, uma
função implícita da (s) estratégia(s) desenvolvidas no tempo, isto é: S = f.”. (PUGLIESI, 2015, p. 3912).
E mais:
“Ressalte-se, a ação é uma categoria situacional e não tem significado absoluto – apenas ao contemplar a totalidade dos jogos
em que participa o ator pode-se compreender a racionalidade ou irracionalidade de seus atos. A ação só pode ser interpretada
situacionalmente (...)”. (Ibid., p. 3930-3932).
1076

importante trecho da obra do Professor em referência donde fora retirado esse rol não
exaustivo de itens que caracterizam a construção dos ‘mundos’ da realidade social:

Esses ‘mundos’ possuem conceitos e princípios próprios resultado de uma


atividade- hermenêutica- de fornecimento de significação a termos e
expressões previstos no ordenamento jurídico. As inferências e as
descrições sobre o ‘mundo’ (a comunicação produzida) decorrem da
coordenação da ação humana, produtora de sentidos e significados
construídos por via de relacionamentos. A comunicação produzida é
resultado de trocas sócio e historicamente geradas pelas e por pessoas.
Assim, a comunicação como forma de produção e transmissão de
conhecimento rompe a dicotomia sujeito-objeto visto – ambos - serem
construções sociais. Além disso, os objetos vistos como naturais inexistem
– são construções realizadas ou intentadas pelas atmosferas semântico-
pragmáticas: objetos são tais como são, assim e assim, para cada
construção que deles se faz para finalidades escolhidas por quem os
constrói. E, por outra parte, nem por serem construídos consegue-se
permanecer sem eles. Depende-se deles e a ‘realidade’ de cada
atmosfera semântico-pragmática se orienta pelos objetos construídos por
ela mesa. E antes que se acoime essa conjectura do mesmo problema
daquele da essencialista (o mundo supercongestionado do sr. McX de
Quine ) ressalta-se que nem sempre serão os particulares ‘mundos’
construídos compartilhados – apenas aspectos pragmaticamente
relevantes serão discutidos. Reduz-se o inumerável das descrições
possíveis da ‘realidade’ e do ‘mundo’ pelas condições concretas e efetivas
da construção dos sistemas de significado e sentido em datas
determinadas e sob específicas condições sócio históricas. A função
metalinguística, que pressupõe significados e sentidos, torna-se
complexa, e seria redutor referi-la apenas à equivalência de signos
verbais. De fato, tanto o significado como o sentido das palavras se podem
modificar em cada contexto da relação. O contexto é definido, quer pelo
ambiente em que as pessoas estão inseridas (casa, local de trabalho, local
de diversão pública, local de culto etc.), quer pela comunicação não verbal
(tom, ritmo e intensidade de voz; postura, olhar; mímica facial, gestos). O
significado de certas palavras ditas no contexto de uma relação
descontraída de amigos não é igual ao das mesmas palavras
pronunciadas numa relação formal hierárquica. (PUGLIESI, 2017, p. 55).

Na esteira dessa lição, os objetos que destilam do ‘mundo tributário’- aqui


referidos como princípios, conceitos e institutos- são produzidos por quem pode os
construir, melhor dizendo, por quem tem o poder de construir. O Comitê de
Pronunciamentos Contábeis, o Conselho Federal de Contabilidade ou qualquer outra
situação do mesmo jaez que venha a estabelecer seus conceitos sobre determinados
institutos peremptoriamente cederão diante de um acórdão judicial, como ocorreu nos
casos em que o STJ adotou o entendimento de receita operacional em arrevesso ao
conceito propriamente contábil estudado, pesquisado, discutido e formulado por
órgãos específicos e competentes a pronunciar-se sobre o tema. Isso se dá porque
magistrados, mormente os que são da estirpe de tribunal superior, têm a capacidade
de ‘realizar intentos’ e estão no centro e no controle de um dos maiores sistemas
simbólicos por excelência: o Direito. Na conjectura de Bordieu:

O direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de


nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele
confere a estas realidades surgidas das operações de classificação toda
a permanência, a das coisas, suas operações de classificação toda a
permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de
conferir a instituições históricas. (BORDIEU, 1998, p. 237).
1077

Ainda com Bordieu, esses sistemas simbólicos são assim definidos:

Os sistemas simbólicos apresentam uma estrutura lógica e uma função de


construção de conhecimento, que para a tradição marxista não é tão
privilegiada como as funções políticas. As ideologias servem interesses
particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns
ao conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integração real
da classe dominante; para a integração fictícia da sociedade (...); para a
legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das
distinções. (BORDIEU, 1998, p. 10).

Com a presença desses elementos citados pelo autor- ‘função de construção


de conhecimento’ e uma ‘estrutura lógica’-, o sistema jurídico consegue sobrepor sua
função política de imposição em face a outros sistemas. O Direito possui a capacidade
de nomear coisas e dar-lhes status de permanência, como é o caso da coisa julgada
que não esvaece no tempo e possui raríssimas mitigações de sua força e alcance9.
Por isso que uma vez declarado pelo magistrado que receita operacional engloba
atividade-fim ou não da pessoa jurídica, essa sentença trespassa os limites
conceituais contábeis próprios derivados de outros sistemas- como o CPC, por
exemplo- e assenta-se imperativamente no campo social das relações humanas-
fisco/contribuinte, no caso exemplificado. Aos ministros do STJ é dado poder de dizer
a última palavra nos casos sujeitos a sua jurisdição, podem, então, impor sua visão e
conceitos mediante um sistema de nomeação logicamente estruturado- “ ‘a’ deve a
‘b’, ‘c’ é assassino’, ‘lei x viola decreto y’ e etc.- e com a utilização da técnica da
interpretação. Nas palavras de Bordieu:

A própria forma do corpus jurídico, sobretudo o seu grau de formalização


e normalização, depende sem dúvida muito estritamente da força relativa
dos ‘teóricos’ e dos ‘práticos’, nas relações de força características de um
estado do campo e da capacidade respectiva de imporem a sua visão do
direito e da sua interpretação. (BORDIEU, 1998, p. 218).

Bordieu destaca bem o papel do magistrado na imposição do Direito como


sistema simbólico no mundo social:

Em resumo, o juiz, ao invés de ser sempre um simples executante que


deduzisse da lei as conclusões diretamente aplicáveis ao caso particular,
dispõe antes de uma parte de autonomia que constitui sem dúvida a
melhor medida da sua posição na estrutura da distribuição do capital
específico da autoridade jurídica; os seus juízos, que se inspiram numa
lógica e em valores muito próximos dos que estão nos textos submetidos
à sua interpretação, têm uma verdadeira função de invenção. (BORDIEU,
1998, p. 223).

9
O STJ tem posicionamento consolidado no sentido de aceitar a relativização da coisa julgada, como pode se perceber pela
leitura do acórdão a seguir transcrito:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO INTERNO NO AGRAVO (ART. 544 DO CPC/73) - EMBARGOS À EXECUÇÃO - DECISÃO
MONOCRÁTICA QUE, RECONSIDERANDO O DECISUM ANTERIOR, CONHECEU DO AGRAVO PARA NEGAR
PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. IRRESIGNAÇÃO DA EMBARGANTE/EXECUTADA. 1. Em sede de agravo interno,
não é viável a adição de teses não expostas no recurso especial, por importar em inadmissível inovação recursal. 2. Segundo a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a relativização da coisa julgada só tem cabimento em situações
excepcionalíssimas, nas quais a segurança jurídica tiver que ceder em favor de outros princípios ou valores mais importantes, o
que não ocorre na hipótese de honorários advocatícios fixados em eventual inobservância dos ditames previstos no artigo 20,
§§ 3º e 4º, do CPC/1973. Frente a mero erro de julgamento, a correção deve ser requerida oportunamente por meio dos recursos
cabíveis ou da ação rescisória, procedimentos não tomados pela parte devedora. 3. Agravo interno conhecido em parte e, nessa
extensão, desprovido. (AgInt no AgInt no AREsp 172.277/AL, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em
16/05/2017, DJe 23/05/2017).
1078

Esse caminhar por entre as lições de Bordieu fez-se para demonstrar a força
simbólica do Direito que outras instituições carecem dela, o que explica, de certa
forma, a sobreposição institucional que cortes de justiça como o STJ possuem ao
impor seus conceitos jurídicos próprios contrastantes a definições científicas
elaboradas por entidades notadamente especializadas num determinado assunto. Os
exemplos trazidos neste ensaio entremostram esse fenômeno: ‘receita operacional’
engloba atividades que não sejam fins da pessoa jurídica para o STJ, noutra banda,
nas formulações conceituais contábeis, apenas ingressa nesse instituto aquilo que
decorre das atividades circunscritas ao objeto social da entidade, mas é a coercitiva
manifestação judicial que regulará as relações entre o fisco e o contribuinte. O ‘mundo
tributário’ dessas cortes se impõe antes a sistemas despidos da estrutura própria
existente nos sistemas simbólicos, como o contábil formado pela atuação permanente
do CPC, CFC e outros, remanescendo estes em posição periférica e servindo apenas
como instrumento ancilar do contabilista para formatar informação contábil dirigidas
ao Estado fiscal.

4 À GUISA DE CONCLUSÃO

O ‘mundo tributário’ do STJ se sobressai autoritariamente ante outros campos


do saber porque seus operadores sócio-culturais dispõem do poder de promover
incisões de mudança na realidade social. A capacidade interventiva desses agentes
no campo do Direito via hermenêutica constitui, altera e extingue relações sociais
mesmo que isso se dê de forma a causar siderações de entidades científicas hirsutas
construídas por outros sistemas- aqueles sem os elementos constitutivos que
caracterizam os sistemas simbólicos a que se refere Bordieu, como ocorreu no caso
do instituto da ‘receita operacional’ visto no início deste ensaio.
As mudanças ocorridas no tecido social dessa forma se dão no tempo, no
interesse e na velocidade daqueles atores na práxis social, como ensina Pugliesi, e
isso merece a preocupação não só da academia quanto ao respeito à autonomia
científica de outros ramos do conhecimento, mas da sociedade como um todo no fato
de estar sujeitada a uma jurisdição com força modificativa/constitutiva da realidade
social que variará no tempo e contextos nos quais se desenrola, ou seja, como o
interpretar- entendido aqui como o ‘agir’- é ‘situacional’, o que é hoje une o fisco e o
contribuinte pela obrigação de recolher PIS e COFINS em relação a atividades não
operacionais, pode amanhã não existir. A situação de instabilidade é flagrante e
reveladora de que STJ não apenas diz o direito, diz o direito, diz a contabilidade, diz
a economia, diz as finanças e assim, ao que parece, continuará a perfazer outros
dizeres.

5 REFERÊNCIAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg nos EREsp n. 1.192.764-RS. Relator:


Ministro Humberto Martins. DJe 15 fev. 2012. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?orgao=PRIMEIRA+SECAO&relat
or=HUMBERTO+MARTINS&ementa=COFINS&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=t
rue>. Acesso em: 25 nov. 2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp n. 1650363-RJ. Relator: Ministro Herman
Benjamin. DJe 19 abr. 2017. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?relator=HERMAN+BENJAMIN&pr
1079

ocesso=1650363&ementa=COFINS&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=true>.
Acesso em: 25 nov. 2017.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradution Fernando Tomaz (Portuguese of
Portugal) – 2ªed. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1998.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. Ibook Edition, 2012.
PUGLIESI, Marcio. Teoria do Direito: Aspectos Macrossistêmicos. SapereAude Grupo
Editorial. Kindle Edition, 2015.
PUGLIESI, Marcio. Questão de Método. No prelo 2017.
SANCHÍS, Luis Pietro. Ideologia e interpretación juridica. Madrid: Tecnos, 1993.
1080

PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM: BREVE PERSPECTIVA LITERÁRIA E


CONSTITUCIONAL ACERCA DA IGUALDADE DE GÊNERO
NEAR THE WILD HEART: A BRIEF LITERARY AND CONSTITUTIONAL
PERSPECTIVE ON GENDER EQUALITY

Marina Silveira de Freitas Piazza


Andréia Garcia Martin Simon

Resumo: A igualdade de gênero é um direito fundamental assegurado pela


Constituição Federal de 1988 e conquistado mediante uma constante batalha travada
pelas mulheres ao longo de muitos anos. No entanto, a desigualdade entre homens e
mulheres ainda é uma problemática a ser enfrentada tanto pelo Estado, como pela
sociedade.Através da interpretação do enredo “Perto do Coração Selvagem, escrito
por Clarice Lispector, será analisado os contexto sociais e jurídicos vividos pelas
mulheres em meados da década de 40 e atualmente, reverenciando todas as
conquistas advindas do movimento feminismo, sobretudo, no âmbito constitucional.
Ademais, tal estudo tem o intuito de apontar a diferença entre igualdade formal e
material. Destarte, o presente trabalho busca salientar o liame existente entre Direito
e Literatura, pois, partindo da premissa de que ambas são Ciências Humanas e que
tratam das relações interpessoais, verificou-se que a Literatura é uma fonte
hermenêutica relevante para o estudo jurídico.
Palavras-chave: Igualdade de gênero. Direito. Literatura.

Abstract: Gender equality is a fundamental right guaranteed by the Federal


Constitution of 1988 and won through a constant battle waged by women over many
years. However, inequality between men and women is still a problem to be faced by
both the state and society. Through the interpretation of the plot "Near the Wild Heart",
written by Clarice Lispector, the social and legal contexts lived by women in the mid-
1940s will be analyzed, reverencing all the achievements of the feminist movement,
especially in the constitutional sphere. In addition, such study aims to point out the
difference between formal and material equality. Thus, the present work seeks to
highlight the link between Law and Literature, since, starting from the premise that both
are Human Sciences and dealing with interpersonal relations, it was verified that
Literature is a relevant hermeneutic source for legal study.
Keywords: Gender equality. Law. Literature.

INTRODUÇÃO

No plexo dos sistemas de ciências existentes, o Direito não se constitui uma


ciência isolada. Assim, preliminarmente, faz-se imprescindível refletir sobre a
correlação entre Direito e Literatura: dois campos que se interligam por envolverem o
pensar e o sentir de cada indivíduo dentro da sociedade em que está inserido. Sobre
esse viés interdisciplinar, Guilherme Augusto De Vargas Soares e Thiago Fontanive
(2018) explicam que:

Tanto Direito como Literatura são ficções, o primeiro uma ficção


necessária, Tendo em vista que o Direito tem a pretensão de
aprisionamento do presente, projetando um futuro embasado em
determinado momento histórico fotografado, a Literatura vem propor um
repensar, a partir do seu caráter plurissignificativo (polissemia), da sua
1081

linguagem conotativa, ela “transporta” a realidade, ampliando a visão de


mundo do sujeito, conduzindo-o a caminhos nunca antes percorridos.

O modelo interpretativo utilizado no presente resumo tem o enfoque do Direito


na Literatura, o que corresponde à percepção da igualdade entre homens e mulheres
presente na obra inaugural de Lispector. Destarte, serão expostos aspectos de
convergência entre a emancipação das mulheres e as conquistas de seus direitos no
âmbito constitucional, frente à consciência da personagem principal da obra
clariceana“Perto do coração selvagem”: Joana, que possui traços autobiográficos da
escritora.
Ademais, é de grande relevância para este trabalho, abordar o fato de que, à
época em que a obra fora escrita, havia um protagonismo masculino tanto no âmbito
jurídico, quanto na área literária. À vista disso, operadores do Direito e escritores
feministas emergem-se em oposição a uma problemática em comum: a escassez da
voz feminina.
Estapesquisa possui como propósito central estudar a perspectiva literária e
constitucional acerca da igualdade de gênero tanto na década de 40, quanto, no
mundo contemporâneo, através de uma pesquisa bibliográfica, qualitativa e
explicativa; apresentando método dedutivo que parte de uma premissa maior, para
uma teoria específica; refletindo fontes de pesquisa primárias, por ser um trabalho
fundamentado em doutrinas e jurisprudências que abordam tal tema, e secundárias,
por utilizar sites e artigos disponíveis na rede de internet.
Outrossim, este estudo busca: ampliar o conhecimento sobre igualdade formal
entre homens e mulheres da Constituição Federal de 1988, contrastando com a
igualdade material; examinar o papel da mulher na Literatura e no universo jurídico
em 1943, ano em que foi publicada a referida obra; apontar a problemática da
desigualdade de gênero atualmente e a busca incessante das mulheres pela
igualdade substancial, destacando discursos feministas de mulheres influenciadoras
como Clarice Lispector, de forma visionária, foi há mais de 70 anos atrás.

1 RELAÇÃO ENTRE MULHER, LITERATURA E SOCIEDADE EM 1943

Realizadas tais ponderações iniciais, é interessante comentar a inserção da


mulher no universo da Literatura, de domínio masculino até o final do século XIX, com
algumas raras exceções. Inicialmente, as mulheres apenas escreviam através de
cartas e diários. Em seguida, no momento em que ingressaram com a escrita na
ficção, ocultavam sua identidade feminina, valendo-se de pseudônimos masculinos,
na maioria dos casos. Por fim, quandopassaram a assinar suas produções textuais
com seus reais nomes, encontraram inúmeras dificuldades para alcançarem
reconhecimento.
Em 1945, com a eclosão da terceira geração de escritores do Modernismo,
escola literária posterior a Segunda Guerra Mundial e após o Estado Novo da Era
Vargas, Clarice Lispector insurgeentre transformações, pautando-se por uma nova
visão sobre a igualdade de gêneros por meio de uma prosa poética.
No entanto, a obra em questão, foi lançada dois anos antes, demonstrando o
quanto a referida autora era visionária no que tange aos direitos femininos.Assim,
salienta-sesua ousadia ao redigir Perto do Coração Selvagem em 1943, por ser uma
escritora mulher, apresentar uma protagonista mulher com pensamentos incomuns às
mulheres da época, dando voz a ela e colocando em discussão um novo papel da
mulher na sociedade, trabalhando o feminismo através da Literatura impressionista,
psicológica e circular.
1082

Deste modo, Clarice inaugurouo“autodescobrimento feminino”(PIRES, 2006, p.


97), com a interiorização da personagem Joana por meio de sua reflexão filosófica e
existencial. Assim, a escritora retrata:

Muitos anos de sua existência gastou-os à janela, olhando as coisas que


passavam e as paradas. Mas na verdade não enxergava tanto quanto
ouvia dentro de si a vida. Fascinara-a o seu ruído – como o da respiração
de uma criança tenra -, o seu brilho doce se cansara de existir e bastava-
se tanto que às vezes, de grande felicidade, sentia tristeza cobri-la como
a sombra de um manto, deixando-a fresca e silenciosa como um
entardecer. Ela nada esperava. Ela era, em si, o próprio fim. (LISPECTOR,
1980, p. 70)

É admirávela forma sutil como Lispector transmiteaos leitores as perfeitas


profundidade, complexidade e amplitude de sentimentos submersos na alma das
mulheres, analisando as particularidades da busca por seus respectivosespaços na
sociedade para alcançar visibilidade e reconhecimento como pessoa humana.

2 RELAÇÃO ENTRE MULHER, DIREITO E SOCIEDADE EM 1943

Por outro lado, é pertinente observar o cenário jurídico dos direitos das
mulheres no ano de 1943, considerando o desenvolver do enredoda obra nominada
de “Perto do Coração Selvagem”. A princípio, é válido ressaltar que a primeira
Constituição brasileira que tratou de igualdade, destacando a proibição de diferenças
em razão do sexo, foi a de 1934. Todavia, a obra exordial de Clarice foi elaborada sob
a égide da Constituição Federal de 1937 e tal informação é de suma importância para
este estudo, uma vez que a Constituição é “um espelho da publicidade e da realidade”
conforme entendimento do doutrinador Peter Häberle(1997, p. 34).
A Constituição de 1937 é resultado de golpe de que instituiu o Estado Novo de
Estado. Assim, não abordava o termo “igualdade entre homens e mulheres” em seu
teor e os direitos garantidos ao gênero feminino foram dispostos de forma diversa
quando comparada à Constituição de 1934 que possuía uma redação mais protetiva
à mulher. Como exemplo pode ser citada a questão do voto feminino confirmada no
artigo 108 do referido texto constitucional, que também inaugurou os seguintes
preceitos de proteção ao trabalho da mulher: isonomia salarial, proibição de trabalho
da mulher em local insalubre e concessão de descanso no período anterior e pós-
parto.
Numa síntese jurídica, sob uma análise em paralelo das Constituições de 1934
e 1937, tem-se que esta última se apresentou como evidente retrocesso quanto aos
ganhos conquistados em 1934.
Assim, da atenta análise da referida obra literária, denota-se que a autora
buscava alcançar não somente a igualdade entre homens e mulheres meramente
formal, consubstanciada na máxima “igualdade perante a lei”, mas também, a material
que leva em consideração as especificidades de cada cidadão.
Neste aspecto, é válido citar as palavras de Boaventura de Sousa Santos: “As
pessoas e o grupos sociais têm direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza,
e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza.”A protagonista da
obra assimila talconvicção e, de forma indireta, apresenta uma nova percepção sobre
o papel da mulher na sociedade, como no trecho abaixo transcrito:

Um filho nasceria. Sim, mas antes que nascesse ela reclamaria seus
direitos. “Reclamar seus direitos” parecia-lhe uma frase que dormia desde
1083

sempre dentro dela, à espera. À espera de que ela tivesse força. Queria
que a criança brotasse entre os pais. E no fundo disso tudo, desejava para
si mesma “a pequena família”. (LISPECTOR, 1980, p. 121)

É nesta passagem que Joana constata que foi traída por seu marido, Otávio,
com Lídia: sua antiga namorada que apresentava características como, delicada,
pura, bela e que tencionava casar. Esta é a personagem que representava o
estereótipo da mulher“ideal”da época que se contrapõe com Joana: fria, livre, forte e
que não admirava o instituto do casamento.
Seguindo tal linearidade,Lispector expõe a descrição da personagem Lídia com
as seguintes palavras:

Levantar-se-ia, arrumaria os papéis, guardaria o livro, vestiria uma roupa


quente, iria ver Lídia. O conforto da Ordem. Como seria recebido por
Lídia? Diante da janela aberta, olhando as crianças caminharem para a
escola, viu-se segurar seus ombros, subitamente em cólera, talvez um
pouco forçada, em face daquela mesma pergunta: que estou fazendo
afinal? - Você não tem medo? – gritara-lhe. Lídia continuara igual. - Você
não tem medo de seu futuro, de nosso futuro, de mim? Não sabe que...
que... sendo apenas minha amante... só tem lugar ao meu lado? Ela
balançara a cabeça surpreendida, chorosa: - Mas não... Ele sacudira-a,
longinquamente envergonhado de mostrar tanta força, quando junto de
Joana, por exemplo, calava-se. - Não tem medo de que deixe você? Não
sabe que se eu deixar você, você será uma mulher sem marido, sem
nada... Um pobre-diabo... que um dia foi abandonada pelo noivo e que se
tornou amante desse noivo enquanto ele casava com outra... - Não quero
que você me deixe... (LISPECTOR, 1980, p. 116-117)

Portanto, Joana simbolizava a transformação da situação da mulher na


sociedade da década de 40. Tal afirmativa é explícita quando a personagem
deseja:"renascer sempre, cortar tudo o que aprendera, o que vira, e inaugurar-se num
terreno novo onde todo pequeno ato tivesse significado, onde o ar fosse respirado
como da primeira vez" (LISPECTOR, 1980, p. 74). Da mesma maneira, o filósofo
Michel Foucault (1995, p. 239) orienta: “Temos que promover novas formas de
subjetividade, através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há
séculos.”
Como a personagem central refletia a mudança de paradigmas da época, era
interpretada como “amoral” e “víbora” (LISPECTOR, Clarice. 1980. p. 175) e que
sentia “O gosto do mal – mastigar vermelho, engolir fogo adocicado” (LISPECTOR,
1980,p. 16). Na realidade, Joana desafiava as conveniências morais de uma
sociedade machista da década de 40. Verifica-se no diálogo de Joana e sua tia, na
passagem em que essa roubou um livro, a forma como é vista por uma senhora da
época:
Na rua a mulher buscou as palavras com cuidado:
-Joana ... Joana, eu vi...
Joana lançou-lhe um olhar rápido. Continuou silenciosa.
- Mas você não diz nada? - não se conteve a tia, a voz chorosa. - Meu
Deus, mas o que vai ser de você?
- Não se assuste, tia.
- Mas uma menina ainda ... Você sabe o que fez? –
Sei ...
- Sabe ... sabe a palavra ... ?
- Eu roubei o livro, não é isso?
- Mas, Deus me valha! Eu já nem sei o que faço, pois ela ainda confessa!
- A senhora me obrigou a confessar.
- Você acha que se pode ... que se pode roubar?
1084

- Bem . .. talvez não.


- Por que então ... ?
- Eu posso.
- Você?! - gritou a tia.
- Sim, roubei porque quis. Só roubarei quando quiser. Não faz mal
nenhum.
- Deus me ajude, quando faz mal, Joana?
- Quando a gente rouba e tem medo. Eu não estou contente nem triste
(LISPECTOR, Clarice. 1980. p. 44-45).

3 RELAÇÃO ENTRE MULHER, DIREITO E SOCIEDADE ATUALMENTE

Ademais, é válido apontardiversas conquistas das mulheres, muitas das vezes,


despertadas pela arte, como ocorreu com as leitoras da importante aludida obra na
época em que foi publicada. A igualdade formal foi conquistada e ampliada ao longo
do constitucionalismo brasileiro, sobretudo com a Constituição Federal de 1988:
primeira a classificar direitos e garantias fundamentais como cláusulas pétreas, nos
termos do artigo 60, parágrafo 4º.Dessa maneira, analisa Leila Linhares Barsted
(2001, p. 35):

O movimento feminista brasileiro foi um ator fundamental nesse processo


de mudança legislativa e social, denunciando desigualdades, propondo
políticas públicas, atuando junto ao Poder Legislativo e, também, na
interpretação da lei. Desde meados da década de 70, o movimento
feminista brasileiro tem lutado em defesa da igualdade de direitos entre
homens e mulheres, dos ideais de Direitos Humanos, defendendo a
eliminação de todas as formas de discriminação, tanto nas leis como nas
práticas sociais. De fato, a ação organizada do movimento de mulheres,
no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, ensejou a
conquista de inúmeros novos direitos e obrigações correlatas do Estado,
tais como o reconhecimento da igualdade na família, o repúdio à violência
doméstica, a igualdade entre filhos, o reconhecimento de direitos
reprodutivos, etc.

Tal igualdade está consubstanciadano artigo 5º da nossa Carta Magna ao


prever que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição;

Sobre este dispositivo, Alexandre de Moraes (2003, p. 52) acrescenta que:

A correta interpretação desse dispositivo torna inaceitável a utilização do


discrímen sexo, sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de
desnivelar materialmente o homem da mulher; aceitando-o, porém,
quando a finalidade pretendida for atenuar os desníveis.
Conseqüentemente, além de tratamentos diferenciados entre homens e
mulheres previstos pela própria constituição (arts. 7.°, XVIII e XIX; 40, §
1.°, 143, §§ 1.° e 2.°; 201, § 7.°), poderá a legislação infraconstitucional
pretender atenuar os desníveis de tratamento em razão do sexo.
1085

A desigualdade de gênero é uma questão histórico-cultural. Como ora


explanado, a igualdade entre homens e mulheres é garantida pela Constituição
Federal de 1988, entretanto, a igualdade substancial ainda é um objetivo a ser
conquistado dentro do contexto social brasileiro. Assim, a célebre escritora francesa,
Simone de Beauvoir, também aspirava:

No dia que for possível à mulher amar-se em sua força e não em sua
fraqueza; não para fugir de si mesma, mas para se encontrar; não para se
renunciar, mas para se afirmar, nesse dia então o amor tornar-se-á para
ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo mortal. (BEAUVOIR,
1946)

Constata-se que a desigualdade de gênero que era um problema à época e


continua sendo um grande problema que assola todo o mundo atualmente e a busca
pela igualdade substancial ainda é e deve ser percorrida por todos, como afirma a
cantora Pitty para a revista Rolling Stone: “O feminismo não é só bom para as
mulheres, para os homens também, para a sociedade, pois se trata de igualdade, não
de supremacia.”
Aos 20 de setembro 2015, durante o evento da ONU para o lançamento da
campanha “HeforShe”, na sede das Nações Unidas, Nova York, Emma Watson,
realizou um discurso defendendo o feminismo. Esta campanha possui o intuito de
iniciar omovimento de solidariedade mundial em apoio aos direitos das mulheres e à
plena igualdade de gênero, assim, a atriz britânica declarou: “Ambos, homens e
mulheres, deveriam ser livres para serem sensíveis. Ambos, homens e mulheres,
deveriam ser livres para serem fortes.
Este é o momento de mudarmos a nossa percepção e considerarmos o gênero
como um espectro e não como dois ideais que se opõem.” A embaixadora da Boa
Vontade da ONU Mulheres também conceituou de forma brilhante o feminismo: “a
crença de que homens e mulheres devem ter direitos e oportunidades iguais. É a
teoria da igualdade dos sexos nos planos político, econômico e social”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto, nota-se que a desigualdade entre homens e mulheres é uma


problemática tratada desde a década de 40pela escritora do enredo “Perto do coração
selvagem” e até os dias atuais buscamos construir uma igualdade substancial de
gêneros, não obstante todas as conquistas femininas. Dessa forma, Lispector foi
visionária, vanguardista auxiliandonessas vitórias das mulheres por romper com
paradigmas sobre personagens femininas, através de Joana: livre, fria e que não
queria se casar.
Como ora analisado, o Direito brasileiro já protege a igualdade formal entre
homens e mulheres no artigo 5º, inciso I da Carta Políticae em outros dispositivos
constitucionais e infraconstitucionais.Uma possível forma de solucionar tal questão,
ou seja, a luta pela igualdade material de gêneros, encontra-se relacionada com a
Literatura. Acreditamos que por meio da leitura, do diálogo, da informação, do
conhecimento e da arte é que todo o preconceito e discriminação serão
desconstruídos e a igualdade permeada. Ademais, cita-se outros recursos, como
políticas públicas e ações afirmativas para colaborarem com tal problema.
Para que o princípio da igualdade, e aqui, especificamente, da igualdade de
gênero tenha aplicabilidade no cotidiano brasileiro é imprescindível que as pessoas
entendam que homens e mulheres possuem o mesmo papel na sociedade e que
1086

devem, conviver de forma harmônica e respeitosamente, garantindo, assim, a


aplicabilidade de todos os direitos constitucionais.

REFERÊNCIAS

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embaixadora-da-boa-vontade-da-onu-mulheres-no-lancamento-da-campanha-
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1088

PIRATARIA: A RELATIVIZAÇÃO DA ÉTICA NA SOCIEDADE DE CONSUMO


PIRACY: THE RELAXATION OF ETHICS IN THE CONSUMER SOCIETY

Icaro Augusto Funck de Lima


Gisele Laus da Silva Pereira Lima

Resumo: O objetivo é apresentar a ética na sociedade de consumo vinculada à


pirataria. Esta ética nos dias atuais encontra-se relativizada criando uma forma de
viver em sociedade individualista. Os chamados consumistas são diretamente
manipulados por uma cultua que os pressiona a um “ter” desnecessário fazendo dessa
pratica algo que acaba por escravizar o homem. Neste contexto, o consumo surge
como regulador da vida social que atualmente é praticado para ostentar um status
desejado de forma desnecessária. A pirataria neste caso é vista como atitude que
mesmo sendo ilícita é praticada por todos e por isso “aceita” pela sociedade sem levar
em consideração a ética e a moral que deveríamos tem com o próximo. Neste cenário,
faz-se necessário para que possamos evidenciar uma problemática que reflete na vida
social, o objetivo é entender que a ética relativizada em qualquer momento ou etapa
da coletividade, relativiza a sua própria estrutura.
Palavras-chave: Sociedade de Consumo; Ética; Moral; Pirataria.

Abstract: The objective is to present ethics in the consumer society linked to piracy.
This ethic today is relativized by creating a way of living in an individualistic society.
The so-called consumerists are directly manipulated by a cult that presses them into
an unnecessary "having" doing something that ends up enslaving man. In this context,
consumption emerges as a regulator of social life that is currently practiced to display
a desired status unnecessarily. Piracy in this case is seen as an attitude that even
being illicit is practiced by all and therefore "accepted" by society without taking into
account the ethics and morals we should have with our neighbor. In this scenario, it is
necessary to show a problematic that reflects in social life, the objective is to
understand that the relativized ethics at any moment or stage of the community,
relativizes its own structure.
Keywords: Consumer Society, Ethics, Morals, Piracy.

INTRODUÇÃO

O mau comportamento de consumidores se tornou um assunto de grande


relevância nos dias atuais já que o consumo por regular a vida social tem tido grande
reflexo na sociedade. A ética e a moral, que neste caso são deixadas de lado, são
imprescindíveis quando o assunto se refere a regulamentação da vida social, pois as
pessoas já não se importam mais umas com as outras vivendo de forma individualista
e norteada por um consumismo que busca a penas a satisfação pessoal, não
considerando possíveis danos a terceiros e principalmente no viver em sociedade.
Ao entrar no cinema sem pagar ou furtar o livro de alguém, fico com o bem ou
com o benefício e o verdadeiro proprietário deixa de tê-lo, e assim, as evidências da
prática criminosa são incontestáveis. Quando as pessoas utilizam filmes ou livros
pirateados, a produtora, a editora os artistas e o autor também são furtados. Por que
a sociedade não se questiona sobre essa prática? Por que princípios éticos são
rompidos com esses exemplos no mundo físico e não no virtual?
A pirataria que vem mostrando ao longo do tempo como o fato de consumir
ilicitamente já não é algo preocupante nos dias atuais, pois a pratica reiterada de atos
1089

de consumo pirata já estão tão inseridas no contexto de muitos que, mesmo sendo
definida como ato ilícito, diante das fáceis possibilidades, e a necessidade de
satisfazer a vontade de ter determinada coisa, e a dificuldades de fiscalização, faz
com que a maioria das pessoas pratique sem maiores preocupação sobre a própria
ilegalidade do ato.
A ética neste caso que foi tem sido deixada ao longo do tempo se faz
necessária para que as pessoas regulem seus atos por terem principio norteadores,
já que a fiscalização é ineficaz e as possibilidades de contribuírem para a pirataria são
imensas. É o caso da pirataria digital, onde vemos que a pratica dessa pirataria ocorre
com o consumidor estando dentro de sua própria casa sem que possa ser visto por
alguém.
Assim, o objetivo é retratar que a relativização da ética na sociedade de
consumo, implica na ausência da própria estrutura coletiva. A falta que essa ética faz
no contexto atual para que seja possível resgatar valores passados visando uma
melhor vida social.

1. SOCIEDADE DE CONSUMO: O CONSUMISMO.

O termo sociedade de consumo é utilizado para representar os avanços de


produção do sistema capitalista, iniciado no século XX nos Estados Unidos e
solidificado em toda civilização ocidental diante do evento da globalização 1. Trata-se
de um sistema fundamentado em modelos de desenvolvimento no consumo
interligado com produção de bens, serviços e empregabilidade para ampliar ainda
mais o consumo. De acordo com Lipovetsky (2007), “entende-se por sociedade de
consumo a era contemporânea do capitalismo em que o crescimento da economia e
a geração do lucro encontra-se principalmente na ascensão da atividade comercial e,
por conseguinte, do consumo”.
Neste cenário, o consumidor é tido como alguém que submete a uma super
oferta de produtos e diante da facilidade de compra cria-se um padrão ou mesmo um
modelo de vida como comprador e no sentido mais amplo, como modo de vida e
balizador de existência e ser social. O consumo, assim, mostra-se cada vez mais
enraizado no agir humano, constituindo-se em uma verdadeira razão de ser social,
uma espécie de “Compro, logo existo”.
Atualmente a sociedade se dá por meio da necessidade que o homem tem em
“possuir”, criando assim uma relação direta de consumo com materiais ou serviços, e
este consumo, por estar presente no dia a dia de todo indivíduo, reflete nas relações
entre todos. Essa padronização tem definido as relações entre indivíduos, uma vez
que a própria sociedade cria espaços para novos consumidores, já que à medida que
novos bens vão surgindo os consumidores vão comprando como uma espécie de
devoção àquilo que é novo.
Jean Baudrillard autor de extrema importância no que se refere o tema afirma
que “o consumo surge como modo ativo de relação, como modo de atividade
sistemática de resposta global, que serve de base para todo nosso sistema cultural.”
(1981, p. 11).
A definição da relação de consumo com todo homem se dá pelo motivo de que
para os consumidores determinados produtos estão mais ligados a “status” do que a
funcionalidade propriamente da mercadoria adquirida, daí a importância que as
pessoas dão para os produtos, que neste caso, pouco importa a sua utilidade, mas
sim aquilo que ela representa aos outros.
1
Fenômeno ou processo mundial de integração ou partilha de informações, de culturas e de mercados. (AURÉLIO)
1090

Uma das ferramentas para atração das pessoas quanto ao consumo é a


publicidade que por meio de imagens e propagandas que retratam uma dinâmica onde
as pessoas são condicionadas a buscar o consumismo, apresentando-o como forma
de realização, status e felicidade. Essa publicidade exagerada atinge diretamente os
costumes e forma de viver, que por sua vez reflete no cotidiano que, na maioria das
vezes, se dá pela vontade de saciar desejos individuas. E isso é ainda mais
intensificado no momento em que as propagandas atingem os consumidores
objetivando convencê-los de que precisam de produtos cada vez mais novos e isso
ligado ao fato de que a vida útil dos objetos está cada vez menor, criando uma gama
de produtos descartáveis e obsoletos, ao ponto que “a publicidade realiza o prodígio
de um orçamento considerável gasto como o único fim, de diminuir o seu valor/tempo,
sujeitando-se ao valor/moda e à renovação acelerada.” (Baudrillard, 1981, p. 42)
Segundo Zygmunt Bauman (1988) a situação atual é muito diferente em relação
às condutas do passado, já que antes a sociedade era conhecida como aquela que
produzia, ou seja, existiam papeis a serem desempenhados, uma verdadeira
contribuição dentro da cultura e sociedade. A grande crítica quanto a essa sociedade
contemporânea de consumidores excessivos é que as atitudes consumistas têm
moldado a forma de desempenho dos papeis dentro da sociedade, criando apenas
pessoas cujo dever é consumir.
Com isso, fica o questionamento do próprio Bauman, “se no passado o homem
trabalhava para viver ou vivia para trabalhar, nos dias de hoje o grande
questionamento também se atualizou para o homem consome para viver ou vive para
consumir?” (1999, p. 88).
A sociedade que hoje efetivamente vive para consumir deixa lado os
fundamentos éticos tão valorizados pelos antepassados, e passando por cima disso,
faz o que for preciso para obter o que deseja, o consumo. A ética, pouco valorizada
nos dias de hoje está cada vez mais desvanecida, e embora possa não parecer, a
falta de ética na conduta da sociedade reflete nas condutas sociais muito além do
consumo, pois se eu faço o que preciso para conseguir o que eu quero, logo perdem-
se os parâmetros de certo e errado e como já foi dito, se as relações de consumo
estão padronizando as relações entre indivíduos, implicará em critério para a vivência,
bem como o desenvolvimento da cultura e da sociedade. Diante disso se faz
necessário entender um pouco como essa sociedade de consumo se posiciona
eticamente.

2. ÉTICA

A filosofia trata a ética como o estudo que rege a vida em sociedade e o


relacionamento interpessoal. Immanuel Kant, um verdadeiro pilar da filosofia no que
tange o tema “ética” levantava, há cerca de 200 anos, questões sobre novas bases
de moralidade qualificando tipo de razão como “pura” e “teórica”, baseadas naquilo
que se chama “imperativo categórico” que trata do dever que cada pessoa tem de agir
tomando por base os princípios que consideram os melhores se estes fossem
seguidos pela sociedade como um todo.
Kant admite que no mundo social existe categorias de valores estabelecidos
para os fins das relações, são esses o “preço” e “dignidade” que se diferenciam, de
forma que o preço trata de manifestações de interesses particulares e de valor exterior
(muito evidente na sociedade de consumo), enquanto a dignidade representa valores
de interesse geral, interno e universal, como a dignidade humana. É exatamente este
1091

ponto do imperativo categórico em que jamais deve-se transformar outra pessoa em


“meio” para alcançar desejos e objetivos particulares (egoístas).
Nos dias mais atuais, Zygmunt Bauman tratando da ética na Pós-Modernidade,
a definiu como a “Era da Moral”, isso porque ele entende que os fenômenos éticos de
hoje não conseguem ser absorvidos pelas normas precisas e calculáveis por serem
confusos, inesperados e interminável, já que tais fenômenos são a única forma de
nortear os seres-humanos na compreensão dos desejos que são incertos para estes;
diferente da ética na Modernidade, que buscava a previsão das condutas objetivando
a prevenção para diminuir ou eliminar dificuldades.
Na Pós-Modernidade os questionamentos a respeito de moral mudam, ou seja,
o que antes era estável e sólido no que diz respeito o pensamento sobre moral, neste
novo período torna-se liquido, não podendo ser demonstrada e nem logicamente
deduzida. (BAUMAN, 1991)
Um aspecto de suma importância tratado por Bauman é a responsabilidade
ante ao tema Moral. O referido autor trata da ideia e da necessidade de repersonalizar
a moral, dando contornos utilitaristas2 para ela, muito além, ele argumenta que a
compreensão sobre “ser moral” encontra-se na relação de incerteza chamada “Outro”
e que não existe responsabilidade sem alteridade, já que, para que seja demonstrada
a moralidade do “Eu” existe a necessidade do relacionar com o “Outro” que muitas
vezes mostra-se como uma tarefa difícil e nada simples.
Com isso surge na era pós-moderna o grande desafio que consiste em criar
uma condição moral de vida, de modo incondicional e responsável pelo outro,
objetivando uma moralidade sem presença de Códigos de Ética, mas visando sempre
uma responsabilidade completa no tratamento e relacionamento com próximo
aplicando um ato intimo de humanidade.
O fato é que ante a situação atual, existe a necessidade de as relações serem
reguladas por normas uma vez que, é muito difícil que tais relações sejam
direcionadas apenas por princípios morais dos quais todos sempre levarão em conta
a situação do próximo. Na sociedade de consumo, como descrita acima, as pessoas
são mais tendenciosas a violar normas em prol daquilo que elas querem obter, ou
seja, se normas positivadas já não são seguidas, muito mais então princípios éticos
que com o passar do tempo se tornaram subjetivos e ilíquidos como foi fundamentado
por Bauman.
Não se trata de um dever, mas sim um prazer, não de um ato autônomo, pois
a publicidade controla e cerceia a individualidade, a sociedade de consumo manipula
e consome. É neste contexto, que o consumo de objetos ilícitos que envolvem baixos
valores monetários para os consumistas tem se tornado cada vez mais frequentes
criando a situação em que dependendo da ilicitude o errado “não é tão errado assim”.
São essas “pequenas” atitudes que acabam por iniciar uma desconsideração com o
próximo e não mais relativizando conceitos éticos, mas sim distorcendo a prática ética
que nortearia o bom relacionamento na sociedade.
Para que possamos entender melhor tais atos praticados levaremos em
consideração a pratica do consumo de produtos digitais piratas por se tratar de
assunto de grande relevância e que o consumo é fácil, barato e para muito “legal”.

3. A ÉTICA RELATIVIZADA ANTE A PRÁTICA DA PIRATARIA

2
Doutrina ética defendida principalmente por Jeremy Bentham e John Stuart Mill que afirma que as ações são boas quando
tendem a promover a felicidade e más quando tendem a promover o oposto da felicidade.
1092

A ética kantiana não sobrevive na sociedade de consumo, cuja dinâmica de


consumo é tão vinculada que se torna um meio, com o simples objetivo de vivenciar
a aquisição e consumo e não o fim, não uma lei universal, a prática de um ato de dever
pelo dever, mas um prazer.
O que se vê é que o consumo pode, além de satisfazer o indivíduo fomentar
várias práticas anti-éticas como a exploração do trabalho infantil, trabalho escravo,
desmatamento, irregularidades fiscais, o extrativismo de recursos naturais, etc. Afinal,
devemos comprar uma roupa se sua cadeia produtiva fere os direitos humanos, um
trabalho escravo por exemplo? Devemos comprar um produto que não pagou os
impostos? Ou consumir produtos digitais piratas?
A pirataria é conhecida como prática de reproduzir, distribuir, ou vender
produtos sem autorização dos proprietários de um produto ou de uma marca. Entre
os produtos que costumam ser pirateados, os principais são roupas, calçados,
jogos, livros, softwares, CDs, entre outros.
A definição legal no que tange o referido tema encontra-se no parágrafo único
do artigo 1º do Decreto Federal n. 5.244, na criação do Conselho Nacional de Combate
à Pirataria, neste caso, tal ato configura-se pela violação aos direitos autorais de que
tratam as Leis n. 9.609 que versa sobre softwares e Lei nº 9.610 que vera sobre
direitos autorais.
Além deste caso, vemos também a definição no Código Penal no artigo 184 3
sendo considerado como infração legal. É importante salientar que a atitude da pratica
pirataria alcança aquele que consome, uma vez que para consumir os valores éticos
são deixados de lado, pois a decisão do ato não é tomada a partir daquilo que
devemos fazer, mas sim pautada naquilo que queremos independente de certo ou
errado e suas consequências.
Essas são as praticas que evidenciam tamanho materialismo da sociedade que
em suma são fortemente influenciados pela agressividade advinda de um marketing
quem impulsiona os consumidores a um comportamento padrão de consumo que
acaba por influenciar na tomada de decisão que neste momento é feita sem considerar
os valores éticos refletindo no consumo de produtos piratas como podemos ver nesta
afirmação “Embora o marketing execute a função de interface com os consumidores
e outros públicos de interesse da organização, muito pouca atenção é dedicada à ética
em marketing. Consequentemente, muito pouca pesquisa em ética no marketing tem
sido realizada no Brasil (Huertas & Urdan, 2002)”
A compreensão da pirataria é algo de extrema importância embora seja um
tema complexo. A Business Action to Stop Counterfeiting and Piracy (Bascap),
levantou dados que mostram que milhões de produtos falsificados estão sendo
produzidos e transportados ao longo do mundo com taxas alarmantes. Isso tem
contribuído negativamente para a sociedade já que, os consumidores ao se submeter
a consumir produtos piratas colocam em risco o crescimento econômico, pois
governos, empresas e sociedade estão perdendo centenas de bilhões em tributos e
receita o que evidencia uma subtração considerável de emprego, bem como o prejuízo
causado diretamente no governo.
De acordo com dados da Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro
(Fecomércio-RJ) e Ipsos (2010), o Brasil possui aproximadamente 70,2 milhões de
consumidores declarados de produtos piratas. Para o relatório executado pela Frontier
Economics (2016) e encomendado pela Bascap, o volume movimentado pela pirataria
1093

digital de filmes, música e softwares foi de US$ 231 bilhões (Frontier Economics,
2016). (Freestone & Mitchell, 2004)
Os motivos para tamanho consumo estão relacionados a baixo custo de
mercadoria que se vendida oficialmente seria de valor mais elevado, a facilidade de
acesso, aceitação social, e principalmente o entendimento de que a conduta
considerada ilícita já não traz as consequências legais que deveriam trazer.
São exatamente estes pontos que mostram, com muita clareza, o
comportamento ético deixado de lado, atitudes como comprar os produtos piratas,
copiar materiais com direitos autorais reservados, devolver roupas que já foram
usadas e tantas outras condutas refletem como as decisões, que deveriam ser
baseados em princípios éticos visando manutenção de relacionamentos que guiam e
julgam as decisões individuais ou coletivas e ações intencionadas, são deixadas de
lado gerando um prejuízo financeiro e social, simplesmente em busca do consumo.
Em suma o indivíduo deixa de lado a consideração dos impactos éticos e legais
no momento de efetuar um download e se fundamento no fato de que isso já é algo
tão comum e aceitável na sociedade que fazê-lo não trará mal algum. Aqui vemos a
figura da percepção individual do consumidor de pirataria. É possível enxergar ainda
que, o comportamento de buscar a desculpa pela “liberdade” dada pela internet para
a prática do consumo deixando de lado o comportamento ético comprova a forma
individualista dos atos praticados já que não é levado em consideração o próximo que
será afetado com tal conduta (Freestone & Mitchell, 2004).
Os aspectos comportamentais em relação à economia, ética e legal, são de
extrema importância na tomada de decisão ante ao ato de fazer parte da pratica pirata
ou não. A pratica de comprar ou baixar filmes, músicas ou softwares são mais
incidentes naqueles que já fazem isso costumeiramente por já ter essa atitude
“cauterizada” como conceito de que não há problemas, nem éticos ou legais e quanto
a economia, esta é aplicada de forma individual, ou seja, se for mais barato para o
consumidor, consumir é melhor ainda. Isso acontece porque as pessoas não têm a
mentalidade de que o crime para uma ação de roubar um DVD numa loja é eticamente,
moralmente e economicamente igual do que comprar um DVD pirata, e no caso, a
menor culpa recai sobre a pirataria.
Deve-se, portanto, reconstruir o pensamento ético na sociedade de consumo.
Refletir que condutas “rotineiras” de consumo implicam em um cadeia de decisões e
posicionamentos não-éticos. Ainda que a conduta final seja “simplista”, do consumo
imediato, a decisão ofende o coletivo, e deve ser evitada. Uma sociedade pode exigir
honestidade e ética de sua classe política, justamente quando não consegue atuar de
maneira ética no consumo?

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir deste estudo foi possível entender que tais relações de consumo têm
grande importância na vida em sociedade, pois estas diretamente regulam o
relacionamento das pessoas.
Atualmente tais relações são pautadas no entendimento que se deve agir de
acordo com aquilo que é melhor para o indivíduo excluindo a possibilidade de pensar
naquele que serão afetados por tais praticas. As decisões de consumir são inseridas
na sociedade por meio de um forte marketing onde as pessoas, por diversas vezes,
consomem produtos deixando de lado a ética e sem se preocupar com os reflexos
dessas atitudes que são sempre pautadas no “eu” e nunca na relevância que esta terá
na sociedade.
1094

Neste contexto vemos que o imperativo categórico apresentado por Kant não
existe, pois os atos não são mais baseados na aplicação daquilo que é melhor para a
sociedade toda, vemos apenas o consumismo advindo da vontade que escraviza o
homem na busca incessante pelo ter. A ética nos dias atuais se encontra relativizada
na sociedade, ela é tratada de forma subjetiva e ilíquida como fundamento por
Bauman, desta forma os atos da vida em sociedade são egoístas. As pessoas são
inseridas em uma cultura que a moral e a ética, por serem questionáveis, estão
sempre sendo niveladas por baixo, ou seja, já que não existe um padrão ético moral
para regular a sociedade e o homem faz aquilo que beneficia apenas ele.
Diante disso a figura da pirataria digital é apresentada como um fato que mostra
como o comportamento consumista sobrepõe qualquer ética ou moral. A internet
mesmo sendo um marco positivo, mostra a sua face negativa por possibilitar a o
aumento relevante no que tange a pirataria. O fato de existir a possibilidade de fazer
parte de atos ilícitos de pirataria sem que ninguém saiba ou precisa sair de dentro da
sua casa, aumenta consideravelmente esta pratica que no final acaba por afetar a
economia e principalmente a ética social, pois ao praticar tais atos, terceiros são
prejudicados diante de atos que os consumidores já não se preocupam mais se estes
são certos e errados por se tratar de uma pratica “comum”.
A relativização da ética na sociedade de consumo embora tenha grande
relevância para regular a vida social, tem pouca atenção e estudo. Isso acontece por
que, estudar formas de combater a pirataria, implica diretamente em uma renuncia
pessoal para que o próximo seja valorizado e o “eu priorizado” seja colocado abaixo
do outro. Essa situação torna o individualismo desconfortável já que isso implicaria
em renúncia pessoal, porém cabe salientar que tal desconforto acontece devido a uma
cultura que sugere o individualismo como forma de vida.
Sendo assim, embora possa parecer difícil lutar contra essa cultura, é nítido
que valores que foram deixados no passado podem ser alcançados se as condutas
descritas, embora “legalizadas pela sociedade”, forem combatidas fundamentadas
pelo principio da ética. Pode parecer distante, mas diante da situação atual, é valido
“financiarmos” um futuro social melhor.

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6513029411.pdf> Acesso 04.04.2018.
SANTOS, David Moises Barreto dos. Zygmunt Bauman: vida, obra e influencias
autorais. Cadernos Zygmunt Bauman, São Luís. Disponível em:
http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/bauman/article/viewFile/6225/429
3
SILVA, Paulo Fernando da. Conceitos da Ética na Contemporaneidade Segundo
Balman. Editora Cultura Acadêmica. 2013.
1096

Grupo de trabalho:

PROCESSO CIVIL
Trabalhos publicados:

A INAPLICABILIDADE DA EXCEÇÃO DO CRÉDITO ALIMENTÍCIO PRETÉRITO NA


IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA.

AÇÃO POSSESSÓRIA EM CONFLITOS FUNDIÁRIOS: A ATUAÇÃO INOVADORA


DAS VARAS AGRÁRIAS NO PARÁ

INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (IRDR)

O PROCESSO DE ADOÇÃO: ASPECTOS LEGAIS

POLÍTICA JUDICIÁRIA NACIONAL DE TRATAMENTO ADEQUADO DOS


CONFLITOS DE INTERESSE NO ÂMBITO DO PODER JUDICIÁRIO E SEUS
IMPACTOS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL VIGENTE

SUPERENDIVIDAMENTO E INSOLVÊNCIA CIVIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A


INSOLVÊNCIA VOLUNTÁRIA E A CONCORDATA CIVIL NO CPC/2015

UMA ANÁLISE ACERCA DA IRECORRIBILIDADE, EM SEPRADO DAS DECISÕES


INTERLOCUTÓRIAS NO CPC DE 2015 E SEUS IMPACTOS NA FASE
PROBATÓRIA

UMA ANÁLISE AO PROJETO DE LEI Nº 757 DO SENADO SOB A PERSPECTIVA


DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA
1097

A INAPLICABILIDADE DA EXCEÇÃO DO CRÉDITO ALIMENTÍCIO PRETÉRITO NA


IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA.
THE INAPPLICABILITY OF THE EXCEPTION OF THE PREDICTED ALIMONY
CREDIT IN THE UNATTACHABLE OF THE FAMILY PROPERTY.

Matheus Marcelo Teodoro da Costa


Gisele Laus da Silva Pereira Lima

Resumo: O estudo a seguir tem como tema central a compreensão da exceção dos
créditos alimentícios frente impenhorabilidade do bem de família à luz da Constituição
Federal e da jurisprudência que o Superior Tribunal de Justiça tem pacificado no
decorrer dos anos, julgados estes prolatados após a promulgação da lei que trata da
impenhorabilidade. A pesquisa busca uma compreensão da exceção e da
impenhorabilidade pelo confronto direto aos princípios constitucionais por uma análise
histórica jurisprudencial, e para tanto apresenta um estudo da exceção à
impenhorabilidade, sob a ótica do direito de família e direitos fundamentais, com
observância a princípios constitucionais que permeiam as relações alimentícias e o
bem de família.
Palavras-chave: Impenhorabilidade; Bem de família; Alimentos.

Abstract: The main subject of this study is the understanding of the exception of
alimony in the light of the Federal Constitution and the jurisprudence that the Superior
Court of Justice has pacified over the years, which are considered to have been
proclaimed after the enactment of the law which deals with unattachable. The research
seeks an understanding of the exception and unnattachable by the direct confrontation
to the constitutional principles by a historical analysis jurisprudencial, and for this it
presents a study of the exception to the unattachable, from the point of view of the right
of family and fundamental rights, observing to constitutional principles that they
permeate the alimentary relations and the family property.
Keywords: Unattachable; Family property; Alimony.

INTRODUÇÃO

O bem de família, como instituto garantista1, tem suas raízes nos princípios
constitucionais de nossa República. Através da Lei do Bem de Família, o Estado
exerce a proteção do mínimo existencial, como efetivação da Dignidade da Pessoa
Humana, atuando na lei processual mediante a limitação da execução, protegendo a
moradia do devedor contra a utilização de medidas que o onerem em demasia, a ponto
de que os direitos fundamentais básicos sejam afetados.
Neste contexto, a Lei nº 8.009/1990 apresenta uma das grandes ressalvas
legais no âmbito Executivo, estabelecendo um limite ao credor, caso venha deparar-
se com um único imóvel residencial de propriedade do exequente, e que nele resida
com sua família: este bem estará recoberto de impenhorabilidade legal, ou também
chamada de obrigatória.
Entretanto, a impenhorabilidade não é absoluta, e há de ceder, caso estejam
presentes circunstâncias que autorizam a constrição do bem, conforme preconiza o
art. 3º da respectiva Lei específica ao bem de família. Dentre essas circunstâncias,

1
O garantismo se dá quando o Estado assumindo um papel ativo, eminentemente intervencionista e assistencialista,
comprometendo-se em proporcionar proteção integral e efetiva à dignidade da pessoa humana, colocando o homem como centro,
sujeito, objeto, fundamento e fim de toda atividade pública (SLAIBI FILHO, 2009. p.128).
1098

encontra-se às execuções fundadas em créditos alimentícios, justificada a exceção


pela necessidade de provisionamento a terceiro que não possua condições de
subsistência própria. Por conta disto, prevalece a obrigação de alimentos sobre a
impenhorabilidade.
Contudo, a jurisprudência que se assentou após a Lei do Bem de família inovou
no tocante a técnica de cobrar alimentos, fixando distinção entre os alimentos
pretéritos e os atuais. Ainda, restringiu a aplicação das medidas excepcionais
executivas para a cobrança das últimas três parcelas antes do ajuizamento,
entendendo que somente essas possuem urgência.
Por conta disto, revela-nos imprescindível o estudo da exceção à
impenhorabilidade, sob a ótica do direito de família e dos direitos fundamentais, com
observância aos princípios constitucionais que permeiam as relações alimentícias e o
bem de família. Para isso, desenvolvemos a problemática teleologicamente,
interpretando a doutrina e jurisprudência sob a ótica constitucional, conduzindo a um
entendimento concreto quanto à possibilidade de os alimentos pretéritos serem, ou
não, capazes de afastar a impenhorabilidade.

1. O BEM DE FAMÍLIA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL DO ESTADO AO


DEVEDOR

Toda e qualquer interpretação legal deve ser realizada mediante as aspirações


do legislador constitucional, e esta é a regra da compreensão do direito expressa pelo
Código de Processo Civil. Neste sentido, discorre Ricardo Arcoverde Credie,
ressaltando a importância que o instituto possui ao sistema processual quando limita
a execução, para que não haja afetação grave do patrimônio do devedor e lesão ao
mínimo existencial.

Muito além da simples compreensão do que exprime o texto legal, para


mais do que a mera interpretação literal, tanto as regras do Código Civil
sobre o bem de família quanto as da Lei n. 8.009/90 hão de ser
interpretadas na consonância do seu escopo, ou seja, de que sua
finalidade, assegurada constitucionalmente, que é dar a cada família,
entidade familiar ou residente único, o próprio teto e, como conseqüência,
sua existência digna. (2010. p.24)

O autor, ao conceituar “bem de família”, relembra que qualquer interpretação


da norma deve superar a mera literalidade, importando numa compreensão
abrangente e humanista, visto a norma aspirar tal compreensão pela forma garantista
à dignidade do devedor e de sua prole, como também leciona Venosa (2014. p.424).
Álvaro Villaça de Azevedo doutrinador pioneiro em matéria do bem de família,
disserta em sua obra quanto aos princípios teleológicos do bem de família, recaindo-
se em real proteção à moradia do devedor, ressaltando que o intuito da
impenhorabilidade se dá “pela vontade soberana do Estado, garantidora de um
mínimo necessário à sobrevivência da família” (2013. p.355).
Azevedo apresenta, ainda, um entendimento hierárquico que justifica a
exceção à regra de impenhorabilidade proposta pela Lei 8.009/90. Na sua
compreensão, a proteção ao único bem imóvel que abriga uma família é o meio pelo
qual o Estado garante o direito à moradia, de ordem Constitucional.
1099

Ademais, remete a uma reflexão axiológica do conceito de família, preconizado


pelo art. 2262 da Constituição, como a comunidade formada pelos pais e seus
descendentes, mas não só, vez que as relações empíricas retratam o conceito de
família mais amplo, abrangendo outros modelos de família, conforme o magistério de
Rolf Madaleno.

A família matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, heteroparental,


biológica, institucional vista como unidade de produção cedeu lugar para
uma família pluralizada, democrática, igualitária, hetero ou homoparental,
biológica ou socioafetiva, construída com base na afetividade e de caráter
instrumental. (2015. p.36)

Azevedo retorna, remetendo-nos à compreensão de que a proteção ao bem de


família visa o interesse coletivo de moradia dos integrantes de um seio familiar.
Relembre-se ainda que o fundamento do art. 6º3 da Constituição, no tocante à
moradia, é corolário à dignidade da pessoa humana, cujo interesse é individual.
Assim, pode-se dizer que, ao proteger o bem de família, garante-se o interesse
coletivo de uma entidade familiar ao direito de moradia. Portanto, a violação ao direito
de moradia somente se permite para o fim de obstar a lesão ainda mais grave de
direitos humanos. Ademais, o Estado tem obrigações de prover moradia, em virtude
de seu compromisso com a promoção de uma vida digna, que não se obtém quando
alguém vaga pelas ruas sem ter um teto em que possa pousar (MOLINARI e
ROGÉRIO, 2014. n.p.).

2. A EXCEÇÃO À IMPENHORABILIDADE PELO CRÉDITO ALIMENTÍCIO

A impenhorabilidade não é absoluta, prescrevendo a própria lei certas


hipóteses em que a restrição executiva de impenhorabilidade há de ceder, frente às
características do crédito executado. O art. 3º4 da Lei preconiza, taxativamente, os
tipos de crédito cuja impenhorabilidade não se aplica, permitindo que a constrição
recaia sobre o bem (LOURENÇO, 2018. p.528).
Com supedâneo ao magistério de Washington de Barros Monteiro (2009.
p.504), as exceções subdividem-se em obrigações oriundas do próprio bem
(financiamentos e impostos, bem como quando oferecido o imóvel como garantia real
ou fiança em contrato de locação), execução decorrente de ação penal (quando o bem
é produto de crime e assim foi adquirido), e por fim, nos casos de obrigação de
alimentos, hipótese que será nosso objeto de estudo.
A sentença que institui a obrigação de alimentos reveste-se de características
especialíssimas no tocante a sua executividade, o que importa em ritos
procedimentais diferenciados, atribuindo-se ainda formas excepcionais de compelir o
alimentante ao adimplemento, como é o caso do desconto em folha de pagamento, o

2
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 3º Para efeito da proteção do Estado, é
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
3
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
4
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra
natureza, salvo se movido: II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do
imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; III – pelo credor da pensão alimentícia,
resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas
as hipóteses em que ambos responderão pela dívida; IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições
devidas em função do imóvel familiar; V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou
pela entidade familiar; VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a
ressarcimento, indenização ou perdimento de bens. VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
1100

desconto em outras rendas e até mesmo a prisão civil, lastreada no permissivo


constitucional do art. 5º, LXVII5 de nossa Carta Magna, com disposições do Código
de Processo Civil, no art. 5286.
Destarte, havendo o reconhecimento da obrigação alimentícia nasce o direito à
percepção de alimentos (sejam eles decorrentes de ato ilícito ou por vínculo conjugal
ou de parentesco), em que o alimentante prestará, em pecúnia (salvo estipulação
expressa diversa), o pagamento dos alimentos fixados sob a égide do binômio
necessidade versos possibilidade.
Saliente-se que em regra, o binômio possui o intuito de obstar a fixação de
obrigação acima do que é possível de ser prestado pelo alimentante, mas em
quantidade suficiente de subsistência digna pelo alimentado (NADER, 2016. p.504).
Deste modo, o quantum há de representar a necessidade do alimentado, e a
obrigação dever ser cumprida integralmente, podendo, do contrário, implicar em ato
lesivo à subsistência do alimentante. Carlos Roberto Gonçalves, chega a classificar
os alimentos como direito personalíssimo, como se destaca:

Como os alimentos se destinam à subsistência do alimentando,


constituem um direito pessoal, intransferível. A sua qualidade de direito da
personalidade é reconhecida pelo fato de se tratar de um direito inato
tendente a assegurar a subsistência e integridade física do ser humano.
(2014. p.525)

Em razão disto, observa-se a colisão entre dois institutos processuais que


visam a garantia de dois direitos previstos constitucionalmente, no mesmo artigo, visto
que os alimentos e a moradia são previstos no art. 6º da Constituição. Nesta senda,
verifica-se a necessidade de o legislador estabelecer parâmetros taxativos para que,
respeitada a garantia à moradia do devedor e de sua família, não deixe a míngua o
alimentado, que busca os proventos para sua subsistência como forma de garantir o
auxílio imprescindível à sobrevivência, ambos decorrentes da dignidade da pessoa
humana.

3. A CLASSIFICAÇÃO DOS ALIMENTOS PELA URGÊNCIA E ATUALIDADE

Conforme ressalta Azevedo (2013. p.373), quando protegemos o bem de


família, protegemos a moradia de um coletivo de indivíduos. Contudo, quando se fala
em direito de alimentos, há necessidade de garantir, em primeiro, a sobrevivência do
indivíduo, uma vez que pior que a falta de moradia, é a escassez de proventos
mínimos para a subsistência. Por conta disso, a garantia dos alimentos sobrepõe-se
a de moradia da família do devedor, até por conta da necessidade imediata e
improrrogável dos alimentos.
Contudo, convém salientar que em recente decisão, o Superior Tribunal de
Justiça (STJ), no julgamento do HC 437.560, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi,
posicionou-se entendendo que são obrigações alimentícias urgentes as três parcelas

5
LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação
alimentícia e a do depositário infiel;
6
Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que
fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o
débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. [...] § 3o Se o executado não pagar ou se a justificativa
apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1o, decretar-lhe-á a prisão
pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.
1101

que antecedem o ajuizamento do cumprimento de sentença, e as que se vencerem


no curso da demanda.
Para a Ministra, apoiada por unanimidade pela Terceira Turma, a seriedade das
consequências do inadimplemento de obrigação alimentícia é que justifica a urgência,
e consequentemente, autoriza as medidas excepcionais, como a prisão civil. Deste
modo, o débito deve revestir-se de atualidade e urgência, bem como a medida
pretendida deve revelar coerência como o objeto da execução, ou seja, o pagamento
da dívida.
Em que pese o entendimento debutar nos repositórios jurisprudenciais,
conforme leciona Rafael Calmon (2017. p.342), há muito entende-se que as medidas
excepcionais somente se aplicam aos débitos atuais e não pretéritos. Logo,
obrigações anteriores a tríade antecedente ao ajuizamento, somente serão
executadas sob o rito de expropriação, não se aplicando as medidas excepcionais
previstas pelo art. 528 e seguintes do CPC em virtude de inexistir urgência.
Pode-se dizer que a decisão do STJ é a interpretação fidedigna que o judiciário
tem adotado há tempos, excetuando a o procedimento excepcionalidade apenas na
existência de urgência no recebimento do débito. Por seu turno, os débitos pretéritos,
por força da inexistência de atualidade e, consequentemente, de urgência, não
autorizam o uso de técnicas executivas excepcionais, processando-se sob o rito de
expropriação de bens, nos termos do art. 911 a 9137 do Estatuto Processual.

4. A APLICABILIDADE DA EXCEÇÃO À IMPENHORABILIDADE DOS


ALIMENTOS

Introduzidos, pois, das informações necessárias, consolidando-se a


importância, tanto da impenhorabilidade do bem de família, quanto da
excepcionalidade quando tratar-se de execução de alimentos, desponta agora a
questão cerne de nosso estudo: se é aplicável a exceção da impenhorabilidade por
créditos alimentícios cujos débitos sejam pretéritos.
Consabidos de que a natureza da inaplicabilidade à impenhorabilidade aos
créditos alimentícios é de real excepcionalidade, vez que a penhora do bem de família
nesta situação busca a satisfação de obrigação imprescindível à subsistência do
alimentado, o entendimento do STJ implica na declaração de inexistência de urgência
do credor em receber o débito pretérito. Deste modo, se inexiste urgência, por
conseguinte torna-se um crédito simples, o que não se reveste de excepcionalidade a
autorizar a exceção de impenhorabilidade.
Tal entendimento se extrai quando, por um estudo perscrutado da natureza da
impenhorabilidade, nos é permitido concluir que em nosso ordenamento jurídico, a
proteção ao bem de família é a regra8, e por conta disto, uma vez pautada em
fundamento da república (dignidade da pessoa humana), a regra somente se afasta
em casos excepcionais.
A seu turno, não há também qualquer discussão na doutrina quanto à
importância do direito aos alimentos, uma vez que são fundamentais ao indivíduo que
não demonstra capacidade de prover seu próprio sustento. Entretanto, não é inovador
a tese que divide os alimentos pretéritos e atuais pela característica de urgência,
7
Art. 911. Na execução fundada em título executivo extrajudicial que contenha obrigação alimentar, o juiz mandará citar o
executado para, em 3 (três) dias, efetuar o pagamento das parcelas anteriores ao início da execução e das que se vencerem no
seu curso, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de fazê-lo. Parágrafo único. Aplicam-se, no que couber, os §§ 2º a 7º
do art. 528.
8
Lei 8.009/90; Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por
qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou
filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. (grifo nosso)
1102

acolhido pelo legislador no CPC/2015, despontando na jurisprudência desde o REsp


57579/1995, STJ.
O Tribunal, naquela oportunidade, destacou haver a perda do caráter de
urgência para as prestações muito antigas face à data do ajuizamento do processo de
execução, fixando a tese de que “Se a reclamação, porém, é tardia, de modo que já
lá se vão tantos meses vencidos, é de se ter, em espécie tal, por desaparecido o
caráter urgente, justificando-se, em consequência, a distinção feita pelas instâncias
ordinárias”. (STJ, REsp 57579/1995)
Na oportunidade, a Colenda Turma fez menção a decisões do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul que no Agravo de Instrumento nº 587005406, em 1987,
entendeu que o débito alimentício pretérito revestem-se de caráter indenizatório,
descobertos da urgência que resguarda os alimentos hoje classificados como “atuais”.
Frente às reiteradas decisões de mesmo sentido, e pela boa aceitação na
doutrina, houve a edição da Súmula nº 309 do STJ, que consagrou no ano de 2006 o
entendimento que há mais de uma década já era aplicado pelos tribunais de todo o
país, qual seja, “o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que
compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se
vencerem no curso do processo. ”
Os entendimentos que se firmaram nos tribunais hão de afetar a
excepcionalidade à impenhorabilidade. Ora, tratando-se de exceção que se institui por
força da necessidade de resguardar a urgência dos proventos alimentícios, se
desprovido os alimentos desta urgência e revestido apenas de natureza indenizatória,
por uma aplicação de silogismo, não há de ser aplicada a exceção aos débitos
pretéritos, mas sim, apenas aos atuais.
Nesta senda, se o débito alimentício despir-se de real necessidade, fala-se em
dívida civil, meramente indenizatória, não se lastreando na excepcionalidade do art.
3º, III da Lei 8.009/90, mas caracterizando-se apenas como a dívida cível, prevista
pelo art. 1º do mesmo diploma, onde assim, por fim, não há o afastamento da
impenhorabilidade.

CONCLUSÃO

Muito se ouve de que “a lei é mais lenta que a sociedade”. Nas palavras de
Sérgio Cavalieri Filho (2002. p.63) “Adequar o Direito à Justiça é obra perene do
operador do direito, por melhor que seja a lei.”. O direito empírico segue largos passos
à frente do direito positivo, tocando na necessidade constante de revisão dos
entendimentos e da própria legislação.
Exemplo disto, a Lei nº 8.009, que trata da impenhorabilidade do bem de
família, foi promulgada em 1990, ou seja, há dezesseis anos antes da Súmula 309 e
há cinco anos antes do julgamento do REsp 57579, ambos do STJ. Logo, a questão
subjacente da existência de dois tipos de débitos não possuía notoriedade para
influenciar o legislador na época de promulgação.
Isto nos revela a necessidade de uma reavaliação dos efeitos do art. 3º, III da
Lei do Bem de Família sobre os créditos alimentícios pretéritos, considerando que, no
decorrer dos anos em que a Lei encontra-se vigente, houve modificações radicais no
direito de família, colocando em xeque a excepcionalidade da lei aos débitos
desprovidos de urgência.
O debate aqui proposto já suscitou posicionamento do Superior Tribunal de
Justiça, conforme Agravo em Recurso Especial nº 342.262, de Relatoria do Ministro
1103

Marco Buzzi. O recurso não prosperou, não havendo assim análise do mérito e
estando longe de se firmar algum entendimento.
Contudo, nas palavras do Ministro, não há, ao menos neste momento, a certeza
de que a “a impenhorabilidade prevista na Lei 8009/90 não se opõe à dívida
alimentícia e que o transcurso de tempo (que, registre-se, o recorrente não especificou
de quanto é) não possui o condão, a princípio, de transmutar sua natureza.”(grifo
nosso)
Necessita-se, portanto, que haja o enfrentamento do tema para a
compreensão quanto a aplicabilidade da exceção à impenhorabilidade aos casos cujo
crédito de alimentício esteja desprovido de urgência e atualidade, conforme os novos
entendimentos adotados pela jurisprudência, posteriores à promulgação da lei do bem
de família. Ademais, importa dizer que a interpretação, antes apenas jurisprudencial
e doutrinária, recebeu guarida no CPC/2015, o que importa em uma nova
interpretação do art. 3º, III da Lei do Bem de Família.
Por fim, resta salientar que a discussão pauta-se pelo confronto de direitos
sociais que estão coligados por uma mesma espinha dorsal: a dignidade da pessoa
humana. Portanto, com o afastamento da natureza de urgência da verba alimentícia
pretérita, a proteção ao direito de moradia do alimentante sobrepõe-se a verba de
natureza indenizatória, importando em mantença da impenhorabilidade e respeito
constitucional à moradia do devedor.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988.16. Vade Mecum compacto/ obra de autoria da
Editora Saraiva com colaboração de Luiz Roberto Curia, Lívia Céspedes e Fabiana
Dias Rocha. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
BRASIL. Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990. Dispõe sobre a impenhorabilidade
de bem de família. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8009.htm> Acesso 30.09.2018.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso 30.09.2018.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de
Instrumento. Execução de alimentos atrasados. e sempre possível a execução
comum, sem a ameaça de prisão, quando o debito, pelo longo atraso, assumiu feição
indenizatória. Orientação prática, no sentido de manter-se a sanção no tocante as três
ultimas parcelas devidas. Agravo provido em parte, para admitir-se prossiga a
execução comum dos atrasados. Agravo de Instrumento nº 587005406. Relatoria do
Desembargador GalenoVellinho de Lacerda. Terceira Câmara Cível. DJE julgado em
26 de março de 1987.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. Processo civil. Execução
de prestação alimentícia. Formas. Processa-se a execução na forma do disposto no
art. 733, quanto as prestações recentemente vencidas (tem-se falado nas três ultimas
parcelas; no caso, adotou-se essa forma em relação "aos alimentos vencidos desde
seis meses antes da propositura da execução"). Processa-se a execução na forma do
disposto no art. 732, quanto as prestações vencidas anteriormente. Recurso especial
do credor dos alimentos, de que a turma não conheceu. REsp 57.579/SP. Relatoria
1104

do. Ministro Nilson Naves. Terceira Turma, julgado em 12 de junho de 1995, publicado
em 18 de setembro de 1995, p. 29959)
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial. AREsp
nº342.262. Relator Ministro Marco Buzzi. julgado em 25 de fevereiro de 2014,
publicado em 27 de fevereiro de 2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial. Civil.
Processual civil. Habeas corpus. Prisão civil por alimentos. Imposição acima do
máximo legal. Impossibilidade. HC nº347.560. Relator Ministra Nancy Andrighi.
Terceira Turma. julgado em 26 de junho de 2018, publicado em 29 de junho de 2018.
CALMON, Rafael. Direito das famílias e processo civil: interação, técnicas e
procedimentos sob o enfoque do Novo CPC. – São Paulo: Saraiva, 2017.
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Acesso em 22.09.2018.
CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de família: teoria e prática, 3. ed., São Paulo:
Saraiva, 2010.
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- de acordo com a Lei n. 12.874/2013. 11. ed.São Paulo: Saraiva, 2014.
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1105

AÇÃO POSSESSÓRIA EM CONFLITOS FUNDIÁRIOS: A ATUAÇÃO INOVADORA


DAS VARAS AGRÁRIAS NO PARÁ
POSSESSORY ACTION INVOLVING LAND CONFLICTS: AN INNOVATIVE
ACTION OF THE AGRARIAN WAND IN PARÁ

Michelle Melo
Liandro Faro

Resumo: O presente artigo trata da regulação das ações possessórias envolvendo


conflito fundiário, mormente no tocante à atuação das Varas Agrárias do Estado do
Pará. O objetivo central é fazer um panorama da realidade socioeconômica que se
tem no Estado do Pará, onde se vê uma triste realidade marcada pela dinâmica
latifundiária e profundas violências no campo, resultante, sobretudo, de conflitos
envolvendo terras. Tem-se que tais violências são legitimadas pelo Estado por meio
da implementação de políticas que superestimam o capital, ignorando a realidade do
pequeno camponês. Nesse ínterim, outro fator legitimador consiste na interpretação
privatista que se dá às normas processuais que regulam as ações possessórias.
Assim, propõe-se aqui uma interpretação extensiva do artigo 561 do Código de
Processo Civil, de modo que se considere que, em ação possessória envolvendo
conflitos fundiários, deve ser considerada a posse agrária e não posse civil.
Palavras-chave: Ação possessória. Conflito fundiário. Vara Agrária. Estado do Pará.

Abstract: This article deals with the regulation of possessory actions involving land
conflicts, especially regarding the performance of Agrarian Wand of the State of Pará.
The central objective is to make a approach of the socioeconomic reality that is in the
State of Pará, which shows a sad reality marked by the latifundia dynamics and deep
violence in the countryside, resulting mainly from conflicts involving land. That kind of
violence is legitimized by the State through the implementation of policies that
overestimate capital, ignoring the reality of the small peasant. Another legitimating
factor consists in the privatist interpretation that is given to the procedural norms that
regulate the possessory actions. A different interpretation of Article 561 of the Code of
Civil Procedure is being proposed here, which propose to considered that involving
land conflicts should consider agrarian ownership instead of civil possession.
Keywords: Possessory action. Land conflict. Agrarian Wand. State of Pará.

1. INTRODUÇÃO

O Brasil é marcado por um histórico de profundos conflitos fundiários que


decorrem dos mais diversos problemas socioeconômicos pelo acesso à terra e aos
recursos naturais, situação esta que teve seu marco histórico iniciado ainda no período
colonial.
A concepção da propriedade no Brasil que se formou ao longo do processo
histórico é pautada na ótica de proteção dos interesses dos detentores do poder
econômico e grande parte da estrutura formada foi visando a manutenção da classe
supostamente produtora (RIBEIRO, 1995; HOLANDA, 1995; PRADO JUNIOR, 1961).
A dinâmica de dominação econômica que se vê no meio rural, portanto, é
resultado de políticas que, ao longo da história, somente confirmaram as prerrogativas
gozadas pelos mais favorecidos. Fora imposto no meio rural uma realidade
agroexportadora, que, de forma violenta, ignora a realidade do camponês que vê a
terra como meio de sobrevivência. Por meio disso, o Estado acaba por legitimar todas
1106

as formas de violência no campo que se vê hoje, à medida que promove políticas


voltadas ao favorecimento dos detentores do capital, que, por sua vez, massacram e
marginalizam o camponês e vê a forma que este trata a terra como algo primitivo e
ultrapassado, que deve ser colocado em segundo plano.
É nessa mesma lógica de imposição de uma realidade oposta à do meio rural
que se pretende analisar o procedimento das ações possessórias nos conflitos
fundiários, vez que o trâmite estabelecido no Código de Processo Civil trata de posse
civil e não de posse agrária, especificamente. Será que a inobservância das
peculiaridades da posse agrária e da função social desta no processamento das ações
possessórias contribui para a institucionalização da violência no meio rural? Estaria
sendo negado, mais uma vez, o acesso à justiça àqueles que ocupam os latifúndios
improdutivos de forma mansa e pacífica, legitimando sua marginalização nesse
cenário?
Vê-se um enorme progresso nas Varas Agrárias do Estado do Pará, que tem
exigido nas ações possessórias envolvendo conflitos fundiários que o autor demonstre
não qualquer posse, mas posse agrária, julgando improcedente a ação nos casos em
que não se verifica o cumprimento da função social.

2. UM PANORAMA DO CONFLITO FUNDIÁRIO NO ESTADO DO PARÁ: A TRISTE


REALIDADE

A sociedade brasileira atual ainda é marcada por uma grande desigualdade: 16


milhões de pessoas estão vivendo abaixo da linha de pobreza; 5% da população mais
rica recebe por mês o que 95% recebe juntos; 1% da população detém quase 45% de
terras (OXFAM, 2017).
Como consequência desta concentração de terras observa-se os mais diversos
conflitos em razão da posse do imóvel rural. Em 2017, no Brasil, cresceu o número de
violência: 71 assassinatos é o maior número registrado desde 2003, quando se
computaram 73 vítimas. É 16,4% maior que em 2016, quando houve o registro de 61
assassinatos e é praticamente o dobro de 2014, que registrou 36 vítimas (CANUTO,
et al, 2017).
O Estado do Pará, no cenário Nacional, ganha infeliz destaque.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2017), o Pará ocupa o
terceiro lugar dentro da Amazônia Legal, com 142 conflitos, perdendo para Maranhão
com 197 e Rondônia com 192. Contudo, no que diz respeito ao número de famílias
atingidas pelos conflitos fundiários, o Pará ocupa o primeiro lugar com total de 20.498
famílias. Ademais, atualmente, 42 municípios possuem conflitos no campo do total de
144 municípios existentes no Pará, ou seja, 29% dos municípios no estado do Pará
estão envolvidos em conflitos no campo.
Salutar destacar que os conflitos agrários resultam de um cenário em que
atuam duas formas antagônicas de exploração da terra: cita-se aqui um primeiro
grupo, composto por camponeses, que veem a terra como um espaço de vida, de
reprodução física e subsistência, e, de outro lado, tem-se o grupo de fazendeiros, que
veem a terra como espaço de exploração econômica, voltado para a agroexportação,
e acabam por explorar e massacrar os camponeses instalados naquelas terras.
Relevante destacar aqui que as terras ocupadas pelos camponeses são, em
grande parte, latifúndios ilegalmente apropriados por fazendeiros, isto é, são terras
obtidas por meio de grilagem. Segundo Cristiane Freitas da Silva e Tatiane Pereira
(2012, p. 5), no levantamento feito em 1999 pelo governo federal, existem 100 milhões
1107

de hectares de terras apropriadas indevidamente por particulares no Brasil, por meio


de grilagem.
Violeta Refkalefsky Loureiro (2002, p. 115) lista alguns equívocos e abusos das
atividades produtivas que se instalaram na zona rural que tem relação com o destino
dessa região e dos camponeses que ali se estabelecem. Em primeiro lugar, destaca
como equívoco o fato de que os governos adotam o capital (sobretudo o grande
capital) como único provedor do desenvolvimento. Isto é, em tese, apenas o capital e
somente ele representaria riqueza. Contudo, ignorou-se o fato de que, sem o
provimento de uma política de desconcentração de renda, os grandes capitais não
teriam como consequência o desenvolvimento, mas o aumento das desigualdades e
formação de “bolsões” de pobreza ao redor dos grandes empreendimentos.
Em segundo lugar, cita os abusos e o arbítrio desse capital, no que se refere à
criação e recriação do trabalho escravo, expulsão e morte dos posseiros, grilagem de
terras, poluição, entre outros. Em seguida, critica o fato de que, para o governo, é mais
interessante a geração de emprego nos empreendimentos trazidos pelo capital, uma
vez que, apesar dos pontos negativos anteriormente citados, geram lucro por meio
dos impostos, diferentemente das atividades exercidas pelos camponeses da região.
Esse cenário dual, composto pelos grandes fazendeiros, de um lado, e pelos
“bolsões” de pobreza, de outro, gera uma relação de dominação de classe. Isto é os
posseiros são expulsos das terras que ocupam e, quando não são perseguidos e
mortos, transformam-se em mão de obra (sem o amparo de um contrato de trabalho
regularmente estabelecido ou, até mesmo, em condições análogas à de escravo), e
passam, assim, a girar em torno do capital ali estabelecido. Esta dinâmica reforça as
condições de miséria em que os camponeses se encontram, ao mesmo tempo que
reforçam o poderio dos fazendeiros, em claro aumento às desigualdades.
Outro ponto que merece destaque na contextualização do cenário conflituoso
na zona rural do Estado do Pará consiste no fato de que os conflitos que surgem no
campo, em sua maioria, são marcados pela prática da pistolagem (SILVA; PEREIRA;
JUNIOR, 2012, p. 9). Ao “pistoleiro” é confiada a função de proteger da ocupação dos
posseiros os latifúndios (improdutivos, ressalta-se), expulsando os camponeses das
terras ocupadas ou assassinando suas lideranças sindicalistas, muitas vezes,
inclusive, com o apoio da força policial.
Essa institucionalização da violência na zona rural, causada pela imposição de
uma realidade em que o grande capital é o protagonista, a pretexto deste ser
desenvolvimentista, resulta não mais do que da ignorância da realidade vivida no
campo, isto é, ignora-se o modo como o camponês vê a terra, por este ser considerado
“primitivo” e de pequeno valor, ignora-se a relação com a terra como ambiente de
reprodução física, de sobrevivência, formador de dignidade humana, e superestima-
se a visão agroexportadora.

3. A POSSE AGRÁRIA: A NECESSIDADE DE FUNCIONALIZAR A POSSE DO


IMÓVEL RURAL PARA DIRIMIR OS CONFLITOS FUNDIÁRIOS

Primeiramente, cabe atentar para um ponto importante – posse e propriedade


são institutos diversos. A propriedade é um direito real, refere-se ao domínio do bem,
sendo que sua comprovação se dá por meio de título. A posse, por sua vez, é um fato,
gerador de efeitos jurídicos, e independe de titulação.
Segundo Roberto Wagner Marquesi (2013, p. 12566), a posse deve ser
entendida como um fator autônomo, que pode ou não ser exercida pelo proprietário.
Isto é, pode ser vista como um dos poderes de que goza o proprietário ou como um
1108

poder exercido por quem não o é. Destarte, rejeita-se veemente a premissa de que a
posse é absorvida pelo direito de propriedade.
O referido autor discorre, ainda, que tanto a posse como a propriedade
desempenham funções, sendo a principal delas a satisfação dos interesses de seu
titular (2013, p. 12569). Em relação aos bens imóveis, especificamente, sustenta que
possui funções para além daquelas voltadas ao interesse do titular, mas que se
projetam em benefício à sociedade como um todo (função econômica, ambiental,
laboral e humano-social). Ao conjunto dessas várias funções denominou “função
social”.
A função social da propriedade rural tem suas diretrizes estabelecidas no artigo
186 da Constituição da República, que exige o aproveitamento racional e adequado
do solo, utilização dos recursos naturais de maneira sustentável, observância das
normas trabalhistas e do bem-estar dos trabalhadores.
Em se tratando de posse agrária, tem-se que esta seria o elemento legitimador
da propriedade, com efeito, o direito de propriedade somente deve ser reconhecido
através do cumprimento de sua função social, caracterizado pela posse agrária. Essa
percepção permite “excluir o domínio estéril do meio social” e atende aos interesses
das classes sociais excluídas do acesso à terra (ROCHA; TRECCANI; et al., 2010, p.
71).
No âmbito do direito agrário, o trabalho sobre a terra é o fator que legitima a
posse, e não a propriedade (ROCHA; TRECCANI; et al., 2010, p. 76). Isto é, a posse
é verificada pela produtividade. É pelo exercício da posse agrária, por sua vez, que se
cumpre com a função social, sendo esta o fator que legitima o direito de propriedade.
É preciso, portanto, abandonar a concepção civilista de posse, centrada no
exercício do direito de propriedade, e dar ênfase à posse agrária, em respeito ao
direito social de moradia, cultura e trabalho (ROCHA; TRECCANI; et al., 2010, p. 79).
É possível conceber que a posse agrária, desse modo, é qualificada pela sua
destinação produtiva e projeção social.

4. O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E AS AÇÕES POSSESSÓRIAS: A


NECESSIDADE DE REINTERPRETAÇÃO ENVOLVENDO CONFLITO FUNDIÁRIO
SOBRE IMÓVEL RURAL

O Código de Processo Civil regula nos artigos 560 e seguintes o trâmite das
ações possessórias. O artigo 561 exige ao autor o ônus de instruir a exordial com os
requisitos probatórios elencados em seus incisos, sendo o primeiro deles o dever de
provar a posse. Questiona-se: tipo de posse o Código de Processo Civil se refere?
Em uma análise perfunctória, seria uma posse meramente civilista.
Importante observar que existe uma hipótese de reprodução de certos padrões
judicias entre categorias de litigantes que frequentemente se enfrentam na justiça, o
que possibilita a pensar que certos atores talvez possuam maior confiança no sistema
de justiça para a defesa dos seus interesses (SANTOS, 2009).
Geralmente as ações do poder judiciário pendem a manutenção da “ordem” e
não resolvem algo que, a princípio, não é da sua função (...) e acirram a tragédia social
causada pela concentração de terra” (MITIDIERO, 2008, p.389). “O Judiciário tem sido
largamente utilizado pelos donos de terras para bloquear situações ou para
encaminhá-las de acordo com suas conveniências” (BENATTI, 2006, p.41). Em sendo
assim, os modelos institucionais criados são o reflexo da necessidade de se manter a
estrutura vigente, sem provocar rupturas sociais capazes de reverter à lógica
hegemônica, abrindo espaço para um diálogo intercultural.
1109

Para Eduardo Cambi e Eduardo Galduróz (2015, p. 3), por outro lado, o direito
deve ser instrumento para promover mudanças na realidade, de modo a combater as
injustiças. Isto é, o direito não pode ser utilizado meramente como ferramenta de
manutenção da ordem social estabelecida, levando em consideração que esta é
marcada por grandes desigualdades, caso contrário, estar-se-ia garantindo apenas as
prerrogativas das classes mais favorecidas, em detrimento das menos favorecidas.
Viu-se que a zona rural é marcada por intensos e violentos conflitos, resultantes
de uma ordem social em que predomina a dinâmica da dominação de classes.
Destarte, ao considerar que o Código de Processo Civil se refere apenas à posse
comum, ignora-se que, nas ações possessórias envolvendo conflitos fundiários, está
em jogo a posse qualificada, produtiva, que cumpre com a função social.
Assim, propõe-se aqui uma interpretação extensiva do artigo 561, inciso I, do
CPC, de modo que, nas ações possessórias em conflitos agrários, leia-se posse
agrária e não somente posse. Isto é, ao ingressar com a ação possessória, o autor
deve comprovar que exerce posse agrária, cumprindo com sua finalidade produtiva e
todos os seus fundamentos, sobretudo no que diz respeito à função social.
Impende destacar que o processo civil sempre andará conjuntamente com uma
finalidade material. O direito processual civil, com o advento do CPC de 2015, sofreu
uma mudança paradigmática, em que se deixou de lado a preocupação direcionada
ao trâmite processual em si e voltou-se os olhos àqueles que afirmam seus direitos
em juízo. Somente com esta visão é possível cumprir com a finalidade última do
processo civil, que é precisamente servir de instrumento ao acesso à justiça.
Humberto Theodoro Júnior (2016, p. 89) afirma que a lei não se limita ao texto
escrito pelo legislador. Antes de ser aplicada, a norma jurídica terá de ser interpretada,
de modo que deverá ser perquirido o sentido compatível com o sistema normativo que
a lei se insere, terá de ser considerado o fim desejado pelo legislador e terá de ser
analisado o modo pelo qual essa norma abstrata incidirá ao caso concreto. Durante
essa análise, ao juiz será incumbida a tarefa de complementar a norma criada pelo
legislador, o que resultará na “norma do caso concreto”, esta, por sua vez, terá as
características do caso sub iudice, sequer cogitadas pelo legislador. Segundo o
referido autor, é nessa conjuntura que se insere o artigo 8º do CPC, que determina
atenção aos fins sociais e ao bem comum ao aplicar a norma.
Defende-se aqui que, ao exercer esse papel criativo que adequa a norma em
abstrato ao caso concreto, em se tratando de ação possessória em conflito fundiário,
cabe ao magistrado partir da perspectiva que o que se discute é a posse agrária, com
todos os seus fundamentos. Contudo, há de se destacar que não é assim que se
posiciona a jurisprudência dominante sobre a questão. O poder judiciário, de uma
forma geral, concede o mesmo tratamento à posse agrária e à posse civil, com
algumas exceções, como é o caso da atuação inovadora dos magistrados das Varas
Agrárias do Estado do Pará, como se passará a expor.

5. A ATUAÇÃO INOVADORA DAS VARAS AGRÁRIAS DO ESTADO DO PARÁ NAS


AÇÕES POSSESSÓRIAS EM CONFLITOS FUNDIÁRIOS

O artigo 126 da Constituição da República consagra o direito aos Tribunais de


Justiça de criarem varas especializadas, com competência exclusiva para questões
agrárias, para melhor tutela dos conflitos na zona rural. Vale destacar que as varas
agrárias não se limitam a dirimir conflitos fundiários, mas tratam também de registro
público de imóvel rural, grilagem, violência no campo, entre outros assuntos.
1110

No Estado do Pará criaram-se 10 varas agrárias, contudo, atualmente, está


dividido em apenas 5 regiões agrárias: Castanhal, Santarém, Marabá, Altamira e
Redenção.
É válido informar, desde já, que as Varas Agrárias não se limitam aos requisitos
elencados no artigo 561 do CPC. É possível afirmar que estas dão interpretação
extensiva ao termo “posse”, como ora defendido, exigindo o cumprimento da posse
agrária, em seu aspecto produtivo e em observância à função social.
Como exemplo, cita-se aqui a decisão a Vara Agrária da Comarca de
Castanhal, no processo de nº 0001704-55.2005.8.14.0015, em que o autor ingressou
com ação possessória contra um grupo de pessoas que teriam invadido injustamente
sua terra, despojando-o desta.
O Juízo afirmou em sentença que a matéria não deve apenas repetir a visão
civilista, sendo imprescindível uma discussão sobre posse agrária, sobretudo no que
diz respeito ao cumprimento de sua função social. Segundo o magistrado, para a
consecução dos objetivos sociais da posse agrária, faz-se mister a criação de uma
justiça especializada, sensível ao sentido político dos comandos normativos
intervencionistas que buscam reduzir as desigualdades sociais. Em nada adianta a
criação de normas reguladoras que busquem propiciar a igualdade substancial entre
as classes, em combate à dinâmica socioeconômica de dominação, se o poder
judiciário não se mostra sensível a essa realidade.
No caso em discussão, fora definido que cabia ao autor demonstrar que
empregou ao imóvel a função social exigida pela Constituição da República, e, por
conseguinte, que exercia a posse agrária (com os fundamentos aduzidos item 3), o
que não logrou êxito em fazer. Ademais, aduziu que o autor deveria ter juntado aos
autos provas que demonstrassem o uso racional dos recursos naturais bem como
respeito às disposições que regulam as relações de trabalho, tudo em conformidade
com o artigo 186 da Constituição.
Segue afirmando o magistrado que aqueles que defendem que a função social
não deve adentrar à seara possessória estão contrariando o que está disposto na
Constituição, em claro (e inadequado) apego à legislação infraconstitucional. Para ele,
a intenção do legislador não deixa dúvidas – o imóvel rural só merece proteção se
preenchidos os requisitos relativos ao cumprimento da função social.
Com tais fundamentos, o Juízo da Vara Agrária da Comarca de Castanhal
julgou improcedente o pedido de reintegração de posse formulado nos autos do
processo de nº 0001704-55.2005.8.14.0015, extinguindo o feito com resolução de
mérito.
Outro exemplo que merece destaque consiste no processo de nº 0000163-
69.2010.8.14.0051, da Vara Agrária de Santarém, em que o autor, proprietário do
imóvel rural denominado Fazenda Colina, situado no município de Óbidos-PA,
ingressou com ação de reintegração de posse em face de um grupo de pessoas que
teria se apossado do imóvel, impedindo que o autor gozasse de seus direitos.
O autor alega que o primeiro grupo de ocupantes se fixou no local, erguendo
barracos rudimentares, e passaram a cultivar ali arroz, milho, mandioca, entre outros.
Posteriormente, apareceram outros invasores, totalizando cerca de cem famílias
residindo na localidade.
O Juízo da Comarca de Santarém, em entendimento semelhante ao caso
anteriormente citado, afirmou que, para que fosse legítimo ao proprietário reaver a
posse do imóvel, imprescindível seria a demonstração do cumprimento da função
social.
1111

Nesse caso, verificou-se que o autor jamais exerceu posse direta sobre o
imóvel, vez que, quando o adquiriu, o mesmo já se encontrava ocupado pelos réus.
Com efeito, constatou-se que, além do direito de propriedade, o autor tinha tão
somente a posse indireta do bem, haja vista que a posse direta já havia sido perdida
pelo proprietário anterior e encontrava-se com os requeridos. Não tendo sido
demonstrada a posse agrária do imóvel, o pleito de reintegração de posse é ilegítimo,
razão pela qual a ação foi julgada improcedente e extinta com resolução de mérito.
Impende salientar que, infelizmente, a maioria das decisões das Varas Agrárias
do Pará que negam a tutela possessória por ausência de cumprimento da função
social é reformada em segunda instancia, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
Isto porque, segundo o entendimento do juízo ad quem, o CPC jamais menciona a
função social como um requisito para ingressar com ação possessória, e, exigir outros
requisitos para além daqueles previstos no artigo 561 representaria um risco à
segurança jurídica e ao devido processo legal.
Aqui, discorda-se desse posicionamento, pois, como já afirmado, o processo
civil jamais se dissocia do direito material, sendo sua finalidade última o acesso à
justiça. Assim, tem-se que a aplicação das normas jurídicas deve assumir a feição que
melhor se adeque à realidade socioeconômica à qual se coloca, servindo de
instrumento transformador e garantidor dos direitos sociais e não de manutenção de
uma realidade privatista, que só perpetua as prerrogativas das classes mais
favorecidas.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível constatar uma triste realidade no meio rural, no Brasil como um todo
e, especificamente, no Estado do Pará, marcado por profundas desigualdades
socioeconômicas, em que há uma grande concentração de terras nas mãos de
poucos, historicamente favorecidos, e o pior, tais terras muitas vezes são improdutivas
e/ou obtidas ilegalmente por meio da prática da grilagem.
Essa realidade é marcada ainda pela violência, exteriorizada pela pistolagem,
ou mesmo institucionalizada, por meio da implementação de políticas que ignoram a
realidade socioeconômica do camponês e vê a exploração da terra com fins de
subsistência como uma prática primitiva e ultrapassada. Essas políticas, ao
superestimarem o capital e a exploração da terra voltada para a agroexportação,
acaba perpetuando todas as formas de violência que se vê hoje no campo e
legitimando a dinâmica de dominação entre os detentores de capital e os posseiros
rurais.
Tais formas de violência ainda são acentuadas pelo judiciário ao conceder às
normas que regulam as ações possessórias uma interpretação puramente civilista,
ignorando que, no campo, deve-se levar em conta a posse agrária, que difere da
posse civil por ser qualificada pela produtividade e projeção social (função social).
As Varas Agrárias do Estado do Pará, dessa forma, vem inovando na
interpretação dos instrumentos normativos que regulam as ações possessórias, sob
a luz da finalidade social das normas processuais, em consonância com o artigo 8º do
CPC, e concedendo, dessa forma, acesso à justiça àqueles que são historicamente
marginalizados, rompendo com a institucionalização da violência no campo e
voltando-se à realidade do pequeno camponês, que tem a terra como provedora da
própria dignidade, à medida que exigem ao autor a demonstração não de posse civil,
mas posse agrária, com consequente cumprimento de sua função social.
1112

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1113

INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (IRDR)


INCIDENT OF RESOLUTION OF REPETITIVE CLAIMS (IRRC)

Gabriel Catonho Dalla Pria


Eudes Vitor Bezerra

Resumo: O presente estudo versa sobre o Incidente de Resolução de Demandas


Repetitivas (IRDR) um procedimento novo previsto nos artigos 976 a 987 da Lei
13.105 de 2015. O intuito é apresentar suas principais características e estudar dentro
deste procedimento a suas hipóteses de cabimento, regras de legitimidade,
competência, bem como os efeitos decorrentes de sua admissibilidade, as possíveis
consequências e efeitos da tese jurídica firmada, para esclarecer a sociedade se é um
procedimento que alcança efetividade e celeridade para o poder Judiciário. A pesquisa
foi realizada a partir do método descritivo e explicativo, desenvolvido a partir de
pesquisas bibliográficas e analise dos artigos 976 a 987 do Código de Processo Civil.
Palavras-chave: Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, procedimento,
poder Judiciário.

Abstract: The present study deals with the Incident of Resolution of Repetitive Claims
(IRDR) a new procedure provided for in articles 976 to 987 of Law 13,105 of 2015. The
purpose is to present its main characteristics and to study within this procedure its
hypotheses of appropriateness, rules of legitimacy, competence, as well as the effects
deriving from its admissibility, the possible consequences and effects of the legal thesis
signed, to clarify the society if it is a procedure that achieves effectiveness and celerity
for the Judiciary. The research was carried out from the descriptive and explanatory
method, developed from bibliographical research and analysis of articles 976 to 987 of
the Code of Civil Procedure.
Keywords: Incident of Resolution of Repetitive Claims, procedure, judicial power.

INTRODUÇÃO

O estudo apresentado neste artigo científico é sobre um novo mecanismo


jurídico apto para a resolução de demandas repetitivas. É um procedimento que foi
criado com a finalidade de viabilizar maior efetividade na prestação jurisdicional dos
direitos e interesses transindividuais.
Inicialmente será abordado as hipóteses de cabimento do Incidente de
Resolução de Demandas Repetitivas, bem como as regras de legitimidade e
competência deste procedimento.
Por fim, analisaremos os efeitos de sua admissibilidade, seus efeitos, possíveis
consequências da tese jurídica firmada, suas principais características e regras
procedimentais, bem como seus critérios de admissibilidade e efeitos processuais.

DESENVOLVIMENTO

O Incidente de Resolução De Demandas Repetitivas – IRDR – é um


procedimento novo presente no atual Código de Processo Civil, previsto em seu
Capitulo VIII, nos artigos 976 a 987. E faz jus a uma análise minuciosa, por conter
alguns pontos que despertam interesse na pesquisa deste instituto, como seus
requisitos de admissibilidade, a competência e legitimidade para a instauração do
1114

incidente, os efeitos decorrentes de sua admissibilidade e os da tese jurídica firmada,


com suas possíveis consequências após a decisão do órgão colegiado julgador.
Este procedimento é cabível quando houver cumulativamente uma efetiva
repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão
unicamente de direito, gerando risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica,
conforme o artigo 976 do Código de Processo Civil.
No inciso I do dispositivo o legislador determina como hipótese de cabimento
do IRDR a efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma
questão unicamente de direito, ou seja, quando existir uma pluralidade de ações
idênticas litigando pelo mesmo direito e o entendimento dos magistrados forem
divergentes sobre esse direito litigado, o que proporciona de modo inevitável a
hipótese do inciso II, risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
Em uma breve observação lógica é possível entender que a controvérsia sobre
a mesma questão de direito nos processos trará consequentemente o risco de ofensa
aos princípios processuais da isonomia e da segurança jurídica, o que coloca em
cheque o artigo 37 da Constituição Federal que garante a eficiência da Administração
Pública.
O incidente visa trazer maior celeridade e eficiência ao poder judiciário
estabelecendo uma decisão que vincula sua tese a todos os processos presentes e
futuros que versem sobre a idêntica questão de direito suscitada no Incidente e que
sejam da competência territorial do seu tribunal julgador. Isso reflete diretamente no
princípio constitucional supracitado, pois o efeito vinculante agiliza fases do processo
ocasionando celeridade na justiça além de unificar o entendimento sobre a questão
objeto que anteriormente era entendida de maneira divergente promovendo a
segurança jurídica.
Compreende-se como legitimidade, além da capacidade processual, o
interesse de agir daquele indivíduo diretamente ao direito material litigado, a quem
pertence o interesse de provocar a tutela jurisdicional do Estado. O texto do artigo 977
do Código de Processo Civil aponta aqueles que são legítimos para suscitar o IRDR,
são eles: o juiz ou relator que suscitaram o incidente por oficio (art. 977, I); as partes,
por interposição de petição (art. 977, II) e o Ministério Público ou a Defensoria pública,
também através de petição (art. 977, III). Tanto o oficio quanto a petição deverá ser
dirigido ao Presidente do Tribunal e demonstrar o preenchimento dos requisitos dos
incisos I e II do artigo 976 CPC.
A competência de julgar o incidente será indicada pelo regimento interno de
cada tribunal e recairá ao seu órgão responsável pela uniformização de jurisprudência
conforme descreve o artigo 978 do CPC. Este órgão que dará provimento ou não ao
IRDR, o que dependerá do preenchimento dos pressupostos mencionados no artigo
976 da lei processual.
De acordo com Donizetti:

o primeiro requisito pode ser comprovado com cópias de petições iniciais


ou petições de recursos dos quais se prove a repetição. Já o segundo
pode ser demonstrado com acórdãos ou sentenças do tribunal ou do
Tribunal Regional Federal com julgamentos divergentes da controvérsia
que é matéria do incidente.1

A admissão do incidente acarretará os efeitos do artigo 982 do CPC, estes


efeitos serão decorrentes dos atos praticados pelo órgão competente após a
1
Donizetti, Elpídio, Novo código de processo civil comentado / Elpídio Donizetti. - São Paulo: Atlas, 2015, pg. 747
1115

admissão colegiada do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Conforme


dispõe os incisos do referido artigo, ao ser admitido o incidente o relator suspenderá
todos os processos em andamento que versem sobre o foco material do incidente
suscitado, tanto os processos individuais quanto os coletivos, comunicando a
suspensão aos órgãos jurisdicionais competentes. Fica a encargo do relator requerer
informações necessárias aos órgãos onde tramitam os processos relacionados com o
incidente, que deveram no prazo de 15 dias fornecerem as informações requeridas. E
obrigatoriamente o relator intimará o Ministério Público quando este não for a parte
que instaurou o incidente para que este atue na qualidade de fiscal da ordem jurídica.
Existe aqui uma característica fantástica do IRDR contidas nos parágrafos 3º e
4º deste dispositivo. Tanto o Ministério Público, quanto qualquer das partes do
processo de origem poderá requerer a suspenção em todo o território nacional, de
todos processos individuais ou coletivos em curso que versem sobre a mesma
questão de direito que é objeto do incidente instaurado. Também é legítimo para fazer
este requerimento aquele que for parte de processo que esteja em curso e que discuta
sobre a mesma questão objeto do incidente, ainda que em outra jurisdição. Ou seja,
qualquer processo em curso que versem sobre a questão de direito discutida no
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas poderá ser afetado,
independentemente de limites de competência territorial, pois o efeito suspensivo do
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas pode surtir efeitos em todo o
território nacional.
O julgamento do incidente se dará através do acordão proferido pelo relator
competente do processo de origem, também denominado com ‘causa piloto’. Em seu
conteúdo é fundamental a analise em forma abrangente de todos os fundamentos
favoráveis e contrários concernentes a tese jurídica discutida, sempre de forma
fundamentada conforme o artigo 489 da lei processual para que não ocorra a ausência
dos elementos essenciais da sentença. O dispositivo 985 do Código de Processo Civil
atribui a tese jurídica fixada o efeito vinculante.
Nesse sentido, Scarpinella explica:

[...] a tese jurídica “será aplicado” em todos os casos presentes (inciso I)


e futuros (inciso II) que tratem da mesma questão em todo o território em
que o tribunal que o julgou exerce sua competência. 2

Isso quer dizer que a tese jurídica adotada pelo órgão colegiado competente
incidira sobre todas as lides em andamento que foram suspensas e nas futuras
demandas que discutam a mesma controvérsia de direito suscitada no IRDR dentro
da área de jurisdição do respectivo tribunal. Este efeito atinge também as causas que
tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região. O efeito vinculante
possibilita até mesmo que o juiz julgue liminarmente improcedente os pedidos que
forem contrários ao entendimento firmado no Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas, nas causas que dispensem a fase instrutória de acordo com o inciso III
do artigo 332 do Código Processual Civil.
A tese jurídica fixada não é imutável, o dispositivo 986 da lei processual
possibilita a revisão da tese jurídica fixada através de ofício ou mediante requerimento
dos legitimados no inciso III do artigo 977 (Defensoria Pública ou Ministério Público).
A revisão será feita pelo mesmo tribunal julgador do incidente de modo que este,

2
BUENO, Cassio Scarpinella, Novo código de processo civil anotado / Cassio Scarpinella Bueno. – 3. Ed. – São Paulo:
Saraiva, 2017, pg. 901
1116

conforme as circunstancias fáticas e de direito reveja a tese jurídica firmada alterando


de acordo com a necessidade e seu entendimento no caso concreto.
Também é possível a interposição de recurso especial ou extraordinário aos
tribunais superiores pelos legitimados nos incisos II e III do artigo 977 da lei
processual, neste caso o recurso surtira efeito suspensivo e a apreciação do recurso
ensejara a adoção de uma nova tese jurídica que terá efeito vinculante e ultrapassara
a jurisdição territorial do respectivo tribunal onde tudo começou. O julgamento de
recurso extraordinário ou especial passará a vincular todas as demandas relacionadas
ao IRDR em território nacional, haja vista que se presume a repercussão geral da
matéria constitucional eventualmente discutida nos órgãos superiores conforme o
dispositivo 987 da lei 13.105 de 2015.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Comprovando a importância do tema discutido, o desenvolvimento do presente


estudo tornou possível a análise do Incidente de Resolução de Demanda Repetitivas
- IRDR, criado na reforma do Código de Processo Civil de 2015 a partir da necessidade
do poder judiciário em solucionar os problemas como a insegurança jurídica,
morosidade e isonomia que assolam os tribunais em decorrência da enorme
quantidade de processos individuais que buscam a tutela jurisdicional do Estado sobre
o mesmo direito.
Como foi apresentado, em todos os momentos o procedimento tem como seu
escopo alcançar os princípios processuais da segurança jurídica, isonomia e
celeridade pela formação de precedentes de vinculação obrigatória.
Entretanto ao mesmo tempo ele pode ser vilão, quando for observado por outro
ponto de vista. No caso de tratar igual os desiguais, ou seja, quando vincular um
processo equivocadamente à questão de direito objeto do IRDR. Prejudicando assim
a parte que terá seu processo suspenso e posteriormente vinculado a tese firmada.
Contudo é um avanço para a coletivização dos direitos pois é um mecanismo
que tem condições de trazer efetividade e agilidade para o judiciário se for utilizado
com seriedade e não apenas como um método para diminuir o numero de processos
aguardando julgamento nas filas dos tribunais.

REFERÊNCIAIS

BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado / Cassio


Scarpinella Bueno. – 3. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2017.
COSTA, Rosalina Moitta Pinto da. O Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas no Novo Código de Processo Civil.
Disponível em: < https://www.conpedi.org.br/publicacoes/66fsl345/5mojv 6ev/ccem
6GGHh9AJDe0V.pdf >. Acesso em: 08 de out. 2017.
DIDIER JR. e CARNEIRO DA CUNHA, Fredie e Leonardo. Julgamento de Casos
Repetitivos/ Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha. – Salvador: Juspodvm,
2016.
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil esquematizado /
Marcus Vinicius Rios Gonçalves. – 8. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2017.
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Tutela de interesses difusos e coletivos /
Marcus Vinicius Rios Gonçalves. – 6. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012. – (Coleção
sinopses jurídicas; v. 26)
1117

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: Teoria geral


das ações coletivas. São Paulo: Revista dos tribunais, 2007.
LIPIENSKI, Marcos Vinicius. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas
e o Processo Coletivo. Disponível em:
< https://www.conpedi.org.br/publicacoes/66fsl345/8xr5f0t5/N40L7klQM9262jke.pdf >
. Acesso em: 08 out 2017
1118

O PROCESSO DE ADOÇÃO: ASPECTOS LEGAIS


THE ADOPTION PROCESS: LEGAL ASPECTS

Gleisson Roger de Paula Coêlho

Resumo: O presente resumo tem como objetivo analisar os procedimentos previstos


no Estatuto da Criança e do Adolescente relativos à Adoção, que prima pelo melhor
interesse do infante e pelo direto a convivência familiar e comunitária. De um lado o
adotante que quer muito ter um filho e do outro uma criança ou adolescente que anseia
por pais, uma família. Destaca-se a necessidade de inscrição no Cadastro Nacional
de Adoção, da realização de estágio de convivência caso o seja o adotado menor e
de um processo judicial que tramitará perante o Juizado Especial da Infância e da
Juventude que após a Sentença terá como consequência o cancelamento do registro
de nascimento original, passando a criança ou adolescente ter o nome de seus novos
pais em seu documento.
Palavras-chaves: Criança e adolescente; Cadastro Nacional de Adoção; Estágio de
convivência.

Abstract: This summary aims to analyze the procedures laid down by the Statute of
children and adolescents relating to Adoption, to press for the best interest of the infant
and the right to family and community living. On the other hand the sponsor that wants
to have a baby and the other a child or teenager who yearns for parents, a family.
Highlights the need for entry in the national register of Adoption, if the coexistence
stage is the adopted minor and of a judicial process that tramitará before the Special
of childhood and youth after the sentence will result in the cancellation of the original
birth record, passing the child or teenager to have the name of their new parents in
your document.
Keywords: Child and adolescent; National Register of Adoption; Living stage.

INTRODUÇÃO

Numa época repleta de mudanças sociais o conceito e a composição das


famílias que até pouco tempo eram formadas por casal de homem e mulher e prole,
passa a apresentar novos arranjos.
O instituto da adoção que rompe o vínculo biológico e cria uma relação
socioafetiva e permanente entre o adotando e o adotado, também passa por
transformações e aprimoramentos no ordenamento jurídico brasileiro.
No entanto algumas práticas irregulares que não respeitam o que determina a
Legislação Pátria, como a inscrição no Cadastro Nacional de Adoção, a realização de
estagio de convivência, e a necessidade de um processo judicial para a colocação de
criança/adolescente em família substituta, podem trazer diversos transtornos aos
envolvidos.
Partindo da premissa da proteção integral e do melhor interesse do infante, o
presente trabalho tem como objetivo refletir sobre os procedimentos para a adoção
estabelecidos no ECA, que servem para preparar e criar condições para que o
processo tenha sucesso.
A elaboração deste trabalho foi subsidiada por análise de documentação
indireta pertinentes ao tema.

1. O PROCESSO DE ADOÇÃO
1119

Em alguns casos não haverá a possibilidade da criança ou adolescente


conviver com suas famílias naturais, havendo a necessidade de colocação em família
substituta, o que pode ser feito através da guarda, tutela ou adoção.
A guarda é sempre provisória; enquanto a tutela é utilizada para garantir a
administração dos bens da criança, quando órfã ou os pais não localizados; e a
adoção quando não houver mais possibilidade da criança ou adolescente permanecer
em sua família de origem ou extensa.
Dentre as três hipóteses a adoção se mostra como a medida mais drástica, pois
extingue o vínculo do adotando com sua família biológica, permanecendo apenas os
impedimentos matrimoniais (ECA, artigo 41).
A adoção é uma maneira alternativa de dar à criança uma nova família, uma
forma não biológica de se constituir um vínculo parental; de criar laços não por
consanguinidade, mas pelo amor.
Segundo Lôbo (2018, p. 277) trata-se de ato jurídico em sentido estrito, de
natureza complexa, pois depende de decisão judicial para produzir seus efeitos.
A Ley nº 27337 (Código de losNiños y Adolesdentes) do Peru em seu art. 115
define Adoção como

una medida de protección al niño y al adolescente por lacual, bajo


lavigilanciadel Estado, se estabelece de manerairrevocablelarelación
paterno-filial entre personas que no latienen por naturaleza.
Enconsecuencia, el adoptado adquierelacalidad de hijodel adoptante y
deja de pertenecer a su família consanguínea1.

A colocação de criança ou adolescente em família substituta por meio da


adoção é de caráter excepcional e irrevogável, a qual será tomada apenas quando
esgotados todos os meios para sua manutenção em sua família natural, conforme
disposto no art. 19 do ECA:

Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio


de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a
convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu
desenvolvimento integral.
§ 1o Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de
acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada, no
máximo, a cada 6 (seis) meses, devendo a autoridade judiciária
competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional
ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de
reintegração familiar ou colocação em família substituta, em quaisquer das
modalidades previstas no art. 28 desta Lei.
§ 2o A permanência da criança e do adolescente em programa de
acolhimento institucional não se prolongará por mais de 2 (dois) anos,
salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse,
devidamente fundamentada pela autoridade judiciária.
§ 3o A manutenção ou a reintegração de criança ou adolescente à sua
família terá preferência em relação a qualquer outra providência, caso em
que será esta incluída em serviços e programas de proteção, apoio e
promoção, nos termos do § 1o do art. 23, dos incisos I e IV do caputdo art.
101 e dos incisos I a IV do caputdo art. 129 desta Lei.
§ 4o Será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou
o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas pelo

1
Tradução livre: uma medida de proteção a criança e ao adolescente por meio da qual, sob a supervisão do Estado, se
estabelece de maneira irrevogável a relação paterno-filial entre pessoas que não a tem por natureza. Como resultado, o
adotado adquire a qualidade de filho do adotante e deixa de pertencer a sua família consanguínea.
1120

responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade


responsável, independentemente de autorização judicial.

Para a adoção ser válida necessária a realização de processo judicial, que


tramitará perante o Juizado Especial da Infância e da Juventude; e o vínculo se
constituirá após a Sentença; estabelecendo um vínculo entre o adotado e o(s)
adotante(s); tendo como consequência o cancelamento do registro de nascimento
original, passando a criança ou adolescente ter o nome de seus novos pais em seu
documento.
O interessado em realizar a adoção deverá se cadastrar em sua Comarca, onde
existe registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotadas, devendo
a Comissão Estadual Judiciária de Adoção (CEJA), também, manter registro
centralizado de estrangeiros interessados em adoção.
O Cadastro Nacional de Adoção é um instrumento criado para auxiliar juízes
das varas da infância e da juventude na condução dos procedimentos de adoção, não
tem o intuito de infringir os direitos e interesses dos menores, muito menos dificultar a
locação em família substituta, mas, garantir aos interesses daqueles que ali estão,
para assegurar a colocação em família que possua condições morais e estruturais de
acolhê-las e criá-las, garantindo o desenvolvimento pleno.
A Legislação Pátria estabelece que podem adotar pessoas solteiras ou que
vivam em união estável, viúvas ou casadas, contando que preencha os requisitos
exigidos pela lei. Já em relação aos casais homoafetivos2 não existe proibição e nem
dispositivo que permita, porém nossos Tribunais, incluído o Superior Tribunal de
Justiça, admitem de forma igualitária a adoção.
O art. 46 do ECA destaca que nos casos em que a adoção for de menor é
indispensável a realização do estágio de convivência, que tem como objetivo permitir
que a autoridade judiciária, como o auxílio de uma equipe técnica interprofissional,
possa avaliar a conveniência da adoção (LÔBO, 2018, p. 283).
Vale ressaltar que o art. 50, § 3.º, ECA determina que “a inscrição de
postulantes à adoção será precedida de um período de preparação psicossocial e
jurídica, orientado pela equipe técnica da Justiça da Infância e Juventude [...]”; para
que dessa forma as pessoas estejam preparadas, aumentando as probabilidades de
sucesso da adoção, que se realiza também através do estágio de convivência.
Após o cadastro é que todo o processo deverá ter início. A adoção, em si,
depende do consentimento dos pais ou tutor do adotando, salvo quando os pais
houverem sido destituídos do poder familiar, ou desconhecidos, casos em que será
dispensado o consentimento. Tratando-se de adotando maior de 12 anos, será
também necessária sua concordância.
Todavia o Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 50, §§ 13 e 14, traz
algumas possibilidades de se adotar para pessoas não cadastradas:

2
STJ. HC 404.545/CE, Rel. Ministro Ricardo Villas BôasCueva. Brasília, 29 de agosto de 2017. Ementa: HABEAS CORPUS.
DIREITO DE FAMÍLIA. GUARDA E ADOÇÃO. MENOR IMPÚBERE (10 MESES DE VIDA). CASAL HOMOAFETIVO. ENTREGA
PELA MÃE. ADOÇÃO. PROCEDIMENTO FORMAL INICIADO. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. MEDIDA TERATOLÓGICA.
MELHOR INTERESSE DO MENOR. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. A potencial possibilidade de ocorrência de dano grave
e irreparável aos direitos da criança, ora paciente, que foi recolhida em abrigo após longo convívio com a família que o recebeu
como filho, impõe afastar de plano o óbice formal da Súmula nº 691/STF. 2. O menor, então com 17 (dezessete) dias de vida, foi
deixado espontaneamente pela genitora na porta dos interessados, fato descoberto após a conclusão de investigação particular.
3. A criança vem recebendo afeto e todos os cuidados necessários para seu bem-estar psíquico e físico desde então, havendo
interesse concreto na sua adoção formal, procedimento já iniciado, situação diversa daquela denominada adoção "à brasileira".
4. A observância do cadastro de adotantes não é absoluta porque deve ser sopesada com o princípio do melhor interesse da
criança, fundamento de todo o sistema de proteção ao menor. 5. Ordem concedida. (HC 404.545/CE, 3ª Turma do STJ, Rel.
Ministro Ricardo Villas BôasCueva. Julgado em: 22/08/2017, Publicado no DJe: 29/08/2017).
1121

§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato


domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei
quando:
I - se tratar de pedido de adoção unilateral;
II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente
mantenha vínculos de afinidade e afetividade.
III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança
maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de
convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não
seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas
nos arts. 237 ou 238 desta Lei.
§ 14. Nas hipóteses previstas no § 13 deste artigo, o candidato deverá
comprovar, no curso do procedimento, que preenche os requisitos
necessários à adoção, conforme previsto nesta Lei.

Porém existem casos em que homens ou mulheres declaram e registram como


filhos biológicos sem que seja verdade, espécie de adoção feita sem observância dos
requisitos legais e conhecida como “adoção à brasileira”.
Essa prática além de desrespeitar o que dispõe a Legislação Pátria, que prioriza
os interesses da criança, dá margem a injustiças, e também pode disfarçar à venda
ou tráfico de crianças.
Por fim os procedimentos estabelecidos no Estatuto da Criança e do
Adolescente para a realização da adoção servem para preparar e criar condições para
que o processo tenha sucesso.

CONCLUSÃO

A família hodierna baseada no afeto e com diversos arranjos, a cada dia ganha
mais espaço e importância na esfera jurídica.
A adoção nasce no desejo de se ter um filho e se inicia com a vontade das
partes em querer adotar uma criança ou adolescente.
Adotar é muito mais do que criar e educar uma criança que não possui a mesma
carga genética, é um ato legal e definitivo de tornar filho, alguém que foi concebido
por outras pessoas. Trata-se também do ato jurídico, que tem por finalidade criar entre
duas pessoas relações jurídicas idênticas às que resultam de uma filiação de sangue.
No entanto, poucas pessoas conhecem profundamente o processo adotivo, e
essa falta de informação acaba transformando procedimentos relativamente simples
numa maratona jurídica.
Por fim o Estatuto da Criança e do Adolescente que prima pelo melhor interesse
do infante, pelo direto a convivência familiar e comunitária, dispõe sobre os
procedimentos necessários e que devem ser seguidos para que o processo de adoção
atinja a finalidade pretendida, a felicidade e realização dos envolvidos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso: 11 mai. 2017.
_______. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acessado em 20/07/2017.
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
1122

PERU.Ley nº 27337, de 09 de agosto de 2000. Dispõe sobre o Código de los niños y


adolescentes. Disponível em:
<http://www.leyes.congreso.gob.pe/Documentos/Leyes/27337.pdf>. Acessado em
01/10/2018.
1123

POLÍTICA JUDICIÁRIA NACIONAL DE TRATAMENTO ADEQUADO DOS


CONFLITOS DE INTERESSE NO ÂMBITO DO PODER JUDICIÁRIO E SEUS
IMPACTOS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL VIGENTE
NATIONAL JUDICIAL POLICY FOR THE ADEQUATE TREATMENT OF
CONFLICTS OF INTEREST WITHIN THE SCOPE OF THE JUDICIARY AND
ITS IMPACTS ON THE CURRENT CIVIL PROCEDURE CODE

Evelini Oliveira de Figueiredo Fonseca

Resumo: O presente trabalho objetiva analisar a Política Judiciária Nacional de


Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses no âmbito do Poder Judiciário
e seus reflexos no atual sistema processual civil brasileiro. Busca, ainda, refletir
acerca da adequação da aludida política pública à justificativa central da Código
de Processo Civil, qual seja, a harmonização daquela lei com as garantias
constitucionais do Estado Democrático de Direito, como foco na simplificação,
na segurança jurídica, na eficiência no âmbito do contexto social (estimulando a
mediação e conciliação), no rendimento processual e no equilíbrio entre
conservação e inovação.
Palavras-chave: Política Judiciária, Tratamento Adequado dos Conflitos,
Código de Processo Civil

Abstract: This work aims to analyze the National Judicial Policy for the Adequate
Treatment of Conflicts of Interests within the Judiciary Power and its impacts in
the current Brazilian civil procedure system. It also seeks to reflect on the
adequacy of the public policy to the central justification of the Civil Procedure
Code, namely, the harmonization between the law and the constitutional
guarantees of the Democratic State of Law, as a focus on simplification, legal
security, encouragement of non-judicial methods of dispute resolution
such as conciliation and mediation, procedural income and the balance between
conservation and innovation.
Keywords: Judicial Policy, Adequate Treatment of Conflicts, Civil Procedure
Code

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se justifica por retratar, por intermédio da Política


Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses e seus
reflexos na legislação processual civil, uma diferenciada postura do Poder
Judiciário nacional, que busca nos métodos alternativos de resolução de
conflitos, diante de um país em crescente crise de litigiosidade, um melhor
rendimento processual.
As premissas justificadoras da atual codificação processual civil,
expressadas na mencionada política pública, foram e continuam sendo objeto de
relevantes discussões, seja por aqueles que apoiam a iniciativa, seja por aqueles
que entendem ser absolutamente inconstitucional referida iniciativa processual.
Em um primeiro momento, falaremos sobre a estrutura da política pública
e seus desdobramentos na ordem jurídica. Em um segundo momento,
1124

discorreremos sobre os posicionamentos firmados a partir de aludida


sistemática.

A POLÍTICA JUDICIÁRIA NACIONAL DE TRATAMENTO ADEQUADO DOS


CONFLITOS DE INTERESSES

O Conselho Nacional de Justiça - CNJ, no exercício das atribuições de


controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário 1 e em
observância do artigo 37 da Constituição da República, instituiu, por intermédio
da Resolução nº 125 de 29 de novembro de 2010, a Política Judiciária Nacional
de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses.
Referida Resolução foi passível de modificação parcial, feita pelas
Emendas nº1, de 31 de janeiro de 2013 e nº 2, de 8 de março de 2016. Ainda
sobre a temática, em 01 de julho de 2014, foi editada a Resolução n° 198,
dispondo sobre o Planejamento e a Gestão Estratégica no âmbito do Poder
Judiciário para o sexênio 2015-2020 e, em breves linhas, dada a importância da
efetividade na prestação jurisdicional, apontou quais elementos são essenciais
para se obter o cenário judicial almejado pelo CNJ, quais sejam: a justiça mais
acessível, a desjudicialização e o descongestionamento do Poder Judiciário.
Na perspectiva dos processos internos, o CNJ estabeleceu as metas
relacionadas à celeridade e produtividade na prestação jurisdicional e à adoção
de soluções adequadas no tratamento de conflitos, reforçando a importância da
política pública em análise.
Visando a aplicação de um sistema único e homogêneo, bem como
atender a preceitos constitucionais, tais como, o direito de acesso à justiça, o
direito ao tratamento adequado dos conflitos, o direito à efetividade da tutela
jurisdicional e o direito à justiça social, o CNJ elaborou um programa nacional,
traçando diretrizes básicas para implementação da Política Judiciária Nacional
de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses, contando com a
participação de rede constituída por todos os órgãos do Poder Judiciário e por
entidades públicas e privadas parceiras, inclusive universidades e instituições de
ensino.
Como consequência, os órgãos do Poder Judiciário, por força do artigo
334 do Código de Processo Civil combinado com o artigo 27 da Lei Federal
13.140, de 26 de junho de 2015 - Lei de Mediação, antes da solução adjudicada
mediante sentença, passariam a assumir o dever de oferecer às partes litigantes
outros mecanismos de soluções de controvérsias (meios consensuais), sendo
eles a mediação e a conciliação.
Ainda nesse sentido, para a prestação dos serviços de atendimento e
orientação ao cidadão, foram 2 (dois) os mecanismos jurídicos de articulação
criados: a) Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de
Conflitos, coordenados por magistrados e compostos por magistrados da ativa
ou aposentados e servidores (preferencialmente atuantes na área), com as
seguintes atribuições, entre outras: i) desenvolver a Política Judiciária Nacional

1 Considerando que a eficiência operacional, o acesso ao sistema de Justiça e a


responsabilidade social são objetivos estratégicos do Poder Judiciário, nos termos da
Resolução/CNJ nº 70, de 18 de março de 2009.
1125

de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses; ii) planejar, implementar,


manter e aperfeiçoar as ações voltadas ao cumprimento da política pública e
suas metas; iii) atuar na interlocução com outros Tribunais e com os órgãos
integrantes da rede constituída por todos os órgãos do Poder Judiciário; iv)
instalar Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, que
concentrarão a realização das sessões de conciliação e mediação que estejam
a cargo de conciliadores e mediadores, dos órgãos por eles abrangidos; v)
incentivar ou promover capacitação, treinamento e atualização permanente de
magistrados, servidores, conciliadores e mediadores nos métodos consensuais
de solução de conflitos; vi) propor ao Tribunal a realização de convênios e
parcerias com entes públicos e privados para atender aos fins desta Resolução;
vii) criar e manter cadastro de mediadores e conciliadores, de forma a
regulamentar o processo de inscrição e de desligamento; viii) regulamentar, se
for o caso, a remuneração de conciliadores e mediadores, nos termos do artigo
169 do Código de Processo Civil combinado com o artigo 13 da Lei de Mediação
e b) Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs),
responsáveis pela realização e gestão das sessões e audiências de conciliação
e mediação, que estejam a cargo de conciliadores e mediadores, bem como pelo
atendimento e orientação ao cidadão.
A estratégia de implantação do programa, em termos gerais, consiste em:
i) fazer da conciliação e da mediação instrumentos efetivos de pacificação social,
solução e prevenção de litígios; ii) utilizar a conciliação e a mediação como
elementos redutores da excessiva judicialização dos conflitos de interesses e da
quantidade de recursos e de execução de sentenças; iii) organizar os serviços
de conciliação, mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos
para servir de princípio e base na criação de Juízos de resolução alternativa de
conflitos - órgãos judiciais especializados na matéria; iv) fornecer tratamento
adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em
larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito
nacional, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como
também os que possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de
conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação; v)
consolidar uma política pública permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos
mecanismos consensuais de solução de litígios; vi) estimular, apoiar e difundir a
sistematização e o aprimoramento das práticas já adotadas pelos tribunais; vii)
organizar e uniformizar os serviços de conciliação, mediação e outros métodos
consensuais de solução de conflitos, para lhes evitar disparidades de orientação
e práticas, bem como para assegurar a boa execução da política pública,
respeitadas as especificidades de cada segmento da Justiça.
Em termos específicos, o programa consiste em: i) estabelecer diretrizes
para implementação da política pública de tratamento adequado de conflitos a
serem observadas pelos Tribunais; ii) desenvolver parâmetro curricular e ações
voltadas à capacitação em métodos consensuais de solução de conflitos para
servidores, mediadores, conciliadores e demais facilitadores da solução
consensual de controvérsias, nos termos do artigo 167, § 1°, do Código de
Processo Civil; iii) providenciar que as atividades relacionadas à conciliação,
mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos sejam
consideradas nas promoções e remoções de magistrados pelo critério do
1126

merecimento; iv) regulamentar, em Código de Ética, a atuação dos


conciliadores, mediadores e demais facilitadores da solução consensual de
controvérsias; v) buscar a cooperação dos órgãos públicos competentes e das
instituições públicas e privadas da área de ensino, para a criação de disciplinas
que propiciem o surgimento da cultura da solução pacífica dos conflitos, bem
como que, nas Escolas de Magistratura, haja módulo voltado aos métodos
consensuais de solução de conflitos, no curso de iniciação funcional e no curso
de aperfeiçoamento; vi) estabelecer interlocução com a Ordem dos Advogados
do Brasil, Defensorias Públicas, Procuradorias e Ministério Público, estimulando
sua participação nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania e
valorizando a atuação na prevenção dos litígios; vii) realizar gestão junto às
empresas, públicas e privadas, bem como junto às agências reguladoras de
serviços públicos, a fim de implementar práticas autocompositivas e desenvolver
acompanhamento estatístico, com a instituição de banco de dados para
visualização de resultados, conferindo selo de qualidade; viii) atuar junto aos
entes públicos de modo a estimular a conciliação, em especial nas demandas
que envolvam matérias sedimentadas pela jurisprudência; ix) criar o Cadastro
Nacional de Mediadores Judiciais e Conciliadores, visando interligar os
cadastros dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, nos
termos do artigo 167 do Código de Processo Civil combinado com o artigo 12, §
1°, da Lei Federal 13.140, de 26 de junho de 2015 - Lei de Mediação; x) criar
Sistema de Mediação e Conciliação Digital ou a distância para atuação pré-
processual de conflitos e, havendo adesão formal de cada Tribunal de Justiça ou
Tribunal Regional Federal, para atuação em demandas em curso, nos termos do
artigo 334, § 7º, do Código de Processo Civil e do artigo 46 da Lei de Mediação;
xi) criar parâmetros de remuneração de mediadores, nos termos do artigo 169
do Código de Processo Civil; xii) monitorar, inclusive por meio do Departamento
de Pesquisas Judiciárias, a instalação dos Centros Judiciários de Solução de
Conflitos e Cidadania, o seu adequado funcionamento, a avaliação da
capacitação e treinamento dos mediadores/conciliadores, orientando e dando
apoio às localidades que estiverem enfrentando dificuldades na efetivação da
política pública instituída pela Resolução nº 125 de 29 de novembro de 2010.

IMPACTOS DA POLÍTICA JUDICIÁRIA NACIONAL DE TRATAMENTO


ADEQUADO DOS CONFLITOS DE INTERESSE NO CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL

Infere-se, a partir da leitura das principais características da Política


Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses,
registradas acima, que o programa nacional de resolução dos conflitos, único e
homogêneo, pretendido pelo CNJ e expostos no Código de Processo Civil, não
apenas exigiu como ainda exige dos órgãos do Poder Judiciário significativo
empenho e sofisticada infraestrutura.
Dessa afirmativa decorrem dois principais posicionamentos: i) aqueles
que apoiam a iniciativa proposta pela política pública, refletida, sobretudo, nas
Leis Federais 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) e
13.140, de 26 de junho de 2015 (Lei de Mediação) e ii) aqueles que criticam essa
1127

iniciativa e questionam a constitucionalidade das normas que recepcionaram


aludido programa nacional.
O primeiro posicionamento argumenta que a conciliação e a mediação
têm demonstrado ser métodos eficazes de solução de controvérsias e de
concretização da harmonia social, atendendo, em virtude disso, aos valores que
norteiam a Constituição Federal. Isto porque, afora a elevada parcela de
contribuição que esses acordos consensuais trazem para a pacificação social,
outros benefícios são identificados como, por exemplo: a celeridade do
procedimento judicial, a diminuição do desgaste emocional dos litigantes e a
redução do custo financeiro para manutenção do processo (seja pelo Judiciário,
seja pelas partes).
Sem prejuízo, esses métodos alternativos desempenham papel
fundamental no trabalho pretendido pela Política Judiciária Nacional de
Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses, que é o de trabalhar na
transição de uma cultura baseada no litígio entre as partes para uma nova
cultura, que tem por objetivo principal a pacificação social.
Em contrapartida, o segundo posicionamento sustenta que a Política
Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses
equivoca-se estrategicamente na forma que pretende tratar da ineficiência do
Poder Judiciário. Nessa linha, ao invés de focar em meios de evitar processos
futuros, deveria o Poder Judiciário se preocupar em “arrumar sua própria casa”,
ou seja, pensar em um forma concreta de reduzir os milhões de processos que
atualmente encontram-se em tramitação e que falham, por não garantir o direito
ao tratamento adequado dos conflitos, a efetividade da tutela jurisdicional e,
consequentemente, a justiça social.
Adicionalmente, ao deslocar considerável número de servidores para
atuarem em mutirões pré- processuais, relega-se a análise e o andamento dos
casos já existentes, desrespeitando, por via reflexa, os processos que gozam de
preferência processual, como o mandado de segurança, o habeas data, o
mandado de injunção, os que envolvem o interesse de menores, idosos e
portadores de necessidades especiais, dentre outros.
Não bastasse, revela-se que, na prática, grande parte das audiências de
conciliação pré-processual acaba servindo apenas como uma extensão do "setor
de cobrança" da Fazenda Pública, da Caixa Econômica Federal ou dos
Conselhos de Classe. Nos casos em que referidos órgãos são autores de ações
judiciais de natureza de cobrança (que são muitos), a parte ré, por vezes, leiga,
é intimada (e intimidada) a comparecer em dia e hora perante o seu devedor, na
presença de um magistrado (ou servidor conciliador), para tentar promover
transação extrajudicial, sob a pena de vir a sofrer os rigores da lei. Nessa linha,
a conciliação ou mediação pré-processual seria evidentemente inconstitucional,
por atentar aos postulados da isonomia e da impessoalidade.

CONCLUSÃO

A Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de


Interesses ainda não alcançou a efetividade que esperava. Não sabemos se
alcançará. Evidente a falta de articulação, em favor da realização dessa política
pública, entre a União, estados e municípios, esses últimos, mais onerados no
1128

que tange o atendimento das determinações da política pública e, em


contrapartida, como sabido, os que menos arrecadam em tributação e os que
menos possuem infraestrutura para absorver as imposições do programa.
Por outro lado, a difusão dos meios consensuais de resolução de conflitos
pelo Código de Processo Civil, colabora com a construção de uma nova cultura
de pacificação social. Depreende-se que o objetivo primordial dos métodos
consensuais não é o de desafogar o Judiciário brasileiro, mas garantir a
pacificação social por meio dos benefícios que eles propiciam, merecendo
destaque: a construção de soluções adequadas às reais necessidades e
possibilidades das partes; a maior rapidez na solução das controvérsias; a
redução do desgaste emocional e do custo financeiro; a desburocratização na
solução de conflitos e, por fim, a possibilidade da solução do litígio por um
profissional escolhido pelos interessados, conforme a natureza da questão com
a garantia da privacidade e do sigilo. Não se tratam de metas e diretrizes a serem
cumpridas, mas de uma lei federal positivada, que orienta todo o procedimento
civil brasileiro.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado


Federal, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm Acesso em
19 out. 2018.
________. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2015/Lei/L13105.htm Acesso em: 19 out. 2018.
________. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Lei de Mediação. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13140.htm
Acesso em: 19 out. 2018.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Resolução nº 125 de 29 de
novembro de 2010. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/arquivo_integral_republ
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______________. Emenda nº 1 de 31 de janeiro de 2013. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/images/emenda_gp_1_2013.pdf Acesso em 19 out. 2018.
______________. Resolução nº 198 de 1 de julho de 2014. Disponível em:
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2018.
______________. Emenda nº 2 de 8 de março de 2016. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/d1f1dc59093024aba0e71c
04c1fc4dbe.pdf Acesso em 19 out. 2018.
HERZL, Ricardo Augusto. Crítica Hermenêutica do Direito Processual Civil. 1.
ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2018.
WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para
Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses. Disponível em
https://www.tjsp.jus.br/Download/Conciliacao/Nucleo/ParecerDesKazuoWatana
be.pdf Acesso em: 19 out. 2018.
1129

SUPERENDIVIDAMENTO E INSOLVÊNCIA CIVIL: CONSIDERAÇÕES


SOBRE A INSOLVÊNCIA VOLUNTÁRIA E A CONCORDATA CIVIL NO
CPC/2015
OVER-INDEBTEDNESS AND CIVIL BANKRUPTCY: CONSIDERATIONS
ABOUT VOLUNTARY BANKRUPTCY AND CIVIL CONCORDATA IN
CPC/2015

Cristiano de Oliveira
Vanderlei Garcia Júnior

Resumo: O presente estudo possui caráter analítico e tem como objetivo


investigar o superendividamento populacional, bem como, os instrumentos
processuais existentes no ordenamento jurídico brasileiro, que permitam aos
devedores uma reabilitação patrimonial. Com isso, por meio de uma
interpretação à luz dos valores constitucionais e dos princípios processuais,
busca-se fornecer subsídios que permitam uma aplicação dos institutos da
“insolvência voluntária” e da “concordata civil”, regulados pelos arts. 748 a 786,
do CPC/1973 e mantidos pelo art. 1.052 do CPC/2015. Para tanto, utilizou-se o
método hipotético-dedutivo, a partir de revisões bibliográficas. No mais, a
pesquisa propõe-se a dar a máxima efetividade da norma constante no art. 1.052
do CPC.
Palavras-Chave: Superendividamento; Insolvência civil; Processo Civil.

Abstract: The current study has an analytical character, aiming to investigate the
over-indebtedness populational, as well as the procedural instruments existing in
the Brazilian legal system, that allow the debtors a patrimonial rehabilitation.
Thereby, through an interpretation in the light of constitutional values and
procedural principles, it is sought to provide subsidies that allow the application
of institutes of "voluntary insolvency" and "civil concordata", regulated by arts.
748 to 786 of CPC / 1973 and maintained by art. 1.052 of CPC / 2015. For this,
the hypothetical-deductive method was used, based on bibliographic reviews. In
addition, the research proposes to give the maximum effectiveness of the norm
in art. 1,052 of CPC.
Keywords: Over-Indebtedness; Civil Bankruptcy; Procedure Law.

INTRODUÇÃO

O estudo sobre Insolvência civil é sempre uma tarefa difícil. Isso porque,
doutrinariamente, pouco se discute sobre o tema. Indiretamente, isso demonstra
o desprezo do ordenamento jurídico ao devedor em situação patrimonial crítica.
No Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), é notório a repulsa ao
tema, visto que o legislador quando pôde adequar o procedimento de insolvência
adotado pelo Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973) aos anseios da
sociedade de consumo, diga-se, endividada, não o fez, limitou-se até edição de
lei especial, a manter no art. 1.052 do CPC/2015 o conteúdo normativo dos arts.
748 a 786 do CPC/1973.
Dessa forma, pode-se dizer que no tocante a insolvência civil, adotou-se
um texto antigo para um código novo.
1130

Ocorre, que o procedimento de insolvência civil nos moldes do CPC/1973


em nada se harmoniza com os anseios constitucionais, visto que o constituinte,
elevou o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da
República (art. 1°, III).
Vale lembrar que a insolvência civil no CPC/2015, foi elaborada à luz de
uma sociedade distante da sociedade contemporânea, que tem seu modo de
vida pautado pelo binômio crédito-consumo.
A sociedade de consumo, é marcada pelo fenômeno do
Superendividamento. De acordo com dados pelo Serviço de Proteção ao
Crédito1, em agosto de 2018, havia um total de 62,9 milhões de inadimplentes
negativados no Brasil, número equivalente a 41,0% da população adulta.
Portanto, naturalmente que passados mais de 44 anos, o procedimento
de insolvência civil merece adequações, para que a norma tenha a eficácia
desejada e não se torne letra morta no direito processual.
Todavia, as dificuldades de aplicação da insolvência civil, não devem
servir de licença para não rejeição integral do instituto, sob o argumento de
desalinho com a sociedade contemporânea. Há de se fazer um esforço
interpretativo, visando uma aplicação adequada da norma e sua máxima
efetividade, com vistas a preservação da dignidade do devedor.
Assim, o presente estudo buscará demonstrar os remédios processuais
existentes no CPC/2015, à luz dos valores constitucionais e dos princípios
norteadores do novo Código de Processo Civil.

DESENVOLVIMENTO

Não é intenção deste trabalho, analisar com afinco as causas estruturais


que levam o devedor a condição de superendividado. Há no Brasil uma
quantidade considerável de estudos sobre Superendividamento, optou-se por
fazer referência a alguma delas. Portanto, far-se-á somente uma breve
introdução sobre o assunto, apenas com o intuito de articular melhor o
desenvolvimento sobre o instituto da insolvência civil no CPC/2015.
Vale lembrar, ainda que brevemente, as raízes econômicas e estruturais
do Superendividamento.
Em primeiro lugar, destaca-se o fenômeno da “democratização” do
crédito, como ensina Fausto Boris:

O acesso ao crédito foi facilitado pelo ambiente econômico de


inflação baixa, pela redução da taxa de juros doméstica e pela
melhora da percepção do “risco Brasil”, o que permitia aos bancos
tomar recursos no exterior a taxas de juros menores e emprestá-los
aqui dentro. Acresce que o governo adotou um programa de crédito
consignado, possibilitando aos bancos descontar diretamente da
folha de salário dos servidores públicos e aposentados as parcelas
relativas aos empréstimos contraídos. Progressivamente, o crédito
consignado alcançou também os trabalhadores formais no setor
privado. Entre 2003 e 2008, o crédito total no país cresceu de pouco
mais de 25% para mais de 40% do PIB, mantendo-se em

1
O acesso ao relatório detalhado está disponível em: <https://www.spcbrasil.org.br/pesquisas/indice/5226>. Acesso em:
23 set. 2018.
1131

crescimento nos anos seguintes, a ponto de suscitar preocupação


sobre sua velocidade de expansão e a eventual formação de
“bolhas de crédito”. (2013, p. 528-529)

Em segundo lugar, uma política macroeconômica de incentivo ao


consumo que gerou uma onda de consumismo. Acrescente-a isso, desemprego
estrutural, além de imprevistos da vida como doenças e divórcio, que resultaram
no endividamento da população brasileira, dando origem ao que em doutrina
denominou-se de “Superendividamento”.
Para Claudia Lima Marques (2006, p. 31), o superendividamento ocorre
“[...] com a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo
e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas
as dívidas com o fisco, oriundas de delitos e de alimentos)”. Clarissa Costa de
Lima (2014), por sua vez, conceitua o superendividamento como uma situação
de impossibilidade do devedor em pagar todas as suas dívidas, atuais e futuras,
com seu patrimônio e rendimento.
Adota-se ainda em doutrina, a distinção entre superendividados ativos e
passivos.
De acordo com Bertoncello (2015) o superendividado ativo, é o
consumidor vítima da febre do consumo, os que compram por impulso e,
consequentemente, provocam gastos sem condições de realizar o pagamento,
multiplicando suas dívidas. Daniel Giacomini, diferencia-os entre conscientes e
inconscientes:

O superendividado ativo consciente é indivíduo que agiu com a


intenção de má-fé que contrai dívidas, convicto de que não poderá
honrá-las. O superendividado ativo inconsciente é devedor que
agiu impulsivamente ou que deixou de formular o cálculo correto no
momento em que contraíra as dívidas, também identificado como
um devedor imprevidente e sem malícia, que se endividou por
inconsequência, não como dolo de enganar. (GIACOMINI, 2012, p.
606, grifos do autor)

Por outro lado, o superendividado passivo, é o que não consegue pagar


suas dívidas em razão de imprevistos da vida: mudança de trabalho, atraso de
salários, desemprego, estado de saúde, separação ou divórcio, além de outros
fatores “não controláveis”.
Importa ao presente trabalho, identificar instrumentos processuais no
CPC/2015 que permitam estes devedores sua reabilitação patrimonial, por meio
de um procedimento que vincule todos credores. Dado que, qualquer solução no
sentido contrário, envolvendo negociações individuais, certamente dificultarão a
observância princípios processuais, como: (1) boa-fé processual” (art. 5°,
CPC/2015); (2) responsabilidade patrimonial (art. 789, CPC/2015); (3) menor
onerosidade na execução (art. 805, CPC/2015).
Com efeito, o legislador previu no art. 1.052, CPC/2015, a futura edição
de lei especial para tratamento processual da insolvência civil. Todavia,
enquanto não editada referida lei, manteve vigentes as disposições constantes
do Livro II, Título IV, dos arts. 748 a 786, do CPC/73.
Dessa forma, o devedor na condição de superendividado, tem a faculdade
de valer-se dos instrumentos processuais constantes no CPC/73 para sua
1132

reorganização patrimonial. Para tanto, dispõe o art. 759, CPC/73 que “é lícito ao
devedor ou ao seu espólio, a todo tempo, requerer declaração de insolvência”.
Importa destacar, que que por essa via, o devedor impossibilitado de solver suas
obrigações sem comprometimento de seu mínimo existencial, terá de requerer
judicialmente sua insolvência.
A insolvência voluntária, destaca Edson Ubaldo traz algumas vantagens
ao devedor, visto que:

Ao invés de submeter-se a constante vexames, que por certo


estender-se iam por anos e anos a fio, muitas vezes atendendo a
um ou a alguns credores em prejuízo dos demais, a insolvência
oferece ao devedor a possibilidade de, num único processo,
solucionar toda a situação e ver julgadas cumpridas todas as suas
obrigações num lapso de tempo muito menor, ao qual se segue a
reabilitação ensejadora de um recomeço livre de peripécias. Há,
portanto, legítimo interesse, tanto moral quando econômico, na
busca pelo devedor da constituição de uma nova situação jurídica
através da auto insolvência, exercida por meio da ação. Terminada
esta e cumpridos os procedimentos que lhe seguem, habilita-se o
devedor a obter nova situação jurídica destinada a reintegrá-lo na
plenitude de seus direitos (1996, p. 48-49, grifos do autor).

Igualmente, o art. 783, CPC/73 prevê a possibilidade de uma forma


especial de reabilitação patrimonial através da “Concordata civil”. De acordo com
este dispositivo, uma vez aprovado o quadro geral de credores, o devedor
poderá propor a repactuação das dívidas e ao plano de pagamento.
Desse modo, não ocorrendo oposição dos devedores, a concordata civil
aperfeiçoar-se-á, mediante negócio jurídico processual (art. 190, CPC/2015).
Entretanto, o problema se dá quando há oposição dos devedores.
Humberto Theodoro Júnior (2017, p. 717) lembra que “[...] será suficiente
a oposição de um ou alguns credores, ainda que em minoria, para que fique
frustrada a concordata do devedor civil”.
Como se vê, a Concordata civil, ainda carece de uma atenção maior do
legislador processual, de modo que possibilite ao devedor superendividado um
meio eficaz de repactuação de dívidas, sem sujeitar-se aos caprichos dos
credores, já que, para continuar adquirindo bens de consumo necessários à vida
cotidiana, em regra, é preciso crédito, o qual lhes é negado, necessitando
negociar suas dívidas para não serem privados de algo tão essencial na vida
moderna.
Com isso, os que se encontram superendividados acabam
comprometendo ainda mais a sua renda, afetando em muitos casos, o
necessário à própria subsistência, adentrando além dos limites do mínimo
existencial e violando sua dignidade humana. As consequências, alerta Clarissa
Costa de Lima é que:

Obrigá-los a trabalhar para pagar as dívidas em prejuízo da sua


subsistência viola o princípio da dignidade da pessoa humana e nos
remete à escravidão moderna dos trabalhadores denunciada por
José Reinaldo Lopes no artigo Consumer bankruptcy and
overindebtedness in Brazil, lembrando a situação dos empregados
das fazendas que, ao consumir mercadorias que o patrão trazia da
1133

cidade, acabavam devendo um valor maior que o seu salário e


nunca conseguiam quitar a dívida (2014, p. 168-169).

Embora à primeira vista, os instrumentos processuais supracitados,


estejam em desalinho com o problema do superendividamento da sociedade
contemporânea. Não se pode recusar o ordenamento vigente, tampouco limitar-
se a criticar a inércia do legislador. Isso porque o contingente de
superendividados, enfrentam problemas reais com ameaças a sua própria
subsistência, carecendo de uma resposta adequada do ordenamento vigente.
Na mesma linha, Daniel Bucar, propõe, dentre outras medidas, o
enfrentamento das normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro, sob o
argumento de que:

O desajuste da insolvência civil para a pessoa humana não pode se


tornar argumento para rejeição integral. É necessário enfrentar os
obstáculos inadequados de sua normativa, para que se alcance a
reabilitação por meio, se for a hipótese, da necessária extinção das
obrigações (2017, p. 204).

Assim, a pretensão de eficácia da insolvência civil no CPC/2015, dar-se-


á somente se levado em conta essas considerações. Igualmente, há de ser
contemplado que o princípio jurídico da dignidade humana é a fonte maior do
direito brasileiro. Em consequência disso, o direito processual deve ser orientado
à proteção da dignidade humana e qualquer violação a este princípio violará
direitos fundamentais.

CONCLUSÃO

Como destacado, problemas econômicos e estruturais podem ocasionar


situações de superendividamento, o que implica em buscar meios adequados no
ordenamento jurídicos vigente que permitam uma reabilitação patrimonial destes
devedores.
Dessa forma, a partir das diretrizes apresentadas, buscou-se traçar um
caminho a partir do CPC/2015, à luz dos valores constitucionais e o dos
princípios processuais do CPC, visando uma possível aplicação da Insolvência
civil e da Concordata civil aos devedores superendividados.
Do desenvolvimento do tema, pode-se concluir que, no CPC/2015, há
instrumentos processuais que permitem aos devedores superendividados uma
possível reabilitação patrimonial por meio da concordata civil (art. 759,
CPC/1973) e/ou, lançar mão da insolvência voluntária (art. 783, CPC/1973).
Destarte, embora o legislador permanece inerte no tocante à legislação
especial (art. 1.052, CPC/2015) não justifica a rejeição do instituo da insolvência
civil. Faz-se necessário uma análise rigorosa do instituto à luz dos valores
constitucionais e dos princípios fundantes da República, visando não tornar letra
morta o art. 1.052 do CPC/2015 e, com isso garantir ampla proteção à dignidade
dos devedores superendividados.

REFERÊNCIAS
1134

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mercadoria. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
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1135

UMA ANÁLISE ACERCA DA IRRECORRIBILIDADE, EM SEPRADO DAS


DECISÕES INTERLOCUTÓRIAS NO CPC DE 2015 E SEUS IMPACTOS NA
FASE PROBATÓRIA
AN ANALYSIS OF THE IRRECORABILITY, SEPARATELY, OF THE
INTERCONTAINING DECISIONS IN THE 2015 CPC AND ITS IMPACTS IN
THE PROBATION PHASE

Lucas Petzold Pinto


Gabriel Caique Souza Machado
Felipe de Almeida Campos

Resumo: Pretende-se, neste estudo, analisar o atual sistema recursal das


decisões interlocutórias, previsto no CPC/15, e quais os seus efeitos na fase de
conhecimento com destaque para a fase probatória. O artigo 1015 do CPC/15,
composto por treze incisos e seu parágrafo único, traz em seu rol as hipóteses
de cabimento do recurso de agravo de instrumento considerado pela doutrina e
jurisprudência, majoritárias, de natureza taxativa (numerus clausus). Percebe-se
que a única previsão, na fase probatória, desafiadora do agravo está no caso
previsto no inciso XI do artigo 1015 tratando da distribuição dinâmica do ônus da
prova. Partindo disso, propõe-se neste estudo a ampliação na utilização do
agravo na fase probatória, sob pena de grave cerceamento do princípio da ampla
defesa, afrontando diretamente o devido processo constitucional. Utiliza-se
como marco teórico a Teoria do Processo Constitucional, de Ronaldo Bretas. A
pesquisa é bibliográfica, através do método hipotético dedutivo jurídico.
Palavras-chave: Direito Processual Civil; agravo de instrumento; mitigação.

Abstract: The purpose of this study is to analyze the current recursal system of
interlocutory decisions, foreseen in CPC / 15, and what their effects are in the
knowledge phase, with emphasis on the probative phase. Article 1015 of CPC /
15, composed of thirteen paragraphs and its single paragraph, includes in its role
the hypotheses of the admissibility of an instrument of grievance, considering the
majority doctrine and jurisprudence of numerical nature (numerus clausus). In
this sense, it can be seen that the only prediction, at the probative stage, of the
challenge is the case provided for in item XI of article 1015 dealing with the
dynamic distribution of the burden of proof. Based on this, it is proposed in this
study the increase in the use of the probate phase, under penalty of severe
restriction of the principle of ample defense, directly facing the due constitutional
process. The theory of the Constitutional Process, by Ronaldo Bretas, is used as
theoretical framework. The research is bibliographical, through the hypothetical
legal deductive method.
Key-words: Civil Procedure Law; interlocutory appeal; mitigation.

1 INTRODUÇÃO

O Código de Processo Civil de 2015 traz em seu artigo 203 que os


pronunciamentos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias,
despachos e, no parágrafo segundo, define as decisões interlocutórias como
todo pronunciamento judicial de natureza decisória que não se enquadre no
1136

conceito de sentença, ou seja, que não põe fim à fase cognitiva do procedimento
comum, bem como extingue a execução.
São esses, portanto, os três atos definidos na seção IV dos Atos
Processuais, referindo-se aos pronunciamentos do Juiz. Ponto interessante de
debate surge quando o CPC/15, diferentemente do CPC de 1973, altera as
hipóteses de cabimento do recurso do Agravo de Instrumento. A novidade,
agora, está na previsão de um rol (taxativo) descrevendo os casos em que será
possível a interposição do Agravo de Instrumento, definido no artigo 1015 do
CPC de 2015.
A primeira observação a ser feita está no fim do Agravo Retido, espécie
recursal que, na sistemática do CPC de 1973, alterado em 2005 pela Lei 11.187,
passou a ser regra. Em síntese, no caso de decisões interlocutórias desafiadoras
do agravo retido, ficava este exatamente “retido” nos autos e o seu debate se
dava quando do recurso de Apelação, como preliminar.
Ao Agravo de Instrumento restavam as hipóteses de urgência cuja
decisão interlocutória poderia causar, às partes, lesão grave ou de difícil
reparação, além do seu cabimento nos casos de inadmissão do recurso de
apelação ou sobre os efeitos em que esta (apelação) era recebida. Concluindo:
a regra era o agravo retido. Some-se a isso o fato de que, caso não fosse
identificada na interposição do Agravo de Instrumento a urgência alegada pelo
agravante, era este, o Agravo de Instrumento, convertido em Agravo Retido.
Notadamente na fase de conhecimento, quando da produção das provas,
podia-se dizer que a existência de um instrumento recursal imediato para atacar
decisões, como o agravo retido, favorecia sobremaneira o Princípio da
Oralidade. Além disso, a decisão interlocutória era objeto de debate imediato,
tornando a fase processual probatória mais dinâmica.
Todavia, na atualidade, o Agravo de Instrumento encontra-se restrito à
taxatividade do rol do artigo 1015 do CPC/15, fato que tem gerado debates tanto
na doutrina, quanto na jurisprudência, sobre a possibilidade da interpretação
extensiva ou até do uso do Mandado de Segurança, quando se averiguar nos
casos práticos a existência de ameaça a direito liquido e certo.
Com isso, no que tange às provas, busca-se destacar no presente
trabalho a limitação dada à fase probatória já que apenas é cabível a utilização
do Agravo de Instrumento para os casos em que o Magistrado distribui, de modo
dinâmico, o ônus da prova. Há que se destacar que inúmeros outros casos
podem surgir, dentre eles o possível indeferimento da produção de uma prova 1

1
Nesse sentido, vale destacar decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro sobre o assunto, veja: AGRAVO DE
INSTRUMENTO. AÇÃO ANULATÓRIA. DECISÃO QUE INDEFERIU A PRODUÇÃO DE PROVA ORAL. A MATÉRIA
NÃO SE ENCONTRA NO ROL TAXATIVO DO ART. 1015 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E PODERÁ SER
DEVIDAMENTE APRECIADA EM MOMENTO PROCESSUAL OPORTUNO. ART. 1009 §§ 1º E 2º DO CPC/15. O ART.
1015, III APENAS PERMITE O MANEJO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO DE DECISÃO QUE VERSE SOBRE
REJEIÇÃO DE CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM, NÃO SE PODENDO APLICAR ANALOGIA PARA PERMITIR SEU
USO, COM O FIM DE DISCUTIR SE APENAS INCOMPETÊNCIA, MORMENTE SE NÃO DECORRENTE DE
CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM. PRECEDENTES DESSE E.TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RECURSO NÃO CONHECIDO,
NA FORMA DO ART. 932, IIIDO CPC/15. AGRAVANTE:DINIZ CORREA AGRAVANTE: ESPÓLIO DE ALMERINDA
BARBOSA AGRAVADO: TELEMO BARBOSA CORREA MAIA AGRAVADO: MARIA MADALENA CORREA MAIA
AGRAVADO: ALCIDES RODRIGUES DA COSTA AGRAVADO: MARFISA RODRIGUESRELATORA:DES. INÊS
DA TRINDADE CHAVES DE MELO. Disponível em:
<http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=0004AFCC97847096D6EBF3200F91CB62F6FCC
5070B634D21&USER=> (acesso em 24 out. 2018)
1137

que as partes - autor, réu, terceiros e Ministério Público - julguem importante


para a solução da controvérsia e que, naquela ocasião, em razão do
indeferimento, possam gerar prejuízos a quem pretende se valer da prova.
Diante disso, busca-se neste trabalho analisar as consequências da
limitação taxativa das hipóteses de cabimento do Agravo de Instrumento, na fase
probatória, pretendendo com isso uma reflexão sobre os efeitos que poderão ser
causados às partes e ao processo, visto aqui como garantia constitucional de
atenção irrestrita aos princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia.

2 A SISTEMÁTICA DO AGRAVO DE INSTRUMENTO NO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL DE 2015

O Agravo de Instrumento no CPC de 2015 traz uma completa mudança


em relação ao sistema anterior. Inicialmente é importante destacar que a própria
definição de decisão merece uma observação, já que a sua definição passa por
aspectos formais e não só de conteúdo, como no sistema processual de 73.
Significa dizer que a sentença deve ser analisada sob o ponto de vista
formal, sendo o ato do juiz aquele que põe fim ou não à fase de cognição,
resolvendo (artigo 487) ou não (artigo 485) o mérito. Não se analisa, portanto,
diante do CPC de 2015, a sentença meramente pelo seu conteúdo.
Dito isso, é possível compreender o que o CPC de 2015 entende por
decisão interlocutória. Nesse sentido, será decisão interlocutória aquela que não
colocar fim à fase de conhecimento e não somente aquela que julgar incidentes
procedimentais, como ocorria no CPC de 1973.
Além disso, o parágrafo único do artigo 1015 deixa claro que o Agravo de
Instrumento também será cabível contra decisões interlocutórias proferidas nas
fases de liquidação ou cumprimento de sentença, no processo de execução e no
processo de inventário.
Sobre a interposição do Agravo de Instrumento, nenhuma grande
novidade é percebida como se pode perceber pela leitura do artigo 1016, posto
que o seu endereçamento continua sendo ao Tribunal competente, devendo
conter o nome das partes, a exposição dos fatos e do direito, as razões, o nome
e o endereço do procurador constante nos autos do procedimento.
Os documentos necessários à formação do instrumento, obrigatórios e
facultativos, estão previstos no artigo 1017, sendo, entretanto, dispensados os
obrigatórios nos casos de autos eletrônicos.
Outro impacto importante do processo eletrônico está no artigo 1018.
Prevê o referido dispositivo que deverá o agravante comunicar, em 03 (três) dias,
nos autos do processo, a interposição do Agravo de Instrumento, sob pena de
ser inadmitido o recurso caso seja tal descumprimento demonstrado pelo
agravado. Porém, nos casos em que o processo seja eletrônico, a exigência
dessa comprovação não se faz necessária.
Superada a fase de interposição do Agravo de Instrumento, o relator
poderá atribuir ao recurso efeito suspensivo, determinar ao agravo a faculdade
1138

de resposta ao recurso, intimar o Ministério Público e, por fim, designar o


julgamento em prazo não superior a 1 (um) mês da intimação do agravado.

3 A UTILIZAÇÃO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO NA FASE PROBATÓRIA

3.1 A PROVA NO PROCESSO CONSTITUCIONAL

Conforme ensina Rosemiro Pereira Leal (2009, p.196), trata-se a prova


de um instituto de grande complexidade teórica, pois provar consiste em
representar e demonstrar os elementos da realidade objetiva através dos meios
lógico-jurídicos autorizados em lei. Opera-se em um ciclo de constante
transformação que não possui fim, já que os instrumentos de prova (ex. um
documento) transformam-se em novos elementos de prova (ex. uma
testemunha) que, através dos meios de prova (ex. o testemunho), produzem
novos instrumentos de prova.
Constituem objetos de prova todos os fatos alegados pelo autor, desde
que sejam precisos, controvertidos, relevantes e pertinentes, não se constituindo
em objeto de prova os fatos notórios, confessados pela parte contrária,
incontroversos ou que tenham presunção legal de existência ou veracidade, de
acordo com o art. 374, do CPC 2015 (BRASIL, 2015). A finalidade das provas é
demonstrar, pelos meios em direito admitidos, a situação fática alegada. Assim,
provar não significa alcançar a verdade dos fatos, mas sim a realidade
comprovável, de acordo com o devido processo legal. Como preceitua Carnelutti
(1982, p. 44), “provar significa determinar e fixar formalmente os fatos”.
Nesse sentido, a finalidade da prova não é exclusivamente dirigida à
formação da convicção do juízo, mas consiste na garantia de efetivação do
princípio do devido processo legal às partes, que se colocam em relação
horizontal e não mais triangular com ênfase na atuação do magistrado.

3.2 A PREVISÃO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO NA DISTRIBUIÇÃO


DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA

Contextualizando o instituto da prova, no processo constitucionalizado, é


possível analisar que o CPC de 2015 prevê como hipótese de interposição do
Agravo de Instrumento a decisão interlocutória que redistribui o ônus da prova,
conforme previsão do artigo 373, §1 do mesmo diploma legal.
A distribuição dinâmica do ônus da prova, embora não seja novidade no
sistema processual brasileiro, posto que o Superior Tribunal de Justiça já
revelava a sua admissão, é uma inovação expressa do CPC de 2015 ao permitir
que o Magistrado, diante do caso concreto, atribua de modo diverso o ônus da
prova. Significa dizer que a parte antes encarregada de comprovar o alegado
passa, nessa dinâmica, a não suportar esse ônus que é transferido à parte que
melhor tenha condições de comprovação. Isso se dá quando é observado pelo
Magistrado a impossibilidade ou a excessiva dificuldade de uma das partes em
demonstrar o alegado, isto é, em suportar o encargo probatório da distribuição
estática do ônus da prova.
É certo que essa distribuição dinâmica também pode se dar de modo
consensual entre as partes.
1139

Importante é verificar que o CPC de 2015 prevê no rol do artigo 1015 a


decisão que distribuição o ônus da prova como passível do recurso do Agravo
de Instrumento. Dúvida não há de que se trata de uma decisão interlocutória
(não põe fim à fase cognitiva) e que possui grande relevância prática por se tratar
do encargo probatório que as partes suportarão na fase probatória-instrutória.

4 POR UMA REVISÃO DA TAXATIVIDADE DO ROL DO ARTIGO 1015 E SUA


AMPLIAÇÃO À FASE COGNITIVA DA PRODUÇÃO DE PROVAS

A taxatividade das hipóteses que desafiam o Agravo de Instrumento,


prevista no artigo 1015, vem sendo reconhecida pelos Tribunais brasileiros. O
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, corroborando o CPC de 2015, assim tem
decidido, veja:
4 - Processo: Agravo Interno Cv 1.0024.11.191152-5/002
0724288-07.2018.8.13.0000 (1)

Relator(a): Des.(a) Wilson Benevides


Data de Julgamento: 17/10/2018
Data da publicação da súmula: 22/10/2018
Ementa:
AGRAVO INTERNO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO - DECISÃO
QUE NEGA SEGUIMENTO AO RECURSO POR
INADMISSIBILIDADE - ART. 1.015, DO CPC/15 - TAXATIVIDADE
- DECISÃO NÃO AGRAVÁVEL - RECURSO NÃO PROVIDO.

- O art. 1.015 do Novo CPC traz rol taxativo que descreve as


hipóteses em que uma decisão interlocutória pode ser impugnada
por meio do recurso de agravo de instrumento.
- O Agravo de Instrumento não é o meio recursal adequado para
atacar decisão interlocutória que indefere o pedido de produção de
prova pericial.

No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, veja:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO VERGASTADA SOB A


EXEGESE DO NOVO CPC. RECURSO VISANDO A REFORMA
DA DECISÃO QUE MANTEVE OS HONORÁRIOS PERICIAIS NO
VALOR DE R$2.500,00. DECISÃO QUE NÃO É PASSÍVEL DE
AGRAVO POR SE ENCONTRAR FORA DO ROL TAXATIVO DO
ART. 1015 DO CPC/2015. AGRAVO DE INSTRUMENTO QUE SE
MOSTRA MANIFESTAMENTE INADMISSÍVEL.
PRECEDENTES DESTE E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RECURSO
QUE NÃO SE CONHECE, NA FORMA DO ARTIGO 932, III, DO
NOVO CPC (TJRJ. Ag. Inst. n. 00179107920168190000. Rela.
Desa. Cintia Santarem Cardinali, j. em 20/4/2016 - Grifo nosso).

O STJ, ampliando o debate sobre a temática, começa a enfrentar com


maior profundidade a aplicabilidade do artigo 1015 e, recentemente, no
julgamento dos REsp 1.696.396 e REsp 1.704.520, começou a admitir a
mitigação da taxatividade do rol do artigo 1015.
O requisito principal para que a mitigação aconteça está na urgência e na
utilidade do julgamento da matéria.
1140

Nesse sentido, revela-se imperioso que essa mitigação ganhe


aplicabilidade na fase de saneamento e, sobretudo, na fase instrutória do
procedimento, haja vista que a decisão que indefere a produção de prova,
inegavelmente, pode gerar grande prejuízo às partes e à solução da
controvérsia. E, nesse sentido, o indeferimento de uma prova testemunhal ou
pericial, por exemplo, só seria apreciada em preliminar de apelação quando,
talvez, já não seja mais eficaz – ou útil - a realização da prova. Portanto, decisões
interlocutórias atinentes à prova devem ser reexaminas imediatamente,
desafiando o recurso de Agravo de Instrumento.
Some-se a isso que a produção da prova está inserida como garantia
fundamental consubstanciada na ampla defesa e, neste contexto, a prova está
dentre os meios inerentes à sua garantia.

5 CONCLUSÃO

A nova sistemática do recurso de Agravo de Instrumento trouxe a


discussão acerca da natureza do rol do artigo 1015 do CPC, de 2015. Surgiram
nesse sentido entendimentos sobre a sua natureza, dentre eles, a taxativa
(numerus clausus) com interpretação restritiva; exemplificativa (numerus
apertus) e, ainda, uma terceira via como rol taxativo, mas com possibilidade de
interpretação.
Houve, com a limitação na utilização do Agravo de Instrumento, uma
tentativa de tornar o processo de conhecimento mais célere, já que as decisões
interlocutórias tornaram-se, em regra, passíveis de discussão apenas em sede
preliminar de apelação restando projetadas para o futuro a preclusão das
matérias que estejam fora do artigo 1015. Assim, as preclusões de tais matérias
apenas ocorrem caso não sejam suscitadas em sede preliminar, no recurso de
apelação.
A questão que leva a reflexão está, exatamente, na impossibilidade de o
legislador prever no rol do artigo 1015 do CPC de 2015 todos os casos que
realmente mereçam um reexame imediato da matéria. É certo que casos fora
desse rol, caso não reexaminados imediatamente, poderão gerar a
impossibilidade ou a ineficácia da decisão futura, no recurso de apelação. Há
que se destacar a segurança jurídica e a ampla defesa, dois princípios
indispensáveis à garantia do devido processo legal.
Pelo exposto, defende-se neste trabalho a mitigação da taxatividade do
rol do artigo 1015 na fase de requerimento e de produção de provas,
notadamente quando ocorrem o saneamento e a instrução. Atualmente, a
utilização do Agravo de Instrumento limita-se, expressamente, aos casos de
distribuição dinâmica do ônus da prova. Acredita-se que o indeferimento ou
deferimento de uma prova requerida pelas partes, por sua revelância deve ser
imediatamente reexaminado pelo Agravo de Instrumento, sob pena de se tornar,
no caso de indeferimento, ineficaz ou inútil a produção da prova.
Nesse sentido, o uso do Agravo de Instrumento não pode ser restrito
merecendo, portanto, mitigação para a sua interposição nos casos em que
desafiem o requerimento de produção ou utilização de provas no procedimento,
à luz da processualidade democrática.
1141

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1143

UMA ANÁLISE AO PROJETO DE LEI Nº 757 DO SENADO SOB A


PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA CONVENÇÃO SOBRE
OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
AN ANALYSIS OF THE SENATE'S DRAFT LAW No. 757 UNDER THE
PERSPECTIVE OF FUNDAMENTAL RIGHTS OF THE CONVENTION ON
THE RIGHTS OF THE DISABLED

Ana Leticia Bongardi


Cleber Affonso Angeluci

Resumo: O presente trabalho se propõe a analisar o projeto de Lei n˚ 757 que


tramita no Senado Federal sob a perspectiva que, se aprovado, causará
considerável retrocesso aos direitos assegurados na Convenção sobre Direitos
da Pessoa com Deficiência, incorporada ao ordenamento brasileiro com quórum
qualificado pelo Decreto n˚ 6.949/09, o que lhe concede posição de equivalência
às emendas constitucionais, conforme artigo 5˚, § 3˚, da Constituição Federal de
1988, desvirtuando, por conseguinte, a Lei Brasileira de Inclusão. A pesquisa se
desenvolve no Grupo de Pesquisa de Direito Civil Emergente, a partir do método
hipotético-dedutivo e dialético, utilizando como instrumentos de pesquisa
estudos bibliográficos e documentais sobre o tema.
Palavras-Chave: Incapacidade. Projeto de Lei n˚ 757 do Senado Federal.
Inclusão.

Abstract: The present work intends to analyze the draft Law No. 757 that is
processed in the Federal Senate under the perspective that, if approved, will
cause considerable retrocession to the rights guaranteed in the Convention on
the Rights of Persons with Disabilities, incorporated into the Brazilian system with
a quorum qualified by the Decree No. 6.949 / 09, which grants it a position of
equivalence to the constitutional amendments, according to article 5, paragraph
3, of the Federal Constitution of 1988, thus distorting the Brazilian Law of
Inclusion. The research is developed in the Research Group of Emerging Civil
Law, using the hypothetical-deductive and dialectical method, using
bibliographical and documentary studies on the subject.
Key-words: Desability. Bill n° 757 of the Federal Senate. Inclusion.

INTRODUÇÃO

Há pouco tempo, as pessoas com deficiência eram consideradas, pelo


Código Civil, como absolutamente incapazes, sob uma perspectiva
patrimonialista com o pretexto de sua proteção. Tal classificação
descaracterizava a própria pessoa humana, haja vista que os deficientes, na
maioria das vezes, não tinham plena autonomia sobre sua própria vida, nem
mesmo decidiam questões existenciais que lhes caracterizam como o ser
humano que é, como por exemplo o direito a escolha da residência em que irá
viver, o direito de se casar, o direito reprodutivo, entre outras questões.
Diante de tal cenário de desrespeito aos direitos fundamentais, a
Convenção de Direitos da Pessoa com Deficiência trouxe diversas garantias a
tais pessoas, de modo que, quando incorporada ao ordenamento brasileiro,
1144

objetivou a mudança desta classificação patrimonialista quanto à capacidade


civil.
Entretanto, em meio a tantas conquistas destes direitos humanos, surgiu
o projeto de Lei n˚ 757 que tramita no Senado Federal, sob uma perspectiva
conservadora e “protecionista”. Nesse sentir, haveria um retrocesso aos direitos
fundamentais das pessoas com deficiência? Este projeto de Lei está em
consonância com as normas constitucionais? São essas questões que serão
abrangidas no presente trabalho, com objetivo de incentivar as discussões
acerca do assunto para descortinar preconceitos existentes no bojo da
sociedade.

A CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE E A LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO

Anteriormente à Lei nº 13.146 de 6 de julho de 2015, as pessoas com


deficiência eram consideradas pelo ordenamento jurídico brasileiro, em especial
pelo Código Civil, absolutamente incapazes, conforme os revogados incisos II e
III do artigo 3º deste diploma, ‘aqueles que, por enfermidade ou deficiência
mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida
civil’ e aqueles que, ‘por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade’ e
como relativamente incapazes, eram considerados como tais, conforme os
incisos revogados II e III do artigo 4º do Código Civil, ‘aqueles que, por deficiência
mental, tiverem o discernimento reduzido’ e ‘os excepcionais’, ou seja, ‘sem
desenvolvimento mental completo’.
Sob esta perspectiva, conforme preleciona Nelson Rosenvald, o instituto
da curatela era visualizado como uma sanção punitiva de interdição dos direitos
fundamentais da pessoa com deficiência (ROSENVALD, 2018, p. 107). Deste
modo, estas pessoas não possuíam autonomia e liberdade para decidirem
acerca de questões existenciais de sua própria vida, como o fato de não
possuírem o direito de escolha ao casamento, direito de possuir o seu próprio
lar, direito de constituir família, direitos reprodutivos, entre inúmeros outros.
Contudo, este cenário se alterou profundamente com a promulgação do
Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), influenciado
intrinsicamente pela Convenção de Direitos da Pessoa com Deficiência, tal
Estatuto abarcou novas medidas concernentes ao exercício da capacidade legal
de modo a proteger a autonomia das pessoas com deficiência (ROSENVALD,
2018, p. 107).
Com este novo diploma jurídico, foram estabelecidos diversos direitos
fundamentais à pessoa com deficiência, de modo a inseri-la, efetivamente, à
sociedade, como exemplo: o direito ao matrimônio e à constituição da união
estável; direitos sexuais e reprodutivos; direito de constituir família e, assim, à
escolha da quantidade de filhos e ao acesso as informações adequadas sobre
reprodução e planejamento familiar; direito de conservação de sua fertilidade,
sendo proibido a esterilização compulsória; direito de exercer o direito à guarda,
à tutela, à adoção, entre outros dispostos no artigo 6º da citada Lei1.
1
Art. 6° A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I – casar-se e constituir união estável;
II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e
planejamento familiar;
1145

O destaque aos direitos fundamentais das pessoas com deficiência foi,


então, amplamente evidenciado com a Convenção de Direitos da Pessoa com
Deficiência (CDPD), tratado internacional este que foi incorporado ao
ordenamento jurídico com quórum qualificado previsto no artigo 5º, § 3º, da
Constituição Federal de 1988, ingressando com status de norma constitucional.
Entretanto, apesar de tantos progressos, está em tramitação no Senado
Federal a Lei nº 757/2015 que visa alterar as novidades trazidas pelo Estatuto
da Pessoa com Deficiência, sob o pretexto de harmoniza-lo com o Novo Código
de Processo Civil, com vista a retroceder os direitos fundamentais albergados
pelo Estatuto e pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência
(CDPD), sob a justificativa de proteger essas pessoas com deficiência, o que
será analisado pormenorizadamente.

O PROJETO DE LEI Nº 757/2015

O projeto de Lei nº 757/2015, em tramitação no Senado Federal, tem


como objetivo, conforme estabelece seu artigo 1º, a harmonização dos
dispositivos da Lei nº 10.406/0002 (Código Civil), da Lei nº 13.105/2015 (Código
de Processo Civil), a Lei nº 13.146/2015 (Estatuto das Pessoas com Deficiência)
e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto-Lei nº
6.949/2009), com relação à capacidade civil das pessoas com deficiência para a
prática dos atos da vida civil, além das condições para o seu exercício, se com
ou sem apoio.
O citado texto legislativo se refere ao Estatuto da Pessoa com Deficiência
(EPD) como uma enorme “falha”, que causará prejuízos às pessoas que, por
qualquer causa, tiverem o discernimento reduzido ou não tenham a plena
capacidade civil para manifestar sua vontade. Contudo, o mencionado Projeto
de Lei n˚ 757/2015 não reconhece os direitos subjetivos que o Estatuto dispõe
acerca da garantia à plena autonomia e liberdade destes indivíduos.
De início, cumpre ressaltar uma crítica da professora Joyceane Bezerra
de Menezes quanto à elaboração da citada lei que está em tramitação no Senado
Federal, no sentido de que até o presente momento o setor da sociedade
diretamente interessado nesta mudança legislativa não participou do processo
legislativo, sendo que o projeto já está sob o exame da Comissão de Constituição
e Justiça do Senado Federal, contudo, até o presente momento, não ocorreu
nenhuma audiência pública para prestigiar o interesse das pessoas com
deficiência, não sendo, ao menos, respeitado o direito à voz destas pessoas em
um projeto de lei que diz respeito aos seus direitos fundamentais (MENEZES,
2017, p. 138).
O primeiro ponto emblemático desta lei está em seu artigo 2º, em que se
pretende revogar o inciso II do artigo 123 do EPD, ou seja, o que se busca é a
repristinação dos incisos II e III do artigo 3˚ do Código Civil com algumas
modificações à redação original.

IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;


V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária e;
VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidade
com as demais pessoas.
1146

Desta forma, de acordo com a redação proposta pelo inciso II do artigo 3˚


do Código Civil, as pessoas “que não tenham qualquer discernimento para a
prática desses atos, conforme decisão judicial que leve em conta a avaliação
biopsicossocial” serão considerados incapazes absolutamente. Além disso, o
inciso III do mesmo artigo projeta que “os que, mesmo por causa transitória, não
puderem exprimir a sua vontade” também serão considerados absolutamente
incapazes.
Além do mais, referido projeto também sugere a alteração do inciso II do
artigo 4˚, considerando como incapazes, relativamente, “os ébrios habituais, os
viciados em tóxicos e os que tenham discernimento reduzido de forma relevante,
conforme decisão judicial que leve em conta a avaliação biopsicossocial”.
Ademais, este dispositivo é um retrocesso em comparação com o citado
EPD, pois, de acordo com este, estas pessoas com deficiência, tanto física como
intelectual/psíquica, tiveram assegurado a capacidade legal e o respeito à sua
personalidade, sendo que o Estatuto revogou, de forma expressa, o regime de
incapacidades estabelecido no Código Civil em seus artigos 3º e 4º (MENEZES,
2018, p. 3).
Deste modo, as pessoas com deficiência, que antes viviam sob a direção
de seu representante legal, aquele que decidia acerca de suas questões
existenciais e patrimoniais, passaram a gozar de plena capacidade para decidir
acerca de suas questões subjetivas, sob o prisma da inclusão social e igualdade
(MENEZES, 2018, p. 3 e 4).
O sistema de apoio, ao contrário do que era previsto no antigo instituto da
interdição e no modelo antigo da curadoria, não tem como objetivo a substituição
da vontade da pessoa com deficiência, mas, na realidade, objetiva amparar as
decisões destas pessoas com a finalidade de preservar a sua identidade. De
acordo com a limitação psíquica e intelectual da pessoa com deficiência, ela
necessitará de um maior ou menor apoio para o exercício de sua capacidade, de
conforme o instituto da tomada de decisão apoiada (MENEZES, 2018, p. 9).
Parece incorreto afirmar que estas pessoas ficaram desamparadas com
a vigência do EPD, pois, o que ocorre é que estes indivíduos passaram a ser
respeitados e suas decisões começaram a prevalecer, de modo que possam
traçar a sua própria história, de acordo com a sua personalidade, assim como
todas as demais pessoas, em observância ao princípio da igualdade previsto na
Constituição Federal de 1988. Enfim, as pessoas com deficiência obtiveram
capacidade jurídica para exercerem os atos da vida civil e não estão
desamparadas, haja vista que o sistema de apoio (tomada de decisão apoiada),
disciplinado no artigo 1.783-A do Código Civil, dispõe que a pessoa com
deficiência escolherá duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculo e
que gozem de sua confiança, para lhe prestarem apoio na tomada de decisão
sobre atos da vida civil, fornecendo os elementos e as informações necessárias
para que possa exercer tal capacidade.
Outra alteração a ser analisada do projeto de Lei n˚ 757/2015 é o que se
estabelece em seu artigo 2˚, em que se pretende resgatar, mesmo que de modo
parcial, o artigo 1.548 do Código Civil, que havia sido revogado, por completo,
pelo EPD, estabelecendo-se que será considerado inválido o casamento
contraído: “por incapaz, sem o apoio ou a autorização legalmente necessários,
conforme o caso, e ressalvado o disposto nos §§ 2˚ e 3˚ do art. 1.768-B”.
1147

Tal modificação surgiu com as preocupações de alguns juristas de que as


pessoas com deficiência fossem alvo de má-fé, sendo que, mais uma vez, a
preocupação existente está no patrimônio destas pessoas, que poderiam ser
motivadas a se casarem por puro interesse econômico de seus pretendentes.
Desta forma, ainda se dissemina o pré-questionamento se a deficiência é uma
causa para obstaculizar a capacidade dessas pessoas de avaliar e, assim,
expressar a sua vontade sem vícios (MENEZES, 2017, p. 150).
Verifica-se que este dispositivo também está em dissonância com o que
estabelece a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e o Estatuto da
Pessoa com Deficiência, que buscam proteger os direitos da personalidade
destes indivíduos, garantindo o direito ao casamento, para, assim, a constituição
de família e o desenvolvimento da sociedade conjugal, com o auxílio mútuo entre
os cônjuges.
A Convenção dispõe, em seu artigo 23, que todos os Estados signatários
devem empreender medidas visando eliminar a discriminação destas pessoas,
em todos os aspectos relativos ao casamento, à família, paternidade,
relacionamentos, planejamento familiar, em consonância com o princípio da
igualdade. Ademais, o EPD garantiu que a deficiência não deve afetar a
capacidade civil destas pessoas em se casarem ou constituírem uma união
estável, de modo que possam exercer seus direitos sexuais e reprodutivos;
decidir acerca do número de filhos que desejam possuir; ter acesso às
informações pertinentes à reprodução e ao planejamento familiar; conservação
de sua fertilidade, dentre outros estabelecidos em seu artigo 6˚. (MENEZES,
2017, p. 149).
Assim, embora seja legítima a preocupação do legislador quanto à
proteção das pessoas com deficiência contra oportunistas, não é legítimo
estabelecer aos curadores e representantes legais a decisão acerca de uma
questão exclusivamente existencial.
O Projeto de Lei n° 757/2015, também pretende, com a nova redação do
artigo 1.767 do Código Civil, reestabelecer os antigos moldes do instituto da
curatela, o qual, de acordo com o EPD, seria utilizado somente em último caso.
Assim, deixa-se de pensar na curatela como uma alternativa excepcional,
somente utilizado em último caso, para torna-la uma regra para essas pessoas
com deficiência, substituindo-se suas vontades de acordo com as intenções de
seus curadores, o que implica na anulação do sujeito, bem como a inobservância
de sua vontade existencial, que lhe permite construir sua própria identidade e,
assim, inseri-lo na sociedade, em um visível retrocesso ao EPD, pois, com a sua
vigência, as pessoas com deficiência passaram a possuir plena capacidade para
o exercício de seus direitos.
Ademais, o projeto de lei citado também pretende incluir uma nova
redação ao artigo 1.777 do Código Civil, disciplinando: “as pessoas incapazes
sujeitas à curatela receberão todo o apoio necessário para ter preservado o
direito à convivência familiar e comunitária, sendo evitado o seu recolhimento em
estabelecimento que se afaste desse convívio”.
O EPD havia revogado o artigo 1.777 do Código Civil, pois sua redação
original autorizava que as pessoas com deficiência, sujeitas à curatela, poderiam
ser recolhidas em estabelecimento adequado quando não se adaptassem ao
convívio familiar. Deste modo, o EPD objetivava cumprir o que dispõe o CDPD,
1148

bem como a Declaração de Caracas (Organização Mundial da Saúde – OMS),


pois, conforme estes diplomas internacionais, há a necessidade em se garantir
às pessoas com sofrimento mental o direito à convivência familiar e social e um
tratamento extra-hospitalar (MENEZES, 2017, p. 152).
Deste modo, com a nova redação pretendia pelo Projeto de Lei n°
757/2015, se autoriza o afastamento das pessoas sujeitas à curatela do
ambiente familiar e social, somente por julga-las incapazes de viverem em
convívio com seus próprios familiares e sociedade, o que implica em um maior
sofrimento psíquico e se retrocede a todas as garantias expostas pelo EPD, que,
em consonância com a Lei n° 10.216/01, garantia às pessoas com deficiência o
pleno convívio com seus familiares de modo a possibilitar a consolidação do
tratamento extra-hospitalar. Assim, dado o tamanho retrocesso aos direitos
fundamentais dessas pessoas, seria necessário que este dispositivo continuasse
revogado por completo (MENEZES, 2017, p. 152).
Uma das maiores inovações trazidas pelo EPD foi o instituto da tomada
de decisão apoiada, conforme preleciona o já citado artigo 1.783-A, que
demonstra um grande avanço no respeito à autonomia das pessoas com
deficiência, pois abandonou-se a ideia de que suas vontades deveriam ser
substituídas, sendo que, na realidade, suas decisões deveriam ser apoiadas por
pessoas que gozam de sua confiança e que, assim, sempre querem o seu bem-
estar.
O projeto de Lei n° 757/2015 objetiva, sem extinguir o instituto da tomada
de decisão apoiada, aperfeiçoar este sistema de apoio, com vistas a melhor
auxiliar as pessoas com deficiência para a celebração de atos patrimoniais
complexos, como por exemplo os contratos (TARTUCE, 2016, p. 120).
Deste modo, a primeira proposição, com o acréscimo do § 12 do artigo
1.783-A, tem como finalidade a proteção do direito de terceiros que adquirem
bens da pessoa com deficiência, sendo que o citado dispositivo dispõe que: “os
negócios e os atos jurídicos praticados pela pessoa apoiada sem participação
dos apoiadores são válidos, ainda que não tenha sido adotada a providência de
que trata o § 5º deste artigo” (TARTUCE, 2016, p. 121).
Além disso, o projeto de lei também buscou, com o acréscimo do § 14, a
dispensa do registro do instituto da tomada de decisão apoiada e sua averbação
no Registro Civil das Pessoas Naturais, com o fundamento de se preservar a
privacidade da pessoa apoiada (MENEZES, 2017, p. 154)
Tal dispositivo foi de todo modo acertado pelo projeto de lei, haja vista que
não buscou suprimir o instituto da tomada de decisão apoiada, mas sim
aperfeiçoa-la, sob o fundamento de se proteger os direitos patrimoniais de
sujeitos envolvidos neste negócio jurídico.
Entretanto, o mesmo não pode se dizer com relação ao § 13 que se busca
acrescentar ao artigo 1.783-A, sendo que o mesmo objetiva o indeferimento da
tomada de decisão apoiada quando a situação da pessoa exigir a curatela. Neste
caso, é oportuno realizar a seguinte indagação: se a pessoa estiver sob curatela
com relação a certos atos da vida civil (a exemplo do pródigo), ela poderia
pleitear a tomada de decisão apoiada quanto aos demais atos de sua vida?
(MENEZES, 2017, p. 153).
Como dito anteriormente, o instituto da curatela, sob o novo panorama do
EPD e da CDPD, deve ser utilizado como uma última alternativa, sendo que,
1149

pode ser utilizado apenas com relação a alguns atos da vida civil, como por
exemplo aqueles que dizem respeito ao patrimônio destas pessoas, sendo
plenamente possível que a pessoa com deficiência possa ser amparada com a
tomada de decisão apoiada para os demais atos da vida civil, como por exemplo
aqueles que dizem respeito a questões existenciais, como os direitos
reprodutivos e sexuais destas pessoas.
Assim, como dispõe a citada CDPD, se deve aproveitar, ao máximo, a
autonomia das pessoas com deficiência quanto ao discernimento que dispõe
para decidir acerca de algumas questões de sua vida civil, sendo, deste modo,
plenamente possível a coexistência entre a curatela e a tomada de decisão
apoiada (MENEZES, 2017, p. 153-154). Dentre as demais alterações propostas
pelo projeto de Lei nº 757/2015, ressalta-se a proposta de repristinação dos
artigos 1.768, 1.770, 1.771 e 1.773 do Código Civil, os acréscimos dos artigos
1.768-A, 1.768-B e 1.768-C e a alteração do artigo 85 do Estatuto da Pessoa
com Deficiência.
Tais alterações visam restaurar o antigo e ultrapassado instituto da
curatela, sendo um dos maiores riscos de retrocesso e, além disso, de uma
possível inconstitucionalidade, pois, com o completo retorno da curatela nos
termos que se propõe, anula-se por completo a autonomia e a autodeterminação
das pessoas com deficiência que passam a depender, exclusivamente, da
vontade de seus curadores/familiares (MENEZES, 2017, p. 154).
Verifica-se, de modo pontual, que há um risco aos direitos destas pessoas
quaisquer limitações em constituir uma família e a decisão acerca de suas
questões existenciais, sendo totalmente ao contrário do modelo idealizado pela
EPD, sob os princípios da CDPD, haja vista que a curatela passou a ser
entendida somente aos casos patrimoniais, não devendo ser estendida à esfera
personalíssima das pessoas com deficiência (MENEZES, 2017, p. 154 e 157).

O PROJETO DE LEI Nº 757/2015 E A INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E


MATERIAL

Embora o projeto de Lei nº 757/2015 apresente alterações que visam o


aperfeiçoamento dos direitos fundamentais da pessoa com deficiência,
principalmente no tocante ao aprimoramento do instituto da tomada de decisão
apoiada, verifica-se que há diversas modificações, acréscimos e repristinações
de diversos dispositivos que representam um retrocesso e uma visível
incompatibilidade com a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência
e, consequentemente, ao Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Desta maneira, é necessário refletir acerca de uma possível
inconstitucionalidade formal deste projeto de lei, pois, conforme se observa, este
projeto surge como lei ordinária e, deste modo, são observadas as regras
pertinentes ao processo legislativo desta espécie de lei, sendo, portanto,
necessário para a sua aprovação a maioria simples de votos (quórum simples).
Entretanto, o dito projeto de lei apresenta diversos dispositivos que são
contrários à Convenção das Pessoas com Deficiência, que foi incorporada ao
ordenamento jurídico sob o quórum qualificado do § 3º do artigo 5º da
Constituição Federal, sendo, portanto, norma equivalente às emendas
constitucionais.
1150

Deste modo, verifica-se que não é possível que esta lei ordinária
modifique e apresente incompatibilidades com a norma constitucional, à
Convenção, pois a mesma não está sendo processada sob o quórum qualificado
do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, apresentando, portanto, vício
legislativo inconstitucional formal.
Além do mais, o presente projeto de lei visa diversas modificações que
são totalmente contrárias aos direitos fundamentais apresentados pela
Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, sendo, portanto,
inconstitucionais materialmente, pois são contrários e incompatíveis com o
conteúdo de suas disposições.

CONCLUSÃO

Pelo exposto, o projeto de Lei n° 757/2015, embora apresente


preocupações relevantes à proteção das pessoas com deficiência, demonstra,
nas suas modificações, repristinações e revogações, um grande retrocesso aos
direitos fundamentais alcançados pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa
com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão.
Conforme já exposto, nas diversas alterações previstas pelo mencionado
projeto, verifica-se que o ideal ainda predominante é a proteção ao patrimônio
destas pessoas e continua não havendo a atenção à autonomia e liberdade que
estas pessoas devem possuir para o desenvolvimento de sua vida privada,
principalmente quanto à escolha de questões existenciais, como o direito ao
matrimônio e à união estável, direito a escolha da quantidade de filhos, direito à
adoção, dentre outros.
Além disso, verifica-se que o mencionado projeto possui vícios em seu
processo legislativo e vícios materiais, pois este projeto surge como lei ordinária
e, assim, é utilizado, para sua aprovação, quórum simples, entretanto o mesmo
visa alterações incompatíveis ao que está estabelecido na Convenção sobre
Direitos da Pessoa com Deficiência, norma com equivalência às emendas
constitucionais, o que se exigiria quórum qualificado previsto no § 3° do artigo 5°
da Constituição Federal para quaisquer modificações possuírem validade.
Por fim, conclui-se que é imprescindível a reflexão tanto dos juristas como
da sociedade em geral acerca dos direitos fundamentais das pessoas com
deficiência trazidos pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com
Deficiência e, posteriormente, com a Lei Brasileira de Inclusão, na medida em
que estes direitos asseguram a autonomia e a liberdade que todas as pessoas
devem possuir para o pleno desenvolvimento de sua personalidade e história de
vida.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002.


BRASIL, Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015.
MENEZES, Joyceane Bezerra de. A capacidade jurídica pela Convenção sobre
os Direitos da Pessoa com Deficiência e a insuficiência dos critérios do status,
do resultado da conduta e da funcionalidade. Revista Pensar, Fortaleza, v. 23,
n. 2, p. 1-13, abri./jun. 2018.
1151

MENEZES, Joyceane Bezerra de. O risco do retrocesso: uma análise sobre a


proposta de harmonização dos dispositivos do Código Civil, do CPC, do EPD e
da CDPD a partir da alteração da Lei n˚ 13.146, de 06 de julho de 2015. Revista
Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 12, p. 137-171,
abri./jun. 2017.
ROSENVALD, Nelson. A curatela como a terceira margem do rio. Revista
Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 16, p. 105-123,
abri./jun. 2018.
TARTUCE, Flávio. Projeto de Lei do Senado Federal n. 757/2015. Altera o
Estatuto da Pessoa com Deficiência, o Código Civil e o Código de Processo Civil.
Revista IBDFAM. Família e Sucessões, Belo Horizonte, v. 16, p. 111-139,
jul./ago. 2016.
1152

Grupo de trabalho:

PROCESSO PENAL
Trabalhos publicados:

A DECISÃO DO STJ NO HABEAS CORPUS Nº 354.068 E A TEORIA DO DNA


DESCARTADO: UMA ANÁLISE A PARTIR DO PRINCÍPIO DA NÃO
AUTOINCRIMINAÇÃO

DUPLO JUS PUNIENDI OU NON BIS IN IDEM? ANÁLISE DO INÉDITO “CASO


DENILSON” E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO SISTEMA JURÍDICO
BRASILEIRO.

JUSTIÇA RESTAURATIVA E VITIMOLOGIA: UM NOVO PARADIGMA DE


PARTICIPAÇÃO DA VÍTIMA NO PROCESSO PENAL

OS CRITÉRIOS PARA A VERIFICAÇÃO DA DILAÇÃO INDEVIDA DA PRISÃO


PREVENTIVA NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

PROJETO DE LEI Nº. 5.398/2013 E A ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA


CASTRAÇÃO QUÍMICA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

TRANSTORNOS DISSOCIATIVOS ENTRE VÍTIMAS DE ASSÉDIO SEXUAL:


FALSAS MEMÓRIAS, AMNÉSIA DISSOCIATIVA E PSICOLOGIA DO
TESTEMUNHO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, LEI MARIA DA PENHA E JUSTIÇA


RESTAURATIVA: ANÁLISE DA APLICABILIDADE DA JUSTIÇA
RESTAURATIVA NA RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS DE GÊNERO.
1153

A DECISÃO DO STJ NO HABEAS CORPUS Nº 354.068 E A TEORIA DO DNA


DESCARTADO: UMA ANÁLISE A PARTIR DO PRINCÍPIO DA NÃO
AUTOINCRIMINAÇÃO
THE STJ DECISION ON HABEAS CORPUS Nº 354.068 AND THE TEORY OF
DISCARDED DNA: AN ANALYSIS BASED ON THE PRIVILEGE AGAINST
SELF-INCRIMINATION

Bárbara Colino da Silva


Vitória Mota Zocatelli
Eduardo Neves Lima Filho

Resumo: O presente trabalho analisa a dimensão de uma suposta violação ao


princípio da não autoincriminação, em relação aos recentes entendimentos do
Superior Tribunal de Justiça. O propósito foi discriminar em que medida a
decisão do STJ, do Habeas Corpus nº 354.068, que possibilitou o uso do DNA
descartado como meio de prova no processo penal, viola o princípio da não
autoincriminação. Tendo, assim, como relevância para a sociedade científica, a
finalidade de preencher lacunas no Direito Processual Penal Brasileiro, visto que,
o nosso Código de Processo Penal é obsoleto no que tange ao avanço científico
de meios de provas. A metodologia utilizada trata-se da pesquisa bibliográfica,
através de doutrinadores, tendo como principais referenciais Maria Elizabeth
Queijo e Aury Lopes Junior, que abordam sobre o processo penal em si, a
produção de provas e a utilização de material genético, e entendimentos dos
Tribunais Superiores.
Palavras-chave: Princípios; Violação; DNA descartado;

Abstract: This Project analyzes the extent pf a supposed violation of the


privilegie against self-incrimination, in relation to the recente undestandings of
the STJ. The purpose was to dircriminate the extent in which the decision of STJ,
of Habeas Corpus nº 354.068, wich allowed the use of dicarded DNA as evidence
in the criminal proceedings, violating the constitutional principal. Thus, as a
matter of relevance for scientific society, the purpose of filing gaps in the Brazilian
Criminal Procedure Law, since our Code of Criminal Procedure is stale with
regard to the scientific advance of strategies evidence. The methodology used is
the bibliographical research, through doctrines, having as main references Maria
Elizabeth Queijo and Aury Lopes Junior, which deal with the criminal process
itself, the production of evidence and the use of genetic material, and
undestandings of the superior courts.
Key words: Principles; Violation; Discarded DNA;

1 INTRODUÇÃO

O princípio da não autoincriminação se refere ao direito adquirido do


acusado de não produzir provas contra si mesmo. O berço do mesmo é o sistema
acusatório. E o princípio se originou e se consolidou na Inglaterra. Segundo
Leonard W. Levy (1999, p.44), a raiz história do direito a não autoincriminação
se deu quando o sistema inquisitório foi substituído e o Júri foi adotado, onde era
utilizado como proteção contra perseguições religiosas pelo Estado.
1154

O “privilege against self-incrimination” como é conhecido o princípio nos


Estados Unidos, se tornou um direito reconhecido no common law no final do
século XVII e, aproximadamente, um século e meio mais tarde foi elevado a
status constitucional nos Estados Unidos, no Bill of Rights de 1791.
No Brasil, o principio em questão foi reconhecido pela primeira vez em
1988 com a vigência da Constituição Federal e, posteriormente, foi respaldado
no Código de Processo Penal.
A sua aplicação incide diretamente nas fase probatória do processo penal.
De forma que, será analisada à luz da decisão do STJ, no habeas corpus nº
354.068, que permite a utilização do material genético descartado, que por sua
vez é o aproveitamento do DNA que foi abandonado, geralmente em objetos
usados pelo investigado.
Assim, primeiramente, o presente estudo abordará a questão do princípio
constitucional da não autoincriminação e a sua positivação no Direito.
Secundariamente, tratará sobre os meios de prova e a atual legislação brasileira
sobre a utilização do DNA, como meio probatório no processo penal, e o DNA
descartado, no atual cenário brasileiro. E, por fim, analisará, a partir do princípio
da não autoincriminação, a relação da atual decisão do STJ no HC nº 354.068
sobre o DNA descartado e se essa decisão violaria o princípio da não
autoincriminação.

2 DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO

O princípio da não autoincriminação, também conhecido pela doutrina


como “nemo tenetur se detegere”, está disposto no artigo 5º, inciso LXIII, da
Constituição Federal, onde foi consagrado pela primeira vez em âmbito
constitucional. Além disso, também é respaldado no Código de Processo Penal,
em seu artigo 186.
Trata-se, então, de um princípio que assegura ao sujeito passivo de um
processo penal ou de uma investigação criminal, o direito de não produzir provas
contra si mesmo. Este direito também é garantido por diversos tratados
internacionais que se incorporam às legislações internas, à exemplo da
Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Segundo Maria Elizabeth Queijo (2012, p.77), o direito à não
autoincriminação, tem como objetivo resguardar o indivíduo contra os excessos
perpetrados pelo Estado na persecução penal, incluindo-se a proteção contra
coação e violência física e moral, utilizadas para constrange-lo a cooperar na
instrução probatória.
Dessa forma, este princípio é aplicado no campo probatório do processo
penal. E tem como características a oportunidade de que o acusado se abstenha
durante todo o processo, impossibilitando que o mesmo seja obrigado a produzir
provas contrárias ao seu interesse, proteger o indivíduo contra coação e
violência física e moral, obstar que a sua inatividade seja utilizada em seu
desfavor, e o ônus da prova à acusação.
Segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal (como
evidenciado nos HCs: HC n. 93.916/PA, HC n. 69.026/DF, HC n. 77.135/SP e
HC n. 102.019/PB) o alcance deste direito é amplo, pode ser invocado por
1155

qualquer indivíduo, esteja ele em qualquer das seguintes situações: preso,


acusado, investigado, indiciado ou apenas suspeito.
Paralelamente, ao direito de não se auto incriminar, o imputado no
processo penal tem o direito de permanecer em silêncio. O princípio de não se
auto incriminar é mais abrangente, apesar de o texto constitucional mencionar
apenas o direito de permanecer calado. Estão resguardadas pelo referido
princípio todas as ações, físicas ou verbais, que possam lesionar o direito de
defesa do acusado, contribuindo para sua própria condenação.
Aury Lopes Júnior define essa garantia da seguinte forma:
O direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia
muito maior, insculpida no princípio Nemo Tenetur se Detegere,
segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo
por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação
ou por exercer seu direito de silêncio quando do interrogatório.
(2018, p. 192).

E de fato, a Suprema Corte decidiu que:

O direito constitucional de conservar-se em silêncio é consectário


lógico do princípio da não autoincriminação, o qual outorga ao preso
e ao acusado em feral o direito de não realizar provas contra si
mesmo. (STF – HC n. 99.558/ES, rel, Min. Gilmar Mendes). E que
as garantias constitucionais contra a autoincriminação têm sua
manifestação mais eloquente no direito ao silêncio dos acusados.
(STF – HC n. 79.244/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence).

Então, na interpretação do STF, o acusado não é obrigado a fazer aquilo


que não deseja. Fica a seu critério conceder, ou não, declarações em seu
interrogatório, bem como o fornecimento de padrões gráficos para exames
periciais. Uma vez que, na área penal não se pode condenar ninguém por mera
presunção de veracidade, em razão da negação em contribuir com a produção
de provas, surge desta interpretação que a negativa não poderá jamais ser
respaldo para a procedência da ação penal.
Todavia, há controversas entre alguns pontos envolvendo este direito e
sua aplicação na prática, que muitas vezes é relativizado quando colocado frente
à outros direitos, à exemplo do interesse do acusado em não se auto incriminar
e o interesse do Estado na utilização do DNA descartado na fase probatória.
Fato que será analisado na próxima sessão.

3 NOÇÕES SOBRE A UTILIZAÇÃO DO DNA COMO PROVA NO PROCESSO


E O DNA DESCARTADO

Diante do processo penal, em determinado momento se faz necessário a


busca de provas para fins de resolução do crime ou mesmo guiar o caminho da
investigação, hipótese fortemente manifesta no direito brasileiro em razão a
busca pela verdade real1 no processo penal.

1
A verdade real que é utilizada atualmente no Processo Penal Brasileiro é influência do Sistema Inquisitorial, e tem como
fundamento que deve ser buscado dentro o processo a verdadeira realidade dos fatos, de forma que até mesmo juiz
pode ir atrás e produzir provas de ofício, em nome da busca da verdade real, para a formação do seu convencimento.
1156

Essa produção de provas, algumas vezes, é marcada pela necessidade


de colaboração do acusado. E as vezes precisa da doação de material genético,
e no direito brasileiro é entendida como invasiva e não invasiva (MACHADO,
2007, p. 73). A nomenclatura já traduz. A prova invasiva é a que precisa de
intervenção no corpo do acusado, ou seja, necessita de buscas no corpo da
pessoa. E a não invasiva é o contrário, não tem nenhuma interferência no
investigado.
No Brasil, a possibilidade de coleta de material genético é regulada pela
Lei 12.654/2012, e ela prevê duas situações. Na fase de investigação, a lei
autoriza utilização de material genético quando comprovada a essencialidade
desse tipo de prova, bem como o pedido deve ser devidamente fundamentado;
já na hipótese de ser após a condenação, se dá de forma automática quando se
tratar de condenação por crimes dolosos com violência de natureza grave contra
pessoa ou crimes previstos no rol de crimes hediondos, para alimentar base de
dados genéticos. (LOPES JUNIOR, 2018, p. 436).
Parece-nos óbvio que a recusa no oferecimento desse material genético
deva ser respeitada sob pena de violação ao princípio da não autoincriminação
e de outras garantias constitucionais, como por exemplo, a violação à intimidade.
Mas a doutrina diverge nesse sentindo.
Em relação ao direito ao silêncio, há uma maior proteção e respeito, mas
ao direito de não produzir provas contra si mesmo é questionado sob o enfoque
da aplicação do princípio da proporcionalidade2, no que tange o interesse estatal
na persecução criminal e o direito individual. Analisando os dois
posicionamentos, pontua Queijo (2012, p. 242):
Se, em dado ordenamento, sobrepõe-se, de todas as formas, o interesse
público na persecução penal, estabelece-se um direito a prova ilimitado por parte
do Estado: não há vedações de meios probatórios, não há regras de
admissibilidade e de exclusão de provas nem restrições a valoração destas. Não
há, enfim, ilicitude da prova. Tudo se justifica em prol da busca da verdade, que
é perseguida a qualquer preço (...). No outro extremo, havendo prevalência
absoluta do interesse individual, a persecução penal estaria fadada ao fracasso.
Não se admitiria, nessa ótica, nenhuma limitação aos direitos fundamentais,
inclusive, ao nemo tenetur se detegere.
Parece-nos claro que a recusa do acusado em ceder seu material
genético está abarcada pelo princípio da não autoincriminação, mas a existência
de discussão doutrinária nesse sentido denota em que pé está o reconhecimento
e aplicação desse princípio na prática. Bem como a dificuldade ainda maior a ser
enfrentada, no que tange o DNA descartado e a garantia desse princípio.
O DNA descartado inicia sua discussão na questão das provas não
invasivas, isso porque, nada mais é do que o fato de descartar objetos que
contenham material genético da pessoa, tornando-o passível de utilização para
exames comprobatórios e posteriormente usados no processo.
Na justiça brasileira é possível encontrar dois casos emblemáticos
envolvendo o DNA descartado, o caso do menino Pedrinho e o da cantora
mexicana Gloria Travi.

2
Tem o intuito de coibir ou excessos provenientes das condutas estatais, por meio da verificação na adequação dos
meios com o fim que se pretende alcançar. É utilizado ainda, no casos em que há a colisão de princípios e direitos,
visando a maior aplicação de um, em menor detrimento de outro.
1157

O primeiro caso, foi a elucidação de um crime de sequestro de um recém-


nascido, ainda na maternidade, que por décadas ficou sem solução. Ao
desenrolar da investigação, descobriu-se que Pedrinho havia sido sequestrado
por Vilma Martins Costa, que o registrou como mãe. O que levantou suspeitas
de sua outra filha Roberta Jamilly Martins Borges.
Posteriormente, a polícia descobriu que no mesmo dia do nascimento de
Roberta havia ocorrido um sequestro na mesma maternidade, e a chamaram
para colaborar com as investigações cedendo material genético para a
realização do exame de DNA, mas a irmã de Pedrinho se recusou. Então, os
investigadores sabendo que Roberta era fumante, esperaram ela se desfazer da
bagana do cigarro para coletar e enviar ao laboratório. O resultado apontou que
Roberta também havia sido sequestrada.
Já o caso da cantora mexicana Gloria Travi, a mesma estava presa na
Polícia Federal esperando resultado de sua extradição, quando alegou ter
engravidado por fruto de abuso sexual por parte dos carcereiros. Na época do
nascimento da criança foi utilizada a placenta para a realização do exame de
DNA, para saber se havia ocorrido ou não o abuso sexual.
A cantora reclamou o direito à intimidade e preservação da identidade do
pai do seu filho ao STF, que decidiu que o direito a honra e as imagens dos
carcereiros se sobrepunha sobre os direitos alegados pela cantora. Bem como,
alegou que a coleta da placenta não era invasiva nem a mãe nem a criança,
motivo pelo qual não cabia a reclamação do direito a intimidade, já que não mais
fazia parte do corpo nem da cantora, nem de seu filho.
Tanto a atitude dos policiais no caso Pedrinho, como a utilização da
placenta no segundo caso, foi concebido como expertise da atuação da polícia,
que conseguiu um meio de obtenção de prova burlando a negação do
investigado.
Em contrapartida, em alguns países tem-se entendido o DNA descartado,
como cabelo, saliva, unha, que são deixados para trás a todo tempo, como
extensão do corpo humano e por isso é vedada a sua utilização sem autorização
para fins de prova no processo penal.
No entanto, o que se destaca é até onde será admitida a utilização de
exame genético descartado sem a observância dos princípios adquiridos pelo
investigado, cujo dever de tutela é do Estado. Como no caso analisado a seguir,
que traz uma situação mais cautelosa do que as vistas neste capítulo.

4 O HC Nº 354.068 E O DNA DESCARTADO: UMA ANÁLISE A PARTIR DO


PRINCÍPIO DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO

No embalo dos casos analisados no tópico anterior, o Superior Tribunal


de Justiça, decidiu recentemente sobre o caso J L de O M3, denominado assim
por tramitar em segredo de justiça. O caso ocorreu em Minas Gerais, e trata do
acusado que foi denunciado pelos crimes de homicídio triplamente qualificado,
estupro, extorsão e ocultação de cadáver.
Após a instrução, foi proferida sentença determinando o dia do júri
popular. Contra essa sentença a Defensoria, em nome do acusado, interpôs
3
É a identificação do nome do acusado colocado em siglas, pois se trata de processo sigiloso em razão da natureza dos
crimes à luz da lei 12.015/09.
1158

recurso, requerendo o desentranhamento das provas periciais, devido à


realização de exame genético a partir do DNA do acusado, que foi descartado
após a utilização de copo e talheres na refeição dentro da unidade de custódia
em que o mesmo se encontrava. Sendo que, em momento anterior o réu já havia
se recusado a ceder seu material genético.
A defesa alegou que a prova estava coberta de ilicitude, pois foi obtida de
forma clandestina e sem autorização, violando seu direito a intimidade. Bem
como sustentou que a recusa em ceder seu material genético, e a posterior
utilização contra sua vontade, viola o princípio da não autoincriminação.
A decisão da 5ª Turma do STJ se deu de forma unanime, todos os demais
Ministros acompanharam o voto do Min. Relator Reynaldo Soares da Fonseca,
que se utiliza de alguns argumentos para justificar seu voto desfavorável ao réu,
mas para fins desse trabalho será analisado apenas o seguinte: que a utilização
de provas não invasivas não violam os direitos do acusado4.
Pois bem, o ministro começa seu voto fazendo a distinção entre provas
invasivas e não invasivas, para concluir que, no caso dos autos, a prova utilizada
não é invasiva e, por isso, carece de autorização do investigado, e que a coleta
do material não traz ofensas a inviolabilidade corporal ou integridade física. Para
tanto, sustenta os direitos do Artigo 5º da Constituição Federal, bem como se
utiliza da doutrina para melhor explanar os direitos ali assegurado. Para ao final
entender que não houve violação à esses direitos, porque, segundo ele, uma vez
descartados os objetos com material genético, o indivíduo deixa de ter controle
sobre o que lhe pertencia, não podendo evitar o conhecimento de terceiros e a
posterior utilização em exames genéticos e para fins de prova no processo penal.
Acerca desses argumentos, entendemos que o Min. Relator ignorou o fato
de o acusado estar com sua liberdade restringida, questão ainda maior quando
analisado frente aos casos anteriormente vistos no Brasil e relatados acima, pois
aqui não se observa nenhuma possibilidade do indivíduo em ter cautela ao
descartar seus objetos.
O indivíduo se encontrava preso e sua única forma de se alimentar é pela
refeição ali oferecida, bem como com os talheres da unidade de custódia. Desse
modo, não vislumbramos outra alternativa ao investigado senão comer o que lhe
foi oferecido e devolver os objetos utilizados, descartando, assim, seu material
genético.
Frisando-se ainda, que o acusado já havia se recusado em ceder seu
DNA, e a utilização de outros meios de obtenção desse material é uma clara
tentativa de burlar a posição do investigado, pois com a negação, o indivíduo
está exercendo seu direito de não se auto incriminar.
Nesse sentido, em que pese não existir violência física e moral ao
acusado, é possível sustentar a ideia de coação indireta. Isso porque, como
ressaltado, não existia nenhuma outra forma de o indivíduo se alimentar e
descartar os objetos utilizados, induzindo-o a colaborar com a intenção dos
agentes carcerários em coletar o material genético descartado.
Para tanto, caberia ao Estado o dever de fazer tudo que está ao seu
alcance para a obtenção de provas. Ao contrário, se utilizados todos os meios
legais e ainda assim não se consegue ter provas concretas, deve-se respeitar
4
A análise de apenas uma linha de fundamentação do Min. relator ocorre em virtude da pesquisa permear a investigação
da violação do princípio da não autoincriminação.
1159

os direitos legalmente impostos, inclusive preservar a presunção de inocência e


absolver o réu, mas jamais usar de meios obscuros para alcançar às provas
almejadas, indo muito além das atividades persecutórias do Estado.
Nesse viés, com as práticas ao norte mencionas, fica explícita a violação
ao princípio da não autoincriminação. Uma vez que, se é assegurado o direito
de não produzir provas contra si mesmo, o acusado tem total liberdade para se
negar a ceder seu material genético. E utilizar-se desse material descartado é
apenas uma forma encontrada de relativizar esse direito, pois não há como o
investigado não descartar DNA, visto que é inerente ao ser humano.
Para tanto, a Constituição Federal de 1988 prevê direitos aos cidadãos,
que servem exatamente para limitar o poder de punição do Estado, que deve ser
respeitado, inclusive, contra o direito de persecução criminal e a vontade
exacerbada em provar a qualquer custo a culpabilidade do indivíduo.
E ainda, ao aceitar a utilização das provas obtidas por esse meio, seria
uma forma de voltar às bases do sistema inquisitorial, uma vez que, passa a ver
o indivíduo como objeto de investigação, já que é possível usar até mesmo seu
material genético sem sua prévia autorização.
Além disso, o sistema inquisitorial também aparece na tentativa de
justificação da atuação probatória do em nome da verdade real buscada no
processo penal. E nesse viés, ousamos em afirmar que a busca pela verdade,
ao norte mencionada, não justifica o sacrifício dos direitos da não
autoincriminação e a liberdade à intimidade.
No mais, um processo penal justo, que respeite as garantias individuais,
não é apenas interesse particular do acusado. Pelo contrário, é um interesse da
coletividade e interesse público também. Não tendo, assim, efeitos a alegação
de que deveria existir uma ponderação entre o interesse do estado e o direito de
não se auto incriminar do investigado.
Portanto, a atual decisão do STJ de permitir a utilização de DNA
descartado para fins de prova no processo penal viola, de forma clara, o princípio
da não autoincriminação na medida em que perpassa a posição do acusado em
não cooperar e faz uso do seu próprio material genético ignorando o seu direito
de não produzir provas contra si mesmo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista a positivação do princípio da não autoincriminação no


direito, que prevê que o indivíduo tem o a possibilidade de escolher não contribuir
com a fase probatória. E seu desdobramento do direito ao silêncio, o qual
determina que o acusado poderá optar por permanecer calado.
Denota-se que é um direito adquirido pelo homem, expresso em diversos
tratados de direitos humanos e em diversas Constituições modernas. De forma
que, a importância do princípio da não autoincriminação para o processo penal
é inenarrável para a manutenção da justiça. Evitando assim, os excessos
perpetrados por parte do Estado.
Dessa forma, o desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma
análise de como o princípio da não autoincriminação é violado com as decisões
que permitem a utilização de DNA descartado, em que pese toda a carga que o
referido princípio carrega.
1160

Através da análise da decisão do HC. 354.068, é notório que há uma


violação a esse princípio, pois não foi respeitado o direito de não se auto
incriminar, uma vez que, houve a recusa do investigado em colaborar com a fase
probatória. Em decorrência disso, o Estado, de forma a burlar a decisão do
acusado, utilizou-se da única possibilidade do indivíduo se alimentar para obter
as provas desejadas. Utilizando, para tanto, de uma coação indireta objetivando
a consecução do material genético para a realização do exame de DNA, que já
havia sido negado em momento oportuno, pelo acusado.
Fica claro, portanto, que o princípio da não autoincriminação ainda tem
muito a evoluir no campo de sua aplicação prática dentro do processo penal
brasileiro, como direito básico ao sujeito que compõe o polo passivo. Além disso,
se faz necessário, que este princípio seja equilibrado com os demais princípios
do ordenamento jurídico, a fim de que seja alcançada sua real finalidade.
Por fim, é de nossa expectativa que essa decisão não vincule os próximos
julgados semelhantes e que a mesma possa ser revista, o mais breve possível,
para que seja alcançada a segurança jurídica almejada com a aplicação efetiva
dos direitos fundamentais garantidos aos investigados.

REFERÊNCIAS

BONACCORSO, Norma Sueli. Aplicação do Exame de DNA na Elucidação de


Crimes. 2005. 193 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em:
<http://www.imlsvo.info/idpdok/publications/dnacrimesbonacorsso.pdf>. Acesso
em: 10 out. 2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 354.068 - MG. Relator:
Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Brasília, DF, 13 de março de 2018. Diario
de Justiça Eletronico. Brasília, 21 mar. 2018. Disponível em:
<https://www.julgados.com.br/jurisprudencia/stj/7sptGQBZhvZlXQV_Z5Z/jurispr
udencia_STJ_354068_MG_201601030280>. Acesso em: 11 out. 2018.
LEVY, Leonard Williams. Origins of the Fifth Amendment: the right against
self-incrimination. Chicago. Illinois: Ivan R. Dee, 1999.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva,
2018.
MACHADO, Nara Borgo Cypriano. O Princípio do Nemo Tenetur se Detegere
e a Prova no Processo Penal. 2007. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito,
Faculdade de Direito de Campos, Campos, 2007. Disponível em:
<http://www.panoptica.org/seer/index.php/op/article/viewFile/78/66>. Acesso
em: 09 out. 2018.
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo:
o princípio do nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo
penal. São Paulo: Saraiva, 2012.
1161

DUPLO JUS PUNIENDI OU NON BIS IN IDEM? ANÁLISE DO INÉDITO


“CASO DENILSON” E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO SISTEMA JURÍDICO
BRASILEIRO.
DOUBLE JUS PUNIENDI OR NON BIS IN IDEM? A STUDY OF THE
UNPRECEDENTED “PEOPLE VS DENILSON” CASE AND ITS
CONSEQUENCES IN THE BRAZILIAN LEGAL SYSTEM.

Wendell Pereira Barreto Garcez


Matheus Costa Azevedo

Resumo: O presente ensaio buscou realizar estudo jurídico do inédito “Caso


Denilson”. O precedente traz em si uma problemática atinente à possibilidade de
coexistência entre decisões sancionatórias proferidas por grupos indígenas e
aquelas oriundas do poder estatal. Tal questão foi apreciada pelo poder judiciário
em primeira e segunda instância, onde foi reconhecida a ausência do direito de
punir estatal, porém sob fundamentações diferentes. Através de uma análise
metodológica empírico-dialética, conflitou-se os elementos fáticos que envolvem
o caso e as decisões proferidas com a legislação penal nacional e tratados
internacionais, ensejando assim, ao final do trabalho, em críticas e reflexões
acerca das decisões e fundamentações proferidas.
Palavras-chave: Jus Puniendi; Direito Indígena; Jurisdição.

Abstract: This essay sought to carry out a legal study of the unprecedented
"Denilson Case". The precedent brings with it a problem related to the possibility
of coexistence between sanctioning decisions handed down by indigenous
groups and those coming from state power. This issue was appreciated by the
judiciary at first and second instance, where the absence of the State right to
punish was recognized, but under different grounds. Through an empirical-
dialectical methodological analysis, the factual elements involved in the case and
the decisions made with the national criminal legislation and international treaties
were confronted, thus leading, at the end of the work, to criticisms and reflections
about the decisions and grounds given.
Key-words: Jus Puniendi; Indigenous Law; Jurisdiction.

INTRODUÇÃO

Mesmo que ainda raros no acervo dos diversos tribunais brasileiros, casos
envolvendo delitos cometidos por e em contexto de indígenas se mostram
inafastáveis no debate acadêmico, seja pelo peculiar tratamento dado pelas
legislações às sanções impostas pelas tribos nativas, seja pela inovação jurídica
trazida quando da deliberação judicial sobre os conflitos.
A problemática envolvendo casos de punição tribais por crimes cometidos
por indígenas e sua conformação com a clássica jurisdição estatal, tal como é o
Caso Denilson, cinge-se a perquirir sobre a coexistência ou sua impossibilidade
de duas sanções pelo mesmo fato: aquela oriunda do poder da tribo e aquela
proveniente do poder estatal.
De tal sorte, o Caso Denilson oferece substrato para uma análise das
legislações atinentes à temática, dos institutos jurídicos-penais incidentes em
1162

casos como este e de qual maneira o Poder Judiciário brasileiro enfrenta


questões como esta.

O CASO DENILSON

Apresentando uma situação jurídica inédita no Brasil, o Caso Denilson


iniciou-se no ano 2009. Após um desentendimento, Denilson Trindade Douglas,
depois de ingerir bebida alcóolica, golpeou com uma faca seu irmão Alanderson
Trindade Douglas pelas costas, causando sua morte. O fato ocorreu em território
indígena, na região Serra da Lua, entre índios da etnia Macuxi, da Comunidade
indígena Manoá, Terra Manoá-Pium, localizada no município de Bonfim, em
Roraima1.
Os membros do Conselho da Comunidade Manoá, formado por liderança
das comunidades Anauá, Manoá e Wai Wai, se reuniram e decidiram pela
punição de Denilson Trindade Douglas impondo-lhe as seguintes penas e
determinações:

a) O índio Denilson deverá sair da Comunidade do Manoá e cumprir


pena na Região Wai Wai por mais 5 (cinco) anos, com possibilidade
de redução conforme seu comportamento;
b) Cumprir o Regimento Interno do Povo Wai Wai, respeitando a
convivência, o costume, a tradição e moradia junto ao povo Wai
Wai;
c) Participar de trabalho comunitário;
d) Participar de reuniões e demais eventos desenvolvidos pela
comunidade;
e) Não comercializar nenhum tipo de produto, peixe ou coisas
existentes na comunidade sem permissão da comunidade
juntamente com tuxaua2;
f) Não desautorizar o tuxaua, cometendo coisas às escondidas sem
conhecimento do tuxaua;
g) Ter terra para trabalhar, sempre com conhecimento e na
companhia do tuxaua;
h) Aprender a cultura e a língua Wai Wai.
i) Se não cumprir o regimento será feita outra reunião e tomar outra
decisão.

O Conselho da Comunidade de Manoá já havia, em reunião anterior,


imposto algumas algumas determinações prévias como: i) a construção de uma
casa para a esposa da vítima e ii) a proibição de se ausentar da região sem
permissão da tribo.
Em 2011, o Ministério Público ofereceu denúncia com base no artigo 121,
§2º do Código Penal3. A denúncia foi recebida e aceita pela comarca da cidade

1
SANTIAGO, Rayandria Maria Carvalho. “Caso Denilson”: O Reconhecimento Estatal da Juridicidade da Punição
Tribal. Universidade do Federal de Roraima. Boa Vista/Roraima. 2016.
2
Originalmente do tupi tuwi’xawa, tuxaua é um substantivo do regionalismo brasileiro, cuja a datação nos dicionários é
de 1685. Em dicionários encontramos os seguintes significados para este termo: ‘capitão ou qualquer pessoa que tiver
mando’, ‘chefe temporal’, ‘indivíduo influente no lugar em que mora’, ‘indivíduo valentão’, ‘manda-chuva’. Mas sabemos
que antes de ganhar uma classificação simbólica na língua portuguesa, o termo tuxaua já era muito utilizado no Brasil.
Disponível em: http://culturadigital.br/tuxauaveridiananegrini/o-que-e-um-tuxaua/. Acesso em 04 de Outubro de 2018.
3
Art. 121. Matar alguém. § 2° Se o homicídio é cometido: I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro
motivo torpe; II - por motivo fútil; III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou
cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso
1163

de Bonfim/RR4. A Defesa reafirmou o julgamento de fato e a condenação de


Denilson realizados pela comunidade indígena do qual era membro, afirmando
que ninguém poderá ser julgado duas vezes pelo mesmo fato, podendo um novo
julgamento ensejar na violação do princípio non bis in idem5. A Procuradoria
Federal de Roraima (PF/RR) e a Fundação Nacional do Índio (FNE/Funai),
unidades da Advocacia Geral da União (AGU), ingressaram no caso como parte
interessada, afirmando que o artigo 57 do Estatuto do Índio traz implícita a
vedação à Punição dupla, bis in idem, devendo assim ser afastada a lei penal6.
Os Advogados Públicos alegaram incompetência do juízo, em observação que
Denilson já havia sido julgado em sua própria tribo, sendo assim não poderia ser
processado pelo Juízo da Comarca de Bonfim, em atenção ao artigo 57 da lei
6001/73 (Estatuto do Índio)7 e o artigo 9º da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT)8. Os Advogados Públicos, desta forma,
afirmaram que no caso deveria prevalecer o Direito Consuetudinário9, em que os
costumes praticados na tribo devem prevalecer sobre o direito formal brasileiro.
O Ministério Público entendeu que não havia incompetência do juízo, por ser
crime comum, além do Estado deter o monopólio do direito de punir, jus puniendi.
Em setembro de 2013 a sentença não acolheu os argumentos do
Ministério Público e acolheu parcialmente os argumentos da Defesa. A sentença
não entendeu aplicável o instituto non bis in idem, entretanto nos apresentou
fundamentação em novo instituto denominado “Duplo Jus Puniendi”. Dita
a sentença:

Vê-se, portanto, a potencial condenação e execução de pena por


mais de 2 (dois) entes, em tese, titulares do direito de punir o
mesmo fato. Insta observar que não se trata de bis in idem, pois
os entes detentores do direito de punir são distintos e não
apenas o Estado, mas de instituto novo, que poderíamos
denominar de “Duplo Jus Puniendi”. (BRASIL. TJRR. Ação
Penal n. 0090.10.000302-0. Julgado em 03 de setembro de 2013.
Magistrado: Aluízio Ferreira Vieira)(grifo nosso)

O Juízo da Comarca de Bonfim deixou de apreciar o mérito da ação,


declarando ausência do direito de punir estatal em face do Duplo jus puniendi.
Houve recurso para o Tribunal de Justiça, que manteve a decisão do juízo,
porém com fundamentação diferente, invocando o princípio non bis in idem. O

que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou
vantagem de outro crime:
4
Ação Penal nº 0090.10.000302-0
5
Vedação à dupla incriminação do réu, ensejando que ninguém possa ser processado ou condenado mais de uma vez
pelo mesmo fato.
6
Revista Consultor Jurídico. Estado não pode punir índio que já foi condenado por sua tribo, decido TJ-RR. 2016.
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-fev-20/estado-nao-punir-indio-foi-condenado-tribo. Acesso em 05 de
Outubro de 2018.
7
Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou
disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a
pena de morte.
8
Artigo 9º. 1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos
internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem
tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros. 2. As autoridades e os tribunais solicitados
para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito
do assunto.
9
Direito Consuetudinário é aquele criado através dos costumes e tradições, não sendo gerado através de um processo
legislativo formal.
1164

Tribunal de Justiça reafirmou o caráter supralegal de tratados de Direito


Humanos em referência à Convenção 169 da OIT, apresentada pela defesa
como argumento. Em 2016, o Desembargador Relator Mauro Campello votou
concordantemente em favor da ausência do direito de punir estatal, entretanto
fundamentou seus argumentos no princípio non bis in idem.
Explanados os fatos e o andamento processual referentes ao “Caso
Denilson”, passemos agora a analisar as consequências jurídicas do importante,
porém não tão famoso, precedente.

CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS E REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O CASO


DENILSON

Por fins de didáticos, o presente capítulo analisará a sentença e acórdão


separadamente, de forma respectiva.
Inicialmente há de ser destacado que esta não é a primeira vez, em casos
concretos, que a jurisdição penal estatal se mostra amistosa em relação ao
reconhecimento da autodeterminação indígena. Em Roraima já houveram outros
julgados como o “Caso Antônio Lopes”10, além do primeiro júri popular indígena
do Brasil11, onde a comunidade indígena teve participação considerável.
Entretanto devemos trazer a destaque a Sentença proferida no “Caso Denilson”
pois esta apresenta um novo ponto de vista do reconhecimento da autonomia
indígena em nosso Estado.
A fundamentação utilizada pelo Juízo foi a de uma vedação ao “duplo jus
puniendi”, ou seja, uma pessoa não pode sofrer duas punições de “jurisdições”
diferentes, neste ponto é impossível não realizar um paralelo à vedação à
bitributação12, uma vez que o Juiz se utilizou deste raciocínio para embasar sua
tese.
Deixando à parte os problemas de absorção e conflitos de normas penais
de exceção versus normas tributárias de, digamos, menor exceção, resguarda-
se o fato de que a vedação à bitributação é prevista em lei e seu foco é além do
claro prejuízo gerado ao contribuinte, um problema de conflito de competência,
diferentemente do apresentado como Duplo jus puniendi, onde o foco da
vedação seria a dupla punição realizada sob o mesmo fato. Por hora, apenas
neste raciocínio, seria possível afirmar que a fundamentação da Sentença seria,
na realidade, uma violação ao “direito de ser punido” por apenas uma jurisdição
penal.
Entretanto, destarte a reflexão acima, o primeiro problema desta
fundamentação é muito anterior à discussão jurídico-penal e nasce no conceito
de “jurisdição” aplicado pelo Juízo.
A jurisdição apresenta-se como função, exercida em caráter exclusivo
pelo Estado, voltada à aplicação das normas jurídicas aos casos concretos,
solucionando, de modo imparcial e justo, os conflitos entre os sujeitos de

10
Fazendeiro são condenados em MT por matar índio em disputa de terras. 2016. Disponível em:
http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2017/04/fazendeiros-sao-condenados-em-mt-por-matar-indio-em-disputa-de-
terras.html. Acesso em 06 de Outubro de 2018.
11
Júri indígena absolve réu de tentativa de homicídio. 2015. Disponível em:
http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2015/04/juri-indigena-absolve-reu-de-tentativa-de-homicidio-e-condena-outro-em-
rr.html. Acesso em 06 de Outubro de 2018.
12
fenômeno do direito tributário que ocorre quando dois entes cobram cada um dois tributos sobre o mesmo fato gerador.
1165

direito13. Porém esse conceito moderno de jurisdição descende da Teoria


Contratualista decorrente do estudo de Hobbes, Rousseau e Locke14, reafirmada
por Kelsen através do surgimento do Monismo Jurídico Estatal, onde Direito e
Estado se tornaram um só. Historicamente, presenciamos a morte simbólica do
reconhecimento do Direito Natural, tornando legítimo o Direito proveniente do
Estado. A formação história de nosso Estado demonstra fortes influências do
Monismo Jurídico Estatal de Kelsen, e por consequência há de se admitir que
nosso ordenamento jurídico foi vigorosamente influenciado pelo civil law
germânico.
Disto isto, levando em consideração o conceito moderno de jurisdição
surge o questionamento: conforme fundamentou a sentença, podemos afirmar
que comunidades indígenas possuem uma dita “jurisdição penal”? A resposta
que a presente reflexão apresenta para o questionamento é: depende.
Do ponto de vista do conceito moderno de jurisdição não podemos afirmar
que essa manifestação da aplicação do direito indígena, direito consuetudinário
gerado nos costumes da comunidade, pode ser considerada uma jurisdição
penal indígena. De Chiovenda a Carnelutti, e Liebman, o Estado se apresenta
como elemento necessário na execução da função encarregada de fazer atuar
concretamente a vontade da lei - iuris dicere, mediante providências que não
possam ser legitimamente obtidas senão pela intervenção estatal legalmente
prevista.
Inclusive, também não podemos afirmar que a percepção de Estado
moderno que possuímos em nossa sociedade é o mesmo de uma comunidade
indígena, não podemos nem afirmar que comunidades indígenas possuem um
conceito de Estado da mesma forma possuímos. Não é possível estabelecer um
estudo antropológico jurídico universal, o que presenciamos é um verdadeiro
caleidoscópio cultural e social, surgindo assim uma necessidade de fugir de uma
explicação única e linear para a constituição do homem e sua existência social.
A forma relacional e a alteridade em cada coletividade demonstram uma
plasticidade na normatividade que assegura, também por instituições de controle
próprias e diversas, a ordem15.
Assim percebe-se que a vida social humana não depende
necessariamente de uma estrutura lógico-formal jurídica, como acontece nas
sociedades industriais modernas, e tampouco de um terceiro que, de forma
especializada, cumpra o papel de regulação desse ordenamento, tal como o
Estado o é. A reciprocidade do grupo é tão essencial para seu reproduzir
existencial que outras instituições são inventadas para cumprir o papel de “vigiar
e punir”, não sendo estas necessariamente o Estado16.
Segundo esses conceitos modernos, vemos a impossibilidade de
falarmos em uma jurisdição penal indígena, porém isto não significa que esta
sociedade indígena não possua poder para regulamentar e resolver seus
próprios conflitos, ela apenas não se utiliza de um terceiro - Estado, como nossa

13
LIMA, Fernando Antônio Negreiros. Teoria Geral do Processo Judicial. 2ª ed. São Paulo: Atlas. 2015. Página 16-17.
14
BITTAR, Eduardo C. B; de ALMEIDA, Guilherme de Assis. Curso de Filosofia do Direito. 13ª ed. rev. atual e ampl.
São Paulo: Atlas. 2018. Capítulo 13 e 14.
15
ROCHA, José Manuel de Sacadura. Antropologia Jurídica: geral e do Brasil - para uma filosofia antropológica
do direito. 4ª ed. rev e atual. Rio de Janeiro: Forense. 2015. Página 28.
16
Ibid. Página 29.
1166

sociedade faz. Podemos afirmar assim que a sentença proferida possui um leve
equívoco em equiparar a organização daquela sociedade indígena com a
organização da sociedade brasileira. Observa-se que não estamos afirmando
que não possa existir um Estado indígena, ou estes não possam se reconhecer
como um Estado autônomo, ou como parte de nosso Estado, mas sim discutindo
sobre as possibilidades futuras e reflexos do precedente objeto deste resumo.
Posto isto, ainda é possível sustentar uma vedação ao “duplo jus puniendi” para
se declarar a ausência do direito de punir do Estado brasileiro? Essa pergunta
mais uma vez apresenta a resposta: depende.
Neste ponto precisamos realizar, por motivos exclusivamente didáticos,
uma divisão levemente polarizada. Do ponto de vista juspositivista, como foi
apresentado acima, a resposta é não, pois havendo o pressuposto que o Estado
é o único detentor do iuris dicere, tecnicamente sua existência precede a
existência da jurisdição. Porém de outro modo, por uma visão jusnaturalista,
devemos observar o caso sob uma lente contrária a um etnocentrismo-jurídico.
Não reconhecer que outra sociedade possa resolver seus conflitos de forma
diferente da nossa apenas por esta não possuir o conceito técnico de “jurisdição
penal” é, no mínimo, violar o seu direito à autodeterminação e capacidade de
auto resolução de conflitos. Assim, através de um resgate acadêmico da escola
jusnaturalista conclui-se que tal capacidade/poder indígena não
necessariamente seja chamada de “jurisdição”, mas que tal poder seja no
mínimo reconhecido como uma forma de resolução de conflitos alternativa
àquela apresentada pelo nosso Estado, e plenamente legítima para aqueles que
a utilizam.
Sob outra perspectiva, o posicionamento e fundamentação do Tribunal de
Justiça de Roraima, apesar de apresentar voto de conteúdo igual ao da
Sentença, rejeitou, em parte, a fundamentação do Juiz sentenciante e declarou
que a ausência do direito de punir estatal decorreria do princípio non bis in idem,
e não de uma vedação ao “Duplo Jus Puniendi”.
O Desembargador-Relator Mauro Campello em seu voto se posicionou
no sentido de que a violação ao brocardo Nemo debet bis vexari pro una et
eadem causa17, citado em sentença, não ensejar em um Duplo Jus Puniendi,
mas sim encontrar-se correspondido ao non bis in idem. O Relator sustenta que
este último implica que além da vedação à dupla punição do mesmo fato pelo
mesmo ente, mas como também a garantia processual penal ampla do indivíduo,
que este não pode ser punido duas vezes por um/pelo mesmo fato, qualquer que
seja o ente que o pune. Entretanto logo a seguir o Relator apresenta aparente
empatia pela fundamentação apresentada em sentença, argumentando que
percebe ser violado o princípio “non bis in idem” no presente caso, porém não
porque este seja refratário de novos institutos que possam ser reconhecidos na
casuística judicial, mas apenas porque, do ponto de vista do Relator, o “Duplo
Jus Puniendi” poderia “acender um debate paralelo acerca do conflito de
jurisdições, além de não suplantar adequadamente o argumento da acusação de
que se havia violado o princípio da inafastabilidade da jurisdição estatal. A certo
ponto o Relator denomina o princípio “non bis in idem” como a via menos
problemática.
17
Ninguém deve ser sancionado mais de uma vez por um mesmo fato.
1167

O Relator ainda destaca uma situação apontada pelo mesmo como


paradoxal: O “Duplo Jus Puniendi” ensejaria em um direito autônomo em relação
ao direito estatal, resultando uma situação paradoxal, afinal afastaria apenas
algumas normas estatais, mas suportaria a incidência de outras, como aquelas
do Estatuto do Índio. Ademais, o Relator, em concordância ao Juiz sentenciante,
reconhece que “o caso em estudo não tem precedente judicial monocrático”, em
nosso sistema. Por outro lado, o Relator destaca casos semelhantes ocorridos
em outros países como em casos nos Estados Unidos onde os habitantes de
reservas autogovernadas possuem ampla autonomia de suas terras. No sistema
americano o “Tribunal Tribal”, como foi referenciado pelo Relator apud Terril
Pollman, tem competência concorrente ao abrigo da Lei de Crimes. De tal modo,
se a tribo iniciar a persecução penal do réu antes que a instância federal o faça,
aqueles que cometem os crimes são julgados fora a alçada do direito de punir
estatal. Cita ainda o “Direito Aborígene[sic]” australiano, além do artigo 9º e 10.2
da Convenção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, de 198918. Julgou
desta forma a Corte pelo desprovimento do recurso de Apelação Criminal para
que fosse realizada a manutenção da Sentença, sob pena de acarretar bis in
idem.
Por fim, apresentam-se críticas às fundamentações realizadas pela Corte,
pois aparenta perigosa e conveniente a justificativa de não reconhecer outro
instituto jurídico apenas pelo debate que poderia ser ensejado ou realizado sobre
o assunto, porquanto, destacamos que relativizar a autodeterminação de outro
povo em face de um possível conflito jurídico interno aparenta, no mínimo,
irrazoável.
Outrossim, soa também irrazoável que a autodeterminação de um povo e
reconhecimento e validade de uma forma de resolução de conflitos internos
diferente da nossa dependa necessariamente do poder judiciário.

CONCLUSÃO

É perceptível que apesar estarmos discutindo se há ou não conflito de


jurisdições no presente caso, independente da corrente jurídica adotada é
inegável que ambas apresentam conceitos e resultados muito parecidos. De
certa forma, seja reconhecendo que inexiste o direito de punir estatal por
decorrência de um conflito de jurisdições ou vedação ao non bis in idem, ambas
opções apresentam um resultado material semelhante: a ausência do jus
puniendi.
Porém o assunto aqui ultrapassa os limites penais legais estabelecidos
em nosso sistema jurídico, estamos diante de uma situação jurídica sui generis,
ora, de um lado temos o direito à autodeterminação e método alternativo de
resolução de conflitos próprio de povos indígenas, ou daquele povo em
específico, internacionalmente reconhecido, inclusive em tratados internacionais
assinados e internalizados pelo Brasil, e de outro temos um possível conflito
jurídico interno e debate sobre a possibilidade ou não de um Duplo jus puniendi
ou non bis in idem.

18
10.2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento.
1168

Superando os conflitos e independente da explicação apresentada,


apesar do presente estudo se posicionar mais favorável ao reconhecimento de
“espécie de jurisdição” indígena, a discussão se mostra ínfima em face das
possibilidades apresentadas diante de um reconhecimento de um novo método
de resolução de conflitos internos, ainda mais na seara penal, diante de um
contexto nacional e internacional em que a esfera cível-contratual já se encontra
inserida em métodos alternativos como a mediação e arbitragem.
Porquanto, mais uma vez, apesar de se demonstrar materialmente
semelhante, sempre retornaremos a discussão lógica: i) podemos reconhecer a
presença de uma jurisdição indígena? ii) o reconhecimento da jurisdição
indígena afeta a soberania nacional? iii) podemos afirmar que comunidades
indígenas reconhecem e percebem o Estado da mesma forma que percebemos?
iv) é correta a aplicação do princípio non bis in idem?
São questões deveras complexas, que ensejam em debates que sem
dúvida se estendem por muito mais além de dez páginas. Entretanto, ao final,
não podendo ser estabelecido uma regra objetiva na presente demanda afinal
estamos falando de diálogo de correntes estatais e jurídicas com premissas
diferentes, que sejam aplicadas normas jus cogens, a fim de se reconhecer o
direito e poder legítimo de se autodeterminar de comunidades indígenas
Portanto, conclui-se que antes os fatos podemos afirmar que o poder
judiciário brasileiro, neste caso, deixou esvair uma grande oportunidade de
apresentar ao mundo um cenário jurídico vanguardista em um caso inédito, seja
aceitando a legitimidade do poder emanado de um sistema indígena semi-
independente, seja reconhecendo uma forma alternativa de resolução de
conflitos jurídico-penais ou apresentando qualquer resposta que enseje em uma
sedimentação jurídica simplesmente pela possibilidade de ser gerado uma
discussão trabalhosa. Infelizmente, a presente discussão sobre a
autodeterminação de comunidades indígenas não se mostrou suficientemente
interessante ao poder judiciário a fim de que seja despendido empenho e energia
em discussões jurídicas sobre o tema.

REFERÊNCIAS

BITTAR, Eduardo C. B; de ALMEIDA, Guilherme de Assis. Curso de Filosofia


do Direito. 13ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Atlas. 2018
LIMA, Fernando Antônio Negreiros. Teoria Geral do Processo Judicial. 2ª ed.
São Paulo: Atlas. 2015.
ROCHA, José Manuel de Sacadura. Antropologia Jurídica: geral e do Brasil
- para uma filosofia antropológica do direito. 4ª ed. rev e atual. Rio de
Janeiro: Forense. 2015
Revista Consultor Jurídico. Estado não pode punir índio que já foi condenado
por sua tribo, decido TJ-RR. 2016. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2016-fev-20/estado-nao-punir-indio-foi-condenado-
tribo. Acesso em 05 de Outubro de 2018.
SANTIAGO, Rayandria Maria Carvalho. “Caso Denilson”: O Reconhecimento
Estatal da Juridicidade da Punição Tribal. Universidade do Federal de
Roraima. Boa Vista/Roraima. 2016.
1169

JUSTIÇA RESTAURATIVA E VITIMOLOGIA: UM NOVO PARADIGMA DE


PARTICIPAÇÃO DA VÍTIMA NO PROCESSO PENAL
RESTORATIVE JUSTICE AND VICTIMOLOGY: A NEW PARADIGM OF
VICTIM PARTICIPATION IN CRIMINAL PROCESS

Paloma Teles Mascarenhas Santos


Elivelton dos Santos dos Santos

Resumo: Este trabalho se propõe a analisar o papel da vítima no processo penal


tradicional, contrapondo a um novo modelo de justiça, denominado justiça
restaurativa que representa uma transformação do atual sistema penal
punitivista, devido aos seus princípios pautados na escuta respeitosa,
empoderamento da vítima e reparação do dano. Como problema, tem-se: De
que forma, a justiça restaurativa inova o sistema penal tradicional quanto ao
papel da vítima no processo? Deste modo, o objetivo principal é identificar as
possibilidades de participação da vítima no processo penal e no modelo
restaurativo. Por meio do método hermenêutico baseado na revisão bibliográfica
sobre práticas restaurativas, a utilização da justiça restaurativa mostrar-se-á
durante a pesquisa como um processo de diálogo entre as partes – infrator,
vítima e comunidade – tendente a reparar o dano ocasionado pela infração e se
possível, restaurar a relação entre as partes e o mais importante, a participação
ativa vítima do delito.
Palavras-chave: Justiça Restaurativa; Vitimologia; Processo Penal

Abstract: This paper proposes to analyze the role of the victim in the traditional
criminal process, opposing a new model of justice, called restorative justice that
represents a transformation of the current punitive system of punishment, due to
its principles based on respectful listening, empowerment of the victim and
reparation of the damage. As a problem, one has: How does restorative justice
innovate the traditional penal system regarding the role of the victim in the
process? In this way, the main objective is to identify the possibilities of
participation of the victim in the criminal process and in the restorative model.
Through the hermeneutic method based on the bibliographic review on
restorative practices, the use of restorative justice will be shown during the
research as a process of dialogue between the parties - offender, victim and
community - to repair the damage caused by the infraction and if possible, restore
the relationship between the parties and, most important, the active participation
of the victim.
Key words: Restorative Justice; Victimology; Criminal Process

INTRODUÇÃO

O presente trabalho de revisão bibliográfica, objetiva discutir a importância


da justiça restaurativa frente ao sistema de justiça criminal convencional
brasileiro, buscando demonstrar que, observados os princípios, valores e
procedimentos da justiça restaurativa há uma viável e promissora possibilidade
de que todos os atores do conflito possam participar efetivamente do processo.
1170

Nesse contexto, pretende-se tratar da sua compatibilidade com o ordenamento


jurídico brasileiro, com considerações sobre o papel dos envolvidos no conflito.
A justiça restaurativa consiste em um paradigma não punitivo, baseado
em valores, que tem como principal objetivo a reparação dos danos oriundos do
delito causados às partes envolvidas – vítima, ofensor e comunidade – e, quando
possível, a reconstrução das relações rompidas. Conhecida pela busca por
solução de conflitos de forma mais eficaz do que a justiça convencional, por meio
de técnicas diferenciadas, aliada à criatividade e sensibilidade do facilitador, tem
pacificado diversas relações sociais, mostrando-se um importante meio de aliviar
o sistema judiciário e trazer benefícios com resultados positivos às partes
envolvidas.
Embora ainda pouco utilizada na prática, a justiça restaurativa pode ser
aplicada em crimes graves, sem necessariamente excluir o sistema criminal,
pois, de fato, não deve ser excludente de pena ao agressor. Não há um momento
ideal de iniciar as práticas restaurativas: ela pode ocorrer na fase anterior à
acusação, na fase pós-acusação (antes do processo), assim como na etapa em
juízo, tanto antes do julgamento quanto durante o tempo da sentença.
Desde logo, parece importante destacar o conceito de vítima que será
adotado para os objetivos deste trabalho. Não obstante existem vários conceitos
possíveis, aquele proposto pela Declaração de Princípios Básicos de Justiça
para Vítimas de Crime e Abuso de Poder, adotada pela Organização das Nações
Unidas (ONU) e pela Resolução n. 40/34 da Assembleia Geral da ONU parece
ser adequado para servir de parâmetro.
O recorte temático torna-se necessário para enquadrar a vítima como
indivíduo essencial para a resolução do conflito penal. Para tanto, o estudo não
deve ficar limitado às previsões legais, mas deve também aprofundar no sentido
de vislumbrar se a legislação é cumprida. Durante o desenvolvimento, serão
destacados os dois principais modelos de justiça criminal: o retributivo e o
restaurativo.
Para alcançar o objetivo proposto, o trabalho irá se desenvolver a partir
de uma orientação vitimológica, que servirá de referencial para uma análise
crítica da situação jurídico-penal brasileira, no que tange à participação da vítima
para a resolução dos conflitos penais. Para tanto, as diferentes perspectivas que
dizem respeito à importância da vítima para a solução dos conflitos penais serão
abordadas com relação a cada modelo de justiça criminal, e assim será possível
chegar a uma possível conclusão.

DESENVOLVIMENTO

A justiça criminal possui basicamente dois modelos: o modelo retributivo


e o modelo restaurativo. Estes dois modelos são considerados opostos por
possuírem características que, a princípio, se contrapõem, inclusive quanto ao
papel da vítima, diferenças essas que devem ser ressaltadas, a fim de se obter
uma análise dos contextos possíveis para a participação da vítima na resolução
do conflito penal.
A denominação “justiça retributiva” demonstra que o foco está na infração
cometida e no autor do delito. O que se busca com o processo é retribuir o mal
causado pelo autor, distribuindo-se objetivamente a culpa pelo delito e punindo-
1171

se o infrator. Como consequência, a vítima não tem papel relevante no


desenrolar do processo de resolução do conflito. Neste modelo, valoriza-se a
classificação abstrata do que pode ser considerado como infração delituosa
(comportamento danoso ou imoral) e qual será a sanção imposta para aquele
que praticar tal comportamento.
Zehr, em sua obra “Trocando as lentes- Um novo foco sobre o crime e a
justiça”, percebe o crime como, “[...] uma violação de pessoas e relacionamentos.
Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a
comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e
segurança. ”
Conforme Zehr, na mesma obra supracitada,

A grande diferença entre a justiça restaurativa e a justiça


convencional está na abordagem. A justiça retributiva perguntará:
que lei foi infringida? Quem infringiu? Que castigo merece?
Enquanto, a justiça restaurativa perguntará: quem sofreu o dano?
O que essa pessoa necessita para que esse dano seja reparado?
Quem deve reparar o dano? (ZEHR, 2008, p. 258/259)

Mais uma vez, observa-se que é abordado além do crime a consequência


por ele gerada. Proporciona razoabilidade nas penas aplicadas reintegrando de
modo objetivo não apenas o autor da violência, como também, a vítima.
A determinação da culpa é vista como objetivo a ser buscado, a fim de se
alcançar o objetivo principal que é a aplicação da pena, que representa (ou
deveria representar) não só a retribuição pelo mal causado, mas também
prevenção para novos delitos. Desta forma, o passado (determinação de qual
delito foi cometido e por quem) assume importância ímpar em detrimento do
futuro (efetiva resolução do problema criado pela prática do delito).
O Estado aparece como realizador da justiça e, portanto, como
perseguidor da punição do infrator. Para tanto, poderá iniciar ou prosseguir com
o processo penal (muitas vezes até contra a vontade da vítima). Pode-se dizer
que, a partir desta linha de raciocínio, o Estado passa a ser visto como a vítima
do acontecimento delituoso e a verdadeira vítima é sistematicamente excluída,
suas necessidades e vontades são claramente ignoradas e, por isso, sua
participação será reduzida a de uma testemunha, nos casos em que seu
testemunho é indispensável. Nesse sentido, Hulsman e Celis (1993, p. 82)
afirmam que “o sistema penal rouba o conflito das pessoas diretamente
envolvidas nele”.
Esse afastamento da vítima do seu próprio conflito gerará um novo
processo de vitimização. Marisa Helena D’Arbo Alves de Freitas explica que esta
vitimização secundária:

[…] com certa frequência, resulta mais negativa que a primária,


causa um incremento no dano causado pelo delito, ampliando a sua
dimensão psicológica ou patrimonial. No contato com a
administração da Justiça ou da Polícia, as vítimas experimentam,
muitas vezes, o sentimento de estar perdendo o seu tempo ou mal
gastando o seu dinheiro; outras sofrem incompreensões derivadas
da excessiva burocratização do sistema ou, simplesmente, são
ignoradas. Em alguns casos e com relação a determinados delitos,
1172

as vítimas são tratadas como acusados e sofrem a falta de tato ou


a incredulidade de determinados profissionais. (FREITAS, 2001, p.
159)

Parece que um sistema penal essencialmente punitivo não alcançará


essa resolução global do conflito, pelo menos não enquanto ignorar
sistematicamente a vítima (ou até mesmo gerando nova vitimização) e enquanto
existir a proposta de um modelo adversarial que encoraja o conflito de interesses
entre as partes e não a resolução consensual do conflito.
O modelo restaurativo surge como tentativa de servir como alternativa
para o modelo retributivo, na medida em que este vem sendo cada vez mais
criticado e seus resultados vêm apontando menor sucesso com o passar do
tempo, notadamente com relação à inclusão da vítima.
Com relação à vítima, o modelo de justiça restaurativo representa uma
grande evolução, visto que a satisfação dos seus interesses é parte do objetivo
e não somente um possível reflexo do processo penal. O foco da justiça
restaurativa está nos danos e consequentes necessidades de todos os
envolvidos no conflito: vítima, ofensor e comunidade.
Este simples fato de devolver às pessoas envolvidas o domínio sobre seus
conflitos representa uma verdadeira revolução, visto que é essencial para a
solução do conflito penal que a via adequada seja adotada perante o caso
concreto, afinal, não há sistema fechado que possa propor mecanismos de
eficácia absoluta (HULSMAN, CELIS, 1993, p. 102-109). Assim, o modelo
restaurativo propõe que a análise do ato delituoso seja realizada de forma
individualizada, levando-se em consideração as peculiaridades do caso
concreto. O delito não é considerado por si só, mas em um contexto social,
econômico e político.
O sistema penal brasileiro não é carente de instrumentos que
podem viabilizar a participação da vítima, mas ainda possui um caráter
essencialmente punitivo que limita algumas tentativas de evolução (no sentido
de inclusão da vítima).
Sobre a predominância de práticas punitivas, Braga ressalta que:

“A necessidade de que o direito penal responda ao fato criminoso


por meio da punição é tão forte que a “pena” constitui a própria
denominação desse ramo do direito. A preferência pelo uso do
termo penal em detrimento de criminal evidencia a relação quase
intrínseca entre crime e pena. ” (BRAGA, 2012, p. 31)

Neste mesmo sentido, Pallamolla (2009) ressalta que o sistema de justiça


penal brasileiro é seletivo e estigmatizante na medida em que “expõe sua
incapacidade para desempenhar sua função (declarada) de prevenção e
contenção da criminalidade e, por outro lado, demonstra sua função (real) de
excluir e marginalizar parcela da população social e economicamente mais
vulnerável”.
A “troca de lentes” representa a necessária mudança de foco sobre o
crime e sobre a vítima, a fim de que novos resultados possam efetivamente ser
observados pelos modelos de justiça criminal adotados.
1173

Nota-se que as principais razões para a falta de credibilidade do sistema


judiciário brasileiro são: a ineficácia, a burocracia e a morosidade. As políticas
públicas adotadas pelo Estado brasileiro não têm tido sucesso na contenção da
violência. Desta forma, a repressão e a prevenção anunciadas estão falhando e
o Estado não é visto como ente capaz de resolver os conflitos penais (SICA,
2007, p. 1).
Levando em consideração essas avaliações, parece ser a hora de
valorizar as partes do conflito e pensar que o delito viola pessoas e
relacionamentos e que a justiça pode ser alcançada com a reparação da vítima,
com a recuperação do ofensor e com a reconciliação de ambos. Talvez, a partir
desta nova visão, a justiça possa ser finalmente alcançada.
Estas reflexões coadunam com o que ensinam Antônio García-Pablos de
Molina e Luiz Flávio Gomes

Que se permita o diálogo, sempre que possível, entre o autor do


fato e a vítima; que a vítima seja comunicada de todo o andamento
do feito, dos seus direitos etc.; de outro lado, que a decisão do juiz
criminal, na medida do possível, resolva o conflito, isto é, que
permita a reparação do dano, mesmo porque a prisão, que constitui
o eixo do modelo clássico, não soluciona nada, não resolve o
problema da vítima e tem um custo social muito alto. Por tudo isso,
deve ser reservada para casos extremos (ultima ratio). É preciso,
no entanto, que o discurso de valorização da vítima seja coerente
com as práticas processuais adotadas no cotidiano da justiça penal.
(MOLINHA, GOMES, 2012, p. 503)

Ressalta Eugênio Raúl Zaffaroni (1991, p. 16) que um sistema penal


somente será considerado legítimo quando houver coerência entre o discurso
jurídico penal e o seu valor real na aplicabilidade diária, ou seja, a atuação deve
estar de acordo com o discurso realizado.
A ciência da vitimologia mostra-se como caminho para a mudança na
forma de se desenvolver o processo penal, bem como na abordagem do
problema da criminalidade Estado.

A vitimologia é um campo multidisciplinar por excelência e abrange


vários níveis de atuação em diferentes contextos. Podemos dizer
que repousa em um tripé: estudo e pesquisa, mudança na
legislação e assistência e proteção à vítima. Cada um desses
segmentos é de importância fundamental para uma nova visão do
crime e de todo o sistema penal. (KOSOVSKI, 2000, p.21).

Todavia, enquanto a distribuição da culpa e a sanção do infrator forem os


objetivos do processo penal brasileiro e as ferramentas de solução consensual
forem apenas complementares a estes objetivos (meras etapas), dificilmente
será reconhecida a importância da vítima como personagem principal para a
solução do conflito penal.

CONCLUSÃO

Sem o intuito de exaurir o tema, neste trabalho, a partir da análise dos


modelos de justiça criminal retributivo e restaurativo foi possível vislumbrar que
1174

o modelo restaurativo propõe uma visão de interação da vítima ao processo


penal que pode ser vista como ideal, pois representa a retomada do conflito por
parte da vítima. No Brasil, foi possível identificar que o sistema é
predominantemente punitivista e, por isso, possibilita pouca participação da
vítima na resolução do conflito penal. Diante disso, demonstrou-se a importância
da participação da vítima no processo penal.
Restou evidenciado que a deficiência do Brasil não está na falta de
previsão legal, pois, conforme se tentou demonstrar, as ferramentas de inclusão
da vítima existem; o que está faltando é a incorporação dos valores corretos no
momento da aplicação desses instrumentos. A valorização da vítima somente
será possível a partir do momento em que o diálogo e as formas consensuais de
resolução de conflitos conquistarem o respeito dos operadores do direito e,
consequentemente, da população. Isso, todavia, não será possível enquanto a
participação da vítima for utilizada como um meio para atingir a punição do
infrator e não como um fim em si mesmo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Justiça. Normas e princípios das Nações Unidas sobre


prevenção ao crime e justiça criminal. Brasília: Secretaria Nacional de Justiça,
2009.
BRAGA, Ana Gabriela Mendes. Cultura da paz, mediação e justiça
restaurativa: ferramentas para repensar a relação sociedade-cárcere. In:
BENTES, Hilda Helena; SALLES, Sérgio de Souza.. (Org.). Mediação e
Educação em Direitos Humanos. 1ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p.
27-43.
FREITAS, Marisa Helena D’Arbo Alves de. Responsabilidade do Estado pelos
danos às vítimas de crimes. 2001. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade
de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Franca, 2001.
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penal em questão. Rio de Janeiro: Editora Luam, 1993.
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1175

OS CRITÉRIOS PARA A VERIFICAÇÃO DA DILAÇÃO INDEVIDA DA PRISÃO


PREVENTIVA NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
THE CRITERIA FOR VERIFICATION OF THE UNDUE DILATION OF
PREVENTIVE PRISON IN THE COURT OF JUSTICE OF THE STATE OF
SÃO PAULO

Cristian Lima dos Santos Louback


Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci

Resumo: O estudo tem por objetivo analisar os critérios utilizados pelo Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo para a verificação da dilação indevida da
prisão preventiva. Questiona-se se a jurisprudência do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo se utiliza dos critérios apontados pela doutrina. O método
utilizado na pesquisa foi o hipotético-dedutivo, desenvolvido com base em
pesquisa bibliográfica, principalmente doutrinas, e na pesquisa de
jurisprudência. Conclui-se que, embora a doutrina pátria aponte os critérios para
a verificação da dilação indevida da prisão preventiva, com vistas a se garantir o
direito à razoável duração do processo, o Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo não os adota em todas as suas decisões, bem como adota conceitos
vagos que permitem o decisionismo judicial.
Palavras-chave: Razoável duração do processo. Processo Penal. Prisão
preventiva. Critérios. Dilação indevida.

Abstract: The purpose of this study is to analyze the criteria used by the Court
of Justice of the State of São Paulo to verify the undue delay of preventive
custody. It’s questioned whether the jurisprudence of the Court of Justice of the
State of São Paulo uses the criteria pointed out by the doctrine. The method used
in the research was hypothetico-deductive, developed based on bibliographical
research, mainly doctrines, and in the research of jurisprudence. It’s concluded
that, although the national doctrine points out the criteria for verifying the undue
delay of preventive detention, in order to guarantee the right to the reasonable
length of the proceedings, the Court of Justice of the State of São Paulo doesn’t
adopt them in all its decisions, as well as adopts vague concepts that allow
judicial decision making.
Keywords: Reasonable length of process. Criminal proceedings. Pre-trial
detention. Criteria. Undue delay.

INTRODUÇÃO

O tema da presente pesquisa é a razoável duração da prisão preventiva


e tem por delimitação a verificação da observância desse direito fundamental
pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
O trabalho justifica-se e mostra-se de grande relevância diante da
inexistência de legislação que determine o prazo máximo de duração da prisão
preventiva que deve pautar-se de acordo com o direito fundamental à razoável
duração do processo.
O trabalho tem por objetivo geral verificar se o Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo respeita o direito fundamental à razoável duração do
1176

processo ao julgar as alegações de dilação indevida da prisão preventiva. Tem


por objetivos específicos apontar os critérios adotados pela doutrina para a
verificação da dilação indevida da prisão preventiva e verificar se o Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo adota esses critérios.
Foi utilizado o método hipotético-dedutivo mediante a pesquisa
bibliográfica e os métodos qualitativos e quantitativos, ao passo que foram
analisados acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no período
compreendido entre 06 de outubro de 2017 e 05 de outubro de 2018, que
contenham em sua ementa os termos “razoável duração do processo” e “prisão
preventiva” que se encontram na classe “habeas corpus”.

DESENVOLVIMENTO

O Código de Processo Penal, Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de


1941, ao entrar em vigor, instituiu em seu art. 311 a prisão preventiva como uma
modalidade de prisão processual. Desde seu texto original o Código de Processo
Penal omitiu-se quanto ao prazo máximo de duração da prisão preventiva. A
ausência de prazo máximo para a duração da prisão preventiva e a possibilidade
de se manter alguém encarcerado por tempo indeterminado em razão dessa
omissão foi um tema considerado de tanta importância que passou a ser inserido
em tratados internacionais de direitos humanos, como ocorreu com o Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1966, e o Pacto de San José
da Costa Rica, de 1969.
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos em seu artigo 9º, item
3, dispôs sobre as garantias mínimas que toda pessoa acusada terá direito
durante o processo, dentre elas, a de ser julgada sem adiamentos indevidos.
(ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 1966). O Pacto de San José da
Costa Rica, por sua vez, em seu artigo 7.5, dispôs que toda pessoa detida ou
retida deve ser conduzida à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada
pela lei a exercer funções judiciais, sem demora, bem como sobre o direito que
toda pessoa tem de ser julgada dentro de um prazo razoável ou ser posta em
liberdade, sem prejuízo de que o processo prossiga. (ORGANIZAÇÃO DOS
ESTADOS AMERICANOS, 1969).
O Estado brasileiro obrigou-se a cumprir tais determinações à medida que
integrou ao direito pátrio o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos pelo
Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992 e o Pacto de San José da Costa Rica
pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992. Assim, desde 1992 o Brasil é
obrigado a observar a razoável duração dos processos. No entanto, ainda que
já tivesse se obrigado, a Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de
2004, acrescentou ao art. 5º, da Constituição Federal o inciso LXXVIII, que trata
da razoável duração do processo: “a todos, no âmbito judicial e administrativo,
são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a
celeridade de sua tramitação.” (BRASIL, 1988). Ingo Wolfgang Sarlet (2009, p.
32) ensina que os direitos humanos acabam sendo transformados em direitos
fundamentais pelo modelo positivista para adquirirem hierarquia jurídica e
caráter vinculante a todos os poderes constituídos no âmbito de um Estado
Constitucional.
1177

O Código de Processo Penal sofreu diversas alterações no tocante à


prisão preventiva, a exemplo da Lei nº 5.349, de 03 de novembro de 1967, da
Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994 e da Lei nº 12.403, de 04 de maio
de 2011, mas nenhuma dessas alterações determinou que a prisão preventiva
tivesse um prazo máximo de duração. A primeira tentativa de se instituir prazo
máximo de duração da prisão preventiva ocorreu por ocasião do Projeto de Lei
nº 4.793/2009, que previa a instituição dos prazos de até 30 dias na fase de
inquérito policial e de até 120 dias na fase de instrução criminal, possibilitando a
prorrogação, por iguais períodos, na hipótese de extrema e comprovada
necessidade. No entanto, o referido Projeto de Lei foi arquivado em 2011 em
razão do encerramento da legislatura ao final do ano de 2010.
Atualmente tramita o Projeto de Lei nº 7.741/ 2017, que novamente
propõe a instituição de prazos máximos de duração da prisão preventiva, sendo
de 120 dias quando o réu estiver preso, prorrogáveis por até igual período pela
complexidade da causa ou por fato procrastinatório atribuível ao réu, e o
reexame necessário quando a prisão ultrapassar 60 dias. O referido projeto, em
30 de maio de 2018, recebeu da Comissão de Constituição e Justiça o parecer
pela constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela
aprovação. Tramita, ainda, o Projeto de Lei nº 8.045/2010, que trata do Novo
Código de Processo Penal, que prevê o prazo máximo de 180 dias de prisão
preventiva, se decretada no curso da investigação ou antes da sentença
condenatória recorrível e de 360 dias, se decretada ou prorrogada por ocasião
da sentença condenatória recorrível.
A omissão legislativa quanto à duração da prisão preventiva há muito é
um tema tormentoso e os primeiros passos no que se refere à verificação da
dilação indevida foram dados pela Comissão Europeia de Direitos Humanos, no
caso Wemhoff v. Alemanha, que estabeleceu a teoria dos sete critérios para a
verificação da dilação indevida: a) a duração da prisão cautelar; b) a duração da
prisão cautelar em relação à natureza do delito, à pena fixada e à provável pena
a ser aplicada em caso de condenação; c) os efeitos pessoais que o imputado
sofreu, tanto de ordem material como moral ou outros; d) a influência da conduta
do imputado em relação à demora do processo; e) as dificuldades para a
investigação do caso (complexidade dos fatos, quantidade de testemunhas e
réus, dificuldades probatórias etc); f) a maneira como a investigação foi
conduzida; g) a conduta das autoridades judiciais. (PASTOR, 2002, p. 112).
No entanto, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos rechaçou a teoria
dos sete critérios da Comissão Europeia de Direitos Humanos e passou a utilizar-
se de outra teoria que, embora contenha três critérios, baseou-se na teoria do
Tribunal Europeu de Direitos Humanos: a) complexidade do caso; b) a atividade
processual do interessado (imputado); c) a conduta das autoridades judiciárias.
(LOPES JUNIOR e BADARÓ, 2009, p. 40).
No Brasil, Aury Lopes Junior defende a posição de que os Tribunais
brasileiros devem adotar quatro critérios para a definição da dilação indevida da
prisão preventiva: a) complexidade do caso; b) atividade processual do
interessado (imputado), que obviamente não poderá se beneficiar de sua própria
demora; c) a conduta das autoridades judiciárias como um todo (polícia,
Ministério Público, juízes, servidores etc); d) princípio da razoabilidade. (2013, p.
199).
1178

Considerando a adoção dos quatro critérios apresentados por Aury Lopes


Junior, passa-se à análise de alguns julgados do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo e como meio de limitação da pesquisa, foram examinados
acórdãos que possuem em sua Ementa os termos “razoável duração do
processo” e “prisão preventiva”, que se encontram na Classe Habeas Corpus,
que tenham sido julgados entre 06 de outubro 2017 e 05 de outubro de 2018 e,
cujo órgão julgador tenha sido qualquer órgão do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo com competência para causas criminais.
Tal pesquisa, ordenada por ordem de publicação de acórdão, retornou 50
resultados. Dos 50 acórdãos 17 foram prolatados pela 10ª Câmara de Direito
Criminal; 16 foram prolatados pela 3ª Câmara de Direito Criminal; 8 foram
prolatados pela 15ª Câmara de Direito Criminal; 4 foram prolatados pela 2ª
Câmara de Direito Criminal; 2 foram prolatados pela 4ª Câmara de Direito
Criminal; enquanto a 11ª, a 13ª e a 16ª Câmaras de Direito Criminal prolataram
1 acórdão cada.
Considerando ser o objetivo deste estudo a análise da jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acerca da razoável duração da
prisão preventiva e considerando que a pesquisa não retornou acórdãos de
todas as Câmaras de Direito Criminal do referido Tribunal, com o objetivo de
avaliar uma maior variedade de decisões, optou-se por analisar, dentro do
resultado da pesquisa, um acórdão de cada Câmara, utilizando-se do acórdão
mais recente no caso das Câmaras que retornaram mais de um resultado,
totalizando a análise de oito acórdãos.
Assim, passa-se à análise dos acórdãos em ordem crescente de Câmaras
de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
No julgamento do Habeas Corpus nº 0024039-37.2018.8.26.0000, de
relatoria da Desembargadora Kenarik Boujikian, da 2ª Câmara de Direito
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi alegado pelo
impetrante constrangimento ilegal pelo excesso de prazo para encerramento da
instrução processual do paciente que se encontrava preso preventivamente.
Em sua análise, ao denegar a ordem, a Relatora afirma que: “ao contrário,
noto que o feito tramita regularmente, porquanto inexistentes largos intervalos
de tempo notórios para realização de quaisquer dos atos processuais.” (TJSP;
HC 0024039-37.2018.8.26.0000; Relator (a): Kenarik Boujikian; 2ª Câmara de
Direito Criminal; Data do julgamento: 06/08/2018; V.U.).
Assim, a relatora não se utiliza de nenhum dos critérios apontados pela
doutrina e sequer explica o termo “largos intervalos de tempo notórios” que utiliza
para embasar sua decisão que denegou a ordem.
No julgamento do Habeas Corpus nº 2073733-38.2018.8.26.0000, de
relatoria do Desembargador Airton Vieira, da 3ª Câmara de Direito Criminal do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi alegado constrangimento ilegal
pelo excesso de prazo para encerramento da instrução do processo-crime dos
pacientes que se encontravam presos preventivamente. Em sua análise, ao
denegar a ordem, o Relator afirma que a prisão preventiva não possui prazo,
como acontece com as prisões em flagrante e temporária, podendo o acusado
permanecer preso por toda a instrução. Analisa largamente as prisões
preventivas na Espanha, França e Portugal, bem como analisa o ultrapassado
entendimento da somatória aritmética dos prazos processuais no Brasil.
1179

O Relator denega a ordem com base na soma das penas comparadas ao


tempo de prisão preventiva afirmando que: “[...] o tempo em que se encontram
presos cautelarmente não é nada desproporcional (nem de longe) [...]” (TJSP;
HC 2073733-38.2018.8.26.0000; Relator (a): Airton Vieira; 3ª Câmara de Direito
Criminal; Data do julgamento: 22/05/2018; V.U.).
Ademais, o Relator entende ser o caso complexo por envolver dois réus
e não ter havido qualquer demora injustificada no processo-crime por parte da
autoridade coatora, mas não aclara o fato de entender ser o tempo de prisão
“nada desproporcional”.
No julgamento do Habeas Corpus nº 2153100-14.2018.8.26.0000, de
relatoria da Desembargadora Ivana David, da 4ª Câmara de Direito Criminal do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi alegado pelo impetrante
constrangimento ilegal pelo excesso de prazo pela redesignação da sessão
plenária do Tribunal do Júri do paciente que se encontrava preso
preventivamente.
Em sua análise, ao denegar a ordem, a Relatora do afirma que:

a inobservância da duração razoável do processo não se traduz


mediante análise aritmética dos prazos, mas deve ser
compreendida à luz da complexidade da marcha processual no
caso concreto, impondo-se verificar alguma desídia do Poder
Judiciário ou da Acusação. (TJSP; HC 2153100-14.2018.8.26.0000;
Relator (a): Ivana David; 4ª Câmara de Direito Criminal; Data do
julgamento: 25/09/2018; V.U.).

Dessa forma, a Relatora vincula a verificação da excessiva duração da


prisão preventiva apenas à conduta da autoridade judiciária.
No julgamento do Habeas Corpus nº 2165367-18.2018.8.26.0000, de
relatoria do Desembargador Nelson Fonseca Júnior, da 10ª Câmara de Direito
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi alegado pelos
impetrantes constrangimento ilegal pelo excesso de prazo da prisão preventiva
do paciente que soma nove meses sem que a instrução criminal tenha se
iniciado.
Em sua análise, ao denegar a ordem, o Relator afirma que não há
constrangimento ilegal se a demora não for causada a partir da atuação
negligente da autoridade judiciária ou do Poder Judiciário, fazendo menção a um
único critério de verificação da dilação indevida.
No julgamento do Habeas Corpus nº 0000505-64.2018.8.26.0000, de
relatoria do Desembargador Salles Abreu, da 11ª Câmara de Direito Criminal do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi alegado pela impetrante
constrangimento ilegal pelo excesso de prazo da prisão preventiva do paciente
que estava preso há mais de dois anos sem que se houvesse encerrado a
instrução criminal.
Em sua análise, ao conceder a ordem, o Relator afirma que o
retardamento da instrução não pode ser atribuído à defesa do paciente; que não
se trata de processo de grande complexidade; que o excesso de prazo verificado
é injustificável e extrapola todos os limites da razoabilidade. Portanto, foram
analisados três dos quatro critérios, resultando na concessão da ordem.
1180

No julgamento do Habeas Corpus nº 2188427-54.2017.8.26.0000, de


relatoria do Desembargador Moreira da Silva, da 13ª Câmara de Direito Criminal
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi alegado pela impetrante
constrangimento ilegal pelo excesso de prazo na formação da culpa da paciente
que estava presa preventivamente.
Em sua análise, ao denegar a ordem, o Relator afirma que o fato de ter
havido redesignação da audiência que ocorreria após quatro meses da prisão
não ofenderia o princípio da razoável duração do processo, posto que a
audiência já estaria remarcada para o dia seguinte ao julgamento do Habeas
Corpus. No entanto, a menção ao princípio da razoável duração do processo foi
feita de forma genérica, sem detalhar no que consiste tal princípio.
No julgamento do Habeas Corpus nº 2242045-11.2017.8.26.0000, de
relatoria da Desembargadora Kenarik Boujikian, da 15ª Câmara de Direito
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi alegado pela
impetrante constrangimento ilegal pelo excesso de prazo na formação da culpa
da paciente que estava presa preventivamente há mais de 190 dias sem que seu
patrono fosse intimado para apresentação da resposta à acusação.
Em sua análise, ao conceder a ordem, a Relatora afirma que a prisão há
mais de 190 dias sem que tenha havido a intimação do defensor fere o princípio
da razoabilidade e da proporcionalidade, caracterizando o constrangimento
ilegal por excesso de prazo. Assim, a Relatora se utilizou da razoabilidade e da
proporcionalidade, sem detalhar a aplicação de cada um dos conceitos e sem se
referir aos outros critérios apontados pela doutrina.
No julgamento do Habeas Corpus nº 2250531-82.2017.8.26.0000, de
relatoria do Desembargador Newton Neves, da 16ª Câmara de Direito Criminal
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi alegado pela impetrante
constrangimento ilegal pelo excesso de prazo na formação da culpa da paciente
que estava presa.
Em sua análise, ao conceder a ordem, o Relator afirma que não é somente
o tempo de tramitação do feito que pode ensejar o reconhecimento do
constrangimento, devendo decorrer de outros fatores, dentre eles o descaso do
juiz, não vislumbrado no presente caso. Assim, o Relator referiu-se a dois dos
critérios apontados pela doutrina, mas afirmou que deve haver um acúmulo dos
critérios, sem aclarar de quantos critérios se necessita para o reconhecimento
da dilação indevida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil obrigou-se a observar a razoável duração do processo ao ser


signatário dos tratados de direitos humanos que versam sobre essa matéria, bem
como ao dispor no art. 5º de sua Constituição esse direito fundamental.
A razoável duração do processo deve ser observada na duração da prisão
preventiva que não possui prazo máximo de duração estipulado em lei. Tal direito
deve ser observado ainda que os projetos de lei que visam alterar as disposições
da prisão preventiva ou instituir um novo Código de Processo Penal não tenham
sido aprovados.
Diante da ausência de lei que determine a duração máxima da prisão
preventiva, critérios devem ser adotados para que se cumpra o determinado pela
1181

Constituição Federal, no entanto, a pesquisa demonstrou que o Tribunal de


Justiça do Estado de São Paulo não segue a doutrina pátria em sua
integralidade.
A pesquisa demonstrou que as decisões do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo, em sua maioria, se utilizam de termos vagos como “largos
intervalos de tempo notórios”, afirmações vagas como “o tempo de prisão não é
nada desproporcional”, menções ao princípio da razoável duração do processo
de forma genérica e fundamentam-se na razoabilidade e na proporcionalidade
sem diferenciá-las.
Há decisões que se utilizam de alguns dos critérios, mas por vezes de
apenas um deles, outras vezes de apenas dois e até decisões que sugerem que
seja necessário um acúmulo dos critérios, mas sem mencionar quais são os
critérios, nem a regra para o acúmulo.
Verifica-se, portanto, uma deficiência nas decisões que, em sua maioria,
não enfrentam o tema adequadamente, não adotam os critérios apontados pela
doutrina e, quando os adotam, o fazem parcialmente e sem regras definidas.
Ademais, essa deficiência é percebida, também, nas decisões que se utilizam
de termos e afirmações vagas.
Pode-se considerar, portanto, que há ausência de fundamentação nas
decisões, o que permite que elas adentrem ao campo do decisionismo judicial e
que, em razão disso, não respeitem o direito fundamental à razoável duração do
processo e há, assim, falhas nas verificações das dilações indevidas das prisões
preventivas no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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Livraria do Advogado Editora, 2009.
1183

PROJETO DE LEI Nº. 5.398/2013 E A ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA


CASTRAÇÃO QUÍMICA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
RAFT LAW n°. 5.398 / 2013 AND THE SOCIOLOGICAL ANALYSIS OF
CHEMICAL CASTRATION IN BRAZILIAN LEGAL ORDINANCE

Giovanna Hingreadh do Nascimento Oliveira


Mélody Higino do Bonfim
Eudes Vitor Bezerra

Resumo: O presente projeto, buscou de forma sucinta demonstrar o motivo de


alguns pedófilos serem autores de crimes sexuais, explicando de forma clara e
concisa o que é a pedofilia e as diversidades de perspectivas sobre a aplicação
da castração química, método que consiste em uma forma de privar o paciente
de impulsos sexuais, por intermédio de medicamentos hormonais, como forma
punitiva àqueles que cometerem crimes sexuais. Apresentando assim, as
principais ideias contra a aplicação do sistema e as principais vertentes
favoráveis à mudança legislativa, através do método dialético, empregando os
fatos à um contexto social, onde as opiniões se divergem, dando origem assim,
a novos questionamentos que requerem soluções eficientes e adequadas a essa
problemática.
Palavras-Chave: Pedofilia e castração química.

Abstract: This project has succinctly sought to demonstrate the motive of some
pedophiles being perpetrators of sexual crimes, explaining clearly and concisely
what is pedophilia and the different perspectives on the application of chemical
castration, a method that consists of a way of depriving the patient of sexual
impulses, through hormonal drugs, as a punitive way for those who commit
sexual crimes. This presenting the main ideas against the application of the
system and the main aspects favorable to legislative change, using the dialectical
method, using the facts to a social context, where opinions diverge, thus giving
rise to new questions that require efficient solutions and appropriate to this
problem.
Keywords: Pedophilia and chemical castration.

INTRODUÇÃO

Este projeto abordará brevemente a possibilidade da aplicação da


castração química no Brasil como punição àqueles que cometerem crimes
sexuais, tema esse, objeto de polêmica, diversidade de opiniões e correntes
doutrinárias, bem como detentor de relevante clamor social, consequência da
impunidade que algumas situações apresentam no País e retrato de uma
sociedade que anseia por respostas mais eficazes dos Poderes Estatais.
A metodologia que será utilizada ao longo do trabalho, por melhor se
amoldar ao estudo, é a dialética empregada em pesquisa qualitativa, de forma,
a qual coloca os fatos em um contexto social, para que se observe as
contradições que geram novas contradições, e assim, requerem novas soluções.
Inicialmente se faz mister compreender o conceito de Pedofilia,
erroneamente divulgado nos meios de comunicação. Essa será a preocupação
1184

do primeiro ponto do projeto, quebrar rótulos estigmatizantes e explicar de forma


clara e concisa o que é a pedofilia. Demonstrará ainda, sucintamente, o motivo
de alguns pedófilos serem também autores de crimes sexuais.
Já o segundo item do texto delimitará o assunto, ocupando-se de
apresentar o tema de estudo do trabalho, a castração química em si, irá levantar,
inclusive, conceitos médicos e despertará a curiosidade acerca dos debates
inerentes ao assunto, que serão abordados nos pontos seguintes.
O terceiro e o quarto capítulos do trabalho se encarregarão de apresentar,
respectivamente, as principais ideias contra a aplicação do sistema e as
principais vertentes favoráveis à mudança legislativa. Restará presente, desta
forma, a contradição de ideias, e, consequentemente, a analise de pontos de
vista diversos acerca do objeto do trabalho.
Após os itens elencados acima, apresentar-se-á uma análise conclusiva
do estudo realizado, com embasamento nas correntes que forem levantadas
durante este, bem como a listagem de todas as referências que foram utilizadas
par a construção do projeto.

I. PEDOFILIA

A pedofilia é tratada, que pode ser conceituada como o desejo sexual de


adultos com relação a crianças e adolescentes, no âmbito da saúde é
classificada como uma doença, especificamente como uma parafilia sexual,
cadastrada sob o CID 10 - F65.4, incluindo-se em um grupo que abrange
diversas práticas sexuais consideradas anormais, o que as diferencia é que nem
todas podem levar à prática de crimes, como é o caso da pedofilia.

“a psiquiatra especializada em pedofilia – Patrice Dunaigre – refere


que a pedofilia consiste em manifestações e práticas de desejo
sexual que alguns adultos desenvolvem em relação a criança de
ambos os sexos na pré-puberdade.” Martins (1999, p. 9)

Sendo assim, o conceito midiático de que pessoas são presas por


pedofilia cai por terra, o que ocorre, na verdade, é que ao exteriorizar o desejo
por crianças e/ou adolescentes pré-púberes o agente pode praticar alguns dos
fatos típicos descritos na legislação brasileira a esse respeito. As principais
referências legais nesse sentido são o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) e o Código Penal (CP), que preveem, respectivamente, crimes como a
divulgação de imagens de cunho sexual envolvendo crianças e adolescentes,
bem como o mais grave dentre os crimes dessa natureza, o estupro de
vulnerável.
Em suma, o pedófilo não necessariamente comete algum crime, bem
como nem todos os agentes que incorrem nessas práticas são acometidos dessa
parafilia. Como nos explica alguns dos estudiosos que se ocupam do assunto:

De fato, alguns indivíduos portadores de Pedofilia não cometem


quaisquer atos sexuais contra crianças ou adolescentes; da mesma
forma, muitos dos indivíduos que cometem atos sexuais contra
crianças e adolescentes podem ser portadores de outros
transtornos psiquiátricos que não a Pedofilia (Baltieri & De
Andrade, 2008; Bogaerts et al., 2008; Fagan et al., 2002)
1185

Diante do quadro apresentado, surge como uma hipótese de cura, e


consequente diminuição dos crimes praticados com essa vertente, conhecida
como castração química, que consiste na verdade em um tratamento inibidor da
libido, rodeada de polêmicas, clamor social e falta de informação, sob a qual nos
debruçaremos detalhadamente no capitulo seguinte.

II. CASTRAÇÃO QUÍMICA

A “castração química” como é popularmente chamada é um método, já


aplicado em alguns países, como a Inglaterra, a França e a Alemanha, por
exemplo. Apesar do nome, que acaba por ocasionar euforia nas discussões
sobre o assunto, o método consiste na administração de substâncias químicas
que diminuem a libido e acaba por controlar os impulsos sexuais, no caso dos
pedófilos, contra crianças e adolescentes.
Tal método se aplica àqueles que cometeram crimes sexuais, visando
constranger ou prevenir sua reincidência. Como explica MURPHY (2007), este
procedimento se dá, em muitos países, pela injeção da DepoProvera, um dos
nomes comerciais do acetato de medroxiprogesterona, hormônio feminino. A
lista de efeitos colaterais da Depo-Provera é extensa e pode levar o condenado
à morte: incluindo doenças cardiovasculares, osteoporose, ginecomastia,
depressão, dores na cabeça, náusea, alterações na fala, trombose, infecções,
aumento da incidência de câncer etc.

Cássio Dihil (2015) afirma que “[...] a castração química é uma


forma temporária de castração concebida por medicamentos
hormonais”. Segundo referido autor, trata-se de “[...] uma medida
preventiva ou uma forma de punição àqueles que cometem crimes
sexuais violentos, como o estupro ou abuso sexual infantil”.
(DIHIL, 2015).

Inicialmente trata-se de algo lógico e simples, se há uma doença, no caso


a pedofilia, deve se buscar uma cura ou ao menos uma forma de controle,
principalmente quando se diz respeito à transtornos que atingem
prejudicialmente as demais pessoas da sociedade.
Pelo contrário, sempre que o assunto surge gera desconforto e inúmeras
discussões, entram em questionamento a dignidade da pessoa humana, tanto
da vítima quanto do acusado; a eficácia do procedimento; se sua aplicação deve
ser imputada, como pena pelo crime, ou se deve ser facultativa, por se tratar de
uma doença e dever-se respeitar a escolha de quem sofre com a doença, entre
outros.
Essa discussão esbarra inevitavelmente com diversos princípios da
constituição, e por este motivo projetos de lei que versam sobre o assunto, como
o de nº 5.398/2013 que tem como uma das propostas a implementação dessa
técnica no Brasil têm suas negativas sustentadas na inconstitucionalidade
existente nesse instituto. O próximo capítulo aborda esses projetos de forma
mais detalhada.
1186

III. TENTATIVAS DE INCORPORAÇÃO DO INSTITUTO AO


ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O Projeto de Lei nº 5.398/2013 pretende estabelecer uma pena maior para


os crimes de estupro e estupro de vulnerável, exigindo ainda que o condenado
por esses crimes conclua tratamento químico voluntário para inibição do desejo
sexual como requisito para obtenção de livramento condicional e progressão de
regime. Este projeto foi apresentado protocolado em 2013 pelo então Deputado
Federal do Rio de Janeiro, Jair Messias Bolsonaro (PSL).
Apensados a estes encontram-se os projetos de lei nº 6.363/2013 e
9.728/2018, que visam, respectivamente, estabelecer a castração química como
causa de redução da pena nos crimes sexuais contra vulnerável e dispor sobre
as possibilidades de tratamento inibidor da libido em criminosos sexuais.
Os referidos processos tramitam como ação ordinária, e em outubro de
2018 encontra-se no Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania –
CCJC, tendo como relator designado o Deputado Fábio Sousa (PSDB-GO)
Dentre os muitos argumentos contrários a projetos que buscam legalizar
esse tratamento como forma de pena para criminosos sexuais, dois se
destacam. O primeiro diz respeito a inconstitucionalidade dessa proposta de lei,
uma vez que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, XLVII, “e” veda
expressamente a existência de penas cruéis, o que, para alguns estudiosos
como Adriana Cecílio, advogada constitucionalista, basta para invalidar perante
a Carta Magna que rege nosso país, pois por penas cruéis entende-se qualquer
pena que invada o corpo de quem a ela será imputado.
Já o segundo argumento usa uma lacuna no texto do projeto de lei para
firmar-se, uma parte da proposta de Bolsonaro é que o condenado só poderá
voltar à liberdade se já tiver concluído, com resultado satisfatório, o tratamento
químico voluntário para inibição do desejo sexual. A falha se encontra quando
se exige a conclusão do tratamento, que, na realidade, acaba por não existir,
haja vista que "a castração química é um tratamento perene com um
medicamento que a pessoa usa de tempos em tempos. Se ela para de usar a
medicação, em um mês pode retomar o desejo sexual", conforme diz Aderbal
Vieira Junior, psiquiatra e coordenador do Ambulatório de Tratamento de
Dependências e Comportamentos do Programa de Orientação e Atendimento a
Dependentes da Unifesp.
Toma-se por óbvio que o tema da castração química atrai também
opiniões positivas e defensores do tema, como o próximo ponto brevemente
apresenta.

IV. VERTENTES FAVORÁVEIS À CASTRAÇÃO QUÍMICA

O principal embasamento dos argumentos favoráveis a aplicação da


castração química como forma de punição, ou de condição para determinados
relaxamentos no cumprimento da pena de crimes sexuais, está na comparação
com os países em que essa realidade já existe. Como Scott e Holmberg
apontam, o nível de reincidência nestes crimes caiu drasticamente nos Estados
Unidos da América, onde a medida é, na maioria dos estados que a utilizam,
1187

condição para a concessão de liberdade condicional, como pode ser


observado:

“a reincidência para crimes sexuais caiu de 75% para 2% nos


Estados Unidos da América e a castração química foi aderida em
nove estados, sendo que na maioria deles o pedido de liberdade
condicional deve ter a submissão desse tipo de tratamento”. Scott
e Holmberg (2015)

Alguns estudiosos apontam ainda que, ao incluir a castração química no


ordenamento jurídico brasileiro, o imputado ao criminoso seria, de certa forma,
semelhante ao crime por este cometido, sua sexualidade seria afetada, bem
como ao praticar o crime ele manchou permanentemente a da vítima, como nos
aponta Baltieri:

O método de castração química, a partir de tal substrato sócio-


psíquico, apresenta-se como solução acertada quanto ao problema,
visto que o ofensor sexual terá uma pena assemelhada ao que
cometeu (Baltieri 2005).

Desse modo, ocorre uma punição proporcional e, em tese, capaz de


levar o agente à reflexão antes de cometer o crime, pois sua dignidade sexual,
por assim dizer, passa a correr um risco, como a da vítima.
Essas são apenas duas das dezenas de correntes doutrinárias que
apoiam essa modificação legislativa e que serão, oportunamente, abordadas
em trabalhos futuros, tanto quanto as demais vertentes contra o sistema que
não foram contempladas no item anterior.

V. CONCLUSÃO

Após a análise apresentada neste trabalho torna-se claro o porquê da


existência de diversas polêmicas acerca do assunto. É uma discussão que
enfrenta diretamente os direitos humanos, que imperam em nosso País e fora
dele.
Vale ressaltar ainda o clamor social envolto no tema, que se justifica
diante do atual quadro de impunidade, cada vez mais os cidadãos buscam
respostas jurídicas e legislativas dotados de maior poder punitivo,
principalmente no que tange aos crimes sexuais, causadores de grande revolta
e repulsa sempre que noticiados, principalmente quando praticados contra
crianças e/ou adolescentes.
Os argumentos, tanto os que apoiam quanto os que refutam o tema
delimitado são consistentes e inúmeros, merecedores de profundas análises e
contraposições. Mas, fato é que aportar-se na dignidade da pessoa humana
inerente ao agressor, quando este violou bruscamente a dignidade de outrem
se torna um meio extremamente enfraquecido de argumentação.
A inserção da possibilidade da castração química no sistema jurídico
brasileiro é uma ideia viável, desde que não como forma de penalização ou
uma regra para a concessão de alguns benefícios relacionados ao código
1188

penal, respeitando dessa forma a vedação constitucional de formas cruéis de


pena, também citada ao longo deste projeto.
Ora, se não como pena, um meio de implementação deste instituto é o
facultativo. Desse modo, quando o indivíduo acometido por impulsos sexuais
que possam levar à prática de crimes dessa natureza, tem ampla possibilidade,
medica e legal, de cuidar de seus transtornos e tentar controla-los, tendo como
auxílio a administração de medicamentos, a psiquiatria e a psicologia.
Assim, restaria estabelecido o equilíbrio entre os argumentos prós e
contras a prática, possibilitando ainda a análise da efetividade do tratamento
em território brasileiro, levando à consequentes estudos e modulações de sua
aplicação.

VI. REFERÊNCIAS

AMBITO JÚRIDICO: http://www.ambito-


juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12902&revista_ca
derno=3. Acesso em 20 de outubro de 2018 às 14:55.
BALTIERI, D. A., & de Andrade, A. G. (2008). Alcohol and drug consumption
among sexual offenders. Forensic Science International, 175(1), 31-35.
BOGAERTS, S., Daalder, A., Vanheule, S., Desmet, M., & Leeuw, F. (2008).
Personality disorders in a sample of paraphilic and nonparaphilic child
molesters: a comparative study. International Journal of Offender Therapy
and Comparative Criminology, 52(1), 21-30.
FAGAN, P. J., Wise, T. N., Schmidt, C. W., Jr., & Berlin, F. S. (2002).
Pedophilia. The Journal of the American Medical Association, 288(19):
2458-2465.
MURPHY, C. “Can drugs help sex offenders?” BBCNews, 13/jun/2007.
Disponível em http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/6748789. stm. Acesso em 20
de outubro de 2018 às 14:21.
ROSA, JCF. Pedofilia. Rev Curso Direito. 2001, 2(2):35-51.
http://each.uspnet.usp.br/rgpp/index.php/rgpp/article/viewFile/13/15. Acesso em
20 de outubro de 2018 às 13:51.
UOL: https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2018/07/10/por-que-o-pl-de-
bolsonaro-nao-e-a-melhor-resposta-para-o-estupro-no-brasil.htm. Acesso em 20
de outubro de 2018 às 13:34.
1189

TRANSTORNOS DISSOCIATIVOS ENTRE VÍTIMAS DE ASSÉDIO SEXUAL:


FALSAS MEMÓRIAS, AMNÉSIA DISSOCIATIVA E PSICOLOGIA DO
TESTEMUNHO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
DISSOCIATIVE DISORDERS AMONG VICTIMS OF SEXUAL HARASSMENT:
FALSE MEMORIES, DISSOCIATIVE AMNESIA AND PSYCHOLOGY OF
EYEWITNESS TESTIMONY IN BRAZILIAN CRIMINAL PROCEDURE LAW

Lívia de Souza Nunes

Resumo: O colhimento de depoimentos durante a persecução penal ainda é,


hodiernamente, uma das ferramentas mais utilizadas para a elucidação de
autoria e materialidade de crimes contra a dignidade sexual. O presente trabalho
busca observar quais os efeitos de transtornos dissociativo sobre a memória e,
consequentemente, sobre o testemunho em juízo; busca explorar, sob a ótica
da vitimologia, quais as possíveis alternativas capazes de auxiliar na extração
de fragmentos retidos na memória das vítimas que são acometidas por tal
condicionamento psicológico, desencadeado como mecanismo de defesa contra
o sofrimento físico ou emocional vivenciado. Verificar-se-á que o presente
resumo propõe uma abordagem interdisciplinar entre a Criminologia, a
Psicologia Jurídica e o Direito Processual Penal, analisando-se questões
relativas à integridade memorial da vítima e os principais desafios a serem
superados em sede de testemunho e processo penal.
Palavras-chave: Psicologia do Testemunho; Direito Processual Penal;
Vitimologia.

Abstract: The collection of testimony during a criminal prosecution still is, today,
one of the most used tools for elucidating authorship and materiality of crimes
against sexual dignity. The present work seeks to observe the effects of
dissociative disorders on memory and, consequently, on testimony in court;
seeks to explore, from the point of view of victimology, the possible alternatives
capable of assisting in the extraction of fragments retained in the memory of
victims affected by such psychological conditioning, triggered as a defense
mechanism against experiences of physical or emotional suffering. It will be
verified that this summary proposes an interdisciplinary approach between
Criminology, Legal Psychology and Criminal Procedural Law, analyzing
questions related to the memorial integrity of the victim and the main challenges
to be overcome in testimony and criminal procedure.
Keywords: Psychology of Eyewitness Testimony; Criminal Procedural Law;
Victimology.

INTRODUÇÃO

Uma crença popular bastante difundida é aquela que alega a íntima


relação entre fortes emoções e a recordação de um determinado evento. Por
exemplo, uma pessoa que está prestes a se casar costuma ter a convicção que
o dia do casório será inesquecível, tamanha a ansiedade e a emoção envoltas
na cerimônia. Noutro giro, uma pessoa que vivencia uma situação traumática
como um assalto a mão armada também pode crer que jamais esquecerá o
1190

tormento, a angústia, o medo sentido ao ter sua segurança posta em risco. Não
chega a ser um equívoco pensar de tal forma. Entretanto, não pode se afirmar
que se trata de uma regra; todo indivíduo, todo sistema cognitivo, seguramente,
reage de forma diferente frente a um estímulo.
Não há como iniciar a abordagem deste resumo sem antes repisar a
crucial importância dos estudos empreendidos pelas ciências biológicas, em
especial à neurociência, quanto a tema, sem os quais não poderíamos,
primeiramente, conceituar “memória”.
Podemos afirmar, graças a esses estudos, que a memória é resultado de
um processo que envolve estímulos tanto endógenos quanto exógenos,
associando aspectos biológicos e empíricos, capazes de originar uma ordem de
resgate consistente na “construção de uma imagem mental” (ALTOÉ; ÁVILA,
2017, p.258). Os autores, sobre o tema, trazem lição
de Iván Antonio Izquierdo, Jociane de Carvalho Myskiw, Fernando Benetti e
Cristiane Regina Guerino Furini (2013, p.12):
Todas as memórias são associativas: se adquirem através da ligação
entre um grupo de estímulos (um livro, uma sala de aula) e outro grupo de
estímulos (o material lido, aquilo que se aprende; algo que causa prazer ou
penúria). O do segundo grupo, que é de maiores consequências biológicas,
chama-se estímulo condicionado ou reforço. Em algumas formas de
aprendizado, associa-se um grupo de estímulos com a ausência do outro ou de
qualquer outro.
Tão intrigante e enigmático quanto o processo de composição de uma
memória, é o que resulta no esquecimento dela. Gustavo Noronha Ávila e Rafael
Altoé (2017, p.259) asseveram:
De maneira ainda não elucidada, mas certo que de forma inata (alheia aos
controles racionais), o ser humano tem a aptidão natural de bloquear
determinados eventos traumáticos em certas ocasiões, permitindo que sejam
acessados apenas em raras oportunidades, ou por vezes sejam completamente
bloqueados.
Atualmente, o Processo Penal brasileiro padece de certa deficiência com
relação ao tratamento oferecido a vítimas durante a oitiva, olvidando-se que,
além de estar à mercê da morosidade, a memória do entrevistado sofre
significativas alterações e distorções cada vez que encorajado a reviver certas
lembranças.
É com base nesses estudos que podemos ponderar que não há que se
falar em colhimento de testemunho sem considerar os impactos que os eventos
relatados causaram na psiqué da vítima, especialmente em se tratando de
crimes contra sua dignidade sexual. Não é incomum que pessoas submetidas a
abusos sexuais, especialmente crianças, passem a criar válvulas de escape
psíquicas que bloqueiam funções cognitivas e desencadeiam distúrbios
relacionados à consciência, memória, identidade ou percepção do ambiente.
Desta feita, o presente trabalho busca conceituar, em especial, duas das
principais consequências desses transtornos, nomeadamente a amnésia
dissociativa e a memória ilusória, comumente conhecia como “falsa
memória”. Contará, para tanto, com o auxílio da Criminologia, enquanto ciência
empírica cujos objetos de estudo são também a vítima e o comportamento
social, para além do crime e do criminoso.
1191

Por fim, o Direito Processual Penal nos servirá de base para


compreender os principais desafios atualmente no momento do interrogatório,
qual o tratamento oferecido à vítima e em quais aspectos é necessário reavaliar
o método utilizado para colher o depoimento, de forma que seja possível o
resgate de memórias traumáticas sem que sejam desrespeitados os próprios
limites emocionais da vítima ou que sejam criadas situações que favoreçam a
incidência de falsas memórias, fatores determinantes para uma oitiva
eficaz, sem óbices para a tutela jurisdicional segura.

1. MEMÓRIA

1.1. CONCEITO DE MEMÓRIA

Partindo de uma conceituação genérica, podemos dizer que memória é


um termo referente a uma complexidade de interações neurobiológicas e
empíricas, que deixam impressões no hipocampo de um indivíduo e permitem a
evocação de informação adquirida através da experiência (IZQUIERDO, 1989,
p.89). Por ser um processo conhecidamente complexo, para cada informação
adquirida e para cada atividade fim para qual é utilizada essa informação, não é
de se surpreender que existam, em verdade, inúmeros tipos de memória, cada
uma com uma especificação dentro do sistema nervoso.
Não convém, a priori, discorrer sobre classificações mais complexas já
existentes, bastando apenas que utilizemos a classificação mais habitual, qual
seja, de acordo com o tempo transcorrido entre o momento em que são
registradas e o momento em que é estimulado o seu resgate. O resgate da
memória depende de seu processo de consolidação no cérebro, que, por sua
vez, tende a ser facilitado de acordo com a carga emocional ou de alerta
depositado na experiência. O processo de consolidação
é biologicamente modulável, passível de alterações quantitativas e qualitativas
em maior ou menor grau (IZQUIERDO, 1989, p.97), mas que invariavelmente
ocorrem e podem desencadear em transtornos dissociativos ou quadros mais
severos.

1.2. AMNÉSIA DISSOCIATIVA

Uma das vertentes dos estudos relacionados à dissociação (cuja


conceituação é tema de reiteradas discussões no campo de pesquisa, uma vez
que permite inúmeras interpretações; neste trabalho, utilizaremos o conceito
simplista, porém suficiente, de dois ou mais processos mentais não integrados),
a qual se filia esta pesquisa, classifica o fenômeno como um mecanismo de
defesa.
Mecanismo de defesa constitui-se em "um processo mental habitual,
inconsciente e as vezes patológico que é utilizado para resolver conflitos entre
necessidades instintivas [mas também necessidades que são aprendidas e
adquiridas], proibições internalizadas e a realidade exterior" (VAILLANT, 1971
apud CARVALHO, 1998, p.157). É a maneira que a mente encontra de evitar
pensamentos e emoções negativas ou dolorosas.
1192

Amnésia Dissociativa, de acordo com a quinta edição do Diagnostic and


Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5), é um transtorno dissociativo que
envolve a incapacidade de recordar importantes informações pessoais que
tipicamente não seriam perdidas pelo esquecimento normal, geralmente
causado por situações traumáticas. Pode envolver a perda de memória
localizada – incapacidade de recordar um evento ou período de tempo –, seletiva
– incapacidade de recordar um aspecto específico de um ou mais eventos,
dentro de um certo período –, e generalizada – completa perda de identidade e
história de vida.

1.3. FALSAS MEMÓRIAS

Aury Lopez Jr. e Cristina Carla Di Gesu (2007, p.103) prelecionam que os
estudos relacionados ao fenômeno da memória ilusória são bastante recentes,
remontando ao início do Século XX. Os primeiros experimentos foram realizados
em crianças, por BINET, em 1900, na França, e com STERN, em 1910, na
Alemanha. Somente em 1932, foram feitos os primeiros testes em adultos.
Trata-se de uma condição extremamente comum, consistente na
“inserção” de uma falsa informação que passa a compor a memória que precisa
ser resgatada. Pode acontecer corriqueiramente, durante uma conversa, ao ler
uma reportagem de um evento que a própria pessoa vivenciou, ou,
especialmente, durante um interrogatório.
A pessoa interrogada, dependendo das perguntas feitas e o modo como
são apresentadas, pode facilmente ser levada a alterar sua própria memória,
tanto inconsciente, como espontaneamente, por meio de sugestões que se
entranham na mente do interrogado como resultado do processo normal de
compreensão.

2. VITIMOLOGIA

Vitimologia é “o estudo da vítima no que se refere a sua personalidade,


quer do ponto de vista biológico, psicológico e social, quer o de sua proteção
social e jurídica, bem como dos meios de vitimização, sua interrelação com
o vitimizador e aspectos interdisciplinares e comparativos” (MAYR, 1990, p.18
apud RIBEIRO, p.30).
Buscamos a compreensão da vitimologia como forma de perceber os
efeitos do delito no comportamento da vítima e vice-versa, objetivando assim
estabelecer um raciocínio lógico que garanta a resposta preventiva contra
possíveis situações-risco. A evocação desse instituto se faz necessária no
estudo em pauta justamente pela condição de vulnerabilidade que vítima de
violência sexual acometida de amnésia dissociativa se encontra. Tão condição
dificulta que seja feito um juízo sobre seu próprio risco, fazendo-se mister a
preocupação das instituições democráticas com a saúde mental do indivíduo que
precisa de da tutela jurídico-penal.
A apreensão das experiências vividas, além de auxiliar na elucidação do
crime durante a persecução penal, contribui para que a vítima comece a
perceber, em seu próprio cotidiano, possíveis situações de risco, evitando o dano
e identificando suas causas.
1193

2.1. A VÍTIMA

A vítima é toda pessoa que se encontra numa situação de passividade,


de prejuízo, numa situação que pode lhe causar sofrimento evolvendo outras
pessoas ou até eventos naturais. Nesta conceituação adotada pela Vitimologia,
a vítima pode ser também vitimizador de si mesmo, a fonte do seu próprio
sofrimento.

2.2. VIOLÊNCIA SEXUAL: EFEITOS COGNITIVOS, COMPORTAMENTAIS E


EMOCIONAIS

Apesar da complexidade e da quantidade de variáveis envolvidas no


impacto de tamanha agressão contra a dignidade humana, de modo geral, é com
razoável avença que a maior parte da doutrina, ao abordar o abuso sexual,
admite uma mesma linha de raciocínio quanto às alterações cognitivas: tristeza
e necessidade de isolamento, agressividade, comportamentos
autodestrutivos, dissociações, crenças distorcidas (acreditar que é a única
culpada pela violência sofrida, dificuldade de confiar nas pessoas,
conduta hipersexualizada, vergonha, culpa, ansiedade, baixa concentração e
atenção e refúgio na fantasia (estes dois últimos especialmente mais visíveis em
crianças e adolescentes).
Tais alterações cognitivas, quando não tiverem o tratamento necessário
em tempo hábil, podem desenvolver psicopatologias, como depressão,
transtorno de estresse pós-traumático, transtornos de ansiedade, transtornos
alimentares, hiperatividade, transtornos dissociativos, personalidade borderline,
dentre outros (RIBEIRO, 2013, p. 86).

3. TESTEMUNHO E PROCESSO PENAL

3.1. PRINCIPAIS DESAFIOS

Não é nada raro, no processo penal, que decisões sejam


prolatadas fundamentadas exclusivamente na prova oral, principalmente na
palavra da vítima, sem falar nas condenações motivadas no cotejo entre a prova
oral colhido na fase processual e na fase pré-processual, totalmente despida de
contraditório e ampla defesa. De qualquer forma, indiscutível é que o
testemunho, tanto da vítima quanto das demais partes envolvidas no processo,
influi e muito na decisão final, se há ou não crime, se o réu é autor, se caberá
condenação.
Agora, como garantir a lisura da prova oral? Como impedir a ocorrência
de interrogatórios tendenciosos, despidos de qualquer qualidade técnica? Como
diminuir os erros judiciais causados por testemunhos falsos ou equivocados?

3.2. MEIOS PARA REDUZIR O DANO

Com bem coloca Aury Lopez Jr. e Cristina Carla Di Gesu (2007), “não há
soluções simples para problemas complexos”. Certamente, lidar com traumas
1194

tão profundos durante um interrogatório ou evitar que a memória do depoente


seja corrompida por lembranças ilusórias não é uma tarefa fácil.
Algumas das possíveis medidas a serem tomadas para auxiliar nessa
tarefa, apontadas pelo professor, seria, por exemplo, a determinação de um
prazo para que fosse efetuada a colheita do depoimento, dirimindo a
probabilidade do esquecimento/bloqueio da memória do evento; a adoção de
técnicas de interrogatório e a entrevista cognitiva, que permitiriam a obtenção de
informações quantitativa e qualitativamente superiores às das entrevistas
tradicionais, evitando-se a formulação de perguntas altamente tendenciosas e
passíveis de desenvolver falsas memórias, como frequentemente acontece; e,
por fim, a efetuação de gravações das entrevistas realizadas em fase pré-
processual, especialmente quando o entrevistador é assistente social ou
psicólogo, possibilitando ao julgador “conhecimento do modo como os
questionamentos foram formulados, bem como os estímulos produzidos nos
entrevistados” (LOPEZ; DI GESU, 2007, p.109).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É do interesse de toda comunidade, não exclusivamente jurídica, mas de


todos aqueles que compõem o estado democrático de direito, que a persecução
penal se utilize de todos os meios a sua disposição para que, além de que uma
pessoa seja condenada, a justiça seja de fato conquistada. Na atual conjuntura
processual penal, é indubitável que poucas atualizações tecnológicas foram
incorporadas para que a sentença condenatória dependesse um pouco menos
dos depoimentos testemunhais.
De igual forma, ainda que não haja como escapar do testemunho, dada
sua relevância para o caso concreto, o que se faz para que sua lisura seja
preservada não tem sido suficiente para afastar a insegurança de testemunhos
equivocados. O trauma causado pelo delito às vezes lesiona tão profundamente
a psique da vítima que a mesma se encontra num estado
de grave perturbação psicológica, desencadeando um mecanismo de defesa
consistente no bloqueio de recordações dolorosas. A vítima, incapaz de controlar
seus impulsos subconscientes e estimulada por perguntas tendenciosas, que
sugerem elementos que originariamente não faziam parte da sua memória,
responde o que seu entrevistador espera ouvir e suas falsas memórias são os
fatores determinantes em um processo que se baseia quase que exclusivamente
na prova testemunhal.
O Direito Processual Penal brasileiro clama por zelo em relação à
integridade psicológica da vítima, por investimento em tecnologia de
investigação, por segurança jurídica. É necessário que provas mais robustas
sejam produzidas, que caminhem o processo em direção a um futuro cada vez
menos dependente de provas testemunhais, de modo a dinamizar a persecução
penal e aperfeiçoar o provimento jurisdicional oferecido às vítimas de abuso
sexual. O objetivo do presente trabalho é buscar novos modelos de colhimento
testemunhal, estudar as técnicas empregas em ordenamentos jurídicos distintos
e fazer uma análise detida de quais poderiam ser empregados no Brasil.
Muito há que ser incorporado em nosso ordenamento jurídico para que
possamos finalmente compreender o Direito Processual Penal como um ramo
1195

que não pode tão facilmente descartar outras ciências sociais. As partes
envolvidas no processo penal não podem simplesmente ser consideradas como
objetos de um liame jurídico, indiferentes ao tratamento oferecido, tanto pelos
agentes da administração como pelos atores da ação penal. Hão de ser
considerados integralmente quanto a sua humanidade, como seres detentores
de suas particularidades que precisam ser apreciadas pelos profissionais
capacitados para tanto.
Desta feita, faz-se necessário recorrer à humanização do processo penal,
sobretudo no que diz respeito ao interrogatório da vítima. A carência
de profissionais qualificados é evidente, em especial no que diz respeito
a perguntas que não prestem um desserviço à integridade emocional de vítimas
acometidas de amnésia dissociativa, ao mesmo tempo em que não incitem a
produção de memórias falsas, demasiadamente prejudiciais à lisura e à
segurança jurídica da persecução penal.

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memória e a antecipação da prova testemunhal no processo penal. Revista
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1197

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, LEI MARIA DA PENHA E JUSTIÇA


RESTAURATIVA: ANÁLISE DA APLICABILIDADE DA JUSTIÇA
RESTAURATIVA NA RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS DE GÊNERO.
SPOUSAL ABUSE, MARIA DA PENHA STATUTE AND RESTORATIVE
JUSTICE: ENFORCEABILITY ANALYSIS OF RESTORATIVE JUSTICE AT
RESOLUTION OF GENDER CONFLICTS

Amanda Passos Ferreira


Hilza Maria Feitosa Paixão

Resumo: A presente pesquisa trata da aplicação da justiça restaurativa aos


casos de violência doméstica conjugal. O primeiro capítulo versa sobre os
aspectos históricos e culturais da violência contra a mulher e os crescentes
dados de denúncias de violência e casos de feminicidio, que em tese deveriam
diminuir com o advento da Lei Maria da Penha pretende-se desta forma
demonstrar que a resolução da violência de gênero não está limitada a seara do
direito pelos diversos aspectos psicodinâmicos presentes no que tange a relação
homem e mulher, abordando com enfoque a relação conjugal. Na seção seguinte
abordou acerca da Justiça Restaurativa que por meio do diálogo visa sanar o
conflito gerando nas partes conscientização, empatia e entendimento quanto ao
ocorrido, se as partes concordarem. A última seção buscou demonstrar a
ausência de uma intervenção diferenciada para a violência doméstica e contra a
mulher, levando em consideração a ineficácia do tratamento dispensado no
âmbito da Justiça Criminal o que acarreta na insatisfação das vítimas com o
sistema, analisa-se desta forma, as práticas restaurativas como meio de
resolução da violência doméstica contra a mulher em que se encontra
argumentos e posicionamentos favoráveis a este método. Portanto conclui-se
que há espaço no Brasil para implementá-la.
Palavras-chave: Psicologia do Testemunho; Direito Processual Penal;
Vitimologia.

Abstract: The research talk about the application of restorative justice to cases
of spousal abuse. The first chapter deals with historical and cultural aspects
about violence against women and the rising data of report and cases of
feminicide, that should reduce with the advento f Maria da Penha Legislation, in
this way we intends to prove that resolution of gender violence is not restricted to
the law for many aspects psychodynamic in reference of relationship between
man and woman, with approach on spousal relationship. In the section we talk
about restorative justice that by means of the dialogue aim mitigate the conflict
spawn if these parts agree awareness, empathy and understanding about what
happened. The last section we talk about the ausence of differentiated
intervention for domestic violence and against women, taking into account the
ineffectiveness of the treatment provided in the criminal justice field which entails
the victims' dissatisfaction with the system, thus analyzing the restorative
practices as a means of resolving violence against the woman in whom
arguments and positions favorable to this method are found. Therefore, it is
concluded that there is space in Brazil to implement it.
Keywords: Spousal Abuse; Restorative Justice; Gender.
1198

1. INTRODUÇÃO

A violência doméstica é apresentada como um fato complexo envolto em


efeitos negativos no âmbito social. Deste modo esta pesquisa almeja analisar a
viabilidade da justiça restaurativa como via adequada de tutela penal aos casos
de violência doméstica e familiar, fazendo estudo da violência doméstica e a
urgência de novas ferramentas que possibilitem a eficácia na solução da lide,
obtendo uma resposta assertiva aos direitos e interesses da mulher vítima do
delito.
Por conseguinte a investigação se valeu com base na sociologia reflexiva
em Bourdieu e Foucault, a pesquisa possui caráter exploratório, de abordagem
qualitativa e quantitativa, com uso de técnicas de pesquisa bibliográfica e
documental bem como análise de conteúdo e do discurso, almejando construir
as relações que contribuam para as discussões do problema delimitado.
O objetivo da pesquisa foi analisar a possibilidade da aplicabilidade da
Justiça Restaurativa no tratar de determinados casos de violência doméstica
contra a mulher, pautando-se nos princípios e diretrizes do restaurativismo, o
qual se apresenta como uma evolução no que consiste a resolução eficaz do
litigio, dado que a justiça restaurativa coloca o diálogo em evidencia e demonstra
preocupação com a vítima e as consequências do crime na vida dela, o diálogo
nos processos judiciais é sempre tão escasso e linhas escritas em uma
sentença, ou até mesmo a prisão do agressor não solucionam efetivamente a
lide, pois é imprescindível levar em conta que a vítima e o agressor possuem ou
possuíam uma relação afetiva.
A primeira seção aborda o complexo problema da violência intrafamiliar,
levando em consideração hábitos culturais pré-estabelecidos em que a mulher é
colocada em relação de inferioridade perante ao homem, dando legitimidade
para que o mesmo sinta-se no “direito” de agredi-la.
A segunda seção fala da justiça restaurativa, sua benesse, princípios e
aplicabilidade demonstrando o poder do diálogo seja de maneira negativa, seja
positiva, desde que utilizado e aplicado de forma correta.
A terceira seção analisa dentro da singularidade da violência doméstica
se há realmente possibilidade da implementação da justiça restaurativa, dessa
forma em razão da complexidade da violência, das tenebrosas consequências,
do alto índice de incidência do crime e das diversas razões, observa-se que a
questão não se restringe tão somente ao âmbito penal, contudo merece um olhar
cada vez mais amplificado e a adoção de métodos que promovam a
conscientização do homem ante sua culpabilidade e da mulher, diante da
posição dominadora do homem, buscando fazer com que ambos vejam e
compreendam um ao outro, mas claro sem descriminalizar a conduta do
agressor.

2. A COMPLEXIDADE DO CONFLITO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:


ANÁLISE DAS RAÍZES CULTURAIS QUE INFERIORIZAM E OBJETIFICAM A
IMAGEM FEMININA.
1199

O artigo 1º da Declaração das Nações Unidas da Eliminação sobre


Violência sobre as Mulheres define violência como:

Para os fins da presente Declaração, a expressão “violência contra


as mulheres” significa qualquer acto de violência baseado no
género do qual resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento físico,
sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de
tais actos, a coacção ou a privação arbitrária de liberdade, que
ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada.

O sexismo da linguagem é reflexo de sociedades profundamente


androcêntricas, que colocam as mulheres em subordinação; esta é de tal forma
naturalizada que muitas vezes as próprias mulheres não desenvolveram
consciência sobre ela e contribuem para a sua reprodução. (MACEDO, 2015)
O advento da Lei 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da
Penha marcou a concretização dos direitos humanos das mulheres no Brasil,
brotando esperança de uma possível diminuição ou erradicação da violência
doméstica, devido ao caráter punitivo e posteriormente a adoção de alterações
no Código Penal e Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penais,
visando punir rigorosamente o agressor, acredita-se que apesar da redação da
Lei dispor acerca da prevenção, tratamento e punição no que concerne a
agressão, a dominância criminal tirou a vítima de cena dando atenção integral
as formas de punições dos agressores.
Acreditava-se portanto que a questão da violência contra a mulher já
estava solucionada, contudo é impossível estuda-la ou analisa-la sem levar em
consideração o contexto social e cultural, tendo em vista que as motivações que
levam o agressor estão estruturadas em uma ideologia patriarcalista, Pierre
Bordieu em sua obra “Dominação masculina” partindo de uma pesquisa
etnográfica, das décadas de 50 e 60, sobre a cidade Cabila em que observa que
o masculino é visto como hierarquicamente superior em relação ao feminino.
De maneira muito sútil Bordieu aborda o quanto a dominação masculina
está inserida em nosso comportamento, fala e modo de pensar, agir e falar, a
partir de conceitos como habitus e violência simbólica, mostra que esse meio
legitima e mantém a ordem social.
A globalização pode ter feito o ser humano evoluir no que diz respeito a
tecnologias e inovação, porém no tratar das questões enraizadas culturalmente,
pode-se observar que ainda há muito a ser mudado.
O disque denúncias registrou em 2016 aumento de 51% de denúncias de
violência contra a mulher a mais do que os registros em 2015, em 65,91% das
ligações remetiam a violências cometidas por homens com quem as vítimas têm
ou tiveram algum vínculo afetivo. Sem contar os inúmeros casos não registrados.
O Estado ao optar por aplicar tão somente o jus puniendi limita o processo as
normas jurídicas colocando a vítima em papel secundário, expondo os fatos, sem
contudo solucioná-los de fato, o que contribui para a permanência do silencio, já
que a procura por ajuda não anseia somente pela punição e aprisionamento do
cônjuge, mas visa uma forma de cessar a agressão.

3. JUSTIÇA RESTAURATIVA: NOVAS PERSPECTIVAS DE SOLUÇÃO DA


LIDE.
1200

A Justiça Restaurativa representa uma nova lente para a resolução dos


litígios na esfera criminal, dado que o ser humano em sua complexidade possui
peculiaridades e particularidades que o difere uns dos outros, portanto o conflito
faz parte da sociedade, contudo é necessário implementar meios que não
somente solucionem o litigio, mas que busque promover a paz entre os
indivíduos. De acordo com Johnstone e Van Ness, os autores identificam três
concepções no que consiste seus objetivos fundamentais: o encontro, o qual tem
como ênfase a liberdade de manifestação dos envolvidos para a resolução do
conflito; a reparação que enfatiza a reparação do dano e a concepção da
transformação a qual o modelo restaurativo é considerado como forma de
construção coletiva de justiça pautando-se nas experiências pessoais dos
sujeitos envolvidos.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a define como: um processo
de resolução de conflitos participativo por meio do qual pessoas afetadas direta
ou indiretamente pelo menos ( intersubjetivo, disciplinar, correspondente a um
ato infracional ou um crime) se reúnem voluntariamente e de modo previamente
ordenado para estabelecer juntas, geralmente com a ajuda de um facilitador, um
plano de ação que atenda às necessidades e garanta o direito de todos os
afetados, com esclarecimentos e atribuição de responsabilidades.
“O diálogo a respeito do problema pode servir de apoio aos participantes,
auxiliar na solução, evitar a propagação de conflitos, reduzir a reincidência e
contribuir para o coesionamento da vida comunitária.” ( Paz, 2012)
Howard Zehr, um dos principais expoentes da Justiça Restaurativa, a
considera como um novo olhar sobre o crime, a justiça e as situações
conflituosas cuja capacidade consiste em alicerçar uma concepção de justiça
fundada nas necessidades dos indivíduos envolvidos, nos vínculos que são
criados com a responsabilidade pelos atos, assim como a cultura de paz revela
novas formas de observar o mundo, escutar e dialogar, na prática definem, juntas
uma nova abordagem para a questão das transgressões. Para Howard a justiça
tradicional é meramente punitiva e se restringe a questões legais ao passo que
a justiça restaurativa é reintegrativa e se preocupa com os indivíduos e seus
relacionamentos.
Os princípios básicos do uso da Justiça Restaurativa se encontram na
Resolução 2002/12 do Conselho Social e Econômico da ONU e são referência
internacional no âmbito da regulamentação da justiça restaurativa e suas
práticas. Tais princípios servem como uma espécie de guia para os Estado que
desejam implementá-la, tendo em vista que permitem a adaptação da justiça
restaurativa dentro dos trâmites nacionais, oferecendo importantes orientações
quanto à forma de ser aplicada, implementada e abordada. Segundo Raffaella
Pallamolla, esses princípios não ambicionam indicar como os países devem
proceder à institucionalização da justiça restaurativa.
Dessa forma Cesar Barros Leal dispõe que:

Em nosso tempo pós-moderno, que muitos qualificam como de


modernidade tardia, no qual se eleva a níveis assustadores e
criminalidade adulta e infanto-juvenil, de modo destacado a
criminalidade cotidiana, sem que o sistema vertical, ordinário e
dogmático de justiça penal consiga dar-lhe uma resposta idônea e
1201

igualitária, a Justiça Restaurativa se torna imperativa, como opção


alternativa ou complementar à tradicional, seja para refrear o
crescimento do direito penal, seja para assegurar uma solução
menos morosa, mais econômica, humana e eficiente aos conflitos
gerados por delitos, sobretudo os de pequena gravidade.

De acordo com o Juiz da Vara de Infancia e da Juventude em Caxias do


Sul- Rio Grande do Sul, Leoberto Bracher, a promoção da cultura de paz como
política pública é uma construção histórica um novo modelo, um avanço que se
deve a uma compreensão e um compromisso político diferenciado.
Cesar Barros complementa:

Fazemos referência a uma prática de justiça muito diferente dos


padrões ordinários da justiça penal, esta de corte nitidamente
dissuasório, retributivo-punitivo, baseada no excesso de
formalismos, na estrita legalidade, e uma relação traumática,
adversarial, por vezes hostil, marcada pelo distanciamento, cujos
atores principais são estatais – polícia, promotor de justiça e juiz –
já que o delito é visto, num bipolar, como uma desconformidade
autor-Estado, id est, como uma ofensa contra o Estado.

É necessário implementar meios que não somente solucionem o litigio,


mas que busque promover a cultura de paz que apresenta a solução ou
transformação dos conflitos por meio do diálogo inclusivo, participativo e
pacífico, com base na valorização do ser humano e de suas relações. Dessa
forma a Justiça Restaurativa pretende ser um meio alternativo a aplicação de
sanções punitivas, tendo em vista que para alguns crimes o método punitivo não
resolve o conflito, todavia não se pretende abolir o sistema penal, que apesar de
todas as críticas, não se intenciona isentar os delituosos da penalidade.
Vale ressaltar que há casos e situações em que o restaurativismo penal
termina por ser inadequada a sua aplicabilidade levando em consideração a
gravidade do delito.

4. O PODER DO DIÁLOGO FRENTE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: É


POSSÍVEL A APLICABILIDADE DOS MÉTODOS RESTAURATIVOS NOS
CRIMES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER COMO MEIO DE
SOLUÇÃO E PREVENÇÃO?

O processo de mediação entre vítima-ofensor visa possibilitar que estes


implicados encontrem-se num ambiente seguro, estruturado e capaz de facilitar
o diálogo. ( PALLAMOLLA, 2009)
O vicioso círculo dos conflitos tem origem na falta de diálogo em que são
tratados de forma negativa com ausência de empatia e desprezo pelas
necessidades do próximo. Desta forma urge trazer à tona a conscientização de
que a paz, a felicidade e o sucesso, em todas as áreas dependem da maneira a
qual nos comunicamos, somos compreendidos e compreendemos o outro e suas
percepções, valorizando a solidariedade, inclusão e escuta ativa.
Pelizzoli no que consiste Círculos de Construção de paz aduz que:
1202

Usamos o termo Círculos de Diálogo, mas também “práticas


circulares ou sistêmicas”, para dar a entender a amplitude de
possibilidades sociais de tais práticas. Observe-se que elas NÃO
podem ser tomadas apenas como uma ferramenta ou um método,
e uma moda na área social e da Justiça. Igualmente, não se pode
“entender” o que ocorre nas práticas circulares sem alguma
experiência delas, tendo sentido o tipo de força/energia e
restauração que ali circula – na forma de sentimentos e motivações
diversas, reconexões de sociabilidade, encontro reequilibrante
entre dor e afeto, potencial de cura de relações, traumas, suporte
humano e elementos afins”.

Desta forma, podemos observar que o diálogo coloca em pauta a


integralidade do ser humano, sendo possível a revelação do próprio ser, onde o
indivíduo se torna capaz de perceber o outro sob outra ótica. Buber dispõe que:

O olhar é analítico ou, pseudo-analítico, pois trata a totalidade do


ser psicofísico como composta e, portanto, desmembrável, não
somente o assim chamado inconsciente, acessível a uma relativa
objetivação, mas também a própria corrente psíquica, que na
realidade nunca é captável como existindo objetivamente. Redutor
é o olhar porque ele quer reduzir a multiplicidade da pessoa, nutrida
pela plenitude microcósmica do possível, a estruturas
esquematicamente abrangíveis pela vista e recorrentes. E ele é
dedutivo, pois supõe poder enquadrar em fórmulas genéticas a
maneira de como o homem veio a ser, o seu devir, e ainda poder
representar o dinâmico princípio central da individualidade neste
devir através de um conceito geral.

No sistema retributivo as penas podem ser reduzidas em excluir a pessoa


da sociedade, não permitindo que ela evidencie as condições expostas e os
motivos. Acredita-se que a ciência moderna reduz a totalidade do ser, ao
desconsiderar a singularidade de cada indivíduo, delimitando-o em conceitos
pré-definidos.
Um dos valores que norteiam a Justiça Restaurativa é a não dominação,
de acordo com Raffaella Pallamolla, que dispõe acerca do dever de o
procedimento estar organizado de forma a minimizar as diferenças e as
desigualdades sociais, culturais e históricas, no momento do encontro entre
atingidos pelo conflito penal.
A mediação segundo Andréa Ribeiro, é o mecanismo mais adequado para
o refazimento do elo rompido com a prática do delito para que as partes possam
por meio do diálogo, superar a origem do delito.
A outorga de pena, em determinados casos, em detrimento de modelos
alternativos, não obtém resultado satisfatório para a resolução do conflito penal,
decorrente da violência doméstica, diante à complexidade congênita das
situações relacionais e interpessoais que rodeiam o ser feminino nesses casos,
em razão das causas históricas, culturais, sociais, emocionais e psicológicas.
Marília Montenegro trata que “no processo de criminalização, não se
atentou a uma questão peculiar dos casos de violência conjugal: o vínculo que
há entre o autor da agressão e a ofendida”. (2015)
As práticas restaurativas nos conflitos de gênero, aumentam as chances
das mulheres vítimas de violência doméstica buscarem ajuda, dado que permite
1203

que a mulher seja realmente escutada e demonstre seus interesses, além de


contribuir para que ela possa compreender sobre o fato criminoso. Esse modelo
de justiça por levar em consideração o ímpeto dos problemas domésticos em
razão do gênero e da relação entre os envolvidos, pode ser eficaz no rompimento
ciclo de violência por meio da aproximação das partes, promovendo a
conscientização de ambos, responsabilizando o agressor e tornando perceptível
a cultura de dominância do homem sobre a mulher.
É importante frisar que as técnicas restaurativas não podem ser
consideradas como um mecanismo de exclusão da conduta enquanto crime, ou
até mesmo um meio de barganha, mas um instrumento que privilegia a
revitalização dos vínculos fragmentados atentos às singularidades de cada
situação específica.

CONCLUSÃO

Em face da ineficácia do resultado do processo penal tradicional no que


tange ao tratar da violência doméstica contra a mulher, surge o modelo
restaurativo de justiça como uma opção para a solução desse tipo de litigio, se
assim as partes desejarem.
Ademais quando uma mulher é agredida a sociedade de modo geral se
volta a punição e o encarceramento do homem, o restaurativismo tem se
mostrado uma abordagem mais adequada para sanar os conflitos de gênero e
de ordem familiar. A Justiça Restaurativa se preocupa com as necessidades das
vítimas possibilitando a estas o envolvimento com o processo e ampliando sua
participação no mesmo, com um olhar humano democrático, as práticas
restaurativas não se limita ao direito penal tradicional para alcançar resultados
efetivos.
Tendo em vista que a exclusão social do agressor apenas alimenta a
alienação social do mesmo e sustenta o ciclo de violência social, conclui-se
portanto que é possível aplicar a Justiça Restaurativa em determinados casos
de violência doméstica contra a mulher, contudo sendo utilizada como
complemento e não como substitutiva do processo penal.
É de suma importância ressaltar que a Presidente do Supremo Tribunal
Federal – STF, a Ministra Carmén Lúcia, posicionou-se favorável à Justiça
Restaurativa no enfretamento à violência doméstica contra a mulher que de
acordo com ela “consiste em uma técnica que busca os anseios das vítimas e
dos agressores”. O que demonstra que o judiciário está aberto a mudanças que
sejam em prol do bem comum.
Em um cenário de crescentes dados estatísticos de violência contra a
mulher, desponta a justiça restaurativa como um mecanismo que sonda as
necessidades da vítima, mediante seus princípios, valores e técnicas, reputando
como finalidade teleológica a pacificação social, além disso é por meio do
empoderamento que a vítima consegue alcançar sua emancipação e superação
do delito se retirando da estigmatização da consequência do crime.

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