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DOSSIÊ

RAZÃO, SENTIDOS E ESTÉTICA MUSICAL

Acordei bemol DILMAR SANTOS DE MIRANDA* artes, durante séculos, preco-


Tudo estava sustenido nizando o belo musical em si.
RESUMO
Sol fazia São posições polares, contendo
A possibilidade da linguagem musical ser
Só não fazia sentido várias concepções nuançadas,
portadora de sentidos do mundo e da vida,
(Paulo Leminski) ou seja, a possibilidade da existência de a exemplo de Max Weber, visto
uma semântica musical, constitui tema no por Theodor Adorno como o
pensamento ocidental, desde a Antigüidade primeiro sociólogo da música,
e for possível vislum- pela sua ambiciosa intenção de

S
clássica. Esteartigo busca pontuar momentos
brar possibilidades de marcantes da trajetória deste pensamento, elucidar as relações entre razão
estruturação de sentidos partindo da escola pitagórica até a estética e vida musical, sobretudo em
romântica, visando sempre à interlocução
nas formas musicais, temos Fundamentos racionais e so-
da estética musical com as várias correntes
um belo tema para a Filosofia ciológicos da música ocidental
de pensamento, tendo a reflexão sobre a
da Música, referente à velha (Weber, 1995).3 Para ele, o con-
razão como centro referente desse embate.
questão sobre a semanticidade ceito fundamental que organiza
musical, cuja abordagem pode ABSTRACT sua concepção sobre o ocidente
ser enfrentada em dois níveis: An old subject of western thought is the moderno (inclusive a música), é
seu entendimento lato e stricto possibilitv of a musical language to express a idéia de racionalização, chave
the meaning of the world and of the life
sensu, o que nos lançaria de heurística decisiva para a sua
(the possibilitv of a musical semantics).
imediato e necessariamente à sociologia da música., aplican-
This paper shows the great moments of
questão da linguagem musical do-a sobremodo ao tratamento
this subject, since Pythagoras' thought until
e da linguagem tout court:' the romantic esthetics. I pretend to connect
específico dado pela música
Enrico Pubini.' referência musical esthetics with severa I tendencies of
euro-ocidental ao seu material
para a cartografia do que os thought. The reference of this paper is the sonoro, aquele estoque de sons
iluministas denominavam es- reflection about the reason. de todas as culturas.
tética musical, ao refletir sobre • Doutor em Sociologia, Prafessar Adjunto do
Com efeito, nossa reflexão
as possibilidades da linguagem Departamento de Filosofia da Universidade sobre formas musicais com
Federal do Ceará.
musical constituir significan- possibilidades de constituir
tes, nos traz duas teses que se sentidos, não pode deixar de
confrontam, na história do pensamento ocidental: a) partir do pitagorismo, explicitação dos primeiros
a concepção ética que concebe a música como agen- entendimentos de uma possível semanticidade sub-
ciadora de comportamentos distintos, expressando jacente à linguagem musical lato sensu, mediante
sentimentos; b) a música como arte autônoma dos uma tipologia do ethos de diferentes povos da época.
sons, de puro deleite, que produz um prazer sensível Como se sabe, para os pitagóricos, o número não era
que se exaure em si mesma, não produzindo qualquer uma mera representação da ordem das coisas, mas o
tipo de conhecimento, nem significando qualquer constitutivo primeiro (apXll) da estrutura do cosmos.
outra coisa. No limite, uma arte autotélica. Entre os Conhecendo suas relações e a harmonia cósmica, todo
primeiros, estão os pitagóricos, entre os últimos, o o universo tornava-se cognoscível. Número e harmo-
alemão Eduard Hanslick (1989), talvez o maior te- nia eram, a um só tempo, a condição de possibilidade
órico moderno da música como pura formalização, da existência do universo e do saber verdadeiro. Daí o
sem nenhuma pretensão de falar sobre o mundo ou realce dado à música, concebendo-a como elemento
a vida, em suma, sem pretensões de significar coisas. fundante da ordem do ser. A racionalidade arquetípica
Para ele, a música não fala ao intelecto, por conceitos, era evocada a partir da série harmônica." Assim, os
como a poesia - arte-espelho para julgar as demais pitagóricos incorporaram a música a uma espécie

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de metafísica da acústica, atendendo a intervalos ser, tem que deixar de ser, identificando-a com outra
e a relações numéricas subjacentes às relações de ordem da realidade: é a arte que mais se presta às
consonância, formulando uma doutrina dos modos, propriedades do espírito. Mediando a esfera do visível
ritmos e instrumentos, articulada aos seus efeitos com a do espiritual inefável, a música se investe de
provocados nas pessoas. Tal cosmologia descobre profunda magicidade, presente em várias culturas,
um princípio ordenador: as relações intervalares da que, ao ordenar as freqüências irregulares próprias do
música, fundante da ordem do cosmos, são de ordem estoque de som/ruídos que as povoam, estabelecem
físico-matemática, abrangendo inclusive o mundo dos distintos padrões musicais, elegendo certos sons e
homens. Piatão adere a essa noção, conforme se vê interditando outros. A música pode ser vista, portan-
no IIIlivro de A República: dotada de uma essência to, como um código de seleção e de ordenamento de
racional capaz de revelar a harmonia racional de tudo, determinados sons e ruídos."
a música ressoaria também na ordem social, sendo Eis a grande diversidade das culturas musicais:
assim aceita na polis platônica. Que som eleger! Qual interditar! Eis a ambivalência
Na verdade, os gregos não concebiam a música original notada pelos gregos: a dimensão apollnea,
como arte, mas a incluíam na esfera do que conce- expressão ontológica da harmonia, investindo-se de
biam como ciência. Há uma distinção crucial entre um caráter centrípeto agregador, de valor pedagógico
a concepção grega e a moderna de ciência e, por via para a polis; a dimensão dionisíaca, poder centrífugo
de conseqüência, de razão. O conceito de Àoyoç (a desagregador, comprometendo a ordem da polis. A
razão grega) concebe o KOCJlloÇ (a boa ordem), como grande descoberta da metafísica grega foi desvelar
um todo partilhando de uma só racionalidade ima- esse mundo ambivalente, levando-a a eleger certos
nente a esse todo de sentido. A partir desse horizonte modos, como expressão distinta de ethos - o dórico,
"cosmocêntrico-objetal', o homem é visto como ape- agente da temperança, do heroísmo altivo, da aceita-
nas um ente a mais subsumido à ordem racional do ção da adversidade, pensando o ethos musical como
cosmos.' Para a tradição socrática, o juízo estético, moldado r essencial do caráter, em oposição ao lídio,
assim como o ético, dava-se por sua subsunção à es- mixolídio, jônico e frígio, modos moles, propiciadores
fera da racionalidade da episteme. Quando se diz que da indolência (A República, III livro). Expurgado o
os gregos concebiam a música como ciência, noção dionisíaco, a música é aceita por ser mais capaz de
que penetra a estética medieval, via Boécio, temos que proporcionar a noção e a vivência de ritmo, condição,
considerar aquela concepção de razão (ratio para os junto com a harmonia, para irromper o belo, bom e
latinos e cristãos do medievo). verdadeiro.
Porém, os gregos já enfrentavam uma grave Ao se dedicar à análise da natureza ambivalente
questão, ao perceberem que a música, apesar de sua da arte musical, ora apaziguadora ora excitante, já
racionalidade arquetípica, trazia também em si uma percebida desde os começos da humanidade, afirma
forte ambivalência, nomeada posteriormente, por Adorno (1991: 79):
duas forças em perene conflito: o apolíneo e o dionisía-
co. A grande energia empenhada por parte da cultura As queixas acerca da decadência do
e da música ocidental-ocidentais foi a racionalização gosto musical são, [...] tão antigas
e o domínio da natureza musical e de seu material quanto esta experiência ambivalente que
sonoro, buscando o expurgo das pulsões dionisíacas,
o gênero humano fez no limiar da época
em última análise, sua desnaturação. Vão empenho,
histórica, a saber: a música constitui, ao
pois ela sempre manteve resíduos irracionais." Antes
mesmo tempo, a manifestação imediata
de ser música é ruído.' Dentro da multiplicidade de
do instinto humano e a instância própria
objetos que povoam nossas vidas, a música é algo
diferenciado: uma espécie de sensível abstrato e intan- para o seu apaziguamento. Ela desperta
gível que persegue o sentido do inefável, propriedade a dança das deusas, ressoa da flauta
que atrairá inclusive a especulação de Hegel por vê-Ia encantadora de Pã, brotando ao mesmo
como um devi r feito de sons no tempo e que, para tempo da lira de Orfeu.

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Mas a natureza musical possui um outro traço marginais: mulheres, escravos, metecos (estrangeiros).
de ambivalência referente à racionalidade fundante Às vezes, a sociedade os tolera ou tenta integrá-Ios no
da harmonia do ser, que se articula às suas dimensões rito oficial; às vezes os reprime brutalmente. Ato co-
apolíneas e dionisíacas. Ela é dotada, a um só tempo, munitário, por excelência, a música, como a multidão,
de racionalidade harmoniosa (as primeiras resso- é, a um só tempo, ameaçadora e fonte necessária de
nâncias das séries harmônicas) e de irracionalidade legitimidade, risco que o poder deve correr, tentando
tensa (o trítono, interdito intervalar da estética cristã). disciplinarizá-la.'?
Para Adorno (1972: 6), "o mundo racionalizado, nele Nesse campo de tensões constantes, a música
sobrevivendo domínios irracionais, necessita, para se surge como cumpridora de uma função bem precisa
dissimular, a manutenção do inconsciente': E nessa na organização social, seguindo um código que Attali
função, a música, dotada dessa dimensão ambivalente, (1986) e Wisnick (1989) denominam de sacrificial. A
adquire uma importância estratégica. Por seu puro música passa a ser vivida como ritus. Da mesma forma
material, ela que o sacrifício de um animal procura canalizar a
violência destruidora, pela sua ritualização simbólica,
(...) é a arte pela qual os impulsos o som seria ritualmente sacrificado, convertendo-o
miméticos pré-racionais se afirmam em pulso ordenado e harmônico. A música desempe-
de modo inelutável, constituindo uma nha o papel do bode expiatório (oooucocov para os
constelação com as características da gregos)," cuja função real ou simbólica era polarizar
dominação progressiva sobre a natureza toda a violência natural para reinstalar as diferenças
e a matéria (id. ib.). sociais, uma hierarquia, uma ordem social estável.
Retomemos aos ruídos perturbadores. Nessa ordem
Concebendo a música como paradigma da or- mítica, o ruído seria violência: ele desestabiliza, rompe
dem cósmica, os gregos viam na natureza de certos uma transmissão, destrói. Ele é simulacro da morte.
saltos intervalares e arranjos harmônicos, possibi- A música é canalização do ruído e, portanto, simu-
lidades demiúrgicas de organização do caos, para lacro do sacrifício. O ruído, como tal, é simulação
disciplinar um mundo prenhe de ruídos. Elegendo o da destruição, fonte de exaltação e exacerbação do
som harmônico, expurgando o ruído desestabilizador, imaginário. O ruído organizado em sons harmônicos,
investindo, portanto, na música cativa da ordem, portanto, em música, é possibilidade de criação da
havia uma preocupação perene de disciplinarizá-Ia ordem social e da integração política. Não nos parece
para que ela fosse controladora dos excedentes de ser outro o sentido da natureza da música, conforme
paixão e da violência." Assim, os gregos, seguidos vimos anteriormente, na reflexão de Adorno, com
dos cristãos, valorizaram os sons harmônicos, situ- uma passagem explícita sobre o tema:
ando no mesmo conjunto de interditos, certos saltos
intervalares, como a tradição cristã fez com o trítono No seio da evolução geral, à qual ela
(diabulus in musica). participa, mediante uma racionalidade
Ampliando a reflexão sobre a ambivalência da progressiva, a música jamais deixa de
música no mundo mítico arcaico, Attali verá nesse ser, entretanto, a um só tempo, a voz
fenômeno, a possibilidade de irrupção de seu avesso. daquilo que permanece atado a esta
Sua função apaziguadora convivia sempre no limite racionalidade ou o que dela é sacrificado
da uma música popular subversiva, presente nos ritos (1972: 8).
extáticos, expressão do transbordamento de uma vio-
lência incontrolada, comum nos ritos dionisíacos da Além da eleição de alguns sons ou sua interdição
Grécia e de Roma, bem como de outros cultos da Ásia pelo silêncio, segundo seus fins éticos, os mesmos
Menor. A música, pura expressão do corpo, tornar- critérios que presidem tais distinções, na Grécia,
se-ia o lugar da transgressão. Na contra corrente dos deslocam-se para a apreciação dos instrumentos mu-
ritos oficiais, eles reagrupam, em outros lugares, os sicais. Conforme vimos no citado ensaio de Adorno,

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Pia tão, por exemplo, defendia a superioridade dos cantada para o louvor sereno de Deus. Sem o ritmo das
instrumentos mono-harmônicos como a lira e a cítara danças populares, o canto monódico flui suave sobre
(instrumentos de ApoIo), e condenava instrumentos seu arco frásico. São decisivas as contribuições da pa-
de sopro como a flauta e o aulos, e instrumentos de trística (Ambrósio e Agostinho), ditando uma arte de
muitas harmonias e cordas como a harpa." O arreba- pura espiritualidade, em que a melodia apenas acom-
tamento contido no aulos é condenado como música panha salmos e hinos, definindo-se claramente pelo
rítmica a serviço de uma celebração dionisíaca.!' papel de subalternidade, destituída em si de sentido,
A preferência pela cítara e a condenação da flau- para o sentido único da palavra em louvor a Deus.
ta, instrumentos do deus ApoIo e do deus Dioniso,
respectivamente, podem também ser examinadas RAZÃO E SENSIBILIDADE
pelas possibilidades que cada um desses instrumentos Seguem-se séculos de polifonia, cujas peças
oferece às duas respectivas estéticas: a lira permite musicais eram, via de regra, montadas a partir da
o verso cantado (a palavra, a poesia e o conceito), algaravia de vozes emaranhadas e superpostas em
postulados da estética apolínea, superior à música contraponto, o que anulava a atenção ao texto. Com
pura (instrumental) e ao ritmo. A flauta prescinde o tempo, o prazer da escuta dessa massa sonora, sem
do canto, portanto, do conceito. Ela executa a músi- preocupações com o sentido, recebe, em meados do
ca rítmica pura, postulado da estética dionisíaca. A século XVI, a reprovação do Concílio de Trento, e
noção platônica da melodia subsumida ao reino da provoca, posteriormente, a reação racionalista que re-
palavra será mantida, durante séculos, pela estética conhece a primazia estética da poesia, por ser a única
cristã e pelo racionalismo ocidental, ao manter a enunciadora da verdade, ao falar diretamente à razão.
força dionisíaca latente da música pura subsumida Segue-se o grande debate entre o melodrama francês
ao significado apolíneo dos conceitos. e o italiano, isto é, entre música vocal e instrumental.
Aqui, nossa reflexão desloca-se para o plano A música, linha auxiliar da poesia, pode aspirar algum
stricto sensu da semanticidade musical, cujas con- poder semântico, desde que reconheça seu papel de
cepções vão da total desqualificação da música ao coadjuvante do sentido das palavras. O problema se
seu grande elogio. Com o correr do tempo, sempre acirra quando ela se apresenta como música pura
espelhada na poesia, seu déficit semântico interverte- e ameaça o posto da poesia, emancipando-se do
se em grande valor, como a única linguagem capaz de texto e competindo, no plano dos afetos, o sistema
expressar o sentido do mundo e da vida. de referentes estéticos do mundo e da sociabilidade
A partir da Grécia, a demarcação dos campos humana. Na polêmica música vocal X instrumental,
em apolíneo e dionisíaco tenderá a favor do primei- onde subjaz o embate poesia X música, a questão da
ro, criando um cânone básico e uma hierarquia: a semanticidade retoma com vigor, não mais sob a égide
música como serva da palavra, o ritmo como servo da ética, mas da racionalidade. A velha tensão cristã,
da harmonia. Nessa perspectiva, o ritmo equilibrado fé X razão, se seculariza na modernidade, entre arte X
jamais deve comprometer as proporções harmônicas. razão, ou melhor, entre razão X sensibilidade. A mú-
Qualquer excesso rítmico, melódico ou instrumental, sica é arte dirigida aos sentidos, ao ouvido; a poesia,
será condenado, por ser próprio da festa dionisíaca, à razão. Na hierarquia racionalista, a música se acha
prenunciando a cisão que irá traspassar épocas e em último lugar. Descartes diz enfaticamente que o
lugares, entre a música das alturas, cívica, normativa, homem deve se tornar "senhor e dono da natureza".
harmoniosa e a música rítmica, popular, pulsante, rui- Para além de uma compreensão imediata do domí-
dosa, extática: dois parâmetros que a estética apolínea nio sobre o mundo natural, subentende-se também
lutará tenazmente para torná-Ios irredutíveis um ao o domínio do homem sobre sua própria natureza,
outro, pelo expurgo do dionisíaco. O longo período sobre suas paixões.
do gregoriano, cuja estética herdada do pitagorismo, Sob os influxos do cartesianismo, os séculos
via neoplatonismo, despoja a música do pulso rítmico XVII e XVIII assistem a dois importantes eventos
e do acompanhamento, coloca-a a serviço da palavra definidores dos rumos musicais: a invenção da har-

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monia e do melodrama. Nascem ao mesmo tempo, o acorde perfeito. A harmonia representa o ideal
uma em função do outro, pois o melodrama postula primeiro donde derivam todas as demais qualidades
um acompanhamento musical que favoreça a suces- da música, inclusive o ritmo (Cf. Fubini, op. cit., p.
são temporal dos diálogos e da ação dramática, o 34). Não renega os prazeres da escuta, então dene-
que era praticamente impossível com a algaravia da gados. Fiel ao pitagorismo, vê no prazer musical a
polifonia gótica, com a sobreposição paralela de, às justa medida da ordem universal, pela sua harmonia
vezes, dezenas de vozes simultâneas. Se o melodra- científica, fazendo-a partilhar com uma espécie de
ma goza de prestígio junto a certo público, recebe a natureza divina. Privilegiando a harmonia, prioriza
censura da cultura oficial. O alvo não é o melodrama, os valores mais essenciais da música, preparando o
mas a música. Resíduos do racionalismo cartesiano reconhecimento da música instrumental ou pura,
que só enxerga o sujeito autônomo no homem ra- como dirão os românticos. Para ele, a música era a
cional, a arte e a sensibilidade, não tendo autonomia linguagem privilegiada da sensibilidade e da razão,
própria, não cumpriam um papel essencial na vida; pois expressa, a um só tempo, emoções e sentimentos,
eram somente formas inferiores de conhecimento. A além da unidade divino-racional do mundo.
música nada acrescentava à tragédia moderna; pelo Na França, o debate setecentista sobre a ópera,
contrário, transformava-a "num espetáculo confuso a grande querelle des boufons, tumultua a cena lírica.
e inverossímil, em cuja cena, movem-se personagens As facções se dividem entre os progressistas, amantes
de modo ridículo e artificial, e morrem cantando': da ópera italiana, mais melódica e expressiva e os
Só a linguagem da razão é valida por nos enunciar conservadores, partidários da ópera francesa, mais
verdades. elaborada e racional. 15 Subjaz à grande querela, a ve-
O francês Jean-Phillipe Rameau (autor do Tra- lha questão sob nova forma: o texto (libreto), voltado
tado da harmonia reduzida a seu princípio natural, para o intelecto e a razão versus a música destituída de
de 17221\ hierarquizando o encontro e a progressão força semântica, voltada aos sentidos. Os enciclope-
de sons simultâneos) entra no debate, enfrentando distas tomarão partido na disputa, iniciando-se uma
a estética criadora do grande fosso entre razão e inflexão importante, tendo em Rousseau, dissidente
sensibilidade, entre o prazer da escuta e a mímesis do racionalismo vigente, um importante marco de
racional da natureza. Ele tenta transpor esse fosso, referência desse processo, certamente, o maior teórico
procurando compatibilizar arte e razão. Recorre à dos bufonistas, como eram conhecidos os defensores
concepção pitagórica, que se manteve viva durante dos italianos. Rousseau não aceita a dicotomia entre
séculos: passa pelos tratados medievais e renascen- razão e sensibilidade, pois reconhece o valor dos senti-
tistas, encontra acolhida no racionalismo moderno, mentos e das emoções, enaltecendo a volta à natureza
chegando até ele. e a um modo de vida sob a égide da simplicidade. Ele
A música, vista então como arte menor, um só concebe a música como canto, linguagem original
"inocente luxo" por seu caráter caprichoso e falta de do coração; ama a ópera italiana, pela naturalidade
racionalidade, terá em Rameau um importante defen- de sua grande simplicidade melódica; aborrece-lhe a
sor, que travará o bom combate, escolhendo o campo "artificial" música francesa; despreza o contraponto
e as armas do adversário. Se a música acha-se fincada polifônico da música instrumental, por achá-Ia irra-
solidamente em base científica físico-matemática, cional e antinatural.
como queriam os racionalistas, se seus princípios são Esse tipo de juízo havia sido atribuído à obra de
racionalizáveis, se a essência da harmonia se funda Bach por seus pares alemães, antecipando o juízo do
num eterno princípio racional, ela não pode ser vista enciclopedista francês no que se refere àquele estilo,
como mero objeto de prazer, nem incompatível à porém, com uma grande diferença. O racionalismo
razão. Defende o primado da harmonia por possuir alemão condena o contraponto "pomposo, pesado e
uma força expressiva maior, partindo das séries artificial" de Bach, em nome da reta razão. Rousseau
harmônicas, através das regras das propriedades condena o artificialismo do contraponto em nome da
das ressonâncias, construindo, com a tríade maior, espontaneidade dos sentimentos. Para fundamentar

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sua noção de música como linguagem dos sentimen- matemática pétrea radica a harmonia e estabelece sua
tos, desenvolve uma teoria sobre a gênese da lingua- naturalidade e universalidade, o que, para Rousseau,
gem falada em Ensaio sobre a origem das línguas. representa artifício intelectual, afastando a música da
Teria existido no passado mítico da humanidade, uma arte; a compreensão da música é um fato histórico
unidade entre fala e música. Essa indissolubilidade e cultural. A grande música é fruto do gênio, e este
permitia ao homem, em estado natural, expressar não observa nenhuma regra: o gênio é uma força da
suas paixões de modo pleno. A civilização cinde essa natureza. Por isso, é força que liberta.
unidade. As línguas, ab origine, eram acentuadas Diderot radicaliza a concepção de Rousseau so-
musicalmente, e por uma perversidade da civilização, bre a música como linguagem do sentimento, dando
ficaram desprovidas daquela melodicidade original, fim a uma poética sob o influxo do ideal clássico de
tornando-se aptas apenas para expressar a lingua- arte galante. Ele adota a noção matemático-pitagórica
gem racional. Através do canto, a música recupera donde deriva a capacidade universal e perene do
sua natureza original. Rousseau valoriza a melodia, homem de perceber as relações intrínsecas dos sons.
a linguagem natural das emoções por imitar as pai- Também aceita o princípio de que, em termos, o
xões, ainda que de forma indireta: as imita por força valor da música é histórico e varia no tempo e lugar.
daquela afinidade eletiva original com a linguagem, Se for eterna a faculdade humana de perceber as
com a forma que expressam nossos sentimentos. relações intrínsecas dos sons, contudo são distintas
Confere uma semântica oblíqua à melodia. Esta não as modalidades de percebê-los. Tal percepção é ins-
representa diretamente coisas, mas excita os mesmos tintiva e original, própria ao estado de natureza, mais
sentimentos, vendo as mesmas coisas. Abandona o próxima ao sentimento que ao intelecto, autorizando
campo subjetivo do gosto, concepção da estética da a música a expressar o mundo no seu nível mais
época, para inscrever a polêmica entre italianos e simples. Mas, justamente por essa elementaridade
franceses no plano teórico. primordial, dotando-a de uma capacidade percep-
Confrontemos Rameau e Rousseau. Ambos par- tiva mais profunda, a música, por sua imprecisão
tem de um solo comum de juízo: a natureza racional semântica, investe-se como expressão do mundo,
da harmonia. Rousseau interverte seu apreço pela har- de forma mais direta e imediata, antes e além de
monia. Ele a despreza, pois sua racionalidade interna toda convenção lingüística. Notemos que, ao ver sua
confere artificialidade à música. Daí seu desprezo superioridade justamente no fato das relações dos
pelos franceses. Já Rameau busca o fundamento pere- sons afetarem de modo direto nossa imaginação, e,
ne e natural da música, situado no princípio unitário a um só tempo, estar menos ligada às aparências do
que se encontra na base da harmonia, vendo a música mundo, revelando-nos, assim, a essência das coisas,
como arte privilegiada. Rousseau revaloriza a música, Diderot se nos afigura como um romântico avant Ia
identificando-a como a linguagem por excelência do Iettre, que antecipa formulações de Schopenhauer e
sentimento: a que fala diretamente ao coração. Para Nietzsche, afirmando, quem sabe, pela primeira vez, a
Rameau, a música, investida de uma razão suprema, autonomia da música, e anunciando, definitivamente,
una, igual em todos os tempos e para todos os povos, o crepúsculo de uma arte cortesã.
revela-se universal; para Rousseau, expressa'e imita Em fins do século XVIII, Ia grande querelle che-
as infinitas variedades do coração humano; daí seu ga à Itália, tomada com mais vigor pelos teóricos da
caráter mais culturalmente particularista. Cada me- reforma do melodrama: entre o valor da poesia e da
lodia difere de povo a povo, de tempo a tempo. Isso melodia, e depois, entre música vocal e instrumental.
também explica as diferenças de línguas: segundo Preocupados com o processo de autonomização da
suas estruturas internas, algumas são mais melódicas, melodia em relação ao texto, visível na ópera italiana,
outras não; daí as diferenças culturais, daí seu atributo seus adversários atacam violentamente a música ins-
relativo e não universal. Para Rameau, a música é trumental e os que colocam música e poesia, em pé de
dotada de uma compreensibilidade universal, porque igualdade, o que, no fundo, favorece sua autonomia.
todos os homens são partícipes da razão. Sua norma Buscam preservar as prerrogativas da poesia contra o

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BCH-PERIÓDICOS

que ajuízam ser uma prepotência invasiva da música. sentido, as belas sensações auditivas, vendo na sua
O crítico espanhol Arteaga avalia a excelência da ópera mudez à razão, uma incapacidade essencial, ao contrá-
pelo Iibreto. Reforça a idéia de superfluidade da melo- rio de outras artes como a pintura e a poesia, que nos
dia, espécie de ornamento gratuito do texto. Combate proporcionam "equivalentes intuitivos de verdades
o impulso autonomizante da música instrumental, por morais, religiosas, ou metafísicas" (NUNES, 1998: 75).
corromper seu objetivo original de suporte da poesia. A literatura infunde saber, a música apenas prazer.
O ensaísta italiano de ópera Francesco Algarotti, porta Sem força conceitual, resta-lhe a frivolidade da arte,
voz da reforma inspirada no racionalismo, retoma ao deslizando-se do coro das igrejas para a intimidade
velho princípio da supremacia da poesia, definindo dos meios cortesãos. Até então, as concepções hedo-
o papel auxiliar da melodia ao texto, só ganhando nistas encontravam justificação na função exercida
expressão, se acompanhada pela palavra. Antonio pela música na sociedade de seu tempo. O músico,
Eximeno e Vicenzo Manfredini são vozes dissidentes. protegido pelo me cena to, tinha o encargo de produ-
Apesar da sua formação matemática, ou justo por sua zir certas funções ou cerimônias, para atender fins
causa, o espanhol rousseauriano Eximeno tem como imediatos. A música devia apenas acompanhar. Seu
principal objetivo a defesa da autonomia da música, papel era levar o fiel à concentração religiosa, ou então
fundada no prazer auditivo. Em Da origem e das re- criar um clima de agradável indolência, em eventos
gras musicais (1774), rejeita a associação feita desde festivos. Era, portanto algo inessencial. Vê-se porque
os gregos entre música e matemática, considerando-a os iluministas não concediam grande importância à
uma verdadeira linguagem "autônoma". Para se com- música: a pura, vista como jogo de sensações agradá-
por bem, basta se entregar à Natureza e se deixar veis, muda à razão e sem conteúdo intelectual, moral
levar pelas sensações que se pretende criar através da ou educativo só tinha poder sobre os nossos sentidos.
música. Ao distinguir os dois mundos constitutivos Em suma, uma arte assemântica.
da música (as regras das relações físico-matemáticas Mas, Kant distingue dois modos de julgar a mú-
e os sons), nega autoridade a tais regras para ditar sica: se ajuizada pela razão, cabe-lhe o último posto;
o belo musical. De que servem números e fórmulas se pelo prazer, inverte-se seu mérito, cabendo-lhe o
que proíbem um salto intervalar, quando este pode primeiro. Aceita esta alternativa, a música represen-
ser um som agradável? Para ele, as regras musicais se ta a "linguagem dos afetos", a "língua universal" da
fundam no prazer auditivo. O teórico e compositor sensação, compreensível a todo homem, porém sem
Manfredini, partindo da idéia ilustrada de progresso, comunicar conceitos e pensamentos determinados.
aceita sem reservas, dominante em todos os tratados Assim, a música consegue inverter sua posição na
da época, não transige na defesa da música, sobretudo hierarquia das artes. Se a música é a linguagem por
a instrumental. Um dos critérios mais recorrentes de excelência dos afetos e das paixões, sentimentos vistos
julgamento, além da elegância, racionalidade e prazer como inferiores pelo racionalismo e superiores pelo
sensorial, era a idéia de progresso das artes, derivada romantismo, este movimento interverte o posto da
da concepção de uma lei inexorável da história. E a música na hierarquia das artes, dando-lhe primazia
música não podia contrariá-Ia. Assim, ela não cessaria estética.
de alcançar novos cumes em suas possibilidades ex-
A GRANDE INFLEXÁO DA ESTÉTICA
pressivas. Graças a essa lei da história, polemiza com
ROMÂNTICA
Arteaga, ao proferir que a emancipação da música e
da poesia seria um efeito ineliminável do progresso No século XIX, as coisas mudam. O pressuposto
de ambas, legando-nos obras extraordinárias. assernãntico da música, duramente criticado, não
No apagar das Luzes, assiste-se a uma renovação é refutado pelo romantismo que a vê com outros
dos velhos paradigmas. São significativas as páginas olhos, ao fazer dessa "fraqueza", sua maior virtude,
da Crítica do [uizo de Kant (1790), mais dedica das à impulsionando-a para além de qualquer outra inten-
condição da cultura, poucas à música." Ele a coloca ção significante. A rebelião romântica se caracteriza,
como tributária de sensações vindas de um único dentre outras coisas, pelo seu anti-racionalismo, en-

MlRANDA, D. S. de. Razão, sentidos e estética musical, p. 59 - 761 65


globando num grande conjunto, a crítica da cultura indissoluvelmente. Reconduzir a música e a poesia ao
ocidental - seus valores morais, sociais, políticos e seu caráter de origem, significava o redescobrimento
estéticos. O romantismo implode a dicotomia razão/ da raiz comum de um povo. A valorização romântica
sensibilidade. A musicalidade da língua primordial do primitivo vê na memória popular o arquivo vivo
não é só sentimento ou imediaticidade da emoção de um passado idealizado. O ímpeto romântico faria
versus retlexividade da razão: a língua original é, a com que os artistas se voltassem de preferência, "para
um só tempo, razão e sentimento, reflexão e imedia- o passado de suas respectivas nações, privilegiando
ticidade, em estado rude e seminal; é criação, onde assuntos que dissessem respeito a elas" (SUPINIC,
as faculdades humanas, anteriores a toda distinção 1997: 661). No interior do código musical do ro-
abstrata, estão reunidas. A música instrumental pura mantismo, a consciência política e social de alguns
se aproxima mais deste ideal. Sua dimensão cognitiva países, forjada nas guerras anti-napoleônicas, ganha
é re-entronizada por outras vias. Antes, afastada da relevo para estimular a pesquisa de temas nacionais.
razão, agora a música é vista como excelente caminho No momento em que se forja o sentimento de nacio-
para aceder a verdades inefáveis. Para os românticos, nalidade, vários países se deparam com a questão da
a música é tão mais significativa quanto mais livre sua unidade espiritual, expressão de sua identidade
da fala. A indeterminação censurada na música pura nacional. Postula-se "um substrato cultural e uma
atribui-se agora à linguagem verbal. A música (eis a 'alma' que dê vida à nova unidade política, substra-
grande contribuição do romantismo) pertence a outra to e alma que estariam no povo enquanto matriz e
ordem e se julga com normas distintas: nela se oculta origem telúrica" (MARTIN-BARBERO, 1997: 26).
a expressão humana mais autêntica e original. Onde a Daí a irrupção do romantismo em vários países. O
linguagem se mostra impotente, ela capta o real mais pensamento romântico alemão tinha em Herder e
profundamente. Goethe, seus luminares. A via do romantismo alemão
As novas tendências também se fazem sentir no e francês havia sido pavimentada por um movimento
melodrama, despojado do fundo racionalista, como estético-literário de grande envergadura, com fortes
se vê na estética wagneriana. A aspiração à união ressonâncias na vida cultural alemã. O Sturm und
de todas as artes sub specie musicae, como quer Drang, ao contrário do desprezo racionalista às coisas
Wagner com sua arte total, inspira-se sem dúvida, da sensibi Iidade, busca articular o racional e o passio-
no conceito de alguns enciclopedistas sobre a origem nal. L. R. de Carbonniêres, integrante do Sturm und
comum música/poesia. A idéia romântica da música, Drang, conclui que a música não atua apenas sobre
i.é, a aspiração à união e convergência de todas as a mente, mas diretamente sobre os nervos.
artes sob sua égide, recebeu certamente influxos Para o romantismo, a vaga racionalista varrera
rousseaurianos sobre a origem comum música/poesia. os sentimentos mais espontâneos, fazendo com que as
A teoria enciclopedista da música como a primeira elites perdessem grandes valores como o entusiasmo,
fala da humanidade é prestigiada no início do século, subsistidos no espírito do povo, por ter se mantido
algo já defendido por Vico (1725). O interesse dos distante do racionalismo assepsizante das elites.
românticos pela expressão arcaica do canto popular
e da poesia ligada aos sentimentos do povo, atrai a
Os Românticos esperam que a afirmação
atenção para os elementos originalmente musicais da da alma popular, do sentimento popular,
linguagem. Johann GottriedHerder, referência obri- da imaginação, simplicidade e pureza
gatória do pensamento pré-romântico alemão, crítico populares, quebre o racionalismo e o
do enciclopedismo francês e da Aufklãrung, se posta utilitarismo da Ilustração, considerada
contrário à idéia de uma razão gestora de toda intui- por eles causa da decadência e do caos
ção, fruto da dicotomia razão/sensibilidade. Herder social" (CHAUÍ, 1994: 17).
enxerga na música, "arte da humanidade", o vértice
das possibilidades estéticas humanas. Poética e mu- Enfim, aquela cultura definidora de unidade e
sicalidade brotam da mesma fonte, seguindo unidas identidade nacionais, encontrava-se, em estado la-

66 I REVISTA DE C,tNClAS SOCIAIS v.38 n.l 2007


tente e bruto, no mundo camponês, nas suas crenças povo, objetivadas em sistemas culturais, arte, religião,
e religiosidade, nas lendas, nas histórias infantis, na etc. Compreender tais objetivações era compreender
música e nas danças, mas sobretudo na poesia popu- o homem e sua cultura. Sentimentos, representações,
lar. O povo, coletivo dos "bons selvagens", cuja vida vontade, tenderiam a expressar um determinado
peculiar consignada como "comunidade orgânica" tipo de "estilo de pensamento" de uma época. Essas
tinha como modelo a vida pastoral, era o único depo- objetivações podiam ser estudadas como uma tota-
sitário da tradição e legítimo guardião da cultura de lidade, pois refletiriam uma "concepção" específica
uma nação e de uma raça. O povo era uma entidade de mundo (Weltanshauung). Assim, cada espírito da
espiritual transcendente à cultura e costumes parti- época (Zeitgeist) expressaria o espírito de um povo
culares: poesia, contos, música, arte popular, crenças (Volkgeist).
e religião, por exemplo, são manifestações do espírito Um grande responsável pela interversão sofri-
dos povos, ou do Volkgeist. Só a sensibilidade e a in- da pela estética alemã do início do século XIX, com
tuição podiam captar o espírito do povo (Volkgeist), grandes embates sobre as relações entre música e
e não a razão. linguagem, foi um livro prestigiado na época, Frag-
As várias modalidades das práticas culturais mentos dos Papéis Póstumos de um Jovem Médico, um
populares são também valorizadas por outros como Livro de Bolso para Amigos da Natureza (1810), de J.
os irmãos Grimm (contos) e Arnim (religiosidade W Ritter, onde afirma:
popular). Para os Grimm, a poesia desfruta de status
especial. Para eles, é justamente o anonimato das obras A existência e a atividade do homem
culturais populares que torna essencial suas criações, é tom, é linguagem, linguagem geral,
por pertencer a todo o povo. "Para eles, 'todo épico a primeira do ser humano. As línguas
escreve-se a si mesmo', não éfeito (não é artefato) mas, sobreviventes são individualizações; [00']
como as árvores, brota e cresce por si mesmo. Por A música decompôs-se em linguagens.
esse motivo, os Grimm designarão a poesia popular
Daí o porquê de cada linguagem poder,
como "poesia natural", acrescenta Chauí a seguir (op.
por sua vez, servir à música como seu
eit., p. 18). O movimento de valorização das criações
acompanhamento; é a representação
da alma popular se estende pela Europa. Da mesma
do particular no geral; a canção é
forma "suecos, finlandeses, russos, partem em busca
da religião natural, anterior ao cristianismo romano linguagem no duplo sentido, o geral e o
e ao protestantismo e superior a eles" (CHAUÍ, ido particular, simultaneamente. [00'] Cada
ib.). Em suma, a grande contribuição romântica uma de nossas palavras faladas é uma
nos fortalece a reflexão enaltecedora das práticas canção secreta, porque a música interior
culturais forjadas na alma das camadas populares, as acompanha continuamente"? (Apud
atestando uma sensibilidade espontânea de suas vi- Rosen, 2000, 102s).
sões de mundo e de formas de enfrentamentos da sua
existência. Nessa perspectiva, o fazer cultural estaria Em fins do século XVIII, já se concebe que
intimamente ligado às práticas populares da tradi- não é a música a roupagem das palavras, mas são as
ção, grosso modo, chamado de folclore. São práticas palavras que vestem a música, idéia surpreendente
anônimas, vivenciadas por pessoas pertencentes uma para a época, noção comum depois. O objetivo da
comunidade de interesses e de sentidos, praticadas no fusão das palavras com a música deveria apontar a
interior de um mundo rural tradicional. precedência desta, mas sem primazia pura, resultan-
Na Alemanha, a academia, através de uma do numa coincidência de sentidos de duas formas
importante reflexão, irá oferecer garantes teóricos independentes de expressão. Eis a grande novidade:
decisivos ao romantismo. Para as Ciências do Espíri- não cabe mais à música imitar ou adornar palavras.
to, afinadas com o ideário romântico, era possível a Seu real ideal era o de ser, ela própria, linguagem.
construção da "psicologia social" e "história" de um Essa inflexão encontra um momento importante de

MlRANDA, D. S. de. Razão, sentidos e estética musical, p. 59 . 761 67


definição na mudança da concepção da linguagem imperfeita, não comunica emoções nem as expressa.
musical como arte imitativa, conforme a reflexão Ela faz excitar a emoção, falando direto aos nossos
filosófica do fim do séc. XVIII, aceitando-se cada vez nervos, ultrapassando todas as convenções.
mais como forma artística auto-suficiente. A concep-
ção das artes como mímesis, mais aceitável para as o sentido da música [...] não estaria
artes plásticas, sempre ofereceu problemas à música, baseado em um sistema arbitrário como
situação contornada pela aceitação da música como o da linguagem, onde as palavras são o
mímesis dos sentimentos. A autonomização da música que são simplesmente porque o dicionário
instrumental, no século XIX, graças à proliferação e a cultura, que elas representam, assim
das salas de concerto, concedeu-lhe um prestígio ex- o afirmam. [Seu papel] era algo mais
traordinário, assombrando a vida musical européia. físico, [...] animal (ROSEN, idoib.).
O estatuto romântico investe-lhe de um valor ines-
timável, tornando-a a arte de maior prestígio. Basta
lembrarmos de Ritter e Hegel. Paradigma estético por A ESTÉTICA HEGElIANA NO LIMIAR DO
excelência, ela é invejada por pintores e poetas, por ROMANTISMO
ser capaz de trabalhar suas formas e linguagem, sem
precisar de referência direta à realidade exterior. Essa Entre os notáveis da estética romântica, Hegel
concepção encontra-se expressa de modo incisivo, ocupa lugar de destaque: a música, como forma
em 1799, por F. Schlegel, conforme cita Rosen (2000: privilegiada de expressão dos sentimentos, encontra
120): "Músicos falam a respeito das idéias (= temas) sua consagração filosófica. Sua Estética não é mera
em suas composições; e, com freqüência, nos damos etapa da exposição do sistema, nem mera "aplicação"
conta de que há mais idéias em suas músicas do que setorizada de sua filosofia. Ela emerge organicamente
aquilo que se fala a seu respeito" Mais adiante ainda como um corolário imperioso da filosofia do Espírito;
indaga Schlegel: desse Espírito que está em ação e se deixa reconhecer
racional e sensivelmente, através das obras de arte. Sua
(...) a mustca instrumental pura não hierarquização das artes tem um sentido totalmente
cria, ela mesma, seu próprio texto? E não distinto com relação ao Iluminismo, onde cada arte,
é seu tema desenvolvido, [...] variado, e independente umas das outras, teria um lugar próprio,
segundo suas funções. Nele, as artes vivem numa
contrastado, da mesma maneira que o
contínua relação de tensões e todas convergem para
objeto de meditação em uma filosofia de
um mesmo ponto. Dependendo da arte em ques-
idéias (id. ib.).
tão, cada uma delas exclui as demais, ao completar
Essa observação está diretamente relacionada à insuficiências precedentes, suprassumindo-se em
forma-sonata do séc. XVIII tardio: o tratamento do patamares superiores, indo da menos à mais espiritual
tema. A forma-sonata seria o gênero por excelência das artes, cumprindo assim um telos necessário, ao se
que conteria elementos da razão (Cf. Rosen, 2000: constituir, neste processo, como expressão sensível do
121). Espírito absoluto. Assim, Hegel submete o belo a um
Nesse longo processo de tensões, avanços e re- processo histórico de desmaterialização (da arquite-
cuos, a fraqueza assemântica da música tornara-se, tura mais pesada à poesia totalmente espiritualizada)
para a geração de Schlegel, uma virtude. A música e da subjetivação livre e progressiva. Ao ganhar em
não nos permite emitir enunciados concretos, como conceitualidade, a poesia perde em aparência sensí-
a fala, "Através da música, não temos condições de vel. Daí representar o primeiro sintoma do ocaso da
dizer aos nossos amigos que partiremos amanhã ou arte, ponto de transição em que ela se deixa dissolver,
de lhes dar uma receita de sopa" provoca Rosen (2000: para ceder seu posto à religião e à filosofia. A maior
198). Como representação do sentimento, ela só o faz espiritualidade da poesia em relação às outras artes
de modo vago e ambíguo. A música, como linguagem constitui, a um só tempo, seu mérito e seu limite, ao

68 I REVISTA DE mNCIAS SOCIAIS v.38 n.l 2007


não aceitar o som, como a música, como elemen- mais evolui, torna-se expressão de todos os afetos,
to sensível. Hegel representa o apogeu romântico, com todos os matizes.
conferindo à poesia sua extrema ambívalência, de Para Hegel, existe uma afinidade particular en-
ápice das artes à sua morte, por se situar no limiar da tre som e interioridade da alma como fato original,
conceitualidade. inerente à própria natureza do som, donde deriva
Negando a transcendentalidade do belo de Kant, uma primazia com relação às outras artes. Existe na
Hegel articula-o à esfera objetiva, pois a conciliação do música uma intensidade entre forma (os sons em sua
interior de uma totalidade estética com a idéia exte- ternporalidade, ou melhor, o som como domínio ideal
riorizada no belo sensível, só se efetiva na história. As do tempo) e conteúdo (o espírito como sentimento,
grandes etapas do aperfeiçoamento da arte decorrem cuja expressão incumbe especialmente à musica). Nela,
das relações existentes entre estes dois termos: idéia e tende a desaparecer a distinção entre sujeito e objeto,
forma. Para ele, a verdadeira essência da obra de arte no fluxo da consciência. Vendo na fenomenologia da
é a exteriorização (forma) da interioridade subjetiva música, a expressão espiritual e ontológica do tempo,
(idéia). Tal objetivo quem realiza com maior ade- ele afirma ser próprio da música, sua temporalidade
quação é a música. Esta, como também irá enunciar interior, consubstanciada na figuração da medida
Weber, é a "mais interior" e subjetiva das artes, sua rítmica do fazer musical, a qual se identifica com a in-
forma mais abstrata, cujo sentimento desprovido de terioridade da consciência humana. Eis uma bela pas-
forma, "se manifesta, não na realidade externa, mas sagem acerca da sua concepção da música, enquanto
numa exteriorização instantânea que se desvanece, forma do tempo e sua plena identidade com o fluxo da
logo que é surpreendida. O seu conteúdo é assim for- consciência do sujeito e de sua interioridade.
mado pela subjetividade espiritual, na sua realidade
espiritual" (HEGEL, 1993: 349). Em termos mais precisos, podemos dizer
A música, mantendo-se no âmbito da verda- que o próprio eu real faz parte do tempo
deira arte, consegue, mais do que outra, expressar a com o qual se confunde, se abstrairmos
interioridade sob a forma do sentimento subjetivo,
do conteúdo concreto da consciência;
numa forma sensível abstrata, o som. Ela é pura prá-
[...] O eu existe no tempo, e o tempo é
xis e devir; ela se faz no tempo. Para existir tem que
o modo de ser do sujeito. Ora, dado que
deixar se extinguir. Seu conteúdo é o "subjetivo em
é o tempo, e não a espacialidade [como
si". Sua exteriorização não se prende a uma forma
as artes plásticas}, o elemento essencial
espacializada. O som paira no ar, sustentado apenas
ao qual o som, do ponto de vista do seu
pela interioridade de uma escuta subjetiva. Manifes-
valor musical, deve a sua existência e que
tação exterior, o som tem como traço característico
a auto-destruição. o tempo do som é também o do sujeito, o
som, em virtude deste princípio, penetra
no eu, apreendendo-o na sua existência
Apenas afetou o ouvido, logo se extingue;
simples e o põe em movimento pela
a impressão que produz interioriza-se
imediatamente; os sons só encontram sucessão rítmica dos instantes do tempo,
o seu eco no fundo mais íntimo da enquanto que as outras figurações dos
alma emudecida e comovida na sua sons, como expressão dos sentimentos,
subjetividade ideal (op. cito p. 494). completam o efeito produzido pela
simples sucessão rítmica no tempo,
Sua função não resulta em expressar emoções levando a emoção ao seu mais alto grau
particulares, mas a de revelar à alma sua identidade, e destruindo as últimas resistências que
enquanto puro sentimento, graças à afinidade de sua o indivíduo poderia ainda opor em se
estrutura com a própria estrutura da alma. E quanto deixar seduzir (id. ib. p. 502).

MlRANDA, D. S. de. Razão, sentidos e estética musical, p. 59 - 761 69


SCHOPENHAUER: A MÚSICA COMO todos os matizes dos sentimentos humanos. A música
LINGUAGEM IMEDIATA DO MUNDO não é fenômeno, senão a idéia mesma. Ela nos dá a
essência, o em si, princípio numênico do mundo. A
Em Schopenhauer, encontra-se o melhor elabo-
música é uma espécie de duplo numênico: a natureza
rador de uma semântica musical de dimensão metafí-
e a música são duas expressões distintas do mesmo.
sica. Assim, a grande polêmica entre semanticidade/
assemanticidade da música é resolvida, por ele, pelo A música, vista como expressão do
encurtamento, ou melhor, pela anulação da oposição mundo, situa-se no patamar mais alto
das duas instâncias - representante e representado,
da linguagem universal, estando para
obtendo assim sua plena identificação. Não a exis-
a generalidade dos conceitos como os
tindo, não há porque indagá-Ia da sua possibilidade.
conceitos estão para as individualidades
Seguido por Nietzsche, Schopenhauer define a ques-
fáticas (SCHOPENHAUER, apud
tão, partindo para o pleno reconhecimento, em outros
Nietzsche, 1977: 111).
termos, das possibilidades de expressão da música,
talvez representando a mais acabada sistematização o conceito diz o mundo. A música é o mun-
filosófica da música segundo os ideais românticos. do. Nasce daí, a questão fundamental da estética
Para ele, é próprio da arte provocar no homem o re- de Schopenhauer, i.é, a relação entre a música e o
conhecimento das Idéias, isto é, a objetivação direta mundo, e, em definitivo, entre música e sentimentos.
da vontade, princípio numênico do mundo. "Amúsica Nesses termos, ele partilha da visão da inefabilidade
não é, como outras artes, a manifestação das idéias ou da música, tema que sempre retoma. Só se pode
graus de objetivação da vontade, mas é diretamente a falar da música por metáforas, pois ela constitui-se
própria vontade" (SCHOPENHAUER, s/d: 677). como uma linguagem absoluta e intraduzível. Daí
Como Hegel, Schopenhauer também hierarqui- somente ela, enquanto linguagem inefável, ser capaz
za as artes: aquele as vê como graus de objetivação de significar dimensões inefáveis do mundo. EUa é a
do Espírito, este vê graus da objetivação da vontade. fonte suprema do conhecimento, revelando a priori,
Como Hegel, Schopenhauer vê a arquitetura como a antes mesmo da própria coisa ser significada pela
mais pesada e inferior das artes. A escultura, a pintura, linguagem comum. O teor de verdade da música está
a poesia e, por último, a tragédia, atingem os patama- no fato dela não ser representação e sim expressão.
res mais altos de objetivação da vontade. Mas, ao con- Aquela pode induzir ao erro e ao falso. Sua verdade
trário de Hegel que via na música o estágio supremo está na sua transcendentalidade com relação ao falso
da objetivação sensível do Espírito, em Schopenhauer, e ao verdadeiro. simplesmente existe.
a música investe-se de uma centralidade constitutiva A melodia adequada faz aparecer toda a inten-
ímpar. Ela é tratada como uma arte intrinsecamente sidade efetiva do mundo e da vida, no seu sentido
distinta, acima de hierarquias. As outras artes pos- mais sublime. Essa adequação se dá quanto mais
suem uma relação mediata com o mundo, na esfera análoga for a expressão da universalidade, contida
de representação das Idéias. A música é expressão na melodia, com o espírito interior de um fenômeno
direta e imediata da vontade, colocando-se no mesmo determinado, expressão da particularidade. Mesmo
patamar das Idéias. Não se limita a representá-Ias. A na particularidade de uma obra musical que pretende
priori, ela é a própria vontade. Expressão direta do expressar um sentimento específico uma personagem
real, ela revela sua essência primordial. Opondo-se determinada, a música transcende o particularismo
ao conceito, o domínio da música, como linguagem desse afeto para falar da universalidade do mesmo.
do sentimento, representa a vida mais íntima, mais Assim como para Hegel, a música era a expressão
secreta, mais verdadeira da vontade. A música pode de todos os sentimentos, com todos os matizes "do
recorrer, expressar todas as manifestações da vontade, júbilo, da serenidade, do bom humor, do capricho, da
todas suas aspirações, bem como as satisfações e al- alegria e do triunfo da alma, de todas as gradações
voroços do espírito. Por isso, pode expressar também da angústia, do abatimento, da tristeza, da amargu-

70 I REVISTA DE Ci~NCIA5 SOCIAIS v.38 n.l 2007


ra, da dor" (HEGEL, op. cit.: 499s), conforme se viu, do mundo. Mas, a música deve manter intacta sua
também para Schopenhauer, a música não representa dignidade e sua função; daí condenar todo propósito
. sentimentos determinados de alegria, dor, deleite ou imitativo. Lembre-se que música não expressa este
serenidade. Numa sinfonia de Beethoven, nós ouvi- ou aquele sentimento, senão o sentimento universal
mos, a um só tempo, todas as paixões e emoções do in abstracto."
coração humano, "a alegria, a melancolia, o amor, o Tais princípios são partilhados por vários român-
ódio, o terrível, a esperança, com todos seus matizes ticos, que, mais e mais, definem com linhas precisas,
infindáveis, mas sempre, de qualquer maneira, in o estatuto dionisíaco da música. Nietzsche será sua
abstracto e sem particularismos e especificações" expressão mais acabada. A escuta romântica implica
(SCHOPENHAUER,op. cit.: 681). A música irrompe uma particular condição de arrebatamento, quase um
sem necessidade de acessórios e motivos, como um arroubo místico, fora de qualquer esquema lógico
mundo de puros espíritos. Quando ela, forma pura ou pré-julgamento formal, visto que a música é uma
do sentimento, empresta sua expressão a certo texto convocação direta ao coração. O poder dionisíaco da
que diz uma dada situação, o sentido da melodia entra música potencializa nossas faculdades vitais, pondo-
em contradição imediata com o seu sentido, pois a nos em estado de embriaguez. Berlioz, que extravasou
música jamais deve ser serva do particularismo do sua exuberante personalidade em numerosos ensaios
conceitual. críticos, diz: "ao escutar certos trechos de música,
minhas forças vitais parecem multiplicar: sinto um
Na musica, as palavras são e serão prazer delicioso, mas o raciocínio não tem nele papel
sempre uma adição estranha e de um nenhum"(apud Fubini, op. cit, nota 54/114).
valor subalterno, visto que o efeito dos
sons é, sem dúvida, incomparavelmente o ROMANTISMO TARDIO: WAGNER E A
mais enérgico, mais infalível e mais direto ARTE TOTAL
que o das palavras (id. ib. p. 678). O horizonte onde se move a estética wagneriana
é o mesmo conceito romântico da arte como expres-
Na apreciação da ópera, profere o filósofo: são, junto à convergência com as demais artes, para o
logro de sua mais completa tradução. Porém, o desejo
(...) a arte musical nos fará desvelar de unificar todas as artes sob a égide da música não
rapidamente seu poder e sua é novo. No interior da polêmica sobre o melodrama
superioridade; ela nos aportará setecentista de gosto italiano, já havia aflorada a as-
a interpretação mais profunda, a piração de se criar um melodrama autenticamente
mais perfeita e a mais escondida dos impregnado de espírito germânico. A estética wag-
sentimentos expressos pelas palavras, neriana ambiciona a integração orgânica de todas as
ou pelas ações representadas pela ópera" artes sub specie musicae, o ideal da Arte Total- a Gesa-
(id. ib.). mtkunstwerk. O Drama wagneriano não é um gênero
musical nem literário. Arte-síntese na sua unidade é a
Importa observar a radicalidade da interversão própria arte. Seria o termo bem sucedido dessa aspi-
da concepção do autor. Como dedução lógica do pri- ração. Como Schopenhauer, também Wagner aceita
mado da música sobre o conceitual, e no contrafluxo a música como "a linguagem imediata do coração",
dos racionalistas, sua música predileta é a instrumen- infletindo porém sua orientação. Como a música pura
tal, por se apresentar essencialmente pura, isenta de não pode expressar a individualidade, um conteúdo
qualquer mescla, limpa de conceitos que obscurecem determinado e claro, não podendo dar sensações, se-
sua nitidez e a cercam de outras formas de expressão não gerais, o Drama wagneriano pretende pôr termo
que não lhe são próprias. Ele não nega a possibilidade a todas essas insuficiências, dando fim à alienação
da união entre música e poesia, por se tratar de ex- da música pura em si mesma, reintegrando-a, numa
pressões muito diferentes da mesma essência íntima só arte, ao sentido do conceito. Para Wagner, toda a

MlRANDA. D. S. de. Razão. sentidos e estética musical. p. S9 - 761 71


história da música não é mais do que a história das Todas aquelas noções precedentes de uma músi-
tentativas mal sucedidas de resolver esse dilema. A ca como linguagem dos sentimentos, como expressão
história de um Beethoven maduro, sentindo-o mais do que é inefável à linguagem discursiva, por esta ser
agudamente, é a história do esforço de expressão do produto da inteligência, encontra dissertação precisa e
inefável, o que somente a Nona realiza, por aí se entre- sistemática em Wagner, quando ele, prestes a concluir
ver as possibilidades reais da música: o hino à alegria Ópera e Drama, escreve:
abre novos horizontes, que Wagner se sente destinado
a prosseguir. Para ele, esta sinfonia é um marco, um [...] a linguagem dos sons como pura
símbolo de sua grandiosa concepção histórica, de emancipação do sentimento expressa
matriz hegeliana, onde toda manifestação artística precisamente o que a linguagem das
superior exclui as etapas e insuficiências precedentes palavras não pode expressar; logo,
e necessárias para cumprir um telos. considerado sob nosso ponto de
Assim, o conceito de Arte Total radica-se na teo- vista intelectual, humano, expressa
ria da origem comum de música e palavra primitivas, simplesmente o inexpressável
herdada do Sturm und Drang e do enciclopedismo (WAGNER, apud Fubini, op. cit.: l30).
rousseauriano. Nessa unidade mítica ab origine, vogais
e consoantes representavam papéis distintos, porém Wagner oferece nuances importantes à estética
integrados na mesma linguagem: as vogais eram a de Schopenhauer e sobretudo à de Nietzsche, a des-
parte emotiva, musical e melódica da linguagem; as peito da avaliação positiva que este fazia, em sua ju-
consoantes eram a parte "plástico-intelectiva" capaz ventude, atribuindo à música wagneriana a expressão
de determinar, fixar e condensar. A situação moderna maior do dionisíaco e do trágico, qualidades perdidas
alterou-a: a preocupação poética é servir-se somente então. Como se sabe, a estética romântica coroará
de palavras afastadas de suas raízes e enrijecidas em todo aquele longo e tortuoso itinerário dos constantes
fórmulas, dirigindo-se essencialmente à razão, sem embates entre a inefabilidade da linguagem musical
nunca nos precipitar na plena realidade dos afetos; já o e a linguagem explicitamente semântica da poesia.
músico, ao se valer dos sons, nos lança ao sentimento, A posição iluminista fica totalmente intervertida:
mas de modo indeterminado, por ser a música a arte a música é tão mais significativa quanto mais livre
do desconhecido e do inexpressável. e afastada da linguagem verbal. A indeterminação
Wagner pretende recuperar aquela autêntica sempre reprovada na música instrumental, agora
unidade original da linguagem. A auto-suficiência somente existe do ponto de vista da linguagem das
vigente da música lhe impõe um limite: "em seu palavras. Isto porque a linguagem da música - eis
orgulho, a música havia se transformado em sua a grande contribuição dos românticos - pertence a
antítese; do fato que concerne ao coração, havia se outra ordem e se julga com normas bem distintas:
transformado em fato que concerne à inteligência': nesta linguagem, se oculta a expressão mais pura e
Para superar essa impotência expressiva, a poesia original do homem.
deverá recorrer "ao órgão primitivo do sentimento
íntimo da alma, a língua dos sons", isto é, "à expressão A ESTÉTICA MUSICAL EM NIETZSCHE: A
redentora da música': pois ela representa o único meio EXPLOSÃO DIONISíACA
de redimir a linguagem das insuficiências históricas
que vive, uma vez privada de seu conteúdo lírico-
Que efeito estético é engendrado
sentimental "A língua dos sons é princípio e fim da
língua das palavras". A solução está no retorno ao quando [...] o apolíneo e o dionisíaco,
estado original onde poeta e músico "são uma só e em si separados, agem de acordo?
mesma coisa, porque cada um sabe e sente o que o Ou simplesmente: qual a relação da
outro sabe e sente: agora formam os dois o homem música com a imagem e o conceito?
artístico completo"," (NIETZSCHE, 1977: 111).

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Tais questões nos remetem de imediato ao epi- abissais mais profundas. É aí que reside seu conteúdo
centro da estética de Nietzsche em O Nascimento da de verdade, não da verdade conceitual, herança do
Tragédia, quando o filósofo expressa em cores fortes, otimismo socrático. A verdade da linguagem musi-
o antagonismo entre conceito, imagem e música. Para cal é de outra ordem. A música, através da sua força
ele, a palavra inscreve-se na ordem conceitual, daí sonora, é capaz de expressar uma potência de vida,
sua fraqueza face à expressividade musical da ação um poder revitalizador.
trágica. A maravilha da arte grega dionisíaca reside Encontramo-nos no epicentro da concepção
justamente na total ausência do conceitual. Desvela o romântica da música, vista como a única capaz de
oculto, o não revelado pelo conceito. A sabedoria da dar conta de uma realidade inefável, de desvelar os
música pura é irreconciliável com o saber conceitual. mistérios dos afetos humanos, por ser ela mesma
Não é a flauta, o instrumento musical por excelência constituída de inefabilidade, de sua linguagem expres-
de Dioniso, o que obsta o uso simultâneo das palavras sar os "excessos próprios de sentidos" da existência
do canto poético, portanto o uso do conceitual? Para humana. A música é investida assim daquele atributo
responder estas questões, o jovem Nietzsche recorre dionisíaco tão caro à estética de Schopenhauer e
a Schopenhauer. Como se viu, para este, o mundo Nietzsche, espécie de meta-semantização referente a
fenomênico natural e a música são duas expressões uma realidade mais profunda e inefável, inatingível
da mesma coisa. Nietzsche adere fortemente a tal para a linguagem comum. Consuma-se assim um
noção, com uma longa citação de Schopenhauer, em longo percurso: do déficit de Significado da música
O Nascimento da Tragédia, cuja idéia central já foi ex- à sua explosão de sentidos, cuja linguagem nos fala
plicitada: a música, vista como expressão do mundo, de um mundo, muitas vezes inapreensível por outras
situando-se no patamar mais alto da linguagem uni- linguagens.
versal, gozando do mesmo estatuto da generalidade
CODA: DA INSIGNIFICÂNCIA SEMÂNTICA
dos conceitos (CE. Nietzsche, op. cito p. l l L).
Todo sentimento humano pode expressar-se AO PLENO SENTIDO DO MUNDO
pelas infinitas melodias possíveis. Quando isso é feito O mais fundamental a ser retido na integridade
adequadamente, ou seja, quando se estabelece "esta de todo esse legado musical é o que se efetuou no
relação estreita entre a música e o ser verdadeiro das interior da estética romântica oitocentista. A herança
coisas" (id. p. 1l2) - de alguma cena, ação, aconteci- do racionalismo, atribuindo total ausência de senti-
mento, - somos lançados numa experiência estética dos para atingir a razão e a verdade, desprestigiando,
total, onde a música nos parece revelar seus segredos assim, a arte musical, não é alterada, apesar de todos
e mistérios mais recônditos, a exemplo da execução os avanços de linguagem musical, via tonalismo, das
de uma sinfonia, onde "nos parece ver desfilar diante obras de Bach e Rameau, bem como a inauguração
de nós todos os acontecimentos possíveis da vida e da Estética de Baumgarten (1750). Kant colocou a
do mundo"(id. ib.). O próprio da música não é ser música como arte tributária apenas do sentido audi-
cópia nem representação "semântica" do mundo tivo, vendo na sua mudez à razão, uma incapacidade
fenomênico, porém ser reprodução imediata da essencial: mero divertissement da etiqueta cortesã,
vontade, expressão da imediaticidade e efetividade inessencial para o entendimento e a razão. Para ele,
do mundo e da vida. A melodia adequada faz aflorar a música, como arte galante, era "mais gozo do que
toda a intensidade efetiva do mundo e da vida, no seu cultura".
sentido mais sublime. A partir daí, as coisas começam a mudar. Como
A música, na sua busca pela suprema intensida- se viu, o romantismo não repele a ausência de seman-
de, isto é, na procura da excitação energética contida ticidade na música, fazendo disso sua grande força.
no interior da fonte sonora musical, busca também Como querem alguns de seus teóricos, a música pode
sua suprema figuração, o que ocorre somente na sua captar toda a essência espiritual do mundo (Hegel);
sabedoria propriamente dionisíaca que lhe é própria. constitui-se como a estrada real para se atingir o
Nietzsche vê a arte como expressão da vida, das forças mais alto conhecimento (Beethoven); a música não é

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representação do mundo mas sua própria expressão lores dramáticos da vida neles envolvidos, bem como
(Schopenhauer); e este seu poder é tão mais potente à própria intuição da realidade, nos proporcionando
quanto mais afastada de qualquer tipo de conceitua- a dignidade de um exercício filosófico, concepção
lidade (Nietzsche). compartilhada pelo contemporâneo Beethoven. Em
Repontuemos alguns itens desse processo infle- suma, a música como via real para o mais alto conhe-
xivo: Hegel, que concebia a arte como manifestação cimento (Cf. Nunes, op. cit.: 77s).
sensível do Espírito, irá valorizar a música pelos Assim, chegando aos meados do século XIX,
mesmos critérios usados por Kant para rebaixá-Ia. a música obtém a primazia estética, rompendo com
A imaterialidade do som tem mais identidade com o os padrões da linguagem verbal. Nietzsche, ao es-
substrato da espiritualidade inefável do real, e esta é tabelecer a crítica da cultura e da ciência moderna
a sublime função da arte musical expressar. Daí, sua da Europa de sua época, por "instigação da música",
maior afinidade eletiva com o espiritual, se compa- assume a forma mais radical da crítica, a partir dos
rada a outras artes, como a pintura ou a escultura. dois impulsos vitais: o dionisíaco, expressão de êxtase
É uma forma de conhecimento, apenas um posto e transe, estados que podem ser provocados pela mú-
abaixo da poesia, esta situada no limiar entre a arte e sica; e o apolineo, princípio da individuação, contido
o conceito. Justamente pelo seu caráter estruturante e plástico, constitutivos primordiais da pulsão cria-
no e do tempo, a música participa do estatuto cam- tiva das artes, que o jovem Nietzsche irá encontrar,
biante do devir, aproximando-nos do dinamismo da em forma mais acabada na tragédia ática, renascida
consciência subjetiva, dando-nos a conhecer afetos e no drama musical de Wagner. O grande empenho
sentimentos, partes constitutivas desse dinamismo. e mérito do romantismo foi, sobretudo, implodir a
No contrafluxo da noção que vê na música mero ma- dicotomia razão X sensibilidade. A musicalidade da
nifesto de sentimentos particulares de um artista, esta língua primordial da humanidade unia, num só fato
concepção confere ao termo "expressão" a intenção de e tempo, razão e sentimento, reflexão e imediaticida-
agenciamento de sentido estético, por meio de sons de. Assim, a dimensão cognitiva banida da música é
investidos da condição de signos, i.é, de elementos re-entronizada, tornando-se a via real para acessar
com possibilidades de construir formas significan- verdades inefáveis.
tes (Cf. Nunes, 1998: 77). "A música forma de certa
maneira aquilo que ela expressa, estruturando como NOTAS
linguagem, os sentimentos que os signos de natureza
Trata-se de um rema dissertado por vários pensadores: Adorno
verbal abstraem" (NUNES, op. cit.: 77). (1982), Fubini (1971 e (1995) Wisnick (1989), dentre ourros.
Vimos, em Schopenhauer, o melhor elabora-
2 Para Fubini, a questão do sentido da música confunde-se com
dor de uma semântica musical investida de foros a estética musical. "A história da estética musical podia ser
metafísicos. A música vai além da individualidade configurada [...] como a história das relações da música com as
subjetiva, nela desvendando intuitivamente a vontade artes, no que refere ao seu poder semântico" (1971: 8).
do inconsciente, cujo conhecimento pleno nos chega Em tempo: as citações das obras de Adorno (1972), Attali
por meio de um magna liberador da fruição estética. E (1977), Nietzsche (1977) e Schopenhaeur (s/d) foram
somente através do poder extático da música, sujeito traduzi das diretamente do francês, pelo autor. O mesmo
e objeto fundem-se numa mesma entidade. Sua fe- procedimento se aplicou para a obra de Fubini (1971), cujas
nomenologia nos desvela graus de percepção da obra citações foram traduzi das diretamente do espanhol.
musical. Temos, inicialmente, as sensações e o prazer 3 Apêndice póstumo de Economia e Sociedade. Dois importantes
advindos do tonalismo; depois, as formas como temas, trabalhos de caráter propedêutico sobre esta obra de Weber
encontram-se na Introdução da edição brasileira de 1995: o de
frases, motivos, as estruturas maiores, só propiciados
autoria de Gabriel Cohn e, sobretudo, a apresentação e as notas
pela ação do tonalismo; num terceiro instante, a per- de Leopoldo Waizborc.
cepção das proporções inerentes ao próprio código 4 A série harmônica, espécie de escala natural, se manifesta por
da composição; e finalmente, a ressonância última da uma progressão freqüencial: uma corda esticada, vibrando em
música, nos colocando face aos sentimentos, dos va- cerca freqüência fundamental provoca ressonâncias internas

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múltiplas, guardando relações numencas constantes entre si. Ii Da mesma forma que o (jlUp)..lalCOV tem um valor ambivalente
Na nota dó, o 10 harmônico é o mesmo dó, uma oitava acima; (a um só tempo, veneno que mata e remédio que cura), o
o 2° é o sol, que compõe o intervalo de quinta, e resulta de som tem a ambivalência de produzir ordem e desordem, vida
uma multiplicação freqüencial da ordem de 3/2 em relação ao e morte, coabitação necessária e arnbivalenre, conflituosa e
som anterior. O 30 é novamente o dó, fazendo com o sol (2° harmoniosa (Cf. Wisnick, 1983).
harmônico) um intervalo de quarta, e assim sucessivamente. 12 Cf. também Wisnick, 1983: 140 e nota 38/214.
5 A modernidade concebe a razão como uma entidade do sujeito 13 "Palas Arena, [... ] persona da sabedoria, da razão e da castidade,
autônomo, que, por ser racional, confere racionalidade às coisas, defensora do Estado e do lar [... ], protetora da vida civilizada e
visto que estas não portam sentido em si mesmas. A grande inventora das rédeas que controlam os cavalos, ao ver sua face
ruptura com o modo de pensar greco-medieval, operada no refletida num lago, quando tocava o aulos dionisíaco, estranha
mundo moderno, significou uma radical mudança no horizonte seu próprio rosto (inflado pelo sopro) e atira o instrumento às
do pensamento europeu, i.é, todo o sentido do mundo passou águas. O carnaval, negado pela filosofia, mora no esquecimento
a ser constituído a partir de onde os diferentes objetos do da evolução musical do Ocidente" (Wisnick, op. cito p. 96 e
conhecimento passam a receber sua determinação, dentro nota 42/96, citando A Política de Arisróteles).
de uma perspectiva anrropocênrrica. Tal ruptura significou a 14 Mesmo ano em que Johann Sebastian Bach publica seu Cravo
substituição da perspectiva "cosrnocêntrica objetal" por uma bem temperado, importante obra, juntamente com a de Rameau,
outra, "antropocênrrica subjeral", de acordo com a qual, o todo para fixar a harmonia e a lógica rnodularória do sistema tonal.
de sentido é constituído pela consciência intencionalizadora
15 Os progressistas, após a reforma cênica, sentavam-se à esquerda
desse sujeito autônomo racional (Cf. Oliveira, 1998: 85).
do camarote da rainha (coin de Ia reine), e os conservadores,
6 Tal irracionalidade acha-se no próprio modelo pitagórico das partidários da ópera francesa, sentavam-se à direita do rei icoin
séries harmônicas, em cujo final do ciclo, ocorre uma sobra de du roã, tópica estética que antecipa a cartografia ideológica
freqüência (uma coma fatal). do período pós-revolução francesa, quando os jacobinos e
7 Um ruído é a própria expressão da irregularidade caótica do som. os conservadores girondinos dividiam-se, respectivamente, à
A fala já estabelece um padrão de regularidade, com a rítmica esquerda e à direita, na Assembléia Nacional. Durante o período
baseada na prosódia. A reza e o pregão de rua estabelecem uma do absolutismo, as óperas eram encenadas nos palácios, cuja
regularidade entre a fala e o canto. montagem obedecia rigorosamente a uma perspectiva nobre, ou
seja, os cenários eram montados partindo de um eixo que unia
8 "Toda música pode ser definida como um ruído formalizado
em linha reta, o camarote central do príncipe com o fundo do
segundo um código (i.é, segundo regras de agenciamentos e de
palco. Depois, construíram-se outros teatros, democratizando
leis de sucessão, num espaço limitado de sonoridades)" (Arrali,
sua disposição cênica, para uma visão multifocal.
1986: 45). "Som e ruído não se opõem absolutamente na
16 Antes, em 1750, saíra o livro Estética, de Baumgarten. Este
natureza: trata-se de um continuum, uma passagem gradativa
autor admitia que a faculdade estética de conferir o belo a
que as culturas irão administrar [... ]" (Wisnick, 1989: 27).
certos objetos, era um atributo da ordem do conhecimento,
Esse continuum pode ser visto pela seguinte seqüência: simples
mas de natureza inferior (logica cognoscitiuae inferiores). Assim,
ruído, fala, reza, grito, pregão de rua e canto. De fato, o pregão
as artes (também a música) não poderiam rivalizar com a razão,
e o canto partilham um campo comum de organização do som
mas forneciam um saber análogo ao da razão.
numa determinada altura. Apesar das clivagens depuradoras,
visando nos apresentar sons "eufônicos" de alturas melódicas 17 Ritrer, apud Rosen, op. cito p.102s. A noção de música
como linguagem geral foi também impulsionada por
definidas, qualquer som, em termos físico-acústicos, ou
E.T.A. Hoffmann. Para Rosen, sua reflexão sobre música e
qualquer ruído arrítmico e instável, por mais irritante que seja,
linguagem será particularmente adequada para descrever a
são fenômenos naturais remissíveis entre si. As notas emitem
técnica das canções de Schumann, pois só eventualmente sua
vibrações cuja unidade de freqüência em ciclos por segundo, é
linha geral musical se encontra individualizada por palavras:
medida em hertz (o lá do diapasão possui 440 herrz). Através
a linha completa está no instrumento ou passa do piano
da análise eletrônica, pode-se transformar qualquer nota
para a voz, procedimento que será a base do drama musical
com altura definida, em pulsação totalmente "desrimbrada":
wagneriano. "A originalidade dessa concepção está no fato de
do mesmo modo que qualquer ruído pode ser mudado, por
transformar, radicalmente, a relação tradicional entre canção e
uma regularidade freqüencial contínua, em som com altura
acompanhamento" (Rosen, idem, p. 105).
definida.
18 Por vias oblíquas, podemos considerar que, nesse sentido,
9 Citando O Espírito das Leis, de Montesquicu, Artali (1986: 27)
Schopenhauer pavimenta o caminho para o formalismo de
toma seu testemunho por ele ter visto na música dos gregos,
Hanslick. O princípio da autonomia da linguagem musical,
um prazer necessário à pacificação social, o único compatível
desenvolvido porém no sentido anti-rornânrico, décadas mais
com os bons costumes. tarde, está já implicitamente contido na afirmação segundo a
10 Carlos Magno buscou a unidade política e cultural de seu qual, a música não se situa em relação direta com os sentimentos,
reino, impondo por toda parte, a prática do canto gregoriano, e de que não pode nem deve suscitar no ouvinte sentimentos
inclusive por manu militari. (Cf. Attali, id. ib). determinados.

MlRANDA, D. S. de. Razão, sentidos e estética musical, p. 59 - 76 75


I
19 AI; citações desce parágrafo foram retiradas de Obra de Arte do PLATÃO (1996) A República. Lisboa: Fundação Calouste
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