S
clássica. Esteartigo busca pontuar momentos
brar possibilidades de marcantes da trajetória deste pensamento, elucidar as relações entre razão
estruturação de sentidos partindo da escola pitagórica até a estética e vida musical, sobretudo em
romântica, visando sempre à interlocução
nas formas musicais, temos Fundamentos racionais e so-
da estética musical com as várias correntes
um belo tema para a Filosofia ciológicos da música ocidental
de pensamento, tendo a reflexão sobre a
da Música, referente à velha (Weber, 1995).3 Para ele, o con-
razão como centro referente desse embate.
questão sobre a semanticidade ceito fundamental que organiza
musical, cuja abordagem pode ABSTRACT sua concepção sobre o ocidente
ser enfrentada em dois níveis: An old subject of western thought is the moderno (inclusive a música), é
seu entendimento lato e stricto possibilitv of a musical language to express a idéia de racionalização, chave
the meaning of the world and of the life
sensu, o que nos lançaria de heurística decisiva para a sua
(the possibilitv of a musical semantics).
imediato e necessariamente à sociologia da música., aplican-
This paper shows the great moments of
questão da linguagem musical do-a sobremodo ao tratamento
this subject, since Pythagoras' thought until
e da linguagem tout court:' the romantic esthetics. I pretend to connect
específico dado pela música
Enrico Pubini.' referência musical esthetics with severa I tendencies of
euro-ocidental ao seu material
para a cartografia do que os thought. The reference of this paper is the sonoro, aquele estoque de sons
iluministas denominavam es- reflection about the reason. de todas as culturas.
tética musical, ao refletir sobre • Doutor em Sociologia, Prafessar Adjunto do
Com efeito, nossa reflexão
as possibilidades da linguagem Departamento de Filosofia da Universidade sobre formas musicais com
Federal do Ceará.
musical constituir significan- possibilidades de constituir
tes, nos traz duas teses que se sentidos, não pode deixar de
confrontam, na história do pensamento ocidental: a) partir do pitagorismo, explicitação dos primeiros
a concepção ética que concebe a música como agen- entendimentos de uma possível semanticidade sub-
ciadora de comportamentos distintos, expressando jacente à linguagem musical lato sensu, mediante
sentimentos; b) a música como arte autônoma dos uma tipologia do ethos de diferentes povos da época.
sons, de puro deleite, que produz um prazer sensível Como se sabe, para os pitagóricos, o número não era
que se exaure em si mesma, não produzindo qualquer uma mera representação da ordem das coisas, mas o
tipo de conhecimento, nem significando qualquer constitutivo primeiro (apXll) da estrutura do cosmos.
outra coisa. No limite, uma arte autotélica. Entre os Conhecendo suas relações e a harmonia cósmica, todo
primeiros, estão os pitagóricos, entre os últimos, o o universo tornava-se cognoscível. Número e harmo-
alemão Eduard Hanslick (1989), talvez o maior te- nia eram, a um só tempo, a condição de possibilidade
órico moderno da música como pura formalização, da existência do universo e do saber verdadeiro. Daí o
sem nenhuma pretensão de falar sobre o mundo ou realce dado à música, concebendo-a como elemento
a vida, em suma, sem pretensões de significar coisas. fundante da ordem do ser. A racionalidade arquetípica
Para ele, a música não fala ao intelecto, por conceitos, era evocada a partir da série harmônica." Assim, os
como a poesia - arte-espelho para julgar as demais pitagóricos incorporaram a música a uma espécie
que ajuízam ser uma prepotência invasiva da música. sentido, as belas sensações auditivas, vendo na sua
O crítico espanhol Arteaga avalia a excelência da ópera mudez à razão, uma incapacidade essencial, ao contrá-
pelo Iibreto. Reforça a idéia de superfluidade da melo- rio de outras artes como a pintura e a poesia, que nos
dia, espécie de ornamento gratuito do texto. Combate proporcionam "equivalentes intuitivos de verdades
o impulso autonomizante da música instrumental, por morais, religiosas, ou metafísicas" (NUNES, 1998: 75).
corromper seu objetivo original de suporte da poesia. A literatura infunde saber, a música apenas prazer.
O ensaísta italiano de ópera Francesco Algarotti, porta Sem força conceitual, resta-lhe a frivolidade da arte,
voz da reforma inspirada no racionalismo, retoma ao deslizando-se do coro das igrejas para a intimidade
velho princípio da supremacia da poesia, definindo dos meios cortesãos. Até então, as concepções hedo-
o papel auxiliar da melodia ao texto, só ganhando nistas encontravam justificação na função exercida
expressão, se acompanhada pela palavra. Antonio pela música na sociedade de seu tempo. O músico,
Eximeno e Vicenzo Manfredini são vozes dissidentes. protegido pelo me cena to, tinha o encargo de produ-
Apesar da sua formação matemática, ou justo por sua zir certas funções ou cerimônias, para atender fins
causa, o espanhol rousseauriano Eximeno tem como imediatos. A música devia apenas acompanhar. Seu
principal objetivo a defesa da autonomia da música, papel era levar o fiel à concentração religiosa, ou então
fundada no prazer auditivo. Em Da origem e das re- criar um clima de agradável indolência, em eventos
gras musicais (1774), rejeita a associação feita desde festivos. Era, portanto algo inessencial. Vê-se porque
os gregos entre música e matemática, considerando-a os iluministas não concediam grande importância à
uma verdadeira linguagem "autônoma". Para se com- música: a pura, vista como jogo de sensações agradá-
por bem, basta se entregar à Natureza e se deixar veis, muda à razão e sem conteúdo intelectual, moral
levar pelas sensações que se pretende criar através da ou educativo só tinha poder sobre os nossos sentidos.
música. Ao distinguir os dois mundos constitutivos Em suma, uma arte assemântica.
da música (as regras das relações físico-matemáticas Mas, Kant distingue dois modos de julgar a mú-
e os sons), nega autoridade a tais regras para ditar sica: se ajuizada pela razão, cabe-lhe o último posto;
o belo musical. De que servem números e fórmulas se pelo prazer, inverte-se seu mérito, cabendo-lhe o
que proíbem um salto intervalar, quando este pode primeiro. Aceita esta alternativa, a música represen-
ser um som agradável? Para ele, as regras musicais se ta a "linguagem dos afetos", a "língua universal" da
fundam no prazer auditivo. O teórico e compositor sensação, compreensível a todo homem, porém sem
Manfredini, partindo da idéia ilustrada de progresso, comunicar conceitos e pensamentos determinados.
aceita sem reservas, dominante em todos os tratados Assim, a música consegue inverter sua posição na
da época, não transige na defesa da música, sobretudo hierarquia das artes. Se a música é a linguagem por
a instrumental. Um dos critérios mais recorrentes de excelência dos afetos e das paixões, sentimentos vistos
julgamento, além da elegância, racionalidade e prazer como inferiores pelo racionalismo e superiores pelo
sensorial, era a idéia de progresso das artes, derivada romantismo, este movimento interverte o posto da
da concepção de uma lei inexorável da história. E a música na hierarquia das artes, dando-lhe primazia
música não podia contrariá-Ia. Assim, ela não cessaria estética.
de alcançar novos cumes em suas possibilidades ex-
A GRANDE INFLEXÁO DA ESTÉTICA
pressivas. Graças a essa lei da história, polemiza com
ROMÂNTICA
Arteaga, ao proferir que a emancipação da música e
da poesia seria um efeito ineliminável do progresso No século XIX, as coisas mudam. O pressuposto
de ambas, legando-nos obras extraordinárias. assernãntico da música, duramente criticado, não
No apagar das Luzes, assiste-se a uma renovação é refutado pelo romantismo que a vê com outros
dos velhos paradigmas. São significativas as páginas olhos, ao fazer dessa "fraqueza", sua maior virtude,
da Crítica do [uizo de Kant (1790), mais dedica das à impulsionando-a para além de qualquer outra inten-
condição da cultura, poucas à música." Ele a coloca ção significante. A rebelião romântica se caracteriza,
como tributária de sensações vindas de um único dentre outras coisas, pelo seu anti-racionalismo, en-