MÁRCIA AMANTINO
AMANTINO, Márcia
A ESCRAVIDÃO INDÍGENA E SEUS DISFARCES EM
MINAS GERAIS NO SÉCULO XVIII
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442): 163-182,
jan./mar. 2009
Rio de Janeiro
jan./mar. 2009
A escravidão indígena e seus disfarces em Minas Gerais no século XVIII
Márcia Amantino1
Resumo: Abstract:
Do século XVI ao XIX inúmeros documentos, From XVI to XIX century many documents, trea-
tratados, discursos e análises dividiram os ín- ties, speeches and analysis divided the Indians of
dios da América Portuguesa e depois do Brasil Portuguese America an after of the Brazil in an
em uma imagem dicotômica e simplista: os Tupi image dichotomous and simplistic: the Tupi and
e os Tapuias. Uns mais mansos que outros. Os Tapuia. A few moro gentle than others. The first,
primeiros propensos à catequese e controle e o prone to cateshesis and control and the other, the
outro ao extermínio e à escravização, posto que estermination and enslavement since not accept
não aceitassem os ensinamentos. Os índios que the teachings. The Indians who were hostile to the
foram considerados hostis ao projeto de coloniza- project of colonization imposed im Minas Gerais
ção imposto em Minas Gerais ao longo do século during the eighteenth century suffed many forms
XVIII sofreram inúmeras formas de extermínios of exterminations and those who survived were
e os que sobreviveram foram sistematicamente
systematically transformed into labor-captive.
transformados em mão de obra cativa. Contudo,
However, as this was illegal practice, the set-
como esta era uma prática ilegal, os colonos e,
em alguns casos, as autoridades, conseguiram tlers, and in some cases, the authories, created
criar mecanismos que disfarçavam o cativeiro. mechanisms to disguise the captivity.
Palavras-chave: índios, Minas Gerais, escravi-
dão. Keywords: Indians, Minas Gerais, slavery.
Desde o século XVI, inúmeras leis foram criadas pelo governo por-
tuguês visando a dirimir questões ligadas à liberdade dos indígenas. A
legislação ora atendia aos apelos dos jesuítas, ora a dos colonos, ávidos
por mão de obra. Desta forma, os conflitos eram inevitáveis e, apesar
das proibições de escravização dos nativos, quase sempre havia nas leis
condições específicas em que o cativeiro era possível, pelo menos para
alguns grupos.2
O cativeiro era considerado legal quando o índio em questão havia
1 – Professora do programa de pós graduação da Universidade Salgado de Oliveira -
UNIVERSO.
2 – PERRONE-MOISES, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da le-
gislação indigenista do período colonial. Séculos XVI a XVIII. In: CUNHA, Manuela
Carneiro da. (org). História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras; Secretaria
Municipal de Cultura: FAPESP, 1992, p. 115-132. e SILVA, Francisco Ribeiro da. A le-
gislação seiscentista portuguesa e os índios do Brasil. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da.
Brasil: Colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2000, p. 15-27.
7 – CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional/
Brasília: INL, 1878, p. 123 e 124.
8 – Idem
11 – BARRETO, Domingos Alves Branco Moniz. Plano sobre a civilização dos Índios do
Brasil e principalmente para a capitania da Bahia (1788). In: Revista do Instituto Históri-
co e Geográfico Brasileiro. Tomo XIX, 1856.
12 – Idem, p. 90.
18 – SÁ VEDRA, Basílio Teixeira de. Informação da Capitania de Minas Gerais. In: Re-
vista do Arquivo Publico Mineiro. Belo Horizonte, 1897, ano II, p. 676.
19 – Relatórios dos Diretores de Índios. SG 04, 07, 12, 15, 20, 21 ,22 , 24. Arquivo Públi-
co Mineiro.
bra que o rei não queria violências contra os indígenas, mas que ele não
a proibia quando os índios atacassem as expedições. Neste caso estaria
liberado o uso de violência “iguais ou ainda muito maiores”. E que o rei
“(...) só quer usar força da necessidade quando de outra maneira não pode
rebater os insultos que o mesmo gentio ordinariamente está fazendo aos
seus vassalos(...)”.26
Paulo Mendes Ferreira Campelo, comandante do arraial do Cuieté,
enviou ao governador Valadares em novembro de 1769 uma carta dando-
lhe várias notícias do estado em que se encontravam as entradas ao sertão.
Um dos maiores problemas era o costume que as pessoas que estavam
ligadas à conquista da região tinham de repartir os índios entre si sem
que antes os mesmos fossem entregues ao comandante da expedição para
que ele os distribuísse entre os que pudessem instruí-los na fé. Relata que
seu objetivo era o de “(...) evitar o pernicioso meio de cada um fazer seu
o que apanha e distribuí-lo debaixo de algum interesse próprio como se
tem visto (...)”.27
O resgate de “índios de corda” era uma outra modalidade que permi-
tia o acesso aos indígenas. Não se tratava da liberalização da escravidão
como na guerra justa. De acordo com a lei, estes se tornavam proprieda-
des do comprador por um período de tempo estipulado ou mesmo por
toda a vida, caso o valor pago no momento do resgate fosse muito eleva-
do. O pagante do resgate tornava-se responsável pelo indígena ficando no
dever de cristianizá-lo e tratá-lo com humanidade, mas podendo usar sua
força de trabalho como desejasse. 28
Em seu testamento, feito em 1821, Ignácio Correia de Pamplona,29
um dos maiores líderes das bandeiras que percorriam o território de Mi-
nas Gerais no final do século XVIII afirmava ter disponibilizado uma
26 – Idem.
27 – Carta que Paulo Mendes Ferreira Campelo, comandante do Arraial do Cuiethé en-
viou ao governador Valadares em novembro de 1769. Biblioteca Nacional - 18, 2, 6 Ar-
quivo conde de Valadares, Biblioteca Nacional, seção de manuscritos.
28 – PERRONE-MOISES, Beatriz. Índios livres e índios escravos. Op. Cit.
29 – Testamento de Ignacio Correia Pamplona, de 1821. São João del Rei, Cx 100.
32 – Requerimento que fez a Sua Excelentíssima Leonor e seus filhos José, Manuel e
Severina com seus filhos Felix, Mariana, Narcisa e Amaro, de geração carijó, com os
despachos e informações que houverem e deferimento de Sua Excelentíssima. Dez 1764
e fev 1765, APM SC Cod 59, fls. 103 e 104v.
33 – Petição de Maria Moreira, índia de nação, e despacho de Sua Excelentíssima. Vila
Rica, 21.2.1765. APM SC Cod 59 fls. 101v-102.
Concluindo
to.
Pode-se perceber, portanto, que os indígenas em Minas Gerais foram
vítimas de políticas que objetivavam transformá-los em uma reserva de
mão de obra – quando pacíficos – ou exterminados em nome do sossego
público e da segurança do povoamento da região, com base em um corpo
de ideias que justificava a guerra justa. Desta forma, o povoamento, a
criação de aldeamentos e as políticas de extermínio de alguns grupos fa-
ziam parte de um mesmo contexto, qual seja a do alargamento e manuten-
ção do Império Colonial Luso. Apesar disto, alguns conseguiram usar os
próprios mecanismos coloniais a seu favor e lutaram por suas liberdades,
demonstrando que não eram seres passivos e que sabiam, na medida do
possível, como agenciar suas vidas.
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