DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
Música de Inventor
São Paulo
2017
introdução
A história da música ocidental erudita no século XX, como nos é contada nos livros de
maneira geral, parece seguir uma linha contínua de evolução do pensamento estrutural da
composição e expansão da sonoridade. Como aponta o musicólogo Makis Solomos: no
último século existe um movimento de emergência do som, sendo esse a troca de uma
música baseada no “tom” por uma música que tem como ponto de partida o “som”. Os
elementos da composição musical se imbricam de tal maneira que não podem ser mais
dissociados. Formas musicais, frequências, ritmos e timbres se tornam parte de um mesmo
monolito sonoro, o qual o músico poderia moldar a sua própria vontade. Esta “vontade” a
qual nos referimos está diretamente ligada aos meios de produção que foram desenvolvidos,
e apropriados, para o fazer musical. Segundo Solomos a música é a primeira arte, salvo o
cinema, que se apropriou da tecnologia como sua extensão natural da técnica, chegando ao
ponto de ser impossível distinguir a tecnologia da técnica.
1 Esses compositores escreveram textos exaltando as novas tecnologias e a substituição do trabalho dos instrumentistas por novas máquinas que
produziriam sons autonomamente. Varése em “A Liberação do Som”(1936) e Busoni em “Esboço de uma Nova Estética da Música”(1907).
meios analógicos nos estúdios de música eletrônica e concreta. Grosso modo, o formato do
estúdio de música eletroacústica se tornou um modelo para a criação de música séria (Ernst
Musik). Uma das razões para o estabelecimento desses núcleos foi juntar características de
pesquisa da cultura do áudio e da cultura da música, unindo engenheiros e compositores em
um só espaço. As colaborações e criações composicionais do estúdio de Colônia instalados
na Westdeutscher Rundfunkt (WDR) nos 1950, por exemplo, se tornaram um formato para as
gerações seguintes de estúdios e centros de pesquisa de música experimental, que
seguiram estruturas organizacionais similares. Certamente esse não foi um fenômeno
isolado, mas um sintoma do espírito do desenvolvimento tecnológico da época agregado a
um pensamento racionalista da tradição da composição musical.
M&T
Parte da geração seguinte, dos anos 70, especialmente ligada aos estudos da
Sonologia em Haia adotou uma postura notoriamente mais crítica em relação a ligação entre
a cultura do áudio e da música. Dick Raaijmakers, em seu texto “Uma breve Morfologia do
Som Elétrico”, não concorda com a perspectiva de Solomos de que música e tecnologia
teriam caminhado juntas passo a passo durante o processo de modernização, mas
justamente traçaram caminhos diametralmente opostos. A evolução da tecnologia nada
contribuiu para uma evolução musical, pelo simples fato de que a indústria dos meios de
produção tecnológicos não tem nenhum interesse genuíno na música ou mesmo na arte em
geral. São caminhos paralelos, nos quais muitas vezes os novos dispositivos se tornam uma
distração da construção e expressão da forma musical. Segundo Raaijmakers, no campo da
criação musical com novos meios o que temos na primeira metade do século são parcerias
que aconteceram por coincidência. Os engenheiros não sabiam que poderiam produzir
tecnologia que interessasse aos músicos experimentais, e assim que descubriram, passaram
a fabricar em escala massiva tecnologias para a música popular, incorporando rapidamente a
lógica da indústria cultural. O compositor Alvin Lucier, que compartilha da visão de
Raaijmakers, ilustra essa passagem do experimentalismo da música eletrônica da primeira
parte do século para segunda através do encontro de David Tudor com Karlheinz
Stockhausen, que perguntou qual seria a razão do compositor alemão não desenvolver os
seus próprios circuitos eletrônicos, e ele respondeu: “A indústria proverá o que preciso”.
Como conclui Lucier, Stockhausen estava errado. “Isso não aconteceu, a indústria não
proveu com o que precisávamos. A indústria fez sintetizadores populares o suficiente para
vender milhares de centenas. ”(LUCIER, 2012, p.63). A partir desta constatação, poderíamos
entender que as experiências dos anos 40 e 50 da música eletroacústica serviram para os
engenheiros descubrirem um novo mercado.
O mais óbvio motivo legitimador da existência do núcleo (de M&T) tinha sido o apoio à música vindo da
parte endinheirada da computação. Estava-se em plena estratégia do cuco, que põe seus ovos em ninho
alheio (para que outro pássaro alimente a sua prole), esquecendo-se que em matéria de oportunismo a
cara-metade (a tecnologia) é muito mais descolada. Basta lembrar o destino do SYTER 2, do GRM, vendido
para a marinha francesa (para realizar análise em tempo real de sons submarinos). É ingenuidade acreditar
que quando o MIT emprega um violoncelista como Yo Yo Ma seu interesse seja a música. O engenheiros do
MIT sabem que a complexidade da música, sim, é um desafio para a computação, a indústria de software e
hardware impulsionada por avanços nas ciências cognitivas. (CAESAR, R. 2003:30)
Ainda assim, Caesar deixa claro que a pesquisa que possui interesse direto para o
mercado é “muito mais descolada”, esta tem um objetivo muito mais claro nessa troca de
conhecimentos. Esse ponto demonstra que a relação entre música e tecnologia no começo
do século, antes de existir propriamente um mercado de música eletrônica, se torna muito
diferente da forma com a qual essas áreas passaram a se relacionar depois da formação de
um mercado de software e hardware voltados para a produção sonora.
2 Computador construído pelo GRM para a realização de peças eletroacústicas mistas como processamento em tempo real.
autor se baseia, primeiramente, em algumas experiências de luteria desenvolvidas na
primeira parte do século XX, como o Telharmonium 3 e o Ondes Martenot4, e acusa seus
criadores de ter uma postura arrogante e fadada ao fracassso, pois desconsideram a história
da música e a cultura que existe ao redor de um instrumento musical. Apesar dessa ser uma
afirmação questionável, e projetos megalomaníacos e a rejeição do passado serem um
sintoma comum de diversos movimentos nos das vanguardas históricas, o autor holandês
deixa seu ponto mais claro ao evidenciar que: “O inventor é naturalmente orientado pelo
futuro” (RAAIJMAKERS, D. 2000). Esse tipo de prática criticada por Raaijmakers não possui
uma relação dialética com o passado, aponta apenas para o futuro, e, no caso da música,
fetichiza a ideia de evolução e progresso através das engenhocas eletrônicas, em práticas
nas quais muitas vezes a única coisa que evolui é a própria tecnologia. Assim como Adorno
deixou claro “a fetichização do progresso reforça a sua particularidade, sua limitação às
técnicas.”(ADORNO, 1989:236). Por isso, essa caracterização faz referência tanto aos
compositores que começaram a trabalhar com meios eletrônicos na primeira metade do
século, quanto às gerações mais recentes de músicos. No entanto, como já expusemos, a
relação entre música e tecnologia passou por transformações ao longo das décadas, e, logo,
não ter uma postura de ressignificação do passado e olhar para o futuro, passo a passo com
as últimas tecnologias, se torna algo absolutamente condicionado pelo mercado tecnológico,
como veremos mais adiante ao analisar o caso da Música Móvel.
3 Foi uma espécie de órgão desenvolvido por Thadeus Cahllis em 1897 em Nova Iorque para ser ouvido usando linhas domésticas de telefones. Teve
duas versões a Mark I pesava sete toneladas, enquanto o Mark II pesava quase duzentas toneladas.
4 Uma espécie de sintetizador rudimentar criado por Maurice Martenot em 1928 em Paris. Se tornou famoso por ser utilizado em algumas peças de
Olivier Messiaen.
musical como um negativo daquilo que acontece na sociedade como um todo, e dessa forma
traria algum aspecto verdadeiro consigo, algo que provém de nossa própria época. Essa é
uma das análises de Fernando Iazzetta ao associar a ideia de uma luteria composicional
experimental à “reintrodução da ideia de perfomance como polo de estruturação
composicional” (IAZZETTA,2009:160). Dessa forma, todos os conceitos que permeiam a
ideia de performance musical e luteria, ligados principalmente a uma noção de fisicalidade
dos instrumentos, são adicionados aos elementos de estruturação da composição. Diante
desse acúmulo de funções é dedútivel que o real embate com a matéria para o artista sonoro
não seja apenas o som, mas também se dê tanto sob os níveis mais triviais da matéria:
madeira, plástico, alúminio, cobre, silício e, de forma um pouco mais abstrata, software;
quanto à sua condição de mercadoria. Pois o músico se coloca, ou é colocado, em todas as
etapas da produção e veiculação de uma mercadoria cultural.
"O que ocorreu é que a produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral: a
urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam
novidade (de roupas a aviões), com um ritmo turn over cada vez maior, atribui uma posição e uma função
estrutural cada vez mais essenciais à inovação estética e ao experimentalismo. Tais necessidades
econômicas são identificadas pelos vários tipos de apoio institucional para a arte mais nova, de fundações e
bolsas até museus e outras formas de patrocínio." (JAMESON, 1991:30)
A evolução da Música Móvel foi catalizada pelo avanço e proliferação do smartphone, dispositivos portáteis
com sensores embutidos, conexão constante a redes de internet, e tecnologias de localização e
rastreamento. Particularmente, o iPhone trouxe um ponto de inflexão nos dispositivos móveis, e transformou
a ideia de mídia móvel em uma plataforma de computação em geral. Olhando para trás, apenas há cinco
curtos anos (em 2008), podemos atribuir o sucesso do iPhone a várias razões. Primeira razão: “um
hardware matador”.(WANG, 2014:488)
“as antigas barreiras que separavam os dois mundos em princípio antagônicos [...] teriam se tornando de tal
modo porosas, que ficou cada vez mais difícil distinguir um artista digamos “empreendedor” de um executivo
de uma firma que funcione na base de prospecção de “parcerias” para realização de “projetos”” (ARANTES,
2005:9).
Esse tipo de dinâmica afeta diretamente o processo artístico e a forma musical, pois
demonstra, que as limitações do mercado tecnológico são incorporadas nas comunidades de
música experimental, muitas vezes sem muitos questionamentos, o que afeta não apenas a
produção atual, como condiciona a perpetuação de uma lógica de criação musical, que não
estaria inserida nos moldes da cultura de massa, que muito agrada o mercado. Se
retomarmos a citação de Caesar supracitada, poderíamos dizer que “a cara-metade mais
descolada” da M&T estaria conduzindo boa parte dos processos de criação da música
experimental. Assim como está no texto sobre a Indústria Cultural “A racionalidade da técnica
hoje a racionalidade da própria dominação, é o caráter repressivo da sociedade que se auto-
aliena”(ADORNO,T. e HORKHEIMER,M.2002:6) A seguir vamos analisar o caso de uma
dessas comunidades artísticas que tem como principal unidade as semelhanças técnicas
com mais atenção, a Música Móvel.
A primeira tentativa de definição da Música Móvel como gênero veio de um grupo que
criou os Mobile Music Workshops (MMW), que aconteceram na Europa e América do Norte
entre 2004 e 2008. O evento foi organizado por pesquisadores ligados a instituições inglesas,
como Atau Tanaka, Frauke Behrendt e Layla Gaye, e se tornou um ponto chave para o
estabelecimento dessa prática no campo na música experimental. Talvez devêssemos
considerar os trabalhos desenvolvidos no MMW como uma primeira fase da Música Móvel
como gênero, pois existe uma mudança drástica nas pesquisas com mídias portáteis no final
da década de 2000, e os trabalhos desenvolvidos nesse evento e as reflexões propostas
pelo grupo também abarcam a produção de arte sonora dos anos 80 e 90, como os trabalhos
de Christina Kubisch, Janet Cardiff e Benoit Maubrey. No artigo “Mobile Music Technology:
Report on an Emerging Community” o grupo define Música Móvel como um novo campo que
dialoga com questões da música interativa em situações móveis, utilizando tecnologia
portátil. De acordo com os autores, o termo abrange qualquer atividade musical usando
dispositivos portáteis que não fiquem presos em uma localização específica, tornando as
interações dinâmicas, podem seguir os usuários e criar novas possibilidades participativas
em um cenário móvel. Os dispositivos poderiam ter sensores que permitem conexão em rede
distribuída, saber qual seria o contexto da interação, detectar a localização do usuário, e
inclusive tudo isso poderia ser combinado com tecnologias incorporadas no ambiente (GAYE
et al., 2006). Alguns dos exemplos de tipos de trabalhos que foram desenvolvidos no MMW
nesse período são: sonificação de sinais de rede sem fio, remixagem de músicas feita entre
usuários em lugares remotos e troca de arquivos de som entre usuários ligados por redes
locais. Por exemplo Sonic City, de Gaye, Ramia Mazé e Lars-Erik Holmquist, apresentado
em 2003 em Gothenburg, que tem como objetivo criar uma paisagem sonora pessoal, que
produz um diálogo entre fones de ouvido e ambiente. Para isso, foram captados dados de
comportamento físico do participante – dados de movimento e batimento cardíaco – e do
espaço percorrido – eventos sonoros, luz e poluição – para manipular sínteses sonoras
eletrônicas.
Essa primeira definição além de ser fetichista em relação aos meios de produção, pois
enfatiza os elementos potencialmente “mágicos” das redes sem fio, dispositivos móveis e
sistemas de vigilância, não abarca a própria produção mostrada nos MMW como um todo.
Vários trabalhos mantiveram o formato de palco-plateia e utilizam os dispositivos móveis
como instrumentos musicais em situações fixas. Talvez um fruto teórico das pesquisas do
grupo mais relevante sejam as classificações propostas por Behrendt que determina três
áreas de atuação da Música Móvel: tecnológica, social e geográfica. A autora entende que
esses três aspectos estão profundamente entrelaçados nas situações complexas onde
acontecem essa primeira geração de trabalhos. Na sua perspectiva esses três pontos
estariam conectados e presentes nos trabalhos supondo que: tecnologia seria uma forma de
criar novos tipos de escuta e interação através dos sensores embutidos em aparelhos
móveis; as implicações sociais levariam em conta que seria possível engajar os
espectadores com diferentes tipos de interação em situações de apresentação ou instalação
que seriam mais participativas; e a atuação relativa a geografia seriam análises de como o
espaço urbano influenciaria o processo de criação musical, seja por questões objetivas,
como captação de dados via sensores, ou subjetivas, como possíveis aproximações dos
trabalhos com o dia a dia dos usuários, propondo novas experiências estéticas.
Estes campos de ação apontados por Behrendt são alguns dos indicativos que nos
levaram a constatar uma virada na produção de Música Móvel no final da década passada,
mais especificamente após 2007, quando dispositivos móveis mais sofisticados produzidos
por grandes corporações passaram a circular no mercado.
considerações finais
bibliografia
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Contemporânea. 1992.
ADORNO, T.W., HORKHEIMER, M. O Iluminismo como Mistificação das Massas. In: ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e
sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002
ARANTES, O. B. F. A virada cultural do sistema das artes . São Paulo: Margem da esquerda: v. 6, p. 62-75, 2005.
BEHRENDT, F. Mobile Sound: Media Art in Hybrid Spaces. Brighton: University of Sussex, 2010.
GAYE,L., HOLMQUIST,L., BEHRENDT,F. e TANAKA,A. Mobile Music Technology: Report on an Emerging Community. In
Proceedings of the 6th International Conference on New Instruments for Musical Expression (NIME), p. 22–25, 2006.
JAMESON, F. Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo. Ed. Ática, 2007
_________, “A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno”. Petrópolis. Vozes, 2001.