Há outros aspectos que distinguem este auto dos anteriores. Além de ser o primeiro a
contar uma intriga, com princípio e fim, é também a primeira "farsa" escrita por Gil Vicente
e a primeira das suas peças escrita maioritariamente em português. No Auto da Índia a
única personagem a falar em castelhano é o "Castelhano", com o objetivo óbvio de
conseguir o efeito de real. Por último, é também o primeiro auto a pôr em cena
personagens femininas.
ESTRUTURA INTERNA
Por representar uma intriga com princípio e fim, é fácil identificar a sua estrutura tripartida.
A ação mostra ao público o adultério da Ama, o que exige a ausência do Marido.
Poderá parecer estranho que o crime da Ama fique impune, mas temos que reconhecer
que o seu castigo destruiria o efeito cômico característico da farsa. Por outro lado, parece
sensato pensar que o objetivo de Gil Vicente não era punir o adultério, mas sim preveni-lo.
A mensagem implícita parece ser esta: o castigo do infrator (a Ama) não repara a falta (o
adultério); o que interessa é eliminar as condições objetivas que propiciam a falta.
ESPAÇO
Toda a ação decorre num único espaço - a casa da Ama. Os elementos textuais, no
entanto, permitem subdividi-lo em três: a câmara da Ama, onde decorre a maior parte da
ação; a cozinha, onde se esconde o Lemos em determinado momento e que é referida no
discurso outras vezes; e o quintal, onde o Castelhano aguarda, noite fora, autorização para
entrar.
TEMPO
O tratamento do tempo, no Auto da Índia, constituía para Gil Vicente um problema difícil. O
fato da ação decorrer de forma contínua num mesmo espaço sugere que os
acontecimentos se sucedem ao longo de um período de cerca de vinte e quatro horas. O
Marido ausenta-se de madrugada; logo a seguir o Castelhano visita a Ama; o Castelhano
sai e, pouco depois, Lemos chega e fica para jantar e passar a noite; entretanto, o
Castelhano regressa e aguarda no quintal, durante a noite, autorização para entrar até
desistir e ir embora; no dia seguinte, de madrugada o Lemos vai embora e pouco depois o
Marido regressa.
A confirmação vem-nos pela boca da Ama, quando recebe Lemos e lhe diz que o marido
se ausentou para a Índia (v. 238). Como na época a duração média de uma viagem de ida
e volta à Índia era de dois e meio a três anos, desfaz-se de vez, na mente dos
espectadores, a impressão de que o tempo representado se reduz, neste momento, a
algumas horas.
Numa fase mais avançada da representação é a Moça que vai marcando o decorrer do
tempo e prenunciando o regresso do Marido, dizendo:
Tres annos ha
Que partio Tristão da Cunha.
PERSONAGENS
A Ama apresenta-se como "moça e fermosa" e serve-se disso como justificação para o
seu comportamento imoral:
Mostra-se desde o início uma mulher falsa, mentirosa e hipócrita. Engana, não apenas o
marido, mas os próprios amantes, escondendo a cada um deles a existência do outro.
Colocando em cena, não um, mas dois amantes, o autor sublinha a licenciosidade e
leviandade da Ama.
Essa hipocrisia torna-se ainda mais evidente com o regresso do marido. Nessa altura
garante-lhe que sofreu muito a sua ausência, que rezou pela sua segurança e permaneceu
esses três anos recatadamente em casa, aguardando o seu regresso. Vai ao ponto de
manifestar ciúme pelas presumíveis aventuras amorosas do marido na Índia.
A imagem que ela procura transmitir para o exterior, para o marido e para os próprios
amantes contrasta com o seu efetivo comportamento. Só nos monólogos e nos diálogos
com a Moça é que ela revela sem disfarce a sua verdadeira maneira de ser.
Através da personagem Ama, Gil Vicente traça um retrato realista de um determinado tipo
de mulher, bem diferente da imagem feminina, profundamente idealizada, que nos é
transmitida pela poesia lírica da época. A Ama representa todas aquelas mulheres que,
abandonadas pelos maridos empenhados na aventura ultramarina, se mostravam
incapazes de resistir ao assédio dos pretendentes, incorrendo em adultério. Nesse sentido,
materializa também um dos aspectos negativos da expansão.
Por um lado, é uma personagem, ao mesmo nível das outras, na medida em que intervém
no desenrolar dos acontecimentos. Assume então o papel de confidente e amiga.
A sua presença permite à Ama revelar o seu verdadeiro caráter, que ela esconde, quer do
marido, quer dos amantes. É em conversa com ela que a Ama manifesta o seu desagrado
pela hipótese de o marido, afinal, não partir; o desejo de que ele não regresse da Índia; as
suas infidelidades anteriores, bem como a sua intenção de o trair enquanto estiver na
Índia.
Como amiga, mostra preocupação com o seu estado de espírito, quando, na primeira
cena, a encontra desolada; procura tranquilizá-la, apressando-se a saber se o Marido,
afinal, parte ou não parte; atreve-se mesmo a aconselhá-la, alertando-a para a fanfarronice
e o caráter pouco recomendável do Castelhano:
Manifesta satisfação, com um certo sabor de vingança pelas humilhações sofridas, quando
o regresso do Marido põe termo aos arranjos da Ama:
A par disso tudo, funciona como intermediária entre o interior e o exterior. É ela que sai,
logo no início, para confirmar a partida do marido. É ela, igualmente, que traz da rua a
notícia do seu regresso. Com a ação concentrada num espaço único e limitado (a câmara,
a cozinha e o quintal da casa da Ama) era necessária uma personagem que funcionasse
como mensageira e introduzisse no diálogo as notícias que suscitam alterações
dramáticas no desenrolar da intriga.
Além disso, como já foi referido, é a ela que o autor atribui a função de marcar o decorrer
do tempo representado: primeiro, prenunciando a duração de três anos; mais tarde,
anunciando efetivamente o decorrer do tempo (dois anos..., três anos...).
É uma mulher de idade indefinida; subserviente, por necessidade; fiel à sua ama, que
nunca denuncia; perspicaz e atenta aos comportamentos da sua senhora; sensata, pois
não se deixa iludir pelo aparato e as falas pomposas do Lemos e do Castelhano; crítica, é
a única personagem que mostra ser capaz de distinguir claramente o certo do errado.
A imagem de homem culto, civilizado, que procura transmitir com a sua pomposa
declaração (culto da aparência), é desfeita na sua segunda intervenção, ao reagir com
grande violência verbal, quando se sente rejeitado pela Ama, impossibilitada de o receber,
devido à presença de Lemos.
O modo como se veste revela a sua origem humilde, que ele procura disfarçar, insinuando
ser homem de posses, apesar do aspecto que apresenta. Através dele (e de Lemos, como
veremos), Gil Vicente aproveita para introduzir um outro tópico de crítica - o culto das
aparências, típico duma sociedade onde os bens materiais são já o valor dominante:
Lemos - Lemos, tal como o Castelhano, é introduzido na peça para caracterizar a Ama
como uma mulher leviana e adúltera.
No contexto, a expressão "Isto bem o sabes tu" perde toda a ambiguidade e fica claro que
significa "bem sabes que lhe sou infiel".
Daí que muitos entendessem que não se justificava o sacrifício de ir procurar tão longe um
lucro improvável. De certo modo o Castelhano exprime essa ideia ao dizer
Esse desejo insensato de enriquecer rapidamente tem consequências. Com o seu chefe
afastado, algumas famílias passam necessidades. Não foi isso que aconteceu com a Ama,
mas a sua acusação, embora mentirosa, alerta-nos para uma realidade que deveria ser
muito frequente:
Mas todas elas ficavam afectivamente desamparadas: famílias sem pais e sem maridos,
sujeitas aos assédios dos oportunistas. Nessas condições o adultério era sempre possível
e muitas vezes concretizava-se. A personagem-tipo do Marido representa portanto todos
os maridos enganados pelas esposas, que, na sua ingenuidade, aceitam como boas todas
as manifestações de amor e fidelidade das respectivas consortes.
Pode então dizer-se que esta personagem condensa os aspectos negativos da expansão
portuguesa.
CÓMICO
Sendo Auto da Índia uma farsa, um dos objetivos do autor era divertir o seu público,
recorrendo para isso ao cómico.
Tal como em muitas outras peças de Gil Vicente, é possível encontrar aqui três tipos de
cómico.
Por outro lado, Gil Vicente lança mão de determinados recursos para obter efeitos
cómicos. Consegue-o pela ironia, sobretudo nas falas da Moça, ao fazê-la dizer em voz
alta à Ama o contrário do que tinha declarado no aparte anterior. Recorre igualmente à
caricatura, que consiste em exagerar um ou mais traços específicos de uma dada
personagem, como acontece no caso do Castelhano. Por fim lança mão da sátira, isto é,
da crítica divertida dos comportamentos humanos.
CRÍTICA SOCIAL
Conforme já vimos, com esta farsa Gil Vicente procura criticar situações e
comportamentos sociais. Quais são eles?
O valor documental deste auto é inegável e resulta evidente das anotações anteriores.
Cada uma das personagens representa um tipo social, com seu comportamento próprio e
seus defeitos, que são habilmente ridicularizados. O texto permite-nos apreender a outra
face da gesta dos Descobrimentos, a face menos heróica, mais prosaica, expondo as
verdadeiras motivações materialistas dos agentes da expansão e os efeitos perversos que
ela tinha sobre a estrutura familiar e social. Nesse aspecto podemos considerá-la como o
contraponto de Os Lusíadas.
Por outro lado, há no texto aspectos intemporais que lhe concedem uma inegável
atualidade. Descontados os aspectos circunstanciais, as críticas de Gil Vicente são
perfeitamente atuais: é atual a infidelidade no casamento, a falta de respeito pelos
compromissos assumidos; é atual o materialismo desenfreado, a hipervalorização dos
bens materiais em detrimento de valores mais nobres; atual é também a crítica da
ostentação, do culto das aparências.