André Demarchi *
The Miss Kayapó: ritual, spectacle and beauty. The present article proposes an
ethnographic interpretation of the event called « Miss Kayapó », a Beauty Contest,
whose participants are indigenous women from the Mebêngôkre (Kayapó) people,
located in the Amazon forest, who speak a Jê language. Held in the city of São
Félix do Xingu, in the State of Pará (Brazil), before a large number of indigenous
and non-indigenous people, the Beauty Contest is an important ritual to understand
the inter-ethnic relations between the contemporary Mebêngôkre and the other
Brazilian inhabitants of the region. The idea here is to analyze the aesthetical and
ritual forms of appropriation mobilized by the group, as well as the ways by which
imagery control is exerted by indigenous peoples in the Contest. Another aim is to
ethnographically describe the different editions of the Contest, in order to highlight
the transformations occurred both in the body techniques apprehended by the can-
didates, and in the creation and composition of their costumes. The final proposal
is to understand the ritual production of Miss Kayapó as a complex character, who
Journal de la Société des américanistes, 2017, 103-1, p. 85-118. © Société des américanistes.
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André Demarchi
holds the ability to embody different aesthetic perspectives. [Key words: ritual,
spectacle, beauty contest, corporal techniques, Mebêngôkre (Kayapó).]
Miss Kayapó : rituel, spectacle et beauté. Cet article propose une étude eth-
nographique de l’événement « Miss Kayapó », un concours de beauté dont les
participantes sont Mebêngôkre (Kayapó), un groupe de la famille linguistique Gê
d’Amazonie brésilienne. Organisé dans la ville de São Félix do Xingu (État du Pará)
devant un public nombreux d’Indiens et de non-Indiens, le concours de beauté est
un rituel clé pour comprendre les relations interethniques contemporaines entre les
Mebêngôkre et les autres Brésiliens qui habitent la région. Il s’agit d’analyser les
régimes d’appropriation esthétique et rituelle mobilisés par les Mebêngôkre, ainsi
que les formes du contrôle sur l’image de soi qu’ils exercent dans le cadre de cet
événement. Pour cela, on décrit les différentes éditions du concours afin de mettre
en lumière les transformations observées à la fois dans les techniques du corps
adoptées et dans les manières de créer et de composer les costumes des partici-
pantes. Enfin, la production rituelle de Miss Kayapó est analysée en tant que figure
complexe, capable d’incorporer différentes perspectives esthétiques. [Mots-clés :
rituel, spectacle, concours de beauté, techniques corporelles, Mebêngôkre, Kayapo.]
Apresentação
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A Miss Kayapó: ritual, espetáculo e beleza
1. O presente trabalho não seria possível sem o apoio financeiro para a pesquisa de campo
concedido pelo Museu do Índio (FUNAI – RJ), no âmbito do Projeto de Documentação das
Línguas e Culturas Indígenas Brasileiras, realizado em convênio com a Unesco. Durante a
realização da pesquisa também recebi bolsas da FAPERJ e do CNPq. O desenvolvimento
dessa pesquisa também contou com benefícios do « Programa Novos Pesquisadores », da
Universidade Federal do Tocantins (UFT/PROPESQ). Agradeço à Els Lagrou, Suiá Omim,
Magda Dziubinska, Gregóry D., e também aos pareceristas anônimos do Journal de la Société
des américanistes, pelos comentários às versões anteriores desse artigo.
2. Embora o grupo indígena conhecido na literatura etnológica como Kayapó se autode-
nomine Mebêngôkre, utilizo estes termos como sinônimos neste artigo.
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4. Neste ponto diferencio minha abordagem daquela proposta por Glenn Shepard e Richard
Pace no artigo « Miss Kayapó: Filming Through Mebengokre Cameras ». Ao fim do artigo,
os autores concluem: « Miss Kayapó […] é um exemplo rico e fascinante de uma cultura
híbrida em construção » (Sheppard e Passe 2012, p. 3).
5. Essas gravações não foram editadas e fazem parte do acervo audiovisual do « Projeto
de documentação da cultura Kayapó », realizado pelo Museu do Índio (FUNAI – RJ) em
parceria com a Unesco e coordenado por mim entre os anos de 2008 e 2014, em parceria
com os cinegrafistas Bepunu Kayapó, Mokuká Kayapó, Pawire Kayapó e Axuapé Kayapó.
Existe, contudo, um filme sobre o concurso de beleza Miss Kayapó, realizado por cinegrafistas
indígenas em parceria com pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi (cf. Shepard e
Pace 2012), ao qual eu não tive acesso.
6. Não posso deixar de me referir aqui à dificuldade de conversar sobre o tema do concurso com
os Mebêngôkre durante o evento de 2012, o que justifica a ausência de narrativas das candidatas
a miss. No último tópico do artigo trato das razões pelas quais eles resolveram não participar do
concurso nesta ocasião específica e as consequências dessa escolha para as próximas edições.
7. A aldeia Môjkaràkô, onde realizei dez meses de pesquisa de campo entre 2009 e 2011,
está localizada ao sul do estado do Pará, próxima à cidade de São Félix do Xingu, às margens
do Riozinho, um afluente do rio Fresco, por sua vez um afluente do rio Xingu. Sua população
é de aproximadamente 700 pessoas. Realizei também curtos períodos de trabalho de campo
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Fig. 1 – Mapa com
a localização das
aldeias do sul do estado
do Pará e das cidades
do entorno da Terra
Indígena Kayapó
(Robert et al. 2012,
p. 343).
11. No Brasil, o dia do índio, na data de 19 de abril, foi promulgado pelo presidente
Getúlio Vargas, no ano de 1943, em referência à participação dos povos indígenas no « I
Congresso Indigenista Interamericano », realizado em 1940, no México. Além do Brasil,
vários países da América Latina adotaram essa data como referência.
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14. O conceito de beleza mebêngôkre é expresso pela palavra mejx. Segundo Gordon:
« mejx […] não exprime somente valores estéticos, senão igualmente valores morais ou
éticos. O campo semântico da palavra cobre uma série de atributos que poderíamos glosar
como bom, bem, belo, bonito, correto, perfeito, ótimo. Além disso, mejx pode ser contraposto,
dependendo do contexto de enunciação, aos seguintes termos antonímicos: punure (“ruim,
feio, mau, errado”) e kajkrit (“comum, ordinário, vulgar, trivial”), ou simplesmente mejx kêt
(onde kêt = partícula de negação). De todo modo, mejx (belo, o bom, a perfeição) designa
um conjunto de valores essenciais […]. Produzir ou obter coisas, pessoas e comunidades
(enfim, a sociedade) mejx parece ser a finalidade última da ação no mundo, que se revela
tanto no plano individual quanto no coletivo » (2009, p. 8).
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Certa vez, em uma conversa na casa dos homens, Bepunu me explicou que
as mekurerere são consideradas belas porque seus corpos ainda não foram
modificados pela gravidez, seu corpo expressa proporções e formas valorizadas
socialmente15, seus seios são firmes e pequenos e não moles e grandes como os
das mulheres mais velhas. Isso porque a gravidez e a produção de filhos podem
ser entendidos como um processo de descorporificação, cujo auge é a velhice,
quando homens e mulheres velhos já criaram muitos filhos e netos, e « foram
como que se excorporando progressivamente ao longo da vida, fazendo filhos
e transferindo sua substância aos filhos e aos netos » (Gordon 2006, p. 321).
É esse fato (não ter filhos) que faz de uma mekurerere uma possível candidata
a miss. Tanto que no concurso ocorrido em 2010, a vencedora foi acusada por
pessoas de outras aldeias de já estar grávida durante o desfile, não podendo,
portanto, receber o título de miss naquelas condições, com seu corpo já alte-
rado. A gravidez invalidava sua participação e, consequentemente, o título a
ela concedido. Seguindo o mesmo princípio, em 2011, a candidata da aldeia
Môjkarakô não pôde desfilar na cidade e teve de ser trocada às pressas depois
que se descobriu que ela estava grávida.
Inicialmente suspeitei que outro critério para a escolha das candidatas pudesse
estar relacionado ao fato de elas serem escolhidas entre aquelas mekurerere
que já haviam sido homenageadas em determinado ritual de nominação16.
Assim, suspeitava que somente as mekurerere honradas cerimonialmente,
ou seja, consideradas pessoas belas (mereremejx) e cujos nomes tivessem
sido confirmados nos rituais, é que poderiam ser escolhidas como candidatas.
Essa suspeita foi desfeita por meus interlocutores, que disseram que qualquer
mekurerere poderia se candidatar a miss, desde que fosse considerada bonita
e não tivesse vergonha de se mostrar publicamente.
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A Miss Kayapó: ritual, espetáculo e beleza
No que tange à beleza física, é preciso dizer que existe uma preocupação e
uma apreciação constante dela no cotidiano da aldeia. Como entre os Xikrin,
descritos por Gordon,
aqui também os critérios da harmonia, simetria e proporção estão presentes.
Preza-se a distribuição harmoniosa dos órgãos pelo corpo: membros superio-
res e inferiores não podem ser excessivamente curtos, tampouco longos demais.
Observa-se atentamente as proporções corporais e, até mesmo, um jeito de caminhar
ou mover-se pode ser considerado bonito ou feio, correto ou impróprio (mejx ou
punure). (2009, p. 14)
Destaque-se a afirmação do autor a respeito da apreciação estética do jeito
de caminhar, também de suma importância para a apreciação das candidatas
a miss. Ele pode ser relacionada à desinibição17, o segundo critério definido
pelos interlocutores indígenas como fundamental para que uma mekurerere
se torne uma candidata a miss. Pois que os desfiles são momentos em que é
justo o jeito de caminhar, não apenas corretamente, mas com desenvoltura, que
está, também, sendo avaliado. A vergonha, ou a « falta de jeito », são avaliados
negativamente; as candidatas devem se mostrar seguras no seu caminhar e,
além disso, demonstrar alegria. Deve-se, enfim, seduzir18 a plateia, por meio
não somente da beleza física, mas também da desenvoltura no caminhar, da
desinibição, da demonstração de alegria.
Essas eram qualidades caras à Nhak’tyk19, a moça que havia ganhado o
concurso na aldeia Môjkarakô, durante os Jogos Tradicionais20. Ali ela já havia
17. Em Mebêngôkre vergonha ou respeito se diz pi’am e pode ser definido como uma
categoria de evitação. Diz-se que os genros têm respeito pelos sogros, dirigindo a palavra a
eles somente em momentos específicos. O mesmo se diz dos amigos formais que se respeitam
mutuamente. Em relação às gerações tanto as mekurerere quanto os menoronure, possuem
muito mais pi’am do que os adultos e velhos dos dois gêneros. Assim, se são o ápice da beleza
feminina mebêngôkre, as mekurerere também são seres tímidos por excelência. Durante os
rituais, são as únicas a terem vergonha de mostrar os seios, sendo continuamente exortadas
pelas mulheres mais velhas a descobrir essa parte do corpo no momento de dançar. Sua timi-
dez torna-se ainda mais evidente quando estão diante dos kuben (não indígenas). Durante a
pesquisa de campo, foram raras as ocasiões em que as mekurerere dirigiram a palavra a mim,
como faziam as mulheres que já possuíam filhos. Por isso, ser desinibida, ou seja, não ter
vergonha de se mostrar publicamente, conta e muito para ser escolhida como candidata a miss.
18. Falando das qualidades das mekurerere, Vidal (1977, p. 163) evoca a imagem da
coquetterie, afirmando que em conjunto com o charme e a ternura, a coquetterie é uma qua-
lidade feminina apreciada pelos Xikrin. Em outra passagem de seu livro, Vidal se pergunta:
« o que é a coquetterie? Pode talvez dizer-se que é um comportamento que deve sugerir que
a aproximação sexual é possível, sem que essa eventualidade possa ser tida como certa ».
19. Todos os nomes das candidatas a Miss Kayapó mencionados neste artigo são pseudônimos.
20. Os Jogos Tradicionais consistem em um torneio esportivo e cultural realizado pelos
moradores da aldeia Môjkarakô. Durante os jogos, os habitantes da aldeia se dividem em
quatro equipes compostas pelos moradores de cada uma das quatro linhas de casas que
compõem a planta retangular da aldeia. As equipes disputam competições de futebol,
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voleibol, atletismo, dentre outros. É durante a programação noturna dos jogos que ocorre
o concurso de miss da aldeia.
21. Falando sobre o processo mimético levado a cabo pelos Mebêngôkre durante o ritual
de nominação Kôkô, quando as máscaras do Tamanduá bandeira se fazem presentes no pátio
de dança, Turner faz uma afirmação bastante interessante para o caso em questão. Segundo
o autor « a dança das duas máscaras de tamanduá imita, supostamente, os movimentos reais
do tamanduá. A imitação aqui precisa ser entendida no sentido aristotélico de mimesis,
como a imitação da essência, ao invés de cópia naturalista. Os movimentos das máscaras
representam a ideia kaiapó da essência do movimento do tamanduá » (Turner 1993a, p. 96).
22. Ilda era professora na escola da aldeia há mais de um ano e se dizia especialista em moda
devido a trabalhos anteriores realizados « quando era mais jovem » na cidade de Belém (PA).
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23. As fotos das candidatas a miss presentes neste artigo foram capturadas das gravações
em vídeo produzidas pelos cinegrafistas indígenas do Projeto de Documentação da Cultura,
mencionado acima.
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24. O diadema krokroti é um grande cocar de penas de araras utilizado por homens e
mulheres, principalmente, durante os rituais de nominação e, mais contemporaneamente,
nos rituais interétnicos como a festa do dia do índio e o concurso de Miss Kayapó.
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25. A bandeira da aldeia Môjkarakô foi produzida por Mokuká Kayapó com o intuito de
divulgar a aldeia em eventos internos e externos à Terra Indígena Kayapó. Rapidamente as
mulheres de Môjkarakô reproduziram este desenho em diversos enfeites de miçanga. Sobre
o contexto da criação da bandeira da aldeia, ver Robert (2004).
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O fato de as meninas desfilarem na aldeia primeiro com os bens cerimoniais
mebêngôkre e depois sem eles, com os corpos cobertos apenas com os grafismos,
e de calcinha, decorre certamente da intenção de apresentar ao público e aos
jurados duas possibilidades distintas de apreciação das candidatas. Nota-se,
assim, a conformação de dois contextos diferentes de julgamento: um onde as
meninas desfilam com o corpo enfeitado pelos bens cerimoniais, outro onde
seus desempenhos são realizados com o corpo à mostra. O que há em comum
aos dois contextos é o andar mimetizado das modelos profissionais, suas poses
e seus rebolados.
Considerando a formação interétnica do júri – formado por dois não indígenas
e três indígenas –, são acionados no momento da apreciação valores culturais
diversos que conformam um interessante cruzamento de pontos de vista. Assim,
no caso do primeiro desfile, do ponto de vista dos jurados mebêngôkre trata-se
de avaliar a miss a partir de valores dados pela sua cultura, sem aspas, pois
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embora estejam diante de sua « cultura » (com aspas), não podem escapar da sua
própria cultura na hora de julgar. Algo semelhante ocorre com os jurados não
indígenas: a avaliação da « cultura » mebêngôkre é realizada segundo valores
da sua cultura referentes às concepções de indianidade. No segundo desfile,
outros elementos embasam o julgamento, pois a apreciação das garotas desliza
dos bens cerimoniais para seu corpo e seu desempenho na passarela. Para os
jurados não indígenas, não se trata mais de julgar a « cultura » mebêngôkre
segundo os critérios ocidentais de indianidade e autenticidade, mas de escolher
a miss, mobilizando suas concepções de beleza. Também neste contexto, a
apreciação dos jurados mebêngôkre passa da apreciação dos bens cerimoniais
para o julgamento do corpo, da pintura corporal sobreposta à pele e do caminhar
das meninas segundo os padrões de beleza mebêngôkre.
No primeiro desfile, os jurados mebêngôkre olham para as meninas com
olhos de mebêngôkre, julgam seu desempenho, e julgam também os bens
cerimoniais e sua distribuição ordenada pelo corpo, não apenas no sentido de
suas quantidades, mas também e, sobretudo, de suas qualidades: do material
de que foram feitos, da habilidade das artistas que os fizeram, da disposição
ordenada nas partes corretas do corpo. O julgamento desses aspectos só pode
ser feito pelos Mebêngôkre, segundo sua cultura. Esta entendida como esquema
interiorizado que organiza a percepção e a ação das pessoas e que garante « um
certo grau de comunicação, em grupos sociais » (Carneiro da Cunha 2009: 313).
A apreciação dos jurados não indígenas, por sua vez, parece mostrar a outra
lâmina da « faca de dois gumes » que é a « cultura », em sua versão com aspas,
objetificada. Nos termos « marxistas » propostos por Carneiro da Cunha (2009,
p. 313), trata-se, no primeiro desfile e do ponto de vista dos jurados mebêngôkre,
de um julgamento segundo a « cultura em si ». Do ponto de vista dos jurados
não indígenas, trata-se diferencialmente de um julgamento da « cultura para si ».
Esta última é, justamente, a forma objetificada (patrimonializada) da cultura,
o modo como os Kayapó escolheram exibi-la performaticamente diante do
mundo. Como os não indígenas não têm elementos para julgar a miss a partir da
cultura mebêngôkre, eles o fazem acionando as categorias de autenticidade, de
« indianidade » que embasam nossa cultura quando se trata de apreciar índios
e julgá-los, muitas vezes, como « verdadeiros » ou « falsos ».
Quando as meninas voltam ao palco sem os bens cerimoniais, surge um interes-
sante encontro de perspectivas, onde outras ênfases são dadas. Pois agora, livres
dos bens cerimoniais, a beleza física e o desempenho das candidatas tornam-se
mais evidentes. Prestar-se-á muito mais atenção ao seu corpo, aos grafismos e
à sua performance. Sugiro que os jurados não indígenas não têm outra opção
senão a de julgarem a miss segundo sua concepção específica de beleza. Esta
concepção, se possui, sem dúvida, um lado pessoal, possui certamente também
outro lado, formado por um esquema interiorizado distinto daquele mobilizado
pelos Mebêngôkre. Os jurados mebêngôkre mobilizam, por sua vez, os valores
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27. Corroborando esse argumento, é preciso dizer que as normas para a avaliação das
candidatas não são explicitadas durante o concurso, ou seja, não há quesitos específicos de
avaliação que os jurados deveriam responder, como ocorre nos concursos de Miss Universo.
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da Miss Kayapó durante uma reunião com a equipe executora. Ainda não me
perdoei por não ter participado dessa reunião, pois as discussões ali envolvidas
seriam de grande importância para a compreensão dessa decisão. Como modo
de compensá-lo, apresento um relato concedido por Akjabôro no primeiro dia
da festa, a partir de meu questionamento sobre a notícia do cancelamento do
concurso da miss, que rapidamente se espalhara pela cidade. Akjabôro disse
as seguintes palavras:
Foi eu que proibi o concurso da miss. Porque os kuben [não indígenas] estavam
fazendo sacanagem com as imagens das meninas do meu povo. Isso não pode
acontecer não. Eu não gosto disso. Tem que respeitar meu povo. Estavam tirando
foto e colocando em site de sacanagem. Fazendo brincadeira feia com a nossa
imagem. Isso eu não gosto. Por isso, foi proibido. Três caciques queriam fazer.
Na votação eles perderam.
Quando perguntei sobre as reações da equipe executora a essa proibição,
Akjabôro disse:
Eles tiveram que aceitar. Porque essa festa aqui na cidade é dos Mebêngôkre, não
é dos kuben, não. Se a secretária faz o concurso, a gente cancelava a festa, não tem
mais festa. Por isso, ela tem que aceitar. Eu falei pesado na reunião e aí ela aceitou.
Essas palavras de Akjabôro, se sem dúvida justificam o cancelamento do
concurso, não deixam de evocar o resultado do concurso anterior, quando a
candidata vencedora não agradara aos índios, sendo considerada kuben (não
indígena) por muitos deles. A reação à circulação indevida das imagens na
internet foi uma boa justificativa para que os Mebêngôkre, sobretudo por meio de
seus chefes, retomassem o controle das imagens e dos padrões de beleza nativos
apresentados na festa. Tanto que, além do concurso da miss, fora cancelado
também o novo show do cantor Pykatire, sucesso na edição de 2011, bem como
qualquer apresentação em que índios performatizassem a « cultura » dos kuben.
O espaço deixado por essas atrações na programação noturna do evento fora
ocupado pelas apresentações coletivas das delegações participantes da festa,
entremeadas por discursos de seus chefes na língua mebêngôkre.
Em 2012, a festa do dia do índio voltara a ser uma festa mebêngôkre, como
afirmou acima Akjabôro. Voltara, porque novamente eles controlavam suas
imagens e, sobretudo, retomavam a condução da própria festa. Neste sentido,
é digna de destaque a contínua participação de Akjabôro durante a execução de
todo o evento. Além de proferir o discurso da chegada, quando as delegações
aportavam em São Félix, exigindo respeito dos habitantes da cidade, lembrando
a eles da violência dos seus antepassados – justamente para com as mulheres –,
Akjabôro geriu toda a programação das apresentações noturnas, fazendo discur-
sos de exaltação da cultura mebêngôkre e concedendo, ele mesmo, entrevistas
para diferentes canais de televisão.
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Uma das cenas protagonizadas por Akjabôro naquele ano exemplifica com
clareza a retomada do controle imagético da festa e revela alguns de seus prin-
cípios éticos e estéticos, bem como suas intenções. Em uma das apresentações
noturnas da aldeia Môjkarakô, com o ginásio da cidade lotado, Akjabôro, em
um gesto performático, retirou do centro da quadra dois jovens dançarinos
calçados com seus reluzentes e coloridos pares de tênis all-star. Levou-os para
um canto do ginásio e gesticulou com os braços, no movimento característico
de quem está mandando alguém embora. Foi seguidamente aplaudido por
todos, inclusive pelas centenas de não indígenas que lotavam as arquibancadas.
Mokuká, que acompanhava a cena ao meu lado, com sua inseparável filmadora,
me explicou a performance de Akjabôro com as seguintes palavras, afirmadas
imediatamente após o ocorrido:
Ele não está aceitando que os jovens dancem assim com o pessoal. Quando tem
tradição boa como essa, não pode usar tênis, não pode usar aqui na festa. Aqui
só pode tradição de verdade. Por isso que ele fez isso. Ele não gostou. Ele está
mostrando para os outros como é que tem que ser. Para a nossa imagem ficar mejx
kumrenx (bonita e correta).
A explicação de Mokuká não poderia ser mais clara: a atitude performática
de Akjabôro, perante os dois adolescentes de Môjkarakô, consistia no uso da
espetacularidade daquele evento como uma forma de transmitir um conjunto
de princípios éticos e estéticos necessários à forma correta de reprodução
das imagens capturadas na festa. Os pares de all-star calçados pelos rapazes,
assim como a franja do penteado da Miss Kayapó de 2011, demarcam o que
não deve ser reconhecido como cultura mebêngôkre em contextos específicos.
A reação de Akjabôro a essa forma indevida de enfeitar o pé agradou àqueles
que defendem a « boa tradição », misturando índios e brancos em um mesmo
gesto de aplauso. Sua ação foi a de quem está em uma disputa espetacular,
cujas formas de embate se dão por imagens. Sua performance – quando pen-
sada segundo um contexto no qual « as imagens vêm se apresentando como
“armas culturais” por meio de uma luta ambígua que tanto produz como destrói
imagens, ícones e emblemas » (Latour 2008, p. 112) – pode ser vista como um
duro golpe estratégico no inimigo, tomando como arma o infortúnio dos dois
adolescentes de Môjkarakô que dançavam com seus parikà (tênis); e como
glória, os aplausos que encheram o ambiente. Mas quais seriam os objetivos
dessa performance dentro da performance? Destacar, arrisco dizer, Môjkarakô
enquanto aldeia que segue « a tradição boa », que forma uma imagem correta
e bela de um corpo coletivo, enfeitado, produzido, nos mínimos detalhes de
« um retrato compósito ». Eis o sentido da atitude iconoclasta de Akjabôro.
Afinal seu gesto parecia dizer que: se os outros parentes aceitam esse item de
indumentária, nós, de Môjkarakô, não aceitamos! E seria melhor que eles, ao
menos naquele contexto, também não aceitassem.
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André Demarchi