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O jogo da História em A bicicleta que tinha bigodes, de Ondjaki

Elisa Maria Taborda da Silva1

RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar os diálogos que a obra de Ondjaki estabelece com a
História oficial, através dos nomes de personalidades históricas que a menina Isaura
escolhe para seus animais de estimação. Acredito que a escolha desses nomes, as
caracterizações das personagens e sua atuação na obra evidenciam um posicionamento
crítico do autor-modelo frente às narrativas que compõem a história mundial,
convidando o leitor para um jogo no qual seus conhecimentos históricos serão
confrontados e o desconhecimento também conta pontos.

Palavras-chave: História. Autor-modelo. Literatura angolana. Alteridade.

1. INTRODUÇÃO

1 Bolsista CNPq, mestranda de Literaturas de Língua Portuguesa no Programa de Pós-Graduação em


Letras PUC Minas.

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Na obra A bicicleta que tinha bigodes, do escritor angolano Ondjaki, somos
apresentados ao contexto social da cidade de Luanda através dos olhos de um narrador
menino, que junto com seus amigos miúdos e o escritor tio Rui decide participar de um
concurso de redações promovido pela Rádio Nacional de Angola. De acordo com as
regras do concurso, a criança que escrevesse a estória vencedora ganharia “uma
bicicleta bem bonita, amarela, vermelha e preta” (ONDJAKI, 2013, p.10). Deslumbrado
com a possibilidade de ganhar a bicicleta, que ele prometia dividir com todos os colegas
da sua rua, o narrador menino convoca seus amigos Isaura e JorgeTemCalma para
ajudarem na tarefa de escolher uma estória para escrever, sendo sempre inspirados pela
presença de tio Rui e sua caixa mágica de letras. Em meio às experiências dessas
personagens junto aos outros moradores da rua, o leitor é levado a conhecer a
mundividência característica àquele espaço, bem como as histórias que perpassam o
cotidiano simples daquelas personagens em um bairro pobre de Luanda.
O endereçamento infantil que define a estrutura do livro e do texto mescla-se de
forma sensível e poética à abordagem de um dos temas mais árduos e recorrentes
partilhados pela produção literária dos países africanos de língua portuguesa: a
necessidade de reconstrução da nação através da descolonização das consciências e do
empoderamento em relação às histórias que constituem essas nações, após os longos e
violentos processos de descolonização e guerra civil. Não é por acaso que o prêmio do
concurso nacional é uma bicicleta nas cores da bandeira de Angola: a imagem das
crianças que escrevem estórias para que uma seja escolhida como a ganhadora do
brinquedo amarelo, vermelho e preto parece uma bela metáfora da responsabilidade que
têm as gerações futuras naquele país, em relação à construção de um discurso soberano
sobre a história de Angola, algo semelhante ao que Marx postula em sua “Ideologia
Alemã” ao escrever que sociedade alguma pode referir-se a si mesma se não forjar para
si uma representação de sua unidade (MARX apud SERRANO, 2002). Em um país
esfacelado pelas disputas étnicas e entre grupos políticos pós-independência, onde a
assimilação cultural protagonizada pelo colonizador procedeu o apagamento da porção
autóctone da cultura angolana, e onde as crianças até pouco tempo aprendiam nas
escolas uma história portuguesa que não era a sua, Ondjaki trata de um tema que é ao
mesmo tempo uma urgência histórica e uma doce proposta de ensujeitamento frente ao
discurso histórico.

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Considerando a imagem do concurso infantil que escolherá uma estória entre
tantas para ganhar a bicicleta Angola - imagem esta que se completa com a carta que por
fim o narrador menino escreve ao presidente, sugerindo que a recompensa do concurso
seja dada a todas as crianças angolanas -, o objetivo deste trabalho será então observar
que diálogos a obra de Ondjaki estabelece com a História, através dos nomes de
personalidades históricas que a menina Isaura escolhe para seus animais de estimação.
Acredito que esses nomes evidenciam posicionamentos adotados por esse discurso
nacional angolano em construção, através do jogo que convida o leitor a confrontar o
discurso histórico tradicional que envolve personalidades como Fidel Castro e Margaret
Thatcher com as suas representações estéticas dentro da obra, um jogo no qual o
desconhecimento também conta como ponto do adversário (vide personalidades pouco
conhecidas no ocidente como Samora Machel e Mobutu). Para a análise a que me
proponho, sustento-me nas concepções de jogo textual propostas por Wolfgang Iser, às
quais me referirei no decorrer do estudo.

2. NA ESTÓRIA, O JOGO DA HISTÓRIA

Isaura, a amiga do narrador menino, tem um hábito interessante que é descrito da


seguinte forma por ele: “A Isaura dá nomes de presidentes aos bichos do quintal dela, e
porque são muitos bichos, ela sabe nomes de muitos presidentes. Podem ser nomes
também de alguns que já morreram ou mesmo outros que não foram presidentes mas
pessoas assim importantes” (ONDJAKI, 2013, p.15, grifo meu). Os nomes escolhidos
por Isaura são os de personalidades históricas que lhe parecem importantes,
provavelmente pelo simples fato de ouvi-los na escola ou nas conversas dos mais
velhos. Porém, esses mesmos nomes em sua condição de escolhidos pelo autor-modelo,
essa instância que dá a conhecer ao leitor certos caminhos interpretativos possíveis
dentro da obra (ECO, 2002), sugerem-nos a natureza dos diálogos com a História oficial
que a obra busca estabelecer. A escolha por nomear e caracterizar de uma dada maneira
os animais como Fidel e Raul Castro, SamoraMachel, JoãoPauloTerceiro,
JoãoPauloSegundo, Ghandi, Tátecher, Kadhafi, Mobutu, AmílcarCãobral e Senghor,
além de evidenciar um empoderamento angolano da língua portuguesa através da
inclusão anedótica (AmílcarCãobral) ou da linguagem popular (Tátecher), aponta
também para uma escolha: são essas e não outras as referências históricas que o autor-

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modelo associa à construção da história angolana, que se processa esteticamente nesta
obra de Ondjaki.
O jogo da História se dará na medida em que o leitor se propuser a negociar as
imagens que já possui dessas figuras históricas frente ao modo como os animais que
levam seus nomes são apresentados pelas personagens, em especial por Isaura.
Tomemos como primeiro exemplo o gato Gandhi:

Agora é que me lembrei, há um papagaio chamado JoãoPauloTerceiro, filho


do falecido Jacó JoãoPauloSegundo que tinha morrido na boca do próprio
Ghandi. É que o Ghandi, antes não se chamava Ghandi, se chamava
Tátecher! Só depois de comer os papagaios é que lhe cortaram os tímbalos e
ficou mais calmo a miar devagarinho e a não arranhar ninguém. (ONDJAKI,
2013, p.16)

Ao fazer uma clara referência à ex-primeira ministra do Reino Unido Margaret


Thatcher e ao pacifista religioso Gandhi, o autor-modelo impele-nos a confrontar nosso
conhecimento histórico acerca dessas personalidades com a sua caracterização na obra.
Sabemos que Margaret Thatcher foi a primeira mulher a ocupar o cargo que a projetou
no mundo inteiro como a “dama de ferro”, excelente administradora e líder do partido
conservador, que reverteu um longo declínio financeiro em seu país. Porém, não são
essas as características de Thatcher que são transferidas ao gato de Isaura. Nele
sobreleva-se o comportamento violento de comer papagaios (não por acaso, animais
símbolo da tropicalidade do sul, no que pode ser visto como uma referência ao
imperialismo britânico), suprimido apenas após a troca de seu nome. Ao escolher essa
caracterização negativa para o gato-Tátecher em oposição à caracterização positiva do
gato-Gandhi, o autor-modelo posiciona-se politicamente ao mesmo tempo em que
desafia o leitor a questionar suas próprias concepções acerca de Thatcher e Gandhi.
Caso o leitor proponha-se a isso, instaura-se o jogo da História. Mas o que torna essa
proposta um jogo?
Wolfgang Iser, no epílogo à sua obra O fictício e o imaginário: perspectivas de
uma antropologia literária, trata do texto ficcional como um jogo na medida em que ele
“resulta de uma transformação de seus mundos de referência”, pois “o texto de modo
algum está reduzido a ser a representação de algo previamente dado” (ISER, 1996,
p.341). Dessa forma, o texto ficcional engendra uma performance que evidencia sua
conexão com o real para transformá-lo, e não apenas para reproduzi-lo textualmente.
Essa concepção confere ao texto literário o caráter revolucionário de questionar e propor

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mudanças ao real através da estética que utiliza e das imagens que apresenta. Ao
explicar com pormenores como funcionaria esse jogo do texto, o mesmo autor postulará
que ele acontece do seguinte modo (ISER, 1979, p.108): as posições diferenciáveis
sobre um mesmo tema são confrontadas entre si, e esse confronto provoca o movimento
de ida e vinda no sentido. A diferença resultante deverá ser erradicada para que se
alcance um resultado do sentido, mas de forma alguma esse movimento aponta para um
equilíbrio ou harmonia final. O resultado mais interessante desse jogo será, na verdade,
o movimento contínuo entre as posições, que revela seus aspectos muito diferentes e
como cada um transpassa o outro, de modo que as posições iniciais serão
inevitavelmente transformadas.
Todos nós interpretamos o mundo através de esquemas, que são produto do
nosso empenho em nos adaptarmos ao mundo em que estamos. O jogo de Iser seria
então uma espécie de esquema invertido, como ele mesmo o denomina, na medida em
que não contribui para a acomodação e a adaptação, mas para o movimento. Ele afirma:

Em vez de facilitar a adaptação ao mundo físico [acomodação], os esquemas


podem ser usados para moldar coisas doutro modo inapreensíveis ou de que
queremos dispor dentro de nossas condições [assimilação]. Assim como os
esquemas nos capacitam a nos acomodarmos a objetos, assim também nos
concedem assimilar objetos de acordo com nossas próprias inclinações.
Quando ocorre essa inversão, abre-se o espaço do jogo. (...) O esquema
invertido é um tipo de esquema que forma um espaço de jogo no texto e que
põe o jogo em movimento. (ISER, 1979, p. 111-112)

O autor-modelo em A bicicleta que tinha bigodes instaura o jogo da História na


medida em que a caracterização e as ações dos animais de Isaura não se acomodam à
visão que temos das personalidades históricas dentro da História oficial, mas entram em
conflito com essa visão. Ele dá as cartas do jogo que propõe na medida em que lança ao
texto na voz do narrador menino as características de Margaret Thatcher que ele quer
problematizar, como se fossem a antítese da tese que a História oficial nos conta. O
governo da “dama de ferro” foi extremamente impopular pelas altas taxas de
desemprego que gerou e pelas muitas privatizações sustentadas por seu posicionamento
neoliberal. Esse massacre às camadas populares, que não têm lugar no discurso
histórico, ganha destaque na figura do violento gato-Tátecher. Sendo assim, o leitor que
se proponha ao jogo da História de A bicicleta que tinha bigodes poderá friccionar essas
posições diferenciáveis em relação à ex-primeira ministra, confrontando-as e
movimentando suas próprias crenças, sob o olhar atento de um autor-modelo cujas

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convicções políticas já estão definidas, e que espera pela aquiescência do leitor para
proclamar-se vencedor. O leitor também poderá vencer, na medida em que enriqueça
sua visão de mundo ao complementar seu conhecimento histórico da excelente
administradora Thatcher com a perspectiva também verdadeira da violência inerente à
sua administração.
Passando por um bichinho de Isaura após o outro, o autor-modelo vai incluindo
personalidades históricas no diálogo dentro do qual vai se constituindo a história de
Angola. A imagem dos gafanhotos Kadhafi, Mobutu e SamoraMachel brincando encena
uma aproximação incômoda entre o ditador líbio Muammar Abu Minyar al-Gaddafi e os
ex-presidentes do Congo e de Moçambique, respectivamente. Todos eles
protagonizaram políticas violentas e repressoras, e a cena da morte do gafanhoto
Mobutu engolido pelo gato francês pode ser lida como uma referência bem humorada
ao apoio não só francês como ocidental à ditadura de Mobutu, por medo da ameaça
socialista naquele período. O diálogo é bastante interessante, e inicia-se com a
desconfiança que Isaura tem sobre quem matou o gafanhoto Mobutu:

- Tenho a certeza que foi o gato francês.


-Mas o gato é francês ou é angolano? – perguntava o CamaradaMudo.
- O gato daquele senhor francês.
-Mas esse gato nasceu já aqui em Angola, não? – o JorgeTemCalma também
agitou.
- Ainda hoje de manhã vi os três a brincarem, o Samora, o Kadhafi e o
Mobutu.
- Mas é o quê, Isaura?
- Comeram o gafanhoto Mobutu. Foi o gato francês.
- Mas o gato é francês ou angolano?
- A questão não é essa, vocês são malucos ou quê? Eu acho que aqui na rua
ninguém respeita os bichos.
- Um gafanhoto arrisca-se sempre a ser comido – o CamaradaMudo
comentou.
- Mas porquê que o gato francês tem de entrar nos quintais dos outros?
- E o Kadhafi está bem? – perguntou o JorgeTemCalma.
- Por enquanto sim, mas com o gato francês nunca se sabe. (ONDJAKI,
2013, p.42)

Vários são os questionamentos caros à história de Angola suscitados no trecho


acima, através da presença das personalidades históricas como inter-texto. O
CamaradaMudo pergunta se o gato é francês ou angolano como quem questiona
metaforicamente a identidade mestiça de uma nação tão recentemente descolonizada. A
influência francesa na política do Congo é encenada como predatória, e instiga uma
pergunta que fica sem resposta: “Mas porquê que o gato francês tem de entrar nos
quintais dos outros?”. O questionamento desdobra-se em crítica dentro da atuação

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política do autor-modelo, atuação essa que perpassa todo o texto e define as regras do
jogo. Ele joga como aquele menino “dono da bola”, que ao oferecer espaço para que o
leitor transforme sua visão histórica acaba por legislar em causa própria, neste caso, em
causa das suas próprias convicções.
São vários os exemplos que perpassam o texto, nos quais as concepções
históricas e políticas do autor-modelo divergem e convergem no embate com a História
oficial. Na cena em que o sapo Raúl Castro é morto por atropelamento, o narrador-
menino informa ao motorista que tratava-se do irmão do Fidel, e enuncia que o fez com
o objetivo de assustar seu interlocutor. Sabemos da enorme influência que o pensamento
socialista teve nas guerras de independência em Angola e em outros países de África,
daí o respeito e o medo que o narrador-menino espera inspirar no motorista ao invocar a
figura de Fidel Castro. O autor-modelo escolhe essa imagem forte de Fidel Castro, em
detrimento da visão ocidental que na maioria das vezes tem Cuba como um exemplo da
pequenez e do fracasso socialista frente ao poderio capitalista. Também a lesma
Senghor, com suas lentas visitas às amigas durante a tarde, expõe para o leitor a face do
governo desse ex-presidente senegalês que dedicava-se à associação amistosa aos países
europeus, e mesmo a trajetória pessoal desse político, que estudou na França e chegou a
ocupar o cargo de deputado na Assembleia Nacional Francesa. Essas encenações
estéticas em seu diálogo com a realidade (e refiro-me a ela como o constructo do real
que é, sendo a História o constructo narrativo deste real) participam todas do
funcionamento do esquema invertido de Iser dentro do texto ficcional:

[No caso do esquema invertido] uma função básica é transformada em meio


para algo mais: com o significante, a função denotativa se transforma no
meio para a figuração e, com o esquema, a função de acomodação se torna o
meio para a modelagem (...). As funções originais, contudo, nunca são
totalmente suspensas e há, assim, uma oscilação contínua entre denotação e
figuração, e entre acomodação e assimilação. Essa oscilação ou movimento
de ida e vinda é básico para o jogo e permite a coexistência do mutuamente
exclusivo. Também converte o texto em uma matriz geradora para a produção
de algo novo. (ISER, 1979, p.112)

Se considerarmos o que Iser chama de denotação como sendo a efetiva atuação


dessas personalidades históricas no mundo, da forma como nos foram contadas antes do
texto de Ondjaki, perceberemos a figuração como sendo a forma como essas
personalidades nos são apresentadas no corpo do texto ficcional, e empreenderemos
então esse movimento pendular entre a acomodação e a assimilação no ato da leitura. A
oscilação do sentido é básica para que o jogo aconteça, como vimos, e é material para a

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transformação do sentido, de nossa visão histórica. A visão histórica que emergirá da
leitura é nova porque contempla pontos de vista até então desconhecidos ou pouco
explorados por nós, leitores cuja bagagem histórica se constrói em sua quase totalidade
no e pelo discurso ocidental.
O desconhecimento, inclusive, é o último ponto que gostaria de destacar dentro
do jogo da História proposto em A bicicleta que tinha bigodes. Boa parte das
personalidades históricas abordadas na obra são pouco ou nada conhecidas pelo leitor
ocidental, que em geral guarda grande desconhecimento no que se refere principalmente
à história de África. Acredito que evidenciar esse desconhecimento é um dos maiores
trunfos do jogo, pois é onde reside a força do argumento de que é preciso oferecer
bicicletas pretas, amarelas e vermelhas não só a todas as crianças angolanas, mas ao
mundo inteiro.

3. E QUANDO NÃO SABEMOS A HISTÓRIA DE ÁFRICA?

É importante destacar que o que chamamos neste trabalho de História oficial é


um acervo também em constante construção, compartilhado por nós como se fosse uma
comunidade imaginada de Benedict Anderson no campo do conhecimento. Entretanto
ela possui uma característica bastante clara: compõe-se majoritariamente das narrativas
vindas dos centros de poder. Nesse sentido, a obra de Ondjaki pode muito bem ser
entendida como uma insurreição estética contra essa face nefasta da História, que
privilegia as narrativas dos “vencedores” ao mesmo tempo em que reduz as narrativas
dos “vencidos” a estereótipos ou condena-as à pequenez e à subserviência.
Sendo assim, é bem possível que a maioria dos leitores ocidentais de A bicicleta
que tinha bigodes desconheça figuras como Senghor, Mobutu, Samora Machel, e
Amílcar Cabral. Eles não constaram em nossos livros de História Geral, e apesar do
recente (e crescente) interesse das mais diversas áreas do conhecimento pelos países
africanos, ainda conhecemos muito poucas narrativas vindas, por exemplo, de Angola, o
que é diferente de conhecer narrativas sobre Angola produzidas pelo olhar externo.
Creio que o conceito de opacidade cunhado por Édouard Glissant na Poética da
Relação (1990) ajuda-nos a entender o potencial transformador que nosso
desconhecimento pode ter no jogo da História aqui analisado. Glissant entende que a
alteridade e sua mundividência diversa impõe limites à observação do objeto, mas que
não deve ser vista como um impedimento à construção do sentido. Pelo contrário, ela

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enriquece nosso olhar e impele-nos a aceitar as contradições como elementos
mutuamente constituintes do real. A opacidade determinará em que nível se dará o jogo,
variando conforme o conhecimento do leitor. Na obra de Ondjaki, a alteridade nos é
opaca ao ponto de questionarmos se, na real cidade de Luanda, uma menina como
Isaura traria em sua bagagem cultural referências históricas como Senghor e Mobutu.
Não tenho a resposta para essa questão, tampouco acredito que ela tenha relevância na
análise de uma obra literária. Interessa-nos sobretudo a representação estética de uma
Luanda onde isso seja possível, Luanda esta que talvez esteja no horizonte de
expectativas desse autor-modelo: a capital de um país que inclue-se (e não “é incluído”)
enquanto um dos sujeitos da História mundial, na qual estejam igualmente presentes
Gandhi, Thatcher e Amílcar Cabral.
Em seu texto sobre os intelectuais de Angola (1994), Serrano destaca que os
intelectuais angolanos que compunham a Geração de 50 lutavam pela recuperação da
palavra dentro de um discurso angolano autêntico. Esse processo sócio-político de
ensujeitamento foi muitas vezes encenado na literatura deste país. É recorrente nas
obras de José Luandino Vieira, Pepetela e Ondjaki a figura da criança como metáfora
das novas gerações, que enfim contariam suas histórias em lugar de deixá-las serem
contadas pelo Outro, fosse ele o colonizador ou as atuais mídias comandadas pelos
centros de poder. Dessa vez, em A bicicleta que tinha bigodes, o que vemos é a
encenação bem-humorada e sensível do franco exercício desse empoderamento
discursivo, através de uma estética que mistura a ficção e o real com o objetivo de
deslocar saberes sedimentados, transformar o indivíduo e encantar, como o faz toda boa
literatura.

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REFERÊNCIAS

ECO, Umberto. Leitor-Modelo. In: Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 2002. p.
35-46.

GLISSANT, Édouard. Pour l’opacité. In: Poétique de la relation. Paris:


Gallimard,1990.

ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In: JAUSS, Hans Robert. et. al. A literatura e o
leitor: textos de estética da recepção: coordenação e tradução de Luiz Costa Lima. São
Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 105-118.

ISER, Wolfgang. Epílogo. In: O fictício e o imaginário: perspectivas de uma


antropologia literária. Trad: Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: Eduerj, 1996.

ONDJAKI. A bicicleta que tinha bigodes. Rio de Janeiro: Pallas, 2013.

SERRANO, C. M. H. . Angola: a geração de 50, os jovens intelectuais e a raiz das


coisas. In: Caniato, Benilde Justo e Miné, Elza. (Org.). Abrindo caminhos: homenagem
a Maria A parecida Santilli. São Paulo: FFLCH/USP, 2002, v., p. -.

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