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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E


ANTROPOLOGIA

DEUS ME ACEITA COMO EU SOU?


A disputa sobre o significado da homossexualidade entre evangélicos no
Brasil

MARCELO TAVARES NATIVIDADE

Rio de Janeiro

2008
MARCELO TAVARES NATIVIDADE

DEUS ME ACEITA COMO EU SOU?

A disputa sobre o significado da homossexualidade entre evangélicos no Brasil

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia ,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Sociologia e Antropologia.

Orientador:
Peter Henry Fry

Rio de Janeiro, 2008

2
FICHA CATALOGRÁFICA

Natividade, Marcelo Tavares. Deus me aceita como eu sou? A


disputa sobre o significado da homossexualidade entre
evangélicos no Brasil. Rio de Janeiro, 2008.

Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) –


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, 2008.

Orientador: Peter Henry Fry

3
SUMÁRIO

Resumo............................................................................................................................ 07
Abastract......................................................................................................................... 08
Dedicatória...................................................................................................................... 09
Introdução....................................................................................................................... 10

Capítulo 1: A controvérsia............................................................................................ 28
1.1. O confronto no seminário: divergentes convicções e responsabilidade........ 31
1.2. O Projeto 717/2003: o conflito na ALERJ..................................................... 37
1.3. A “criminalização da homofobia”: a liberdade religiosa e o direito de
“curar”: uma nova batalha, desta vez no Senado........................................... 42
1.4. Diferentes visões sobre um mesmo problema: o conflito em um seminário 49
1.5. Novos militantes da pureza sexual?.............................................................. 61
1.6. Batalha espiritual para uns, luta por reconhecimento para outros................ 69

Capítulo 2: Os evangélicos e a homossexualidade..................................................... 85


2.1. Os estudos acadêmicos, a persistência da rejeição social e a produção da
homossexualidade........................................................................................ 85
2.2. O demônio e a sexualidade........................................................................... 94
2.3. Os “pecados sexuais” e os manuais de libertação....................................... 104
2.4. Cura da homossexualidade.......................................................................... 113
2.5. Religião, psicologia, “vida cristã” e homossexualidade.............................. 118

Capítulo 3: Etnografia do nascimento de uma “igreja inclusiva”: a construção


social da homossexualidade em um movimento minoritário evangélico. 135
3.1. Igrejas “reformadas” e inclusivas”............................................................. 136
3.2. Aproximações do campo: uma igreja para gays?........................................ 143
3.3. O início: entre a teologia inclusiva, a luta contra a homofobia e a batalha
espiritual...................................................................................................... 150
3.4. A Igreja Cristã Contemporânea: uma Igreja Inclusiva Pentecostal ............ 159
3.5. No caminho da consolidação: a igreja e a questão da respeitabilidade -
“saber se comportar para ser respeitado”.................................................... 171

4
3.6. Uma interpretação do drama: a rejeição do par homossexualidade-religião
e a resposta ao estigma..................................................................................183

Capítulo 4: Justificações religiosas sobre a homossexualidade............................... 222


4.1. Entre assumir-se e ser discreto: o desafio da norma religiosa e o cultivo do
segredo como forma de gestão de si............................................................ 228
4.2. O combate da castidade: entre o desejo da carne, os enganos de Satanás
e a vontade de Deus..................................................................................... 246
4.3. Deus me aceita como sou: justificações religiosas sobre a
homossexualidade entre integrantes de igrejas inclusivas.......................... 268

Capítulo 5: A guisa de conclusão: neotradicionalismo, orientação sexual,


política e movimentos religiosos ........................................................... .299

Bibliografia.................................................................................................................. 320

Fontes etnográficas .................................................................................................... 338

5
FOLHA DE APROVAÇÃO

Marcelo Tavares Natividade

DEUS ME ACEITA COMO EU SOU? A DISPUTA SOBRE O SIGNIFICADO DA


HOMOSSEXUALIDADE ENTRE EVANGÉLICOS NO BRASIL

Rio de Janeiro, 20 de Outubro de 2008.

______________________________________
Peter Henry Fry, doutor, PPGSA/ UFRJ

______________________________________
Miriam Grossi, doutora, PPGAS, UFSC

___________________________________________
Sérgio Luis Carrara, doutor, PPGSC/IMS/UERJ

____________________________________________
Luiz Fernando Dias Duarte, doutor, PPGAS/ UFRJ

_____________________________________________
Emerson Giumbelli, doutor, PPGSA/ UFRJ

_____________________________________________
Adriana Vianna, doutora, PPGAS/ UFRJ
(suplente)
____________________________________
Patrícia Birman, doutora, PPCIS/ UFRJ
(suplente)
_____________________________________
Ivonne Maggie , doutora, PPGSA/ UFRJ
(suplente)

6
RESUMO

NATIVIDADE, Marcelo. Deus me aceita como eu sou? A disputa sobre o significado da


homossexualidade entre evangélicos no Brasil. Rio de Janeiro, 2008. Tese (Doutorado em
Sociologia e Antropologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Partindo de recente polêmica sobre uma proposta de deputados evangélicos que buscou
implementar iniciativas de “cura” aos homossexuais subsidiadas com recursos estatais, na
Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, essa tese analisa a construção social da
homossexualidade no Brasil contemporâneo. Pesquisa etnográfica foi conduzida em igrejas
evangélicas convencionais e também em três congregações relativamente recentes cuja
teologia nega a visão da homossexualidade como “pecado”. A tese também utiliza
publicações sobre homossexualidade produzida por autores evangélicos e algumas
entrevistas em profundidade com homens evangélicos que vivenciam ou vivenciaram a
homossexualidade, de modo a analisar os nexos entre desejo sexual e preceitos religiosos
em suas vidas cotidianas.

7
ABSTRACT

NATIVIDADE, Marcelo. Does God accept me as I am? The struggle of meanings about
homosexuality among evangelicals in Brazil. Rio de Janeiro, 2008. Thesis (Ph.D Sociology
and Antropology) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Starting with a recent polemic over a proposal on the part of evangelical deputies in the
State Legislature of Rio de Janeiro to introduce public funded “cures” for homosexuals, this
thesis analyses the social construction of homosexuality among evangelicals in
contemporary Brazil. Ethnographic research was carried out in hegemonic evangelical
churches and also on three relatively recent congregations whose theology denies the
sinfulness of homosexuality. The thesis also utilizes publications on sexuality produced by
evangelical authors, and a number of in depth interviews with male evangelicals who
experience or who have experienced homosexual desire in order to analyse the interplay
between sexual desire and religious precept in their day to day lives.

8
Em minha juventude ouvi um ensinamento religioso que dizia escolhermos e sermos
escolhidos pelos nossos pais para um aprendizado na Terra. Não há melhor forma de
descrever minha relação com José e Juju, meus pais e melhores amigos. Nunca conheci
pessoas que refletissem tanto a presença de Deus na minha vida. Esta tese só pode ser
dedicada a eles.

Peço licença ao leitor, para endereçar-me ainda a outras pessoas, que vieram e plantaram
semelhante amor: meu amigo fiel Eduardo Bruno de Oliveira; meu irmão e parceiro de
idéias e projetos, Leandro de Oliveira; meu amigo Ednor; minhas irmãs Eliane e Edlaine.
De alguma forma, sinto que não teria conseguido sem vocês.

9
INTRODUÇÃO

O momento de louvor estendeu-se por quase meia hora. Um


cântico, em especial, dizia que Jesus era “o Príncipe da Paz”.
Durante o culto Lauro, ao meu lado, emocionou-se muito.
Olhava-me, vez por outra, com muitas lagrimas nos olhos.
Pegou uma caixa de lenço de papel e tentava conter as
lágrimas que desciam fortemente por seu rosto. A música
tocava e era exibida a letra do louvor em uma tela grande, de
frente para o publico. Em dado momento, procurei reprimir
uma ânsia de choro que me tomou, mas não consegui. Fechei
os olhos e tentei não pensar em nada. Mas um ímpeto de choro
forte veio. O pastor Murilo desceu do púlpito, veio ao meu
encontro e abraçou-me. Coloquei a cabeça sobre seu ombro e
chorei. Chorei. Fui abraçado por outro pastor, o pastor
Ezequiel. Ficamos ali os três, por um tempo, abraçados.
Chorando.

Diário de campo, São Paulo, janeiro de 2008.

Em 2001, ingressei no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de


Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Na ocasião, fui designado
para ter como orientador o antropólogo Richard Guy Parker. Logo nos primeiros meses do
mestrado tive uma reunião de orientação, munido de notas preliminares sobre três possíveis
temas para o projeto. Eu descobrira a existência de grupos de ajuda mútua como o
“Dependentes de amor e sexo anônimos” (DASA) e “Sexólatras anônimos”, ambos
situados no Rio de Janeiro. Estudar a proposta dos grupos e a experiência das pessoas que
os compunham era minha primeira intenção de pesquisa. Outra opção de tema era a
“Terapia do Amor”, reunião da Igreja Universal do Reino de Deus, realizada na “Catedral
da Fé”, sede mundial desta denominação, em Del Castilho, subúrbio do Rio de Janeiro. O
objetivo deste encontro semanal, que ocorria aos sábados, era a resolução de demandas
sentimentais e conjugais de fiéis. Conheci este culto no contexto de um trabalho de curso,
ainda na graduação de Ciências Sociais, para a disciplina ministrada pela professora
Patrícia Birman. A terceira proposta surgiu de uma conversa com Leandro de Oliveira, à

10
época aluno de graduação em Ciências Sociais. Ele conhecera uma pequena rede de
sociabilidade composta por um homossexual (sem religião, universitário) e alguns de seus
amigos, que tinham em comum o fato de identificarem como “gays” e “evangélicos”,
membros da Igreja Presbiteriana e Igreja Metodista. Leandro provocou-me que seria
interessante conhecer essas pessoas e suas experiências com a religião e a sua “opção
sexual”. Dividido entre os três temas, ouvi as impressões de Richard Parker que, diante da
exposição de minhas intenções, não titubeou: “Como o tema dos ‘gays evangélicos’, não
foi estudado no Brasil, você poderá investigar algo muito inovador e tornar-se até mesmo
conhecido no campo científico. Eu escolheria essa opção”. Saí de sua sala, na Associação
Brasileira Interdisciplinar de Aids, decidido a seguir seu conselho.
Nos meses seguintes, com a mudança de instituição de Richard Parker, tornou-se meu
orientador o Professor Sérgio Carrara, com quem eu já vinha trabalhando em uma pesquisa
sobre “violência contra homossexuais” no PPGSC/IMS/UERJ. Ele incentivou-me a
prosseguir com este tema, acreditando tratar-se da possibilidade de fazer uma boa
etnografia. Sérgio entregou-me um jornal evangélico que divulgava livros “de auto-ajuda”,
ensinavam ‘homossexuais’ a tornar-se ‘heterossexuais’. Um dos títulos chamou atenção:
“Deixando o homossexualismo: uma nova liberdade para homens e mulheres”, da autoria
de dois “ex-homossexuais”, Bob Davies e Lori Rentzel. A publicação continha uma série
de depoimentos de pessoas que haviam passado pela mudança de “orientação sexual”. O
vínculo entre sexualidade e religião ganhava novos contornos e configurava-se como eixo
da investigação. Apareciam imbricados o gênero da auto-ajuda (inicialmente associado ao
fenômeno das religiosidades Nova Era), o campo evangélico e a regulação da sexualidade.
Na imprensa religiosa eram numerosos os casos de cura da homossexualidade. Em termos
institucionais, o tema da transformação da orientação sexual ‘da homossexualidade para a
heterossexualidade’ era premente. Indicava a profusão deste discurso sob a forma de textos,
livros, depoimentos, testemunhos, preleções em púlpitos e a organização de grupos
voltados ao aconselhamento de homossexuais visando “libertação”. Nesse contexto,
emergiram cismas dentro do próprio campo evangélico, com a criação de igreja
autodenominadas “inclusivas”, voltadas a “aceitação” dos homossexuais sem exigir
mudança de conduta sexual.

11
Diante do quadro inicial, percebi a relevância de tomar como objeto de pesquisa a
construção das carreiras afetivo-sexuais de homens de pertença evangélica que tiveram em
sua trajetória experiências homossexuais. O recorte da pesquisa levou-me a identificar: 1)
sujeitos que mantinham a época relacionamentos com pessoas do mesmo sexo; 2) aqueles
que tiveram essa experiência ao longo da vida; aqueles que desejavam vivenciar essa
prática sexual. Dado fundamental era que esses atores sociais não tinham como meta
pessoal o rompimento com o vínculo religioso. Concomitantemente, eu cursava uma
disciplina no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ, intitulada
“Religião em Perspectiva”, o que me levou a aprofundar os laços com a Professora Clara
Mafra, que se tornou minha co-orientadora na pesquisa de mestrado, e que endossou a
importância de uma pesquisa que tratasse desse tema para o campo da antropologia da
religião.
Após o primeiro ano, em 2002, escrevi o projeto e submeti ao VIII Curso de
Metodologia de Pesquisa, que aconteceu no Programa em Gênero, Sexualidade e Saúde do
Instituto de Medicinal Social da UERJ, com apoio da Fundação Oswaldo Cruz, da
Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Junto a vários profissionais de ciências sociais e da área da saúde, discuti os meios de
entrada em campo nessa pesquisa. Fui questionado sobre a viabilidade de localizar a
população a que me propunha investigar, dado que naquele momento não existia um grupo
consolidado, mas sujeitos isolados. A meu ver, o que poderia ser visto como um problema
era um desafio metodológico instigante que ressaltava a relevância do objeto. Carmem
Dora Guimarães (2004), abordou o processo de aprendizado social da homossexualidade
nos anos 1970. Nesse estudo, constata que a investigação sobre populações divergentes do
padrão moral socialmente hegemônico enseja estratégias metodológicas específicas. A
pesquisadora adotou como procedimento para acesso aos informantes o mapeamento de
redes construído a partir de relações pessoais. No caso dos “homossexuais evangélicos”,
este era o caminho mais profícuo, dado que se tratava de um segmento invisível
socialmente. Neste sentido, acessar essas pessoas a partir de dentro das instituições
religiosas constituía-se estratégia pouco proveitosa.

12
A reflexão ganhou fôlego quando obtive o contato de Berto, de 22 anos, músico,
membro de uma Igreja Batista, que morava com outros três rapazes. Segundo ele, todos
homossexuais, músicos e evangélicos. A partir desse momento, iniciou-se um complexo
processo de identificação e de negociação com os sujeitos sociais para a participação na
pesquisa. Diversas vezes encontros de sociabilidade e entrevistas foram marcados,
remarcados e recusados. Tal dinâmica levou à reflexão de que mesmo abrindo as redes, a
questão implicada na pesquisa (a junção da adesão religiosa evangélica e
homossexualidade) era perpassada por conflitos pessoais, receios de exposição pública e
sanções institucionais. Exemplo desta tensão pode ser percebido na recusa de Berto em
ceder entrevista, em função de um evento recente que o levara a mudar-se do apartamento
em que vivia com os três amigos homossexuais: a descoberta de sua “orientação sexual” na
igreja levara a necessidade de “resguardar” sua suposta imagem heterossexual. Por outro
lado, para alguns, havia um desejo de confidenciar tais dilemas na situação de entrevista,
quando elas ocorriam. Esta sendo compreendida como um “desabafo” em uma situação
neutra: a interação entre um pesquisador e um entrevistado fora dos contextos afetivos e
institucionais (família e certas redes de sociabilidade ligadas ao ambiente religioso). Os
resultados desse trabalho mostraram que, a despeito das normas e regras religiosas, havia
um pequeno, mas constante número de integrantes de igrejas evangélicas que se
relacionavam sexualmente com pessoas do mesmo sexo, evidenciando interpretações sobre
o desejo sexual distintas das prescrições institucionais. A dissertação foi elaborada
privilegiando trajetórias pessoais desses indivíduos, deixando de fora, contudo, uma série
de materiais etnográficos que suscitavam nova investigação.
O ingresso no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia no Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, possibilitou retomar o eixo problemático
identificado anteriormente, e tornar mais complexa a abordagem a partir da inclusão de
amplo material coletado de modo não sistemático. O projeto original apresentado pretendia
aprofundar os discursos doutrinários e posicionamentos oficiais sobre a homossexualidade
nesse universo religioso, pretendendo dar conta da pluralidade de visões a este respeito

13
1
nesse campo. Investi de forma mais sistemática num campo até então não explorado: a
pesquisa da literatura religiosa, documentos normativos, correspondências, projetos de lei,
conteúdos de sites religiosos, reportagens de imprensa religiosa e laica. Foi elaborado um
banco de dados a partir do mapeamento de literatura religiosa e do monitoramento de
2
conteúdos de sites “cristãos”, localizados através de pesquisa na Internet. Coletei e
sistematizei materiais de imprensa em geral, entre os anos de 1999 e 2008. Dentre os
periódicos evangélicos selecionados estavam: Revista Enfoque Gospel, Revista Eclésia,
Revista Ultimato, o Jornal Mensageiro da Paz (Assembléia de Deus), Revista Mulher: Lar
e Família Cristã, Revista Graça (Igreja da Graça). Os materiais de imprensa laica foram
coletados nos jornais O Globo, O Dia, Jornal do Brasil, Revista Época, Revista Veja, Portal
No Mínimo, Revista Sui Generis. Dois programas televisivos também constituíram o acervo
da pesquisa documental: O Fantástico (TV Globo, exibido em 02/08/05) e Programa
Super Pop (Rede TV, exibido em 26/08/04), enfocando a “cura da homossexualidade” no
país.
A pesquisa sobre literatura religiosa explorou inicialmente a busca em sites de
3
“editoras evangélicas” na Internet. Foram consultados catálogos on line com vistas a
identificar obras atinentes ao tema da pesquisa. Outro recurso foi visitar livrarias
evangélicas na cidade do Rio de Janeiro e em outros municípios. 4 Os livros catalogados na
base de dados contemplavam as seguintes rubricas: “cura espiritual”, “libertação”, “gênero/
casamento e família”, juventude, vida sexual, “pecados sexuais”, “homossexualidade” e

1
Este projeto foi contemplado com premiação no Concurso Sexualidade e Ciências Sociais Edital 2003, na
linha de pesquisa direitos humanos e religião, promovido pela Associação Nacional de Pesquisa em Ciências
Sociais (ANPOCS), pelo Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos e pela Fundação
Ford. Este apoio possibilitou que eu contasse com auxiliares de pesquisa durantes distintas etapas do plano
original. Em diferentes momentos da pesquisa ampla atuaram como meus auxiliares Lucas Bilate, Paulo
Victor Leite Lopes, Felipe Brito, Ana Paula Soeiro, Camila Sampaio.
2
Como procedimento exploratório para localizar os sites foi empregada “busca” por meio de palavras-chave,
dentre estas “cura da homossexualidade”, “evangélicos e homossexualismo”.
3
Foi utilizado como palavras-chave para pesquisa os termos “editora evangélica”, “editora cristã”, “editora
religiosa”.
4
As livrarias visitadas eram localizadas no Centro, Madureira, Bangu, Grajaú, Niterói, Penha e Tijuca (Rio de
Janeiro). Na Baixada Fluminense se consultou acervos de nove livrarias em Caxias e Nova Iguaçu.

14
“AIDS. 5 De 316 livros, selecionou-se aqueles cujos títulos ou capítulos se referiam a “vida
sexual”, “homossexualidade” e “pecados sexuais”.
No monitoramento dos sites foram coletados conteúdos referentes a iniciativas
religiosas que se autodenominavam “ministérios de ajuda”. Estas propunham
aconselhamento para homossexuais e a restauração da heterossexualidade por meio de
6
terapia psicológica cristã. Dentre os grupos identificados estavam: o Movimento pela
sexualidade sadia (MOSES, Rio de Janeiro), o Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos
(CPPC, Rio de Janeiro), o Êxodus Brasil (Belo Horizonte), a Visão Nacional para a
Consciência Cristã (VINACC, Campina Grande), a Associação brasileira de apoio a
pessoas que desejam voluntariamente deixar a homossexualidade (Abraceh, Rio de Janeiro)
e o site/ blog “Movimentos de apoio”.
No período chamou atenção a ocorrência de debates na cena pública entre militantes
homossexuais e grupos religiosos em torno de propostas que tramitavam no legislativo.
Uma delas, o Projeto de Lei 717/2003, propunha apoio estatal a iniciativas religiosas que
visavam a reorientação sexual de homossexuais, por meio de terapias psicológicas cristãs.
A proposta de Edino Fonseca (Partido Social Cristão) recebera parecer favorável na
Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, originando intenso debate mo qual
emergiram distintos atores sociais em disputa (Organizações não governamentais, grupos
ativistas, religiosos, intelectuais, mídia). Compareci a algumas manifestações públicas
como passeatas contrárias à proposta religiosa. A polêmica se evidenciava em eventos em
que se confrontavam religiosos e representantes do movimento homossexual. Diante dessa
ebulição de discursos conflitantes, decidi tomar a controvérsia em questão como um dos
possíveis eixos da investigação, de modo a refletir sobre as transformações no campo
evangélico, relativas regulação da sexualidade moderna.
Um distinto segmento religioso começou a ter visibilidade, nesse processo, com a
divulgação na mídia laica sobre a criação de “igrejas gays” no Brasil, cuja proposta era de

5
Foram consultados os acervos de cerca de 90 editoras, dentre elas algumas de renome e prestígio
consolidado no campo religioso como Mundo Cristão, Betânia, Vida Cristã, CEPAD, Vinde, e outras de
menor porte institucional cuja venda de materiais ocorria por meio de compras on line.
6
A sistematização dos materiais foi feita através da impressão de todas as páginas de texto publicadas,
incluindo distintos formatos: apresentações institucionais, conteúdos programáticos (doutrinários/ teológicos),
artigos, editoriais e outros. Posteriormente procedeu-se à organização de “tomos” por entidades religiosas,

15
combinar a adesão religiosa evangélica e escolhas sexuais fora do padrão hegemônico, sem
preconizar a mudança de orientação sexual. Acrescentava-se um novo elemento a
investigação ampla que vinha conduzindo, levando-me a buscar também estratégias para
acompanhar a emergência deste movimento. Nesse momento, começaram a surgir
instituições religiosas lideradas por homossexuais cuja identidade foi constituída em torno
da adesão à categoria “igreja inclusiva”. Entre 2004 e 2006, inclui no monitoramento de
sites, os conteúdos dessas iniciativas, como a Comunidade Metropolitana (Rio de Janeiro e
Niterói) e a Igreja Cristã Contemporânea.
Enquanto reunia o material etnográfico realizava levantamento da literatura
acadêmica na área das ciências sociais, que explorava a junção entre homossexualidade e
religião. Era escassa a produção que focalizava as implicações desta articulação no âmbito
das igrejas evangélicas, em função da contemporaneidade do tema. Os poucos estudos que
contemplavam a discussão, realçavam o discurso oficial da negação e proibição da
homossexualidade em termos doutrinários (Machado, 1996; Lopes, 2004; Mello, 2005).
Por outro lado, havia uma produção sobre a suposta acolhida dos homossexuais pelos cultos
afro-brasileiros. Estas assinalavam as formas de construção da sexualidade nesse contexto
ritual (Fry, 1982; Segato, 1985; Birman, 1995; Matory, 1988; Rios, 2004; Moutinho 2005;
Mesquita, 2002).
Inspirando-me nesta discussão esta tese reflete sobre as formas de construção sexual
da homossexualidade, em contexto evangélico contemporâneo. Para tanto, trabalharei com
duas dimensões analíticas: a institucional e a das trajetórias pessoais. Proponho analisar os
modos como segmentos religiosos evangélicos (hegemônicos e minoritários) elaboram
distintos significados sobre o desejo homossexual e adotam estratégias singulares de
regulação da sexualidade. De outro lado, analiso os aprendizados sociais da
homossexualidade, focalizando a construção da subjetividade de indivíduos que aderem a
religiões cristãs de vertente evangélica. Parto também de uma concepção ampla de
etnografia (Giumbelli, 2002), que incluiu a coleta de fontes de documentais, trabalho de
campo em eventos e cultos religiosos, e realização de entrevistas.
A forma como esta tese se desenha é resultante das condições de entrada em campo,
do acesso a determinados segmentos e informantes. Inicialmente, cogitei a possibilidade de

16
acompanhar reuniões ou obter entrevistas junto a integrantes de “ministérios de apoio” e
grupos religiosos que atuassem semelhante perspectiva pastoral de “reorientação sexual”.
Fiz contato com alguns líderes desse movimento e iniciei tentativas de negociação. A
postura de reticência inicial de uma psicóloga evangélica ligada a vários “grupos de apoio”,
transformou-se em um recusa categórica quanto a abertura de espaço para a entrada de um
antropólogo em campo. Um dos fatores que dificultou a aproximação desse campo foi
minha participação como pesquisador do Centro Latino Americano em Sexualidade e
Direitos Humanos, vínculo que fez com que eu fosse percebido pelos religiosos como um
militante, alguém interessado em infiltrar-se no movimento como um “espião”. Aceitar
minha participação levaria ao risco de permitir acesso a informações que munissem o
movimento gay com subsídios para acusações de homofobia. No limite das negociações, foi
exigido que eu assinasse documentos de adesão à ideologia do grupo, comprometendo-me
com sua missão religiosa de “ajudar aqueles que desejassem voluntariamente deixar a
homossexualidade”. Por outro lado, o que era um impeditivo neste campo, tornou-se um
elemento favorável em outro. Nas igrejas inclusivas, meu histórico como pesquisador e
integrante de algumas Organizações Não Governamentais de Direitos Humanos recebia
uma conotação positiva. Minha presença era valorizada como legitimadora da instituição e
de suas ações. A pesquisa representava a oportunidade de visibilizar a existência do
movimento religioso que buscava consolidação. Ser objeto da confecção de artigos
acadêmicos e de uma tese conferia status dentro do próprio campo evangélico e da
sociedade mais ampla. Contudo, o trabalho envolveu uma constante negociação, ligada à
necessidade de reiterar que o caráter acadêmico do estudo, que não pretendia denegrir o
grupo com uma abordagem que o desqualificasse. Em uma perspectiva comparativa acerca
do olhar do outro sobre o pesquisador, a recusa dos “ministérios de apoio” e a aceitação das
“igrejas inclusivas” tinham semelhante motivação política de evitar a produção de uma
imagem pública negativa. Em diversas ocasiões, nas igrejas inclusivas, explicitar meu
passado de formação católica era importante para convalidar minha imagem de pessoa não
avessa à religião. Do mesmo modo, minha identidade sexual era indagada e
esclarecimentos a este respeito ensejavam reações de confiança motivadas pela idéia de que
como gay, eu entenderia a proposta política do movimento.

17
Em outro plano, passei a estranhar as reações que se produziam em um contexto de
minhas relações de sociabilidade, diante da escolha de meu objeto de pesquisa. Inúmeras
vezes fui confrontado por pessoas – da academia ou não - que, ao saberem sobre meu
objeto de pesquisa e a existência de “igrejas gays”, mostravam um estranhamento e
curiosidade sobre o que viria a ser uma “igreja gay”. Exemplar é a intervenção de um
amigo homossexual: “ah, me desculpa, não é uma coisa séria”. Ou a fala de um antropólogo
homossexual, que após uma apresentação de meu trabalho em um encontro de
pesquisadores interpelou-me: “escuta, quando você contou sobre essa igreja gay eu fiquei
pensando: onde é que é o quarto escuro da igreja”? O comentário foi seguido de risadas de
ambas as parte. Essas reações possibilitaram que eu percebesse estar diante de o que
perecia para eles uma paradoxal junção: homossexualidade e religião cristã, e que refletir
sobre esse paradoxo era fundamental no decorrer da pesquisa.
O trabalho de campo foi realizado principalmente na Igreja Cristã Contemporânea
(Rio de Janeiro), embora eu tenha feito incursões à Igreja da Comunidade Metropolitana
(Rio de Janeiro e São Paulo), à Comunidade Cristã Nova esperança (São Paulo) e à Igreja
Cristã Evangelho Para Todos (São Paulo). Fui apresentado a pessoas dessa denominação
por um informante privilegiado, um homossexual masculino, ex-evangélico, que
acompanhara a conversão de dois amigos de sua igreja pregressa a este grupo religioso.
Participei de cultos diversos, como o “Culto de Unção”, o “Culto de Adoração” (domingo)
e de vigílias temáticas, entre maio 2006 e fins de 2007. No início de 2008 compareci ao
Culto de Inauguração da nova sede desta igreja, tendo retornado algumas vezes no ano
corrente. Participei de também do Primeiro Encontro de Casais da Igreja Contemporânea e
de reuniões voltadas à “vida sentimental”. Idas espaçadas a igreja, contudo, traziam
algumas dificuldades, como o desligamento de fiéis e adesão de novas pessoas. O que, por
um lado, indicava a alta rotatividade de participantes, por outro me colocava consciente de
que eu vinha construindo relações com aqueles membros efetivos, por assim dizer, com
pessoas mais ligadas à liderança da igreja. Acompanhei situações fora do contexto da
igreja. Em alguns casos, fui a bares e boates, acompanhado por eles, o que permitia muitas
vezes a apreensão de determinados dilemas e conflitos pessoais ligados a vida religiosa e o

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exercício da homossexualidade. No Rio de Janeiro, fui ao Seminário “A Bíblia e os
excluídos”, promovido pela Igreja da Comunidade Metropolitana, em 2006.
Em três ocasiões distintas pude visitar São Paulo e conhecer as igrejas inclusivas
inauguradas na cidade durante a pesquisa. Em 2005, participei do I Seminário de Teologia
Inclusiva, promovido pela Igreja da Comunidade Metropolitana (SP). Na mesma ocasião,
acompanhei cultos na Comunidade Cristã Nova Esperança e entrevistei um líder e um
integrante da denominação. Em 2008, retornei à cidade em dois períodos distintos, em
janeiro e abril, nos quais aprofundei a relação com seus membros, em momentos de
7
sociabilidade (almoços, jantares, uma festa de urso, bares GLS ou não). Com o pastor
destas denominações desenvolvi uma amizade, passando a trocar experiências sobre vida
familiar, religiosidade, vida amorosa. Algumas vezes era indagado sobre minhas opiniões
acerca das igrejas inclusivas, se percebera alguma ‘diferença’ entre elas ou se tinha uma
preferência. Em cada uma delas, acredito, cultivou-se a expectativa de que eu me tornasse
membro, ao que eu passei a responder que eu era uma “pessoa inclusiva”. Quando
conhecia participantes de denominações de outras localidades e Estados, sempre era feito o
convite para que eu conhecesse o grupo, com participantes solicitando que eu me
hospedasse em suas casas, como foi feito por um líder da Comunidade Cristã Nova
Esperança, de Natal e outro da Igreja da Comunidade Metropolitana de Fortaleza.
No processo desta pesquisa não é possível deixar de mencionar a minha inserção no
campo. A postura de acolhida que orienta a prática das igrejas inclusivas facilitava minha
participação em campo. Desta forma, procurei cultivar uma atitude de abertura em relação
às atividades e rituais. Participei de “unções”, orações, vigílias, “reuniões de intercessão”,
com o incentivo do grupo. No “Encontro de Casais Contemporâneos” fui convidado a
opinar, como os demais participantes, sobre as dificuldades que os casais atravessavam na
vida a dois. O conhecimento do fato de eu ter um “companheiro”, muitas vezes, foi um
elemento de minha vida pessoal que foi eleito pelo grupo como significativo na percepção
de externavam sobre mim. Dessa forma fui classificado positivamente como pessoa casada

7
Em janeiro de 2008, acompanhado de algumas amigas antropólogas fui convidado a ir a uma “festa de urso”.
Estas explicaram que tratava-se de um evento gay cuja propaganda é direcionada a um público de
homossexuais masculinos mais velhos, “peludos” e “gordos”. Na ocasião, encontrei dois membros de uma
igreja inclusiva, com os quais estabeleci animadas conversas.

19
e de passado religioso. A percepção do pesquisador gay como um potencial membro fez
com que eu ocupasse um lugar no sistema religioso: a mim foram dirigidas profecias,
atribuídas missões religiosas que eu ainda não compreendia. Meu suposto “dom” para a
escrita, já que estava registrando a história da igreja, teria inspiração religiosa, levando-me
num futuro próximo a desempenhar o papel de “evangelista”. Com esta preocupação, em
um ritual de “unção”, um informante tocou minha testa com óleo santo e pediu a Jesus que
eu fizesse a mais linda tese que eu pudesse.
Ao terminar a pesquisa e reconstruir os meus passos, foi ficando cada vez mais clara
importância dos vínculos que criei com as pessoas no campo e de como fui afetado. Diante
de um discurso religioso fundado no acolhimento e na aceitação da homossexualidade e a
efetiva participação de distintas personagens com trajetórias de exclusão da religião devido
a suas escolhas sexuais, era impossível não me remeter a minha própria vida religiosa
pregressa. Os louvores que ensinavam o “amor de Deus” incondicional e os momentos
rituais dirigidos aos ‘excluídos’, em razão da “orientação sexual”, levavam a rememorar
meu passado de integrante de grupo jovem católico e refletir sobre minha desvinculação de
uma religião, que hoje leio como motivada por uma sensação de não-lugar na religião. Em
diversas situações, fui levado a perceber-me como ‘igual’, compartilhando sentimentos e
emoções próximas àquelas experimentadas pelo grupo. Era tomado por ímpetos de choro,
ao ouvir as mensagens religiosas direcionadas aos gays ou pregações que remetiam ao amor
de Deus pelos homossexuais. O louvor alto, as palmas e a efervescência religiosa no
templo, a visão de gays, lésbicas e travestis “louvando”, tiveram um forte impacto e
produziam efeitos de identificação sobre mim, levando-me a perceber-me como uma pessoa
capaz de me converter de fato àquelas igrejas. Por outro lado, entre meus pares ouvi alguns
comentários jocosos de que eu poderia ‘me tornar pastor’, em outras situações houve
recomendações de que eu tivesse cuidado para não ser cooptado pelo discurso religioso.
Contudo, a situação descrita na epígrafe desta introdução exemplifica como foi sendo
minimizada a distância entre antropólogo e sujeitos pesquisados. Percebi que estava
trabalhando com um tema não apenas controverso, mas com histórias de vida ligadas a
dilemas profundos, que envolviam medos, anseios, desejos, confissões, silêncios, recusas,
retornos. Tentarei dar um panorama dessa experiência, certo de que minha ida a campo me

20
fez voltar diferente. Acredito que estou cumprindo um ritual que, como toda experiência
social, envolveu a caminhada ao lado de pessoas comuns que buscavam um sentido para
suas vidas. Minha experiência de pesquisa levou a uma identificação com as histórias
pessoais, personagens, acontecimentos, lugares. Foi possível perceber que a rememoração
do outro, em algum sentido, podia remeter a minha própria memória, conferindo um caráter
compartilhado aos relatos. Embora seja possível considerar que no resgate dos eventos e
fatos que compõem a vida haja elementos flutuantes, mutáveis e variáveis, cada entrevista,
depoimento e confissão feita ao pesquisador continham pontos invariantes, imutáveis.
Nesse sentido, as trajetórias se entrecruzavam, incluindo aqui a do próprio pesquisador
(Pollack, 1992). Diante dessa experiência rica de ir ao campo e ser afetado, das
experiências de identificação, das entrevistas e confissões pessoais, da sociabilidade
compartilhada, das discussões na academia e dos direcionamentos e redirecionamentos da
pesquisa é que esta tese foi elaborada.
O objetivo geral desta tese é discutir mecanismos sociais de construção da
sexualidade, considerando interfaces entre uma antropologia da religião e uma antropologia
da sexualidade. Analiso os modos como a homossexualidade é significada em contextos
religiosos contemporâneos. A noção de passagens permite resgatar uma perspectiva
antropológica dos estudos de religião que assinala as continuidades e hibridismos entre
diferentes campos sociais nas definições do religioso (Seman, 2002), por outro lado, este
mesmo conceito evidencia os modos como os sujeitos elaboram – em diálogo com suas
experiências passadas – o sentido de seus roteiros religiosos (Birman, 1996). Em outro
nível, examino os aprendizados sociais ligados aos processos de construção de identidades
homossexuais, buscando as conexões entre trajetórias religiosas e percursos afetivo-
sexuais. Este trabalho foi um exercício de descrição densa na medida em que buscou
conectar os níveis macro e micro, em torno de uma concepção ampla de etnografia (Geertz,
1998; Giumbelli, 2002), na qual se conectam práticas, símbolos, interações, normas,
relações que podem configurar tensões, ajustes, negociações, repúdios e abjeções.
O conjunto das entrevistas desta tese contempla três distintos grupos: o primeiro
segue a pista identificada na pesquisa de mestrado, focalizando as trajetórias de integrantes
de igrejas convencionais que vivenciavam experiências homossexuais; o segundo, reuniu

21
depoimentos de indivíduos que declaravam a intensa adesão religiosa, recusando o rótulo
de homossexuais, mas reportando experiência de natureza sexual com pessoa do mesmo
sexo; o último grupo de entrevistas foi obtido entre integrantes de igrejas inclusivas. Vale
ressaltar que as entrevistas coletadas na pesquisa de mestrado foram retomadas. A obtenção
de novos depoimentos ocorreu por meio da técnica denominada “bola de neve” -
procedimento através do qual um informante privilegiado permite o acesso a pequenas
networks e ou outros entrevistados. Assim, fui desfiando novamente pequenas redes de
homossexuais integrantes de denominações convencionais: uns que mantêm sua identidade
sexual em segredo no confronto com a regra da proibição deste comportamento e outros
que se adeqüam à norma religiosa se auto identificando como “ex-homossexuais”.
Com isto, o material coletado reuniu 32 entrevistas realizadas nas cidades do Rio de
Janeiro e 03 em São Paulo, inspiradas nas técnicas da história de vida e história oral. Vinte
e seis entrevistas, focalizando a trajetória individual (história de vida) tiveram como
motivação inicial um convite para que o entrevistado contasse sobre sua primeira ida à
igreja. A partir desta questão o indivíduo falava livremente sobre temas como família, vida
religiosa e sexualidade, com intervenções pontuais do entrevistador. Nas entrevistas (cinco)
que seguiam o modelo da história oral, com lideranças e participantes da criação dos
grupos, era focalizado o contexto de estruturação das igrejas e denominações. Um terceiro
tipo de entrevistas mesclou essas duas técnicas (quatro), com um bloco aberto para o
resgate da história individual e outro para relato do processo de institucionalização dos
grupos. Foram realizadas 12 entrevistas em denominações evangélicas convencionais
(pentecostais e renovadas) como Assembléia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus,
Igreja Batista e pequenos ministérios autônomos. Vinte e três entrevistas foram realizadas
entre integrantes de igrejas inclusivas como Igreja Contemporânea, Comunidade Cristã
Nova Esperança e Igreja da Comunidade Metropolitana. 8
A difícil decisão de como iniciar uma tese e como terminar, diante de um amplo
material etnográfico onde todas as coisas estão articuladas, levou-me a optar por apresentar
uma situação social que contém muito elementos para refletir sobre processos sociais. A
8
Uma das entrevistas analisadas foi coletada no âmbito do Projeto “Respostas Religiosas ao HIV/AIDS no
Brasil, conduzida pela Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, cujos investigadores principais são
Richard Parker e Veriano Terto Jr.

22
inspiração foi encontrada em Gluckman (1987), cuja perspectiva antropológica endossa que
conflitos revelam aspectos fundamentais da sociedade, normalmente encobertos por uma
aparente aura de estabilidade. A apresentação de uma controvérsia introduzirá o leitor ao
vocabulário da disputa sobre os significados da homossexualidade no Brasil
contemporâneo, no qual uma posição ancorada na defesa dos direitos humanos entrechoca-
se ao posicionamento anti-gay de alguns segmentos religiosos em torno da “cura” da
homossexualidade. Essa batalha será o fio condutor, desdobrando-se em questões mais
específicas ao longo da tese. A análise de controvérsias possibilita desvelar problemas,
concepções, práticas, valores, padrões, normas em um dado contexto (Giumbelli, 2002a). É
nesse sentido que considero que a polêmica focalizada é reveladora de definições sociais
sobre sexualidade e religião no cenário cultural contemporâneo, abrindo a discussão desta
tese que versa sobre a construção social da homossexualidade em contextos evangélicos.
O primeiro capítulo apresenta a controvérsia que transcorre no espaço público em
torno da proposta de “cura” da homossexualidade, defendida por grupos religiosos e
rejeitada por outras personagens sociais. Primeiramente abordo o confronto ocorrido entre
acadêmicos, militantes e religiosos em um seminário quando o tema da ‘mudança da
homossexualidade à heterossexualidade’ emerge. Em seguida, o foco incide para o debate
que transcorre na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, ocorrido durante a
tramitação de um projeto de lei que propunha apoio a iniciativas religiosas de
‘reorientação.sexual’ para gays e lésbicas. O debate amplia-se no Senado, com o Projeto de
Lei que determina as sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das
9
pessoas (PL-266/2006). Nesta polêmica, o tema da cura da homossexualidade reponta
como um dos núcleos da discussão pelos sujeitos que defendem o projeto de acolher
homossexuais nas igrejas para ‘transformá-los’. A tensão entre esses diferentes atores pode
ser realçada em um seminário GLBT, ocorrido em 2005, no qual é evidenciada a dissensão
dentro de um mesmo campo religioso: evangélicos em defesa da cura e representantes de
“igrejas inclusivas” contrários a mudança de orientação sexual. Este capítulo encerra-se
9
Parte das informações sobre a tramitação de Projetos de Lei foi coletada no âmbito do Projeto “Entre o
público e o privado: a influência de valores religiosos na tramitação de Projetos de Lei no Brasil”, coordenado
pelo professor Luiz Fernando Dias Duarte, no Núcleo de Pesquisa Sujeito, Interação e Mudança/
PPGAS/MN/UFRJ. Nesta pesquisa conduzi subprojeto dedicado a promover um levantamento dos projetos de
lei em tramitação que contemplavam temas atinentes à diversidade sexual.

23
com uma reflexão sobre as atuais configurações da religião e da sexualidade na
contemporaneidade.
O segundo capítulo aprofunda a reflexão sobre a construção social da
homossexualidade entre os evangélicos. O primeiro item discute resultados de estudos
acadêmicos que apresentam pistas sobre as relações entre valores religiosos e
homossexualidade. A partir dessa discussão inicial examino mais detidamente o problema
no âmbito das igrejas evangélicas, enfocando a relação entre esse desejo sexual, o pecado e
o “demônio”. Em seguida, analiso a noção de “pecados sexuais”, de modo a discutir o
lugar da homossexualidade entre as demais interdições na sexualidade baseando-me em
análise de literatura religiosa. Nos itens seguintes focalizo os discursos sobre a “cura”,
problematizando as formas de regulação da sexualidade, as relações da religião com
saberes laicos e tecnologias modernas de si e as implicações dessa junção num discurso
específico sobre “vida cristã” e “orientação sexual”.
O capítulo terceiro apresenta as dissensões internas ao campo religioso, focalizando
um movimento de igrejas que inaugura uma nova leitura da relação entre homossexualidade
e religião. O foco nas “igrejas inclusivas” permite elucidar a pluralidade das formas de
significar a homossexualidade no contexto religioso contemporâneo. Este capítulo reflete
sobre dinâmicas de constituição de congregações voltadas ao público GLBT, abordando a
tentativa de implantação da Primeira Igreja da Comunidade Metropolitana no Rio de
Janeiro, o subseqüente cisma religioso que levou à formação de uma nova denominação, a
Igreja Cristã Contemporânea. Apresento uma reflexão sobre as motivações do rompimento
entre as duas igrejas e a elaboração de distintas estratégias para lidar com a questão da
“orientação sexual”.
No capítulo final, o foco incide sobre biografias e histórias de vida, refletindo sobre
os apresentados sociais da homossexualidade, socialização religiosa, trânsitos,
rompimentos e novas adesões. Serão analisadas as estratégias de gestão de si, partindo da
junção das trajetórias religiosas e percursos afetivos-sexuais. No primeiro item abordo um
conjunto de entrevistas que foram coletadas entre indivíduos que se declaram homossexuais

24
e encontram-se inseridos em igrejas convencionais. 10O objetivo é analisar o modo como
conciliam o desejo sexual e a adesão a uma religião que significa práticas homossexuais
como pecaminosas e oferecem instrumentos e técnicas para mudança. Argumentarei que
nessas biografias a tensão entre mudar e permanecer é constitutiva de formas de construção
de si. Serão focalizadas estratégias de gestão de si no confronto com regras e normas
11
religiosas. Na seção seguinte, o enfoque será num conjunto de depoimentos de
integrantes de igrejas convencionais que se afirmam “em luta” com o desejo sexual,
buscando a submissão às regras institucionais. Mostrarei como se dão as micro-relações
que envolvem aconselhamento, cuidado pastoral, confissão, sociabilidade, entre outras
formas de interação. Por último, abordo a passagem entre religiões pregressas e um
segmento religioso que propala discurso de “aceitação” da homossexualidade, analisando o
bloco de entrevistas de membros de igrejas inclusivas.
Certo de que uma tese não é um trabalho que se faz sozinho mas envolve a troca
durante todo o percurso, termino essa introdução dirigindo-me a pessoas e instituições que
me apoiaram. Em primeiro lugar quero expressar meu afeto e admiração pelo meu amigo,
Peter Fry, que posso dizer, caminhou comigo todo o percurso, desempenhando o papel mais
perfeito de orientador.
Em muitas ocasiões pude me beneficiar de interlocução em fóruns acadêmicos de
diversas áreas e organizações como a Reunião Brasileira de Antropologia (ABA), a
Reunião de Antropologia do Mercosul, o Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), as Jornadas sobre alternativas religiosas
da América Latina, a Reunião da Associação de Estudos em Homocultura (Abeh), o
Seminário Internacional Fazendo Gênero. Minha participação como investigador em
instituições como o Núcleo de Pesquisa Sujeito, Interação e |Mudança (Museu Nacional/
UFRJ), o Programa em Gênero, Sexualidade e Saúde do Instituto de Medicina Social da
10
A categoria “igreja convencional” é empregada nesta tese com o objetivo de designar denominações
evangélicas que sustentam a proibição da homossexualidade, em consonância com a tradição religiosa que
compreende esta prática sexual como “pecado”. Já os termos “igreja inclusiva” corresponde a auto-identidade
de segmento religioso que pretende romper com esse dogma e formular leituras bíblicas que compatibilizem
homossexualidade e a prática de religiões cristãs.
11
Emprego nesta tese a expressão norma no sentido empregado por Elizabeth Both (1976), designando um
conjunto de expectativas sancionadas culturalmente em distintos domínios da vida social. A idéia de “regra”,
constrativamente, remeteria à letra da Lei, sanções empregadas com vistas a reforçar os limites não das
convenções mas das determinações jurídicas.

25
UERJ e a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, também propiciaram o
intercâmbio com antropólogos, cientistas sociais e demais profissionais das áreas de
sexualidade e religião. Nessas instituições fiz amigos como Luiz Fernando Dias Duarte,
Sérgio Carrara, Maria Luiz Heilborn, Richard Parker, Michel Bozon, Veriano Terto Jr.,
Laura Moutinho, Elaine Reis Brandão, Jane Russo, Fabíola Rohden, Anna Paula Uzziel,
Luiz Felipe Rios, Vera Paiva, Jonathan Garcia, Miguel Munoz, Leila Araújo, Horácio
Sívori. Tive como interlocutores constantes meus grandes parceiros Leandro de Oliveira,
Edlaine Campos Gomes, Ívia Maksud, Rachel Aizengart Menezes, Naara Luna, Daniel
Jones, Robson de Paula, Igor Torres, Andréa Paiva, Alexandre Bier. A tese é fruto também
da amizade e incentivo, em diferentes etapas de minha trajetória, de pessoas como Maria
Claudia Coelho, Vagner Gonçalvez da Silva, Júlio Simões, Adriana Vianna, Emerson
Giumbelli, Miriam Grossi, James Green, Bernardo Lewgoy, Regina Fachini, Isadora Lins
França, Patrícia Birman, Maria das Dores Campos Machado, Sandra Carneiro, Luiz Correa
Lima, Lúcia Ribeiro, Cecília Mariz, Clarice Peixoto, Ivone Maggie, Mirian Goldenberg,
Marco Antônio Gonçalvez, Else Lagrou, Karina Kushnir, Bila Sorj, Ricardo Mariano,
Rogério Azize, Carly Machado, Miriam Steffem Vieira, Cristiane Gonçalvez, Bárbara
Serrano, Washington Castilhos, Silvia Aguião. Também contei com a dedicação e
companheirismo de pessoas mais que especiais como Lucas Bilate, Felipe Brito, Paulo
Victor Leite Lopes, Camila Sampaio, Ana Paula Soeiro, Luiz Rogério, que atuaram como
colaboradores de pesquisa e interlocutores em diferentes momentos do projeto amplo de
execução da tese. As condições de realização da pesquisa foram propiciadas pelo apoio do
Programa de Aperfeiçoamento de Coordenação de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que
me concedeu bolsa durante o período de doutoramento e também pela premiação no
Concurso Sexualidade e Ciências Sociais, promovido pela ANPOCS, pelo Centro Latino
Americano em Sexualidade e Direitos Humanos e pela Fundação Ford. A menção honrosa
recebida no âmbito do Concurso ABA-FORD Direitos Humanos, em 2008, propiciou novo
ânimo na finalização da tese. Ao chegar ao término desse caminho, meu aprendizado
pessoal passa pelo reconhecimento de que essa tese uniu-me a inúmeras pessoas, dentre as
quais eu agradeço em especial os amigos que fiz durante o trabalho de campo, sobretudo,
àqueles que me contaram sua vida, dilemas, anseios, esperanças, através de entrevistas ou

26
de longas horas de conversa. O caminho se tornou menos solitário com a presença firme e
incondicional de Eduardo Bruno de Oliveira, que me amparou em todos os momentos de
dúvida, medo ou insegurança, sendo o melhor companheiro do mundo, uma bênção na
minha vida. Não é possível deixar de agradecer também minha família, que suportou minha
ausência em momentos de alegria e dor, em especial minhas irmãs Débora, Valéria, Irlanda
e Maria Helena, meus sobrinhos Junior, George e Adriana, minha amiga Elimar, meus
amigos Bigu, Irlanda, Renata, Tainá, Sônia, Matheus, Flavinho, Jeff, Justino, Cristiano,
Marcos, Diego, Priscila, Cinthia, Ruth, Dado, Marlos, Luiz Rogério e Rafael.

27
CAPÍTULO 1

A CONTROVÉRSIA

Nessa missão, o meu olhar é para o ser humano diante de mim, em estado de
sofrimento, solicitando o meu apoio. A nossa preocupação, como psicólogo ou
instituição denominada ministério de apoio, não é com a homossexualidade das
pessoas; quando se oferece um espaço para elas serem acolhidas, aceitas,
amadas, respeitadas, elas vão mudando o que podem, no tempo de cada uma. É o
que temos visto nas instituições de apoio do mundo inteiro. Muitas vão deixar o
comportamento homossexual; outras, o comportamento e desejo homossexual;
outras, além do comportamento e desejo homossexual, vão desenvolver a
heterossexualidade. Tenho percebido que, no fundo, aquele que procura um
profissional e ministérios de apoio para deixar a homossexualidade, deseja apoio
para retirar sua máscara homossexual e confirmar a sua heterossexualidade, tal
como Deus a criou. (Rosangela Justino, psicóloga evangélica).

Devido à pressão que sofri por parte de minha família e da igreja, tentei há
alguns anos mudar minha orientação sexual de lésbica para heterossexual (...). E
depois de acreditar que eu estava liberta, porque eu comecei a reprimir os meus
sentimentos, comecei a dar testemunho. (...) eu testemunhava que não era mais
lésbica, só que eu continuava sentindo desejo pelas meninas. Isso me
incomodava. (...) Dizia para mim mesma: ‘Poxa, Senhor. Eu estou falando, estou
pregando para as pessoas que eu não sou mais lésbica mas eu continuo
desejando as meninas, eu continuo passando por tentações’. (...) Então, eu fiquei
naquele dilema. (...) Resolvi assumir minha homossexualidade e estou bem e
feliz (Integrante do Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro). 12

Os trechos citados neste capítulo foram extraídos de falas que ocorreram em um


seminário acadêmico. De um lado, um líder religioso afirma a importância do
‘acolhimento’ de homossexuais, por igrejas evangélicas, enfatizando que a verdade sobre a
sexualidade encontra-se na heterossexualidade “tal como Deus a criou”. Por outro, o

12
Depoimentos registrados em livro sobre o Seminário “Religião e Sexualidade: Convicções e
Responsabilidades”, no Rio de Janeiro, em 2003 (Giumbelli, 2004).

28
depoimento de uma lésbica que declara ter recorrido a um grupo religioso para mudar sua
orientação sexual, sem sucesso, polariza os posicionamentos sobre a sexualidade.
O confronto dessas duas percepções sobre a homossexualidade coloca em relevo a
existência de uma controvérsia no Brasil contemporâneo, relacionada à difusão no espaço
público de discursos religiosos sobre “cura da homossexualidade”. Distintas personagens
sociais enunciam suas posições em torno deste conflito, com argumentos que reforçam,
rejeitam, reinterpretam a afirmação/ sentença principal, proferida por diferentes sujeitos,
grupos e entidades religiosas (“é possível deixar a homossexualidade”).
Em 1995, a Revista Isto É (04/10/95) publicou reportagem sobre as atividades de um
pequeno grupo religioso com objetivos voltados à regeneração e conversão de
homossexuais. Informava que, enquanto uma onda de gays, lésbicas e simpatizantes se
expandia pelo mundo e tornava ultrapassados preconceitos relacionados à orientação
sexual, alguns evangélicos fundaram o Grupo de Amigos (GA), dedicado a transformar o
“pecado do homossexualismo” na “bênção do heterossexualismo” (Figura 1). O tratamento
oferecido a vinte e quatro pacientes, com idades entre seis e cinqüenta e três anos, era
coordenado por um psicólogo cristão. As orientações eram baseadas no método terapêutico
dos Alcoólicos Anônimos e valorizavam a absoluta abstinência sexual. Criado no
Município de São Gonçalo, em Niterói, 13 o grupo pregava o retorno à vida heterossexual. 14
Notícias sobre esse tipo de cuidado pastoral aos homossexuais foram informadas por
diferentes fontes.
15
A Revista Graça (ano 2, n. 16, 2000) apresentou em uma edição o testemunho de
uma “travesti” que abandonara o “homossexualismo” e desenvolvera a heterossexualidade.
“Ela volta a ser ele” era o título da reportagem (Figura 2) A publicação
interdenominacional Ultimato (ano XXXVI, n. 284, 2003) dedicou um número ao tema,
com artigos de ‘especialistas’ evangélicos, que anunciavam a possibilidade de “resgate” da
heterossexualidade (Figura 3). Um dos escritos mais ilustrativos a este respeito consiste no
13
A criação do grupo se dá como desdobramento das atividades da Comunidade S8, uma instituição
evangélica de apoio à usuários de narcóticos.
14
O trabalho era liderado por um pastor homossexual que afirmava ter recebido a orientação divina para essa
missão religiosa através de uma revelação em sonho. Sua trajetória pessoal seria um exemplo de que ex-
homossexuais existem, pois era casado há seis anos e se considerava um heterossexual, apesar de ter “vivido
no homossexualismo” durante parte de sua juventude.
15
Publicação da Igreja Internacional da Graça de Deus, denominação fundada pelo missionário R. R. Soares.

29
livro O Dia em que nasci de novo, de João Carlos Xavier (1993), que explora o gênero
testemunho 16 para contar a história de um ex-homossexual (Figura 4). O autor é um pastor
da Assembléia de Deus, cujo casamento com uma “serva de Deus” é tomado como
exemplo de sua “restauração sexual”. “Evangelista itinerante”, ele viaja por vários estados
para falar de sua ‘transformação’ e também mantém um “ministério de aconselhamento”.
No site do grupo religioso Movimento pela sexualidade sadia (MOSES), em 2004,
constavam cerca de vinte endereços e contatos de iniciativas que oferecem terapia e
“socorro espiritual” aos homossexuais , enfatizando a importância do ‘acolhimento’ destas
pessoas em igrejas evangélicas 17 (Figuras 5, 6 e 7). Um anúncio merece menção: Dr. J. M.
N. P, Psiquiatra, escritor, conferencista, conselheiro bíblico: há mais de trinta anos atende
àqueles que desejam abandonar o comportamento homossexual.18
Passo aqui a narrar algumas ocasiões nas quais a divulgação dessas atividades esteve
em foco na esfera pública. Parto da observação etnográfica de alguns eventos específicos,
notas de campo e dados coletados a partir de pesquisa documental. Trata-se de situações
sociais em que fica evidente uma polarização entre grupos religiosos e certos segmentos da
sociedade ligados à defesa dos direitos dos homossexuais.

16
Categoria central no ritual pentecostal, cujo sentido é o de um relato compartilhado de uma vida pregressa
em oposição ao presente do convertido. O tema foi trabalhado mais detidamente por Mafra (2002) e
Natividade e Gomes (2006).
17
Dentre elas, destaco denominações como Sara Nossa Terra, Igreja Batista, Igreja Presbiteriana,
Comunidade Cristã Renovada, Igreja Metodista, Assembléia de Deus. Há ainda grupos que se definem a
partir das categorias “missão”, “ministério” e “pronto-socorro espiritual”. Informação obtida a partir de
consulta e monitoramento do site do MOSES, a partir de <www.org.moses.br>. Acesso em: 27/08/04.
18
O anúncio informa telefone e contato de e-mail em Fortaleza, Ceará.

30
1.1. O CONFRONTO NO SEMINÁRIO: DIVERGENTES CONVICÇÕES E
RESPONSABILIDADES

Em 2003, participei deste evento cujo principal objetivo era discutir ‘sexualidade’
com representantes de diversas crenças, acadêmicos e militantes. O Centro Latino
Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) e o Instituto de Estudos da
Religião organizaram o seminário “Religião e Sexualidade: Convicções e
Responsabilidades”, com a proposta de oferecer um panorama dos posicionamentos
contemporâneos sobre sexualidade, entre diversos segmentos religiosos no Brasil. Como
era membro da equipe do CLAM, integrei o grupo de organização e execução do evento,
participando desde a idéia original até sua concretização. 19 A programação foi discutida em
várias reuniões, de forma a contemplar distintas vertentes religiosas (espiritismo,
catolicismo e crenças evangélicas). Dentre os temas a serem focalizados, constavam a
homossexualidade, o aborto e as pessoas vivendo com AIDS que integram a pauta de
debates dos direitos sexuais no Brasil sob a perspectiva dos direitos humanos. A partir da
proposta de colocar em diálogo estes diferentes pontos de vista, a divulgação do evento se
deu mediante uma lista de e-mails de organizações dirigidas à defesa dos direitos humanos
e de alguns programas de pesquisa. A assessoria de imprensa atuou na confecção de pautas
e chamadas foram veiculadas no website. Este era o terceiro evento realizado pelo CLAM,
com o intuito de fomentar o diálogo entre universidades, movimentos sociais e
formuladores de políticas públicas. A organização das mesas visava contemplar a atual
diversidade religiosa e a pluralidade de opiniões. Desta forma, cada participante recebeu
orientações acerca dos eixos de discussão. A última mesa do encontro apresentava
resultados de pesquisa, contemplando as interfaces entre religião e sexualidade. Apesar da
proximidade da data marcada para o evento, líderes de ministérios de ajuda a
homossexuais, alocados em uma mesma mesa na programação, foram reposicionados de
forma que não entoassem em uníssono discursos capazes de provocar reações acaloradas

19
Participei do Projeto que implementou o Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, no
Programa em Gênero, Sexualidade e Saúde (Instituto de Medicina Social da UERJ), entre os anos de 2003 e
2004, através de uma dupla inserção: como acadêmico, pesquisador da área de Religião e Sexualidade e como
jornalista, integrando a equipe de Comunicação Social do projeto.

31
entre o público homossexual. Distribuídos em distintas mesas, eles ocuparam seu lugar no
seminário, para expor suas convicções e opiniões, como palestrantes convidados. O tema da
“orientação sexual” catalisou as atenções.
No primeiro dia houve duas mesas intituladas “Religião e seus posicionamentos” e no
dia seguinte, pela manhã, uma mesa chamada “Experiências e propostas em redes
religiosas”. Essas apresentações possibilitaram a exposição de relatos de práticas e de
experiências que envolvessem perspectivas de intervenção no tocante aos temas.
Na mesa sobre posicionamentos, líderes religiosos enfatizaram a necessidade de
“acolher os homossexuais” e combater a discriminação. O frei franciscano Antônio Moser
comentou a posição oficial da Igreja Católica, contrária à prática da homossexualidade e à
união civil entre pessoas do mesmo sexo. Contudo, destacou o que percebia como uma
“crescente sensibilidade pastoral para o atendimento a homossexuais no Brasil”, permitindo
posturas mais flexíveis no convívio cotidiano entre fiéis e sacerdotes. O discurso da Igreja
Anglicana foi apresentado por Robinson Cavalcanti - Bispo da Igreja do Recife - que citou
um documento internacional elaborado na Conferência de Lambeth. O encontro reunia a
cada dez anos representantes dessa religião de todo mundo. O último fórum formulou
consensos relativos à sexualidade: defesa do divórcio para os cristãos que optam por novas
uniões, “reprovação de atitudes homofóbicas” e incompatibilidade da homossexualidade
com as Sagradas Escrituras. No cenário internacional havia registro de certas divergências,
como, por exemplo, notícias sobre a autorização da bênção de casais homossexuais em
outros países, como o Canadá. No Brasil, os posicionamentos eram congruentes com o
consenso da convenção. A Diocese Anglicana do Recife, por exemplo, proíbe a ordenação
de clérigos homossexuais ou de heterossexuais que defendessem a ‘normalidade’ desta
orientação sexual.
O pastor presbiteriano Eduardo Rosa Pedreira delineou um panorama da fé
protestante e identificou como tendência hegemônica do protestantismo brasileiro o
“conservadorismo puritano”, centrado em “perspectiva literalista da Bíblia”. Nesse
universo religioso seria possível encontrar outras ênfases doutrinárias, com
posicionamentos mais liberais, como por exemplo, a Igreja Presbiteriana nos Estados
Unidos, que já havia ordenado pastores e pastoras “na prática do homossexualismo”.

32
Contudo, este discurso religioso não teria exercido influência no Brasil, onde haveria forte
condenação da homossexualidade e prevaleceria o axioma de que se deve “amar o pecador
e denunciar a pratica do pecado”. 20
Nehemias Marien, da Igreja Presbiteriana de Copacabana, apresentou a proposta de
uma igreja ecumênica e “aberta aos homossexuais”, criticando segmentos religiosos que
avaliavam ser a homossexualidade uma “doença”: “Deus é quem fez o homossexual. Deus
criou o ser humano, e no respeito às diferenças, na sua opção de liberdade (...) se situa
também o homossexualismo”.
Reações inflamadas ocorreram durante a exposição de dois participantes ligados a
ministérios evangélicos de “ajuda para sair da homossexualidade”. João Luís Santolim
falou a partir da visão de seu grupo, o Movimento pela sexualidade sadia, cuja proposta
pastoral de cuidado e aconselhamento aos homossexuais era assentada na necessidade de
“resgatar valores atinentes à família cristã”, que ‘era’ heterossexual e monogâmica. Como
valores norteadores de sua prática pastoral destacou a disciplina no sexo, a fidelidade nas
relações, o compromisso com a perpetuação da espécie e o prazer no casamento
heterossexual.
Rosângela Justino optou por reportar sua conversão e missão religiosa de ‘apoiar’
pessoas que desejavam “deixar a homossexualidade”, vinculada a várias instituições nessa
área. À época, era integrante do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos, entidade
fundada em 1976 composta em sua maior parte por profissionais evangélicos. Participara
como orientadora de grupos de auto-ajuda, como o Grupo de Amigos (Rio de Janeiro),
além da implantação do Ministério Êxodus Missionário no Brasil (Minas Gerais), cuja
proposta era proclamar a mensagem da “libertação” da homossexualidade. Ela enfatizou
que era preciso estar atento a depoimentos de “ex-homosssexuais”, como o do fundador do
Êxodus Internacional, que viera ao Brasil inúmeras vezes para compartilhar sua experiência
e colaborar na implantação deste ministério no país. Ele conseguira mudar sua orientação
sexual e abandonar os “trejeitos homossexuais”. Após sua conversão, desistira de uma

20
O apresentador seguinte foi o médico Alexandre da Silva Costa, que apresentou a visão do espiritismo
kardecista. A teoria da reencarnação compreende a homossexualidade como uma tendência/ personalidade
adquirida através de experiências em diferentes vidas.

33
cirurgia de mudança de sexo ao avaliar, pelo lado religioso, que nunca se tornaria uma
“mulher de verdade”, pois fora criado por Deus para “ser um homem”.
A apresentação dessas duas personagens traz elementos para delinear uma
controvérsia relacionada à divulgação de terapias reparativas, rituais de libertação,
aconselhamentos, voltados à mudança “da homossexualidade à heterossexualidade”.
Religiosos constituem atores sociais que, em um evento público, defendem a possibilidade
de ‘curar’ homossexuais. Trazem à esfera pública notícias sobre atividades e práticas
pastorais com tal fim. A partir dessas falas, outras personagens ingressam no debate,
acrescentando novos fatos ao pronunciamento. Indivíduos se aglutinarão em blocos para
defender ou para atacar o que está sendo afirmado: homossexuais devem ser curados.
O momento em que representantes de “ministérios de apoio” tomam a palavra para
defender suas percepções e convicções sobre o exercício da sexualidade humana é
especialmente ilustrativo. Em seguida, foi aberta a palavra à platéia. Militantes em defesa
dos direitos dos homossexuais e acadêmicos se alinharam ao pontuar que os discursos em
questão atribuíam à homossexualidade o estatuto de “doença”. Defenderam também que
comportamentos humanos, incluindo os desejos sexuais, eram condutas morais complexas.
Sendo assim, a oposição entre uma sexualidade tida como sadia e outra, doentia,
desqualificava moralmente sujeitos com orientação homossexual, alimentando culpa e
medo entre homossexuais, além de incitar o ódio contra estes na sociedade mais ampla. Um
líder do movimento homossexual, exaltado, dirigiu-se a Rosângela Justino acusando-a de
promover um “proselitismo da violência”. Para ele, suas palavras podiam ser tomadas como
“declaração de guerra” contra os homossexuais.
Uma mulher que se apresentou como psicóloga, citou documento do Conselho
Federal de Psicologia (CFP), a Resolução 01/1999, que “proíbe a participação de
psicólogos em tratamentos de reversão da homossexualidade”. Sob esta perspectiva, as
idéias defendidas por Rosangela Justino poderiam ser interpretadas como espúria mistura,
entre psicologia e religião. Afinal, uma orientação sexual não é passível de ser ‘mudada’.
A platéia reagiu com palmas e murmúrios de inquietação. O debate se inflamou quando um

34
21
outro líder de ministério de ajuda, que participava como convidado na platéia, afirmou
crer na soberania de Deus em questões da sexualidade. Do ponto de vista bíblico, não
apenas era possível uma ‘mudança’, como também não havia respaldo para a conduta
homossexual.
Um estudante de teologia se opôs a esta visão, e afirmou que as falas dos
representantes do cristianismo reproduziam padrões e princípios patriarcais hierárquicos. A
teologia que representavam estava imbuída de uma hermenêutica conservadora e
ideológica, que só fazia ‘agredir’, independente de qualquer boa intenção.
No confronto com as reações do público, a demanda pela ‘ajuda’ aos homossexuais
foi justificada pelos religiosos: havia enorme contingente de homossexuais “em conflito”,
principalmente nos quadros de igrejas evangélicas. Isso era um exemplo de que em todo o
país havia pessoas buscando auxílio para “sair da homossexualidade”. Contudo, os
ministérios de apoio podiam ser vistos como uma “minoria social”, já que a tendência
hegemônica era a crescente permissividade e aceitação do estilo de vida homossexual. Esta
“demanda espiritual” era um ‘fato’ que reclamava a atenção da sociedade. O direito daquele
que quer “deixar a homossexualidade” deveria ser também respeitado como um direito
humano. Na visão dos religiosos, medidas que procuravam confrontar o trabalho
missionário dos evangélicos eram “perseguição religiosa” para intimidar as igrejas. Os
ativistas homossexuais, e todos aqueles que se alinhavam a eles, desconsideravam que “não
existe base científica para a homossexualidade”, nem qualquer outro argumento válido
capaz de provar que este comportamento é imutável. Rosângela Justino completou sua fala
citando o exemplo de estudo realizado pelo doutor Robert Spitzer, importante psiquiatra
ligado à Associação Americana de Psicologia (APA). Através de pesquisa, ele havia revisto
posicionamentos anteriores e hoje acreditava (com base em evidências científicas) que a
mudança era possível.
Ânimos se alteraram quando um militante homossexual acusou o representante do
MOSES de pregar que os homossexuais queimariam no “fogo do inferno”. Uma prova
dessa atitude “homofóbica” era a distribuição de panfletos religiosos durante a Parada Gay.

21
Refiro-me aqui a participação de um coordenador de ministério de ajuda evangélico, localizado na cidade
de Juiz de Fora, Minas Gerais.

35
Nele, uma ilustração mal intencionada mostrava gays, lésbicas e travestis sendo atingidos
por “bolas de fogo”. Seguiram-se murmúrios de exaltação e os organizadores do evento
pediram que se fosse restabelecida a ordem. O religioso defendeu-se que o prospecto
mencionado não continha “bolas de fogo”, mas a imagem a que se referia o ativista era “o
sangue remido de Jesus”, sendo derramado sobre os homossexuais. Ocorreram risadas e
tentativas de tomar a palavra (Figura 8). Em diversos momentos do evento, representantes
do movimento negro e participantes dos cultos afro-brasileiros, contrapuseram-se aos
religiosos, reclamando a fala. Eles se manifestavam através de expressões de impaciência,
levantando-se e sentando-se na cadeira infinitas vezes, erguendo a mão para solicitar
inscrição. Quem conseguiu receber o microfone reclamou a atitude preconceituosa e
intolerante dos “ministérios de apoio” para “sair da homossexualidade”.
O debate aqui descrito toma como base a situação de interação entre religiosos e
outros atores sociais. Contudo, este, não constitui um evento isolado, mas integra um
conjunto de ações e reações mais amplo. O seminário foi um acontecimento produzido em
um contexto específico: um evento voltado para discussão de temas contemporâneos a
partir de uma perspectiva dos direitos humanos, sendo os religiosos convidados ao debate
com vistas a expor suas convicções em diálogo com a proposta do evento. Face a face
colocaram-se diferentes visões de mundo e convicções. Ali, pude observar os
posicionamentos daqueles que defendem a “ajuda para sair da homossexualidade” e os que
se opõe ferrenhamente a ela. A partir da visibilização no espaço público destes discursos,
ocorrem situações, nas quais a cura da homossexualidade se converte em preocupação de
outras personagens e instâncias sociais.
A mídia secular empreende denúncias divulgando matérias que ressaltam o
preconceito e a intolerância de grupos religiosos face à diversidade sexual, enquanto a
imprensa religiosa publica reportagens que valorizam os casos de cura da
homossexualidade. Neste contexto, o ex-homossexual desempenha papel relevante: ele é o
‘desviante’ penitente, que retornou de uma vida de pecados e alcançou a bênção da
heterossexualidade, ao se casar e constituir uma família de Deus. Em contraposição, alguns
indivíduos se declaram “ex-ex-homossexuais”: eles passaram por tratamentos, rituais e
terapias de reversão, sem obter cura ou libertação.

36
Políticos religiosos participam da controvérsia através da apresentação de projetos de
Lei que apóiam iniciativas religiosas para sair da homossexualidade e também de propostas
voltadas ao combate dos direitos dos homossexuais. Do outro lado, políticos simpáticos à
causa GLBT são autores de ações de repúdio a projetos que ferem os direitos humanos das
minorias sexuais. O cenário se converte em uma perfeita arena de múltiplas contendas e
tensas interlocuções. Em todos os casos, como abordaremos adiante, especialistas
participam do debate, através de posicionamentos que refutam ou defendem a legitimidade
das propostas em questão.
Observarei a seguir, um distinto campo no qual o conflito aqui apresentado reaparece.

1.2. O PROJETO DE LEI NÚMERO 717/ 2003: O CONFLITO NA ALERJ

. Eu participava de um curso sobre política, homossexualidade e cultura, no Programa


de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do IMS/ UERJ quando soube através de um grupo de
alunos sobre a tramitação de um projeto de fundo religioso na Assembléia Legislativa do
Estado do Rio de Janeiro. Alguns alunos e professores se organizavam para participar de
um ato de protesto contra a proposta do deputado Edno Fonseca, do Partido Social Cristão,
que buscava “criar um programa de auxílio para pessoas que querem deixar a
homossexualidade”. A mobilização era organizada por militantes homossexuais e
encontrava respaldo em organizações não governamentais de direitos humanos. Circularam
e-mails e mensagem naquela semana, convidando-nos todos ao encontro, que seria nas
22
escadarias da ALERJ, no Centro do Rio. Fomos informados que o projeto tivera um
parecer positivo em uma das comissões pelas quais passara e que sua tramitação
representava um perigo ao avanço de posturas intolerantes no país.

22
A amplitude da controvérsia é visível quando observamos a tramitação de alguns projetos de lei,
apresentados por deputados religiosos, que defendem a criação de programas de auxílio para
reorientação sexual. Na Câmara Federal, os projetos de número 2177/ 2003 e 5816/2005, foram
respectivamente apresentados pelos deputados religiosos Neucimar Fraga e Elimar Damasceno.
Ambos encontram-se arquivados. Constam dentre os objetivos do primeiro: informar a sociedade
sobre a prevenção, apoio e possibilidade de reorientação sexual e o desenvolvimento de projetos e
ações destinados à garantia da “saúde sexual” das pessoas atendidas.

37
Procuro descrever um pouco sobre este universo onde a controvérsia sobre a cura da
homossexualidade reponta e sobre como religiosos e militantes se confrontam na cena
pública a partir de posicionamentos de apoio ou recusa do projeto de lei em questão.
O deputado religioso apresentou justificativa para o projeto nos seguintes termos:
“muitos são os homens e mulheres que após optarem por seguir a homossexualidade, num
determinado momento, por razões diversas, resolvem mudar de opinião e voltar a seguir o
caminho da heterossexualidade, pois todos são livres nas suas escolhas”. Em seguida, este
recebeu parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça, através do relatório do
23
deputado Domingos Brazão, que afirmou seu “relevante cunho social”. Na Comissão de
Saúde, Samuel Malafaia, também concedeu parecer positivo:

Homem e mulher foram criados e nasceram com sexos opostos para se


complementarem e se procriarem. O homossexualismo apesar de aceito pela sociedade
é uma distorção da natureza do ser humano normal. Assim, a oportunidade de se
apostar novamente na condição normal de procriação é louvável e por isso meu parecer
é favorável.

Respostas a este avanço na tramitação foram protagonizadas por diferentes sujeitos e


organizações, sendo grupos ativistas homossexuais os principais opositores. As ações
decorrentes de uma postura de rejeição embasavam-se na denúncia da “homofobia
religiosa”, subjacente a proposta. Falas enfatizavam que a simples existência de grupos de
cura consistia em “violência” e “discriminação”, era exemplo de um ‘conservadorismo’ que
se oporia ao movimento da história. Alguns argumentos proferiam que em um ambiente
social de pluralização de estilos de vida e ‘aceitação’ da homossexualidade, religiosos
atuariam na contramão da modernidade. Inúmeros artigos foram publicados no período,
endossando esta idéia. Entre 2003 e 2004, a imprensa publicou reportagens que
‘denunciavam’ as ditas “terapias reparativas” e cultos religiosos empenhados em oferecer
libertação aos homossexuais. Alguns dos títulos de matérias veiculadas pela imprensa no
período são ilustrativos: “Intelectuais criticam projeto para ‘curar’ gay” (Folha de São
Paulo, 09/10/04), “Alerj quer ‘curar’os homossexuais” (O Globo, 15/11/04), “A lei da
23
As discussões sobre a constitucionalidade e inconstitucionalidade de uma proposta impactam sua
tramitação, uma das estratégias que podem ser usadas para obstruir ou retardar a aprovação de um projeto é o
“voto pela inconstitucionalidade”. O projeto em questão, ao receber o parecer favorável seguiu para
apreciação de outra comissão.

38
intolerância: projeto em discussão traz à tona preconceito contra homossexuais no Brasil”
(Revista Época, 15/11/04), “Homossexualidade é doença?” (O Estado de São Paulo,
24/10/04), “Deputado quer curar os gays (No mínimo, 13/10/04), “Projeto sobre
homossexualismo causa polêmica na assembléia” (O Globo, 18/09/04). Em seus conteúdos,
religiosos eram percebidos como produtores de um discurso que promove diferença social e
estigmas, responsáveis pela reprodução e difusão de valores ‘ultrapassados’, divulgando
representações patologizantes sobre pessoas homossexuais. Psicanalistas, antropólogos,
psicólogos e outros especialistas do comportamento humano publicaram artigos de opinião
condenando a proposta evangélica e ressaltando seu caráter discriminatório. Com este
olhar, o Conselho Regional de Psicologia (RJ), a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS/ SP), o Grupo Arco Íris de Conscientização
Homossexual (RJ) manifestaram repúdio público ao projeto em trâmite. A discussão
espraiou-se e ganhou os meios de comunicação de massa. Na mídia televisiva, o programa
Super Pop da apresentadora Luciana Gimenez (07/08/04) teve como chamada a seguinte
indagação: “Existem ex-gays?”, exibindo o debate de gays, ex-homossexuais e um pastor.
O Fantástico, programa dominical da Rede Globo veiculado em horário nobre, abordou o
assunto em tom de denúncia ao noticiar a existência de clínicas de recuperação evangélicas
nos Estados Unidos em uma matéria sobre “terapia para homossexuais”, informando a
existência de iniciativas similares no Brasil.
Às vésperas da votação em plenário, ocorreu a mobilização conduzida por lideranças
do movimento gay e apoiada pelas organizações acima citadas. Ela reuniu quase cem
pessoas, dentre jovens homossexuais, travestis, representantes de ONGs de direitos
humanos, políticos, personalidades públicas, ativistas, acadêmicos e intelectuais, membros
de sindicatos, fiéis de igrejas protestantes de vertente minoritária (Igreja da Comunidade
Metropolitana e Igreja Presbiteriana Unida de Bethesda). 24 Na ocasião, um abaixo-assinado
que coletou cerca de duas mil assinaturas foi organizado pelo Centro Latino Americano em
Sexualidade e Direitos Humanos, como forma de expressar a rejeição da proposta por esses
segmentos da sociedade civil. Argumentava-se que a religião não deveria se imiscuir na
24
Estiveram presentes representantes religiosos de congregações evangélicas que se destacam no cenário
social mais amplo por seu posicionamento favorável à homossexualidade, desfocando da noção de pecado e
cura, e compreendendo os atos homossexuais como compatíveis com a vida religiosa.

39
esfera pública para opinar sobre assuntos concernentes à vida privada. A alocação de
recursos públicos a essas atividades, além de contrariar os princípios do Estado laico, era
percebida como agressão aos “direitos humanos” e “direitos sexuais” dos homossexuais,
propagando uma visão negativa sobre essas pessoas. Cito um posicionamento público do
Grupo Arco-Íris de Conscientização por ocasião da tramitação do citado projeto de lei:

É com misto de temor e perplexidade que nós, brasileiras e brasileiros,


desejamos tornar público o grave desrespeito ao ser humano que vem
ganhando espaço dentro da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro. (...) Este projeto fere o princípio constitucional que protege e garante o
Estado Laico, além de ser um afronte aos direitos humanos. Há grave e danoso
desnivelamento, de cunho puritano, religioso, obscurantista e totalitário, que
visa desqualificar a orientação homossexual. 25

Cartazes distribuídos pelos organizadores do protesto continham frases motivadoras


como “Projeto de cura = nazismo”, “Proteja o Estado laico”, “Por um Brasil sem
homofobia”, “Não é doença”, “Amor é liberdade”, “A homofobia é que deve ser tratada”,
“Não à discriminação”. Palavras de ordem assinalavam que a religião contrariava princípios
dos direitos humanos, como o respeito à liberdade e a livre expressão das orientações
sexuais. Proferiam-se discursos que polarizavam os dois lados da controvérsia: vanguarda-
atraso, liberdade-opressão, modernidade-tradição, sexualidade-religião. O movimento pela
“cura” – e a religião – eram constritores da liberdade dos sujeitos, sinal de “atraso” e
retrocesso social. Não foram poucas as associações entre grupos religiosos e rótulos como
“nazismo”, “curandeirismo”, “homofobia”, “fundamentalismo”. Os organizadores
incentivaram os participantes a entoar palavras de ordem e em alguns momentos um coro
de vozes entoava forte: “O Estado é laico!”. Um equipamento de som instalado permitiu
que manifestantes fossem chamados ao microfone para expressar sua opinião sobre o
referido projeto. Houve uma seqüência de falas de repúdio a este, porque ele era: “uma
proposta obscurantista (...) que feria os direitos humanos” (Beatriz, Grupo Tortura Nunca
Mais), “opressão medieval” (Carlos Minc, deputado estadual), “movimento internacional
de perseguição aos gays” (Heloneida Studart), “atitude antidemocrática” (Hanna Suzart,
transformista), “ação nazista” que merecia repúdio da sociedade (Tony Reis, ativista

25
Panfleto distribuído em manifestação contra a tramitação de Projeto de Édino Fonseca na ALERJ.

40
homossexual). Um militante sugeriu que o Estado deveria intervir sobre ‘verdadeiros’
problemas sociais como a saúde pública. Seguindo essa linha, Lucinha Araújo, mãe do
cantor Cazuza, morto pela aids, enfatizou a importância de investimentos na “cura da Aids”
e em políticas públicas de prevenção. Uma fala de Carlos Minc ilustra os argumentos
apresentados:
Afirmamos o direito de viver em liberdade sem essa opressão medieval. Essa não é a
função do Estado. Eu me preocupo com isso: como é que se vai proceder a essa
‘mudança’ [cura da homossexualidade]? Na Idade Média havia os banhos de água fria,
depois vieram os pavlovianos. Eu mesmo fiz uma consulta ao Conselho Federal de
Psicologia, ao Conselho Regional de Medicina e outras tantas entidades sobre se
existem procedimentos legalizados que tratem de mudança da sexualidade. E a resposta
foi “não”. Não há no Brasil qualquer procedimento legalizado que trate de cura de
homossexuais. Isso é curandeirismo.

Ele e outros atores apelam à ciência, como fonte de legitimidade, para rejeitar
propostas de cura, terapias reparativas, rituais de libertação como práticas não científicas, já
que técnicas implicadas nos “métodos de reversão” são ‘desconhecidas’. Matérias de jornal,
e-mails e outras fontes noticiaram que a derrota do projeto por trinta contra seis votos
favoráveis era uma vitória da tolerância social sobre a intolerância religiosa.
Resposta de segmentos religiosos a não aprovação da proposta ocorreram por meio de
protestos e cartas enviadas a autoridades, políticos e parlamentares. Rosângela Justino foi
autora de um artigo que circulou por correio eletrônico. Com o título de “Vitória do
obscurantismo: injustiça, desigualdade e distorções por parte do ativismo homossexual”, ela
‘denunciou’ que os grupos de apoio eram perseguidos pelos ativistas do movimento pró-
homossexualismo, mas isto não impediria a sua existência do “movimento de apoio”, muito
pelo contrário, só os fortaleceria: “os grupos de ajuda mútua sempre existiram independente
da vontade do poder público e vão continuar a existir no mundo inteiro” porque se fará “a
justiça de Deus”. A psicóloga cristã afirma que esta e outras vitórias do movimento
homossexual deveriam ser confrontadas, porque fomentavam um crescimento sem
precedentes da “sodomia” no Brasil, favoreciam o aumento da “pedofilia” e abalavam a
“família cristã”, podendo levar ao “extermínio do heterossexual”.

41
1.3. A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA, A LIBERDADE RELIGIOSA E O
DIREITO DE CURAR: UMA NOVA BATALHA, DESTA VEZ NO SENADO

No ano de 2007, os conflitos relatados foram potencializados em torno de um novo


fato político: a aprovação, na Câmara Federal, de um Projeto de Lei que “determina as
26
sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas”. Este é o
terceiro caso etnográfico no qual se encenam conflitos. A proposta, aprovada em dezembro
de 2006 na Câmara dos Deputados, passou a tramitar no Senado, suscitando novas tensões
em torno de sua transformação em Lei Federal. Amplamente conhecida no país como
projeto de “criminalização da homofobia”, provocou a reação de segmentos religiosos que
se sentiam ‘atingidos’ em seu direito de “pregar contra o homossexualismo”. Evocar este
caso aqui é pertinente porque figuram como os principais opositores indivíduos, grupos e
entidades religiosas, incluindo aquelas ligadas a trabalhos pastorais de reversão da
“orientação sexual” de gays e lésbicas
Na seqüência de ações e reações, atos de protesto e posicionamentos públicos contra
sua aprovação ocorreram em diferentes instâncias do espaço público. Alguns dos
argumentos anteriormente evocados foram recolocados, dentre eles o ‘direito’ de ‘acolher’
os homossexuais nas igrejas.
Em 12 de abril de 2007, o Colégio Episcopal da Igreja Metodista do Brasil se reuniu
em São Paulo, para discutir sua tramitação. Na ocasião foi elaborado um documento,
assinado por onze bispos desta denominação. Assim, a Igreja Metodista do Brasil declarou
oficialmente que:
1) Reconhece que há na sociedade brasileira manifestações de natureza discriminatória
de todo tipo, e inclusive contra as pessoas homossexuais. Tais manifestações não
fazem justiça aos direitos individuais, nem, tão pouco, à tradição cristã de reconhecer
qualquer ser humano como criatura divina e ao mandamento bíblico de amar o próximo
como a si mesmo.

26
Trata-se do PL-5003/2001, que foi apresentado por Iara Bernardes, na Câmara Federal. A demanda por
incluir a palavra orientação sexual no texto da Constituição e assim punir atos de homofobia possui longa
trajetória. Inúmeros projetos de Lei já foram apresentados com esse objetivo, tendo sido arquivados. Câmara
situa que a batalha por criminalizar a homofobia tem sua origem nas discussões em torno da Constituinte.
(Ver Câmara, 2002; Natividade e Lopes, 2007). No Senado, a proposta aprovada na Câmara Federal
transformou-se no PL-122/ 2006.

42
2) Entende que esta liberdade individual, de aceitar uma sexualidade homossexual, não
a torna correta por si mesma. Tampouco impede que quem dela discorde, expresse sua
opinião contrária. Numa sociedade democrática se reconhece o direito de escolha, mas
também nesta sociedade os valores individuais, e mesmo de segmentos, não podem se
impor sobre os valores de outras comunidades específicas, por exemplo, as Igrejas
Cristãs. Assim, tal lei ora em discussão retomaria os princípios de censura de
consciência e opinião típicas do fascismo e das ditaduras que tantos males causaram à
humanidade.
3) Afirma o ensino Bíblico de que Deus criou homem e mulher, e esta é a orientação
sexual reconhecida pela Igreja. E este mesmo ensino Bíblico classifica como um
pecado a prática do homossexualismo. Deste modo, é inalienável o direito da Igreja de
pregar e ensinar no privado e no público contra a prática homossexual como um
pecado e desobediência aos ensinos de Deus. O fato da Igreja compreender o
homossexualismo desta maneira não a impede de receber, acolher e dialogar com os
homossexuais. A Igreja quer, no entanto, preservar o seu direito de questionar a
conduta humana, qualquer que seja ela, inclusive a conduta homossexual, de modo a
poder desempenhar sua missão de pregar a reconciliação do ser humano com Deus,
com o seu próximo e consigo mesmo.

O Colégio Episcopal reafirma o seu compromisso com os valores do Reino de Deus,


conforme estabelecidos na Escritura Sagrada, e exorta a Igreja no sentido de acolher
todas as pessoas com amor, na busca de uma vida plena. 27

O texto acrescenta elementos que constituem argumentos fulcrais na controvérsia,


dentre os quais a preocupação com a “liberdade de pregar contra o homossexualismo”, já
que a heterossexualidade é a única orientação sexual reconhecida pelas igrejas evangélicas.
Ele é ilustrativo de como grupos e segmentos cristãos percebem a aprovação desta Lei
como ameaça à “liberdade religiosa”.
Em diferentes contextos, inicia-se um grande debate sobre o que pode ou não ser visto
como homofobia. Um evento público discutiu o projeto no Senado Federal, constituindo
28
este um dos importantes eixos de discussão. Diversos parlamentares e representantes de
movimentos sociais discursaram sobre (1) a importância de combater a discriminação
contra a população GLBT e (2) a contenção de valores não laicos, nas ações
governamentais. A discussão foi animada pelos opositores desse discurso, que invocaram o
27
Extraído de posicionamento publicado, a partir de <http://juliosevero.wordpress.com/2007/04/14/> Acesso
em: 07/2007.
28
Referência ao IV Seminário Nacional GLBT e a Audiência Pública no Senado Federal, ambos realizados
respectivamente no dia 22 e 23 de maio de 2007 no Congresso Nacional. A audiência pública do Senado
Federal foi convocada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. O seminário que
antecedeu este evento teve como tema o “compromisso com o respeito, a igualdade e os direitos das pessoas
GLBT”. O objetivo era debater as “conquistas” desta população, a partir das discussões sobre o Estado laico e
“construir uma agenda visando à aprovação de projetos de leis de interesse de cidadãos e cidadãs GLBT”. As
falas aqui referidas foram coletadas a gravação de áudio da audiência e do seminário.

43
tema da liberdade religiosa no país, assegurada pela Constituição Federal. Desta forma, o
“respeito à Lei de Deus” não podia ser visto como homofobia. O Reverendo Guilhermino
Cunha, membro da Academia Evangélica de Letras do Brasil, reivindicou: “exigimos
respeito e esperamos não receber mais preconceito e discriminação porque defendemos o
que acreditamos. Quem defende a família não é homofóbico, mas defende a ordem natural.
(...) A aprovação dessa lei pode gerar atos sexuais ilícitos nos corredores desta casa e nos
bancos das igrejas”.
Vários canais foram empregados pelos religiosos em protesto contra o projeto. Em
carta veiculada no site da Associação brasileira de apoio aos que desejam voluntariamente
deixar a homossexualidade (Abraceh), Rosângela Justino, psicóloga cristã, dirigiu-se aos
parlamentares: 29
Tomamos conhecimento da votação do Projeto de Lei 5003/2001, de autoria da
Deputada Iara Bernardi, e gostaríamos de expressar nossa opinião contrária a
aprovação do mesmo. Não apoiamos a discriminação em nenhum aspecto, tanto é que
lutamos para que as pessoas que deixaram ou querem voluntariamente deixar a
homossexualidade não sejam discriminadas pelo Poder Público, pela nova ciência e
pelos ativistas do movimento pró-homossexualismo, que insistem em desconhecê-las e
em não aceitar a mudança que promoveram em sua orientação/ comportamento. (...)
Como cidadãos desse país, defendemos o direito dos que voluntariamente não querem
vivenciar a homossexualidade e dos que já saíram dela, muitos com famílias
constituídas. (....) contamos assim com nossos representantes legais, ou seja, o (a)
senhor (a), para que os integrantes dos movimentos de apoio e seus apoiadores não
sejam perseguidos, talvez até mais do que os próprios ativistas GLBTS dizem ser, pois
somos um grupo de excluídos dentro de um grupo que já se considera minoria. Estão
cerceando nosso direito de nos reunir em grupos de ajuda mútua, em igrejas e o direito
à psicoterapia. O que mais irão nos tirar? Nosso livre-arbítrio? Contamos com seu
apoio para a não aprovação do PL 5003/2001. 30

Um conjunto de artigos publicados pela imprensa religiosa ateou fogo ao debate.


Neles, a lei em questão era mencionada como “mordaça gay”, arma do movimento
homossexual contra a pregação evangélica e atuação dos “movimentos de apoio” (Figura
9). O periódico evangélico Mensageiro da Paz (julho, 2007) teve matéria de capa alertando
os evangélicos contra os perigos da proposta: o risco de instituições religiosas ficarem

29
Uma série de ações foi protagonizada por religiosos com o objetivo de posicionar-se contrariamente ao
projeto. Esta carta foi disponibilizada no site da Abraceh como documento de protesto a ser enviado a
parlamentares. O site disponibilizava ainda os e-mails de senadores e deputados a quem a carta-protesto
deveria ser endereçada.
30
Extraído do texto “Carta aos deputados contra o PL. 5003/2001", a partir de <www.abraceh.org.br>.
Acesso em 10/07/2007.

44
impedidas de afastar do quadro de membros ministros e pastores homossexuais; a
instauração de processos para perseguir religiosos contrários à prática homossexual; o
favorecimento da adoção de crianças por gays e lésbicas. Além disso, o termo homofobia
não possuiria qualquer conceito cientificamente endossado, sendo, portanto, difícil definir
quais atos poderiam ser ou não qualificados como homofobia.
O “fim da liberdade de expressão” foi anunciado por inúmeras matérias com
conteúdos similares. Leis, processos e conflitos prejudicariam quem discordasse da
homossexualidade. A lei que visa criminalizar a homofobia, além de ameaçar os valores
religiosos, criaria uma espécie de “preferência” para os homossexuais, um tipo de “direito
especial”, em relação aos cidadãos brasileiros. Esta Lei produziria uma espécie de
“ditadura” dos interesses de uma “minoria” sobre o resto da população, sendo assim
“inconstitucional” já que todas as pessoas devem desfrutar dos mesmos direitos. Vários
grupos protagonizaram intervenções com este teor, incentivando o envio de cartas e
manifestos para senadores e outros políticos. O pastor Silas Malafaia (Assembléia de
Deus), no Programa Vitória em Cristo, exibido na Rede TV, organizou uma ‘campanha’ de
protesto contra a proposta, incitando sua audiência a repudiar o projeto. Da mesma forma,
têm-se notícias da emergência de uma condenação da “lei anti-homofobia” em púlpitos e
congregações evangélicas em geral, como exemplos, a Igreja Batista do Recreio (bairro da
Zona Oeste, Rio de Janeiro) e algumas congregações da Igreja Universal do Reino de Deus.
31
O líder desta denominação, Marcelo Crivela, atualmente Senador Federal, declarou em
32
ocasiões públicas sua disposição em atuar contra a aprovação do projeto. Grupos
interdenominacionais, como a Associação brasileira de apoio aos que desejam
voluntariamente deixar a homossexualidade (Abraceh) e a Visão Nacional para a
Consciência Cristã (VINAC), ostentaram forte oposição à aprovação da proposta. Em seus
sites, verificou-se a existência de uma série de convocatórias para que seus visitantes
reagissem àquelas medidas: orações, jejuns e vigílias eram combinados a passeatas, envio
31
Informação obtida junto a amigos de pertença evangélica. Cheguei a assistir pela Internet algumas
pregações em que o assunto emergia.
32
Este posicionamento ocorreu por ocasião da Audiência Pública realizada no Senado Federal, em outubro de
2007. Reproduzo aqui sua fala: “Esse PL deve ser barrado se não nesse Grupo de Trabalho, na Comissão de
Direitos Humanos. Se não for aqui vai ser na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ); e se não for na CCJ,
será no Plenário; e se não no Plenário, vamos a sanção do presidente; e se ainda assim for preciso, vamos ao
Supremo Tribunal Federal”.

45
de e-mails a parlamentares e abaixo-assinados. Ao invés de apoiar a “legitimação” e
“naturalização da homossexualidade”, defendia-se que autoridades públicas deveriam
incentivar medidas que promovessem “a moral e os bons costumes”. Outra correspondência
enviada a um parlamentar criticou a expansão dos direitos por homossexuais no país:
Ilmo Sr. Deputado... Quanto mais direitos os senhores derem para o
movimento pró-homossexualismo mais eles vão se fortalecer e qualquer
movimento dos senhores que eles interpretarem como homofobia colocarão
todos os senhores na cadeia. Mais tarde irão também obrigá-los a praticarem a
homossexualidade. Esse movimento é um movimento de desconstrução social.
(...) Infelizmente os senhores não estão percebendo que estão dando armas
para quem já declarou que os heterossexuais são inimigos. 33

Em nova mensagem, acrescentou-se:


Esqueci de dizer que depois de obrigá-los a praticar a homossexualidade com
eles vão lhes pedir pensão ou chamar duas testemunhas e obrigá-los a dar
pensão para eles, mesmo que os senhores não tenham envolvimento com eles.
34

Em meio ao debate, reapareceu outro importante argumento: não há sentido em


garantir direitos aos homossexuais, pois a homossexualidade não é um fato, mas um
“estado”, por se tratar de um comportamento que pode ser abandonado e curado. 35
O protesto religioso contra essa lei deve ser inserido em um contexto mais amplo em
que ocorrem enfrentamentos a partir de outras demandas que contemplam os direitos e a
cidadania dos homossexuais. Ações e reações ocorrem de ambos os lados através de
requerimentos de informação, indicações legislativas, homenagens, proposições de novos
projetos de Lei. Não são poucas as solicitações, protagonizadas por religiosos, de
esclarecimentos ao Ministério da Saúde sobre o patrocínio às Paradas GLBT ou outras
atividades ligadas aos movimentos sociais de defesa das minorias sexuais. 36 Em resposta às
inúmeras tentativas de instituir o Dia Nacional do Orgulho Gay na Câmara Municipal de
São Paulo, a proposta de Carlos Apolinário visava instituir, no Município de São Paulo, “o
Dia do Orgulho Heterossexual”, que seria comemorado, anualmente no terceiro domingo
33
Extraído de correspondência publicada no site da Abraceh, a partir de <www.abraceh.org.br>. Acesso em:
10/07/2007.
34
Extraído de correspondência publicada no site da Abraceh, a partir de <www.abraceh.org.br>. Acesso em:
10/07/2007.
35
Extraído do texto “PLC 122/2006: um instrumento contra ou a favor dos que estão homossexuais?”, a partir
de <http//movimentodepaoio.blogstpot>. Acesso: 24/06/2007.
36
Requerimentos de informação apresentados na Câmara Federal: RIC-1991-2004; RIC-2879-2005.

46
de dezembro de cada ano”. 37 O projeto nas palavras do autor é “estímulo à população para
38 39
resguardar a moral e os bons costumes”. Elimar Damasceno é autor de uma proposta
que “torna contravenção penal o beijo lascivo entre pessoas do mesmo sexo em público”. 40
Nesse sentido, a “lei anti-homofobia” é vista como mais um perigoso avanço dos direitos
dos homossexuais. Com esta preocupação, alguns atores sociais criticam a expansão de
políticas públicas voltadas a esta população. Nessa e em outras disputas, parlamentares e
outros indivíduos que apóiam propostas favoráveis aos homossexuais são referidos como
pessoas “anti-Deus” e “anti-religião”, que querem “impor seus valores”. O Partido dos
Trabalhadores, como base governamental que apóia políticas públicas voltadas à
“diversidade sexual”, foi alvo de críticas específicas, como as empreendidas pelo escritor
evangélico Júlio Severo, que conclama os cristãos a oferecer “respostas claras e bíblicas”
aos grupos gays e lésbicos, aos indivíduos e instituições que querem “levar as crianças e
adolescentes a aceitar a idéia de que o homossexualismo é uma opção saudável de vida”.
Severo divulga em seu site inúmeros textos e artigos evangélicos que tematizam a
“homofobia”. Contrapondo-se a sua criminalização, ele defende “o direito de ser
homofóbico”: 41

A obsessão da moda entre algumas criaturas estranhas e radicais que habitam o


Congresso Nacional é lutar contra a homofobia, como se muitas pessoas na
sociedade estivessem obcecadas por um medo, nojo ou ódio irracional e incessante
contra os homens que têm como principal ocupação na vida enfiar o pênis no ânus
de outros homens. (...) Nessa categoria [homofobia], eles vêem todos os que não
aceitam as práticas homossexuais. (...) A fobia verdadeira é uma aversão
irracional. (...) Os sodomitas se apossaram dessa palavra, exatamente como eles
se apossaram da palavra “gay” [gay, em inglês, costumava nos bons tempos
significar alegre]. No entanto, não há nada de alegre no que eles fazem
sexualmente: eles enfiam ou recebem o pênis no ânus, enfiam quase metade do
braço no ânus, lambem o ânus uns dos outros, bebem urina uns dos outros, se
sujam de fezes uns com outros, etc. Essa é a relação homossexual em seu estado
mais puro. Por isso, não há nenhuma fobia na aversão que alguém normal tem aos
atos sujos, nojentos e horrendos que os homossexuais praticam. Não temos medo
deles, nem temos nenhuma aversão irracional a eles. Temos uma aversão racional
às práticas deles, com base nas coisas de dar nojo que eles fazem. Eles não são
gays [alegres], pois é impossível viver alegre tendo como ocupação principal na

37
Proposta arquivada.
38
Partido de Reedificação da Ordem Nacional, São Paulo.
39
PL-2279/ 2003. Arquivado.
40
Os propositores desses projetos possuem vinculação às bancadas evangélicas.
41
Título de um artigo divulgado em seu site e blog.

47
vida achar um homem em quem enfiar o pênis. E nós não somos homófobos,
porque não temos nenhum ódio irracional aos homossexuais. O que temos é uma
aversão saudável, lógica e racional a tudo o que é nojento, inclusive as praticas
homossexuais. O próprio Deus acha o homossexualismo detestável. (...).E nós
temos boas razões para ter nojo do que Deus odeia. (...) O homossexualismo traz
problemas detestáveis em seu rastro. (...) Aceitar e favorecer amplamente o
homossexualismo nas leis é aceitar, irremediavelmente, a loucura social e,
fatalmente, o aumento das doenças e abuso de meninos. 42

Ancorado nestes argumentos, ele defende a necessidade de campanhas de educação e


prevenção contra a sodomia no país e afirma que “para que a sociedade viva em paz e em
harmonia, é preciso criar leis para punir condutas que representem ameaça para a existência
e sobrevivência das famílias”. Cito extensivamente alguns dos argumentos: 1) os militantes
gays exploram rapazes pobres em troca de favores sexuais; 2) os militantes gays são
fartamente financiados pelas autoridades do governo, chegando a desviar verbas públicas
para suas campanhas de prevenção contra AIDS – epidemia que seria facilmente
contornável se fossem abstinentes do exercício desta “sexualidade anormal”; 3) em virtude
de seus atos sexuais antinaturais, os homossexuais estão expostos e transmitem muitas
doenças que “pesam nos cofres públicos”; 4) as diferenças entre homossexuais e
heterossexuais consiste no fato de que estes últimos, ainda que pecadores, tiveram sua
sexualidade projetada por Deus, enquanto a condição homossexual não é natural: ser
heterossexual é perfeitamente normal, ser homossexual não; 5) a obra de Deus implica em
combater toda e qualquer tentativa legal e política de favorecer homossexuais; 6)
considerando que os homossexuais não são iguais aos heterossexuais (não são “normais”),
eles “não têm direito ao Reino de Deus”. Inúmeros textos publicados em seu site são
expressivos de sua opinião, mas através de distintas autorias endossam esses argumentos
com algumas poucas variações. Evangélicos atuam contra o reconhecimento e visibilidade
dos homossexuais na esfera pública, motivados por uma percepção dessa sexualidade como
ameaçadora (Figura 10).

42
Extraído do texto “Gay e homofobia: na República Federativa de Sodoma, o que vale é a ficção”.
http://juliosevero.blogspot.com/2007/05/gay-e-homofobia-na-repblica-federativa.html. Acesso em:
17/10/2007.

48
1.4: DIFERENTES VISÕES RELIGIOSAS SOBRE UM MESMO PROBLEMA: O
CONFLITO EM UM SEMINÁRIO GLBT

Recuarei um pouco no tempo para o ano de 2005. Não seguirei a ordem cronológica
dos acontecimentos e o farei de modo a resgatar um debate que introduz novo elemento na
controvérsia: a discordância dentro de um mesmo campo religioso. Eu participei como ator
do drama e conflito que se desenhou de uma forma mais ativa do que nos casos relatados
anteriormente.
Na ocasião, recebi um telefonema de dois estudantes do curso de Letras, ligados à
organização do Seminário Diversidade UFF: Cultura e homoerotismo, que aconteceria em
data próxima à Parada do Orgulho Gay daquele ano. Uma das sessões do evento
contemplaria a temática Teologia e Sexualidades. Os alunos demandavam que eu
coordenasse esta mesa e me pediam indicações sobre quem possivelmente poderia falar.
Em algumas conversas telefônicas, eles explicaram que não tinham uma proposta definida.
Eu poderia compor uma mesa e enviar-lhes a programação. Apenas queriam enfatizar a
diversidade de abordagem das relações entre religião e homossexualidade. Mesmo relutante
em propor a sessão, por não saber ao certo que impactos essa forma de intervenção poderia
ter sobre meu interesse de pesquisa, submeti uma proposta aos organizadores e passei então
a contatar algumas pessoas. Pesquisadores abririam a discussão, expondo resultados de
estudos na área de religião e sexualidade. Camila Sampaio, estudante de pós-graduação no
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ falaria sobre juventude e
iniciação sexual entre jovens pentecostais. Edlaine Gomes, antropóloga, foi convidada a
apresentar resultados sobre sua pesquisa sobre família e religião entre Testemunha de
Jeová. Leandro de Oliveira, com quem eu acabara de escrever um artigo, faria uma
exposição sobre percepções da homossexualidade na doutrina católica contemporânea. Os
organizadores do evento insistiram que eu apresentasse resultados de minha pesquisa de
doutorado, mas eu optei por manter-me no papel de coordenador. O panorama sobre
teologia e religião seria apresentado por duas perspectivas contrastantes: grupos de cura em
contraste com a proposta de uma teologia gay. Iniciei então uma série de contatos com dois
importantes representantes desses dois movimentos religiosos: Rosangela Justino, que eu

49
conhecera no Seminário Religião e Sexualidade: convicções e responsabilidades e Marcos
Gladstone, pastor da Igreja da Comunidade Metropolitana do Brasil, primeira denominação
conduzida por um líder assumidamente homossexual no país. Passo aqui a descrever
algumas das intermediações que fiz entre os organizadores do evento e estes dois religiosos
porque ela ilustra a tensão que se desenharia mais tarde no seminário.
Na primeira ligação que fiz, Marcos Gladstone foi receptivo. Nós nos conhecêramos
na inauguração de sua igreja, em 2004. Ele indagou quem seriam os participantes. Informei
que teríamos uma mesa plural, com apresentações de pesquisas, inicialmente, e em seguida
o foco seria religião e homossexualidade dentre de uma perspectiva de líderes religiosos
que trabalhassem com o tema. Quando citei o nome de Rosangela Justino como uma das
possíveis interlocutoras a falar, ele indagou se eu sabia que ela estava sendo processada por
alguns homossexuais e possivelmente teria sua licença para clinicar revogada, pela
participação em tratamentos de cura. Informou que não via problema em participar do
debate e que levaria consigo um grupo de fiéis da igreja. Rosangela Justino reagiu com a
mesma receptividade. Ressaltou que, apesar de apreensiva em participar de um seminário
GLBT, estava grata em poder compartilhar suas idéias. Disse inicialmente que teria que re-
agendar alguns clientes para ter a tarde de uma quinta-feira livre. Uma troca de e-mails com
os dois foi a forma de finalizar a programação. Em uma mensagem Marcos Gladstone
pediu para ser apresentado como advogado, pós-graduado em Teologia pela Universidade
Metodista Bennet, pastor e fundador da primeira Igreja da Comunidade Metropolitana no
Brasil, a “maior denominação a receber pessoas GLBT e onde foi desenvolvida a teologia
da inclusão ou teologia gay”. Marcos informou que falaria sobre a proposta teológica da
denominação. Rosangela Justino considerou três distintas possibilidades. Cito os títulos
enviados por ela: 1) É possível a inclusão social dos que querem voluntariamente deixar a
homossexualidade ou temos que nos sujeitar a ditadura gay?; 2) O que está por trás do
cerceamento do direito de apoiar pessoas a deixar a homossexualidade?; 3) A era da
“heterofobia”. A sua participação acabou sendo acordada por meio de uma apresentação
que contemplava uma quarta proposta: “Da homossexualidade à heterossexualidade: há
43
possibilidade de resgate da orientação sexual” (Figura 11). Com a proximidade do

43
Título de um antigo texto de sua autoria divulgado no âmbito do Grupo de Amigos (RJ).

50
evento, algumas vezes conversei com Marcos e Rosangela, para tratar de detalhes como
recursos audiovisuais para o evento, endereço e sala em que ocorreria. Rosângela comentou
em uma ocasião que poderia ser apresentada como psicóloga, com especialização em
atendimento a crianças e adolescentes vítimas de “violência doméstica”, criadora da
Associação brasileira de apoio aos que desejam voluntariamente deixar a homossexualidade
(Abraceh). Pouco antes do evento, ela telefonou-me e percebi que estava tensa e hesitante,
apesar de ter aceitado a proposta. Ela reclamou que era freqüente sofrer agressões verbais
em função de algumas interpretações equivocadas sobre seu trabalho. Pessoas ligadas ao
movimento gay muitas vezes entendiam sua posição como homofóbica ou discriminadora.
Ela era contrária a todo tipo de violência contra os homossexuais, mas isso não invalidava o
trabalho de acolhimento nas igrejas, nem a ajuda que alguns ministérios de apoio prestavam
a pessoas que sofriam com esta prática sexual. Rosangela comentou que temia ser agredida
fisicamente por algum militante. Após uma breve conversa, concordamos que o importante
era a diversidade de idéias e que, no evento todos teriam espaço para o diálogo, de forma
construtiva. Ela comentou que divulgaria o evento entre amigos, participantes de
ministérios de ajuda, como forma de garantir a presença de pessoas que compartilhavam de
suas convicções. Eu estava receoso, mas com esperanças de um debate proveitoso.
No dia do evento, fomos logo procurados por uma equipe de um jornal televisivo.
Eles faziam a cobertura do seminário GLBT dentro de uma cobertura mais ampla sobre a
Parada Gay do Rio de Janeiro. O interesse era entrevistar os participantes, em especial os
religiosos presentes, pois tiveram notícias sobre a participação de representante de uma
“igreja gay” e outro, de um grupo evangélico que propunha “cura” da orientação sexual.
Os jornalistas chegaram quando a mesa já tinha se iniciado, de forma que Marcos
Gladstone e Rosângela Justino foram entrevistados durante a realização da sessão,
ausentando-se por poucos minutos, cada um. A sala, no prédio de Letras da UFF, tinha
capacidade para quase cento e cinqüenta pessoas. Segundo soube depois, a sessão temática
galvanizou as atenções, lotando o auditório. A junção dessas duas propostas contrastantes
atraiu a participação da maior parte dos gays e de outras pessoas presentes.
Marcos iniciou sua exposição recorrendo ao texto bíblico (Lucas 18, 10). Após a
leitura da passagem sobre “fariseus” e “publicanos” ele se colocou de pé e assumiu uma

51
postura de quem pregava num púlpito. Ele estava vestido com calça preta e camisa de
mesma cor, com colarinho clerical, o que salientou a impressão de suas palavras como uma
pregação. Ele comentou que o trecho mostrava determinado tempo do cristianismo no qual
alguns homens religiosos se julgavam melhores do que os outros. Rompendo com essa
visão, Jesus ensinara novos padrões e leis, contrapondo-se aos julgamentos morais e
afirmando a necessidade do amor, acima de tudo. Contudo, a igreja transformara a
mensagem de Jesus em um novo conjunto de regras. Na história da igreja, as pessoas que
eram “diferentes” não tinham espaço. O cristianismo excluía a diferença, que incluía a
dimensão da orientação sexual. Em seguida, ele passou a falar sobre a proposta de sua
comunidade religiosa, uma “igreja inclusiva”. Assim, como cada igreja possuía uma
doutrina (batistas diferenciavam-se de assembleianos, por exemplo), a ICM possuía uma
doutrina própria, muito mais liberal e de “mente aberta” em seus posicionamentos. Era
exemplo disso, uma distinta passagem. O trecho de Gálatas 13, 28 assinalava que Deus não
via a diferença das pessoas. Ele não queria saber se era macho ou fêmea, heterossexual ou
homossexual, se eram negros ou brancos. Algumas igrejas evangélicas mentiam quando
afirmavam que um homossexual podia se curar. Marcos considerava o discurso que
católico era menos “incoerente” quando comparado aos protestantes, porque apenas
prescrevia o celibato, mas não a mudança de orientação sexual. Pensava que as pessoas
continuavam sentindo os mesmos desejos e o resultado disso era uma culpa muito grande.
Na ICM apareciam pessoas que haviam passado por vários tratamentos e elas se sentiam
muito aliviadas em chegar a um ministério cristão que acolhia as pessoas sem exigir esta
mudança. Ele não tinha vergonha de dizer que era homossexual, inclusive, era ‘aceito’ por
sua família, que era cristã, encontrando apoio nela. A orientação sexual das pessoas não
tinha nada a ver com a criação delas, nem com abusos vividos, era uma coisa “inata”. Não
era ocasionada ou implantada por “força maligna”. Para finalizar, deixava uma pergunta
para reflexão: será que a igreja na atualidade incluía as pessoas em suas “diferenças”,
vivendo o amor incondicional que Jesus ensinou?
A palavra foi passada a Rosângela Justino. Ela informou que faria uma apresentação
sobre sua experiência anterior no “atendimento a homossexuais que queriam
voluntariamente deixar a homossexualidade”, em uma das várias “missões de apoio”

52
existentes no Brasil. O relato encontrava-se em um texto editado há aproximadamente
quinze anos, quando era coordenadora do Grupo de Amigos (GA). Rosangela foi auxiliada
por uma equipe técnica do evento, passando a exibir algumas páginas em datashow
projetadas numa parede atrás da mesa composta pelos expositores. Para iniciar, ela
comentou que faria uso do Código Internacional de Doenças, que falava sobre “transtornos
mentais” e “de comportamentos” e em especial, a “homossexualidade egodistônica”. Esse
documento informava que era previsto tratamento para alterar a orientação sexual de
indivíduos que se encontravam “em sofrimento”. Rosangela mencionou a existência de
inúmeros transtornos ligados a sexualidade, sobre os quais não iria deter-se. Quem quisesse
aprofundar-se, bastaria preencher um formulário que ela possuía em suas mãos, para filiar-
se ao seu “grupo de apoio”. Com esta fala, ocorreram alguns murmúrios na platéia. Ela
comentou o uso preferencial do termo “transtorno” em detrimento da idéia de “doença”,
recomendado no Código Internacional de Doenças, já que haveria um conjunto de sintomas
“clinicamente reconhecíveis”. Apesar de não se aprofundar sobre o modo como seria feito o
diagnóstico, ela defendeu que as pessoas que buscavam “ajuda” em grupos e terapias
reparativas deveriam ser respeitadas “em suas mais variadas razões éticas, familiares e
religiosas, que as levavam a não aceitar a sua condição”. O “movimento pró-
homossexualismo” tentava esconder a existência desses casos, alegando que eles eram
decorrentes de preconceito que existe na sociedade. Militantes acreditavam que acabar com
a discriminação levaria todos os homossexuais a serem “sintônicos” (a se aceitar), o que era
uma “ilusão” para ela e vários outros profissionais cristãos. Ela considerava que “pessoas
radicais” atacavam as convicções religiosas porque os grupos de apoio incentivavam que
indivíduos não aceitassem passivamente suas inclinações e desejos. Novos murmúrios
ocorreram.
Em seu ministério. Profissionais indagavam aos homossexuais que os procuravam, se
eles o faziam “por pressão” ou por sua vontade individual. Gays e lésbicas que ingressavam
eram orientados a assinar um termo no qual declaravam ser voluntária a adesão ao
tratamento. Essa medida era necessária porque existiam muitos espiões que se integravam
para depois espalhar inverdades e “detonar” o trabalho. Rosangela enfatizou que as
primeiras pessoas a deixar a homossexualidade estavam descritas na Bíblia, em passagens

53
como I Coríntios, capítulo seis, versículos de nove a onze. Lá haveria relatos de que várias
pessoas deixaram de ser “injustas” e também daquelas que deixaram a homossexualidade.
Ela argumentou que o “papel homossexual”, como todo aprendizado, era desenvolvido (e
estabelecido) durante a vida do indivíduo, da mesma forma que o “papel heterossexual”.
Sendo assim, era possível encontrar o incentivo para a mudança e para o desenvolvimento
dessa outra identidade nos ministério de apoio. Lá, profissionais cristãos apoiavam o
indivíduo para que ele retirasse a sua “máscara homossexual”, o seu “rótulo”, revelando
posteriormente o verdadeiro “conteúdo heterossexual” do ser humano. Isso ocorria porque
todo indivíduo “nasce heterossexual”. Por este motivo, era possível resgatar e desenvolver a
heterossexualidade. Estudos comprovariam que uma “orientação homossexual” podia se
tornar exclusivamente heterossexual por meio aconselhamento religioso e grupos de apoio
44
dirigidos por ex-homossexuais. Ela considerava essencial destacar que a orientação
sexual não era irreversível, nem imutável e que os profissionais cristãos tinham a
responsabilidade ética de ajudar pessoas a “perseguir a experiência de reduzir a atração
pelo mesmo sexo”. A psicóloga finalizou sua apresentação falando sobre a importância da
inclusão social daqueles que querem “abandonar a homossexualidade”, por uma questão de
“respeito à diversidade”.
As apresentações acadêmicas ocorreram em seguida. Não me deterei na descrição
destas, devido ao objetivo primeiro da seção que é apresentar o conflito que se delineia no
seminário entre distintas concepções religiosas. Parto, portanto, ao momento em que a
platéia participa através de intervenções, questionamentos, posicionamentos de apoio ou
repúdio ao que está sendo dito em torno das duas perspectivas religiosas.
A primeira intervenção foi feita diretamente por integrante do Conselho Regional de
Psicologia que pediu a palavra ao coordenador da mesa, através de um bilhete entregue a
este durante a apresentação de Rosangela. Ele iniciou dizendo que precisava apresentar a
posição da psicologia “enquanto ciência”, consubstanciada em resolução do Conselho
Federal de Psicologia. Essa autarquia federal, juntamente com organismos regionais
44
Como no seminário anteriormente relatado, a psicóloga citou novamente o estudo de Robert Spitzer,
explorando mais extensivamente seus argumentos para comprovar que a referida pesquisa oferecia evidência
de que homens e mulheres homossexuais podiam mudar substancialmente a orientação sexual. Não me deterei
aqui em uma descrição mais aprofundada, destacando apenas que ela sublinha que a mudança na orientação
sexual era complexa, em alguns casos levando anos para sua reestruturação.

54
orientava e fiscalizava o exercício profissional da psicologia. Ele então passou a ler
integralmente a resolução deste órgão que impedia a participação de profissionais de
psicologia em tratamentos de reversão da orientação sexual dos sujeitos. A fala deste
ocorreu em um tom inflamado e foi acompanhada com excitação pela platéia. Ocorriam
algumas conversas entre participantes do público em tom baixo. O homem, de posse da
palavra, lia o documento em suas mãos. Era um ato de protesto, amparado pela referida
resolução. Passo aqui a sumarizar alguns dos pontos.
A homossexualidade não constitui doença, distúrbio ou perversão, e a psicologia
“deve contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da
sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações”. O artigo terceiro da
resolução instruía: “os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a
patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva
tendentes a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”. Também era vedada
aos profissionais desta categoria a participação em eventos ou serviços que propusessem
“cura da homossexualidade” bem como o comparecimento aos meios de comunicação de
massa através de proferimentos públicos que pudessem “reforçar os preconceitos sociais
existentes em relação aos homossexuais como portadores que qualquer desordem psíquica”.
Ele passou a ler em seguida um distinto documento, elaborado por ocasião da tramitação de
projeto de Lei na ALERJ, segundo o qual em “nenhuma teoria relevante no campo da
psicologia encontram-se argumentos que justifiquem a patologização do homoerotismo”.
Em contraposição, eram abundantes os estudos que apontavam que “as práticas
discriminatórias, fomentando intolerância e violência são produtoras de intenso sofrimento
psíquico”. Desta forma, a psicologia não podia colaborar com nenhuma forma de
discriminação ou preconceito.
Após o término desta intervenção, palmas e gritos prolongados foram ouvidos,
durando aproximadamente trinta segundos. Diversos participantes levantavam a mão na
tentativa de inscrever-se para obter a palavra. O primeiro comentário foi de um estudante
da UFF que pontuou: a apresentação da psicóloga era “homofobia disfarçada”. O trabalho
mencionado pela religiosa favorecia certa visão da homossexualidade como
“anormalidade”. Se a homossexualidade podia ocasionar transtornos, o mesmo ocorria com

55
pessoas “pobres demais”, “feias demais”, “bonitas demais”. Nesse caso, haveria
tratamentos para “deixar de ser pobre” ou deixar de ser “bonito”? Essa fala ensejou palmas
e risadas. Um distinto participante, sentado próximo de integrantes da ICM, tomou o
microfone e dirigiu-se também a psicóloga: caso chegasse ao consultório um heterossexual
com transtornos em decorrência da sua heterossexualidade, ele seria tratado para reverter
essa preferência? Ele queria saber ainda qual fundamentação teórica e corrente
psicoterápica embasava os tratamentos de reversão da homossexualidade e onde tinham
sido publicados os resultados dos estudos mencionados por ela. Ele tivera notícias sobre a
pesquisa que ela mencionara e soubera que esta fora realizada a partir de procedimentos
questionáveis. Em primeiro lugar, as entrevistas foram realizadas “pelo telefone”, o que não
conferia nenhuma margem de confiabilidade dos dados. Em segundo, as indicações para
entrevista foram todas obtidas por meio de contatos de grupos religiosos, o que enviesava
mais ainda os resultados. Em seguida, elevando a voz em tom irônico, ele questionou a
passagem citada por Rosangela como exemplo da cura da homossexualidade no texto
bíblico. O trecho original admoestava que nem efeminados, nem sodomitas seriam salvos.
Ele supunha então, que se o problema de Deus era com a efeminação e com a feminilidade,
as mulheres iriam todas para o inferno. Deus deveria então gostar muito dos “homossexuais
machinhos” e das lésbicas “bem sapatão”. Diante de muitas risadas e palmas tímidas, a
psicóloga pronunciou algumas palavras, mas seu opositor não se calou, de forma que ela
recuou. Várias pessoas erguiam a mão, solicitando a vez para falar.
O coordenador pediu que as perguntas e questionamentos fossem breves, de forma
que uma diversidade de opiniões pudesse ser contemplada. Um psicólogo levantou-se e
quando lhe foi entregue o microfone, indagou a Rosangela, se ela não considerava estar
ferindo a ética de sua profissão ao compactuar com as idéias de cura e tratamento. Outro
participante informou ser diácono da ICM Rio e educador. Ele questionou os argumentos
bíblicos evocados sobre a possibilidade de ‘mudança’ da homossexualidade. Paulo, na
referida passagem tratava de santificação das pessoas pelo Espírito Santo. Não estava em
foco qualquer mudança da orientação sexual, mas a possibilidade de um encontro com a
espiritualidade e com Deus. Era um equívoco supor que havia exortações à mudança.

56
Em resposta às primeiras questões, Rosangela Justino defendeu-se argumentando que
quem falava que a homossexualidade era um “transtorno” era a Classificação Internacional
das Doenças, e não ela. Isso podia ser verificado na página cinco. Quem quisesse conferir,
bastava folhear o documento que tinha em mãos. Ela teria prazer em esclarecer e ajudar
quem tivesse dúvidas. Declarou que estava de posse dos resultados da pesquisa conduzida
pelo Dr. Robert Spitzer, mas ao invés de falar sobre eles, preferia colocar algumas questões.
Dirigiu-se, então, ao representante do Conselho de Psicologia que a interpelara. Informou
que ele fora seu professor na faculdade de psicologia. A platéia respondeu com
gargalhadas. Rindo, ela disse então que tudo que aprendera em psicologia se devia a ele,
que participara de sua formação acadêmica. E disparou um conjunto de perguntas para as
quais esperava suas respostas:: como o Dr. Robert Spitzer, uma pessoa de renome, iria
conduzir uma pesquisa sem critérios acadêmicos? Existiam muitas falácias e fantasias no
Brasil acerca da pesquisa dele, um nome respeitável e referência na área. Seria proibido no
Brasil realizar pesquisa semelhante, quando clientes apresentam esse tipo de demanda? Um
pesquisador interessado poderia conduzir esse estudo sem ser acusado de homofobia? A
liberdade de pesquisa no Brasil estaria cerceada pela resolução 196 do Conselho de
Psicologia? Seria possível proibir uma terapia que é reconhecida como benéfica por aquelas
pessoas que passam por ela? Ela ergueu um livro nas mãos, cujo título era
“Homossexualidade: abordagens cristãs” e informou que nele existiam vários depoimentos
de homossexuais que alcançaram a mudança (Figura 12). Quem quisesse poderia adquirir o
livro “por apenas dez reais”. Novas risadas e murmúrios. Inclusive ali naquele auditório
havia pessoas que deixaram a homossexualidade, incluindo líderes de grupos de apoio e
pessoas que estavam fazendo terapia reparativa. A religiosa continuou a falar e um
integrante da platéia ergueu as mãos em protesto, falando alto que ela deveria se calar para
ouvir as respostas para suas questões. O coordenador pediu ordem. Rosângela então disse
que as respostas a suas indagações estavam dentro das próprias perguntas. Não era preciso
ir muito longe. Ela não se considerava homofóbica por “apoiar” aqueles que queriam sair
da homossexualidade. Haveria no país inúmeras pessoas que não tinham essa percepção
sobre o trabalho pastoral em questão, pois naquela sala havia pessoas que vinham buscando
mudar sua orientação sexual. Palmas fortes foram ouvidas, dessa vez em apoio à religiosa.

57
Ela então indagou a platéia: vocês viram como há público aqui dizendo que não é
homofobia? Murmúrios de incômodo foram ouvidos e a religiosa insistiu em permanecer de
posse da palavra. Disse que queria informar ainda que no Brasil havia um importante nome
realizando pesquisa sobre a mudança da orientação sexual, o médico psiquiatra Dr. José
Maria Nascimento Pereira, que iniciara seu trabalho nos anos 1970.
O coordenador pediu que Rosangela concluísse para que fossem feitas novas
intervenções. Ela insistiu que faltava comentar sobre a passagem bíblica I Coríntios.
Marcos Gladstone interviu, dizendo que sobre essa passagem bíblica ele poderia falar.
Rosangela retrucou que fora dirigida a ele uma questão a esse respeito. Apesar disso, ela
queria salientar que, independente do que dizia a bíblia naquele recinto existiam pessoas
que deixaram a homossexualidade. Ela cria, então, no “amor de Cristo”, que apagava todas
as transgressões, na “restauração” e no “perdão dos pecados”.
Quando a palavra foi passada ao pastor Marcos, ele aconselhou que a “doutora
Rosangela” estudasse um pouco para lidar melhor com as terminologias e contextos
bíblicos. Essas palavras foram ovacionadas e ele mencionou que não desejava deter-se
sobre perspectivas hermenêuticas, pois isso demandaria mais tempo do que dispunha.
Apenas queria comentar que uma das melhores traduções bíblicas era a Bíblia de
Jerusalém. Uma boa tradução evitava equívocos de interpretação. Como advogado, ele
entendia que não podia dizer a uma pessoa negra, que se sentia infeliz com preconceito, que
ela precisava mudar. Como pastor, ele poderia dizer a ela que deveria se amar como era.
Apesar disso, os negros podiam sempre encontrar apoio para o problema do racismo em sua
família. Com os homossexuais, não ocorria o mesmo, pois havia grande rejeição destas
pessoas no interior de suas próprias famílias. O preconceito acompanhava os homossexuais
em todos os lugares, inclusive “o religioso”, que era muito grande. Nenhuma pessoa podia
ser feliz negando o que é.
Rosangela interrompeu o pastor para dizer que não via problema no fato de Michael
Jackson desejar tornar-se branco. Aceitar a sua opção era respeitar a diversidade. O público
começou a exaltar-se e os murmúrios aumentaram consideravelmente. Ele retrucou que não
podia iludir uma pessoa afirmando que ela poderia mudar aspectos que não eram passíveis

58
de mudança, como a cor dos olhos ou a pele. Da mesma forma ocorria com a orientação
sexual. Isso era uma mentira, uma farsa.
Durante o debate, a medida que os participantes tomavam a palavra era possível
perceber que integrantes dos ministérios de apoio estavam sentados bem próximos a mesa
expositora, à esquerda. Eram aproximadamente seis ou mais pessoas, dentre elas duas
mulheres. Do mesmo lado, a algumas fileiras atrás, um grupo de rapazes, eram integrantes
da igreja da Comunidade Metropolitana do Brasil. Possivelmente religiosos das duas
vertentes estavam também espalhados pelo salão, mas a sua identificação era mais
dificilmente perceptível. Dentre os pequenos grupos formados, parecia haver o incentivo de
alguns para que um deles se posicionasse. Não apresentarei aqui suas falas e argumentos
integralmente, mas destacarei que as intervenções feitas desenharam uma situação de
oposição entre homossexuais e movimentos de apoio.
O foco foi, sobretudo, a apresentação feita por Rosangela Justino. A ela foram
dirigidas inúmeras perguntas e intervenções. Em um dado momento, levanta-se uma
integrante de grupo religioso que atua na recuperação de jovens do vício de drogas e
também na recuperação do “homossexualismo”. Como ela não estava inscrita para falar,
dirigiu-se a última pessoa que tinha o microfone nas mãos, tomando-o dela. O coordenador
pediu um pouco de ordem. Ela argumentou tinha algo muito importante a falar. O
coordenador insistiu que passaria então a palavra à outra pessoa, seguindo a ordem das
inscrições. Nesse momento instaurou-se uma ampla confusão, em torno de quem teria a
palavra. Mais pedidos de ordem. Pessoas levantavam as mãos e procuravam chamar a
atenção para si. A organização do evento, através de um bilhete ao coordenador informou
que em breve deveriam encerrar aquela mesa para dar prosseguimento à programação.
Quando foram retomadas as inscrições para perguntas, um rapaz recebeu o microfone
e informou que não queria “causar polêmica” ou “contenda”. Mas precisava se posicionar.
Era “missionário” e queria dizer que não tinha “ódio de homossexuais”, que tinha amigos
com esta orientação e era membro de uma denominação que podia ser freqüentada por
pessoas que quisessem continuar homossexuais. Esses indivíduos não seriam expulsos de
sua igreja. Contudo, queria citar passagens bíblicas nas quais havia referência à
homossexualidade como desagrado a Deus. Passou então a listar os trechos que conhecia:

59
Gênesis, capítulo dezenove, versículo quatro e cinco; Juízes, capítulo dezenove, do
versículo vinte em diante e Levítico, capítulo dezoito, versículo vinte e dois. As duas
primeiras referiam à destruição de Sodoma e Gomorra e a última ensinava que homens que
se deitam como se fossem mulher cometem “abominação” contra o Senhor. .
Em meio ao debate, Rosangela Justino, confrontada por vários participantes, inclusive
homossexuais, pediu que lhe fosse entregue artigos ou qualquer material que comprovasse
que uma pessoa “nasce homossexual”. Afirmar que as pessoas nascem gays era uma
irresponsabilidade. Outros argumentos foram evocados em ambos os lados da controvérsia
mas não me deterei neles. Ao fim do debate, à porta do auditório, formaram-se pequenos
círculos, onde a controvérsia prosseguia.
Eu conversava com dois amigos que comentavam o desenrolar dos acontecimentos.
Um deles confidenciou quase ao meu ouvido que um dos rapazes que acompanhava a
psicóloga, possivelmente, um “ex-homossexual” não tirava os olhos dele, paquerando-o.
Por este motivo, não acreditava que existissem pessoas curadas. Dei uma pequena risada.
Nossa atenção foi atraída por uma conversa que acontecia entre um dos expositores (um
antropólogo), um militante e Rosângela Justino. Nos integramos ao grupo e, de uma forma
discreta, trocamos algumas palavras.
O militante indagava pessoalmente a Rosangela porque os religiosos insistiam em
contrariar a expansão das leis em favor dos homossexuais. Eles não tinham o direito de
decidir sobre a sua liberdade de viver e constituir um projeto de vida com quem quisesse.
Ela argumentou que ele poderia sim, viver com uma pessoa do mesmo sexo, mas essas leis
confrontavam a família cristã. O seu direito não poderia impor-se sobre o direito de outras
pessoas. O antropólogo interveio nesse momento, confrontando a religiosa e informou-lhe
que na França a união civil fora aprovada e nem por isso a família se extinguira. Ela
declarou, com cara de espanto, que a coisa estava pior do que pensara. Desse jeito, em
breve homossexuais brasileiros estariam reivindicando a posse de crianças. O debate
prosseguiu sem trégua, até que alguém da organização do evento pediu que fizessem
silencio, pois a conversa atrapalhava a apresentação que se iniciara.

60
1.5. NOVOS MILITANTES DA PUREZA SEXUAL?

Em um primeiro olhar, o debate sobre a cura da homossexualidade colocou em relevo


a propalada tensão entre religião e exercício da sexualidade (Weber, 2002). Contudo, esta
oposição é compreendida como constructo social: “a preocupação explícita com a relação
entre sexualidade e religião é uma das características mais específicas da visão de mundo
Ocidental moderna” (Duarte, 2005: 137). O confronto entre “movimentos de apoio” e
representantes dos direitos dos homossexuais permite refletir sobre o caráter culturalmente
arbitrário da valorização da sexualidade moderna.
A partir dessa perspectiva, o recurso à oposição moderno-tradicional dissimularia as
micro-relações de poder implicadas nas contendas descritas. É aos olhos de um outro
‘moderno’ que a atitude evangélica apresenta-se como ‘medieval’ ao advogar o controle
sobre si na esfera da sexualidade. Por outro lado, mudanças culturais que afetam a
sociedade, relacionadas à separação entre sexualidade e reprodução, e à aceitação social das
sexualidades dissidentes, são percebidas por religiosos, como “decadência moral” e
dissolução dos valores da família. Partindo desta visão, estes agentes sociais se engajam em
missões pelo ‘resgate da heterossexualidade’, considerando-se portadores de valores
tradicionais ameaçados. Nesse sentido, o ‘medo’ de uma “desconstrução social”, evocado
nas falas religiosas (medo do “extermínio da heterossexualidade”, da proliferação da
“pedofilia”, da expansão da AIDS, da destruição da família”) é passível de entendimento.
A partir destas considerações, cabe indagar: o que este embate ensina sobre as atuais
configurações do religioso e da sexualidade? Em que cenário cultural é possível que, a
partir da afirmação/negação de que desejos/impulsos/orientações sexuais são substâncias,
determinados sujeitos sejam identificados por outros como portadores de homofobia? O
paradoxo é bom para pensar sobre a existência e recriação de normatividades em torno das
condutas sexuais.
A questão será examinada a partir da compreensão do fenômeno em seu aspecto mais
evidente: a contemporaneidade assiste a um forte aumento das demandas de significação
dirigidas à sexualidade (Bozon, 2004: 152). Não se trata de uma cultura Ocidental moderna
apagando as regras do exercício da sexualidade, mas da emergência de outras formas de

61
controle; de uma proliferação de discursos que prescrevem um declínio das normas
absolutas e da construção de cenários culturais complexos. 45 Seguindo esta pista, é possível
contextualizar a emergência dos discursos religiosos no interior de dispositivos de
gerenciamento da sexualidade que incitam a falar sobre o sexo. É no bojo desse processo de
pluralização das normas que as questões da intimidade e sexualidade são colocadas na
ordem do dia, culminando na emergência da noção de ‘direitos sexuais’.
A inclusão da sexualidade na pauta dos direitos humanos se dá nos anos 1990. No
Brasil, é incorporada por meio de um combate aos processos de estigmatização que incidem
sobre o que viriam ser denominadas “minorias sexuais”, inclusive a discriminação por
orientação sexual (Vianna, 2004: 40). Jeffrey Weeks (2001), ao debater a emergência de
discursos alternativos em torno de sexualidades não-heterossexuais, sugere haver afinidades
estruturais entre posicionamentos antagônicos. Enquanto alguns atores adotam posições
morais mais conservadoras, pressupondo o sexo como algo que deve ser objeto de rígido
controle e contenção, para outros, o desejo sexual é visto como uma energia benigna, que
demanda ‘liberalização’. Ambas as abordagens “pressupõem a força da sexualidade e
tomam como dado seu efeito perturbador” (Weeks, 2001: 74). Os dois lados investem em
formas distintas de gerenciamento da intimidade.
Sob essa interpretação, a oposição conservador-liberal, tal como se apresenta no
embate sobre a cura, dissimula a existência de duas normatividades que buscam distintas
estratégias de controle. O enfrentamento apresentado diz respeito a dinâmicas de poder,
que marcam a posição do outro como domínio de abjeção (Butler, 2001). No confronto
com a alteridade, por vezes religiosos enunciam que a homossexualidade não existe
enquanto substância. Ela (a orientação homossexual) é destituída de materialidade, em um
processo de apagamento expresso, por exemplo, na rejeição do sufixo “–dade”, que
conotaria um atributo da pessoa, em prol sufixo “-ismo”, que expressa práticas ou hábitos
contingentes, que poderiam ser abandonados. Por outro lado, a orientação heterossexual

45
Michel Bozon (2002) ressalta os efeitos dos processos de individualização nas definições da sexualidade
moderna que não implica afrouxamento das regras, mas uma proliferação discursiva que enseja novas formas
de controle e gerenciamento do sexo. É neste sentido que tanto o discurso sobre a cura (que se pauta em
tecnologias de si e formas de subjetivação modernas) como sua recusa a partir da afirmação dos ‘direitos’ das
minorias sexuais constituem normatividades possíveis no horizonte cultural contemporâneo.

62
desponta como substância, ancorada em uma perspectiva naturalista, que apregoa a
existência de uma essência heterossexual dormente, a ser despertada pela “cura espiritual”.
O mesmo poderia ser observado acerca dos sujeitos que rejeitam a possibilidade de
reorientação sexual. O cultivo de valores como prazer e liberdade, associados à concepção
da sexualidade como instância autônoma, desentranhada da ordem moral abrangente,
percebem as zonas de interseção como espaços simbólicos ‘perigosos’, cuja mera existência
é ameaçadora. Do ponto de vista desses atores, o “ex-homossexual” é figura privada de
substância e de existência: auto-engano fadado ao fracasso, ou até, uma fraude. Como
sugere Judith Butler (2001: 156), o processo de constituição de sujeitos na reiteração de
discursos normativos se dá “(...) através da força da exclusão e da abjeção, uma força que
produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal,
‘dentro’ do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio”.
Do ponto de vista das definições sociais da religião em contextos contemporâneos, o
debate sobre a legitimidade dos movimentos de apoio se assemelha às discussões sobre as
seitas no Brasil e na França (Giumbelli, 2002a; Birman, 2006). Nestes conflitos, há o
cultivo de uma representação de tais grupos, como contrários à liberdade e autonomia dos
indivíduos, incorrendo em ‘suspeitas’ quanto aos perigos que representariam para as
liberdades individuais. A controvérsia sobre a cura da homossexualidade no Brasil e os
conflitos aqui narrados atualizam as oposições entre “modernos e não modernos”, entre
“obscurantismo” (religioso) e ideais modernos (laicos) de uma sexualidade desentranhada
de ordens morais abrangentes (Duarte, 2005). Nesta polêmica, a atuação e a prática pastoral
de cura são problematizadas, como opostas ao movimento global da história, de crescente
valorização das liberdades individuais e da “diversidade sexual”.
De acordo com Birman (2005), em contextos modernos contemporâneos, alguns
grupos identificados como seitas têm sido acusados de “atualizar tudo aquilo que pertencia
ao campo das sombras, aos resíduos jamais inteiramente destruídos dos elementos não
modernos nas sociedades contemporâneas” (Birman, 2005: 3). Do mesmo modo, é possível
compreender a intervenção de grupos religiosos na esfera da sexualidade (e a recusa de seus
discursos por alguns atores sociais) como tentativas de regular, definir e fixar o lugar do
religioso e da sexualidade na sociedade contemporânea.

63
A militância contra os projetos de Lei que apóiam tais iniciativas evoca, como
argumentos centrais, ora os princípios da laicidade (religião não deve se imiscuir na esfera
pública, visando regular dimensões da vida privada), ora da cientificidade (a prática em
questão não tem suporte da ciência, consistindo em curandeirismo). A religião é
reconhecida como uma dimensão específica e autônoma, sendo a atuação dos movimentos
de cura condenável, por misturar religião e misteriosas técnicas de cura. Caso exemplar é a
recusa de identificar como “psicologia” as práticas profissionais de sujeitos que atuam em
terapias reparadoras. A ação protagonizada pelo Conselho Federal de Psicologia, através
da Resolução 01/1999, sublinha que a associação entre psicologia (ciência) e religião é
desaconselhável, segundo determinada constelação cultural. A exemplo das discussões
sobre as seitas, o debate implica mecanismos de regulação da religião (e de outros planos
da vida social), como forma de garantir a ‘pureza’ das instituições modernas e o combate a
aspectos considerados obscurantistas, que ameaçam contaminar seus princípios racionais. A
tensão entre obscurantismo e luzes é instrumento de identificação de grupos e indivíduos
nos tempos atuais (Birman, 2006). A oposição entre movimentos de apoio (religião) e
militantes dos direitos dos homossexuais envolve o reconhecimento público do poder
religioso na recriação de preconceitos, estigmas e estereótipos, considerados ameaçadores
da igualdade entre pessoas heterossexuais e homossexuais.
A compreensão em torno das formas como se delineia um cenário cultural, no qual a
orientação sexual se torna uma questão de direito, é possível a partir da perspectiva da
existência de um processo de naturalização da homossexualidade e dos “homossexuais”. .
As raízes dele constam das discussões, intervenções e teorias produzidas pela medicina e
pela sexologia, a partir do início do século XX. Peter Fry (1982) desenvolve o argumento
sobre a homossexualidade masculina no Brasil. No início do século passado, a medicina e a
sexologia embrionária, acompanhando as discussões européias que buscavam regular as
relações sexuais fora do casamento, instituíram uma preocupação específica com as causas
da homossexualidade e das sexualidades dissidentes. Foram configurados métodos de
correção e controle, o que propiciou a possibilidade de tratamentos médico-pedagógicos e
terapias. Nesse momento histórico, foram discutidas as influências biológicas e sociais do
desejo pelo mesmo sexo, prevalecendo uma visão patologizante. Nos saberes da medicina e

64
da sexologia atuaram os “militantes da pureza sexual”, definindo e demarcando os terrenos
legítimos e ilegítimos da sexualidade. Apesar disso, diferentes correntes da sexologia
buscaram uma visão alternativa da homossexualidade, justamente a partir dos argumentos
46
que valorizam seu caráter inato, construindo uma visão mais positiva da mesma. Não se
trata aqui de explorar a fundo tais concepções e teorias, mas de sinalizar para a emergência
de uma discussão específica, cujos desdobramentos serão responsáveis pelo deslocamento
da discussão em torno do pecado e a alocação do problema no campo da ciência e da
natureza.
Em termos de processos sociais, ocorre uma progressiva naturalização da
homossexualidade, oriunda de uma politização (Fry, 1982; MacRae, 1990). A noção de
orientação sexual e a conseqüente visão de mundo em que torna este um traço definidor das
subjetividades integram um processo amplo de fabricação da sexualidade moderna,
insuflado por efeitos inesperados em função de uma politização da esfera sexual. A atuação
política de sujeitos e de grupos empenhados na luta política pela igualdade tem lugar entre
feministas e homossexuais, concomitantemente. Emerge um ideal de democracia sexual,
atrelado à difusão de um ideário individualista na sociedade brasileira, a partir dos anos
1960 (Fry, 1982: 110). Recentes pesquisas situam as transformações que vêm ocorrendo,
no que tange ao reconhecimento e à visibilidade das minorias sexuais na esfera pública, em
torno das discussões contemporâneas sobre união civil entre pessoas do mesmo sexo
(Mello, 2005; Vargas e Grossi, 2003), homoparentalidade e novos arranjos familiares
(Uzziel, 2004; Grossi, 2003) e da pluralização das identidades coletivas (Facchini, 2005).
Em cena, a categoria “direitos sexuais” enfatiza a dimensão da sexualidade como questão
de direitos humanos (Viana e Lacerda, 2004). 47 Em contraposição a este reconhecimento e
visibilidade, surgem vozes dissidentes. A esfera pública passa a ser palco de contendas.

46
Refiro-me aos trabalhos de sexólogos envolvidos na descriminalização da homossexualidade em alguns
contextos nacionais como o caso da Alemanha. Fry cita Ulrichs e Hirshfeld como militantes empenhados na
construção de uma visão alternativa da homossexualidade. Ambas as correntes, tanto a dos militantes da
pureza sexual como àquelas envolvidas na sua contramão, foram protagonistas das classificações sexuais que
colaboraram na construção da sexualidade moderna (Fry, 1982: 103).
47
O conceito de minorias sexuais emerge no debate das ciências sociais recentemente de forma a incluir uma
pletora de distintas formas de desejos. Com semelhante uso político, é também recente a noção de diversidade
sexual. Ambas as categorias são cunhadas de forma a colaborar no descolamento das formas de exercício da
sexualidade de convenções culturais que valorizam a divisão das pessoas entre homossexuais e
heterossexuais.

65
Na análise desses enfrentamentos, desponta uma tensão entre direitos humanos e
religião, por meio de lutas no espaço público, em que certos segmentos religiosos se
empenham em obstruir a aprovação de Projetos de Lei que contemplem os direitos civis das
minorias sexuais, como no caso da Parceria Civil. Contudo, as relações entre direitos
humanos e religião são plurais, podendo haver tanto a apropriação desses discursos como a
rejeição e tensão. O engajamento de alguns segmentos religiosos na luta contra a AIDS é
exemplo de uma atuação política alinhada aos direitos humanos (Seffner, 2007; Galvão,
1997). Não é possível aprofundar a análise aqui, mas cabe ressaltar que as relações entre
direitos humanos e religião podem se traduzir em combinações, apropriações ou tensões.
Em termos de um cenário global, alguns autores sugerem o cultivo de uma cultura dos
direitos humanos relacionados às questões de gênero, raça e etnia (Correa, 2006; Segato,
2006). Desdobramentos recentes ocorrem a partir da inclusão da orientação sexual na pauta
de convenções internacionais e em contextos locais. Sônia Correa (2006: 102), ao refletir
sobre os paradoxos das lutas políticas em defesa de certos sujeitos sexuais, diagnostica que
as questões de orientação sexual enfrentam maior resistência quanto à sua inclusão em
tratados e convenções internacionais, relacionadas a posturas religiosas.
A difusão desses discursos políticos evidencia o problema da universalização dos
direitos humanos, diante da diversidade de comunidades morais e de contextos locais
(Segato, 2006). O tema é enfrentado pela antropóloga Rita Laura Segato, que chama a
atenção: nas atuais discussões sobre raça, etnia e gênero, um costume, crença ou padrão
moral se torna um ‘problema’ quando viola os direitos fundamentais, definidos pelo
sistema jurídico nacional ou os direitos humanos internacionalmente reconhecidos (Segato,
2006: 209). É nesse cenário social que direitos e leis entram em tensão com costumes e
tradições referentes à erradicação das diferenças de gênero, raça e etnia. Uma diversidade
de visões de mundo e de sistemas de valores aponta para lutas simbólicas importantes na
contemporaneidade. As questões do aborto e do “casamento gay”, por exemplo, são
reveladoras dessas tensões sociais: “neles está em jogo não meramente a legislação sobre as
práticas concretas – capazes de encontrar caminho com ou sem a lei – mas a inscrição das
mesmas e, com isso, o próprio status de existência e legitimidade, na nação, das
comunidades morais que as endossam” (Segato, 2006: 212).

66
Carrara (2005:20) observa que, no Brasil, há um processo relevante de redefinições
em termos de uma ética sexual (o que deve ou não ser tolerado no âmbito da sociedade
inclusiva) e no campo das políticas sexuais (o que deve ser criminalizado, amparado sob a
forma de lei civil e políticas públicas). Intensos debates estão em curso, no que concerne à
união civil, à violência contra mulheres e “minorias sexuais”. Este autor observa uma
postura liberal frente às sexualidades dissidentes no Brasil, quando comparada a outros
contextos. No país, a homossexualidade teria deixado de ser crime no final do século XIX,
enquanto a prostituição nunca foi objeto passível de punição pela Lei. O modelo brasileiro
de combate à AIDS é reconhecidamente um dos mais ‘avançados’ no cenário mundial,
propalando o respeito à diversidade sexual e a desconstrução de estereótipos. Apesar disso,
se apresentam resistências às leis que visam descriminalizar o aborto e regular a união civil.
O reconhecimento público e legal das escolhas sexuais faz parte de um amplo processo em
curso de transformações na cultura e na política sexual. Diante desse quadro, respostas
religiosas são produzidas no confronto com estas transformações. Trata-se de uma dinâmica
de ações e reações em cadeia, a partir das quais surgem outros atores, argumentos e se
instituem novas situações.
A controvérsia examinada é expressiva da tensão produzida pela inclusão do tema
orientação sexual nessa agenda política. Nesse contexto, a presença reivindicada pelos
homossexuais no campo da cidadania é percebida por religiosos como perigosa. Tal atitude
poderia ser descrita em termos de exclusivismo, uma postura bélica, face ao que ameaça
valores e dogmas da religião. Nessa arena discursiva, a personagem do “homossexual
promíscuo” reforça a percepção desses indivíduos como perigosos e contrasta com a figura
do ex-homossexual, indivíduo submisso aos códigos e normas religiosos.
Ao atribuir à homossexualidade tal caráter de ameaça, e se posicionar na luta em
prol de sua retração da esfera social, indivíduos atuantes em ministérios de apoio
problematizam a ‘gênese’ da homossexualidade, revelando discursos quase homólogo
àqueles enunciados pelos sexólogos do início do século passado. A preocupação exaustiva
com as sexualidades periféricas origina a criação de novos métodos educativo-
pedagógicos, evidenciando complexos processos de re-patologização dessas práticas, a
partir de definições de comportamentos ‘saudáveis’ e ‘sadios’, por oposição às

67
sexualidades ‘desordenadas’ e ‘desviantes’ da “normalidade”. Uma associação entre prazer
e perigo é construída, a partir da imagem do homossexual como sujeito ‘em perigo’, que
deve ser resgatado de uma vida de excessos. Como indivíduo portador de uma
ambigüidade, cujo lugar na sociedade é liminar, deverá ser objeto de cuidados especiais.
Este ‘acolhimento’ terá como objetivo principal a transformação e, assim, os perigos do
contágio serão neutralizados. Como assinala Mary Douglas (1976: 139), uma pessoa com
poderes de poluição, que desenvolveu uma ‘condição indevida’ ou cruzou uma linha que
não deveria ter sido cruzada será manipulada e subjugada. Fonte de desordem, será objeto
de técnicas de controle. A sexualidade desses indivíduos deverá ser controlada de perto, por
mecanismos que objetivam purificação e adequação aos padrões hegemônicos (redes de
apoio e ajuda mútua, aconselhamento pastoral, terapias reparativas, rituais de cura e
libertação).
Para uma compreensão acurada, é preciso ampliar o escopo de visão, posto que o
religioso se configura como empreendimento produzido em certo contexto. A religião não
está apartada do social, nem constitui domínio autônomo (McCutcheon, 1997). Ainda que
uma representação moderna do religioso postule sua separação da ciência, da política e da
arte (Weber, 2002), estas esferas estão em permanente interação. As apropriações e/ou
rejeições de conteúdos, teorias e noções de outros campos discursivos enfatizam suas
mediações com distintos saberes e poderes (Steil, 2005; Giumbelli, 2002; Semán, 2000;
Birman, 1996). Desta forma, há discussões em torno da gênese desse comportamento entre
psicólogos cristãos, médicos e psicanalistas evangélicos, cuja formação secular autoriza a
elaboração de diagnósticos, a implementação de ‘tratamentos’, colocando sua competência
profissional a serviço da missão religiosa. Observa-se, na noção de “cura espiritual”, a
íntima articulação entre religião, ciência e magia. Ainda que uma mudança do
comportamento sexual deva ser colocada em prática, pela re-socialização de gênero, a
retração do impulso e do desejo homossexual somente ocorreria pela “cura espiritual”. A
categoria assinala uma bricolagem entre religião e psicologia, ao combinar “uma base
bíblica com a linguagem mapeadora do self, da auto-imagem e da identidade” (Lewgoy,
2005: 10). No centro do problema, as noções de saúde e de bem-estar emocional, as
técnicas advindas de práticas psi são importadas pela religião. Contudo, esses aspectos

68
serão aprofundados no capítulo seguinte, quando examinarei a literatura religiosa e as
noções de restauração sexual e regeneração da homossexualidade.

1.6. BATALHA ESPIRITUAL PARA UNS, LUTA POR RECONHECIMENTO PARA


OUTROS

Um sobrevôo sobre esses discursos e relações permitiu uma compreensão mais


sociológica acerca dos objetos da disputa, evidenciando os posicionamentos em torno desta
controvérsia. Neste trabalho foi abordada a maneira como determinados discursos sobre
“reorientação sexual” são percebidos como “homofóbicos” por certas personagens sociais.
Em contraposição, grupos e sujeitos que defendem a mudança “da homossexualidade para
a heterossexualidade” negam a condição plena de ‘sujeito moral’ aos indivíduos que
aderem a identidades ‘não-heterossexuais’: na qualidade de ‘pessoas incompletas’, os
homossexuais são tomados como objeto de cuidado ou fonte de perigo. Assim, a idéia de
‘direitos’ das minorias sexuais seria desprovida de sentido pelas perspectivas religiosas,
uma vez que, a partir desta grade de inteligibilidade, é impossível concebê-los como
sujeitos sociais e políticos singulares.
Uma postura exclusivista orienta as ações e reações de ambos os lados, evidenciando
enunciados divergentes acerca da pessoa humana, a partir do quais indivíduos se articulam
em blocos táticos distintos de uma guerra: “batalha espiritual” para alguns, luta pelo
reconhecimento para outros. A partir de um entendimento amplo do religioso, como visão
de mundo estruturante (Duarte, 2005) é possível compreender que estas posições
antagônicas se fundamentam em um mesmo horizonte cultural, sendo representativas do
valor alocado à sexualidade por ambas as posições. A controvérsia só é possível em um
cenário que elege a sexualidade como dimensão definidora do sujeito. Nesse sentido, os

69
posicionamentos de ‘religiosos militantes’ e ‘militantes religiosos’ podem ser interpretados
como expressivos de fenômenos de reentranhamento da sexualidade em uma ordem moral
abrangente. Os conflitos analisados realçam, como problemas contemporâneos, as tensões
entre exercício da sexualidade e controle institucional, dogmas religiosos e expressões de
homofobia, liberdade religiosa e gerenciamento das sexualidades.
A questão central em torno da qual todo o debate se desencadeia (uma orientação
sexual pode ou não ser curada?) reforça a orientação sexual como critério relevante e
preeminente, na categorização de pessoas. O uso desta noção por distintos sujeitos aponta
um paradoxo. Ao negar que a orientação homossexual seja atributo inato, os religiosos
operam com um discurso que reitera a crença de que o sexo biológico (objeto de desejo) é
primordial para o estabelecimento da verdade de si. Este discurso atua a partir do mesmo
registro da norma que opõe pessoas homossexuais a heterossexuais - o que implica em uma
concepção naturalizada das diferenças. Tal contradição evidencia processos complexos de
produção da diferença em constelações culturais contemporâneas, perpassados por distintos
poderes, discursos, saberes e convenções na construção da igualdade.
Nas disputas sobre o tema entrecruzam-se dimensões fundamentais da vida moderna
como direitos, sexualidade, ativismo político, desigualdades sociais, o papel da religião na
contemporaneidade. Através dessas tensões foi possível visualizar um amplo cenário
cultural no qual a sexualidade é reconhecida como importante esfera da vida humana. Ela é
interpelada por grupos religiosos ao mesmo tempo em que se torna matéria de interesse
público através de formulações de leis. De todo modo, é fácil delinear os contornos do que
Foucault nomeou como “uma explosão discursiva”, que afeta também o campo religioso
(Foucault, 1997).
Esta questão mais ampla não necessita ser resolvida aqui. Aliás, ela abre nossa
reflexão, colocando como um problema as modernas definições sociais do que seja a
sexualidade ou a religião.
De ambos os lados da controvérsia ocorre uma problematização das fronteiras entre o
natural e o cultural. Para os opositores das propostas de cura, a natureza encontra-se mais
próxima da idéia de orientação sexual como dimensão não passível de mudança e
reestruturação. Ela é um fato concreto da vida, irreversível, embora possa reconhecer-se

70
que a sexualidade é complexa, não importa refletir sobre as causas de uma orientação
sexual. Ela apenas existe. Esses sujeitos se ancoram em uma reflexão sociológica sobre as
hierarquias sociais para afirmar a igualdade entre pessoas homossexuais e heterossexuais.
Recorre-se à ciência para comprovar que uma orientação sexual não se muda: técnicas
religiosas não são vistas como práticas científicas, mas “charlatanismo” e “curandeirismo”.
Do outro lado, entre religiosos, o endosso de que a orientação sexual é fruto de um
aprendizado passível de ser revertido é embasado por um uso retórico de argumentos das
ciências humanas, a partir do qual se profere a fala de que a homossexualidade é uma
“construção cultural”. Apesar disso, esse lado da disputa apela às explicações cosmológicas
e às revelações divinas para afirmar que Deus criou homens e mulheres e em decorrência
disso todos “nascem heterossexuais”. Sendo assim, as causas que levam uma pessoa a
tornar-se homossexual podem e devem ser reveladas, por meio de terapia, confissão,
aconselhamento e rituais. O tema do naturalismo recobre ambos os lados da controvérsia,
evidenciando um importante discurso do cenário cultural moderno que se aplica, dentre
outras dimensões, à sexualidade (Duarte, 2005).
Tomando como ponto de partida essa caracterização muito geral, a proposta será
perseguir os temas aqui levantados ao longo da tese. O segundo capítulo aprofundará a
reflexão sobre as formas como a homossexualidade é significada em crenças evangélicas.
Partindo da idéia de que essas práticas são construídas culturalmente, procuro examinar a
forma como essa religião compreende a homossexualidade. Primeiro recorro ao exame de
algumas pesquisas e, por meio de um diálogo com a literatura, reflito sobre os nexos entre
religião e homossexualidade nesse contexto. Em seguida, parto para descrições etnográficas
e para o exame da literatura religiosa que focaliza o tema, buscando inserir a reflexão em
um cenário cosmológico mais amplo. Dessa forma, procuro responder a seguinte
indagação: qual o lugar da homossexualidade entre outros pecados sexuais em certos
discursos religiosos contemporâneos? De que modos crenças evangélicas significam e
atribuem sentidos ao desejo homoafetivo?

71
Figura 1:

A terapia “ajuda” gays a se tornarem “normais”, reduzindo maneiras e ‘jeitos’ afeminados dos homossexuais
masculinos. Há o suposto da homossexualidade como efeminação. Revista Época, edição 1357, 04/10/95.

72
Figura 2:

Matéria de capa noticia a ‘transformação’ de uma travesti em um ex-homossexual.


Revista Graça, ano 2, nº 16.

73
Figura 3:

Periódico evangélico dedica um número inteiro ao tema da ‘mudança da homossexualidade à


heterossexualidade’. Nela, defende-se que a missão da igreja evangélica é anunciar que a homossexualidade
não é o “mais abominável pecado”. A suposta ‘tolerância’ é mecanismo de atração de gays e lésbicas para
regulação e regeneração moral e não sinal de ‘aceitação’. Revista Ultimato, ano XXXV, nº 284.

74
Figura 4:

Livro publicado pela CPAD sob a forma de “testemunho” de um ex-homossexual. O autor é missionário da
Assembléia de Deus atuante em trabalhos pastorais voltados à conversão de gays ao evangelho.

75
Figura 5:

Material de divulgação do Movimento pela sexualidade sadia (MOSES), um “ministério de ajuda aos
homossexuais”. O grupo sediado no Rio de Janeiro defende o acolhimento para ‘retorno’ à
heterossexualidade.

76
Figura 6:

Verso do panfleto. Nele consta indicação e outros “ministérios de ajuda”: as igrejas e “grupos de apoio”
devem ajudar a esclarecer as ‘causas’ da homossexualidade, promover palestras, aconselhamentos, capacitar
religiosos no atendimento pastoral dessa população.

77
Figura 7:

Endereços de outros “ministérios de apoio” para sair da homossexualidade são publicados em matéria de
revista evangélica. No texto há indicação de literatura religiosa que instruem no assunto. Revista Graça, ano
2, nº 16.

78
Figura 8:

Folder divulgado pelo MOSES nas Paradas GLBT. No primeiro quadro, gays e lésbicas desfilam na Parada.
No segundo, “gotas de sangue” caem sobre os participantes, os remindo de seus pecados. No quadro final, a
Avenida está vazia, indicando que todos foram “resgatados do império das trevas”.

79
Figura 9:

O tema da “criminalização da homofobia” aparece como perseguição do movimento gay aos evangélicos e
suas pregações. A Lei impediria o trabalho pastoral das missões de ‘resgate da heterossexualidade’. Revista
Eclésia, ano 9, edição 99.

80
Figura 9:

O tema do “medo” dos homossexuais motivou a publicação de inúmeras matérias na imprensa religiosa que
demonizam o “movimento gay” e todo sujeito ou grupo ligado à luta pelas “minorias sexuais”. Revista
Eclésia,

81
Figura 10:

Livreto divulgado no âmbito do Corpo de Psicólogo e Psiquiatras Cristãos e do Grupo de Amigos (Rio de
Janeiro): o texto enfatiza que subjacente a toda ‘máscara homossexual’ há uma natureza heterossexual.

82
Figura 11:

Livro divulgado pela psicóloga cristã, com textos nacionais e estrangeiros que ensinam homossexuais a lidar
com a atração pelo mesmo sexo. O conteúdo contempla a teoria da origem demoníaca da homossexualidade e
versões psicológicas. Todas defendem: o homossexual pode ‘mudar’.

83
CAPÍTULO 2

OS EVANGÉLICOS E A HOMOSSEXUALIDADE

O homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente.


Foucault (1997)

No capítulo anterior apresentei os embates entre grupos religiosos e certos segmentos


da sociedade em torno da homossexualidade e dos “homossexuais”. Argumentei que a
análise deste conflito sinalizava para mudanças culturais, que afetam as definições sociais
da religião e da sexualidade. Sublinhei que na medida em que cresce a visibilidade e o
relativo reconhecimento de modelos de sexualidade não convencionais, há tanto o
recrudescimento de posturas que negam a condição de sujeitos a esta população, quanto a
emergência de vozes dissidentes, no cenário religioso. Neste capítulo, analiso a forma como
a vertente evangélica contribui para uma construção social da homossexualidade. Dialogo
com a literatura acadêmica e analiso o discurso elaborado por este campo religioso.

2.1. OS ESTUDOS ACADÊMICOS, A PERSISTÊNCIA DA REJEIÇÃO SOCIAL E A


PRODUÇÃO DA HOMOSSEXUALIDADE

Estudos acadêmicos empreenderam análises pontuais sobre os nexos entre


homossexualidade e religiões cristãs. A pesquisa “Novo Nascimento” (Fernandes, 1998) 48
- realizada pelo Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER) na região do Grande Rio
49
– diagnostica um vertiginoso crescimento na população evangélica pentecostal -
48
A pesquisa consistiu em amplo mapeamento da expansão religiosa dos evangélicos no Rio de Janeiro,
através de entrevistas com fiéis de diferentes denominações evangélicas. Um dos objetivos foi verificar o
impacto da religião na esfera pública (a política) e na privada (no gerenciamento das práticas reprodutivas e
sexuais dos fiéis). Os dados são pioneiros na caracterização das diferentes formas de experiência religiosa,
considerando as tendências do campo.
49
Pesquisa anterior mostrou a existência de 4.000 instituições evangélicas nessa área. Recorrendo aos
registros publicados pelo Diário Oficial, o estudo revelou a criação de uma igreja evangélica (pentecostal) a
cada dia útil, principalmente na periferia da cidade, sendo o público constituído principalmente por pessoas de

84
particularmente nas denominações Assembléia de Deus (AD) e Igreja Universal do Reino
de Deus (IURD) 50. O estudo investigou mudanças e permanências na moral sexual cristã,
abordando questões sobre aborto, infidelidade conjugal, divisão do trabalho no lar,
‘acolhida’ de pessoas homossexuais no culto, dentre outras. Ainda que os resultados
indiquem uma minimização da assimetria entre os gêneros, o discurso igualitário nesse
contexto não caminha pari passu com as noções de liberação dos costumes e de liberdade
sexual. As respostas relativas aos temas do aborto, homossexualidade e escolha sexual
sugerem resistência às mudanças sociais (Mafra, 1998: 226-229).
A pesquisa indagava sobre possíveis motivos que levariam a punição ou afastamento
de um membro das atividades da igreja. A questão da orientação sexual dos fiéis emergiu
nas respostas.51 Os resultados indicaram maior índice de rejeição da homossexualidade
(53%) e adultério (52%). Outros motivos também foram mencionados, mas com relativa
‘tolerância’: 33% e 8%, respectivamente, afirmou que afastaria da congregação uma pessoa
que fosse mãe solteira ou tivesse Aids. Uma interpretação mais acurada dos resultados
revela que a despeito de uma ênfase no discurso de acolhida, permanece a idéia de que tais
práticas são pecaminosas. Assim, ainda que a Igreja Universal do Reino de Deus se
destaque em um conjunto mais amplo de comunidades religiosas pela maior ‘aceitação’ de
homossexuais em seu quadro de fiéis (76% dos entrevistados dessa igreja afirmou que
jamais excluiria um homossexual do espaço congregacional), esta atitude deve ser
entendida não como tolerância para com a prática homossexual, mas como uma percepção
de que aqueles que a exercem devem ser alvo de um cuidado pastoral (Fernandes et al,
1998: 117).
Machado (1996) aponta conclusões congruentes, analisando entrevistas com
52
pentecostais e católicos carismáticos no Rio de Janeiro. A autora detectou um discurso

estratos sociais mais pobres (Fernandes, 1994).


50
Estas denominações encontram-se, respectivamente, em primeiro e segundo lugar no ranking das igrejas
evangélicas, seguidas pela Igreja Batista. De acordo com os resultados, o Rio de Janeiro pode ser considerado
o estado ‘menos católico’ do país, considerando-se a crescente expansão dos evangélicos (Novaes, 1998: 9).
51
Dentre as alternativas oferecidas estavam: fiéis “homossexuais”, “pessoas adúlteras”, “mães solteiras” ou
“aidéticos”.
52
Com ênfase na sexualidade feminina, a pesquisa buscou verificar os efeitos da adesão e conversão religiosa
sobre as configurações familiares e os processos de negociação entre os gêneros. Decisões reprodutivas e
exercício da sexualidade foram objetos de investigação nas entrevistas com homens e mulheres (de diferentes
segmentos sociais) com filiação religiosa pentecostal e católica carismática, no Rio de Janeiro.

85
relativamente mais ‘tolerante’ à homossexualidade entre pentecostais da Igreja Universal,
que afirmaram evitar julgamentos morais sobre essa prática. No entanto, identificou uma
rejeição ao comportamento homossexual, enraizada na cosmologia religiosa que atribui à
agência de demônios a responsabilidade por atos ´desviantes´ dos indivíduos (Machado,
1998).53
A persistência de uma rejeição da homossexualidade em crenças evangélicas é
realçada nos resultados de um distinto estudo qualitativo e quantitativo realizado em três
metrópoles brasileiras (Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador). A pesquisa GRAVAD
explorou os nexos entre percepções da sexualidade e adesão religiosa entre jovens. A
investigação multicêntrica focalizava questões relacionadas ao exercício da sexualidade e
gravidez na adolescência. Produziu informações relativas à aceitação social da diversidade
sexual, comparando as variáveis de gênero, classe e religião (Rohden, 2005). Com relação
à opinião dos fiéis sobre a interação sexual entre pessoas do mesmo sexo, identificou-se um
relativo repúdio à homossexualidade. Entre jovens de classe popular, prevaleceu maior
aceitação das mulheres, tanto da homossexualidade masculina como da feminina. Outra
pergunta indagava sobre a homossexualidade masculina: 74% das católicas, 69.2% das sem
religião e 42.2% das pentecostais responderam que estas pessoas podem “transar com
quem desejam”. É semelhante o grau de aceitação no caso das mulheres homossexuais. Já
70.2% das católicas, 68.5% das sem religião e 42.1% das pentecostais responderam que as
mulheres homossexuais podem transar com quem desejam. Entre os homens, 43 % dos
católicos, 47% dos sem religião e 30.9% dos pentecostais defenderam que “homossexuais
masculinos podem transar com quem desejam”. Também há certa convergência quando se
trata da homossexualidade feminina. Os números quanto ao mesmo tópico correspondem a
46% dos católicos, 50.2% dos sem religião e 33.1% dos pentecostais. No entanto, mesmo
que as diferenças percentuais sejam tênues, a população masculina parece ser mais

53
Esse discurso aparentemente ‘tolerante’ pode ser analisado como parte de um dispositivo político de
incorporação de fiéis ao culto: “trata-se de uma estratégia para aumentar a capacidade de atração dessa
denominação” (Machado, 1996: 177). Em certos contextos, esse caráter potencialmente atrativo dos cultos
pentecostais é realçado por um meio social avesso a manifestações da diversidade sexual - redes sociais em
que o exercício da homossexualidade é fortemente estigmatizado, dando margem a situações de
discriminação. Face à homofobia do contexto mais amplo, tornar-se um “ex-homossexual”, promessa dos
cultos pentecostais, pode representar uma forma de escapar dos estigmas que incidem sobre as orientações
não-heterossexuais (Natividade, 2005).

86
favorável à homossexualidade feminina, enquanto as mulheres tendem a ser mais tolerantes
com a masculina. Apesar dos consideráveis índices de ‘aceitação’, há na pesquisa um alto
percentual que considera pessoas homossexuais como “doentes” ou “sem vergonha”.
Observa-se o predomínio da primeira representação sobre a segunda em todos os
segmentos. Deve-se estar atento que a investigação foi realizada com jovens entre 18-24
anos, sendo, portanto, altos índices para uma parcela da população mais sensível aos
processos modernizadores (Heilborn e Cabral, 2005: 380).
O cenário de representações até aqui esboçado pode ser contrastado a dados sobre
pertencimento e trânsito religioso entre gays, lésbicas, travestis e transexuais, fornecendo
pistas adicionais sobre como segmentos religiosos cristãos compreendem as sexualidades
dissidentes. Pesquisa conduzida no Rio de Janeiro, pelo Centro Latino Americano em
Sexualidade e Direitos Humanos, sugere que pessoas que aderem a uma identidade sexual
não hegemônica tendem a migrar da religião em que foram socializadas (católica ou
evangélica) para crenças espíritas (kardecismo e cultos afro-brasileiros) ou optar pela
desinstitucionalização religiosa.- sendo esse trânsito mais comum entre os jovens (Carrara
et al, 2004). Segundo os dados produzidos, essa tendência poderia estar relacionada ao
“caráter excludente” das religiões cristãs e à relativa tolerância atribuída aos cultos afro-
brasileiros.
A citada pesquisa GRAVAD apresenta resultados coincidentes em artigo acerca do
perfil dos respondentes com experiências homo-bissexuais.54 O recurso metodológico
empregado pelos organizadores da pesquisa foi perguntar se os respondentes já haviam tido
prática sexual com pessoa do mesmo sexo em algum momento da vida, sem que eles
reportassem necessariamente a uma identidade social “homossexual”. O emprego dessa
questão permitiu acesso ao universo de valores dos entrevistados, colocando em evidência
suas representações e percepções acerca dessa prática sexual. A comparação entre a
amostra de trajetórias homo-bissexuais com as exclusivamente heterossexuais, utiliza como
referência as semelhanças entre esses segmentos e o percentual de sujeitos criados no
catolicismo e o de sujeitos que abandonam esta opção confessional. Contudo, o percentual

54
O critério para inclusão nessa amostra foi a declaração de já ter estabelecido práticas sexuais com pessoas
do mesmo sexo em algum momento da vida (entre 3% e 4% da amostra).

87
de evangélicos é significativamente mais baixo entre a população heterossexual (8%) na
amostra relativa aos que se identificam como homo-bissexual (3%). A adesão à religião
evangélica entre as mulheres homo-bissexuais é quase três vezes menor que aquela
reportada pelas mulheres heterossexuais. A proporção de homo-bissexuais que aderem a
cultos afro-brasileiros é mais alta do que a de heterossexuais, sendo que a proporção de
mulheres homo-bissexuais (negras e oriundas de camadas populares) é o dobro da fração
homo-bissexual masculina, que reportou esta opção religiosa. Entre a população homo-
bissexual há um decréscimo da rejeição à homossexualidade, quando comparada à amostra
exclusivamente heterossexual. Ainda assim, esses resultados assinalam como a rejeição a
esta identidade pode se manifestar no discurso de pessoas que declaram já ter tido tais
práticas sexuais. Observe-se que o repúdio à homossexualidade se concentra,
particularmente, entre os respondentes homo-bissexuais do sexo masculino (38% destes),
sugerindo maior incidência de ‘homofobia internalizada’ entre estes sujeitos. As autoras
endossam a hipótese da existência de maior permeabilidade do gênero feminino às
mudanças nos costumes sexuais.
Esses resultados, quando comparados ao contexto católico, assinalam a persistência
55
da rejeição social da homossexualidade entre evangélicos. Contudo, vale frisar, há
segmentos católicos que podem se alinhar politicamente aos posicionamentos evangélicos,

55
Uma relativa tolerância católica em face de comportamentos divergentes do padrão heterossexual é
identificada por Lúcia Ribeiro (2001; 1992) que refletiu sobre as tensões que se estabelecem entre as
prescrições doutrinárias da Igreja e a prática sexual dos católicos. Inserida no bojo de profundas
transformações sociais que pluralizam os estilos de vida, a Igreja Católica brasileira atualmente é atravessada
por conflitos e contradições. Ao entrevistar sacerdotes e fiéis pertencentes a comunidades católicas da
Baixada Fluminense (Rio de Janeiro), a autora apontou o descompasso entre os discursos normativos
pastorais e a vivência cotidiana dos fiéis. Ela defende que ter em mente essa lacuna é fundamental para a
compreensão das transformações que ocorrem na instituição eclesial, no que se refere à moral sexual. Este
processo não é linear, e é referência para a problematização de temáticas como aborto, planejamento familiar
e homossexualidade – exigindo soluções de sacerdotes católicos que considerem as opções dos fiéis. Ela
refina esta análise evocando situações cotidianas nas quais o cuidado pastoral envolve adaptações das
posições oficiais e das recomendações doutrinárias. Diante do caso de um rapaz assumidamente
homossexual, o depoimento de um padre expressa sua atitude de respeito pela opção sexual deste. O clérigo
recomenda ao fiel que não se exponha, que tome as cautelas para não pegar doenças graves (Ribeiro, 2001:
104). Aqui, há uma alusão ao uso de preservativos, mesmo diante das orientações oficiais da Igreja que
recomendam a prática do celibato ou afirmam como único tipo de sexo seguro o casamento cristão. Ela
problematiza que essas apropriações do discurso religioso, contudo, estão sujeitas às dinâmicas de poder que
organizam e estruturam o campo (Ribeiro, 2001: 43-44).

88
quando está em questão a legitimidade e a visibilidade das sexualidades não convencionais
na esfera pública.
Em fins dos anos 1980, na Assembléia Nacional Constituinte, a discussão sobre a
inclusão da categoria “orientação sexual” na Carta Magna brasileira deu origem a tensões
entre os segmentos católicos e evangélicos contra defensores dos direitos de gays e lésbicas
(Câmara, 2002). No curso dos debates, religiosos se posicionaram contrários à equiparação
da discriminação por orientação sexual ao crime de racismo, culminando na rejeição da
moção. A “propagação do homossexualismo” representava um dos temores dos ‘religiosos’
56
na Assembléia Nacional Constituinte. Mesmo nesse cenário, os principais opositores da
proposta foram os segmentos e indivíduos de identidade religiosa evangélica, visto que
estes enfatizavam que o reconhecimento da orientação sexual na Constituição poderia
significar uma “oficialização do homossexualismo”. Portanto, não deveria receber apoio
sob a forma de Lei. Nas décadas seguintes, o debate sobre a “parceria civil” entre pessoas
do mesmo sexo engendrou novas adesões a esta postura de rejeição, em nome da defesa de
um modelo de família monogâmico e heterossexual que enfatizava a homossexualidade
como um risco para a organização social (Vargas e Grossi, 2006).57 Em termos de
estratégias e táticas empregadas, os evangélicos passaram a atuar em bloco no legislativo
para combater, dentre outras propostas, a proibição da discriminação por orientação sexual
56
A fala do deputado religioso Salatiel Carvalho (PFL/ PE), para quem os evangélicos não queriam a
“igualdade de direitos dos homossexuais porque a maioria da sociedade não quer” é representativa desse
medo. Religiosos defenderam que o avanço dos direitos dos homossexuais poria em risco “uma concepção de
família e educação corretas, caracterizadas pelo princípio da monogamia e heterossexualidade” (Câmara,
2002: 121).
57
Estas tensões foram abordadas por Vargas e Grossi (2006), ao analisar diversas visões e posicionamentos
que parlamentares externavam acerca do PL 1151/95, de autoria da deputada Marta Suplicy, que tramitava na
Câmara Federal na década de 1990. Identificando os principais elementos constitutivos no discurso desses
agentes, apontam que o cerne do conflito foi a oposição entre posições laicas e religiosas. O parecer conferido
ao projeto pelo deputado Roberto Jefferson substituía a expressão “união civil”, empregada no texto original,
por “parceria civil”, incluindo um artigo que vedava disposições posteriores acerca de adoção, tutela ou
guarda de crianças ou adolescentes em conjunto, mesmo sendo filhos de um dos parceiros. Nesse contexto, a
visão religiosa atribuiu à família monogâmica e heterossexual um valor estratégico na manutenção da ordem,
e instituiu a homossexualidade de um sentido perigoso que devia ser contido. A rejeição desta orientação
sexual se faria em nome de um modelo normativo de “natureza”, expresso, por exemplo, em posicionamentos
do deputado Severino Cavalcanti, regulando as formas legítimas de contatos sexuais a partir desse modelo.
As posições favoráveis ao projeto evitavam, estrategicamente, identificar a ‘união’ ou ‘parceria’ com o
casamento e a família, posto que esta identificação representaria ameaça à sociedade. Constitui-se, assim,
uma tensão entre posicionamentos que desejam impor uma ética baseada em verdades religiosas a um Estado
laico e os que defendem um Estado e ética independentes de crença religiosa. Católicos e evangélicos, neste
contexto, atuaram conjuntamente no confronto com representantes do movimento homossexual.

89
e também aquelas que reivindicavam o reconhecimento de arranjos “homo-afetivos”
(Mariano, 2005; Natividade e Lopes, 2006; Mello, 2005).58
A representação da homossexualidade como um “perigo” é cultivada em segmentos
religiosos. A epidemia de HIV-Aids insuflou esta concepção, constituindo o solo da
difusão de estereótipos que associavam esta identidade a práticas impuras e ameaçadoras -
que deviam ser objeto de controle - e colaboravam para a associação entre
59
homossexualidade, doença e morte (Carrara e Moraes, 1985). Emergiram, então, a idéia
da “fúria divina” e os mecanismos empregados por Deus para conter a permissividade
humana, em especial, as práticas homoeróticas. Segundo Galvão, (1985), dessa visão
religiosa, despontavam acusações veladas e abertas que atribuíam a “homossexuais” e
“bissexuais” o estigma de propagadores da doença, sendo a promiscuidade um atributo
para qualificar e desqualificar pessoas (Galvão, 1985: 46). Nesse âmbito, as sexualidades
não hegemônicas são objeto de uma maior atenção, ensejando medidas de prevenção e
controle, como por exemplo o aparecimento e proliferação de grupos que atuam em
missões religiosas de resgate da heterossexualidade e ajudam sujeitos a “sair da
homossexualidade” nas décadas posteriores (Natividade, 2008; Natividade, 2006; Mott,

58
Ricardo Mariano (2005) constata que parlamentares evangélicos atuam em bloco tendo por meta combater
propostas de liberalização do aborto e a proibição da discriminação por orientação sexual. Os oponentes
estudam os movimentos um do outro, reagindo às investidas do adversário. Com essa motivação, líderes
homossexuais promovem campanhas de conscientização para que as minorias sexuais elejam o maior número
de candidatos identificados com seus direitos, destacando-se aqueles que integram o PT (Partido dos
Trabalhadores), que congrega simpatizantes da causa. Por outro lado, lideranças evangélicas conclamam os
fiéis a elegerem candidatos cristãos. Em 2003 ocorreu a criação da Frente Parlamentar Mista pela Livre
Expressão Sexual e a concomitante proposição de dez projetos de lei e duas emendas constitucionais
contemplando os direitos dos homossexuais. Em reação, em 25 de novembro de 2003, criou-se a Frente
Parlamentar Evangélica, integrada por 56 parlamentares evangélicos.
59
Cláudia Moraes e Sergio Carrara (1985), ao analisar o início da epidemia de AIDS no país, chamam
atenção para a pluralidade de discursos e interesses, constituindo um campo de relações políticas composto
por distintos atores sociais: mídia, ciência, academia e militância. A crescente preocupação com os meios de
transmissão emergiu concomitante às práticas discriminatórias em relação à homossexualidade, insuflando
medos sociais e promovendo a associação desta com “doença” e “morte”. O “homossexual promiscuo” é
personagem “impuro”, “ambíguo” e perigoso, praticante preferencial de uma das principais formas de
contágio (o sexo anal), cujos excessos sexuais podem levar à morte. Rejane de Araújo e Christina Vallinoto
(1985) argumentam que a epidemia instituiu a crença arraigada de que a promiscuidade é um atributo da
homossexualidade masculina, ao sugerir que os homossexuais são promíscuos e que os heterossexuais não. A
imagem da homossexualidade é aquela construída sobre o peso da acusação da promiscuidade.

90
1985). Observe-se que é recorrente entre atores religiosos a responsabilização dos
homossexuais pela proliferação da doença.60
Seguindo a perspectiva de Michel Foucault (1997), percebe-se que nesse contexto
religioso - assim como em outros ambientes que repudiam a homossexualidade - a rejeição
ocorre através de uma proposta radical de “cura” e regeneração moral. Postura que
colabora para categorizar indivíduos, produzindo certos discursos explicativos sobre o
desejo e os relacionamentos afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O que se diz
sobre a homossexualidade, no contexto descrito nesta tese, não é mero reforço da Lei de
Deus e da retórica do pecado, mas uma complexa teia de relações de poder. Assim, por
meio de análise mais aprofundada dos discursos produzidos neste contexto é possível
apreender formas de sujeição implicadas na interação entre indivíduo (transgressor da
norma) e um conjunto amplo de atores sociais envolvidos no diagnóstico de seu
“problema” e nas formas de correção, dentre os quais estão psicólogos, pastores, ministros
de libertação e outros especialistas. Argumento que não ocorre uma oposição binária entre
dominantes e dominados, entre instituições e indivíduos e o estabelecimento de domínios
do admitido e do excluído. A formulação discursiva de formas de saber-poder tem efeitos
inesperados que originam reações, resistências e novas tramas discursivas (Foucault, 1997:
96-97). A enunciação de um discurso sobre o sexo tem potencial produtor.
Ao analisar a passagem histórica de um dispositivo de alianças a um dispositivo da
sexualidade e identificar a emergência de formas de saber sobre o sexo, Foucault (1997)
informa que a emergência de um ‘conhecimento’ sobre o sexo constituiu controle bem
demarcado das sexualidades periféricas. O surgimento de teorias sobre “inversão sexual” e
outras no início do século XIX foram acompanhados da criação de técnicas de controle, do

60
Luiz Mott (1985) analisou posicionamentos cristãos em face da Aids, examinando publicações evangélicas
e textos de autores católicos. Os protestantes emergem nos anos 1980 como os maiores portadores de
homofobia, destacando-se as representações de denominações como Igreja Universal do Reino de Deus,
Igreja Batista e Assembléia de Deus; neo-cristãs, como os Testemunhas de Jeová, também podem ser
associadas a este posicionamento. Nesta vertente cristã, prevalecem representações da doença como
“epidemia de homossexuais”, “castigo divino”, fruto de “imoralidade”, contra a qual a única medida
preventiva é o abandono das práticas homossexuais. O “lesbianismo” e o “homossexualismo” masculino são
percebidos como anomalias sexuais, que devem ser combatidas, sujeitas a aconselhamento e tratamento
psicológico. O dito “câncer gay” seria uma intervenção misericordiosa de Deus, para resgatar e regenerar os
homossexuais. O autor ressalta a existência de posicionamentos entre católicos que confluem na mesma
direção, apresentando a Aids como uma resposta da natureza à libertinagem dos homossexuais.

91
mesmo modo que possibilitou discursos de “reação”. Elas produziram o que desejavam
‘repudiar’: “a homossexualidade pôs-se a falar de si mesma, a reivindicar sua legitimidade
ou sua “naturalidade” e muitas vezes dentro do vocabulário e com as categorias pelas quais
era desqualificada do ponto de vista médico” (Foucault, 1997: 96). Instituíram-se
correlações de força, por meio das quais a polivalência dos discursos - cuja função tática,
como Foucault sublinha, não é estável, mas contraditória - reforça normas, mas também as
corrompe (Foucaul, 1997: 96). Técnicas de produção dos sujeitos atuam, mormente, por
meio de mecanismos positivos (de enunciação da verdade de si) e não de repressão e
renúncia. Conforme sua análise, o dispositivo da sexualidade instaurou uma forma de
saber-poder moderna na qual há uma mudança histórica de paradigma: capturados nessa
trama social, indivíduos são instados a um processo contínuo de interrogar-se sobre si. A
referência desloca-se do vínculo com os outros para respeito e cuidado de si. Uma das
principais técnicas de produção desse indivíduo moderno é a confissão, técnica de
produção da verdade, na qual o sujeito que fala coincide com o enunciado (Foucault, 1997:
61). Nesse sentido, o que poderia ser visto aparentemente como regras de prudência
constitui um saber performativo, um poder que “vem debaixo”, uma palavra requisitada e
obrigada, que produz uma verdade. A sociedade ocidental assistiu a ascensão da
confidência como um dos mais importantes mecanismos de produção da sexualidade
moderna. Importada da religião por certas disciplinas, esta técnica de direção da
consciência instituiu novas formas de saber, implicadas nos métodos da medicina, da
sexologia, da psiquiatria e de tantas outras teorias. No contexto dessas ciências, a
‘revelação’ de si está imbuída de uma pedagogia da sexualidade, nas quais um arsenal de
explicações é empregado como forma de instituir a verdade sobre o sexo.
A seguir, analiso a forma como se dá a construção social da homossexualidade e dos
“homossexuais” no contexto evangélico. Utilizo como fontes os discursos de pastores,
ministros de libertação, fiéis religiosos e escritores evangélicos, cujos textos publicados sob
a forma de livros, artigos, folhetos, apostilas, constituem verdadeiros manuais que ensinam
a “sair da homossexualidade” e a lidar com os chamados “pecados sexuais”. Apresento
dados etnográficos desse importante movimento, que propala a noção de “cura”, conforme

92
anunciei no primeiro capítulo, aprofundando os significados sociais imputados à
homossexualidade.

2.2. O DEMÔNIO E A SEXUALIDADE

O convite para ir a um templo evangélico da Igreja Congregacional havia sido feito


por um informante, a quem chamarei de Edson, morador de bairro vizinho à minha
residência, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Edson tinha 37 anos, à época, era ex-
seminarista e considerava que vivia uma “nova conversão”. Ele freqüentara na juventude
denominações como Igreja Metodista, Nova Vida, além do catolicismo, convivendo desde
de cedo com parentes protestantes. O momento atual de sua vida era percebido como um
“novo nascimento”, pois vivia um período de abstinência sexual, rejeitando a auto-
identificação anterior de “homossexual”. Em certa ocasião, quando nos encontramos ao
acaso, em um pequeno mercado no bairro de Marechal Hermes, onde resido. Ele contou a
mim que daria seu “testemunho” em uma igreja evangélica. No mesmo culto haveria
61
palestra e “ministração” de um líder religioso, participante de um grupo de apoio a
homossexuais. Com a proximidade do evento, ele me telefonou para reforçar o convite.
Estava nervoso, pois acreditava que não seria fácil falar sobre sua homossexualidade em
público. Mas, precisava fazê-lo como uma forma de compartilhar com a igreja sua luta
espiritual, principalmente por não estar “praticando o homossexualismo”.
A intensa adesão aos ditames religiosos que prescreviam a proibição do
relacionamento entre pessoas do mesmo sexo era percebida por ele como um retorno ao que
sempre acreditara: o homossexualismo é pecado. Apesar de períodos de afastamento da
igreja motivados por experiências homossexuais, nunca convivera bem com a
homossexualidade. Considerava-se uma pessoa “muito família”. Próximo aos quarenta
anos, residia na casa dos pais e achava que não mais se mudaria de lá. Os “casos”,
“namoros” e “transas” foram poucos e nenhum durara o suficiente para motivá-lo a se
61
A categoria nativa descreve procedimento ritual que envolve a participação de líder religioso (ou outro
indivíduo da hierarquia religiosa), comunidade e divindade. O ministrador é uma espécie de canal para a
agência de Deus entre os fiéis, através da pregação da Palavra.

93
mudar. Para ele, habitar com a família era natural, assim como a religião, sem a qual não
conseguia viver. Ao conhecer grupos e pessoas que podiam ajudá-lo a sair da
homossexualidade, sentia novo ânimo. Era como se pudesse romper o silêncio e a vergonha
costumeiros. Aquele culto era especial.
Era sábado à noite. O tema central do culto era a “restauração” na esfera da
afetividade e da vida familiar. Antes das sete horas da noite o salão ainda estava quase
vazio. Permaneci sentado em uma das últimas fileiras, de onde tive uma boa visão do
ambiente. O trânsito de pessoas que chegavam foi se intensificando enquanto um grupo
musical afinava os instrumentos em um amplo palco e se preparava para iniciar os
louvores. Procurei meu informante, mas somente o avistei quando a igreja já estava
bastante cheia. Edson sentou-se próximo a algumas mulheres, com as quais conversava
animadamente. Em pouco tempo, o amplo templo – cuja capacidade era de quase duas mil
pessoas – estava lotado. O culto foi iniciado com louvores conduzidos pelo conjunto
musical – um vocalista, um guitarrista, um saxofonista, uma tecladista e quatro backing
vocals. Os cânticos eram traduzidos por uma jovem para a linguagem de libras 62 e se
referiam recorrentemente ao “amor de Deus”. Um deles, em especial, falou sobre uma
“igreja noiva”, que se entrega ao seu amado: 63

Correrei para Ti meu Senhor,


minh’alma anseia por Ti
sou pobre, cego e nu
nada tenho pra Te oferecer

Quero aos Teus braços me entregar


pois sei que Tu me aceitas como estou
preciso do Teu ouro, purifica-me Senhor

Reina sobre mim


eu me rendo a Ti, Eu me rendo a Ti
Reina sobre mim
sou Tua noiva espero e anseio por Ti

62
Linguagem desenvolvida para surdo-mudos a partir de um amplo repertório de gestos e convenções que
possibilitam traduzir conteúdos. Esta linguagem tem sido muito comum em igrejas evangélicas, como parte
de uma preocupação com a inclusão de um público de portadores de deficiências.
63
Louvor “Reina sobre mim”, interpretado pela cantora gospel Nívea Soares.

94
Chamou atenção a referência à igreja como feminina e a divindade como masculina.
Esta imagem é evocada recorrentemente em diferentes contextos. Nas letras dos louvores,
o tema era premente, qualificando uma ‘relação amorosa’ entre Deus e os fiéis por meio de
metáforas da entrega e da rendição, sendo a igreja o pólo dominado da relação. Ela anseia e
se entrega. A divindade é quem, sob a forma do Espírito Santo, arrebata, toma/arrebata.
Este tipo de cântico fornece pistas sobre os significados cosmológicos da relação
entre Deus e os seres-humanos. O canto na igreja constituía um canal privilegiado para a
interação entre estes. Apelando a uma linguagem que remete às relações afetivo-sensuais, o
louvor, eminentemente feminino, expressava a forma como, nesse contexto, ocorre a
construção ritual da pessoa: divindades masculinas que penetram e indivíduos que recebem
e são por elas tomados. A efervescência religiosa que ocorreu naquele e em outros eventos,
principalmente em momentos rituais de libertação, acentuou este aspecto, com algumas
experiências de transe, semelhantes àquelas que têm lugar em cultos afro-brasileiros e em
alguns pentecostais: música alta, murmúrios, gritos, pessoas caídas ao chão. Aquele louvor,
contudo, era um clamor pela presença do Espírito Santo.
O pastor da denominação era um homem aparentando trinta anos, negro, de voz
possante e aparência formal. Trajava calça, camisa social e gravata. Durante os louvores,
ele orou para que, naquela noite, as pessoas “entregassem suas angústias e sofrimentos” a
Deus, pois havia uma “obra” a ser feita por Jesus. Houve um momento de intenso fervor,
com os presentes participando ativamente e cantando alto. Pessoas moviam o corpo com
muitos gritos de “aleluia” e “glória a Deus”. O pastor orou pela “libertação”, para que o
Espírito Santo descesse, quebrasse “maldições”, livrasse os jovens da prostituição,
devolvesse harmonia aos lares e famílias. Em tom de súplica, alertou que ali havia um
bloqueio espiritual à presença do “Poder do Senhor”. O Espírito de Deus encontrava
resistência para descer e penetrar em alguns corações. Portanto, todos os presentes
deveriam orar pela pessoa ao lado e interceder, espiritualmente, pela “quebra” desse
bloqueio.
Uma intensa movimentação ocorreu quando algumas pessoas se aproximaram do
púlpito, onde receberam orações de alguns líderes da denominação, dentre eles obreiros e

95
intercessores.64 Eu permaneci só, de pé, dividido entre observar a movimentação e atender
ao pedido do pastor para que fechássemos os olhos naquele momento de ministração. Havia
uma clara advertência para que não houvesse dispersão, mas concentração no culto, para
que o Poder de Deus pudesse agir.
O templo foi tomado por manifestações do fenômeno da glossolalia (falar em “outras
línguas” ou “falar a língua dos anjos”), com muitas vozes sobrepostas. Todos retornaram
aos seus lugares e o pastor tomou a palavra. Disse que, agora sim, havia a presença de Deus
na igreja e que uma mensagem muito importante seria trazida a todos por um convidado
especial, um “servo de Deus”, integrante de um grupo pastoral cujo trabalho consistia em
65
levar a Palavra bíblica e a “recuperação” aos homossexuais. O “movimento” ao qual
pertencia já conseguira ‘ajudar’ muitos homossexuais. Faziam proselitismo em eventos,
como a Parada do Orgulho Gay, que acontecia todo ano na Zona Sul do Rio de Janeiro
(Figura 10).66 O líder religioso se apresentou no púlpito e foi cumprimentado com um
abraço do pastor. Pediu à congregação que fizesse uma oração por ele. Todos ergueram os
braços em sua direção com um gesto de imposição de mãos e o pastor orou para que sua
“ministração” possibilitasse a ação de Jesus na comunidade. O homem tomou seu lugar no
púlpito e abriu a Bíblia. Em sua fala ressaltou que os homossexuais precisavam ser
evangelizados. Afinal, Deus ama o pecador, mas odeia a prática do pecado. Todos os
evangélicos deviam orar para que eventos como aquele não ocorresse. As Paradas GLBT
recebiam apoio da mídia, das autoridades políticas e isto era um “absurdo”, uma prova da
atual “permissividade” dos brasileiros. Era preciso se afligir com o “pecado”, a
“licenciosidade”, a “imoralidade”. A Parada divulgava “imagens grotescas” – o que devia
servir de motivação para que os conversos combatessem a “decadência da moralidade”.

64
Os termos “obreiro” e “intercessor” apresentam sentido correlato em alguns contextos rituais pentecostais.
Descreve um tipo de habilidade ou dom para a batalha espiritual. Intercessores possuem, assim como os
pastores, competência ritual para expulsão de demônios, neutralização de ação maligna, libertação. São canais
através dos quais ocorre a agência do Espírito Santo.
65
Esta categoria é auto-identitária para grupos evangélicos que atuam em “reorientação sexual”. Estes são
também referidos como "ministérios de apoio”, “ministérios de ajuda” ou “movimentos de apoio”. Em todo
caso, a idéia é de trabalho pastoral que se articula em rede a outros grupos, entidades, denominações e igrejas.
Um exemplo é a realização de palestras, cursos e oficinas pelo MOSES, com vistas a oferecer formação para
o aconselhamento de homossexuais.
66
Referência à Parada do Orgulho Gay realizada no ano de 2004.

96
Com suporte de um projetor foram exibidas fotos exemplares: duas gêmeas, dentre as
quais uma lésbica assumida, que tomou hormônios para se “transformar em homem”. A
fotografia exibia a mulher antes (feminina) e depois (masculinizada, de terno e gravata).
Houve murmúrios de espanto. Em tom inflamado, o pregador argumentou que uma pessoa
não podia desejar se tornar “aquilo que não é”. O líder religioso bradou achar uma
“aberração” homens que queriam tornar-se mulher e vice-versa. Sobre eles, certamente,
incidiria a “mão de Deus”. Uma seqüência de fotos da Parada Gay, daquele ano, mostrava
travestis e homossexuais masculinos, “como se aquilo fosse natural e aceitável”. O Brasil
precisava tomar cuidado para não seguir o exemplo de outros países que já permitiam o
casamento entre homossexuais e favoreciam o crime de pedofilia. O movimento
homossexual lutava para aprovar o casamento gay, para depois adotar filhos, em suma, ter
todos os direitos que um casal heterossexual tem. Este constituía um problema grave, a ser
enfrentado pelos evangélicos, sob pena de verem suas “famílias destruídas” e seus filhos
67
atingidos. Cristãos que aceitavam esse comportamento, não eram “verdadeiros cristãos”.
O líder falava como “homem de Deus” e como alguém que já vivera a homossexualidade
no passado. Crescera em uma família de alcoólatras, na qual havia desarmonia. Hoje, quase
toda a família era convertida: uma “bênção de Deus”. Enfrentara provações e, mesmo
depois de convertido, vivera em desacordo com a doutrina. Atualmente, já não praticava as
“abominações” e “aberrações” de antes. Por ter renunciado a seu comportamento sexual,
obteve a libertação de sua família. Houve murmúrios de “Glória a Deus”. Ao término do
culto, o pastor da denominação e o líder do ministério de ajuda a homossexuais conduziram
uma oração, pela libertação “da prostituição”, “dos vícios sexuais”, do “pecado”. O Poder
do Espírito Santo agia naquele momento sobre as famílias dos presentes, dando
“livramento” a parentes, filhos, cônjuges. Naquela noite, era certo, Jesus estava libertando
muitas pessoas “cativas” pelo diabo.
A preleção pastoral revelou uma concepção naturalizada da sexualidade e do corpo
nessa visão de mundo: o natural é o “homem” em corpo masculino e a “mulher” em corpo
feminino. Toda forma de desconexão de corpo e gênero é percebida como abjetas Isso foi

67
O líder religioso fez referência ao controverso Pastor Neehmias Marien, cujos posicionamentos públicos
favoráveis à inclusão dos homossexuais o motivaram a realizar cerimônias de bênçãos a casais homossexuais.

97
enfatizado na idéia de que tais comportamentos (contrários ao “plano de Deus”)
implicavam a fúria divina. Aparecia naquele contexto ritual uma pista sobre as vinculações
entre sexo biológico e padrões de masculinidade e feminilidade. Ali foram anunciados os
termos do repúdio da homossexualidade: a atenção que lhe será dedicada está diretamente
ligada à idéia difundida de que os homossexuais, em especial os afeminados, transgridem
uma norma divina. Observa-se, nesse contexto religioso, um retorno ao problema da
inversão do gênero, cujas raízes remonta a obsessão da ciência médica do século XIX com
a chamada “inversão sexual” (Fry, 1982; 1985).
O relato de meu informante sobre a luta com suas inclinações homossexuais e o
momento ritual descrito auxiliam o meu intento de compreender um pouco mais sobre
certos contextos religiosos em que a homossexualidade/orientação sexual se torna um
problema. O testemunho de Edson, como ex-homossexual, não ocorreu naquele dia, sob a
justificativa de que preferira ‘se preservar’. Afinal, algumas pessoas na denominação
poderiam não compreender, já que nem todas tinham conhecimento de sua orientação
sexual. Apesar disto, acompanhara atentamente cada palavra do ministrador, certo de que
elas poderiam ajudá-lo. Encontramo-nos em outra ocasião. Ele mencionou seu chamado
pastoral, motivo pelo qual estava estudando teologia. Mas um longo caminho a ser
percorrido, com constância espiritual. Enquanto escrevo estas páginas, Edson está
desligado da igreja, estuda biologia e se preocupa com a dificuldade em encontrar um
“relacionamento homossexual”, já que este é seu projeto mais recente. Estes dilemas não
serão abordados aqui, mas tratados um distinto capítulo, no qual o foco será sobre
biografias e trajetórias. Reporto-me, a seguir, a outros eventos religiosos de que participei,
nos quais o tema da “restauração sexual” foi tratado e onde o problema emerge.
Entre os dias 20 e 23 de janeiro de 2005 acompanhei o Congresso Profético
Apostólico, campanha religiosa para a construção de “Um Novo Rio para o Brasil”.68 A
programação religiosa também teve lugar na Igreja Congregacional de Bento Ribeiro,

68
Participei deste evento acompanhado pelos estudantes de graduação Paulo Victor Leite Lopes e Ana Paulo
B. Soeiro, que à época atuavam como colaboradores em um monitoramento de conteúdos em sites e na
literatura religiosa. A atividade ocorreu a partir de minha participação como pesquisador colaborador no
“Projeto Integrado Pessoa, Família e Ethos religioso”, conduzido em parceria pelo Programa em Gênero,
Sexualidade e Saúde Reprodutiva (IMS/ UERJ) e pelo PPGAS/ MN/ (UFRJ), coordenado por Luiz Fernando
Dias Duarte e Jane Russo.

98
subúrbio do Rio. Como se tratava de ritual pentecostal voltado para “libertação”, em data
próxima ao feriado municipal de São Sebastião, era de se esperar críticas, menções ou
69
ataques à forma de religiosidade e símbolos do catolicismo. Ali, como preletores,
estavam importantes “ministros de libertação”, que realizavam trabalhos itinerantes,
70
viajando pelo país em missões religiosas. Uma ampla programação abrigou rituais de
louvor e pregações direcionadas à instrução dos crentes acerca da batalha espiritual. Neuza
Itioka, uma escritora evangélica reconhecida no meio, ministrou a “restauração sexual” e
enfatizou que a sexualidade era uma das esferas da vida sujeita a “ataques malignos”
(Figura 11). Os brasileiros, em especial, tinham sérias lutas espirituais nessa área. No
Carnaval, principalmente, as pessoas eram tomadas por “espíritos de prostituição” e eram
levadas à “idolatria do sexo”. Nesta festa pagã dominada por pomba-giras e por outros
exus, o demônio reinava, usava os corpos, espalhava doenças, aumentava a violência. O
crente era exortado a se manter vigilante, em oração. O Brasil era uma das nações mais
sensuais, devido às crenças em deuses do culto afro-brasileiro e à idolatria de santos
católicos. Dentre os comportamentos que podiam ser vistos como “pecado sexual”,
constavam a masturbação, a pornografia, o aborto, o sexo antes do casamento, o adultério e
as práticas homossexuais. Toda relação sexual fora do casamento conduzia a “alianças
demoníacas”, somente desfeitas através de “libertação”. Esses vínculos satânicos
consistiam verdadeiras “maldições”, fruto da ‘desobediência’ à “Lei de Deus”. O pecado
abria brechas corporais, por meio das quais demônios penetravam nas pessoas,
escravizando sua mente e potencializando os “desejos da carne”. Este pacto de origem
macabra se opunha à idéia de “bênção”, coisas boas que uma pessoa recebe quando segue
os mandamentos de Deus. Por esta razão, as “compulsões” e os “vícios” sexuais seriam, na
verdade, “problemas espirituais”. Durante o culto, a ministra conduziu um momento ritual
de “libertação” na área da sexualidade. Os fiéis foram instruídos a orar. Deviam confessar
69
O evento foi realizado em um templo evangélico localizado em frente à Paróquia de São Sebastião, em
Bento Ribeiro. A data festiva para o catolicismo propiciou uma intensa movimentação de pessoas nas
imediações, com barraquinhas para venda de comida e adereços religiosos. Transitavam também pela região
os participantes do congresso evangélico. Uma distinção entre estes era marcada, principalmente, pelo uso de
camisas com a inscrição “Um novo Rio para o Brasil”. O principal confronto estava na recusa do símbolo
religioso Nossa Senhora Aparecida como Padroeira do Brasil. Vários momentos no culto foram marcados por
críticas à idolatria católica.
70
Havia no evento a presença de missionários estrangeiros. Foram anunciadas a participação de Ana Méndez
Ferrel (México) e Emerson Ferreli (EUA), ambos ligados a ministérios de libertação.

99
seus pecados sexuais em voz alta, para que fossem quebrados pelo Poder de Deus. Era
importante se lembrar de cada “relação ilícita” cometida e dizer “eu renuncio ao pecado que
cometi com Fulano”. Caso não se recordasse do nome da pessoa, deveria rememorar todas
as situações vivenciadas para, em seguida, renunciá-las. Houve grande movimentação no
templo: pessoas erguiam as mãos, outras caíam e eram socorridas por obreiros e auxiliares
dos pastores. Vozes se confundiam. No canto esquerdo, um rapaz chorava muito, enquanto
proferia uma lista de nomes femininos e masculinos, seguidos pela frase “eu te renuncio”.
Quando o ambiente se acalmou, a religiosa profetizou que muitas pessoas haviam sido
libertadas por aquela “oração de cura”.
Na ocasião, havia uma feira de livros evangélicos. Um dos palestrantes, o escritor
Alcione Emerich, tinha livros expostos para venda. Comprei dois deles. Os títulos eram
sugestivos e neles havia instruções sobre a batalha espiritual na sexualidade: “Saindo do
cativeiro: como ajudar pessoas a se libertar de alianças do passado” e “Físico, psicológico
ou moral: qual a origem do seu problema”. Durante a pesquisa ficou claro que este tipo de
literatura era consumida entre “crentes” de diferentes segmentos, mas preferencialmente
entre segmentos populares.71 Um de meus informantes, “homossexual”, Giovanni,
integrante de pequena igreja autônoma pentecostal na Baixada Fluminense, entregou-me
obras de algumas escritoras evangélicas, dizendo-me: “Se você quiser entender algo sobre a
nossa igreja, sobre libertação e sobre homossexualismo, você precisa ler esses livros”. Era
meu interlocutor sobre questões ligadas à batalha espiritual e cura na sexualidade. A
comunidade da qual fazia parte e outras por onde passara, compartilhavam algumas idéias,
principalmente, a proibição da homossexualidade por Deus e a afirmação de que todo
crente só podia ter uma “vida plena” e “abençoada” seguindo fielmente aquilo que Deus
determina aos homens: o casamento, a constituição de uma vida familiar com esposa e
filhos. Nestas, os métodos de libertação eram baseados em livros que ensinavam sobre as
“alianças demoníacas” na sexualidade e como obter a “libertação” dos desejos e impulsos
homossexuais.

71
Em diferentes momentos, ao utilizar como meio de transporte trens ferroviários, pude notar que pessoas
portavam livros desses escritores, dentre eles a americana Rebecca Brow e a própria Neuxa Itioka. Isso
ocorria com alguma incidência nas linhas que faziam o percurso do Centro da Cidade a zonas periféricas
como Santa Cruz, Japeri e Paracambi e em especial no “vagão dos crentes”, em diferentes dias e horários.

100
Obtive com ele relatos impressionantes sobre contextos rituais de libertação, nos
quais ministros ajudavam na libertação de pecados graves. Um deles descrevia a ocasião
em que pastor, uma obreira e ele próprio foram chamados a atuar num caso que envolvia a
prática (pecaminosa) de um aborto. A situação implicava uma forte “batalha espiritual”.
Após horas de oração, eles tiveram um “arrebatamento do Espírito”. Seus corpos estavam
caídos no chão da igreja. O pastor orava e conduzia a “guerra espiritual”. Em uma espécie
de “mundo paralelo” e, “como matrix”, seus espíritos adentravam um sombrio umbral.
Tratava-se de uma mulher muito adoentada, à beira da morte, que não se livrara das
alianças demoníacas, resultantes de um aborto cometido na adolescência. O ambiente era
pouco iluminado e assemelhava-se a uma caverna. Havia cheiro de podre. Muitas moscas.
Eles se lembravam que Belzebu era um demônio associado a odores fétidos, ligados ao
apodrecimento. Havia um “cheiro de morte”. No chão da pequena igreja, o pastor
observava seus corpos deitados ao chão, orava enquanto instruía que eles precisavam
descobrir quais demônios e pecados estavam envolvidos naquele caso. A mulher estava no
hospital, à beira da morte. De repente, uma visão estarrecedora. Enquanto o olhar se
acostumava à escuridão, eles podiam ver se delineando uma imagem grotesta. Dezenas de
corpos de fetos estavam incrustadas em uma parede. Havia som de choros, misturados a
lamúrias. Eles haviam sido vítimas de aborto e estavam aprisionados naquele umbral
espiritual. Ele e a obreira começam a orar e a clamar por Jesus. O pastor gritou que não
podiam se deixar abater. Era preciso guerrear. Ele ordenou que fizessem uma oração de
cura. Deveriam “quebrar”, pelo poder do Espírito Santo, aquela cadeia maligna de pecados.
Fizeram orações e súplicas a Jesus. Ordenaram ao demônio que aquelas almas aprisionadas
fossem libertas “em nome de Jesus”. Muito choro, confusão, odores, a voz do pastor ao
longe. Como guerreiros de Cristo, tomaram posse do Poder de Deus e ordenaram que os
demônios partissem. Choro de crianças. A imagem da parede ia se desfazendo e o ambiente
tomado por uma luz arrebatadora. Eles então despertaram lentamente. A cena terminava
com o pastor, ele a obreira se abraçando e chorando. Mais tarde, foram informados que a
mulher tivera alta do hospital e estava retornando para casa de sua família.
Meu informante relatou o caso garantindo que havia uma dimensão dos pecados
sexuais que eu não compreendia, mas eram resultantes de sérias lutas espirituais. O aborto,

101
segundo ele, era um dos pecados que mais aprisionavam uma pessoa que o praticava. Mas,
não era o único. Ele mesmo já sofrera ataques espirituais graves, em decorrência de sua
homossexualidade. Quando eu perguntava como podia me inteirar mais sobre o assunto, ele
me entregava novo livro ou começava longa digressão sobre como os espíritos eram
responsáveis por problemas específicos. Asmodeus foi referido como o demônio que atuava
potencializando a agressividade e levando a comportamentos violentos. Era entidade ligada
ao crescimento do tráfico de drogas e violência no país. Nosferatus atuava sobre o
pensamento, nas “camadas mais profundas da mente”, gerando incertezas, dúvidas, medos,
depressão, angústia, obsessões e loucura. Belzebu, “o mais horrível dos demônios”,
conhecido como o Senhor das Moscas, estava ligado à negligência consigo, à falta de
cuidado e amor próprio, à sujeira, pobreza e miséria. Para completar, ele indicou que o
demônio que ocasionava o “homossexualismo” chamava-se Diana. Esta entidade do mal
era uma “potestade”, demônio de alto poder na hierarquia dos diabos, que comandava
pomba-giras e exus, levando à prática de aborto e outras distorções sexuais. O comentário
evocava a propalada demonização das crenças afro-brasileiras pelos evangélicos. Neste
caso, o repúdio da homossexualidade encontrava-se imbricado às críticas dirigidas ao
72
grande inimigo e alter-ego das igrejas pentecostais: a “macumba”. Como entidades do
mal, pomba-giras, exus e outros “espíritos inferiores” viviam a atazanar pessoas, não
apenas com seus poderes de sedução, mas implantando desejos, motivadas pelo intento de
arrastá-las ao pecado e distanciá-las de Deus.
Giovani apresentou-me outro livro: “Ele veio para libertar os cativos” (Brow, 2000).
Ali, ele insistia, havia instruções sobre a batalha espiritual. A autora era uma americana,
nomeada Rebecca Brown, muito apreciada pelos evangélicos em geral (Figura 12). Uma
inscrição feita à caneta na folha de rosto do livro chamou minha atenção. Giovanni
escrevera: “Eu creio no Poder da Palavra do Senhor em minha vida. Mesmo sem merecer,
Ele morreu por mim”. Semanas depois, ele telefonou-me aos prantos, estava para se separar

72
A referência a este demônio foi feita por outros informantes, mas eles não souberam precisar mais detalhes
sobre a atuação deste ou o motivo de sua área de interferência ser a sexualidade. Explicaram que essa
informação era corrente em suas igrejas. Alguns disseram suspeitar que Diana era um antigo demônio egípcio
que aparecia, agora, na figura de uma bela mulher, com poderes sobre homossexuais e mulheres. Meu
informante contou ter tido algumas visões com este demônio, uma mulher de rara beleza e poder de atração.

102
da esposa. Enfrentava batalha espiritual na sexualidade. Nós nos encontramos em um
shopping da Zona Norte. Ele pensava em suicídio, porque o demônio não deixava de
espreitar sua vida. Conversamos algumas horas. Eu o acalmei, sem saber ao certo o que
dizer. Insisti que Deus não deveria gostar de vê-lo com pensamentos suicidas. Em algumas
outras ocasiões eu tive notícias dele, atravessando novas crises depressivas que nomeava
como “luta espiritual”. Quando nós conversávamos, eu ficava cada vez mais certo de que
era preciso entender melhor o que significava e como era empreendida essa batalha no
âmbito da sexualidade.
Tomarei a seguir a literatura religiosa como uma fonte de acesso a essas concepções
cosmológicas. Meu objetivo é compreender como se articulam cosmologia, moral sexual,
prescrições de conduta e certa percepção da homossexualidade (Natividade, 2006). Na
próxima seção, ampliarei o escopo de visão, permitindo compreender qual o lugar da
homossexualidade entre outros pecados sexuais e como o mesmo propicia que haja uma
maior atenção pastoral.

2.3. OS “PECADOS SEXUAIS” E OS MANUAIS DE LIBERTAÇÃO

Verifiquei que todos os títulos e volumes que colecionei na literatura religiosa, no


período de aproximadamente dois anos, possuíam conselhos e procedimentos para a
libertação na sexualidade. Alguns eram verdadeiros manuais para “cura do
homossexualismo”, com instruções, técnicas específicas e exercícios práticos. Outros eram
livros que contemplavam o tema amplo “libertação”, nos quais se focalizava o assunto em
capítulos, sessões específicas, testemunhos ou relatos de casos exemplares (Natividade,
2006). Não apenas abordavam doutrina e aspectos teológicos, mas exploravam longamente
exemplos e testemunhos de pessoas que obtiveram sucesso na “libertação”. Inúmeras
páginas mostravam histórias pessoais de “antigos cativos” do pecado. Outras listavam
instruções de sujeitos que se dedicavam ao trabalho pastoral de “libertação”. Havia livros
de autoria nacional e outros estrangeiros. O público era amplo: quem desejava obter
libertação, religiosos atuantes em ministérios de aconselhamento e “batalha espiritual”,

103
entre outros. Apesar dessa variedade, os conteúdos não variavam muito. Farei menção mais
extensiva a obras que parecem ilustrativas.
Uma análise comparativa demonstrou que a categoria “pecados sexuais” era
recorrente e, em torno dela, se agrupavam outras, como: “restauração sexual”, “cura” e
“libertação”. Neuza Itioka, em alguns de seus manuais, lista os pecados sexuais:
lesbianismo, prostituição, adultério, sexo antes do casamento (fornicação), masturbação,
pornografia, pedofilia, fantasias sexuais e homossexualismo. O livro “Os deuses da
Umbanda” (Itioka, 1993) é um de seus escritos mais populares. O eixo incide sobre as
formas de libertação das “aberrações” na área do sexo. Todos estes “pecados” estariam
ligados a situações de endemoniamento. Por este motivo, por exemplo, homens podem
adquirir “trejeitos afeminados” sob “influência espiritual”:

Um dos espíritos mais populares é a Pomba Gira, espírito de adultério e


prostituição. Este espírito impulsiona a mulher a se prostituir e o homem a se
atrair por homens e começar a adquirir trejeitos afeminados quando no seu
estado normal, e a comportar-se como mulher no seu estado de transe. (...) Ele
impulsiona os comportamentos fora do normal: o homossexualismo, o
lesbianismo, a bestialidade etc. A pessoa terá que ser curada interiormente,
nesta área problemática, e padrões antigos terão que ser quebrados pelo poder
do Espírito Santo. (Itioka, 1993: 184).

No “Curso de Batalha Espiritual” (sem data), a mesma autora insere na lista dos
“pecados sexuais”, que precisam de libertação, o “sexo oral” e o “sexo anal”, sem fazer
menção à orientação ou ao sexo do parceiro. Contudo, é ilustrativo que haja clara referência
ao estado de “possessão” dos gays: sobre a vida dos que ‘caíram’ no homossexualismo
“operam pomba-giras”; “a pessoa não sabe se é homem ou mulher’; “a mãe do
homossexual masculino foi possessiva”; “toda pessoa com esta orientação sexual se odeia”
(Figuras 13 e 14). Neste texto e em inúmeros outros títulos, a sexualidade é reconhecida
como uma dimensão de “guerra espiritual”.
Os manuais de libertação problematizam as origens e causas dos “desvios” e
“perversões sexuais”. Podemos elencar aqui, grosso modo, uma gramática da gênese desses
comportamentos: no corpo: a) pelo pendor do homem ao pecado (sua “natureza corrompida

104
induz ao erro e à desobediência à Deus) e b) por meio de brechas abertas por onde
demônios penetram nas pessoas através da prática de pecados; na mente: fruto de
experiências de “traumas”, “abusos”, “rejeições”; em “heranças familiares” (“maldições
hereditárias”). A lista de proibições ligadas à sexualidade não chega a ser substancialmente
acrescida em outros livros e autores, havendo apenas pequenas alterações. Cada um deles
ocupa longas páginas de descrição, com ênfase na gênese desses comportamentos.
Antes de explorar os métodos e técnicas para a libertação, é preciso aprofundar a
análise sobre a origem dos pecados sexuais e as relações destes entre si. No título Físico,
Psicológico ou espiritual: qual a origem de seu problema?, há três sessões sugestivas: “as
tentações da carne”, “prisões da vida sexual” e “lidando com a carne” (Emerich, 2004).
Elas ensinam que “principados” e “potestades”, comumente, estão por trás de
“compulsões”, “vícios” e “traumas sexuais”. Como mencionado anteriormente, essas
categorias designam demônios com alta posição na hierarquia dos “anjos decaídos”, que
direcionam as pessoas para a “perversão sexual”. O autor acrescenta à lista dos “pecados
sexuais” a “sensualidade” (idolatria do corpo), o “incesto”, “sexo anal e outras anomalias”.
Há uma demarcação entre o sexo “dentro dos padrões de Deus” e as “práticas ilícitas” (que
“escravizam”). As “prisões na vida sexual” são decorrentes, principalmente, de práticas de
ocultismo, que originam pactos malignos e atingem a sexualidade.
É possível delinear nessa literatura os contornos de uma relativa interdependência
entre os pecados sexuais. Ainda que não ocorra uma relação de causalidade entre eles, a
prática de um pecado pode induzir a outro e, sucessivamente, o indivíduo pode ser levado a
cometer inúmeros atos sexuais que desagradam a Deus. Por exemplo, a masturbação leva
comumente à fantasia sexual, do mesmo modo que à pornografia (uso de revistas, vídeos e
Internet). Essas práticas originam “fortes compulsões”, perdendo o sujeito o controle sobre
si. Uma vez ‘contaminado’ pelas fantasias, ele pode ser levado à prática das relações entre
pessoas do mesmo sexo.
Em Aprenda a viver bem com Deus e com seus impulsos sexuais, o pastor Erwuin
Lutzer também escreve sobre estes pecados. Ele adverte que “as doenças sexualmente
transmissíveis são a salvaguarda de Deus para conter a promiscuidade” (Lutzer, 1984: 37).
Há capítulos específicos para o “pecado da masturbação” (“E se eu fizer sozinho, é

105
pecado?”) e para o “homossexualismo” (“Meu amigo, o homossexual”). O texto faz
menção ainda ao “divórcio” como uma das transgressões ao plano de Deus (Lutzer, 1984:
54). Boa parte do conteúdo está assentada na idéia de que a “tentação” e as “paixões”
levam ao descontrole do sexo e que, nos dias atuais, os cristãos enfrentam mais provações
em decorrência de uma corrosão da “resistência moral”. As inclinações homossexuais são
oriundas não de fatores naturais (inatos), mas “ambientais”. Em primeiro lugar, as famílias
modernas não oferecem bons modelos de masculinidade. Em segundo, ocorrem “danos
psicológicos” oriundos de “abusos sexuais”. A Bíblia adverte, no Antigo Testamento, que a
atividade homossexual é um pecado que pode ser punido com a morte. Já no Novo
testamento, Paulo prega a “luta contra o corpo” e ensina a importância de buscar a
“mudança”.
O livro O Eros redimido: conheça as estratégias de satanás em relação aos pecados
sexuais e a redenção maravilhosa de Deus para quem o busca, é escrito pelo americano
John White (2004), um evangélico de formação em medicina e psiquiatria. Como o
anterior, há um capítulo separado sobre “masturbação” (“Sexo para solitários”). A análise
introduz novos elementos. Esta prática sexual é pecaminosa porque “transforma em deuses
as sensações físicas e o alívio da tensão”. Nesse caso, o prazer se torna “luxúria” e
“idolatria”. A masturbação é um pecado grave porque “aumenta a suscetibilidade da
pessoa a cometer outros desvios sexuais”. As “vítimas” dessa transgressão freqüentemente
cultivam fantasias sexuais e incorrem em outros pecados. O livro concentra boa parte de
sua atenção na discussão das causas do pecado do “homossexualismo”. Dez capítulos
mencionam o assunto, quatro deles dedicam-se a demonstrar como este comportamento é
resultante de uma “confusão de gênero”. Vejamos os argumentos.
A ocorrência de dúvidas quanto aos conceitos de masculino e feminino seria comum a
todas as pessoas, devido às influências culturais da sociedade. Em graus moderados, elas
podem ser administradas sem afetar a heterossexualidade do indivíduo. Em graus mais
dramáticos, leva a questionamentos sobre a orientação sexual, ensejando o sentimento de
atração por parceiros do mesmo sexo. A “confusão de gênero” induz à “confusão de
identidade sexual”, cujos sintomas podem ser “sonhos homossexuais” ou “preocupação
com o corpo e os genitais de pessoas do mesmo sexo”. Argumentos semelhantes são

106
empregados por vários autores, cuja ênfase será concedida ao procedimento da “restauração
sexual” (Paynne, 2001; 1994; 1993; Bergner 2000; Davies e Rentzel, 2001).
Os pecados sexuais podem ser fruto também de “maldições”. As “perversões” e os
“maus comportamentos” na área do sexo podem ser adquiridos pelo indivíduo por meio de
“heranças familiares”. Argumenta-se que indivíduos tendem a reproduzir os padrões morais
de seus parentes. A literatura está repleta de narrativas deste tipo. Neuza Itioka (2003), no
livro “Deus nos resgata de toda maldição”, conta o episódio de um pastor “de família
espírita” que possuía casos de lesbianismo e homossexualismo e necessitava de libertação
de “maldição familiar”. Ela relata o caso de Sabrina, uma jovem cuja família possuía fortes
vínculos demoníacos, em decorrência de tios com problemas de “prostituição”, “adultério”
e “homossexualismo”, e de um avô “viciado sexual”. Em função disso, ela já vivera em
“ajuntamento” [relacionamento afetivo-sexual sem a benção do sagrado matrimônio] e hoje
era viúva. Em sua família havia uma “porta aberta” para “espíritos de impureza” e uma
sessão de libertação trouxera a quebra desses padrões.
O prazer sexual é enfocado em alguns textos, em especial, naqueles que tratam da
família segundo o modelo religioso. É interessante examinar que ele é valorizado no
contexto do casamento cristão. Não se trata de uma associação obrigatória entre reprodução
e sexualidade, mas de formulações cosmológicas que consideram a centralidade e a
manutenção da família. Desta forma, outras expressões da sexualidade que transgridam
esse modelo são ameaçadoras. Vejamos alguns dos desenvolvimentos dessa linha de
argumentação. No livro “501 pensamentos do Bispo Macedo” problematiza-se o prazer
sexual, em especial nos itens Família e Vida conjugal do homem de Deus. O argumento
central sustenta a tese de que “a base do casamento está na cama” (Macedo, 1997: 56) e “é
praticamente impossível que a família vá bem, se o casal não tem uma vida sexual normal”.
Isso ocorreria porque “O homem de Deus tem que ter seu leito imaculado, mas sempre em
atividade, para não cair na cama do diabo”. O prazer sexual e uma espécie de “termômetro
que mede a espiritualidade do homem de Deus”.
O pastor assembleiano Silas Malafaia no livro Vencendo as tentações adverte que
“não foi o diabo quem inventou o sexo” e que “Deus deu ao homem o desejo e a libido”.
Homem e mulher devem satisfazer seus “apetites sexuais”, importando analisar a natureza

107
(demoníaca ou divina) do prazer sexual. Como problemas que “afetam o relacionamento
sexual”, a ejaculação precoce e a impotência devem ser evitadas. Quando ocorrem podem
ser passíveis de tratamento e “cura espiritual”, sob pena de destruírem a “união firmada por
Deus”. A satisfação do prazer dentro do casamento é obrigatória como forma de livrar os
parceiros dos diabos, que dispersam, seduzem, arrastam para dimensões perigosas do
desejo sexual, dentre elas a prática homoerótica (Malafaia, 2003). Macedo (1999) reforça
essa idéia no livro O perfil da família de Deus, no qual afirma que o casamento é a “mais
honrada de todas as instituições” (Macedo, 2001: 40), enquanto o “sexo anal” ou
“sodomia” “desagradam a Deus”. Marido e mulher devem manter um “leito imaculado” e
“viver em harmonia sexualmente”, para não “dar chance ao diabo”.
A questão do prazer sexual reaparece no texto “O cristão e a sexualidade”, também de
Silas Malafaia (2003b). Ele retoma a análise dos pecados sexuais e insiste que, para evitar
“cair em tentação”, é essencial que o casal tenha a “intimidade aprovada por Deus”. As
carícias são fundamentais e elas não devem ser apressadas, mas “satisfazer plenamente um
ao outro”. “Deve haver aumento e intensificação gradual” e “na união matrimonial os
cônjuges são livres para desfrutar seus corpos como lhes agradar, com o consentimento de
ambos”. Mas é preciso estar atento: “O homem não pode ser egoísta, satisfazendo apenas a
si mesmo”, mas “atender às necessidades da esposa”. No fim do ato sexual, “as chamas da
paixão e prazer se aquietam e dão lugar a um ambiente de beleza a tranqüilidade”. Assim,
novas carícias devem levar a um “relaxamento total”. O texto constitui um verdadeiro
manual para uma “sexualidade sadia”, com menções, inclusive, a respeito de desempenhos
sexuais que ajudariam a manter um “casamento cristão”, livrando das tentações e dos
desejos da carne.
Apesar da homossexualidade ser inserida em uma ampla lista de outros pecados
sexuais, há uma preocupação adicional com ela. Em alguns textos menciona-se que este
seria o pecado sexual mais grave, mais abominável diante de Deus, que importa em um
terrível castigo divino. A homossexualidade “irrita”, “enfurece”, provoca a “ira de Deus”.
Por este motivo, epidemias e doenças podem ser providências divinas para conter a
“promiscuidade homossexual”. É produzida uma associação entre “homossexualismo”,

108
morte e castigo de Deus. Outro elemento a ser considerado é que há, em especial, maior
ênfase na abordagem da homossexualidade masculina.
Esse argumento é empregado por Claudionor Corrêa de Andrade (1987), ministro do
evangelho da Assembléia de Deus, autor do livro Há esperança para os homossexuais.
Ainda que ele considere a homossexualidade feminina também um pecado, sua exortação
direciona-se às relações masculinas, intrinsecamente “promíscuas” e descontroladas. Com
base em casos exemplares de dois homossexuais famosos (o ator norte-americano Rock
Hudson e o escritor inglês Oscar Wilde), Andrade reflete sobre o trágico fim reservado a
todo homossexual: Aids, solidão, morte e suicídio. Rock Hudson, morto vítima da Aids em
1986, “homossexual assumido e habituado às mais desenfreadas orgias, tornou-se vítima de
sua própria depravação”. Já Oscar Wilde, para o autor, é um exemplo da forma como o
pecado “acelera a degeneração do ser humano”; “sua patética história é a inexorável
redução de um homem a um zero humano”, é a prova de que “tudo aquilo que o homem
semear, isto ceifará” (Andrade, 1987). Vale ressaltar que, ainda que outros textos se refiram
à homossexualidade de homens e mulheres em um plano ideal, há um descompasso na
ênfase concedida a essas práticas.73 Júlio Severo (1998) é autor do livro “O movimento
homossexual: sua história suas tramas e ações”. Nele, emprega complexa associação entre
homossexualidade, crime, doença e perigo. No capitulo “O homossexualismo e as
conseqüências sociais”, apresenta estatísticas que comprovariam que homossexuais tendem
à prática da violência, que inclui estupros, homicídios e assassinatos. Severo considera que
alguns dos mais famosos “assassinos em série” eram homossexuais ou bissexuais. Com o
crescimento dos direitos dessa população cresceria proporcionalmente o número de vítimas
dessa violência. Isso ocorreria, também, porque homossexuais tenderiam a preferir se
relacionar sexualmente “com meninos”. Outro aspecto levantado é a associação entre
homossexualidade e a contaminação por doenças. Para ele, as “práticas sexuais dos homens
homossexuais, envolvendo copulação oral após a sodomia retal assim como a contaminação
dos dedos e das mãos durante os atos homossexuais, estão fazendo espalhar uma variedade
de parasitas, bactérias e vírus pela sociedade” (p. 69). A imagem mais recorrente da
73
Entre os autores estrangeiros há maior simetria na problematização das práticas homossexuais masculinas e
femininas. Contudo, pretendo fazer uma alusão à cura da homossexualidade, com base também na literatura
estrangeira, restringindo o tema à homossexualidade masculina.

109
articulação entre homossexualidade-impureza-contágio diz respeito à propagação da Aids,
embora esta não seja a única doença sexualmente transmissível que os homossexuais
“vivem a espalhar”. Práticas homossexuais, por serem antinaturais, culminam no castigo de
Deus. A dicotomia natureza versus antinatureza é, portanto, fortemente marcada. A partir
dela se estruturam outras oposições: salvação-inferno, pureza-impureza, vida-morte,
casamento-solidão, felicidade-destruição, santificação-pecado. Em um texto distinto, o
autor afirma que “é muito mais fácil os homens se tornarem homossexuais, e isso em
grande número, antes de as mulheres se tornarem lésbicas” (2004, p. 29).
A perspectiva comparativa é interessante porque ilustra o lugar da homossexualidade
entre os demais pecados sexuais, sobretudo, no que tange ao esforço ritual para seu controle
e contenção. Uma preocupação mais intensa emerge com o surgimento de ministérios
específicos, grupos de ajuda mútua, terapias, indicando a existência de maior atenção
pastoral. Também se observa essa ênfase em títulos que contemplam a “cura” da
homossexualidade. Cerca de sete títulos analisados podem ser referidos como manuais de
ajuda para “sair do homossexualismo”. Outros textos apresentam instruções em capítulos
destacados.
Após as discussões sobre origens e causas, são apresentados na literatura os passos
para a restauração e cura dos pecados sexuais. John White (2004) explicita que para
redirecionar uma inclinação sexual, homens e mulheres devem arrepender-se, procurar
apoio de um grupo (ou amigo “genuinamente convertido”) e buscar a renovação dos
hábitos mentais. O processo de libertação envolve necessariamente a aceitação da
“disciplina de Deus”. A reparação só pode ser obtida por meio da submissão e humilhação
perante o Senhor. A batalha é por situar o pensamento no campo das “coisas de Deus” ou
dar vazão aos “desejos carnais”. De forma semelhante, Lutzer (1984) instrui que o
principal, o mais poderoso instrumento, é a “oração”. Pois, o único modo de “vencer a
carne” é estar “cheio do Espírito Santo”: “o cristão só estará de pé frente ao pecado caso
esteja cheio de Deus”.
Para Malafaia (2003b), as armas contra os desejos da carne e contra a
“concupiscência” são: jejuns, estudo exaustivo da Bíblia, disciplina da vontade, oração,
vigilância constante (reconhecer as áreas de maior fraqueza e colocar-se em oração).

110
Boa parte dos livros situa como um dos métodos para a libertação a realização de um
inventário sobre os pecados já praticados pela pessoa. Estes são divididos basicamente em
dois conjuntos: a) práticas de religiões não-cristãs; b) pecados sexuais. Isso pode ser feito
através de sessões de aconselhamentos contínuas, semanais ou em rituais específicos. No
livro Saindo do cativeiro, Emerich (2004b) publicou, sob a forma de apêndice, um
questionário com perguntas que devem ser dirigidas ao aconselhado. Dividido em seis
diferentes partes, uma delas é dedicada ao inventário na sexualidade. Nela, o fiel deve
responder um total de vinte e uma questões, dentre elas se já: praticou masturbação; fez
sexo com parentes próximos; participou de sexo em grupo; teve experiências
extraconjugais; fez sexo anal; teve atos homossexuais; fez sexo com animais, consumiu
pornografia, fez pacto de sangue com algum parceiro, teve comportamentos sensuais ou
lascivos, entre outras. A parte quatro do inventário (“Quebrando as alianças com deuses”)
prossegue e o fiel deve responder: a) se já manteve contato com entidades malignas como
pomba-giras (se serviu aos santos ou se já consultou alguma); b) se atualmente têm
“pensamentos impuros”. A parte seis (“Quebrando as maldições hereditárias”) indaga a
respeito dos “pecados familiares”. O fiel deve indicar os pecados mais acentuados nas
gerações passadas (incluindo os pecados sexuais, fornecendo os graus de parentesco com a
pessoa (se tio, mãe, pai, irmão, avô).
Nas sessões de aconselhamento e libertação, os “ajudadores”, “obreiros”, “ministros
de libertação”, devem incentivar o indivíduo a ter contato com suas emoções. O
aconselhador precisa “saber ouvir”, “fazer as perguntas certas” e direcionar a fala do
aconselhado para delimitar “áreas de trabalho” (a criação com os pais, o relacionamento
com o cônjuge, as amizades etc). Para cada uma dessas áreas será empregada uma “oração
de cura”, através da qual o Espírito Santo é invocado para remover “feridas enraizadas”.
Para cada episódio da vida da pessoa, pode-se realizar uma “oração pelas memórias
doloridas” e caminhar para que, ao final do processo seja feita uma “oração geral”. As
etapas em um processo de cura/ libertação são: “arrependimento”, “confissão”, “oração de
cura” e “restauração das emoções” pelo Espírito Santo. Devem ainda ser empregadas
orações “de renúncia” e “oração de desligamento” do pecado, nos casos em que há alianças
demoníacas poderosas. A entrevista e as sessões de aconselhamento permitem que o

111
ajudador produza uma lista das possíveis entidades que estão influenciando a pessoa. Em
seguida, através de orações específicas, cada um dos espíritos malignos são repreendidos e
expulsos “em nome de Jesus”.
Apesar disso, os demônios podem retornar e por isso é indicado ainda que o
aconselhado queime objetos, fotos, amuletos, imagens, quadros, livros, tudo que possa ter
ligação com os pecados cometidos, de modo que não haja “pontos de contato” para que o
demônio retorne e volte a aprisionar a pessoa. Vejamos mais de perto as instruções quanto à
mudança na orientação sexual.

2.3.1 CURA DA HOMOSSEXUALIDADE

Dois artigos de Júlio Severo (1998) possuem títulos sugestivos: “Ação cristã: sarar é
preciso” e “Esperança para o homossexual”. Neles, o argumento central é colocado em
termos de uma ação divina (“cura espiritual”) sobre os sentimentos, pensamentos e
condutas. A mudança de uma inclinação sexual só pode ser empregada por meio de uma
transformação/ reestruturação no modo como o sujeito lida com as recordações do passado.
Para vencer os desejos incontroláveis é preciso desenvolver a “vontade”. Em Bradford et al
(1978) “a cura para o homossexual”, indica-se que o processo envolve uma decisão de
“adotar uma vida celibatária ou heterossexual” (: 71). Jesus, então, ‘mudará’ o “anseio
homossexual” para o heterossexual ou para uma “vida de abstinência”. A instrução é para a
‘autonegação” e para o desenvolvimento do “autocontrole”. Há conselhos de semelhante
teor no livro de Ankenberg (1974) “Como posso deixar o estilo de vida homossexual?”.
Neste texto, o celibato é referido como uma transição para o desenvolvimento da
heterossexualidade. O autor adverte que o homossexual em luta pela cura de sua orientação
sexual deve compreender: os desejos não cessam automaticamente, mas a vitória requer
paciência e perseverança.
A análise desses manuais permite visualizar uma gramática da libertação da
homossexualidade. Uma etapa inicial requer o “arrependimento”. O pecador deve
reconhecer e admitir seu problema e compreender que está “no erro”, agindo

112
contrariamente à Lei de Deus. Somente após esse primeiro passo, poderá almejar a
“redenção”. O aconselhador pode ajudá-lo a compreender os fatos à luz das Escrituras. A
etapa posterior é a confissão dos pecados ao “conselheiro espiritual”. Esta fase requer o
inventário da trajetória pregressa do sujeito, quanto mais exaustivo mais eficaz será no
processo de libertação. Inúmeros autores desses manuais insistem na importância dos
eventos, fatos, circunstâncias que compõem a vida de pecados. Trata-se de uma confissão
verbal e um pedido de perdão a Deus. Em seguida, pastor ou ministro procede “orações de
cura”, por meio das quais é iniciado um processo de “quebrantamento” perante o Senhor.
Em alguns casos, há necessidade de orações de desligamento de demônios e, inclusive,
promovem-se a prática de exorcismos e expulsão de entidades demoníacas. Posteriormente,
o indivíduo compromete-se e aceita submeter-se a um “plano de disciplina de Deus”. Esta é
uma das etapas mais centrais, todo vínculo com o passado deve ser rompido (atividades
sociais e culturais devem ser mudadas, amizades e relacionamentos antigos precisam ser
abandonados). Ao mesmo tempo, o homossexual deve obter ajuda em grupos de apoio e
participar intensamente da vida congregacional de uma igreja. Alguns recursos são
indicados como “biblioterapia” (decorar versículos bíblicos). Também faz parte da
caminhada na mudança resistir às tentações e “fugir dos maus caminhos”. Provações devem
ser enfrentadas, recorrendo ao poder de Deus para a renúncia. Inicia-se um processo de
desenvolvimento da vontade. As etapas subseqüentes envolvem a procura de uma parceira
na igreja e a constituição de uma família de Deus: o casamento é etapa fundamental na
recuperação e desenvolvimento de uma nova identidade. Na literatura religiosa, os
exemplos são fartos.
Há relatos da diminuição do desejo e do despontar do impulso heterossexual, bem
como de “cura na masculinidade e feminilidade”. Exploraremos mais detidamente, alguns
desses relatos e as suas nuances.
O tópico da “cura das memórias” será amplamente desenvolvido por Leanne Payne,
autora de “A cura do homossexual” (1994) e “Imagens partidas: restaurando a integridade
pessoal por meio da oração” (2001). Este último título apresenta os relatos de Lisa, Mateus
e outros “ex-homossexuais” que se submeteram ao processo de “restauração” e obtiveram
“cura” na “identidade de gênero” e “restauração” da “identidade heterossexual”. Nos

113
capítulos “A busca de identidade conforme as Escrituras” e “Crise de identidade conforme
as Escrituras”, ensina-se que, aprendendo a “obediência a Deus”, masculinidade e
feminilidade vem à tona. Um dos casos analisados estava relacionado à “opressão
demoníaca” vivida por um homossexual masculino. O “trauma” decorre do desejo de sua
mãe em ter uma filha, quando este ainda estava em seu ventre. O componente psicológico,
conjugado ao espiritual, é ressaltado, uma vez que ele desenvolvera uma obsessão mental,
cujos sintomas se manifestavam sob a forma de “fantasias homossexuais”. O opressão
demoníaca originou-se quando ele passou a ter “comportamentos homossexuais” e não
apenas pensamentos. Essa ação maligna instaurou-se em sua mente, isto era evidente pelo
desenvolvimento de um constante interrogar-se sobre sua orientação sexual, imaginando ser
gay. Outro exemplo, o de José, era também relacionado a experiências traumáticas na
infância. Ele seguira o modelo de gênero da mãe, adotando seu jeito de andar. Seus gestos
eram decididamente femininos: “suas características masculinas eram subdesenvolvidas e
as características femininas eram plenamente desenvolvidas”.
Em todos esses casos, os homossexuais necessitavam compreender a origem de sua
“compulsão homossexual”, para que pudesse ocorrer, por meio de “oração de cura”, a
remoção de imagens mentais ligadas ao homossexualismo. Ao descobrir a origem de seu
problema, o aconselhado precisava reviver o “trauma raiz”, perdoar o agressor e a si mesmo
e, então, estaria pronto para desenvolver uma nova identidade. A libertação da
homossexualidade masculina envolvia quase sempre a descoberta de uma masculinidade
reprimida. Curar-se era liberar uma energia masculina represada, desviada de seu curso e
destino natural pela identificação com o gênero oposto. Como procedimento ritual ela
sugere a “oração pela liberação do impulso heterossexual normal”, com a invocação da
presença do Espírito Santo para o despertar da energia sexual dormente. Cito um relato que
a autora faz de uma situação em que emprega essa oração:

[...] ungi sua testa com óleo, pedi que nosso Senhor entrasse, curasse e
colocasse no curso normal os desejos e impulsos sexuais normais do José de
dezessete anos. [...] Após esta oração, eu o conduzi para, consciente e
deliberadamente, mudar seus trejeitos, sugerindo que ele selecionasse o homem
mais masculino que pudesse imaginar como seu modelo – alguém a quem ele

114
admirava como cristão, como líder, marido e pai – e isso ele prometeu fazer
(Payne, 2001, p. 80).

Relatos semelhantes são feitos em distintos manuais de ajuda para sair da


homossexualidade. “Amor restaurado: esperança e cura para o homossexual”, de Mário
Bergner e “Deixando o homossexualismo: uma nova liberdade para homens e mulheres”,
de Bob Davies e Lori Rentzel (Figuras 16). Os dois livros são escritos sob a forma de
testemunhos de ex-homossexuais. Em ambos, enfatiza-se que para atingir a cura das
memórias, é preciso buscar a raiz do problema, localizando as lembranças para situar
quando e onde se deu o desvio de um curso normal da sexualidade. Bergner curou-se da
“ambivalência pelo mesmo sexo”, um misto de “inveja” e “atração” que desenvolvera. Seu
encontro com Deus e libertação ocorrera após a descoberta da soropositividade. Após
orações de libertação e a expulsão de uma legião de demônios, compreendeu como “um
senso seguro de pertencer ao próprio gênero” era fundamental para desenvolver uma
“identidade pessoal saudável”. No livro “Deixando o homossexualismo”, particularmente
interessantes são os capítulos ”Expondo as raízes”, “Quebrando padrões viciados” e
“Mudança na identidade do eu”. Eles descrevem o processo por meio do qual o
homossexual que está em busca de uma nova identidade pode trabalhar áreas de seu
comportamento, de modo a obter maior controle sobre a sexualidade e modificar padrões
“viciados”. Em primeiro lugar, estabelece que pensamentos homossexuais não são pecados,
e sim, a prática do homossexualismo. Em segundo, compreender que a força espiritual
cresce na mesma medida em que se exercita o autocontrole. Estímulos homossexuais estão
por toda parte e toda cultura, de modo que é necessário desenvolver um senso adequado de
quais os “gatilhos” que levam a pensamentos pecaminosos e “tentações”. Estes podem ser
físicos e emocionais. É preciso trabalhar sobre eles. Os autores sugerem um exercício
prático. Observar-se atentamente, anotar os “padrões”. Por exemplo, em que horas esses
pensamentos ocorrem, em que dias da semana, do mês e do ano. Indica-se que se faça um
inventário das sensações ligadas ao “sentimento homossexual”, através de anotações sobre
as circunstâncias das tentações. Esse registro deve ser feito por várias semanas consecutivas
(ou meses), de modo a subsidiar estratégias preventivas. Observa-se que “estímulos
homossexuais” tendem a diminuir com o tempo, mas é necessário resistir aos pensamentos

115
através de oração. Padrões de despertamento homossexual são mais comuns em homens e,
por isso, eles precisam trabalhar mais a resistência. A “limpeza da mente” implica no
abandono de todos os “símbolos do passado”: “pornografia”, “brinquedos eróticos”,
“revistas”, “livros gays”, “roupas sensuais”. A libertação não é uma cura instantânea, mas
um processo. Os autores admoestam no capitulo “A mudança na identidade do eu”,
especificamente na seção “Aceitando a nossa própria identidade de gênero”, que “muitos
homens ex-gays têm lutado contra a síndrome da passividade”. Ex-gays que preservam em
si características femininas como a “passividade”, fatalmente se sentirão atraídos
sexualmente por homens atirados, agressivos e confiantes. Parte dessa atração cessa quando
esse homem modifica sua personalidade e ‘resolve’ sua própria passividade. Jesus Cristo é
um modelo de gênero, com sua “masculinidade piedosa”. Ele deve ainda buscar outros
exemplos no texto bíblico. O capítulo doze revela a meta do tratamento (“Preparando-se
para o casamento”): ex-gays não devem recear o casamento por “temores infundados”, pois
“fazer amor é uma arte que se aprende”. Alguns conselhos práticos são oferecidos ao casal:
é indicado que a parceira e futura esposa de um ex-homossexual tenha conhecimento sobre
seu passado; o casal não deve se sentir pressionado a fazer sexo na noite de núpcias; ele
pode levar um manual sobre sexo para a lua de mel; o casal deve orar sobre sua relação
sexual e, sobretudo, conversar antes, durante e depois do ato sexual. Um mito a ser
enfrentado é que a tentação cessa com o casamento. Ex-gays precisam lidar com o fato de
que muitas vezes serão acometidos por desejos por pessoas do mesmo sexo.
Na literatura, libertação, controle da mente, exorcismos, cura na masculinidade são
dimensões da restauração sexual que possibilitam a um homossexual tornar-se um
“heterossexual em Cristo”. Mas o que essa literatura ajuda a compreender sobre o religioso
na atualidade? Em primeiro lugar, ela sugere a existência de modalidades rituais, nas quais
estão imbricados métodos e teorias advindas das práticas ‘psi’ com concepções teológicas e
cosmológicas. O fato de estarem disponíveis em livrarias e serem consumidas por leitores
de diferentes segmentos, também é significativo de seu potencial exemplar. Ela oferece um
modelo de atuação pastoral, indicado aos lideres religiosos. Por outro lado, “instrui” os fiéis
e pessoas comuns, quando direcionada a todo indivíduo que necessita de cura ou libertação.

116
2.4. RELIGIÃO, PSICOLOGIA, “VIDA CRISTÔ E HOMOSSEXUALIDADE

Retornarei aqui à análise de Foucault (1997), de forma a esboçar um modelo


interpretativo do fenômeno em questão. Conforme sinalizei no início do capítulo estão em
jogo, no contexto descrito, menos repressão do que produção de teorias e explicações. A
incitação ao falar sobre o sexo é premente, sendo a confissão uma técnica recorrente sobre
as mais variadas modalidades: aconselhamentos, ritos de libertação, terapias, dentre outras.
A análise aqui apresentada mostra como é profícua a interrogação dos indivíduos acerca de
suas pulsões e desejos sexuais. Foucault destaca que a confissão consistiu historicamente
um poderoso instrumento de produção de verdade desde a Idade Média. Elaborados
métodos de interrogatório e inquérito substituíram os “juramentos”, “duelos” e
“julgamentos de Deus” (Foucault, 1997: 58). Em termos de processos sociais, assistiu-se a
passagem de um modelo de verdade baseado no outro (centrado na relação com a família,
lealdade e proteção) para um distinto, cujo corolário é a relação consigo mesmo, com suas
próprias ações e pensamentos:

A confissão passou a ser, no Ocidente, uma das técnicas mais altamente


valorizadas para produzir a verdade. Desde então nos tornamos uma
sociedade confessanda. A confissão difundiu amplamente seus efeitos: na
justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações
amorosas, na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes; confessam-se os
crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos, confessam-se passados e
sonhos, misérias; emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser
dito; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao
médico, àqueles a quem se ama; fazem-se a si próprios, no prazer e na dor,
confissões impossíveis de confiar a outrem, com o que se produzem livros.
Confessa-se ou se é forçado a confessar. Quando a confissão não é
espontânea ou imposta por algum imperativo interior, é extorquida;
desencavam-na na alma ou arrrancam-na ao corpo. (...) O homem, no
Ocidente, tornou-se um animal confidente” (Foucault, 1997: 59).

A análise pode ser iluminada recorrendo à reflexão de Luiz Fernando Dias Duarte
(2005), sobre o estatuto do religioso na modernidade. Este autor destaca que o espaço da

117
religião abarca muitos valores não confessionais, implicando numa complexa trama cultural
relacionada à difusão de uma cultura individualista em diferentes segmentos, que inclui
processos de psicologização. O autor ressalta a possibilidade de negociações combinatórias
entre linhas de força tradicionais e modernas. Neste sentido, é possível analisar a esfera da
religião por meio de uma visão mais ampla, identificando como os indivíduos costuram
suas experiências e identidades laicas e religiosas. Trata-se de pensar o religioso não como
esfera social autônoma, mas comportando “atravessamentos” típicos da
contemporaneidade. Evidencia-se a existência de um mercado de alternativas religiosas no
qual emergem mecanismos de gerenciamento da vida cotidiana em seus mais variados
aspectos, incluindo a sexualidade (Lewgoy, 2005; Duarte, 2005). Para Duarte, uma
importante dimensão dessas mudanças culturais diz respeito à passagem histórica de um
“dolorismo cristão” - cuja ênfase está na noção de sacrifício - a um “hedonismo
generalizado” - caracterizado pela prevalência da busca de bem-estar, do privilégio da
satisfação e do prazer neste mundo, por meio de uma realização emocional (Duarte, 2005:
157).
Duarte e Carvalho (2006) fornecem novos elementos para esta reflexão ao apresentar
uma visão geral do estado atual das relações entre saberes psicológicos e religiosidade no
Brasil contemporâneo. Esboçam uma interpretação acerca da interpenetração entre religião
e psicologia, a partir da análise do desenvolvimento, difusão e institucionalização de uma
didática cristã - que visa responder às demandas criadas pela crescente modernização dos
cenários culturais entre os anos 1970 e 1980. Para os autores, nas igrejas evangélicas ocorre
um fortalecimento progressivo dos saberes e práticas psicológicas que são incrementadas
por missões internacionais de “aconselhamento cristão” e de “cura interior”. No Brasil, esta
psicologização se dá por meio de cursos destinados ao público religioso evangélico com
vistas à formação de missões ministeriais interdenominacionais. Características principais
desse ‘movimento’ são a “releitura da psicologia a partir da Bíblia e uma ênfase no caráter
diretivo-educacional e aconselhador de questões emocionais diversas” (2006: 19).
Discursos religiosos apóiam-se em uma concepção da pessoa que articula a verdade de si à
vontade de Deus:

118
A esta relação vontade-consciencia acrescenta-se ainda uma
interioridade objetivada e moral/relacional, estruturada de tal forma
que a virtude moral associa-se à saúde mental, tanto quanto à patologia
associa-se a desvio moral. A família ocupa um lugar central aqui,
sendo o campo por excelência onde esta estruturação inconsciente do
sujeito (e de suas patologias) irá acontecer. Todo o processo de
estruturação do sujeito (as fases de desenvolvimento da sexualidade
infantil, o complexo de Édipo, a formação do superego e dos
mecanismos de defesa do ego etc), assim como os quadros
considerados psicopatológicos (violência, homossexualidade, neuroses
obsessivas, fobias, perversões, tendências à mentira e outros), têm
como cenário central a vida familiar, de tal forma que as intervenções
visam tanto a clínica psicoterápica quanto as campanhas missionárias
de educação familiar (Duarte e Carvalho, 2006: 20-21).

Lewgoy (2005) abordou a emergência de hibridismos entre teologia, religião e


saberes psicológicos, analisando semelhante literatura religiosa. Para o autor, as
transformações que atingem a religião na contemporaneidade são marcadas por um
crescente processo de destradicionalização. Uma hibridização entre os campos da
psicologia e religião é decorrente de profundas alterações nas visões de mundo e estruturas
familiares desde a década de 1960, apontando para um “afrouxamento” de posicionamentos
conservadores de vertentes evangélicas quanto ao “prazer sexual na esfera conjugal” e a
homossexualidade. Em contexto de “crise das fontes tradicionais de autoridade e sentido”,
oriundas de uma pluralização das respostas denominacionais aos problemas cotidianos, o
mercado religioso articularia teologia e linguagem da psicologia em duas tendências: uma
de ênfase na “vida cristã” (que instrui especialmente mulheres para a manutenção da vida
familiar) e outra com foco na “vida psicológica” (com promessas de equilíbrio emocional e
felicidade, para vencer problemas de “depressão”, “perdas” e outros aspectos da vida
mental). De acordo com o autor, o discurso promove arranjos da linguagem da psicologia, a
novos imperativos teológicos. Testemunhos pessoais de conversão e ‘mudança’, presentes
na literatura, motivam crentes a manter e confirmar a fé diante de mutações morais que
afetam a sociedade contemporânea como as transformações nas estruturas e relações
familiares, a emergência de estilos de vida dos grupos urbanos, questões atinentes à vida
financeira, juventude e envelhecimento, aos relacionamentos amorosos, ao prazer e ao

119
exercício da sexualidade, alterações no lugar social da mulher na família e nas próprias
instituições religiosas. 74 Esta literatura
“lida com os meandros da subjetividade de experiências religiosas avivadas por
despertamentos e conversões (...) tais livros oferecem uma miríade de metáforas,
exemplos, narrativas e alusões bíblicas que, justamente por sua flexibilidade e
fragmentação, permitem ao fiel dinamizar identificações simbólicas de sua
experiência pessoal com Deus, tornando-a tangível, estável e aplicável a situações
concretas” (Lewgoy, 2005: 4).

O caráter motivacional desses escritos investe a prática religiosa com uma “cultura
subjetiva” na gestão de problemas cotidianos (Lewgoy, 2005: 4). É dentro desse contexto
que a sexualidade homoerótica é focalizada em alguns títulos, em especial por meio de
testemunhos de ex-homossexuais, cuja categoria identitária nativa “heterossexual em
Cristo” assinalaria formas de gestão de si que implicam na recusa da identidade de
homossexual. Explicações sobre a origem do comportamento são oferecidas ampliando o
universo cosmológico. Não se trata apenas de influência ou “tentação demoníaca”, mas da
instituição de “mitos sócio-patológicos”, nos quais experiências de “violência”, “abusos
sexual”, “emocional” conduzem a problemas de auto-estima e relacionamento, originando
essa orientação sexual. Nessa leitura da constituição das identidades sexuais, ser lésbica ou
gay não é apenas uma abominação, mas um “estilo de vida”, uma subcultura que, talvez,
tenha origem em experiências familiares mal sucedidas. Homossexuais são sempre vítimas
de indiferença, preconceito, abusos emocionais, violência. A hybrys sociopsicológica está
na origem do desvio homossexual que, evidentemente, abre-se para a condenação e a
decodificação teológica tradicional, na qual a libertação é um passo ligado à “fé “e à
“conversão”. (Lewgoy, 2005: 15). O ‘tratamento’ busca “restaurar” uma identidade
heterossexual alienada por experiências traumáticas. A “cura” implica no exercício de um
“comportamento social saudável”, que asseguraria o “resgate da auto-estima”.
A análise apresentada por este autor é compatível com o argumento que venho
desenvolvendo acerca de uma explosão discursiva sobre sexualidade entre evangélicos.
Minha hipótese, contudo, é que ocorre uma proliferação de conteúdos direcionados aos
74
O autor sugere que no mercado editorial evangélico há consumo interdenominacional dos títulos voltados
ao “crescimento espiritual”, gênero que através de testemunhos explora diálogos com o leitor.

120
homossexuais, relacionados à visibilidade e reconhecimento dessa população na esfera
social. Não se pode minimizar o potencial regulador desses discursos ao instituir novos
limites entre o proibido e o permitido. O inventário dos “pecados sexuais” descrito neste
capítulo evidencia como as condutas sexuais transgressoras da norma merecem ‘cuidado
pastoral’ de modo a preservar os modelos existentes no religioso. Práticas sexuais
dissidentes destes necessitam de reparo. Em termos da construção social da
homossexualidade são elaboradas visões negativas, incidindo sobre o “pecado mais
abominável”, desqualificação e estigmas. Os discursos evidenciam a construção de um
personagem perigoso, cujo controle e conversão são necessários para a manutenção da
ordem, como observamos no primeiro capítulo. O potencial regulador dessa literatura e
discursos é proeminente, afirmando o poder da vontade e a importância do autocontrole.
O exame da literatura religiosa enfatizou que, na atualidade, religião e linguagens
modernas de mapeamento do self são complexamente costuradas, implicando em
combinações inesperadas, hibridismos entre teologias e terapias, imperativos morais e
técnicas de auto-exame, linguagens relacionais e ênfases individualizantes. Nessa complexa
colcha de retalhos ocorrem mútuas influências culturais que criam novas formas rituais.
Articulam-se noções da tradição religiosa, como a idéia do pecado, às tecnologias de si que
incentivam o desenvolvimento de uma ética sexual. A confissão é o principal método para a
cura, posto que sem ela não há libertação. Trata-se de uma técnica de direção espiritual,
que tem por objetivo a revelação do pecado (Foucault, 2002), na qual o indivíduo é
incentivado a reviver o passado, buscando mapear exaustivamente seus erros. Ritos de
confissão seriam produtores de “verdade”, procedimentos que buscam a conformação do
75
indivíduo às normas da instituição. É importante ressaltar, contudo, o caráter criativo da
confissão pentecostal: o ato de proferir os pecados quebra maldições, interrompe a atuação
maligna, expulsa demônios e permite a intervenção do Espírito Santo na pacificação da
mente e na cura das emoções negativas. Em todo caso, o pecado é tematizado e as
“emoções negativas” devem ser avaliadas. O que está em jogo é o autocontrole do

75
Foucault (2002), ao analisar as origens históricas da confissão católica, considera que esta institui
a revelação obrigatória da sexualidade. A noção é apropriada pelos evangélicos e recriada em
articulação com os métodos de cura espiritual e libertação.

121
76
indivíduo e a submissão de suas vontades à vontade de Deus. A noção de cura das
memórias e das lembranças é exemplar do modo como se articula inventários pessoais,
exame de si à adequação às normas.
Na literatura são presentes distintas concepções de corpo. As noções de carne e
templo do Espírito Santo aparecem com maior ênfase na literatura sobre batalha espiritual,
mas também em escritos e contextos rituais que focalizam a cura da homossexualidade. A
carne que arrasta ao pecado necessita de vigilância. O sujeito de “vontade fraca”, pela
“purificação” pode tornar-se “cheio” do Espírito Santo e adotar postura de renúncia e
resistência. Em concordância com Foucault (2004), estamos diante de tecnologias de si que
visam a instaurar o autocontrole, de forma similar ao ideal celibatário dos primórdios do
cristianismo. A discussão em torno do desejo e do impulso homossexual apresenta o
exercício da vontade como problema axial.
De acordo com Carrara (2000), há duas vertentes no pensamento cristão que
constroem formulações acerca do desejo sexual a partir de distintas concepções de pessoa.
A primeira é caracterizada pela ênfase na abstinência sexual e no ideal do celibato,
buscando a santificação pela conversão, pelo batismo e pelo fervor da fé. Trata-se de um
ideal “autonomista”, que valoriza o autocontrole e o domínio de si em relação aos impulsos
da carne. Esta concepção caracterizou o cristianismo em seus primórdios (Foucault, 2004;
Brown, 1990), tendo sido apropriada e reinventada em sua versão puritana com a
emergência do protestantismo e seu ideal ascético (Weber, 2001). Outra formulação
encontra-se em Santo Agostinho, quando este retoma o tema do pecado original. O
pensamento agostiniano apresenta uma teologia que concebe negativamente a sexualidade,
realçando a carnalidade humana, fruto da queda e da prática do pecado original. O fiel

76
Esse conjunto de valores assemelha-se aquele investigado por Tânia Salém (1992) na literatura de auto-
ajuda. Individualidade, vontade e posse de si constituem o núcleo de preocupações a partir do qual são
propostas determinadas técnicas e conselhos. Vale lembrar que no universo pesquisado o termo libertação tem
um sentido bastante particular: libertar-se é recuperar o controle de si, é ver-se livre dos constrangimentos
infringidos pelas potências do mal. Com efeito, há semelhanças entre o discurso religioso e a literatura de
auto-ajuda. Neste sentido, “livre de quaisquer constrangimentos e de determinações externas, o ‘indivíduo
natural’ encontra-se imerso no reino do livre-arbítrio, da escolha, da vontade e da consciência” (Salém, 1992,
p. 11) – mas a proposta pastoral difere pela especificidade de suas técnicas, englobadas pela perspectiva
religiosa. Não se trata, portanto, da produção do indivíduo autônomo moderno, mas de uma autonomia
conquistada pela submissão a Deus, que é quem protege, separa, aparta do mal (Mariz, 1994).

122
carrega a marca indelével do pecado, posto que desejos da carne têm uma base
incontrolável e demoníaca.
No universo dos pecados sexuais que analisei ambas as concepções coexistem: a idéia
da passagem do corpo carne (anterior à conversão, à cura e à libertação) ao corpo templo
(cultivado pelo exercício da ética doutrinária) indica a existência de um ideal de
transmutação da essência da pessoa. É por meio desse pendor ao pecado que são exercidas
práticas antinaturais, abrindo brechas ao maligno. Trata-se de um corpo transpassado pelos
poderes malignos, infestado por legiões de demônios, contaminado, um corpo habitat,
receptáculo dos diabos, portador de desejos equivocados em relação à verdade e à natureza
divina. Adequar a vontade do fiel à vontade de Deus é o princípio que garante o
preenchimento, a habitação pelo Espírito de Deus. Estar pleno é fundir-se à divindade ou
tornar-se Ela. Deste modo, do discurso sobre cura e libertação desponta um “eu”
concebido na dualidade: quando cheio, indivíduo autônomo; quando vazio, indivíduo sem
vontade. Inicialmente, tem-se a concepção do corpo como carne corrompida pelo pecado,
possuída por demônios, que, posteriormente, é transfigurada pelo preenchimento, tornando-
se templo do Espírito Santo. O discurso sobre libertação e cura enfatiza a transmutação da
carne em natureza divina, que devolve a autonomia e vontade ao sujeito. É nesse sentido
que ceder aos pendores da carne e do pecado é permanecer cativo sob o domínio de
Satanás. Em contrapartida, processos de limpeza ritual que incidem sobre o corpo –
transformando-o em templo da divindade - devolvem a vontade e autonomia ao sujeito. A
cura das memórias e a libertação fazem parte do processo de limpeza ritual e busca de
santificação.
Há ênfase em um cultivo de si, na submissão a Deus e na luta contra o mal pelo
autocontrole do sexo. O discurso é exemplo dos modos como grupos religiosos elaboram a
noção de pecado e como se percebem afetados pelas transformações culturais correntes na
contemporaneidade. É nesta visão que uma ampla gama de problemas na esfera da
intimidade pode sofrer reparo divino: a impotência, a falta de desejo sexual, a infidelidade,
o desejo pelo ‘mesmo sexo’. Em todo caso, há prescrições de conduta, visando manutenção
do ‘casamento heterossexual’.

123
Há também o reforço das fronteiras de gênero, ancoradas na valorização dos modelos
de “homem” e “mulher de Deus”. Os homossexuais são temidos por seu suposto potencial
transgressor dessas noções. Como apela a literatura, eles não reconhecem o seu ‘verdadeiro
sexo’. Os escritos analisados colaboram para a construção negativa da homossexualidade
(“pecado”, “abominação”, resultado de “traumas” e “possessões”) - o que permite
aprofundar que a construção social da homossexualidade nesse contexto torna estes sujeitos
perigosos. Estereótipos dos gays como propagadores da AIDS, reciclam idéias correntes no
início da epidemia, como a que promove acusações de “promiscuidade”, privilégio dos
homossexuais. A eles são dirigidas exortações e lhes será facultado o exercício da vida
eclesial, caso resolvam ingressar no projeto de regeneração moral propalado pela religião,
que inclui o casamento ou, pelo menos, a abstinência. A personagem do ex-homossexual
aponta que há lugar para a revelação do pecado normatizado (Natividade e Gomes, 2006).
Uma das preocupações mais correntes é a que associa homossexualidade à “confusão
de gênero”. Note-se que a rejeição da efeminação motiva o emprego de métodos de
reversão que incidem sobre os corpos através da necessidade de tornar certos homens ‘mais
masculinos’ e certas mulheres ‘mais femininas’. É exemplar que o confessor solicite ao
indivíduo, através da “oração pela cura”, que ele eleja como modelo o homem mais
masculino que possa imaginar, correspondente ao ideal do “varão de Deus” (Figura 17).
Esse indivíduo, contudo, deve conservar as características femininas que o assemelhem ao
exemplo de Jesus. Ou seja, preservar a disposição para o cuidado do outro e o amor ao
próximo, sem perder as características inatas de seu sexo: a virilidade, a agressividade e a
força física. Os agentes religiosos que “ajudam a sair da homossexualidade” são
missionários que realizam aconselhamentos, terapias e rituais, de forma a remover a
efeminação de certos indivíduos e, assim, torná-los heterossexuais. Este papel se
assemelha, em muito, ao de sexólogos do início do século passado cujas teorias foram
analisadas por Peter Fry (1982; 1985).
O interessante no contexto descrito por Fry é que diferentes teorias produzidas pela
sexologia e pela ciência médica do século XIX focalizavam como problemas a dita
“inversão sexual”, com especial atenção a questão da preeminência de características
femininas em homens (a dita efeminação) ou a adesão de certos indivíduos a papéis sexuais

124
não condizentes com seu sexo biológico. Defendendo que a inversão sexual podia ser
tratada e não castigada, os primeiros médicos que inventariaram as “perversões sexuais”
desenvolveram métodos de correção diferenciados para o problema da alma feminina em
corpo masculino. Algumas teorias estabeleceram os graus da inversão sexual a partir da
criação de tipologias complexas. A ênfase era sobre a necessidade de desvelar as causas da
homossexualidade. Prevalecia uma preocupação constante com a inversão de gênero.
Levantaram-se as gêneses biológicas e sociais e promoveu-se a associação entre
homossexualidade e sadismo (Fry, 1985: 65), como a desenvolvida pelo sexólogo brasileiro
Leonídio Ribeiro. Nos casos em que a homossexualidade era resultante de influências
ambientais (familiares), empregavam-se medidas pedagógicas que defendiam a necessidade
de suprimir “os carinhos e facilidades do ambiente familiar” (Fry, 1985: 66). Algumas
teorias destacam que a heterossexualidade se constitui como expressão de maturidade
psicológica e a homossexualidade como uma forma de interrupção desse desenvolvimento,
propalando o paradigma da transformação de indivíduos em homossexuais por mães
dominadoras e pais ausentes. Nesse contexto, foram produzidas “listas” dos problemas da
sexualidade, como o famoso escrito do médico austríaco Krafft-Ebing, a Pscopatia
Sexualis, documento que se tornou manual sobre as perversões sexuais.
De forma semelhante, os evangélicos descritos neste capítulo elaboram um inventário
dos “pecados sexuais”, publicam manuais de recuperação, divulgam métodos de retorno à
heterossexualidade, evidenciando similar obsessão com a inversão de gênero. O
homossexual idealizado é um indivíduo sem controle, cujos excessos sexuais são
prejudiciais à sociedade. Promíscuo, infeliz, solitário, endemoniado, com tendência ao
crime, à pedofilia, ele necessita de tratamento. O modelo de homossexualidade construído
por esse discurso constitui uma diferença negativa. Essa identidade deteriorada, abjeta, é
sinal de um descrédito, uma desvantagem social (Goffman, 1988), somente compensada
pela transformação. Ao homossexual, portador de um ‘defeito’, é concedido acolhimento,
com vista à mudança e adequação aos valores religiosos propalados. A cura envolve
intervenção psicológica e espiritual: participação em rituais, aconselhamentos, grupos de
ajuda, dentre outros recursos. Preconiza o ingresso na batalha espiritual, por meio da busca
de santificação, de processos rituais de purificação e de “lutas” com o demônio. A adesão a

125
uma postura de renúncia e resistência às tentações é solo de um “novo nascimento” e de
uma “nova identidade”. O modelo do ex-homossexual motiva a mudança: exemplaridade
do testemunhos de homens que ‘venceram’, em especial, edificando ”famílias cristãs”. Os
demônios, que devem ser enfrentados, são provenientes dos terreiros das religiões afro-
brasileiras. As pomba-giras da “macumba” e outras entidades influenciam negativamente,
sugerindo deslizes ou insuflando paixões já existentes. Eles governam o comportamento
sexual do brasileiro, são responsáveis pela sensualidade e comportamentos permissivos.
Nestes termos, nota-se uma associação entre homossexualidade e “coisas brasileiras”, como
o carnaval e a crença nos espíritos da umbanda e candomblé.
Apesar de esboçar esse quadro analítico, não é minha intenção encerrar aqui as
possibilidades interpretativas. A proposta é ampliar, principalmente, tomando como ponto
de partida a idéia levantada anteriormente de que discursos evocam reações e respostas
plurais. Seguindo o objetivo de compreender o que está por trás da controvérsia, lanço
algumas perguntas: quem são os sujeitos que aderem a esses discursos? De que modos eles
são afetados por essas questões? Como selecionam, reinterpretam e vivenciam as
dimensões da sexualidade e da vida religiosa? Com efeito, a análise reportará os atores
implicados na controvérsia no capítulo final, com o objetivo de explorar as trajetórias
pessoais dos informantes e suas experiências. Antes, porém, é necessário apresentar outros
personagens e cenários que compõem essas complexas relações. Apresento no próximo
capítulo a emergência de novos grupos religiosos que rompem com a perspectiva
apresentada e significam de distinta forma as relações entre homossexualidade e religião. O
foco será no segmento evangélico, que ao invés de repudiar a homossexualidade, busca
geri-la dentro de espaço religioso específico: as “igrejas inclusivas”. Serão ressaltadas as
mudanças e continuidades que essa vertente religiosa apresenta com o campo mais amplo.
Passo à etnografia de um desses grupos “inclusivos”: a Igreja Cristã Contemporânea, criada
a partir de um cisma com a primeira Igreja da Comunidade Metropolitana, denominação de
origem norte-americana voltada ao público homossexual. O intuito é explorar de que forma
esta denominação/ grupo religioso elabora reflexões sobre os nexos entre vida religiosa e
homossexualidade.

126
Figura 10:

Livreto divulgado pelo Movimento pela sexualidade sadia, Rio de Janeiro. O líder religioso ensina como
aconselhar homossexuais. Ele adverte: os gays não deveriam sentir orgulho mas vergonha de sua condição
pecaminosa. Em um artigo menciona: a maior parte das pessoas se torna homossexual
pela falta de referência dos pais.

127
Figura 11:

Apostila do Seminário Internacional Um novo Rio para o Brasil, promovido por evangélicos, na Igreja
Congregacional, em Bento Ribeiro, subúrbio do Rio de Janeiro. Na programação constava momento ritual de
“restauração sexual”, que envolvia a libertação dos “pecados sexuais” e dos “estilos de vida” insuflados por
influência maligna.

128
Figura 12:

Manual de batalha espiritual escrito por uma médica cristã. Há relatos e ensinamento de técnicas para
repreender a atuação dos demônios na mente e no corpo. A primeira edição é de 1996 e, em 2000, já está em
sua quarta edição.

129
Figura 13:

Nesse livreto, distribuído em igrejas e cursos, Neuza Itioka ensina que “sexo oral” e “sexo anal” constituem
pecados sexuais e que pomba-giras operam na vida de homossexuais.

130
Figura 15:

Manuais de ajuda para sair da homossexualidade. Essas obras são indicadas pelos “ministérios de apoio” a
indivíduos que queiram ‘retornar à heterossexualidade’. Elas são repletas de testemunhos de ex-gays e ex-
lésbicas que alcançaram a ‘libertação’.

131
Figura 16:

O processo de cura da homossexualidade geralmente é descrito como o retorno ao gênero natural. A travesti
ao tornar-se ex-homossexual, veste-se ‘adequadamente’ ao seu sexo biológico e abandona os trejeitos
femininos. Fonte Revista Graça, ano 2, nº 16.

Figura 17:

A foto representa o sucesso da ‘recuperação’: o casamento e a obtenção de prole. Fonte: O dia em que nasci
de novo (Xavier, 1990).

132
CAPITULO 3

ETNOGRAFIA DO NASCIMENTO DE UMA “IGREJA INCLUSIVA”:


A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA HOMOSSEXUALIDADE EM UM
MOVIMENTO MINORITÁRIO EVANGÉLICO

A análise da literatura religiosa e uma reflexão sobre as relações entre religião e


psicologia foram os focos do capítulo que findou. Explicitei em que termos se dá a
‘acolhida’ de homossexuais em cultos evangélicos e como um projeto de regeneração,
voltado a estes indivíduos, tem subjacente concepções que endossam a ‘diferença’ como
negativa e inferior, reiterando estigmas e reciclando acusações morais de “promiscuidade”.
Sublinhei que parte do problema da homossexualidade, nesse contexto, encontra-se nas
definições de gênero: o esforço de cura é direcionado a resgatar a masculinidade de gays
que ostentam performances reconhecidas como “femininas”. Até aqui demonstrei como os
homossexuais são vistos como indivíduos potencialmente perigosos, sob vários aspectos. A
conversão é uma missão religiosa que pretende proteger as famílias, as crianças inocentes
do crime da “pedofilia” (supostamente perpetrados por homens homossexuais) e o
casamento cristão. Neste capitulo, descreverei e analisarei um distinto movimento religioso
cuja proposta central está na recusa da ‘proibição’ da homossexualidade e na criação de
igrejas e grupos voltados à inclusão de gays e lésbicas. Estenderei a lógica de análise
anterior a este capítulo, indagando como se dá a construção social da homossexualidade
nesse contexto. Como até o presente momento discuti as relações entre os evangélicos e
certos segmentos sociais ligados à defesa dos direitos dos homossexuais, buscarei
compreender agora de que modo a contradição identificada no primeiro capítulo produz
cismas internos ao campo religioso com a criação de “igrejas gays” ou “igrejas inclusivas”.
Isso será feito por meio da etnografia de uma igreja/ denominação com este perfil, a
Igreja Cristã Contemporânea, que foi criada logo após uma cisão de um pequeno número de
adeptos da Igreja da Comunidade Metropolitana, cuja evasão originou uma nova
denominação. Em primeiro lugar, faço um sucinto resgate da trajetória desse movimento,

133
partindo de informações coletadas em estudos acadêmicos e a imprensa. O objetivo não é
resgatar de maneira aprofundada o surgimento dessas iniciativas, mas contextualizar o
objeto de estudo. Relatarei minha entrada em campo, na Igreja da Comunidade
Metropolitana do Rio de Janeiro e a descoberta de um cisma religioso, seguida de meu
ingresso nesta ‘nova igreja’, cuja identidade estava em construção. Em seguida, o foco será
a passagem da Igreja da Comunidade Metropolitana à Igreja Cristã Contemporânea. Ao
tomar como objeto o nascimento de uma nova igreja, a análise poderá ser iluminada
recorrendo ao conceito de drama social, tal como formulado por Turner no estudo dos
processos sociais, suas transformações e continuidades, para quem o drama social é "a
spontaneous unit of social process and a fact of everyone's experience in every human
society" (Turner 1980:149). Este autor compreende que conflitos e cismas revelam
contradições ocultas, e que a análise dos dramas sociais aponta os mecanismos de resolução
que elucidam continuidades e/ ou mudanças e estabelecem e reforçam fronteiras e limites
dos grupos sociais. A exemplo de Maggie (2001), este conceito será tomado como
inspiração para a análise de processos sociais, lançando mão ainda de outros recursos
analíticos. Partindo do exame dessa ruptura e dos novos direcionamentos do grupo, o
capitulo discutirá a construção social da homossexualidade nesse contexto, buscando
alcançar uma compreensão das mudanças e continuidades que estão em questão na
emergência dessas igrejas.

3.1: IGREJAS “REFORMADAS” E “INCLUSIVAS”

A emergência de uma reflexão sobre as relações entre religiosidade e


homossexualidade ocorre em um amplo contexto de reconhecimento e legitimidade das
“minorias sexuais” na esfera pública. No Brasil, mudanças culturais insufladas pela atuação
e organização política dos movimentos homossexuais se intensificam desde a década de
1990, relacionadas aos direitos civis, à reivindicação da despatologização, à luta contra a
violência e discriminação e, principalmente, ao enfrentamento da epidemia de AIDS no
país (Fachini, 2004: 154). É nesse cenário que despontam questionamentos sobre a

134
“inclusão” em espaços religiosos, empreendidos por atores sociais ligados à militância e
ativismo homossexual.
77
Entre 1996 e 1997, o grupo ativista Corsa (São Paulo) organizou celebrações
ecumênicas e promoveu discussões sobre o tema em suas reuniões semanais.78 A
preocupação política com a “homofobia” de algumas tradições religiosas motivou o início
de um debate no qual se afirmava a necessidade de reconhecimento da igualdade de
homossexuais e heterossexuais pelas distintas vertentes religiosas. As religiões de matriz
africana foram identificadas como as mais abertas à inclusão e presença de homossexuais
nos cultos, em contraposição às posturas históricas de resistência da Igreja Católica e das
denominações evangélicas. Em 1997, o Centro Acadêmico de Estudantes de História da
USP (Caehusp) organizou um ciclo de debates sobre Direitos Humanos e
Homossexualidade, contemplando como um dos eixos “religião/ igreja” e “preconceito”.
Fachini (2004) informa que nesse encontro algumas lideranças se articularam para a criação
da primeira Comunidade Cristã Gay. O pequeno grupo que passou a se reunir no Caehusp
foi responsável pela ordenação dos primeiros pastores gays no Brasil. Em 1998, uma cisão
originou a formação da Comunidade Cristã Metropolitana. Nesse momento inicial, tensões
se produziram a partir de um questionamento: colaborar para a criação de instituições
religiosas cristãs específicas para gays ou fazer pressão para a inclusão e visibilidade nas
79
igrejas e denominações de origem? Apesar da referência a estas iniciativas no estudo de
Regina Fachini (2004), não houve a produção de pesquisas que resgatassem a experiência e
a trajetória destes grupos.
Em meados dos anos 1990, a Igreja Presbiteriana Unida de Copacabana, no Rio de
Janeiro, atraiu a atenção da mídia pelo posicionamento público do pastor (heterossexual)
Nehemias Marien, favorável à inclusão dos homossexuais. Ele realizou cerimônias
religiosas abençoando casais homo-afetivos (Figura 19). Em diversas ocasiões participou

77
O Grupo Corsa é um importante ator do movimento homossexual paulista cuja trajetória foi abordada por
Regina Fachini (2004).
78
Fachini (2004) considera que o tema ganha legitimidade nas discussões do Corsa pela vinculação ao grupo
de sujeitos com estreita ligação com a Igreja Católica. Apesar disso, nas reuniões e celebrações ecumênicas
promovidas estavam presentes também religiosos ligados a igrejas protestantes e cultos afro-brasileiros.
79
Atores sociais alinhados a uma perspectiva ecumênica passaram a criticar a formação de uma igreja “para
gays”, incentivando a permanência desses fiéis nas denominações de origem e a busca nas mesmas de
possibilidades de reconhecimento e visibilidade.

135
de fóruns e debates nos quais proferiu um discurso que conferia à homossexualidade um
caráter positivo. Com a preocupação política de colaborar para a desconstrução do
“preconceito contra os homossexuais”, Nehemias Marien celebrou o Culto do Orgulho Gay
durante cinco anos, em data próxima ao dia 28 de junho (Figura 20). Nesse contexto
emergiram fortes reações ao seu discurso sobre a homossexualidade, protagonizadas por
diversos atores e instituições evangélicas, que assinalavam o caráter ‘individual’ de seu
posicionamento.80 Conforme informa Machado (1998), grupos religiosos manifestaram
repúdio ao seu posicionamento por meio de artigos, livros, faixas em passeatas, protestos e
programas televisivos na mídia evangélica (Figura 21). Em contra-resposta, o Pr. Nehemias
tornou pública sua posição favorável ao ecumenismo e contrária à exclusão e discriminação
de quaisquer pessoas. Em conjunto com outros líderes religiosos, membros da Igreja
Presbiteriana de Confissão Reformada, ele assinou a Carta Aberta de Jaconé, datada de
fevereiro de 2001 (Figura 22). O documento composto por oito itens defendia, dentre outras
premissas, que: Deus havia se revelado em variadas culturas, através da história, não sendo
“propriedade” do cristianismo; que “Ele” “não faz discriminação de qualquer ordem”; que a
“Igreja Reformada” se colocava em defesa “de todo os que defendem a justiça, a paz, o
bem-estar do ser humano, especialmente, aqueles excluídos pela globalização econômica”.
Embora não haja referência clara à orientação sexual, o texto era utilizado por participantes
da igreja como marco na discussão sobre inclusão dos homossexuais, porque defendia o
amor incondicional e o respeito aos Direitos Humanos contra “toda forma de opressão”.
Em termos teológicos, o pastor (através de pronunciamentos públicos) apresentava
argumentos para uma liturgia que contemplava o acolhimento dos homossexuais, sem
exigir mudança de orientação sexual. Citando Matheus, capitulo dezenove, versículo doze,
ele instruía que homossexuais “eram como os eunucos” do texto bíblico: alguns foram
“feitos assim pela sociedade”, outros ‘nasceram’ e ainda havia aqueles que o eram por
‘opção’. Sendo assim, a homossexualidade não podia ser vista como pecado. Devido a esta
posição, a igreja atraiu um considerável número de homossexuais e ficou conhecida como

80
Machado (1998) menciona a existência de ameaças de morte e acusações morais sofridas pelo pastor e
destaca o caráter individual de seus posicionamentos em face do conservadorismo do universo evangélico
hegemônico.

136
uma “igreja gay”, sendo referida desta forma em inúmeras reportagens e matérias na
imprensa secular e religiosa.
Nas dependências da denominação, localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro, um
pequeno número de fiéis fundou o Grupo Convivência Cristã - espaço de troca de
experiências entre homossexuais, ativistas e heterossexuais que freqüentavam a
denominação. Entre 2000 e 2004, o grupo reuniu participantes de diversas vertentes
religiosas e não religiosas. Congregou travestis, homossexuais masculinos e um número
reduzido de lésbicas, em torno de atividades diversas: estudos sobre homossexualidade e
questões teológicas na tradição cristã, reuniões de convivência e sociabilidade e
81
participação em eventos como a Parada do Orgulho GLBT. O projeto “Pecado é Não
amar”, envolveu a militância em atividades de prevenção e também em fóruns que
discutiam os temas “religião” e “orientação sexual”. Um prospecto distribuído defendia o
“sexo seguro” como forma de “preservação da vida” e a luta “pelo direito à liberdade de
manifestação religiosa e sexual”. O texto acrescentava que “grande é o número de
segmentos religiosos que, a partir da interpretação bíblica contextualizada, entendem não
existir nas sagradas escrituras qualquer condenação à homossexualidade” (Figura 3).
82
Ligados a esta igreja de tendência “reformada”, algumas lideranças iniciam
discussões sobre questões teológicas e homossexualidade, ensaiando os passos
embrionários de uma hermenêutica que problematizasse o caráter culturalmente construído
da condenação da homo-afetividade. Em 2004, o Convivência Cristã é extinto. Com a
morte do pastor, em 2006, e o trânsito religioso dos fiéis para outras denominações, a igreja
não mais apresentava o apelo popular e a presença de homossexuais, como outrora. À
época, contudo, no auge de sua atuação, líderes de outras denominações “reformadas”
81
Em 2003, conheci pessoalmente o grupo ao participar de duas reuniões após o Culto de Domingo,
popularmente conhecido como “Culto gay”, já que atraia grande número de homossexuais que retornavam da
‘praia’ no fim das tardes de domingo. Além do alto número de homossexuais masculinos, havia algumas
mulheres lésbicas, poucos travestis e alguns familiares dos freqüentadores. Segundo soube depois, ocorria
forte presença de sujeitos ligados à militância política. Nesse sentido, o tema da prevenção à AIDS fazia parte
da agenda política do grupo, inclusive pela participação de soropositivos. A trajetória do Convivência Cristã é
particularmente interessante pelas questões que são colocadas pioneiramente. Trata-se de um ambiente em
que se discute a exclusão social dos homossexuais, incluindo a praticada por segmentos religiosos. A presença
de indivíduos que participam de entidades de defesa das minorias sexuais, torna a militância pela inclusão
dessa população na sociedade mais ampla uma ação prioritária.
82
A categoria “reformada” aparece nesse contexto em referência a uma liturgia e discurso que apela a uma
teologia liberal.

137
adotaram posicionamentos semelhantes, defendendo a inclusão dos homossexuais, como: a
Igreja Presbiteriana da Praia de Botafogo e a Igreja Presbiteriana de Jaconé (interior do
Estado do Rio).
O cenário atual apresenta-se plural e diversificado, com a criação de denominações
evangélicas lideradas por pastores, diáconos e ministros assumidamente homossexuais,
egressos de denominações convencionais. A Igreja Acalanto – Ministério Outras Ovelhas,
em São Paulo, foi uma das iniciativas pioneiras, criada pelo pastor Victor Orellana, em
2002. Dois anos depois, alguns de seus membros se reuniram para fundar a Comunidade
Cristã Nova Esperança. Hoje, esta denominação já possui duas novas “células” 83 (Garulhos
e Osasco) e um novo grupo foi criado na Cidade de Natal (Rio Grande do Norte), no
Nordeste do país. Há notícias recentes da organização de uma “célula” em São Luiz do
Maranhão e de congregações já atuante em Buenos Aires (Argentina) e Portugal, fruto do
caráter missionário pentecostal da denominação. Um novo cisma religioso foi responsável
pela criação da Igreja Cristã Evangelho Para Todos, por alguns participantes da Igreja
Acalanto.
Tentativas de introduzir a Igreja da Comunidade Metropolitana no Brasil foram feitas
nos anos 2000. A denominação de origem norte-americana, que possui hoje filiais em cerca
de vinte países, foi criada em 1968, em Los Angeles pelo pastor pentecostal Troy Perry,
que havia sido expulso de sua denominação em razão de sua orientação sexual. Hoje há no
Brasil “células”, “missões” e congregações em São Paulo, Belo Horizonte, Fortaleza,
Vitória e Salvador. O passo pioneiro para a implementação da ICM no país, contudo, foi
dado na cidade do Rio de Janeiro, entre 2002 e 2004, quando foram criados os extintos
grupos desta cidade e também de Porto Alegre, e em seguida, uma nova igreja em Niterói.
Hoje a Igreja da Comunidade Metropolitana está em Fortaleza, Natal, Vitória, Belo
Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro. 84

83
Categoria nativa que designa, nesse contexto etnográfico, estado embrionário da formação de uma
congregação cristã. As células constituem grupos não institucionalizados, caracterizado pela utilização de
residências (ou espaços de sociabilidade) para cultos e reuniões. Elas estão associadas a estratégias de
implantação ou expansão de uma denominação. Quando o grupo encontra-se em estagio mais avançado,
contando com espaço próprio para realização de atividades, pode ganhar o status de “missão”, sendo
reconhecido como formalmente vinculado a denominação de origem.
84
O atual grupo formado no Rio de Janeiro enfrenta nova crise ligada à desfiliação da matriz americana, tal
como o cisma que levou à criação da Igreja Cristã Contemporânea em 2006.

138
Em 2007, criou-se ainda a Igreja Inclusiva, em Porto Alegre e a Igreja da Inclusão,
em Brasília. Fátima de Jesus (2008) menciona a existência da Igreja Mel (Movimento
Espiritual Livre), em Curitiba.
Estas recentes iniciativas de vertente evangélica, em um sentido mais global, se auto-
identifica a partir da categoria “igrejas inclusivas”. Segundo Ernesto Meccia (2006) há
movimento semelhante em outros países da América Latina. Em 1987, a Igreja da
Comunidade Metropolitana instalou-se na Argentina, figurando oficialmente no Registro
Oficial de Cultos. As duas principais linhas de ação desta denominação foram: a)
conscientização sobre direitos humanos: emissão de documentos (oficiais) em colaboração
com outras organizações, convocatória à participação na Marcha do Orgulho Gay,
intervenção em programas televisivos, produção de conhecimento sobre a problemática do
HIV-Aids, acompanhamento da apresentação de projetos de lei que contemplem os direitos
das populações gays e lésbicas; b) atividades religiosas: celebração de cultos, consagração
de matrimônios entre pessoas do mesmo sexo, seminários de leitura da Bíblia, assistência
religiosas a doentes terminais. Outros grupos que atuam nessa perspectiva política são:
Centro de La Comunidad Gay, Lésbico, Travesti e Transgênero, Católicas pelo Direito de
Decidir e alguns grupos judeus. A Igreja da Comunidade Metropolitana é o integrante mais
antigo e institucionalizado neste âmbito. No Brasil, há relatos de importante movimento
político sendo empreendido por segmentos da Igreja Anglicana, no qual correntes internas a
esta denominação vêm defendendo a possibilidade da ordenação de pastores homossexuais,
acompanhando as discussões internacionais a este respeito que agitam a instituição em
termos internacionais (Soares, 2008: 7-8).
Esse cenário permitiu delinear o escopo de um movimento político-religioso que
expressa a emergência da questão gay nesse campo. As reflexões que se colocavam eram
muitas e provocadoras: existiria uma teologia gay no Brasil? Que contornos esse
movimento adquiria em face das influências religiosas no país? Essas indagações foram
minha primeira motivação para a entrada em campo. Seguindo o exemplo da emergência de
uma teologia feminista no Brasil, e de um pensamento teológico fortemente marcado pela
Teologia da Libertação, que problematizava o lugar da mulher na sociedade e tradição
cristã ao longo da história (Rohden, 1997), eu me perguntava se não estaria diante de um

139
movimento de semelhante teor, protagonizado, em sua maior parte, por líderes
homossexuais. Se, de um lado havia toda a proliferação de igrejas e grupos que proferiam
idéias de cura e restauro sexual, de outro, distintos atores sociais inauguravam uma
dissonante linha de atuação, rompendo com a visão dominante? Imaginei ser interessante
averiguar em que medida a disputa apresentada no primeiro capítulo entre evangélicos que
‘curam’ e representantes dos direitos humanos de gays e lésbicas reverberavam nesse
campo religioso. Com essa inspiração, indagava se/ como a oposição religião x direitos
humanos comparecia nesse segmento religioso e quais nexos entre ‘homossexualidade’ e
‘vida cristã’ estão sendo produzidos. Estava curioso para saber qual modelo de
homossexualidade/ identidade sexual era encorajado nessas igrejas, quais os significados e
sentidos desse desejo sexual nesse contexto. Motivado por estas questões segui para campo
e mostro adiante como fui interpelado por novas e inesperadas situações.

140
3. 2. APROXIMAÇÕES DO CAMPO: UMA IGREJA PARA GAYS?

Conheci a Igreja da Comunidade Metropolitana do Rio de Janeiro na sua celebração


de inauguração, que aconteceu no Rio Othon Palace Hotel, na Zona Sul, em 2004. Na
ocasião, fui apresentado a alguns líderes da instituição, dentre estes: o pastor responsável
pela criação de uma “célula” da denominação, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul; e o
85
“reverendo” nomeado pela matriz norte-americana como “líder” da Igreja da
Comunidade Metropolitana, no Rio de Janeiro.86 Bernardo, 27 anos, morador do bairro
Jardim América, ex-integrante de uma igreja pentecostal tradicional, a Igreja de Cristo - a
quem fui apresentado por seu ex-namorado - foi quem intermediou a entrada em campo
87
propriamente dita. Semanas antes, ele havia me comunicado que dois de seus amigos
freqüentavam um pequeno grupo religioso “para homossexuais”, indagando se eu não
queria conhecê-lo. Vale frisar que os três tinham sido integrantes da mesma denominação,
compartilhando, mesmo sem conversar abertamente sobre o assunto, o segredo de serem
“gays” e “evangélicos”. À época, havia suspeitas, olhares, pequenos sinais que eram lidos
uns pelos outros. Até que se reencontraram no processo de fundação desse ministério para
homossexuais. No entanto, naquele momento da vida, Bernardo se definia como um ex-
crente, homossexual, confidenciando-me ter abandonado a vida religiosa por conta de
conflitos na esfera da sexualidade. Bernardo insistiu que na ocasião, haveria a presença de
outros homossexuais masculinos com semelhante trajetória. Em sua companhia, segui para
o evento de inauguração. Após a recepção por membros da denominação, na qual
recebemos crachás, seguimos para o espaço de convenções do hotel. Lá, houve preleção de
líderanças da Igreja da Comunidade Metropolitana, atuantes em outros contextos nacionais.
Enfatizou-se que a missão da denominação no Brasil era alcançar os “homossexuais
oprimidos” e ser um ambiente religioso onde estes pudessem “assumir-se”, sem culpa e

85
As categorias nativas “pastor” e “reverendo” são empregadas nesse contexto religioso com sentido
correlato: designam o cargo mais alto na hierarquia religiosa.
86
Posteriormente, tive contato com o líder da igreja em algumas ocasiões especial, normalmente eventos
GLBT, envolvendo ativismo e a questão dos direitos humanos das minorias sexuais, como o seminário
narrado no primeiro capítulo.
87
Esta relação constituiu-se como fundamental para a inserção naquele contexto, revelando a importância do
estabelecimento de redes de contato, construídas a partir de relações pessoais, nesse tipo de estudo.

141
medo. Um folheto distribuído na recepção anunciava que na Internet, a “igreja virtual”, já
havia atingido vários estados brasileiros, dirigindo-se a homossexuais e outras pessoas
GLBT que precisavam de um “local para adoração” - sentindo-se “parte do corpo de
Cristo”. A idéia central era que a Igreja da Comunidade Metropolitana no Brasil permitiria
aos homossexuais “viver sem máscaras” e mostraria ao mundo evangélico uma forma
‘diferente’ de adorar a Deus. 88 Ao final do evento, um momento de louvor foi conduzido
por rapazes ‘travestidos’ que, através de performances drags – e uma linguagem
descontraída e cheia de humor - dublaram cantoras evangélicas. Também foi lançado o
primeiro CD Gospel com louvores para as “Comunidades GLBTH” no Brasil, que continha
89
“ministrações” do líder da igreja. Esta seria uma forma de “propagar o evangelho
inclusivo” e levar conforto àqueles que foram “excluídos do reino de Deus” pelos homens e
instituições. (Figura 23). A igreja se contrapunha à exclusão das “minorias sexuais” das
religiões cristãs, compreendendo a necessária criação de espaços “inclusivos” em que
homossexuais masculinos, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis pudessem se
“reconciliar com Deus”. Essa foi a tônica do discurso brevemente anunciado no evento,
chamando atenção para a emergência de uma teologia dissonante do universo evangélico
mais amplo.
Meses depois, pesquisando o site da denominação, verifiquei que ali constavam
alguns de seus princípios básicos. Ainda que fossem poucos os conteúdos assinados por
líderes religiosos brasileiros, boa parte do material divulgado encontrava-se traduzido e
expressava as orientações gerais que a denominação se propunha a seguir no Brasil. Logo
na página de abertura apresentavam-se o perfil e os objetivos institucionais relativos ao
“alcance especial à comunidade GLBT em volta do mundo”. A denominação reivindicava
sua legitimidade, enfatizando que estava em processo de reconhecimento, o que a levaria a
participar efetivamente do Conselho Mundial de Igrejas. No entanto, reforçava que não
88
Segundo informantes, a implantação da igreja no Brasil ocorreu, inicialmente, pelo estabelecimento de uma
rede virtual, meio através do qual alguns dos atuais líderes da denominação estabeleciam contato, agendavam
reuniões e encontros bíblicos. Em 2002, foi lançada a página da Internet da Igreja da Comunidade
Metropolitana em português. Nesse período, formaram-se as primeiras células “evangelizadoras para
conquistar novos adeptos” (Jornal A Palavra, maio/ junho de 2004).
89
A sigla GLBTH é adotada pela igreja em panfletos de divulgação, designando o público amplo de Gays,
Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Homossexuais. Em outros materiais do mesmo período pode aparecer
variações como GLBT, GLBTT ou GLBTTT., bem ao estilo da dinâmica de produção de identidades
coletivas que Fachini (2004) descreveu como “sopa de letrinhas”.

142
devia ser vista como uma “igreja gay”, porque não pretendia excluir os heterossexuais de
seu culto. A terminologia apropriada era “igreja inclusiva”, pois a ICM era uma
denominação que visava ‘incluir’ “em Cristo”. A história de sua criação, nos Estados
Unidos, em 1968, estaria ligada à exclusão do reverendo Troy Perry, aos 27 anos, de uma
igreja evangélica em que congregava. Este se tornou líder de um pequeno grupo de louvor
que se expandiu rapidamente, consolidando a Igreja da Comunidade Metropolitana. O
grupo pioneiro, segundo informação oficial da denominação, era composto por onze
pessoas de origens protestante, católica e judia, incluindo um negro e um casal
heterossexual.
90
A fundação deste ministério no Brasil teve repercussões no contexto mais amplo.
Enquanto a imprensa informou a criação de “uma igreja para homossexuais”, a mídia
religiosa ouviu as opiniões de pastores e líderes evangélicos. A fundação de uma igreja com
este perfil gerou reações por parte de evangélicos pentecostais e protestantes. O jornal A
Palavra destacou os posicionamentos sobre a denominação: uma “desobediência a Deus”
(membro do Movimento pela Sexualidade Sadia), uma “falsificação do evangelho” (pastor
Silas Malafaia, Assembléia de Deus), “um afronta a Deus”, uma igreja onde “Deus não está
presente, nem nunca estará” (Figura 24).

Passado algum tempo do contato inicial, em maio de 2006, me dirigi ao endereço


indicado na página de Internet do grupo. A primeira visita feita à denominação trouxe
alguns fatos inesperados que narro a seguir.

Avenida Mem de Sá, Centro do Rio. Área tipicamente residencial e comercial é palco
de intensa movimentação de pessoas à noite, atraídas pelos bares e restaurantes. Em seu
entorno concentram-se inúmeros hotéis, motéis, uma funerária, algumas casas de
prostituição, boates, termas femininas, saunas freqüentadas por homossexuais, um clube de
sexo gay. A localidade a que me refiro poderia ser descrita em termos de uma região moral
(Park, 1967: 71) reconhecidamente tida como de prostituição, ocorrendo também
circulação de travestis, principalmente nas madrugadas, e a recorrente presença de
90
Conjunto de iniciativas cuja missão era implementar denominações e grupos voltados aos homossexuais por
meio de uma reflexão teológica progressista.

143
mendigos e ambulantes. Entre o trecho que compreende a Praça da Cruz Vermelha e a
Lapa, no último andar de um sobrado antigo, aconteciam os cultos do pequeno grupo que
constituía, em 2006, a Igreja da Comunidade Metropolitana do Rio de Janeiro. Dentre as
atividades religiosas estavam oração, louvor e pregações bíblicas.
Minha primeira visita aconteceu em uma quarta-feira, um “Culto de Unção”. A
denominação vinha se tornando popularmente referida como a primeira igreja voltada aos
homossexuais no Brasil, tanto em veículos midiáticos como entre segmentos GLBT. Em
algumas conversas informais era recorrente a menção sobre “a igreja gay” da Lapa,
associação reforçada pela participação das lideranças em fóruns GLBT. Eu telefonara para
o pastor informando que visitaria o grupo. A pequena denominação não continha nenhuma
indicação na porta, de modo que, da rua, não era possível identificar o templo. Após
conferir o número, concluí que era ali mesmo. Naquele endereço de porta trancada, que
mais se assemelhava a uma residência, funcionava o grupo. Toquei um interfone e demorou
alguns segundos até que alguém informasse que podia entrar. Lá dentro, subi três lances de
escada quando, à direita, uma porta se abriu e fui recebido com um abraço de um dos fiéis,
o diácono Lucas, um rapaz de compleição média e aparência oriental, um pouco tímido,
que proferiu como comprimento um “seja bem-vindo, Deus te abençoe”, ao que respondi
com “a você também”. A igreja estava vazia. Os bancos eram dispostos em forma de U,
organização distinta da encontrada tradicionalmente em outras denominações. À esquerda
da entrada, num recuo, ficava a sala do pastor. À frente da porta, um bebedouro e à direita
(em recuos) ficavam, respectivamente, cozinha e banheiro. O púlpito, elevado por um
pequeno tablado, continha uma mesa para Bíblia e uma cortina ao fundo. Havia também, à
esquerda, mais próxima do centro, uma mesa de som, operada por um dos fiéis. À direita do
púlpito um televisor suspenso, desligado, que mais tarde exibiria as letras dos louvores. O
diácono Lucas informou que o pastor me receberia. Pousei o guarda-chuva, casaco e bolsa
sobre uma das cadeiras. Era uma noite de abril, chuvosa e fria. Um rapaz estava sentado de
frente para um jovem, segurando-lhe fortemente as mãos. Aquele que presumi tratar-se de
um líder religioso (ou alguém ligado à hierarquia da igreja) falava baixo, orava com fervor,
o que era notado devido à expressão facial que exibia, de olhos fechados, testa franzida e

144
movimentos labiais acelerados, enquanto o outro acompanhava, também de olhos cerrados,
com pequenos sussurros e lágrimas descendo pelo rosto, a oração.
Logo o pastor veio ao meu encontro, um homem branco, de seus vinte e poucos anos,
cumprimentou-me com um abraço e em seguida pediu “um segundo”. Trocou algumas
palavras com alguns poucos fiéis presentes. Depois pediu que o acompanhasse. Sentei com
ele, próximo a mesa de som. Em uma breve conversa indiquei meu interesse em
acompanhar reuniões do grupo, cultos e entrevistar algumas pessoas. Havíamos nos
conhecido no lançamento da igreja em 2004 e nos encontramos em alguns eventos
públicos, especialmente no seminário GLBT citado no capítulo primeiro, no qual ele falara
sobre a proposta da igreja. Nessas ocasiões externara extrema receptividade e fizera o
convite para conhecer a denominação. Essa atitude se mantinha, mas, apesar disso, parecia
haver uma preocupação no ar.
O pastor anunciou que tinha um comunicado importante a fazer. Um pouco
apreensivo, disse que ocorriam algumas mudanças. Estavam em processo de desligamento
da Igreja da Comunidade Metropolitana. Era um momento delicado. Mas, se o interesse era
em escrever sobre “uma igreja gay” deveria procurar o grupo religioso que se reunia em
Niterói, que permanecia ligado à matriz norte-americana. Lá funcionava a nova ICM Rio.
Por outro lado, se desejava conhecer o grupo que ali se reunia, ele permitia que
freqüentasse as reuniões e cultos. Com exceção das noites de sábado, voltadas a vigílias
temáticas. Nessas ocasiões, algumas experiências mais fortemente espirituais ocorriam e,
ali, ele não queria “muito estudo”.
Essa inesperada conversa colocava novos desafios para a entrada de um antropólogo
em campo, ao antecipar a ocorrência de um cisma religioso. O pastor declarava a busca de
uma nova identidade para o grupo, referindo-se à Igreja da Comunidade Metropolitana
como “coisa de americano”, que fazia “igreja para gay”, “igreja para negros”. Essa
denominação vinha se expandindo no Brasil. Havia células em Caxias, na Baixada
Fluminense, em Niterói e até em São Luiz do Maranhão. Mas a proposta desse grupo
específico era distinta. Não pretendiam ser reconhecidos como uma “igreja gay”. O
objetivo era “acolher” todo tipo de pessoa que já foi discriminada por alguma razão. Os

145
homossexuais estavam incluídos, mas não eram os únicos. Havia os divorciados, por
exemplo, que não podiam “comungar” na Igreja Católica.
Enquanto explicava que a proposta passava a ser ampliar o público, o pastor ressaltou
que a partir dessa distinção muitas coisas seriam reformuladas. Uma das primeiras
providências seria retirar do site todo o material teológico produzido sobre
homossexualidade. Não queria “muita doutrina”, “teologia”, muita “teoria” e sim
“espiritualidade”. O objetivo era que se criasse um ambiente onde o fiel homossexual (e
qualquer outro) tivesse “conforto”, “orientação”, “ajuda”. Denominações que mais
cresciam no Brasil não possuíam ‘doutrinas’, como era o caso da Universal do Reino de
Deus. A idéia era “ser uma igreja como outra qualquer” e não uma “igreja homossexual”.
Para empreender mudanças, o pastor declarou que escolheriam também um novo
nome para a igreja. Estavam orando para fazer a escolha certa. Recusavam formalmente a
vinculação ao universo evangélico por considerá-lo excessivamente conservador, optando
pelo uso do termo “cristão”. Em determinado momento da conversa, ele argumentou: não
queriam mais “o estigma de ser uma igreja gay”. Tais declarações colocavam como
problema, por exemplo, compreender que fatores motivavam a separação da matriz norte-
americana. Por outro lado, tive a intuição de que escrever sobre a experiência dos fiéis e
sobre a proposta da igreja não seria possível sem buscar uma interpretação dos conflitos
que ali se colocavam. Foi meio sem saber ao certo em que terreno estava pisando que
acordei a participação na igreja. Naquele dia, assisti normalmente o culto e retornei em
outras ocasiões. A insistência do líder religioso em dissociar a igreja do rótulo de “igreja
gay” me intrigou por um bom tempo. Assim, indagava que tipo de rejeições sociais e
dilemas uma igreja com essa proposta estaria sujeita? De imediato, intuí que era preciso
refletir sobre essa afirmação e, talvez, essa fosse uma boa pista para compreender o que
estava acontecendo. Aquela primeira conversa anunciava-se uma preocupação política com
modos de inclusão social: naquele discurso havia estratégias que defendiam a ‘integração’ e
outras que preconizavam a ‘segregação’. A fala pastoral estava fundada em uma
representação de que americanos ‘separam’ em grupos estanques, enquanto brasileiros são
afeitos às misturas. O raciocínio, pouco elaborado naquele momento, indicava a
preocupação com o perfil da igreja e o questionamento sobre a melhor estratégia para

146
mudança. Os novos rumos da igreja serão explorados adiante, por ora, cabe ressaltar que
em meio ao tema da separação e do rompimento dos grupos religiosos emergia uma questão
política e realçavam-se os aspectos culturais imbricados. Eu compreendia, contudo, que o
que era dito ali parecia fragmento/ peça de um quebra-cabeça mais complexo. De todo
modo, como seria essa igreja brasileira imaginada pelas lideranças? Quais as influências
culturais e religiosas do grupo e como isso se fundia às preocupações políticas de
“inclusão” dos homossexuais?
Os objetivos a seguir serão bastante específicos. Buscarei uma compreensão das
contradições subjacentes ao drama social. O conceito de Turner (1980) servirá como
inspiração, mas devo observar, contudo, as dificuldades e impasses que se colocavam
naquele momento inicial. Eu não havia participado como integrante ou personagem dos
conflitos. Chegava ao campo após os derradeiros acontecimentos que redundaram na
separação de um pequeno grupo que, durante o campo, fundaria uma nova igreja. Eu pisava
em um terreno que parecia minado enquanto buscava realizar a pesquisa e compreender
quais as questões envolvidas. Durante meses seguidos, o grupo que passei a freqüentar ali
nem mesmo possuía um nome. Se for mais correto dizer, eram integrantes remanescentes
do primeiro grupo da Igreja da Comunidade Metropolitana do Rio de Janeiro. Eram ex-
ICMs. Minha formação anterior à antropologia, em jornalismo, me aguçava um pouco a
curiosidade e impelia a ir adiante, costurando versões e buscando conferir uma unidade às
minhas descobertas, refletindo, sobretudo, que o que importava era a maneira como os
sujeitos significavam o passado e conferiam sentido ao que estavam fazendo naquele
momento. Com essa preocupação procederei um salto cronológico ao passado, entre os
anos de 2002 e 2004, quando foram dados os primeiros passos para a implementação da
denominação.

147
3.3 O INÍCIO: ENTRE A TEOLOGIA INCLUSIVA, A LUTA CONTRA A
HOMOFOBIA E A BATALHA ESPIRITUAL

Sávio tem 30 anos, é professor universitário e ex-integrante da Igreja da Comunidade


Metropolitana do Rio. Atualmente, ele vive com um companheiro que conheceu nesta
igreja, mas ambos estão desligados. Júlio é auxiliar administrativo, mora como
companheiro e um amigo da igreja. Ele é diácono no grupo remanescente da ICM. Ambos
consistem em informantes privilegiados que estiveram presentes nos primeiros meses de
formação da ICM. Sávio filiou-se à Igreja da Comunidade Metropolitana em 2004, quando
já se encontrava localizada entre a Praça da Cruz Vermelha e a Lapa, contando com cultos
em dias e horários definidos. Júlio acompanhou de perto a formação da igreja, desde as
primeiras reuniões informais que contavam com a presença de um pequeno grupo de
homossexuais evangélicos entre os anos de 2003 e 2005. O relato de ambos foi rico na
constituição dos passos iniciais do grupo. Apesar das enormes lacunas que ficarão, típicas
de todo método da história oral, acompanhemos um pouco a reconstituição do caminho
contada por algumas pessoas que atuaram como personagens.
Uma distinta liderança, atualmente pastor de outra denominação da Igreja da
Comunidade Metropolitana resgatou alguns elementos que considerou relevantes na
trajetória da implantação desta igreja no Brasil. Heraldo conta que houve várias etapas,
dentre elas o contato de militantes homossexuais e/ ou líderes evangélicos com pastores e
lideranças de outros contextos nacionais, em que a denominação já tinha se estabelecido.
Ele destaca em sua narrativa a importância da relação da igreja com a militância
homossexual. Lembra que em 1991, uma ativista lésbica brasileira conheceu a Igreja da
Comunidade Metropolitana, em Los Angeles. Após ser ordenada pastora, ela teria
retornado ao Brasil com sua companheira e passou a divulgar a proposta de uma igreja
inclusiva, como ativista de direitos humanos ligada ao Grupo Estruturação, sediado em
Brasília. Esta é situada por Heraldo como a primeira tentativa de implantação da ICM no
país. Em 1996, o Grupo de Emancipação Homossexual (Atobá), através de seu presidente
Raimundo Pereira (que conhecera a ICM nos Estados Unidos), também divulgou as

148
atividades da denominação, trazendo ao país Roberto Gonzalez, líder desta igreja em
Buenos Aires (Argentina). Ainda de acordo com o relato de Heraldo, em 2002, alguns
teólogos brasileiros foram nomeados lideranças da ICM do Brasil, respectivamente no Rio
Grande do Sul e no Rio de Janeiro: ele mesmo, egresso da Igreja Anglicana do Brasil e um
distinto pastor, ex-integrante de uma comunidade da Igreja Congregacional. Esse momento
era compreendido por certos atores implicados no processo, inclusive àqueles oriundos do
mo movimento homossexual, como um importante avanço na questão religiosa no país pois
eram dados os passos pioneiros para a implantação de uma denominação voltada aos
homossexuais. Não se tratava apenas de uma igreja, mas de um grupo com potencial
subversivo das normas e com proposta inovadora cuja hermenêutica viria a promover
corrosão nos valores dominantes no cristianismo.
Heraldo e outros informantes observam que alguns líderes que estiveram presentes no
processo de criação da ICM freqüentavam a Igreja Presbiteriana de Copacabana, liderada
pelo pastor Nehemias Marien. Ali se formou uma pequena rede de homossexuais que
discutia (sem consenso) sobre a criação de um espaço próprio. Concomitantemente, as
lideranças ordenadas tiveram contato com conteúdos teológicos da Metropolitan Church e
proposta de uma “teologia inclusiva”, através dos sites dessa denominação, passando a
traduzir seus conteúdos e a estreitar relações com pastores e membros da denominação
americana. Júlio esclarece que em maio de 2003, foi realizada a Primeira Conferência para
o lançamento da Igreja da Comunidade Metropolitana no Brasil, no Rio de Janeiro,
contando com a presença de lideranças da igreja norte-americana, como o próprio
Reverendo Troy Perry, o fundador do grupo, e pastores, reverendos, diáconos e diaconisas
latino-americanos. Este evento foi seguido de um “trabalho de células” que durou
aproximadamente um ano, congregando ex-integrantes de denominações evangélicas. As
células consistiam em pequenos grupos que se reuniam quinzenalmente na residência de
um integrante. Naquele momento, esses encontros se fixaram nos bairros da Tijuca (Zona
Norte) e Bangu (Zona Oeste), contando com a participação de aproximadamente quinze
pessoas, majoritariamente homens com identidade homossexual. Júlio participou desse
processo e lembra que um grupo muito atuante promovia reuniões nas quais se discutia

149
quais as linhas de ação, mas esses encontros já vinham tomando o formato de pequenos
cultos:

Eram cultinhos em casa. Não podia ter barulho. Não podia ser
apartamento. Então eram umas dez ou quinze pessoas. A gente orava,
cantava alguma coisa. Sempre tinha alguma coisa para comer. Era mais
uma confraternização, uma reuniãozinha, alguma Palavra bíblica, uma
citação, uma palavra de alguém. Era mais uma tentativa de achar pessoas
iguais a nós, numa coisa diferente, do que era uma Igreja. (...) Então
tentávamos unir forças para fazer uma coisa maior. Fomos ganhando mais
pessoas (Júlio, 24 anos, auxiliar administrativo, integrante do primeiro
grupo da ICM Rio e da atual Igreja Contemporânea).

Nessa época, intensificou uma divulgação das atividades do grupo pela Internet e
outros homossexuais chegavam: todos evangélicos “crentes” ou ex-participantes de algum
culto cristão. Alguns momentos de sociabilidade ocorreram, como um “luau”, na Barra da
Tijuca, e alguns encontros entre participantes na praia Farme de Amoedo, para divulgação
da igreja e sociabilidade dos participantes.91 Quando aconteceu a Segunda Conferência (em
2005), para o lançamento da Igreja da Comunidade Metropolitana, no Hotel Othon, no Rio
de Janeiro o grupo já contava com um número de participantes fixo, engajados na formação
e criação da denominação. A divulgação midiática que enfatizou o perfil “gay” da
denominação promoveu uma curiosidade em torno da denominação. Esse fator teria sido
positivo na atração de fiéis e também na consolidação da imagem do grupo como igreja gay
e militante contra a homofobia religiosa. Na contramão das correntes conservadoras, líderes
homossexuais protagonizavam um movimento político na criação de suas próprias igrejas.
Heraldo comentou que a existência de uma denominação como a ICM representava, no
Brasil, a tomada do poder religioso pelo povo GLBT. Não tardou para que o grupo
estivesse sediado na Av. Mem de Sá, nas imediações da Cruz Vermelha.
Os primeiros cultos contavam com a presença de aproximadamente vinte a trinta
pessoas, desde aquele momento, majoritariamente gays. Sávio chama atenção para o

91
Júlio identifica que, como a principal forma de recrutamento foi a Internet - entre 2002 e 2005, quando a
igreja foi fundada - era atraído um público específico, mais favorecido economicamente – o que contrastava
com o perfil de freqüentadores da Igreja Contemporânea hoje, muito mais amplo e diversificado em termos de
perfis e condições sociais. Na verdade, havia um número considerável de homossexuais pertencentes a
estratos sociais menos favorecidos.

150
conteúdo das pregações, que enfatizavam novas interpretações sobre a homossexualidade
em contraste com a “visão negativa” da tradição cristã. Sobretudo assinala o papel do
pastor e das lideranças, na “ajuda” para a compreensão de que a homossexualidade não era
uma proibição de Deus ou pecado. Essa tarefa não se dava sem uma reflexão sobre os
aspectos políticos das passagens usualmente evocadas por pastores e segmentos
homofóbicos contrariamente à homossexualidade. Parece que havia uma constante
problematização das relações entre orientação sexual e vida religiosa nos cultos. Segundo
Sávio:

O culto tinha a oração inicial, o momento do louvor, que eles ensaiavam


lá, geralmente à tarde, pra cantar no culto, né? Depois tinha a pregação.
A pregação tinha o conteúdo muito político, entre aspas. Tinha toda a
preocupação de desconstruir as interpretações que os líderes evangélicos,
de modo geral, fazem sobre a homossexualidade. Então tinha essa coisa
de ir pontualmente [aos trechos]. Por exemplo, “Levítico”. Eles [os
evangélicos] geralmente usam essa passagem para dizer que o
homossexual é um pecador. Aí a gente lia esse texto e fazia todo um
trabalho de desconstrução disso. A idéia era de dar positividade à
homossexualidade. Então, boa parte do conteúdo da pregação ia muito
nesse sentido. E também tinha um conteúdo de cura espiritual. Era um
programa de auto-ajuda. As pregações eram feitas pelo pastor e,
eventualmente, por algum visitante que era convidado. (...) Aí liam
passagens da Bíblia. Como boa parte dos membros era proveniente de
igrejas que por muitos anos falavam mal da homossexualidade, usavam
termos altamente pejorativos, havia também uma preocupação da
liderança em transformar isso, “curar”, de certa forma. Então eles
usavam muito a Bíblia também nesse sentido. Não só nas questões dos
sentimentos, nas relações interpessoais, mas também de uma coisa mais
subjetiva, de construção de uma auto-estima. Como o movimento
homossexual, de modo geral, [a idéia era] criar uma positividade a partir
da religião, da leitura da Bíblia. (...) As pessoas choravam e isso, de
alguma forma, tinha uma repercussão interessante. [A passagem bíblica]
“Romanos” indicava a idéia de que o homossexual vai pro inferno. Aí ele
[líder religioso] mostrava que aquilo tinha outra interpretação (Sávio, 30
anos, professor, ex-integrante do primeiro grupo da ICM Rio).

É possível visualizar nessa narrativa duas frentes de atuação do grupo: uma que diz
respeito a discussões teológicas e hermenêuticas, que buscava reler os textos bíblicos,
problematizando a inclusão dos homossexuais na religião cristã; e outra, mais orientada

151
para o cuidado pastoral e a dimensão terapêutica da religião. A apresentação sobre a
trajetória do grupo torna possível problematizar essas duas formas de atuação como linhas
de força mais ou menos tensionadas.
Um dos líderes era psicólogo e a proposta era ajudar o fiel a se aceitar por meio da
desconstrução de preconceitos e valores conservadores internalizados. Havia uma íntima
relação entre teologia, cuidado pastoral e “cura interior”. Por outro lado, a “teologia
inclusiva” produzia justificações que possibilitavam desassociar a homossexualidade da
noção de pecado, confrontando proibições oficiais do cristianismo. Nela, eram analisadas
passagens bíblicas que “supostamente condenam a homossexualidade” – e eram
denunciadas as “bases históricas da homofobia”. No centro da proposta do grupo estava –
como enfatiza um prospecto distribuído – “o reexame das escrituras e do tratamento
anticristão dado à comunidade GLBT”(Figura 25). Permito-me aprofundar aqui a análise
acerca dessa perspectiva de atuação do grupo.
Sob a forma de “estudos”, o material divulgado pelo site do grupo, em 2004, a partir
de um link intitulado “Bíblia e homossexualidade”, veiculava textos que examinavam e
refutavam passagens bíblicas que supostamente condenam as práticas homossexuais. Três
temas apareciam como fundamentais no questionamento atinente à proibição das ligações
homoafetivas no texto bíblico: a infalibilidade bíblica, contextualização histórica e a
inspiração divina. Em linhas gerais, o estudo ressaltava que era preciso relativizar os
conteúdos, uma vez que não havia uma clara relação entre a “vontade de Deus” e as
traduções e interpretações do texto bíblico, que eram feitas por “pessoas comuns”. Era
preciso considerar, então, época e cultura em que cada situação bíblica era produzida. E
ficar atento aos muitos erros de tradução, como forma de questionar uma leitura literal da
Palavra. Ao final de cada texto, eram propostas “questões para reflexão”. Cito aqui, as
indagações que figuraram como “exercícios”, logo ao fim do texto de introdução da “série
de estudos”: a) “Você acredita que a Bíblia condena a homossexualidade?”; b) “Você
acredita que o que você aprendeu enquanto criança ainda afeta a sua vida atualmente?”; c)
“Você está disposto e desejoso de confrontar seus paradigmas?”.
Outros textos sinalizavam para as orientações teológicas do grupo. Neles, eram
comparadas divergentes traduções da Bíblia. Gênesis dezenove, por exemplo, popularmente

152
conhecida como a passagem de “Sodoma e Gomorra”, não podia ser considerada um
exemplo da condenação da homossexualidade por Deus. A cidade não teria sido destruída
devido à prática do sexo homossexual, mas pelo uso do poder e subjugação dos fracos.
Com efeito, o trecho bíblico nem mesmo possuía uma relação direta com a
92
homoafetividade. A passagem de Sodoma e Gomorra ensinava sobre o pecado da
“violência sexual”, do sexo coercitivo e “sem amor”. Da mesma forma, outros trechos da
Bíblia eram lidos e interpretados à luz da teologia inclusiva.
A proposta da Igreja da Comunidade Metropolitana assentava-se na formulação e
difusão de uma teologia que visava desconstruir dogmas do cristianismo sobre a proibição
dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. Dentre os princípios defendidos estava
a crença segundo a qual “a orientação sexual deve ser celebrada e vivida como um dom e
uma bênção de Deus” e que há uma “base bíblica” para a aceitação da homossexualidade,
pois existiria ‘evidências’ históricas sobre pessoas gays e lésbicas entre personagens
bíblicos. A exclusão dos homossexuais das religiões cristãs deveria ser combatida através
de conhecimento teológico que problematizasse a interpretação bíblica. Ainda que a igreja
não fosse anunciada como uma denominação exclusivamente homossexual, o discurso
mostrava que esta identidade sexual devia ser celebrada e, obviamente, os homossexuais
deviam ser incentivados pela religião a sair do armário e a assumir-se, livrando-se da culpa
cristã tão destrutiva de suas auto-imagens.

Sávio conta que foi criada a Escola Dominical para aprofundar essa reflexão e linha
de pensamento, com conteúdos muito diversos daqueles propalados nas igrejas
92
O que estava em jogo era a quebra do “código da hospitalidade”, um costume sagrado naquele contexto.
Uma breve síntese da trama se faz necessária. Ló, morador recente de Sodoma, convidara para sua casa dois
estrangeiros. O ato despertara a desconfiança da população, que temia ataques e saques fruto de uma possível
invasão. Na seqüência dos acontecimentos, soldados exigem que Ló apresente os estrangeiros. Antevendo que
eles seriam feitos prisioneiros, e temendo ferir o código sagrado da hospitalidade Ló, então, oferece suas
filhas virgens, buscando salvá-los da humilhação e subjugação. O texto argumenta que na leitura comparada
da passagem, em diferentes traduções bíblicas, evidencia-se que o foco não é a prática homossexual em si,
mas a quebra do código sagrado da hospitalidade. Uma versão mais próxima dos acontecimentos históricos
que a passagem reporta seria a Bíblia Anotada New Oxford. Nela, um comentário destacava o valor da
hospitalidade sagrada para aquela sociedade. Seguindo esta linha de argumentação, a passagem de Sodoma e
Gomorra não ensinaria sobre a condenação do amor entre duas pessoas do mesmo sexo, mas a condenação
por Deus de todo ato de violência, coerção e poder que subjuga os mais fracos. Sendo assim, o exame de
diferentes traduções e contextos permitira refutar cada trecho bíblico comumente reportado pelos cristãos
‘homofóbicos’ como prova da desaprovação da homossexualidade por Deus.

153
convencionais, “conservadoras”. Eles sinalizavam para a possibilidade de conciliação entre
vida religiosa e orientação sexual. Por outro lado, ocorriam algumas discussões internas
sobre como seria feito o ensino. Apesar da falta de um consenso definitivo, uns apontavam
que o público ao qual era direcionado (gays e lésbicas, em sua maioria) deveria ser
considerado, adequando horários e formato ao estilo de vida dos participantes.
Convencionalmente, as Escolas Dominicais ocorriam no período da manhã nas
denominações evangélicas. Contudo, para evitar a baixa adesão optou-se pela realização da
reunião nas tardes, já que era comum que homossexuais freqüentassem boates nos fins de
semana. Essa margem de negociação buscava adequar a proposta do grupo ao público
“gay”:

Então é assim, geralmente as escolas dominicais, nessas igrejas não


homossexuais, não abertas à homossexualidade, ocorrem de manhã. Lá
na ICM, por um certo tempo, teve uma certa disputa em relação ao
horário. Por que isso? Porque como muitos membros iam pra boates,
final de semana eles deixavam mais pra entretenimento. Então tinha essa
negociação. ‘Se a gente colocar de manhã, como é que vai ser? Não vai
ter ninguém’. Então essa negociação, essa história de negociar o horário
da escola dominical, eu não vi isso em nenhuma igreja. (...) A gente sabe
que o homossexual tem essa, não vou dizer rotina, mas me fugiu a
palavra, tem essa idéia, né? As pessoas querem ir pra boate, as pessoas
gostam de ir pra boate. Ser homossexual, muitas das vezes, é fazer parte
desse circuito. Então, de certa forma, por um bom tempo a escola
dominical foi em função disso. O segundo ponto, que acho que posso
dizer assim, que singulariza a forma como eles tratavam a escola
dominical, era o próprio conteúdo, que era voltado pra questão: ‘vamos
rever tudo o que foi falado, tudo o que foi escrito e as interpretações que
foram feitas sobre os textos’ [bíblicos] (Sávio, 30 anos, professor, ex-
integrante da ICM Rio).

Sávio menciona ainda que esses estudos, conduzidos pelo pastor e por outro líder,
com formação em Teologia e Psicologia, tinham apelo porque tiveram contato com a
reflexão teológica americana: “muito avançada na questão da orientação sexual”. Apesar do
ideal de ser uma igreja “para todos”, a ICM nessa época estava “mais voltada para o
homossexual”, para a “formação positiva do homossexual”. Era com esse intuito, por
exemplo, que um novato ao chegar na igreja necessitava passar pela “Escola Dominical”,

154
que funcionava como uma espécie de curso aos iniciantes, que propunha “preparar” e
“introduzir” o evangelho inclusivo. Constitui-se como um trabalho de incentivo à
construção de uma auto-estima positiva, que “limpava” a “imagem negativa” propalada
pelas igrejas convencionais, ensinando que o homossexual é um “filho de Deus”, um
“cidadão” e não uma “pessoa de segunda classe”.
Buscando ajudar na passagem dessa visão negativa para uma visão positiva,
estimulava-se a convivência entre os participantes, por meio da organização de reuniões
que incentivavam a sociabilidade. Exibia-se algum filme, com temática religiosa ou
homossexual e, em seguida, promovia-se uma discussão. Tratava-se de um ambiente onde
as pessoas podiam se “conhecer” melhor, “namorar” e “fazer amizades”. Sávio lembra ter
visto, em algumas ocasiões, a distribuição de preservativos, embora não identifique a
presença de militantes ativistas no grupo. Estes, até compareciam como “visitantes”, mas
não permaneciam. Havia certa curiosidade sobre como era uma “igreja gay” mas poucos
curiosos retornavam.
A questão do evangelismo emergia na discussão. De que forma atrair mais
homossexuais e lésbicas ao culto? Embora não houvesse uma clara definição de como
proceder no proselitismo, isto era realizado de maneira informal, com divulgação da igreja
nos locais GLS, freqüentados pelos participantes do culto, como pode ser constatado na fala
abaixo:

Quando a pessoa se vinculava à igreja, isso não impossibilitava a ida


desse membro à boate ou de usar as praias gays. Ele poderia manter a
vida dele normal. Isso não era bem falado, mas se esse membro tinha um
namorado e que com esse namorado ele queria ter uma vida sexual
intensa com as pessoas, ele podia. Então qual foi o arranjo que eles
fizeram, já que as pessoas vão à praia no final de semana, a gente pode ir
à praia, curtir e também evangelizar. Falar, não fazer um evangelismo,
não falar tanto de Cristo, mas fazer uma propaganda da igreja: olha
existe um espaço religioso legal, onde as pessoas se encontram, ouvem a
Palavra de Deus. Então, o evangelismo se dava nesse sentido. Em parte,
nesse sentido, não estou querendo dizer que todo o evangelismo era
assim, mas aproveitando o fato das pessoas estarem lá, aproveitavam e
faziam o evangelismo. No caso, estariam pregando em espaços de
sociabilidade gay, na praia, na Parada. Você participa e aproveita para
evangelizar. Você está ali participando normalmente. Se você está na
praia, você está ali, vai estar de sunga, pode até beber, e vai aproveitar e

155
vai falar da igreja. E na Parada [Gay] é a mesma coisa: vamos lá, vamos
dar (Sávio, 30 anos, professor, ex-integrante da ICM).

Sávio mencionou a participação do grupo em uma Parada Gay. Lideres e pessoas


ligadas à hierarquia da igreja estiveram num carro de som ou num trio elétrico, como
membros da Igreja da Comunidade Metropolitana, marcando presença no evento. Ele
informa ainda que havia diferentes correntes de pensamento sobre as questões morais. Uns
defendiam a existência de um maior controle sobre os fiéis, outros concordavam que as
decisões sobre o exercício da sexualidade era uma questão individual, não sendo a
monogamia a única forma de relacionamento aceitável. É claro que ocorria a indicação para
o “casamento”, para as relações estáveis entre duas pessoas do mesmo sexo. Mas esse ideal
convivia com outras “possibilidades” de relacionamentos afetivo-sexuais. Havia aqueles
que “não queriam namorar”, mas “ficar com várias pessoas”, sem o compromisso da
monogamia. Apesar disso, uma corrente de participantes reclamava contra o excesso de
liberdade e escolha, defendendo que as pessoas não deviam ter tanta “liberdade”. Sávio
reconhece que ocorriam tensões a este respeito, envolvendo principalmente, uma postura
mais radical daqueles oriundos de cultos “mais pentecostais” ou “renovados”. Um
participante ostentava sempre um comportamento contrário, argumentando temer que o
grupo não fosse reconhecido como ‘religioso’:

O grande medo da época, porque a igreja era muito nova, estava


começando... era nova não só pra sociedade geral, mas também para os
gays. Muita gente ia pra saber o quê que era, “será que é pegação?”,
“será que lá é realmente igreja”, tinha dessas coisas. Então ele tinha
medo de que o negócio ficasse muito oba-oba. Eu acho que era por isso
que ele era um pouco contra (Sávio, 30 anos, professor, ex-integrante do
primeiro grupo da ICM Rio).

Aqui é lançado um elemento importante cuja análise será retomada adiante: a


legitimidade do grupo face à sociedade mais ampla, em especial, o outro religioso, a
sociedade laica e os grupos e indivíduos homossexuais. A tentativa de obter
reconhecimento social será uma das questões mais cruciais na formulação dos caminhos
que seguirá a nova igreja. Por outro lado, as influências religiosas também se farão

156
presentes como elementos constitutivos do drama. Vamos assim avançando no esboço de
interpretações.

3.4 A IGREJA CRISTÃ CONTEMPORÂNEA: UMA IGREJA INCLUSIVA


PENTECOSTAL

Victor Turner (1980) define as quatro fases ou atos do drama social como uma
sucessão de eventos: o primeiro compreende a ruptura ou quebra de relações sociais,
seguida da crise e de reparos ao conflito para o re-estabelecimento da ordem e das relações.
A fase ou ato final compreende dois caminhos possíveis: a reintegração e retorno ao status
dominante ou o reconhecimento da quebra e novo arranjo social. Com a minha chegada ao
campo era evidente que há poucos dias ou meses tinha se dado a quebra das relações, com a
desvinculação oficial do grupo e dos líderes que ali permaneceram da “igreja americana”.
Ouvi rumores sobre um processo administrativo que teria levado à cisão, ligado a acusações
de má gestão por lideranças. Estas ‘explicações’ são comuns em cismas nas igrejas
evangélicas de uma forma geral, apresentadas como justificativas para quebras de relação e
formação de novos grupos. Outra acusação, mais especifica a esta igreja, eram as acusações
de que alguns líderes estariam trocando de parceiros sexuais e se comportando de uma
maneira ‘não cristã’. Uma distinta queixa veio de um pastor ligado à hierarquia da ICM,
que em 2005, havia comentado comigo a preocupação de agentes da hierarquia da
Metropolitan Church com os caminhos que a denominação parecia estar seguindo, com
ênfase em uma liturgia centrada na Teologia da Prosperidade, que a assemelhava a igrejas
pentecostais brasileiras como a Igreja Universal do Reino de Deus e outras. Falava-se em
destituição de lideranças de um lado (ICM), de outro em desvinculação da igreja americana
por motivações variadas: desejo de mudar e ter uma nova cara (brasileira), ampliar o
público (para além dos gays) e crescer numericamente. O fato é que havia apenas rumores.
Naquele momento, contudo, a crise que foi instaurada era visível. Uma igreja sem nome,
um líder desejoso de continuar sua missão religiosa e os receios sobre que decisões tomar,

157
quais passos seguir. Sabia-se que era importante buscar uma identidade própria, mas um
dos problemas enfrentados no período foi a desvinculação de alguns fiéis. Logo nesse
momento do campo fiquei sabendo que um grupo de cerca de quinze pessoas evadiu-se
para o grupo que funcionava em Niterói, passando este a ser reconhecido pela matriz
americana como a nova ICM Rio de Janeiro. Entendendo a ruptura ou drama, nos termos de
Turner (1980), como reveladora de interesses e contradições internas ao grupo, com a
instauração de uma crise relacionada à desassociação (compulsória ou voluntária) da igreja
matriz, eram necessárias medidas para assegurar a unidade. Logo no primeiro mês do
campo fui informado da saída de um importante diácono e nos meses subseqüentes, da
evasão de outros fiéis para a ICM Niterói ou para outras igrejas inclusivas. Essas migrações
ensejavam atitudes e estratégias dos agentes religiosos no sentido de gerar o compromisso.
Naquele momento mais tenso, logo após a ruptura, havia necessidade de manutenção do
grupo. O pastor informou-me que ‘por enquanto’ privilegiariam uma ‘organização
hierárquica’, com decisões vindas ‘de cima’. Estava aberto a negociações, mas
compreendia naquela fase que a falta de direcionamento poderia levar a dispersão. Soube,
apesar de não ter participado, de pequenas reuniões em que se discutiam exatamente
questões atinentes aos rumos da denominação. Um dos temores, eu percebi, era a
desarticulação e o fim da igreja. Contudo, poucas decisões eram tomadas. Àquela que mais
me chamou atenção já foi aqui referida: a retirada de todo o conteúdo do site da ICM e de
todas as discussões teológicas sobre “homossexualidade e teologia inclusiva”. O desapego
aos conhecimentos teológicos anteriormente valorizados indicava pista da linha que a igreja
iria começar a seguir naquele momento do campo. Soube por um informante privilegiado
que chegou a se discutir questões morais, em um pequeno grupo. Dali decidiu-se que o
debate era complexo e demandaria muito cuidado. Apenas cogitou-se que a igreja seguiria
uma doutrina liberal, talvez reafirmando o princípio da “salvação universal”. O tema do
pecado foi discutido. Como precisar os limites do certo e do errado? Como fazer uma nova
igreja cristã? Quais valores cultivar? Sexo sem compromisso era permitido? Como modelo
para expansão estava a Igreja Universal, a Igreja Renascer, a Igreja Batista e outras, já que
parte dos fiéis pertencera a essas igrejas. Nas conversas que tive, enfatizou-se que havia
poucas certezas, mas muita esperança de superar a crise, sobretudo porque havia uma

158
missão religiosa em questão: alcançar todo oprimido, todo homossexual ou lésbica,
heterossexual ou qualquer pessoa excluída, expulso de igrejas convencionais. Em uma
conversa pessoal, o pastor confidenciou-me que seu pastorado estava ligado ao desejo de
nunca mais se calar em questões sobre sexualidade, desde que prestara atendimento
pastoral a um homossexual que, em sofrimento, mostrara-lhe as marcas de tentativas de
suicídio nos pulsos. A extrema culpa religiosa levava pessoas a não gostarem de si mesmas.
Esse discurso precisava ser combatido. Certos cultos cristãos pregavam “cura da
homossexualidade” e só reforçavam o preconceito. Eles incentivavam as pessoas a irem
contra sua ‘verdadeira essência’ e muitas vezes as levava a acreditarem não ser o que
‘eram’. Como algumas não conseguiam deixar de ser homossexuais, preferiam a morte.
Essa realidade o impactava e o levava a pensar na condução de seu ministério. A missão
iniciara-se na Igreja da Comunidade Metropolitana, após a revelação que recebera de uma
senhora, na igreja convencional que freqüentara anteriormente, de que seria ordenado
pastor. Como os eram insondáveis os desígnios de Deus, ele fora ‘levantado’ sacerdote na
missão da ICM, uma igreja gay. E como os planos de Deus eram sempre surpreendentes, a
busca de um novo ministério e caminho o levava a refletir sobre essa nova etapa e o que
Deus queria de si, neste novo ‘chamado’ pastoral.
Com o passar do tempo ficou cada vez mais claro que a tensão entre os diversos
participantes ia resultar numa cisão. Como o clima era de relativa tensão, optei por recorrer
a novas intermediações e convoquei Bernardo, o amigo que me levara à conferência de
inauguração da denominação, para me auxiliar outra vez no contato com as pessoas. Ele
era sempre muito solícito, embora externasse que não pretendia se filiar, “dar dízimo”. Ali,
ele considerava apenas que tinha amigos e recebia algum tipo de apoio. Encontrávamos-nos
na Lapa e seguíamos para a igreja. Uma ocasião, ele explicou que uma de suas ‘reservas’
estava baseada numa leitura crítica que fazia das argumentações teológicas da igreja que
considerava “muito fracas”. Para ele, tratava-se de um complexo paradoxo: ou crente ou
homossexual. Não havia na denominação um corpo doutrinário consistente que explicasse a
homossexualidade do ponto de vista bíblico. Para ele, era pecado e não se convencia de que
era um comportamento aceitável para Deus. O que faziam ali talvez não fosse uma “igreja”.

159
Eram homossexuais que se reuniam para encontrar justificativas para uma proibição
contida na Palavra.
Em um primeiro momento assisti ao Culto de Unção, que enfatizava o “louvor” e a
“oração”. A liturgia seguia um estilo pentecostal leve, sem exorcismos, mas que invocava a
presença do Espírito Santo. Os louvores eram exibidos em um aparelho de televisão
suspenso, próximo ao púlpito. As músicas executadas eram aquelas largamente difundidas
no meio pentecostal através de grupos gospel como o grupo Toque no Altar e outros.93
Através de playback, eram cantadas e conduzidas pelos “levitas” (“aquele que tem o dom
da música”). Um dos louvores me chamava atenção pelo recurso à categoria “sacrifício” e
à idéia de renúncia aos prazeres. Assim, eles freqüentemente traziam pistas sobre o estilo de
religiosidade. Um deles, de título “Abro mão”, gravado pelo Ministério Apascentar,
evocava necessidade de entrega dos prazeres, das coisas materiais, das vontades pessoais a
Deus. A submissão e ‘entrega’ a divindade constituía tema recorrente. Ainda que não
houvesse uma referência à categoria “carne” nas letras, em pregações e ministrações,
enfatizou-se que os desejos individuais deviam submeter-se às determinações de Deus.
Algumas letras de louvor enfatizavam o tema do sofrimento humano e o poder de Deus na
resolução de todo problema. Tinham como foco o indivíduo, tocado e ‘restituído’ por Deus,
livre de toda dor, segregação, opressão. Outros louvores difundiam a mensagem da luta
contra o ‘inimigo’ e o mal, afirmando o poder do indivíduo quando cheio de Deus. O tema
da vitória se fazia presente e a linguagem apelava às metáforas de guerra: guerreiros de
Cristo contra as forças do mal.
Naquele “Culto de Unção”, durante os momentos de louvor, os presentes mostravam
intimidade com as músicas, cantando de olhos fechados, gesticulando expressivamente.
Alguns mais novatos olhavam as letras exibidas, enquanto tentavam acompanhar a música.
Apesar disso, a grande maioria demonstrava desenvoltura, levavam as mãos ao coração,
elevavam os braços, cerravam os olhos fortemente, dançavam e sacudiam o corpo. Uns

93
A difusão popular desse estilo de música religiosa foi facilmente perceptível por mim. Ao transitar pelo
Centro da Cidade, em especial pela Rua Uruguaiana, por várias vezes pude ouvir os louvores executados no
culto, difundidos ali, pela rádio do comércio local. Bancas de ambulantes especializadas na venda de artigos
religiosos colocavam a venda CDS desses grupos e artistas. Durante o trabalho de campo, na busca pela
tentativa de tomar intimidade com o universo e cosmologia, me tornei um consumidor desse tipo de música,
cujos CDs podiam ser adquiridos pelo preço de R$ 15, 00.

160
choravam. O louvor - foi logo possível perceber – constituía um momento central do culto.
Era comum identificar alguns ‘casais’ ou ‘namorados’ na igreja, pela proximidade com que,
freqüentemente, rapazes assistiam ao culto, muito próximos (com o braço por de trás da
cadeira do outro) ou abraçados, em alguns momentos específicos do rito. Também era
comum observar que estes trocavam gestos afetuosos, como uma pequena carícia no rosto.
As reuniões de quarta-feira eram conduzidas sempre por uma pessoa diferente, em
quase todos os casos, por um membro do sexo masculino. Os participantes recebiam
Bíblias para um momento de leitura da Palavra, que era subseqüente aos louvores. A
inabilidade em manusear uma Bíblia e localizar passagens propiciou que sempre eu fosse
auxiliado por alguns dos participantes, que ficavam de pé, assistindo aos iniciantes. Os
cultos de domingo, mais avivados, consistia em reuniões “de adoração”, com maior
recorrência de glossolalia e experiências com o Espírito Santo. Circulava o comentário de
que a freqüência aumentava na mesma proporção em que crescia o fervor religioso. Fato
interpretado por alguns como prova do poder de Deus, cada vez mais atuante na igreja. No
domingo ocorria maior presença de visitantes. Havia um momento para a “ceia”, sempre no
primeiro domingo do mês, em que era servido vinho e pão aos presentes. Ao final de cada
uma dessas reuniões, aqueles que visitavam o templo pela primeira vez eram convidados
pelo pastor a erguer a mão. Este, então, dirigia-lhe palavras de “boas vindas” e ao término
do culto, essas pessoas eram procuradas por um membro do “ministério de recepção” para a
“acolhida”: o visitante recebia um formulário que preenchia com dados pessoais, e-mail,
contatos, recebendo algumas orientações gerais sobre as atividades da igreja. Eram então
convidadas a retornar, após serem instruídas de que era importante não tirarem uma
conclusão precipitada sobre a “primeira reunião”. O importante era retornar, para conhecer
melhor a igreja e ter um tempo de adaptação. 94 Além das pregações, eram também comuns
nos cultos momentos rituais de “unção”, nos quais a comunidade dirigia-se ao pastor que,
auxiliado por diáconos, mergulhava o polegar em um “óleo santo” e tocava a testa da
pessoa, desenhando nesta o ‘sinal da cruz’. O poder mágico da unção foi enfatizado por um
informante por meio de seu potencial “restaurador”. A prática remontava os primórdios do

94
Em uma das primeiras vezes que fui à igreja, preenchi esse formulário, participando da “acolhida”, a partir
do qual recebia e-mails com noticias sobre os cultos.

161
cristianismo, pois Jesus teria sido ungido com óleos e “ungüentos” e, “Ele” mesmo, havia
ungido os pés de seus discípulos. O ritual estava imbuído de um sentido de “proteção”, pois
eram comuns passagens bíblicas nas quais a “unção” ‘apartava’ o indivíduo do mal. A
unção, assim, ocorria como uma espécie de ritual em que se marcava a pessoa com o “selo
de Deus”, como um escolhido. Nas vigílias que ocorriam aos sábados, a “unção” importava
em experiências mais místicas que podiam abarcar situações de “derramamento no
Espírito”. 95
Apesar de ter sido instruído de que não deveria participar dessas reuniões
inicialmente, com o passar do tempo, acabei obtendo permissão pastoral, tendo a
oportunidade de observar melhor eventos como este. Após a unção, o indivíduo poderia
tombar ao chão, assistido por “intercessores” ou “obreiros”, que auxiliavam o pastor e
diáconos, com os braços erguidos atrás do fiel, em posição de amparo. Quando ocorria uma
situação de derramamento no Espírito, estes auxiliavam a pessoa, que descia ao chão, reta.
Em seguida, oravam sobre ela, com gestões de imposição de mãos, proferindo palavras e
oração em tom baixo. Após alguns segundos ou minutos, o indivíduo, acometido pela
experiência, podia retornar a consciência e erguer-se, auxiliado por eles. Essa experiência
não era comum a todos os fiéis, havendo, em alguns casos, a suspeita quanto a sua
autenticidade por alguns, cujo passado católico ou não pentecostal, levava a questionar se
tal manifestação era autêntica (divina) ou sinal de endemoniamento. Vale frisar que nestes
cultos, eu alternava uma postura de observação, na qual mantinha os olhos abertos e
procurava me inteirar visualmente do que ocorria, com uma atitude de respeito e reverência
religiosa, na qual fechava os olhos, quando o pastor ou liderança exortava a igreja a fazê-lo,
ajoelhando-me, se necessário, ou mesmo cantando ou louvores que aprendi com o passar do
tempo. Uma ocasião, contudo, em uma vigília, eu estava resistente e após ser incentivado
por um participante ao lado, dirigi-me à unção, a contragosto. Racionalmente, dizia a mim
mesmo que nada ocorreria, quando experimentei uma leveza no corpo e então, sem
perceber ao certo, fui tombado ao chão como se tivesse flutuado até ele. Nenhuma sensação
de pressão, como imaginava, apenas percebi estar deitado e sendo objeto de uma oração por
95
Momentos rituais em que fiéis tombavam ao chão, após a unção com óleo na testa, feita pelo pastor e eram
assistidos por “intercessores”, que oravam até que, após alguns minutos ou segundos, este se levantasse e
tomasse seu lugar na platéia.

162
“obreiros”. Não ouvia muito bem as palavras, mas sentia um misto de sonolência e leve
consciência, até que fui tocado e auxiliado a me levantar do chão. Fui instruído depois que
havia sido retirada de mim uma ‘carga’ ou ‘energia’ muito pesada, um sentimento negativo
que não me faria bem. Explicaram-me que esse tipo de experiência podia significar um
momento de grande “toque de Deus” e “cura” ou também a retirada de alguma influência
espiritual maligna. Como eu estivera irritado, experimentando anthropological blues,
desejoso de estar sábado à noite numa boate ou festa do que num vigília religiosa, concluí
que o que fora retirado de mim tinha sido de fato uma ‘energia ruim’, pois eu fora
acometido por um sentimento de mansidão.
Quando era encerrado um culto, eu conseguia aprofundar os laços com os
freqüentadores, durante um momento de sociabilidade no qual era servido um lanche,
preparado por alguns fiéis. Normalmente, esse era o momento em que eu esclarecia meus
objetivos de pesquisa e, então, podíamos estabelecer uma animada conversa, sem que eu
sentisse estar alterando a rotina da reunião. As oportunidades de conversar com o pastor da
denominação, nesses momentos, eram um pouco raras, devido a sua procura por
participantes ou visitantes. Eu percebia que ao final do culto havia sempre muitos assuntos
cotidianos da igreja a serem tratados, ou mesmo ocorriam demandas ligadas ao atendimento
pastoral.
Nos primeiros meses, ocorriam apenas os cultos de quarta-feira e de domingo. Com o
passar do tempo, criou-se outro ritual, nomeado “intercessão”, que acontecia quintas de
noite e terças de manhã. Eram reuniões mais íntimas, nas quais um menor número de fiéis
se encontrava, na igreja, para orar por pedidos e intenções da congregação. Aconteciam
ainda reuniões do coral, que ensaiava as cantatas, apresentadas em datas festivas. Com o
passar do tempo, foi criada uma página no orkut que ‘chamava’ para os cultos, informava
sobre a ocorrência de uma atividade de sociabilidade ou simplesmente era um canal de
envio de mensagens e “uma Palavra”, postada sob a forma de uma passagem bíblica. Esse
canal passou a funcionar após a escolha do novo nome da denominação: Igreja Cristã
Contemporânea.
Um cavalete foi colocado na entrada do templo, passando a indicar ali a existência
daquele grupo religioso. Junto ao nome da congregação, os dizeres anunciavam: “diferente,

163
ungida e sem preconceitos, a igreja que vive nas asas de um novo tempo”. No material de
divulgação (prospectos impressos e anúncios veiculados pela Internet), enfatizava-se que
aquele era “o lugar da cura, do amor e da Palavra de Deus”. Se anteriormente não era
perceptível nenhuma identificação do grupo no prédio em que ele funcionava, com a
escolha do novo nome parecia importante tornar visível sua identidade própria e autonomia
em relação ao grupo anterior.
O pastor anunciou orgulhoso em um culto que o momento representava um recomeço
para o grupo, que as dificuldades seriam muitas, mas era preciso compreender que haveria
um “novo nascimento”. Mesmo sem um consenso sobre o que significava esse novo
caminho, havia uma percepção compartilhada da existência de uma transição. Ficava claro
que não se tratava de um grupo religioso com doutrina ou detentor de uma estrutura interna
definida, mas uma igreja que estava em processo de construção, a partir do rompimento
com o grupo anterior.
Por meio de algumas conversas, soube que o ingresso na igreja se dava mediante um
“encontro de apresentação”, sob a responsabilidade de um integrante, que esclarecia ao
neófito a proposta da igreja. A partir disso, ele podia optar em se filiar ou freqüentar “sem
compromisso”. A escolha da adesão implicava na inserção em um subgrupo nomeado
“discipulado”, por meio do qual o novo fiel recebia conselhos e orientações de um membro
mais antigo, o “discipulador”. Após os cultos era recorrente que alguns pequenos grupos se
formassem, para um momento de interação entre aconselhador e aconselhado. O
“discipulado” incluía uma dimensão mais pessoal, que podia se materializar sob a forma de
ligações telefônicas ou encontros fora do ambiente religioso.
Em uma de nossas primeiras conversas, o pastor explicou que os homossexuais se
aproximavam da denominação com “muitos conflitos”, e “ferimentos emocionais”. Eram
recorrentes as histórias de exclusão na religião de origem, incluindo rejeições familiares.
Eles eram ‘acolhidos’ ali para cuidar dessas “feridas”. O papel do pastor era de ‘cuidador’,
muitas vezes o de um psicólogo, ouvindo e instruindo nos princípios de uma “vida cristã”.
Durante três meses, recebiam orientações do discipulador e tinham esclarecimentos sobre
questões bíblicas para compreender que a homossexualidade não era proibida por Deus,
nem pecado. Orações e “ministrações” faziam parte deste “cuidado” que ajudava na

164
“jornada espiritual” da pessoa. Era um trabalho de “cura interior”, tratamento para a
“psique” e para a “alma”, conforme explicou-me o pastor:

A gente ta em processo de mudança e agora eu estou enxergando melhor o


caminho, eu fiquei meio perdido num período assim e agora eu percebi que as
pessoas estavam precisando de carinho, de amor, de atenção. E a gente não sabia
dar muito bem isso, isso é um aprendizado. (...) Não sei se você já percebeu...todo
o nosso trabalho é de cura interior. Do psique, da alma...e todo de auto ajuda. (...)
O que é importante é que as pessoas tem sido curadas, tratadas disso. Há pessoas
que chegaram aqui há uns meses atrás e já estão completamente diferentes.

Conforme venho tratando ao longo desta tese, reaparece aqui o nexo entre psicologia
e religião, realçando a função terapêutica de novas ofertas religiosas na resolução de
conflitos interiores. Na visão de alguns religiosos do grupo, o trabalho pastoral assemelha-
se ao de um psicólogo, cuja instrução, contudo, está voltada aos princípios da “vida cristã”,
quase “uma auto-ajuda” cristã. Os motivos que levavam os homossexuais à igreja eram
variados: rompimento de relacionamento, enfermidade, crises de idade. Os novatos
recebiam apostilas que esclareciam sobre questões teológicas, relacionadas à
homossexualidade.
Em termos de uma estrutura formal, o cargo máximo era o de pastor (ou reverendo).
Descendo na hierarquia, estavam os “diáconos”, os “oficiais” (“aspirantes a diáconos”), os
coordenadores de ministérios, e os fiéis. Nos cultos de quarta-feira, diáconos e aspirantes
subiam ao púlpito para “pregar”. Esse era um importante aprendizado na carreira pastoral,
por meio do qual eram avaliados pelo pastor – e reconhecidos pela comunidade - como
indivíduos detentores do dom da Palavra e de carisma para a condução do grupo. A carreira
religiosa estava ligada não a critérios de formação, mas a um aprendizado evangelístico
missionário, como destacou o pastor em explicação sobre as formas de ascender na
hierarquia da igreja:

A pessoa pode chegar aqui PhD em teologia. Não adianta. Ela não vai
ser ordenada pastor. Ela vai ter que seguir todos os passos: ser
aspirante, ser diácono, ser evangelista e pastor. E daí se ela seguir o
caminho todo... Na verdade, se ela sair da igreja por algum motivo, ela
perde tudo e volta... (pastor)

165
Assim, ter formação teológica não assegurava um lugar na estrutura eclesiástica,
estando o aprendizado da carreira religiosa, muito mais implicado em um chamado
religioso e ao “serviço na Casa do Senhor”. Naquele momento inicial, havia quatro
diáconos (Lucas, Ezequiel, Bruno e Fabiano) e diversos aspirantes, todos homossexuais.
Esse aspecto marcava um importante diferencial em relação à carreira pastoral da igreja
anterior, já que na Igreja da Comunidade Metropolitana a formação teológica acadêmica
era valorizada. Na Igreja Contemporânea, o carisma assumia um lugar de destaque.
As atividades na denominação envolviam a participação em ministérios. O
“ministério de arte e coral” era responsável pelas cantatas, ensaios do coral e pelos louvores
dos cultos. O “ministério de intercessão” dedicava-se a orações e era composto por pessoas
que tinham o “chamado” e competência religiosa para atuar na interferência junto a
problemas espirituais. Havia ainda os “ministérios de eventos e comunicação” e o “de
acolhida”, respectivamente voltados a divulgar as atividades da denominação e a
recepcionar os novatos. Segundo informantes, as experiências anteriores eram
fundamentais à distribuição dos ministérios, alguns integrantes “do louvor”, por exemplo,
eram sujeitos que já haviam desempenhado funções ligadas ao ministério de música em
igrejas por onde tiveram passagem.
A freqüência da igreja era majoritariamente de homossexuais masculinos, entre os
vinte e quarenta e cinco anos. Soube mais tarde que a única mulher que eu identificara na
igreja com mais recorrência era “lésbica”, uma aspirante a diaconisa. No período, um casal
de mulheres recebeu a “bênção do pastor” em uma cerimônia. 96 Havia uma presença
reduzida de homens com menos de vinte anos e acima dos cinqüenta, embora ocorressem
visitas esporádicas de alguns com esse perfil etário. Também era rara a adesão de travestis e
transexuais, embora alguns informantes tenham referido a freqüência de algumas e eu tenha
chegado a entrevistar uma delas.
A maioria dos participantes, incluindo os visitantes, residia nas regiões da Zona
Norte, Centro e Zona Oeste, em bairros como Campo Grande, Pavuna, Freguesia, Bangu,
Guadalupe, Bonsucesso, Benfica, Niterói. Também havia àqueles oriundos da Baixada

96
Fiéis e o pastor não souberam explicar o pequeno numero de mulheres (homossexuais ou não) na igreja,
embora procurassem valorizar ocasiões em que seus parentes eram convidados para cultos comemorativos.

166
Fluminense. Diferente de uma “igreja de bairro”, dizia-se que a denominação tinha uma
vocação para atrair gays e pessoas de várias localidades pela sua localização em área
central. Em termos de profissões e ocupações, alguns estavam desempregados ou eram
estudantes (incluindo, universitários), outros ocupavam funções de nível médio como
auxiliar de escritório, atendente de tele-marketing, vendedor e outras. Alguns trabalhavam
como comerciários e outros como cabeleireiros. Uma parcela menor - em especial ligadas a
cargos eclesiásticos - tinha ocupações de nível superior, como enfermeiro, assistente social,
advogado, publicitário e pedagogo. Apesar de alguns participantes e visitantes não terem
qualquer vinculação religiosa (anterior ou atual), o mais recorrente era que o integrante
tivesse um passado de conversão ou socialização em ambiente religioso evangélico ou
católico (em poucos casos). Dentre as vinculações religiosas anteriores estavam
denominações como Igreja Universal do Reino de Deus, Assembléia de Deus, Igreja
Batista, Renascer em Cristo, Igreja de Cristo, Igreja Metodista, Igreja Congregacional.
Conheci apenas um integrante com passagem por culto afro-brasileiro e outro de criação
em uma família mulçumana. Sobre as trajetórias religiosas, a maior parte era de família
majoritariamente evangélica. Em menor proporção, estavam aqueles que foram
socializados em um ambiente de pluralismo religioso, havendo convivência com parentes
católicos, sem religião, familiares desviados e integrantes de outras religiosidades. Diversos
informantes, com quem conversei ou entrevistei, eram filhos e netos de pastores de vertente
pentecostal ou evangélica tradicional. Em um trecho de uma conversa gravada, Júlio
explicou que integrava uma rede familiar na qual havia fundadores de igrejas, tendo a
religião evangélica sido herdada pelos familiares:

Minha família vem de uma tradição presbiteriana. Minha avó, minha


tataravó também era presbiteriana. Minha bisavó, depois foi minha avó,
era dona de Igreja. O terreno que ela construiu (a igreja) era da minha
bisavó. Fez toda uma história de Igreja... E foi passando, na mesma
denominação, todo mundo... Ninguém nunca questionou, na verdade. Foi
recebendo. (Júlio, 24 anos, diácono)

Quando me atentei ao fato comecei a indagar se a carreira pastoral poderia ter relação
com a reprodução da religião na geração posterior, pois havia pouca ruptura com a religião

167
evangélica, aderida pelos pais e por outros familiares, com incidência de cargos pastorais.
Parecia uma espécie de carisma herdado socialmente, pois o indivíduo se via compelido a
uma missão religiosa.
Na denominação, havia ainda a organização de “campanhas”, cujo objetivo era a
realização de cultos temáticos em torno de um propósito a ser alcançado. Assim, em agosto
de 2007, ocorreu o “mês da promessa”. Participantes buscavam a “poderosa unção de
promessa do Espírito Santo” para as áreas sentimental, familiar, financeira, profissional e
espiritual. Na liturgia que ali se apresentava, uma categoria fundamental eram os
“propósitos”. Uma espécie de desafio feito pelo fiel a Deus, a partir do qual se objetivava a
obtenção de uma graça. O propósito se distinguia da promessa católica porque implicava
um engajamento do fiel. Por exemplo, para alcançar o que se pedia, era preciso uma atitude
pessoal que incluía a participação em jejuns, leitura diária da Bíblia, orações e, em certos
casos, um sacrifício envolvendo a abnegação de algum prazer. Era possível “colocar um
propósito” pela prosperidade, um emprego, ou pela conquista de um relacionamento. O
ethos religioso do grupo ficou mais fortemente marcado com o passar do tempo, indicando
um processo de pentecostalização que, mais tarde, intuí guardar algumas relações com as
mudanças que se operavam em termos formais na separação da Igreja da Comunidade
Metropolitana.
Na seqüência, retornarei ao problema inicial do capítulo, o cisma das duas igrejas,
aprofundando a reflexão a partir de novas pistas. O objetivo será alcançar a compreensão
das contradições que o drama revela e na interpretação das soluções à crise gerada na
ruptura, sobretudo ligadas às mudanças de forma e conteúdo dos cultos e revisão de
estratégias de ação.

168
3.5. NO CAMINHO DA CONSOLIDAÇÃO: A IGREJA E A QUESTÃO DA
RESPEITABILIDADE - “SABER SE COMPORTAR PARA SER RESPEITADO”

Com o passar do tempo, percebi que o cisma não era um tema recorrente nas
conversas. Havia certo constrangimento no ar e intuí que não devia evocar os conflitos
diretamente. Fui repreendido em algumas ocasiões em que, inadvertidamente, me referi ao
grupo como Igreja da Comunidade Metropolitana. Quando isso ocorria era lembrado de que
ali funcionava agora a Igreja Cristã Contemporânea. Apesar da existência de certo tabu
sobre o assunto, quando ele emergia, havia uma intenção de marcar a distinção entre a
‘velha’ e a ‘nova’ denominação. Não tive acesso a fatos e versões devido ao desconforto
que o assunto trazia, mas algumas opiniões eram evocadas quando perguntava sobre as
possíveis diferenças e semelhanças entre elas.
Nas conversas em que aparecia o tema do rompimento com o grupo anterior, não
havia uma clara definição sobre aspectos doutrinários relevantes que contrastassem as duas
denominações. Predominava um cuidado em afirmar que a igreja nova não tinha
preconceitos e pretendia acolher todo tipo de pessoa em seu quadro de membros. Nesse
contexto, a escolha do nome da igreja tornou-se um evento marcante. O sentido da palavra
“contemporânea” indicava que a denominação se pretendia “moderna”, “sem
preconceitos”, “uma igreja pra frente”, “liberal”. Religião com poucas restrições
doutrinárias, de forma que deveria atrair uma ampla gama de pessoas excluídas em outros
espaços religiosos. O objetivo era trabalhar a serviço do resgate da “auto-estima” e bem
estar das pessoas. Essa postura espelhava-se na atitude de Jesus, que acolhia todo pecador.
Sobre as definições do que era ou não visto como pecado, novas conversas me atualizavam
que a decisão era pessoal, cada fiel devendo responder a si mesmo (e a Deus) sobre sua
forma de proceder. Alguns informantes reforçavam essa dimensão, indicando que a
doutrina da igreja estava em discussão. Apesar disso, com o passar do tempo, era
perceptível um crescente rigor doutrinário nas questões sobre moral sexual.

169
Alguns dos participantes alegaram não conhecer a Igreja da Comunidade
Metropolitana. Eram membros novos na igreja e somente ouviram “comentários”, não
tendo uma opinião formada sobre as divergências das duas denominações. Outros
ingressaram poucos meses antes da separação, achavam difícil opinar. Apesar de um
diferenciado grau de inserção na denominação no período anterior à desvinculação, as
respostas não variavam muito em seu conteúdo. Fui colhendo impressões, percepções e
comentários, que eram feitos muitas vezes despretensiosamente.
Conforme assinalei anteriormente, até onde pude perceber, o grupo se definia e se
legitimava a partir de uma forte oposição ao rótulo de uma “igreja gay”. Nas entrevistas,
havia uma percepção da denominação americana como portadora dessa auto-identidade.
Em algumas conversas que tive, o termo “igreja inclusiva” – categoria identitária aderida
pela Igreja da Comunidade Metropolitana - era problematizado. A Igreja Contemporânea
podia ser vista como uma igreja inclusiva porque permitia que pessoas com orientação
homossexual tivessem uma vida religiosa. Contudo, a falta de um consenso sobre esse tema
possibilitava que alguns rejeitassem o rótulo e outros formulassem apropriações. Apesar
dessa reflexão, o uso desta identidade deve ser compreendido a partir de uma perspectiva
contextual: no confronto com a proibição hegemônica cristã sobre a homossexualidade,
participantes da Igreja Contemporânea se percebem como “inclusivos”. Uma situação
exemplar ocorreu quando fui apresentado, na igreja, a um pastor da Comunidade Cristã
Nova Esperança, oriundo da cidade de São Paulo. Não havia ali uma preocupação em
rejeitar a categoria, mas pelo contrário, uma identificação que permitiu ao líder destacar,
quando me apresentou ao dirigente da denominação: “eles são inclusivos como nós”. A
despeito disso, a categoria era rejeitada quando evocada relativamente às divergências
internas do campo minoritário. Um panfleto de divulgação da denominação trazia a
seguinte pergunta: “mais uma igreja inclusiva?” O texto criticava o uso da expressão,
sublinhando que a terminologia teria se tornado sinônimo de uma igreja destinada apenas a
um segmento (o GLBT), enquanto a proposta da Igreja Contemporânea não era restringir a
inclusão à determinada classe ou grupo de pessoas. Nesse sentido, a classificação era
problematizada como auto-identidade, havendo usos específicos dependendo do contexto

170
em que era evocada. Com efeito, institucionalmente, era mais indicada a referência à
palavra “contemporânea”.
Na tentativa de marcar a sua distinção em relação à igreja antiga, um conjunto de
representações era acionado. Alguns informantes disseram acreditar que na “outra igreja”
as coisas eram um pouco diferentes, pois predominava uma maior tolerância com
comportamentos tidos como não religiosos. Por exemplo, ouviram dizer que lá aceitavam
“relacionamento aberto”, era uma igreja mais “liberal”, mais “permissiva”. Acreditava-se
que rolava até “paquera” nos cultos. O período anterior à separação da igreja era
interpretado como de maior flexibilidade para este tipo de postura, ocorrendo agora, mais
controle e vigilância. Essa suposta atitude complacente era interpretada como inadequada e
incompatível com o que deveria ser a proposta de uma igreja “cristã”.
Em termos das novas ações, um entrevistado contou que a preocupação com a
imagem do grupo - e possíveis associações com promiscuidade - levava a discussões sobre
as formas de evangelismo. A maior parte das pessoas concordava que não deviam fazer
proselitismo em ambientes como saunas, sex-shops e clubes de sexo freqüentados por gays.
Um deles disse que apenas um participante defendera essa forma de divulgação da igreja,
de modo que a decisão fora quase unânime. O evangelismo era feito em boates e outros
locais de sociabilidade gay que não fossem necessariamente prejudicar a imagem do
trabalho que faziam. Recentemente, o grupo fora distribuir panfletos, na porta da Boate
Papa G, em Madureira, Zona Norte do Rio. Os participantes tinham instrução pastoral para
não entrar na boate e, antes do trabalho missionário, uma oração era feita para enfrentar
possíveis “tentações”. 97
Relatos enfatizavam que a denominação pretendia seguir a linha de uma “igreja
normal”, pregando “o que toda igreja prega”: o crescimento espiritual, a Palavra, o
conhecimento de Deus e da Bíblia. Uma igreja tão “normal” que nem mesmo se ouvia
97
Sobre o proselitismo religioso do grupo, obtive ainda o relato de um informante sobre a grande
preocupação que era evangelizar na Parada Gay. Havia uma exortação ao cuidado para não se envolver na
festa e com as questões espirituais implicadas em situações orgiásticas como aquela. Vários depoimentos que
obtive a este respeito informavam que o grupo ia a Parada Gay “para evangelizar, não para participar”. Apesar
disso, um informante, rindo, admitiu enfrentar um combate interior: “A carne é fraca irmão, a carne é fraca.
Eu prefiro nem mesmo ir”.

171
pregações sobre homossexualidade nos cultos, o que era diferente no grupo anterior. A
orientação era para que não ocorresse “muito agarramento”, pois era um local para buscar
espiritualidade. Foi citada – negativamente - a situação em que um líder religioso advertira
um casal de homossexuais masculinos que havia se beijado durante um culto. Outro fato
relatado foi a ocasião em que um rapaz chegara a abordar outro após uma reunião, tirando
uma camisinha da carteira e convidando-o para uma relação sexual. Segundo a nova
diretriz, em razão de ‘equívocos’ como este, era preciso um trabalho constante de
esclarecimento, para mostrar que o templo era um lugar religioso e de “adoração”. Lutava-
se contra a crença do senso comum de que homossexuais não podiam ter uma religião ou
adorar a Deus.
Uma história recorrente, com pequenas variações, descrevia a situação de dois
homossexuais masculinos (ou lésbicas, numa outra versão) surpreendidos nas escadas de
acesso à igreja, fazendo “pegação” (trocando carícias, beijando-se ou mesmo iniciando ato
sexual). Nessa narrativa, as circunstâncias, personagens, local e denominação eram
reportados por diferentes informantes, em versões divergentes, mas com um mesmo
ensinamento moral: o casal, ou os indivíduos implicados no ato, era surpreendido pelo
pastor e, então, convidado a se retirar, admoestado de que aquele não era um lugar para tal
comportamento.98 O recorrente emprego categoria promiscuidade na definição do outro,
enfatizava os princípios de uma vida orientada pelo princípio das relações estáveis e pela
monogamia como um ideal. Na tentativa de definir esse modelo, o tema da conduta sexual
aparecia opondo “vida cristã” a “vida no mundo”, santidade a natureza carnal. Ainda que o
pecado não fosse a homossexualidade, ele existia como princípio dotado de realidade nas
definições do que Deus aprovava ou desaprovava, limites do que os homens deviam ou não
fazer. Na consolidação da igreja, esses aspectos cosmológicos e doutrinários foram
ganhando mais clareza. A definição de vida cristã passava por uma recusa a lógicas típicas
de uma subcultura homossexual, defendendo certo apartamento desta. Se na igreja anterior,
dizia-se haver flexibilidade, as mudanças que ocorreiam apontavam para uma rejeição de
certos modos de sociabilidade homossexual, pela crítica à gestão da vida afetiva e sexual

98
A mesma história chegou a ser relatada por participantes de distintas igrejas inclusivas, a partir do que
considerei, para efeito de análise, menos se o fato era verídico do que seu ensinamento moral.

172
orientada pelo “cálculo racional do prazer” (Pollack, 1985:56) e pelo valor do hedonismo
(Duarte, 2005). Desta forma, o grupo deveria ser pensado contrariamente a um ‘mercado
sexual’, onde pudesse haver sexo livre, mas, ao contrário, local para aprendizado da
submissão a Deus. Esforços pastorais serão empreendidos nesse sentido, estando os agentes
religiosos engajados nessa missão, conforme exploraremos adiante.
A Igreja Contemporânea também não desejava “fazer apologia sobre a orientação
sexual” – posicionamento que se percebia contrastivo ao da militância feminista e o de
algumas igrejas GLBT, como a Igreja da Comunidade Metropolitana. A orientação sexual
da pessoa “é o que ela é”, uma coisa natural. Não era preciso enfatizá-la como uma
”diferença”. Já a igreja antiga (ICM), um informante ouviu dizer que era mais freqüentada
por travestis, e que “tava virando um show”. Era preciso ter cuidado com estereótipos,
porque nem todo homossexual “gostava de se vestir de mulher”. Essa ressalva trazia a cena
(de forma velada) o tema da efeminação, enfatizando o ideal de uma homossexualidade
discreta. Em sua opinião, todos deveriam ser respeitados, mas algumas pessoas sofriam
mais preconceito do que outras, como era o caso das travestis e das transexuais, que às
vezes podia ‘exagerar um pouco’. Apesar disso, nem todo comportamento era conveniente.
Não se veria ali, por exemplo, distribuição de preservativos ou pessoas fazendo campanha
contra AIDS e outras DSTs, porque a igreja não era o melhor lugar para isso.
A despeito de não ter conhecido o grupo antes da separação, Leonardo afirmou que
percebia mudanças, concernentes menos à instituição em si, do que a uma “consciência de
um novo caminho”, uma questão de “espiritualidade” e “respeito”. Havia até uma passagem
bíblica que advertia contra “causar escândalo”. Com essa preocupação, criara-se uma nova
norma: havia uma orientação para evitar “dar pinta na igreja”. Isso não era exatamente uma
imposição, mas pedia-se cautela em relação aos “excessos” na igreja: roupas não
condizentes com o ambiente religioso, se referir ao outro no feminino sendo este do sexo
masculino, gesticular demais. Ocorria certo policiamento sobre as formas de tratamento no
espaço religioso. Cumprimentar o outro chamando de “bicha”, “mona”, “ela” podia incorrer
em uma advertência. Um informante justificou a norma ao explicar que alguns gays
“exageravam”, e isso podia “chocar” as pessoas. Esses comportamentos deviam ser
evitados porque poderiam impactar negativamente visitantes e, principalmente,

173
heterossexuais que freqüentassem o culto. Os gays tinham que “saber se comportar para ser
respeitados”.
O tema do respeito passou a ser central na afirmação da auto-identidade do grupo. O
trecho de uma entrevista elucida como se articulam, nas percepções de alguns fiéis,
respeito, igreja e discrição:

Mas é porque é ordem... Eu acho que deve ser respeitado, porque vai
família, crianças que vão ficar imitando, vão ficar olhando, sabe?
Nenhum pai de família vai gostar. Eu não gostaria de ver um filho
imitando uma bicha espalhafatosa sabe, não gostaria mesmo. É o
comportamento dele? Ótimo! Mas que seja na casa dele! Com os
amigos dele! Na igreja, não! É o que eu falo sempre, você não canta
parabéns no velório, então você também não vai ficar dando pinta na
igreja, não é boate entendeu? (Leonardo, 21 anos, universitário, Igreja
Contemporânea).

Uma aura de respeitabilidade podia ser quebrada até mesmo por conversas obscenas
no espaço religioso, contra o que era preciso precaver-se, ter cuidado com brincadeiras e
com a “promiscuidade”. Era preciso “vigiar”, até mesmo nos momentos de sociabilidade.
Zedir exemplificou sua preocupação com o assunto ao evocar uma discussão que teve com
alguns participantes, que entabulavam uma conversa animada na porta da igreja, minutos
antes de um Culto de Intercessão:
Uma vez eu estava aqui na porta da igreja, era pra interseção [reunião
de oração], a pessoa estava falando: “ai, eu fiquei com fulano, fulano é
ativo, fulano é passivo. Eu olhei bem assim, eu fiquei calado e me
afastei um pouco. E ele: - “Ah, e você?” Eu olhei muito sério pra ele e
falei: “me admira muito vocês estarem aqui na porta da igreja, um
momento antes da interseção, um momento em que eu vou entrar em
guerra espiritual, orar pelas pessoas, vocês falando em promiscuidade.
Pra mim, isso pra mim é falta de caráter, vocês não tem caráter. Falei:
“o momento íntimo de uma pessoa só cabe a ela, isso é uma falta de
respeito; e agora, em relação a Deus, vocês são podres, eu enojo vocês,
eu enojo vocês”. Era o momento d’eu estar no coração já em espírito,
uma preparação espiritual. Eu contei tudo pro pastor. E falei: eu não
quero fazer parte de uma igreja assim, eu fico em casa sozinho orando
a Deus, buscando a Deus. Como uma pessoa dessa vai botar a mão e
orar em cima de mim cheio de promiscuidade? To fora!”. Falei: “to
fora! Cabe a você repensar o código moral dessa igreja.
(Zedir, 47 anos, vendedor, Igreja Contemporânea)

174
Essa fala exemplifica como, subjacente às críticas ao rótulo de uma igreja gay,
estavam preocupações com o reconhecimento e a legitimidade do grupo religioso, mas
também aspectos cosmológicos, concernentes a dimensões rituais de pureza-impureza.
Cultivar conversas obscenas não é apenas desrespeitoso, mas desautoriza a pessoa a certas
atividades rituais de “cuidado espiritual”. Zedir chama atenção que não gostaria de receber
orações de um indivíduo “promíscuo”. Da mesma forma, a conversa sobre posições sexuais
contamina seu estado espiritual e concentração para a oração.
Outra estratégia empregada para garantir a “respeitabilidade” do culto eram as
discussões e planejamento relativo à ampliação do público. Durante o campo, observei
esforços de líderes da igreja para atrair ao espaço religioso parentes e amigos dos
homossexuais que congregavam na igreja. Para tal, a realização de cultos em datas
comemorativas era oportuna. A celebração de rituais cristãos como “Páscoa”, “Natal”, ou
mesmo outras datas festivas ligadas a comemorações familiares, ensejava a preparação de
um culto especial, no qual eram apresentados “cantatas” e números musicais gospel,
ocorrendo uma divulgação mais ampla. Uma exortação a que os fiéis “aproveitassem a
oportunidade” e levassem algum conhecido à denominação, era feita pelo pastor, que
sublinhava a importância de “trazer a família” ou mesmo “amigos” para conhecer a
congregação. A presença de pessoas com orientação dita não homossexual era
extremamente valorizada nesse contexto, consistindo em uma meta. Essa atitude
demonstrava como o ideal que se produzia naquele momento era o de uma igreja afeita à
mistura, com diferentes raças, sexos, orientações sexuais e idades. Era recorrente o
comentário pastoral de que, apesar da escassa presença do sexo feminino no culto,
necessitavam trazer mulheres, lésbicas ou não, para a congregação.
Desta forma, era freqüente o relato de cultos em que um heterossexual (homem ou
mulher) havia estado presente. Alguns comentavam que era “uma pena” eu não ter visto,
porque era uma prova da mudança da igreja. Contudo, era admitida a dificuldade que
pessoas heterossexuais poderiam ter em reconhecer a legitimidade de um “culto inclusivo”
por causa de “preconceito”. Um informante reportou ocasião em que uma conhecida
cantora gospel fora convidada para uma “cantata” e se retirara do ambiente religioso, após

175
casais de homossexuais masculinos terem participado da “unção”. Ele interpretava o fato
devido ao desconhecimento do caráter “inclusivo” da igreja: ela não teria sido informada
que ali congregavam homossexuais.
O cuidado com a imagem da igreja envolvia constante preocupação em dissociar o
ambiente religioso de formas de sociabilidade que implicassem comportamentos percebidos
como “promíscuos”, como a troca de parceiros ou quaisquer formas de relacionamento
afetivo-sexuais não monogâmicas. Particularmente interessante é o texto de um prospecto
recebido por visitantes:

Nosso compromisso é com a restauração e o progresso de cada pessoa


em Jesus Cristo. Cuidado com os “olhares” e não faça de nosso
Ministério “ponto de encontro” de paquera como se estivesse num
clubinho social. Você mesmo já deve estar cansado de ser usado
emocionalmente e espiritualmente como “objeto descartável”. O usam
depois jogam fora! Os participantes da Contemporânea não podem ter
relacionamento que não o fraternal com os visitantes no seu primeiro
mês.

Entrevistados ponderaram a atitude de quem procurava o ambiente religioso para


99
“conhecer pessoas” ou “fazer pegação”: haviam locais apropriados para esse tipo de
interação como boates e saunas. Tal objetivo era percebido como contrastante com a
prioridade do grupo, a “restauração” e a “vida espiritual”. Um informante defendeu que,
apesar disso, olhares e paqueras ocorriam – o que era “natural” numa igreja freqüentada por
gays. Segundo ele, os gays paqueravam mesmo. Acreditava que era decorrente da
sexualidade “mais aflorada” dos homossexuais masculinos, que encontrava respaldo no
incentivo ‘cultural’ para as múltiplas experiências. Quando dois homens estavam juntos,
então, isso ficava muito mais evidente se comparado às lésbicas, que tendiam para
relacionamentos “mais tranqüilos”. Um outro argumentou a dificuldade de evitar a troca de
olhares no culto: “Você percebe no culto que as pessoas ficam olhando. Os novatos ficam
99
Categoria difundida em subculturas homossexuais que diz respeito às formas de aproximação entre
parceiros de mesmo sexo. Podem ser incluídas também situações orgiásticas em que participam mais de dois
indivíduos, designando diferentes modalidades dessa interação. Em seu sentido mais amplo, o termo esvazia
essa interação erótica de um conteúdo afetivo-sexual, abarcando a si mais freqüentemente a idéia de relações
eventuais baseadas em uma postura hedonista de vivência do prazer.

176
olhando os outros, tentando paquerar” (Délcio, 40 anos, funcionário público, Igreja
Contemporânea).
Para prevenir a troca de namorados ou sexo sem compromisso criou-se pela
hierarquia da igreja o interdito de relacionamento entre um novato e um fiel. As relações só
eram permitidas após três meses de ingresso no grupo. Em casos raros, solicitava-se
permissão do pastor, mas era preciso assumir o relacionamento publicamente. Ouvi o
comentário de que a medida era empregada também com vistas a evitar afastamentos da
igreja decorrentes do término de um relacionamento. Os três meses eram necessários para a
consolidação de uma aproximação com Deus.
A preocupação pastoral com ligações afetivo-sexuais motivava a realização de
reuniões e cultos especialmente voltados à “vida sentimental”. Realizou-se a “Noite do
Amor” e a “Vigília dos Relacionamentos”, em data próxima ao Dia dos Namorados. O site
da denominação trazia ainda o anúncio sobre a realização de casamentos entre pessoas do
mesmo sexo na igreja e divulgava tabela de preços para a cerimônia, festa e decoração do
espaço religioso. Os cultos visavam a “restauração” da “vida sentimental” e neles, os
“solteiros” poderiam orar para encontrar a “pessoa certa”, enquanto os “casados” obtinham
orientações espirituais e conselhos para a manutenção de uma vida a dois bem-sucedida,
marcada pelo diferencial de ser um “casal cristão”. Entre novembro e dezembro de 2006
realizou-se a campanha “Projeto de Vida 2007”, com reuniões voltadas à “cura”, “bênçãos
espirituais” e “objetivos profissionais”. Na programação, dois cultos eram reservados à
“área sentimental” (Figura 26). Ocorreu ainda o “Primeiro Encontro de casais
contemporâneos”. O convite que circulou pela Internet, enfatizava o objetivo de “fortalecer
os casais”100:

É trabalhosa a construção de um relacionamento numa sociedade


tão indiferente ao amor, respeito e fidelidade. Esta história muda
quando trazemos a terceira dobra, Jesus Cristo, para firmar este
cordão de três dobras do relacionamento aplicando princípios de
Deus e unidade com o Espírito Santo. Venha mudar seu
relacionamento encontrando casais que se amam e vivem o

100
O convite circulou por meio eletrônico através de emails e também de uma mensagem enviada a todos
participantes de comunidades virtuais ligadas ao site de relacionamentos orkut. O encontro referido ocorreu
em janeiro de 2007.

177
diferencial contemporâneo de Deus em suas vidas. (...) Solteiros
serão bem vindos para o aprendizado.

Esse discurso enfatizava que no código de santidade presente no culto, a divindade


era significada como a “terceira dobra” dos relacionamentos afetivo-sexuais, sendo a
fidelidade o princípio ordenador de uma relação que envolve dois parceiros e o Espírito
Santo. A pequena reunião teve a participação de vinte e três pessoas, das quais dez
formavam “casais” compostos por homossexuais masculinos. Nela, através de dinâmicas de
grupo e da troca de experiências, apresentavam-se os parâmetros para a manutenção do
casal: a “oração” era um poderoso instrumento para o equilíbrio do “casamento”. Levando
em conta que demônios eram os principais causadores de desarmonia entre casais estáveis,
aplicar princípios bíblicos para vencer esses “problemas” constituía-se uma das formas de
luta na batalha espiritual. O pastor instruiu que “o parceiro” deveria ser visto como a
presença de Jesus na vida da pessoa. Desta forma, o pecado da traição era duplamente
grave: “trair” o cônjuge tinha o mesmo efeito que uma traição a Deus. Até mesmo a “falta
de desejo” poderia ser tributada às artimanhas do “inimigo”, cujo intento era a destruição
do vínculo. Estabelecer um estado de permanente vigilância garantia a “presença de Deus”
no relacionamento. Homossexuais podiam ser fiéis como qualquer pessoa. A dificuldade de
estabelecer e manter uma relação estável poderia ser sinal de uma “compulsão”, de um
“vício” e a ajuda espiritual podia devolver o autocontrole. Nas pregações passou-se a
enfatizar a importância de evitar “freqüentar” ou “procurar relacionamentos” em lugares
que não refletiam a “presença de Deus”. O recente casamento de duas lésbicas na igreja
adquiria o sentido de um “bom exemplo”.
Aqui comparecem idéias correntes no universo pentecostal acerca da relação entre os
homens e os demônios, sobretudo, aquelas ligadas à cosmologia da batalha espiritual. Uma
relação que “não é de Deus” 101 pode “afastar” de uma “vida na obra”. 102 “Saber escolher”,
101
Em alguns depoimentos propalou-se a idéia de que relacionamentos com parceiros que não professassem a
mesma fé poderiam enfrentar mais obstáculos do que parceiros com o mesmo comprometimento religioso.
Nesse sentido, era incentivada uma reflexão sobre a origem da motivação do mesmo (se divina ou não).
Considerando que o modelo da relação estável é valorizado no ambiente religioso, formas de contato afetivo-
sexuais que não tivessem como principal motor o sentimento do “amor” podiam ser vistas como não
recomendadas e, nesse sentido, originada “na carne”, em impulsos mais baixos e menos sublimes.
102
A categoria “obra” é empregada no universo evangélico englobando intensa participação em atividades na
igreja, atribuição de cargos e a vivência de experiências místicas em rituais (dons espirituais, batismos e

178
“renunciar às tentações da carne” e ou mesmo o afastamento de amizades que possam
“prejudicar” ou “influenciar” o casal, muitas vezes se fazia necessário. Contudo,
reconhecia-se que a principal luta do cristão era com “demônios” e “potestades”. “Orar
juntos”, “sentir a presença de Deus” eram formas de revestir o casal de uma “couraça” do
Espírito Santo. Por oposição, “ficar”, “fazer pegação”, podia levar aos problemas
espirituais.
Em maio de 2007, a criação do Código de Condutas para lideranças da Igreja
Contemporânea materializou as orientações institucionais. A aceitação das diretrizes
constantes no documento, de cinco páginas, era obrigatória às “pessoas que desempenham
funções de cunho espiritual na igreja” - dentre eles clérigos, discipuladores, intercessores,
músicos, cantores, dançarinos ou instrumentistas - devendo também ser observado pelos
demais participantes. O capítulo IV, intitulado “Ser referencial” alertava, nos artigos
décimo e onze: “O líder contemporâneo não pode pensar que é igual a qualquer pessoa.
Não pode pensar que pode fazer o que quiser ao sair da igreja. Este deve ter a consciência
de que é um referencial de vida. Que deve revelar e transparecer a imagem de Cristo”; (...)
“O líder contemporâneo deve fugir da aparência do mal. Não pode ser visto em lugares que
comprometerão a sua imagem ou a da Igreja Contemporânea”, sendo vedada sua ida a
“festas que promovem orgias”, “casas de prostituição”, “saunas” ou “pontos de pegação”.
O Capítulo V (“Dos relacionamentos e das condutas sexuais”) informava sobre a proibição
dos “adultérios e traições aos parceiros”, da “poligamia” (mesmo com anuência do casal) e
endossava: “O líder só pode ter relação sexual com adultos e isto com pretensões de união
afetiva”. Havia ainda no documento uma referência clara a conduta no espaço da igreja. O
artigo doze, do capítulo IV, enfatizava que o líder deve “evitar brincadeiras”, “colocar
apelidos desrespeitosos em alguma pessoa” ou “se referir a mesma por um nome ou o sexo
que não seja o dela”.
Outro fato relevante na constituição deste ethos religioso e na consolidação de
princípios de uma ética sexual foi a publicização do “namoro” entre o pastor e um fiel
egresso da Igreja Universal do Reino de Deus. Não se tratava mais de um líder religioso na

outras). Nesse sentido, relacionamentos com parceiros que não professassem a mesma fé poderiam enfrentar
mais obstáculos do que parceiros com o mesmo comprometimento religioso.

179
condução de uma denominação, mas da figura de um “casal” à frente da igreja. Em
conversas, seu parceiro foi referido como “a primeira dama”, através de comentários
jocosos que reconheciam, sobretudo, a importância que este vinha conquistando na
103
liderança. Os impactos dessa ligação afetivo-sexual sobre o culto se tornaram visíveis
em algumas ocasiões, parecendo haver uma divisão do trabalho baseada no carisma dos
líderes. De um lado, as pregações e a Palavra eram conduzidas pelo pastor, enquanto parte
do louvor e das ministrações feitas pelo seu parceiro eram responsáveis pela criação de um
momento emocional do culto. Desta forma, o ethos religioso pentecostal com seus modelos
de monogamia e seu rigor sexual iam se consolidando no processo de constituição de uma
identidade própria do grupo. Durante o campo fui percebendo que as ações empreendidas
por lideranças naquele contexto enfatizavam a importância de definir mais precisamente os
significados de uma “vida cristã”. A elaboração de documentos como a “Doutrina Cristã
Contemporânea”, assim como o “Código de Condutas” enfatizavam que, mais do que uma
“teologia gay” ou “inclusiva”, era prioritário delimitar os termos dessa “vida cristã”. Novos
documentos com instruções foram elaborados, como “Os primeiros passos do cristão
contemporâneo”, a apostila do “Curso de Diversidade” o “Guia prático da visão”, este
último com informações sobre as “formas de serviço na igreja”, aspectos relativos ao
proselitismo, “direções espirituais”, discussões sobre estratégias de expansão.
A análise feita permite antever algumas das questões centrais para a constituição do
grupo: dissociar a imagem da igreja de um gueto gay assinala como é fundamental o
reconhecimento social do que é considerado por eles ‘religioso’. Em sua visão de mundo, a
igreja constitui um ambiente para exercício da vida religiosa, para busca de santidade e
desenvolvimento da espiritualidade de gays, lésbicas e demais pessoas ‘excluídas’. A opção
por um ethos conservador é valorizada como positiva para integrantes e líderes, indicando o
cultivo dos “verdadeiros valores cristãos”, não se deixando contaminar por discursos
excessivamente liberais, contraditórios com a vida religiosa ensejada. Enquanto a ICM
valorizava, em seus passos iniciais, como vimos, a proximidade com o estilo de vida e as
subculturas homossexuais, a Igreja Contemporânea realça cada vez mais fortemente os

103
A brincadeira com a categoria “primeira dama” indicava que havia espaço para divisão dos gêneros quando
da formação de casais.

180
limites entre o dentro e o fora da religião, nas definições que vai costurando, após a ruptura,
do que é ser cristão.
Uma melhor compreensão do drama pode ser almejada por meio da análise das
relações das igrejas inclusivas com a sociedade mais ampla. Minha hipótese é que aqui se
colocam contradições e ambigüidades que evidenciam os constrangimentos sociais a que
estão expostos segmentos tidos como desviantes dos padrões socialmente reconhecidos. A
proposta é situar os conflitos numa perspectiva de relações de poder mais ampla, junto a
outros segmentos sociais. A hipótese é que o reconhecimento e legitimidade dessas igrejas
exige estratégias plurais dos agentes engajados no movimento.

3. 6 – UMA INTERPRETAÇÃO SOBRE O DRAMA: A REJEIÇÃO DO PAR


HOMOSSEXUALIDADE-RELIGIÃO E A RESPOSTA AO ESTIGMA

Nesta seção busco lançar um foco de luz sobre as contradições que estão em jogo no
cisma religioso. Focalizarei a disputa entre as duas denominações e realçarei as distintas
estratégias empregadas pelas igrejas. A comparação evidenciará que são reforçadas
identidades no confronto entre as duas denominações. Argumentarei também que o cisma
se faz acompanhar de mudanças de forma e conteúdo, inclusive nos cultos, havendo um
progressivo deslocamento das discussões da teologia “inclusiva” - que então se apresentava
naquele momento inicial do grupo - para uma ênfase na teologia da batalha espiritual.
Ocorre um apagamento da problematização das relações entre religião e orientação sexual
no espaço oficial do culto, justificado por líderes e informantes como uma necessidade de
“pregar o que toda igreja prega” e não fazer apologia da orientação sexual das pessoas. As
justificações teológicas serão gradativamente minimizadas em função da ascensão de um
novo discurso, centrado na “obediência a Deus” e no reforço de uma dimensão moral que
enfatiza a importância das relações estáveis e da monogamia como a única forma de
relacionamento aceitável. Intensifica-se a preocupação com o controle e gestão dos

181
comportamentos. Argumento que essa mudança possui dois aspectos: constitui uma
resposta aos estigmas que incidem sobre os homossexuais, encontrando respaldo em
amplos processos sociais em curso na sociedade brasileira, relativos à visibilização e
reconhecimento das minorias sexuais; apresenta relações também com as influências
religiosas dos participantes, prevalecendo no grupo um ethos pentecostal, com seus
modelos de vida religiosa, de santidade e interação entre divindade e fiel. Um distinto
elemento que poderá ser explorado é a disputa interna desse segmento por fiéis e
consolidação no mercado religioso.
Uma distinta etapa do campo envolveu a ampliação dos horizontes, com minha ida a
outras denominações inclusivas e conversas com distintas personagens. Assim, compareci a
eventos e cultos em outras igrejas. No Rio de Janeiro fui à Igreja da Comunidade
104
Metropolitana (ICM/Rio) e tive contato com pessoas integrantes da Igreja Betel e da
Igreja Presbiteriana de Copacabana. Em São Paulo conheci a Comunidade Cristã Nova
Esperança (Figura 26), a Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM/SP) e Igreja Cristã
Evangelho Para Todos (Figura 27). Naquele momento, eu ainda perseguia uma
compreensão maior dos objetos de disputa revelados na ruptura das igrejas (ICM-ICC).
Colhi algumas histórias sobre as dificuldades e trajetórias destas igrejas que não
aprofundarei aqui, contudo, apontarei algumas dimensões do que entendo ajudar na
compreensão dos dilemas que são recorrentes. Antes de me reportar a estes fatos,
sublinharei as identidades contrastivas das duas denominações.
Com a visibilização do conflito, a ruptura e a ascensão de um novo grupo religioso, a
Igreja Cristã Contemporânea, evidenciaram-se os divergentes interesses e visões, em alguns
aspectos mais prementes. A aparente unidade do campo inclusivo era abalada por alguns
antagonismos resultantes da necessidade de demarcar as fronteiras e identidades de seus
grupos. Para evitar inserir-me em uma nova controvérsia não tomei os conflitos como tema
de conversas, mas observei as formas de distinção que ambas empregavam na definição de
si e do outro.
Líderes e participantes da Igreja Cristã Contemporânea questionaram, em algumas
ocasiões, o rótulo de uma “igreja inclusiva”. A justificativa principal girava em torno do

104
Trata-se do novo grupo de implantação dessa denominação no Rio de Janeiro, após o cisma religioso.

182
argumento de que não pretendiam ”excluir heterossexuais”, afirmando que as igrejas
inclusivas teriam se tornado sinônimo de “igrejas gays”. Contudo, a auto-identidade “igreja
gay” não é necessariamente compartilhada por participantes e líderes da Igreja da
Comunidade Metropolitana, o “outro” imediato da Igreja Contemporânea. Em diversas
conversas que tive, apresentava-se a preocupação em constituí-la como uma denominação
que inclui “todas as pessoas”, seguindo o “exemplo de Cristo”. Por outro lado, algumas
respostas problematizavam a preocupação com a questão (se gay ou não) através de
comentários jocosos, movidos por reações às acusações desta identidade: “a ICM é uma
igreja “GLBTodos”, uma denominação “para gays”, que inclui também heterossexuais. Um
pastor dessa denominação comentou que o objetivo era “incluir todos os excluídos”, mas
possuíam uma “comunidade homossexual”. Contudo, uma posição política é sustentada
por essa igreja ante as acusações. O tema aparece no site a partir de um artigo intitulado
“Por que uma igreja gay?”. Escrito por uma liderança norte-americana o texto defende a
existência de igrejas específicas, como etapa do alcance de mudanças estruturais na
sociedade. Argumenta que nada há de inadequado na tradição seguida pela Metropolitan
Church, que se orgulha de ter se constituído como um grupo de “gays cristãos” desde sua
fundação. O exemplo é tomado da luta afro-americana, onde por não terem igualdade
dentro da igreja tradicional, negros fundaram uma igreja própria. O mesmo status de
desigualdade social motiva a criação de espaços próprios aos homossexuais, já que já que
boa parte das pessoas GLBT não se sente acolhida em “igrejas de heterossexuais” pelas
“posturas anti-gay”. Do mesmo modo, heterossexuais não freqüentam com regularidade
“igrejas gays” visto que a “cultura homossexual” diverge em muitos aspectos da “cultura
heterossexual” (Miner, 1977). A resenha deste texto e de seus argumentos ajuda na
compreensão de que a estratégia empregada pela Igreja da Comunidade Metropolitana vêm
se constituindo no “orgulho da diferença” e na defesa da criação de espaços específicos
como uma estratégia política. Com essa motivação, um liderança da ICM comentou em
uma ocasião a necessidade de “louvores afirmativos”, já que parte dos cânticos e hinos
difundidos nas igrejas inclusivas eram de origem gospel. Em sua visão, eles enfatizavam a
submissão a Deus e pouco afirmavam ‘o indivíduo’.

183
A mensagem da denominação é voltada aos homossexuais, visando colaborar para
uma visão positiva desta orientação sexual. Propala o ensinamento “inclusivo” de que Deus
criou todas as coisas e que ama os homossexuais, gays, lésbicas e travestis, como eles ‘são’
(Figura 28). Este discurso político se funda em uma compreensão naturalizada do desejo
sexual, constituindo este uma ‘marca positiva’ de algumas pessoas. Parece haver certa
essencialização das identidades homossexuais sob a crença de que Deus faz todas as coisas
e assim ‘criou’ também os homossexuais.
Vale frisar que líderes da ICM no Brasil percebem-se como representantes de uma
igreja com engajamento político, cuja missão religiosa está relacionada à promoção da
“justiça social”. Incluem em suas ações: denunciar a homofobia da tradição cristã;
promover a criação de espaços nos quais homossexuais possam exercer uma vida religiosa
em conformidade com a sua orientação sexual; e produzir ou divulgar uma teologia que
prega a igualdade de pessoas homossexuais e heterossexuais. Em algumas ocasiões,
membros ligados à hierarquia religiosa em comunidades dessa denominação buscaram
ressaltar que o que os diferenciava de outras denominações inclusivas era o fato de serem
“teólogos”, engajados na produção de uma linha de pensamento progressista. Neste sentido,
eles percebiam a atuação de alguns segmentos inclusivos como “mais pentecostais”,
portanto, mais “conservadores”, porque reproduziam valores e hierarquias presentes no
campo hegemônico. 105
Em algumas ocasiões a oposição de pentecostais e não pentecostais, entre as igrejas
inclusivas, foi realçada. No citado Seminário de Teologia Inclusiva, promovido pela ICM
São Paulo, críticas ao ethos pentecostal foram proferidas por um líder religioso que, em
discurso inflamado, reclamou sobre a execução de louvores gospel em alguns cultos
inclusivos. Ele defendeu a rejeição de conceitos e práticas oriundas de vertentes
homofóbicas do cristianismo, identificando um possível inimigo dos homossexuais em
cultos “evangélicos”. Estes “enriqueciam” com a exploração comercial dos fiéis e

105
Por outro lado, a identidade de uma “igreja inclusiva pentecostal” é adotada por alguns grupos. Um líder
da Comunidade Cristã Nova Esperança confidenciou perceber-se como um “pentecostal fundamentalista”, em
função dos posicionamentos que sustenta sobre o que é ser um gay cristão: é contra a promiscuidade e tem um
“problema com a efeminação”. Também não aceita “mentiras”, por exemplo, uma pessoa enganar outras
“fingindo ser o que não é”. Ele definiu como “pecado” a atitude de pastores e fiéis que sustentam
relacionamentos heterossexuais como forma de fugir ao preconceito.

184
implantavam necessidades de consumo que nada tinham a ver com a obra de Deus. Em sua
opinião, essas idéias não deveriam ser incorporadas pelos segmentos inclusivos, cuja
missão relacionava-se à luta contra o preconceito e a exclusão. Para finalizar, ele
direcionou criticas a termos difusos no universo pentecostal. Louvores gospel invocavam a
Deus “restituição”, “cura” e “libertação”. Ele acreditava que os homossexuais não
precisavam de “restituição” e sim de “respeito” e “dignidade” na sociedade. Em uma outra
situação de interação, uma liderança de outra comunidade inclusiva enunciou, com certa
ironia, que Deus não era conservador, “nem pentecostal”. Essas críticas tinham por
preocupação a reprodução das hierarquias e moral sexual do pentecostalismo, pelas igrejas
inclusivas, já que algumas adotavam um estilo de culto mais pentecostalizado e não
refletiam sobre os padrões de hierarquizar e categorizar pessoas que reproduziam de seus
cultos de origem.
O perfil “ativista” da denominação era tributado ao engajamento da ICM
(mundialmente) em lutas sociais “pelos direitos humanos”. Um pastor desta denominação
contou que desde sua fundação a ICM atuou “contra a homofobia, em todas as suas
manifestações”, na batalha contra a Aids e pelos direitos dos negros, defendendo a
106
diversidade e o direito a diferença. Na denominação, o povo GLBT” assumia cargos e
posições eclesiásticas anteriormente impensados nas igrejas convencionais, que ‘colocavam
no banco’. Em diversas conversas, notei que líderes da denominação percebiam-se
engajados em uma luta política contra a homofobia de segmentos religiosos, empenhados
em uma batalha pelos “direitos humanos”. Uma das tarefas de uma “igreja inclusiva” seria
colaborar para a “cura” da “homofobia internalizada” de alguns homossexuais que foram
criados em famílias e religiões homofóbicas, apoiá-los para se ‘aceitarem’. Este discurso
esteve em foco no I Seminário de Teologia Inclusiva, realizado pela Igreja da Comunidade
Metropolitana de São Paulo, em maio de 2006.
Um evento distinto, ocorrido no Rio de Janeiro, foi o Seminário A Bíblia e os
Excluídos. Nele, chamou-se atenção que homossexuais, assim como outras “minorias”,

106
Materiais produzidos pelo Grupo Corsa, divulgados pela Igreja da Comunidade Metropolitana de São
Paulo enfatizam a crítica ao racismo, machismo e homofobia. Dois folhetos trazem casais homossexuais de
lésbicas e de homossexuais masculinos inter-raciais. A frase chama atenção: “todo amor nos aproxima de
Deus, qualquer violência nos afasta Dele.

185
como mulheres, deficientes e negros, ocupavam uma posição desigual na sociedade em
diferentes épocas e culturas, sendo necessário desconstruir muitos preconceitos sociais. Um
folheto distribuído indagava: “A homofobia tem cura?”.O texto, assinado pelo pastor da
ICM Niterói, alertava:

A homofobia está presente e, ao contrário da orientação sexual, ela é uma


doença contagiosa. Crianças pegam de adultos, este é o principal modo
de transmissão. Seus efeitos vão de leve reprovação até a fúria homicida,
de atitudes pré conceituosas até a obsessão. Mas a maioria dos efeitos da
homofobia não é imediata nem abertamente visível. É o sentimento de
desespero, baixa auto-estima do e da jovem homossexual que cresce em
uma cultura que não o aceita nem o ou a compreende, ouvindo a cada dia
piadas, censuras, comentários que os e as desaprovam, deixando bem
claro que eles e elas não são “normais”. Muitos deles e muitas delas,
como as vítimas do preconceito racial e de outras intolerâncias, acabam
acreditando que não são normais. Não é a toa que o suicídio entre
adolescentes homossexuais é de duas a três vezes mais elevando que
entre adolescentes heterossexuais. Para a maioria das famílias ter um
filho ou uma filha homossexual é uma ameaça, fazendo com que os pais
abandonem os verdadeiros valores da família como o amor e a
confiança, rejeitando os próprios filhos ou as próprias filhas.
Demonstrando desapontamento, reprovação e amor condicional,
chegando a extremos da violência. Outros, desperdiçam dinheiro
tentando “curar” seus filhos ou filhas. Caindo nas mãos de organizações
fraudulentas e pessoas inescrupulosas. Preocupamo-nos demais porque
um homem ama outro homem e uma mulher ama outra mulher. (...) Mas
a homossexualidade para os escritores dos Evangelhos era de tão pouca
importância, que não notaram nenhuma palavra de Jesus sobre o assunto
(...).

Note-se que é empregada a noção de “cura” propalada no universo pentecostal,


contudo, a “doença”, nesse caso, consiste no repúdio à homossexualidade consubstanciado
sob a noção abstrata da “homofobia”. Fica evidente o contraste entre a “cura” da
homossexualidade (dos evangélicos convencionais) à “cura” da homofobia. Tal oposição
encerra a intenção dos ‘movimentos’ de ‘resgate da heterossexualidade’ em aniquilar
a crença na homossexualidade e promover a recusa desse rótulo em contraposição à missão
religiosa dos inclusivos, nesse caso, dedicados a apoiar e ajudar indivíduos a ‘se aceitarem’
como homossexuais.
No citado seminário enfatizou-se que era possível confrontar a homofobia religiosa,
considerando as evidências de que a homossexualidade já consistira em um comportamento

186
aceito entre cristãos primitivos. Os personagens bíblicos Marta, Maria e Lázaro teriam
formado a primeira comunidade GLS da história do cristianismo. Havia ainda evidências
históricas sobre a homossexualidade de muitos dos santos do panteão católico, como São
Sebastião, São João da Cruz, Santa Tereza Dávila, São Paulo, as santas Perpétua e
Felicidade (um casal lésbico), São Marcos, São Cosme e São Damião (também amantes),
todos, provavelmente homossexuais. A teologia inclusiva difundida enfatizava que o amor
entre indivíduos do mesmo sexo nem sempre constituiu um tabu ou dogma na história da
religião cristã, sendo possível situar a emergência da homofobia religiosa em um
determinado período histórico. A análise desses discursos sugere que a luta contra a
homofobia e os dogmas religiosos constituem uma das frentes de atuação desta
denominação. Estou realçando este aspecto por que ele é exemplar de como há estratégias
distintas na abordagem do tema.
A incursão etnográfica realizada junto a essas igrejas apontou pistas sobre os
paradoxos envolvidos na emergência da questão gay nesse contexto religioso, ensejando
distintas estratégias de atuação no universo evangélico.107 A necessidade de distinção
interna do movimento leva a percepção de algumas denominações como mais implicadas
108
em militância, enquanto outras marcam um distanciamento. Isso é reflexo da forma
109
como cada grupo vem constituindo a sua missão. Na Décima Segunda Parada do
Orgulho GLBT de São Paulo, em 2008, cuja temática enfocava “a luta contra a
homofobia”, a ICM São Paulo organizou um estande na Praça da República para a

107
As relações entre ativismo e religião no contexto das igrejas inclusivas deve ser objeto de reflexão mais
aprofundada a partir de novas analises que explorem trajetórias pessoais de seus lideres e da participação
destes em movimentos sociais.
108
A ICM São Paulo vem estreitando relações com o ativismo, em especial com o Corsa, passando a ocupar
espaço na sede deste grupo. Outra informação que obtive diz respeito à participação de líderes da igreja em
cargos e atividades desse grupo, criando-se, assim, condições para uma parceria mais efetiva entre estes. Esta
igreja participa também do Grupo de Trabalho Religiões, ligado ao Programa Estadual de DSTs e AIDS de
São Paulo no qual são discutidas estratégias de intervenção e prevenção junto às comunidades religiosas.
109
É importante observar que a identidade de “igreja pentecostal” não leva necessariamente à rejeição de uma
perspectiva ativista, como é o caso da Comunidade Cristã Nova Esperança. A denominação também vem
abrindo espaço para questões sobre “prevenção” a AIDS e DSTs por meio de parceria com a Secretaria
Estadual de Saúde de São Paulo. Nas “reuniões de convivência”, que acontecem nas segundas-feiras na igreja,
há participação eventual de profissionais de saúde, que trazem informação e conhecimento, endossando a
importância da luta contra a AIDS. No interior dessa denominação fundou-se o “Ministério Intimidade”,
espaço de troca de experiência para indivíduos soropositivos ou portadores de outras doenças. Segundo o
pastor, a criação do espaço ocorreu em função da alta demanda, visto que a igreja já acolhera um considerável
número de portadores ou pessoas em busca de informação.

187
divulgação da denominação e participou da Parada através da distribuição de panfletos. A
preparação para o evento começou no início do mês de maio, ocorrendo reuniões e
discussões internas sobre as formas de atuação neste evento. A semana da Parada foi
marcada por uma programação intensa da qual a igreja participou, terminando com um
Culto de Domingo, pela aprovação do PL 122/2006, proposta que visa a “criminalização da
homofobia”. Houve ainda a realização de um “casamento coletivo” entre pessoas do
mesmo sexo, celebrado pelo pastor da denominação (Figura 28). Tal atuação evidenciou
que o discurso empregado pela ICM não está restrito ao ambiente religioso, mas à atuação
política com vistas à visibilidade. A denominação vêm empregando como estratégia um
discurso sobre o “orgulho GLBT” e a busca de construção dessa diferença como positiva
como forma de atuação política. 110
É possível avançar na interpretação do drama se nós aprofundarmos a análise sobre a
relação dos grupos inclusivos com a sociedade mais ampla, considerando que ela não se dá
apenas com o movimento e suas lutas. Entre setores laicos da sociedade prevalece um
estranhamento do par religião-homossexualidade. Acusações sobre o ‘falso’ caráter
religioso destes grupos [inclusivos] é recorrente entre segmentos religiosos hegemônicos.
Explorarei esses argumentos.
Alguns depoimentos assinalam reações e tensões interpessoais, envolvidas na criação
de espaços religiosos com proposta inclusiva entre segmentos religiosos. Embora a
identidade de “grupo inclusivo” não tenha sido adotada pela Igreja Presbiteriana de
Copacabana, o fato de seu pastor e outros líderes sustentarem posicionamento tolerante,
promoverem bênçãos a casais homossexuais e dirigirem na denominação um culto, que
ficou conhecido como um “culto gay” gerou rejeições, desqualificação moral e acusações,
conforme relata uma pastora:

Era uma igreja aberta. Ele [o pastor] falava: ‘tem que ser uma igreja com portas
abertas’. (...) Pode ser a prostituta, pode ser o travesti, pode ser o bêbado, quem
for. A porta da igreja está aberta desde que ele queira entrar para adorar a Deus, o
princípio de Bethesda era esse: ‘Igreja de portas abertas’. Com relação aos
110
Há notícias sobre a participação da ICM SP e da Igreja Betel (Rio de Janeiro) nas recentes Conferências
Regionais de Políticas Públicas para pessoas GLBT em São Paulo e no Rio de Janeiro, que antecederam a
Conferência Nacional, em junho de 2008. Uma das pautas desse fórum foi a aprovação do PL-122/2006,
apoiada por essas igrejas inclusivas.

188
homossexuais, como começou? (...) apareceu aqui um casal, dois rapazes que
vieram de Brasília, e eles disseram para o pastor: ‘Nós nos amamos e a gente
queria que o senhor abençoasse a nossa união, a nossa felicidade’. (...) Então ele
falou: ‘Olha, eu posso abençoar sim vocês dois’. Eles moravam lá em Brasília,
parece que a família de um deles era pentecostal, era uma religião bem mais
ortodoxa, mais fechada. E aí foi feito. E aquilo parece que detonou a notícia.
Então começaram a aparecer pessoas, pastores que clandestinamente
continuavam sendo pastores e não podiam revelar sua homossexualidade. Então
eles ficaram sabendo que ele compreendia a situação. E eles vinham aqui. E veio
gente lá do Norte, gente de tudo quanto era lugar, que contavam isso pra ele:
‘Pastor, eu estou desesperado porque eu sou homossexual e eu sou pastor
pentecostal, mas seu falar na minha igreja, se alguém souber disso. Eu sou
casado, eu tenho família, eu tenho mulher, mas eu gosto das pessoas iguais a
mim’. Ele [o pastor] endossava a causa deles. A notícia foi se espalhando. Até
repórter querendo saber. (...) E com a história dele abrir as portas pra essa reunião
de gays aqui na igreja, metade da igreja saiu, foi embora. Eles antes se reuniram:
‘Pastor, eu quero saber se o senhor vai continuar com essa defesa aos
homossexuais? O senhor tem que responder agora perante a igreja’. E ele falou:
‘Eu defendo toda pessoa que for discriminada. O coral tinha 40 pessoas, a igreja
era cheia, a gente botava cadeira ali no meio, aí eles imediatamente: ‘Nós
estamos nos retirando se o senhor continuar’. E realmente foi embora, esvaziou a
igreja. Ficamos com uns gatos pingados aí. Isso prejudicou muito a igreja. (...) O
Nehemias abraçou uma causa que era pecaminosa, o homossexualismo. (...)
Houve uma senhora, que morava aí na ladeira e outras pessoas. Quando viram o
cara rebolando [uma travesti], imediatamente levantaram e saíram, disseram que
não iriam mais voltar aqui porque não aceitava assistir a um culto do lado de um
cara com aquele comportamento. Então saíram da igreja. As pessoas rejeitam os
outros, eles são sem pecados, são santos. (Elvira, pastora, 65 anos, Igreja
Presbiteriana de Copacabana)

O depoimento ilustra de maneira muito densa as questões implicadas na gestão de um


espaço religioso com esse perfil. A desvinculação de alguns fiéis ocorre como reação à
flexibilização das normas religiosas tradicionais. Há tensões interpessoais no momento do
culto, participantes levantando-se e retirando-se do ambiente. Algumas reações são mais
viscerais e podem implicar a desqualificação dentro (e fora) do próprio campo religioso.
Reproduzirei aqui trechos de uma conversa que tive com outro informante da Igreja
Presbiteriana de Copacabana, um pastor que atuou ao lado de Nehemias Marien,
endossando a inclusão dos homossexuais. A ele são dirigidas críticas severas por sujeitos
ligados a segmentos religiosos hegemônicos. Quando indaguei de que forma a comunidade
evangélica reagiu à proposta, ele contou que foi chamado a inúmeros programas de rádio e
TV evangélicos e nessas situações era confrontado:

189
MN: Como que era? O que eles falavam?
Pastor: Condenação. (...) Eles vinham fortemente com trechos bíblicos,
embasando que Deus não permite que homem se deite na cama com outro
homem como se deita com mulher. (...) Eu não gostava, gerava muita polêmica
e dava muito IBOPE pras rádios quando eu ia debater essa questão (...).E,
então, foi aumentando a polêmica até que essa rádio, Boas Novas, começou a
receber uma série de cartas contra mim, dizem que eu era um padre travesti e
tal [RISOS]. E acabou não me chamando mais depois de um tempo.
MN: E quem debatia com você nesses programas?
Pastor: Era um pastor, teólogos...
MN: De que denominações?
Pastor: Batistas, muitos. [RISOS]. Presbiterianos, Assembleianos, um pessoal
assim. (...) Já teve, pastores da Universal, deputados da Universal.
MN: E quais eram os argumentos deles?
Pastor: Os argumentos clássicos! Que é uma inaturalidade, que a sexualidade
humana está mais voltada pra procriação do que para o prazer. (...) Então, eu
levava uma proposta de re-análise dos textos e eles vinham com esses velhos
argumentos. Ou então a frase clássica que sempre citam para mim que eu acho
uma besteira, de Santo Agostinho do século V, que é ‘Deus ama o pecador, não
ama o pecado’.

Em um distinto trecho da entrevista, ele comenta que havia reações que beiravam a
violência:

Quando era debate em rádio, batia na mesa direto. O cara da Igreja Universal
bateu na mesa e gritava, gritava, gritava, ou então não me deixava falar, tipo,
na CNN, quando me perguntaram e havia quatro pessoas com a posição
clássica e eu, a posição contra, pra discutir sexualidade e Bíblia. Quando
começaram a me perguntar, eu dava minhas respostas e começaram a diminuir
meu tempo de resposta ou então pulavam as perguntas. (...) E quando a
entrevistadora, uma moça que às vezes aparece na televisão, começou a me
perguntar e viu que a minha postura era o que ela não estava querendo, ela
terminou o programa mais cedo [RISOS]. E deu a voz para um pastor que tinha
chegado lá. Tem esses boicotes. (...) A expressão bíblica clássica deles, que até
o rapaz da rádio usou pra falar de mim, que era do demônio, que era um falso
profeta, a questão de ser demoníaco, de não ter nada a ver com Deus. No meu
celular, vinha uns torpedos dizendo que iam fazer oração pra minha conversão
porque o demônio estava se apossando de mim e tal.

O conteúdo da entrevista acrescenta o elemento da demonização como manifestação


desse estranhamento. O não reconhecimento dessa perspectiva como religiosa demanda
estratégias por parte dos atores envolvidos no movimento inclusivo. Objeto de

190
desqualificação moral e de rejeições, cada grupo buscará suas soluções para o
enfrentamento, que pode passar pelo confronto mais ou menos explícito ou algum tipo de
mediação com as normas hegemônicas. Esse aspecto poderia ser levantado a respeito da
trajetória de cada grupo, mas essa não é minha intenção aqui. Os ataques dirigidos à
teologia e aos posicionamentos empregados por sujeitos pertencentes à Igreja Presbiteriana
de Copacabana, liderada pelo pastor Nehemias Marien são paradigmáticos. Reações
semelhantes ocorreram por ocasião da fundação da Igreja da Comunidade Metropolitana no
Rio de Janeiro, anteriormente ao cisma que levou à criação da Igreja Contemporânea.
Acusações foram dirigidas ao pastor referido como “a besta”, “o demônio”, “pastor 666”, o
número na interpretação bíblica atribuído à figura do demônio ou “besta””.
Obtive a informação de que as reações à visibilidade de denominações inclusivas
tiveram semelhante teor. Informantes mencionaram que no auge de sua atuação, a extinta
Igreja Acalanto foi objeto de uma reportagem feita pelo Programa do Ratinho, exibido pelo
Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), cuja chamada foi: “Veadinhos de Cristo”. O fato é
interpretado por ex-adeptos dessa denominação como uma tentativa de desqualificar o
espaço religioso. De forma semelhante, se produziram algumas tensões em torno da
atuação de outras igrejas inclusivas. O pastor da ICM São Paulo conta o espanto de um
evangélico que adentrou a igreja em busca de oração e, ao descobrir tratar-se de uma
“igreja gay”, questionou a religiosidade do grupo, argumentando que “aquilo não estava
certo”:

Aconteceu uma vez de um presbítero da Assembléia de Deus que um dia veio...


Ele viu o culto, ouviu os louvores, ele tava hospedado aqui e desceu neste andar
por engano e aí ele ouviu os louvores da igreja e entrou. Entrou e sentou na
última fileira de cadeiras. Ele assistiu o culto inteiro. No final, ele pediu oração,
que a esposa ia fazer uma cirurgia de câncer no seio. E oramos, e a comunidade
toda orou e abraçamos ele no final e ele foi embora. Nunca mais nos vimos. Na
semana seguinte, ele não apareceu mesmo, mas na outra ele apareceu. Ele
trabalha em São Paulo, mas mora no interior e veio à igreja de novo e pediu para
ir à frente agradecer, porque as preces ajudaram e ele sentiu muito a presença de
Deus e que foi muito bom e tal, e que em nome da esposa dele ele queria
agradecer, porque ela estava se recuperando e tal e nós graças a Deus e tal e
ficamos se perguntando se será que ele viu alguma coisa, se ele... sabe?(risos)
Sabe que louco... E na terceira vez que ele veio e o irmão foi à frente para dar um
testemunho, porque dentro da nossa liturgia semanal, existe um momento dos

191
testemunhos, que não é a liturgia de celebração especial, que fica difícil, mas que
na liturgia semanal tem um momento de testemunho. Então ele deu um
testemunho de que Deus tinha sido maravilhoso na vida dele, que ele conseguiu
restaurar muitas coisas que ele havia perdido na sua vida, e uma das coisas que
ele mais queria agradecer a Deus era o relacionamento dele com o companheiro,
que eles brigavam muito e que agora estavam vivendo muito bem, cresceram na
sua experiência pessoal e que agora eles iam casar na igreja. E o companheiro
dele levantou, e tal, e todo mundo amém e tal... O irmão ficou... lá na última
fileira, coitado, ele não sabia o que fazer ... Terminou o culto e eu fui muito
natural, terminou o culto e tal, paz do Senhor e tal, boa semana, ele chegou e
disse: “Eu preciso muito falar com o senhor. Tenho que falar”, “Fique à vontade,
querido”, “Eu entendi direito? Aquele irmão disse que vai casar com o outro?
Mas os dois são homens!” Eu disse: “É isso mesmo!”, “Mas isso não é errado?”
E eu: “Não, não é”, “Mas eu não tô entendendo”, ele falou, “isso não pode ser
certo” (David, pastor, 30 anos, Igreja da Comunidade Metropolitana, São Paulo).

O pastor então convidou o homem para o “estudo bíblico” que seria realizado na
semana seguinte. Ele comenta o resultado dessa situação, valorizando a dimensão de
um encontro que se produziu no confronto:

(...) Na outra semana ele não vinha trabalhar e veio. Veio às 5 horas da tarde,
fizemos o estudo e tal e ele levantou algumas questões, trouxe anotado os textos
e alongamos o estudo, até quase atropelamos o horário do culto, mas foi uma
benção. Resumindo: ele voltou uma outra vez à igreja, agradeceu, e depois ele
me falou o seguinte. Ele falou: “Olha, na hora que ele falou aquilo, me deu
vontade de sair correndo e ir embora da igreja. Quando eu cheguei em casa eu
fiquei pensando: ‘Eles não mudaram, eles são os mesmos da semana passada que
me acolheram e é o mesmo culto que eu senti a presença de Deus e que oraram
pela minha esposa e que foi tão importante, que foi tão legal pra mim. Então acho
que precisa mudar alguma coisa e acho que sou eu’”. Então Deus tocou muito no
coração dele. Então foi uma experiência muito interessante, e sempre que ele está
por aqui por São Paulo, no domingo ele vem celebrar conosco (David, pastor, 30
anos, Igreja da Comunidade Metropolitana, São Paulo).

O relato é particularmente interessante porque exemplifica o estranhamento e


apresenta seus efeitos inesperados. Nesse caso, produziu-se uma situação de acomodação,
por meio de um diálogo entre diferentes visões religiosas.
A tática empregada pela Igreja Cristã Contemporânea para lidar com esses dilemas no
período em que realizei a pesquisa parecia compreender: a dissociação da imagem de
“igreja gay” e “gueto homossexual”, a valorização da santidade e de uma cultura dos

192
relacionamentos estáveis em oposição à “promiscuidade”, considerada por informantes
como característica típica do “mundo homossexual”, e a marcação do espaço religioso
como lugar de desenvolvimento da espiritualidade. Todo esforço pastoral, de alguns líderes
e membros, pautava-se pela relativa recusa de uma subcultura homossexual na
denominação. Postura que levava ao estabelecimento de alguns mecanismos de controle e
gerenciamento das condutas. No ambiente religioso, desenvolveu-se o cultivo de um ethos
da responsabilidade, que incentivava o autocontrole e o comedimento nas condutas sexuais.
Se em parte, é possível delinear os contornos dessa estratégia, pode-se pensar que os rumos
tomados pela denominação não possuem uma única possibilidade interpretativa. Parece que
o drama social em questão possui pelo menos três aspectos constitutivos, que descrevo
abaixo.
O primeiro ancora-se no raciocínio, construído até aqui, segundo o qual as relações
com a sociedade mais ampla (marcadas pela desqualificação e rejeição) ensejam respostas
e contra-respostas. A partir dessa tensão, busca-se enfatizar o espaço religioso como lugar
para exercício da vida religiosa, conferindo à identidade do grupo esse caráter
“conservador”, já que é percebido como portador dos verdadeiros valores cristãos.
Um segundo aspecto diz respeito à preocupação dos líderes com o crescimento da
denominação e a cooptação dos fiéis. É necessário retomar alguns pontos, para explicitar
com maior clareza meus argumentos. Do inicio do campo na Igreja Cristã Contemporânea
(em maio de 2006) até o retorno à igreja para a inauguração do novo templo, em janeiro de
2008, observei o recrudescimento da preocupação das lideranças com a ampliação da igreja
e a necessidade de adesão de novos fiéis. Ouvi queixas sobre a alta rotatividade de
membros, de pessoas que visitavam e não retornavam, e, também, sobre aquelas que se
desvinculavam.
Inicialmente, a freqüência nos cultos de quarta-feira era de aproximadamente quinze
pessoas, com algumas ocasiões em que esse número decrescia ou aumentava, em função de
eventos, campanhas e atividades promovidas pela denominação. O culto de domingo
apresentava maior popularidade e era perceptível o aumento do fluxo de pessoas. Contudo,
naquele momento, era um pequeno grupo religioso em busca de institucionalização e
consolidação em termos de uma doutrina e identidade própria. O discurso pastoral sobre a

193
necessidade de expansão tinha como referência o crescimento da Igreja Universal do Reino
de Deus: uma igreja que atingia as massas. Era preciso dar as pessoas o que elas
‘precisavam’, uma Palavra, ajuda para crescimento espiritual, um ambiente para que elas
pudessem exercer sua vida religiosa e ter um encontro com Deus. Em algumas ocasiões, eu
passava períodos sem ir ao culto. Recebia então notícias de que a igreja estava em fase de
crescimento e que deveria retornar ao campo. Entre cada ida e vinda, era fato, a igreja
ganhava novos adeptos. O sucesso foi comprovado pelos fiéis quando ocorreu a mudança
da igreja, do sobrado (no terceiro andar), para o primeiro piso, local onde ocorrem as
reuniões atualmente. (Figura 29). Na inauguração do novo templo um público de
aproximadamente duzentas pessoas lotou a igreja. Um dos diáconos me informou que
recentemente aquela era a média de freqüentadores num domingo. O culto passou a ter um
formato mais institucionalizado, diáconos vestiam-se formalmente, trajando ternos e o
estilo gospel foi realçado, com números musicais, dança e mais participação dos levitas
(cantores da igreja) e dançarinos.
Alguns membros apresentaram-me razões cosmológicas para a ampliação de seus
quadros: a igreja estava numa fase de evolução espiritual, era a “obra de Deus” sendo
realizada. Esse crescimento se fazia acompanhar da adesão a um ethos religioso cada vez
mais exclusivista, que enfatizava a regulação moral, a fidelidade nas relações, a obediência
a Deus e a luta contra os desejos da carne. A percepção da necessidade de atingir as massas
(os gays não convertidos, os heterossexuais e todos os demais excluídos) estava assentada
numa visão missionária da obra de Deus. Um dos informantes contou que em determinada
ocasião teve uma visão na qual a igreja emergia como uma “grande nação”, “sarada” e
“curada”, de gays, lésbicas, travestis, “todo tipo de pessoas”, amando e louvando ao senhor.
Essa era a missão de sua igreja. Nesse contexto, razões para a separação do grupo anterior
ganhavam conotações cosmológicas. Um líder religioso desta denominação comentou que
“havia pouca presença de Deus naquela época”. Outro afirmou que havia “laços espirituais
negativos”, esta percepção foi ratificada, em outra ocasião, por um participante que
comentou a respeito da existência de “maldições e “influências de espíritos”. Outro
membro justificou que questões espirituais estavam por trás da separação. O assunto era
polêmico.

194
Por fim, o terceiro aspecto a ser problematizado é concernente à necessidade de
distinção interna no campo inclusivo e à entrada na disputa no mercado religioso. A
inauguração do novo templo, no andar de baixo, evidencia o sucesso da igreja na ampliação
do público e cooptação de fiéis. O caráter distintivo da igreja que agora saía do anonimato
foi realçado na fala de um diácono, no dia da inauguração do novo templo: “somos a
primeira igreja inclusiva de frente para a rua. Agora somos uma igreja de verdade”.
As observações feitas até aqui assinalaram a pluralidade do universo religioso que
constituiu o foco deste capítulo. Esclareceram as diversas formas de atuação desse
movimento, que envolvem questões teológicas, ativismo, estilos rituais. Como se trata de
um movimento, destaco que a melhor maneira de interpretá-lo é como um processo,
construído por atores sociais em ação. O trânsito de fiéis entre diferentes igrejas inclusivas
é uma questão sugestiva. Sob justificativas diversas, eles realizavam passagens de um
grupo a outro, considerado mais adequado ao aos estilos pessoais: mais ou menos
pentecostal, mais ou menos político, mais ou menos conservador. Considero que esses
trânsitos devem ser objeto de análise em ocasião oportuna, dando voz aos sujeitos que os
realizam. Da mesma forma, formatos rituais são atualizados, em função de muitos fatores (a
chegada de novos fiéis, novas questões políticas, discussões internas, ascensão na
hierarquia religiosa de novos líderes). Por exemplo, no momento do drama, as questões da
teologia inclusiva eram minimizadas por alguns líderes da Igreja Contemporânea.
Interessava menos uma “teologia gay” do que a vivência da espiritualidade. Com essa
preocupação, conteúdos teológicos foram retirados do site oficial. Posteriormente, observei
que novas discussões sobre teologia e homossexualidade emergiram, inclusive havendo
uma apropriação de conteúdos anteriores.111 As questões do contexto bíblico e das
interpretações da Palavra reapareceram, embora justificações teológicas não fossem a
ênfase de sua atuação.

111
No ano seguinte ao início do campo, realizou-se um Curso de Diversidade Sexual, com ênfase em questões
teológicas e argumentos da teologia inclusiva. O curso foi realizado em data próxima ao Seminário de
Teologia Inclusiva, promovido pela ICM São Paulo. Soube que alguns participantes da Igreja Contemporânea
intencionavam viajar para esta cidade com o objetivo de participar deste evento. Apesar disso, o fato não
ocorreu e um informante explicou-me que não foram porque se realizara evento de semelhante teor. Depois
dessa justificativa, interpretei que tal superposição de eventos (e conteúdos) podia estar relacionada às
disputas entre as duas denominações.

195
A pluralidade desse universo ficou evidente nas conversas que tive com vários líderes
e fiéis do movimento no Rio de Janeiro e em São Paulo, bem como as idas a cultos,
reuniões e eventos de várias denominações. Se inicialmente parti da posição igrejas
inclusivas pentecostais x igrejas inclusivas históricas, o trabalho de campo mostrou que a
dinâmica era muito mais complexa. Apesar de sujeitos acionarem uma ou outra dessas
classificações em relação ao seu grupo religioso, há sínteses entre esses estilos de
religiosidade.
Existe uma ênfase ecumênica na ICM SP, na qual presenciei um culto de domingo
com hinos evangélicos tradicionais, seguidos de louvores pentecostais e cânticos católicos.
O pastor justificou empregar este estilo de culto por sua preocupação com o grupo de fiéis,
que é muito diversificado, e valorizou o ecumenismo como uma das frentes de atuação.
Outro exemplo dessa variedade é a Igreja Cristã Evangelho Para Todos, conduzida por uma
pastora de orientação sexual auto-atribuída “lésbica”. Na denominação, ouvi comentário
sobre a existência de uma liderança transexual, demonstrando que o poder não está
concentrado apenas entre pessoas do sexo masculino. Nos cultos, notei uma significativa
presença de um público muito jovem. Ao indagar a líder religiosa sobre isto, ela
argumentou que a denominação seguia o estilo da Igreja Renascer, “da Bispa Sônia”, com
muita música e louvores. Um exemplo era o evento realizado todo mês, chamado
“Louvorzão” (Figura 30). Também neste grupo, havia uma reunião específica para gays e
lésbicas que vinham de casamentos heterossexuais e tinham filhos. Ali era discutido como
abordar questões de orientação sexual com a prole. Se por um lado, a igreja era composta
majoritariamente por jovens, tendo o maior número de lésbicas que eu já vira numa igreja
inclusiva, por outro, conversei com fiéis mais velhos (entre quarenta e sessenta anos),
mostrando que a igreja atingia um publico diversificado, embora minoritário. Estes
possuíam maior escolaridade (terceiro grau, pós-graduação e doutorado) e profissões como
professor universitário, advogado, médico, além da presença de muitos estudantes
universitários, parecendo indicar um público de mais elevado nível social.
A dimensão das trajetórias biográficas dos sujeitos desse movimento constitui outro
elemento fundamental e indicativo dessa pluralidade. Investirei nesse tópico no capitulo
seguinte, no qual abordarei os cruzamentos entre as trajetórias sexuais e percursos

196
religiosos. Cabe enfatizar, contudo, que a maior parte das versões e discursos aqui evocados
é oriunda de apenas uma parcela de indivíduos que freqüentam a denominação. As pessoas
com as quais interagi, em sua maior parte (mas não apenas), compõem o grupo dos
“virtuosos” - indivíduos posicionados na alta hierarquia social da igreja: diáconos,
aspirantes a diáconos, pastor e outras pessoas dessa rede. Há ainda uma parcela de
indivíduos que circulam no espaço, sem pertencimento religioso, indivíduos flutuantes.
Outros que migram de uma igreja inclusiva a outra; os insatisfeitos e que abandonam a
religião e em seguida retornam. 112
A perspectiva comparativa permite compreender que o confronto entre as duas igrejas
e o cisma religioso é indicativo de duas distintas estratégias para lidar com a diferença. De
um lado, ela é construída como extremamente positiva e valorizada (estratégia da ICM), de
outro se busca minimizar ou pelo menos tornar menos evidente a separação entre
homossexuais e heterossexuais. O debate poderia ser referido em termos de uma ação de
ênfase particularista e outra universalista. Não apenas a ICM e a Igreja Contemporânea
lidam com o dilema, mas as demais igrejas inclusivas. O impasse está presente em toda a
sociedade quando se trata de identidades estigmatizadas, grupos e indivíduos disputando
sobre a melhor estratégia diminuir ou negar ou enfatizar a diferença. Na busca de explicitar
melhor esse argumento, a justaposição entre os dois ethos religiosos é ilustrativa.
Na ICM, a preocupação com a exclusão de gays e lésbicas é premente, estando
presente nas falas pastorais e nos cultos. A missão da denominação está vinculada à luta
contra a homofobia e formas de discriminação, principalmente a religiosa. O principal
instrumento é a teologia inclusiva, saber teológico que reavalia os textos bíblicos por meio
de uma análise histórica e contextual. A batalha espiritual pode estar presente nesse ethos,
sob a forma dos preconceitos internalizados e da luta contra os paradigmas conservadores
(o demônio pode ser o responsável pelo preconceito e a rejeição social de gays e lésbicas).

112
Edlaine Gomes (2004) observou em sua etnografia sobre a Igreja Universal do Reino de Deus os variados
graus de freqüentação do religioso. A autora identificou diferentes tipos de sujeitos que circulam pela rede da
igreja, aos quais são direcionados ritos específicos: os “membros efetivos”, considerados pelo discurso
doutrinário pessoas verdadeiramente convertidas; os “em processo” de conversão, constituído por pessoas
com recente ingresso na denominação; os “esporádicos” (com freqüência alternada e frouxo compromisso) e
os “conversos em potencial” (todo indivíduo pecador, passível de ser cooptado pelas estratégias de
incorporação. Lidar com semelhante perfil de freqüentadores de um culto constitui um desafio na etnografia
de um grupo religioso.

197
Por isso, é preciso curar a homofobia internalizada por essas pessoas. Líderes religiosos na
ICM ajudam na tarefa de descobrir-se homossexual e aceitar-se, confrontando os conceitos
incutidos nos meios religiosos tradicionais. Na ICM, há discursos pastorais que apostam na
importância da visibilidade como forma de desconstrução de fronteiras de gênero e da
homofobia generalizada da sociedade brasileira (show de drags, participação nas Paradas
gays etc).
Em contrapartida, a essa estratégia que assinala a diferença de forma positiva, a Igreja
Contemporânea empregava pouca ênfase ao tema. Optava por ser reconhecida como
portadora de uma doutrina “sem preconceitos”, mas com teor mais tradicional, relacionado
à preeminência da vida religiosa sobre a ‘diferença’ entre homossexuais e heterossexuais.
Segundo o ethos religioso, a luta espiritual constituía a principal questão que os
homossexuais deviam enfrentar. A teologia da batalha espiritual capacitava os indivíduos
para a guerra contra o demônio e os desejos carnais, sendo uma das principais frentes de
atuação ensinar sobre a obediência a Deus e a necessidade de santidade. Naquele momento
do campo, na Igreja Contemporânea optava-se pelo ethos da contenção (evitar a pinta na
igreja), sinalizando para a existência de modelos de gênero mais demarcados.
Em linhas gerais, essa análise assinala como são empregadas continuamente
estratégias para conceber e lidar com a diferença, numa complexa junção de religião,
ativismo e orientação sexual. Ambas as denominações (Igreja da Comunidade
Metropolitana e Igreja Contemporânea) fazem parte de um movimento de dissidência.
Embora haja a reivindicação de uma certa tradicionalidade pela ICC, ambas incluem a
diversidade sexual por meio de distintos mecanismos. De um lado, a diferença é positiva e
deve ser celebrada, de outro, ela é signo de distinções e categorizações de pessoas, devendo
ser apagada. Acusações são proferidas de membros da Igreja Contemporânea contra a
Igreja da Comunidade Metropolitana: “a ICM é coisa de americano”. Sugiro então, que este
dilema é constituinte de todo grupo homossexual, e ele encontra respaldo no universo mais
amplo.
Anteriormente, referi que a maneira como representantes da Igreja Contemporânea
lidava com os estigmas associados aos homossexuais encontrava base em amplos processos
sociais em curso na sociedade brasileira. A ênfase da denominação em um ethos de

198
contenção e a valorização de uma homossexualidade masculina ‘discreta’ encontra
afinidades com a pedagogia da masculinidade, ensinada pelo movimento de resgate da
heterossexualidade dos evangélicos “anti-gays”. Em todo caso, as prescrições de conduta
envolvem a adequação aos modelos hegemônicos de masculinidade. Contudo, retomo este
ponto, por meio de um diálogo com algumas idéias desenvolvidas por Sérgio Carrara
(2005), sobre o cultivo de uma homossexualidade viril e também com outros autores que
discutem questões sobre visibilidade da diversidade sexual em contextos Latino-
Americanos (Pecheny, 2004; Sivori, 2006).
Pecheny (2004) aborda as relações entre discrição e exclusão de pessoas GLBT na
contemporaneidade, chamando atenção para mecanismos de controle da informação sobre
si fundados no cultivo do segredo como formas de neutralizar estigmas. O segredo em
torno da homossexualidade daria origem a tipos particulares de interação e conflito,
sedimentando laços específicos entre aqueles que o compartilham. Segredo e revelação não
representam uma dicotomia, mas uma gradação dinâmica, por meio da qual as relações de
sociabilidade se estruturariam segundo três mundos definidos em função da gestão da
informação sobre si. O mundo dos que “não sabem nada”, o daqueles que estão cientes e o
mundo dos “pares”. As fronteiras entre os mundos seriam flexíveis, havendo sempre a
possibilidade de mudança na gestão da informação e instauração de novos conflitos. A
dinâmica social própria do desenvolvimento urbano permitiria aos homossexuais exercerem
uma ‘vida dupla’, organizando os vínculos sociais espacial e temporalmente em função da
gestão do segredo. Contudo, Pecheny sublinha que essas formas de construção de si sofrem
profundas mudanças em função da construção cultural da homossexualidade em contextos
mais contemporâneos. A emergência do movimento gay e da AIDS – e as transformações
sociais insufladas por estes - diluem as fronteiras entre os mundos, criando novas
possibilidades de relação entre discrição, revelação e exclusão social. Em seu modelo de
análise ressalta que as relações entre as esferas pública e privada são complexas, implicadas
na emergência de uma idéia de tolerância que não equivale á uma aceitação plena ou
reconhecimento de legitimidade das pessoas homossexuais.
A expressão pública de afeto, amor e compromisso entre pessoas do mesmo sexo
sofre constrangimentos sociais e a força da percepção pessoal da discriminação social leva

199
a atitudes marcadas pela ambigüidade. É nesse contexto que as afirmações sobre a
necessidade de não “exagerar”, manter-se discreto para obter respeito e aceitação social
devem ser compreendidas. Em diálogo com essa perspectiva, Sivori (2005) analisou a
emergência de um ethos da visibilidade discreta, segundo o qual cultiva-se como um valor
um modelo de homossexualidade “mais masculino” e desqualifica-se/ rejeita-se expressões
feminizadas desta. Em diálogo com autores diversos, ele discute a emergência de novas
normatividades em um cenário global. Enquanto no início do florescimento do movimento
homossexual apostava-se no potencial transformador do confronto e desconstrução das
normas (homossexualidade como contracultura), conforme analisado por Peter Fry (1982),
com a ascensão de um regime de vida igualitário e a rejeição progressiva dos modelos
hierárquicos de categorização das pessoas (bicha/bofe, ativo/passivo) ocorre uma crescente
valorização de um modelo de homossexualidade discreta. Neste, prevalece o valor da
masculinidade, preconizando a importância de uma expressão contida da orientação sexual.
Enseja-se uma manipulação das identidades que requer uma apresentação de si acima de
tudo discreta e contida. Criam-se paradoxais formas de expressão pública de uma gestão de
si marcadas pela constante necessidade de negociação entre os pólos da discrição e da
publicidade. O regime do coming-out (assumir-se) é realizado pelos sujeitos na convivência
com esses modelos culturais nos quais a tensão entre segredo e visibilidade fornece um
mapa para a construção de si (Natividade & Gomes, 2006). Carrara (2005) analisa essas
mudanças culturais em um texto exemplar intitulado “Só os viris e discretos serão
amados?”. Nele, argumenta, a afirmação de uma “homossexualidade viril” constitui uma
resposta à discriminação, uma espécie de consciência sociológica da vulnerabilidade aos
estigmas que ensejam tentativas de escapar ao preconceito. Regina Fachini (2005) amplia a
discussão, identificando também entre alguns segmentos lésbicos, correlata estratégia:
valorização da feminilidade e desqualificação do masculino entre mulheres lésbicas.
Após essa discussão teórica, é possível ponderar que a maneira como se lida com a
diferença no contexto descrito pode apresentar relações com estes modelos culturais.
Assim, a necessidade de discrição evocada por representantes da Igreja Cristã
Contemporânea e a consciente percepção de que pessoas afeminadas sofrem mais
preconceito, constituiria uma estratégia para o reconhecimento e legitimidade do grupo. A

200
emergência da regra “evitar a pinta na igreja” pode ser interpretada como resposta à
desqualificação social que os homossexuais estão expostos em alguns contextos. O ideal de
uma homossexualidade discreta, presente no culto, pode apresentar também afinidades
eletivas com valores religiosos e o modelo do “homem de Deus” cultivado em crenças
evangélicas de uma forma geral, conforme evidenciou a análise da literatura religiosa e o
ideal de restauração sexual (cujo pressuposto é a cura na masculinidade).
Acompanhando a análise Laud Humphreys (1972), ao analisar o crescimento da
organização política de grupos homossexuais nos Estados Unidos, no texto “Out of the
closets: the sociology of homosexual liberation”, argumenta que o engajamento deliberado
de “grupos oprimidos” em ativismo está, principalmente, relacionado à remoção de
estigmas sociais. Apesar de reportar a um contexto específico, com defasagem de décadas e
uma distinta realidade local e nacional, a interpretação do autor, o surgimento de “igrejas
gays” nos Estados Unidos está ligado à ‘redenção’ de estigmas. O autor defende que não se
trata de uma mera mudança de seu status de marginalidade social para a marginalidade
política, mas da ascensão de uma “criatura transformada” (Humpreys, 1972: 142). Nesse
sentido, grupos inclusivos ajudam a confrontar o estigma social que recai sobre
homossexuais (e os tormentos conseqüentes de uma situação de descrédito) por meio de
adequação às regras. A estratégia da Igreja Contemporânea por um lado pode ser vista sob
essa perspectiva, por outro pode ser lida como uma tentativa de apagar a diferença
reivindicando sua tradicionalidade. Ao celebrar a presença de heterossexuais em seus
cultos, ela reivindica sua ‘normalidade’ pelo ideal da mistura e da criação de uma igreja
com todo tipo de pessoas e orientações sexuais. Esse ideal transformador convive com
contradições: a valorização de um ethos da contenção e discrição revela premissas
naturalizantes do sexo e do gênero: indivíduos do sexo masculino devem portar-se
coerentemente com seu gênero. Nota-se a presença de construtos e convenções culturais
reproduzidos em torno de um discurso sobre si. O esforço por ostentar uma masculinidade
hegemônica mostra a presença das chamadas convenções culturais da heterossexualidade
em contexto homossexual. Apesar disso, seguindo a pista de Butler (2003), é preciso
indagar quais as possibilidades de fissuras nos modelos culturais, considerando o gênero
como performativamente construído?

201
Apesar da ênfase numa normatividade de gênero presente no ethos da Igreja
Contemporânea, no plano da sociabilidade observam-se transgressões. Um discurso jocoso
focado nas brincadeiras em que indivíduos em interação se referem a outros - ou a si
mesmos - através de tratamentos no feminino é a forma recorrente de burlar as regras.
Presenciei, até mesmo em algumas entrevistas, interações em que informantes encenavam
performances tipicamente reconhecidas como femininas. Por exemplo, se referir a uma
terceira pessoa (do sexo masculino) como “ela”, “bicha”, “mona” ou mesmo transformar
um nome masculino em feminino (nestas brincadeiras, Bruno pode ser chamado de
“Bruna”). É importante destacar que as expressões corporais são fundamentais no
desempenho dessa performance, através da imitação de gestos femininos, sobretudo,
espelhados em personagens de ficção (heroínas de desenho animado, novelas e filmes) e
cantoras evangélicas como Fernanda Brum e Marina de Oliveira. Um informante comentou
que, diante do reconhecimento de não ter dom para o canto e o louvor, e considerar esta
uma maravilhosa forma de “sensibilizar a Deus”, desejava ter uma “voz bonita para
louvar”, ser uma “Whitney Houstou de Jesus”. Em contextos de pregação nos cultos,
observei pastores e lideranças de algumas “igrejas inclusivas pentecostais” empregarem
performances femininas para descontrair a sua audiência. Na associação entre cantoras de
musica gospel e encenação de papeis femininos, o louvor se configura como um espaço
propício para o exercício dessa feminilidade. A igreja é percebida como feminina (a noiva
de Cristo) em relação a uma divindade masculina. O louvor descreve os termos dessa forma
de contato: a igreja ao desejar/ aguardar a vinda do Espírito Santo, revela um ethos
religioso em que a interação dos fiéis com a divindade é estruturada a partir de uma
hierarquia de gênero. Ao empregarem metáforas que descrevem a relação entre fiel e Deus
como um relacionamento amoroso, os louvores opõem a igreja passiva à divindade, que
toma, invade e arrebata. A fala de um entrevistado apresenta descrição semelhante:

É... Jesus Cristo é posto como noivo da igreja, então se ele é meu noivo eu
tenho que, é... me adornar pra ele, eu tenho que me preparar pra ele, um livro
que fala muito... muito disso, é o livro de “Cantares de Salomão”. E ele
assim... é, e nós esperamos ele como o noivo que vem buscar a noiva, uma
noiva que está ansiosa por ver seu noivo, então uma noiva que está ansiosa
por ver seu noivo, profere palavras de amor e... estou apaixonado,

202
desesperado, quero deitar no teu colo, quero subir, quero te beijar, quero te
abraçar, esse tipo de coisa existe.

A fala do entrevistado encena essa dinâmica de relação entre um fiel que se prepara e
espera a vinda da divindade, mostrando que o louvor é o local apropriado para a expressão
do feminino. A performance feminina que em outras situações é avaliada de forma negativa
tem sua legitimidade no espaço do louvor, da dança e da arte, nas igrejas inclusivas. Em
algumas ocasiões foi possível presenciar a execução de números de dança e musicais, e da
linguagem de “libras” nos cultos, em que as fronteiras de gênero não pareciam tão
demarcadas. Embora este não fosse o foco e interesse de meu trabalho, parecia um
elemento importante que sugeria como nesse ethos religioso, por meio de performances
rituais, se constrói um gênero mais flexível e ambíguo, de uma forma geral, apesar dos
modelos ideais presentes em termos doutrinários.
Antes de encerrar este capítulo, contudo, quero retomar ao problema colocado no
início dele e esclarecer mais alguns pontos sobre o que o cisma que redundou na criação de
uma nova igreja revelou. Acompanhar o drama social em termos de fases e estágios
circunscritos foi difícil visto que cheguei a cena após a ruptura (quebra das relações).
Apesar disso, inspirei-me para compreender o que estava em jogo na criação de uma
distinta igreja inclusiva. Sinto-me mais capacitado a arriscar algumas considerações e
conferir uma unidade aos fragmentos que fui colhendo ao longo de minha estada em
campo. Em primeiro lugar, observo que o drama diz respeito a duas distintas maneiras de
compreensão da questão religiosa GLBT e de estratégias políticas diferenciadas
empregadas pelas duas denominações: Igreja da Comunidade Metropolitana x igreja Cristã
Contemporânea. Quando de sua criação no Rio de Janeiro, a ICM seguia a proposta de uma
igreja específica, com mensagem voltada ao público homossexual. Há fartos indícios de
que essa linguagem GLBT era enfatizada, buscando alcançar um público específico e
constituindo sua missão religiosa no alcance desse ‘igual’ excluído. A primeira etapa do
drama revelou tensões entre as hierarquias religiosas (americanas e brasileiras), acerca de
suas propostas do que vinha a ser uma igreja deste perfil. Sobre estes acontecimentos
pairam silêncios e visões muito genéricas. O insucesso nas negociações leva a duas versões:
de um lado a teoria da autonomização espontânea (apresentada pelos agentes religiosos que

203
comporão a Igreja Cristã Contemporânea) e de outro o processo administrativo que teria
levado a desvinculação de lideranças da hierarquia da igreja americana. Este momento
constituirá o início da crise, na qual um grupo de fiéis permanece associado, ocupando
mesmo endereço onde funcionava a igreja e uma seqüência de negociações internas são
buscadas no sentido da manutenção do grupo. As medidas empregadas dizem respeito à
constituição de uma distinta denominação, de “igreja gay” à “igreja normal”, de espaço
afeito à cultura homossexual à marcações de distinções. Cada vez mais agentes religiosos
enfatizarão o caráter tradicional (religioso) do grupo por oposição a uma suposta
flexibilidade da igreja antiga. A teologia gay ou inclusiva perderá, naquele momento do
drama, a sua centralidade, cedendo espaço a uma pregação na qual o tema da exclusão
homossexual é minimizada. A desqualificação moral sofrida anteriormente pelos segmentos
religiosos hegemônicas deverá ser combatida na submissão a certas regras desse campo. A
busca por normalidade está na afirmação do caráter religioso do grupo e na celebração da
heterossexualidade como bem vinda e desejada ao grupo, como forma de obter mais status
e sair de uma situação de marginalidade social. Esforços serão empregados nesse sentido. A
idéia de que uma igreja brasileira, não gueto, comporta uma visão positiva da diversidade
religiosa cristã, possibilita um mix de influências religiosas: Assembléia de Deus, Igreja
Universal, Renascer e muitas outras. O grupo se consolida a partir da percepção de si como
uma igreja inclusiva pentecostal. As influências religiosas locais e modelos culturais
globais colaboram na construção social da homossexualidade definindo o ideal de “vida
cristã” homossexual: não afeminado, discreto, monogâmico, responsável e cidadão. Os
mecanismos sociais empregados para garantir a unidade foram eficazes e culminaram na
criação de um “código de condutas”, nos ministérios e atividades religiosas, nas campanhas
e atividades realizadas. A resolução final se dá com a inauguração de um novo templo,
conforme já assinalamos, no andar térreo do mesmo prédio em que funcionava. A
cooptação de novos fiéis e o sucesso dessas ações se comprovaram na institucionalização
da igreja, que hoje conta com mais de uma centena de afiliados, com a ordenação de dois
novos pastores e mais sete novos diáconos. Há planos de expansão missionária como
próximas ações. O ideal inicial de uma igreja específica cedeu lugar a mistura de pessoas,
hoje a igreja contando com um quase consolidado grupo de mulheres. Contudo, ainda são

204
empregados esforços para a aproximação de travestis e a ampliação do público.
Os dilemas tratados não se resolvem aqui, visto que um distinto problema ainda deve
ser focalizado. No capítulo seguinte tratarei da construção da subjetividade de fiéis
religiosos que estão vinculados à igrejas convencionais e à igrejas inclusivas. O objetivo é
aprofundar os nexos entre trajetórias religiosas e percursos afetivo-sexuais. Abordarei como
indivíduos são interpelados pelas questões discutidas nessa tese, focalizando processos de
construção de si e o modo como se produzem justificações para a diferença.

205
Figura 19:

Pastor no templo da Igreja Presbiteriana de Copacabana. Ele defendia que a homossexualidade não era
pecado. Revista Sui Gêneris, ano II, nº 12.

206
Figura 20:

A Revista Sui Gêneris, publicação voltada ao público homossexual, publicou uma matéria de capa
apresentando a perspectiva teológica defendida pelo pastor Marien. Gays podiam ser acolhidos em uma
denominação evangélica de posicionamento favorável. A postura de inclusão atraiu a atenção da mídia que
colaborou para a visão da Igreja Presbiteriana de Copacabana como “igreja gay”.
Revista Sui Gêneris, ano II, nº 12.

207
Figura 21:

A postura teológica adotada pelo pastor sofre represálias institucionais. Jornal Homo Sapiens, ano VI, n. 23,
Salvador. Grupo Gay da Bahia.

208
Figura 22:

A Carta aberta de Jaconé é tomada por participantes da Igreja Presbiteriana de Copacabana como um marco
na luta contra a exclusão religiosa e pelos direitos humanos de gays e lésbicas.

209
Figura 23:

Frente e verso de folder de divulgação do Projeto Pecado é não Amar. Exemplo da perspectiva de intervenção
do Grupo Convivência Cristã na luta contra a AIDS no país. As reuniões ocorriam em fins dos 1990 e início
de 2000 nas dependências da Igreja Presbiteriana de Copacabana, na Rua Guimarães Natal., no Rio de
Janeiro.

210
Figura 24:

Panfleto de divulgação da denominação no país, distribuído na Conferência de Lançamento da Igreja da


Comunidade Metropolitana no Rio de Janeiro. Houve o lançamento do primeiro CD Gospel voltado ao
público GLBT.

211
Figura 25:

Manchete do Jornal A Palavra, ano 9, n. 102. A publicação evangélica noticiou a criação da primeira “igreja
gay” no Brasil. Para os evangélicos: uma desobediência a Deus, “uma afronta à Palavra de Deus”, “uma coisa
diabólica”.

212
Figura 26:

Distinto panfleto de divulgação do grupo religioso sediado na Lapa, distribuído em 2004. O discurso era
voltado ao público GLBT, com a promessa de “reexame das escrituras” e do tratamento anticristão aos
GLBT.

213
Figura 27:

Material de divulgação da Comunidade Cristã Nova Esperança, São Paulo. Há referência ao público
“GLSBTTT”. Distribuído em 2007.

214
Figura 28:

Pastor da Igreja da Comunidade Metropolitana do Brasil celebra cerimônia de “casamento coletivo”,


durante a semana da Parada do Orgulho GLBT de 2008, São Paulo.

215
Figura 29:

Folder de divulgação de atividade de sociabilidade da Igreja Cristã Evangelho Para Todos (ICEPT) em evento
comemorativo da Parada GLBT de 2008, o “Gay Day”. Esta denominação atrai uma população de jovens
homossexuais e tem um discurso voltado à “diversidade sexual”.

216
Figura 30:

Folder distribuído pela Igreja da Comunidade Metropolitana de Niterói, Rio de Janeiro. A mensagem é um
apelo a que os homossexuais compreendam que Deus os ‘aceita’ como ‘são’. Este desejo sexual é justificado
como parte da criação e do “plano divino”.

217
Figura 31:

Folder de divulgação do novo templo da Igreja Cristã Contemporânea, na Av. Men de Sá, Térreo. A descida
do sobrado ao para o primeiro piso é importante elemento na definição identitária do grupo que se afirma a
primeira igreja inclusiva a estar de “cara para a rua”, como outras grandes igrejas pentecostais.

218
Figura 32:

Convite para “encontro de louvor”, divulgado pela Igreja Cristã Evangelho Para Todos, São Paulo, em 2008.

219
CAPÍTULO 4

JUSTIFICAÇÕES RELIGIOSAS SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE

O capítulo anterior apresentou uma etnografia de cismas no campo evangélico


resultante de distintas compreensões da homossexualidade. Descreveu o surgimento de um
grupo de igrejas voltadas à “aceitação” da homossexualidade. Apontou como este
movimento significa o desejo por pessoa do mesmo sexo e refletiu como igrejas e grupos
colaboram para certa construção da homossexualidade e de uma identidade homossexual
muito específica. O foco incidiu sobre a dimensão institucional e sobre as percepções dos
atores sociais ligados a denominações inclusivas. O capítulo atual se concentra sobre a
construção da subjetividade, analisando a partir de um conjunto amplo de entrevistas, o
modo como indivíduos ligados a grupos religiosos (convencionais ou inclusivos) elaboram
questões relacionadas a junção entre vida religiosa e sexualidade. O propósito é investigar
de que modo o conflito enunciado no primeiro capítulo (entre “ser” ou “abandonar” a
homossexualidade) aparece no plano da subjetividade das pessoas com desejos
homossexuais ligadas a igrejas evangélicas Os relatos estão agrupados em três distintos
subconjuntos: indivíduos que no atual momento da vida estão inseridos em comunidades
religiosas convencionais e se definem em “luta” com a homossexualidade; outros, cuja
experiência é de confronto das normas religiosas e um terceiro, de pessoas que aderem ao
movimento das igrejas inclusivas. Em todos os casos serão analisadas as estratégias de
gestão de si, a partir do cruzamento das trajetórias religiosas e percursos afetivo-sexuais.
As entrevistas foram baseadas na técnica história de vida, abarcando a vida familiar, a
adesão e migração religiosa, iniciação sexual, dentre outros. O objetivo é avançar na
compreensão das íntimas relações entre religião e sexualidade na contemporaneidade, a
emergência de novos fenômenos, sentidos e experiências. O desafio é nos debruçarmos
sobre as diferenças mais sutis e as distintas formas de se relacionar com o religioso
(Rohden, 2005), investigando tanto trânsitos, rompimentos e novas adesões, como

220
problematizar os sentidos atribuídos à religião e à homossexualidade em diferentes etapas
da vida. Opera-se aqui com uma concepção da experiência religiosa a partir de três distintas
dimensões: identidade ou pertencimento; adesão, experiência ou crença; e, em um terceiro
plano, o ethos religioso, como disposição ética ou comportamental (Duarte, 2005). Os
cruzamentos entre trajetórias religiosas e percursos afetivo-sexuais podem ser feitos
recorrendo ao conceito de biografia. De acordo com Berger, a vida do indivíduo é
constituída por uma determinada seqüência de acontecimentos cuja soma representa sua
biografia (Berger, 1976). O sujeito procura ordenar e dar sentido aos fatos de sua própria
vida através de critérios subjetivos que influem na seleção que o mesmo faz destes
episódios. Ao compilar eventos, imprime-lhes sentido, interpreta e reinterpreta
acontecimentos passados. Contudo, a biografia não é um percurso objetivo, cronológico e
linearmente orientado, mas narrativa, um discurso sobre si que depende do quadro de
referências pessoais. Dentro desse modelo teórico, as noções de narrativa e biografia são
articuladas, importando uma percepção seletiva por meio da qual, fatos e eventos são
eleitos significativos. Recorrendo ao conceito de alternação, Berger sustenta a premissa de
que indivíduos constroem interpretações sobre si, sobre o mundo e sobre o passado por
meio de suas interações e participação em mundos sociais específicos: “a maioria das
pessoas adquire seus significados de outras pessoas, cujo apoio constante é necessário para
que esses significados possam continuar a ter validade” (Berger, 1976: 73). Ele assinala que
existem infinitas possibilidades de reformulação do passado (conversões e reconversões) e
na passagem de um mundo social a outro é possível a convivência com significados
culturais contraditórios. O processo de recriação das experiências anteriores não prescinde
da ambigüidade e contradição: uma pessoa retoca as partes do passado que necessitam de
retificação, deixando intactas aquelas que puderem conviver com a auto-imagem atual.
Um debate interno ao campo da antropologia da religião recorre ao conceito de
passagem para discutir as mediações sociais empregadas pelas pessoas ao longo de suas
trajetórias, na costura complexa de suas crenças e disposições individuais. Essa idéia foi
desenvolvida por Birman (1996), por meio de um diálogo com Marshal Sahlins e sua noção
de contato cultural. De acordo com seu programa teórico, a ênfase concorre para as
continuidades e processos de mediações simbólicas. As recriações se dão sempre dentro de

221
um quadro referencial onde o passado e o presente se combinam na atribuição de novos
sentidos. Essa discussão teórica nos informa sobre o modo como é possível observar
mudanças e continuidades na análise de processo de construção de subjetividades. Convém
destacar que a analise que será feita aqui apresenta dois distintos planos analíticos: a
dimensão das interações sociais e circuito por distintas redes; e o impacto do trânsito por
distintos mundos sociais na elaboração da subjetividade. Demonstrarei como indivíduos
são interpelados sobre as questões discutidas ao longo dessa tese, de modo a sustentar a
hipótese de que os significados sobre o desejo sexual são construídos na passagem por
distintos cenários sociais. Os indivíduos assumem determinadas posições de sujeitos
motivados por compromissos emocionais e interesses, satisfações individuais e sociais
(Moore, 2000). É por meio de meio de intersubjetividade que pessoas adotam certas
fantasias de identidade: auto-representações e auto-avaliações do eu estão ligados a idéias
sobre “que tipo de pessoa se gostaria de ser e que tipo de pessoa se gostaria que os outros
acreditassem que se é” (Moore, 2000: 38). Essa perspectiva teórica pode ser aproximada
daquela empregada por Goffman (1985), acerca da representação do eu na vida cotidiana,
segundo a qual processos de construção de si estão implicados em dramatizações.
Identidades são produzidas contextualmente, de modo que o eu não é um produto acabado,
mas resultante de fluxos sociais contínuos. Nesse sentido, formas de gestão de si estão
sempre implicadas na relação com o outro e em uma “cena” social. Os indivíduos são
atores que possuem a sua disposição roteiros (Gagnon, 2006), mapas culturais, projetos
(Velho, 1980).
Antes de reportar a análise, procederei a uma caracterização sociológica dos
entrevistados. De um total de trinta e cinco entrevistas, trinta e três serão analisadas neste
113
capítulo, coletadas entre indivíduos que reportaram experiências homossexuais. Doze
foram realizadas com integrantes de igrejas pentecostais (convencionais), como
Assembléia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Batista dentre outras. Sete
entrevistados se declararam homossexuais e cinco rejeitaram essa identidade, mas

113
Não serão incorporas apenas duas entrevistas, que foram coletadas entre líderes que reportaram identidade
social “heterossexual”. Como pastores de uma igreja presbiteriana “reformada”, de vertente minoritária, esses
depoimentos concentraram-se sobre informações ligadas a estrutura de seu grupo religioso e forma de atuação
pastoral junto aos homossexuais.

222
reportaram experiências de natureza sexual com pessoas do mesmo sexo. 114 Outras vinte e
uma entrevistas foram coletadas entre participantes de igrejas inclusivas (vinte
homossexuais masculinos e uma transexual).
Dos doze integrantes de igrejas convencionais todos eram fiéis, sendo que dois deles
ocupavam cargos de obreiro e outro em ”ministério de louvor”. Nove possuíam idades
entre os vinte e trinta anos, dois tinham idade acima dos trinta e outro tinha idade inferior
aos vinte. Deste grupo de entrevistados, dois declararam possuir apenas o ensino
fundamental; quatro o ensino médio completo; outros dois o superior incompleto, sendo
que dois haviam completado este grau de escolaridade. Apenas um entrevistado não
concluiu o fundamental e outro não declarou sua escolaridade. Nessa amostragem
heterogênea, as atividades profissionais exercidas eram: ambulante, auxiliar administrativo,
secretário, professor de escola primária, auxiliar de escritório, enfermeiro, funcionário
público, “auxiliar administrativo” e “estagiário”; um deles estava desempregado e outro
declarou-se “estudante”. As informações sobre profissão e escolaridade dos pais são
incompletas, alguns entrevistados declararam ter genitores do sexo masculinos falecidos,
não sabendo reportar os dados com precisão. Os pais exerciam profissões como ourives,
caminhoneiro, “encarregado geral”, vendedor, instrutor de direção, “catador de ferro
velho”. Dois declararam que os pais eram “aposentados”. Já com relação às atividades
profissionais maternas, os informantes declararam que elas eram costureiras, secretárias,
donas de casa, domésticas, uma “aposentada”, uma “pensionista”, uma funcionária de
indústria têxtil. Quanto à escolaridade dos genitores do sexo masculino, estes tinham
fundamental incompleto (três), fundamental completo (dois), ensino médio completo
(dois). Quatro entrevistados reportaram não saber informar sobre o grau de escolaridade do

114
Heilborn e Cabral (2006: 364) se endereçaram ao problema dos valores e percepções sobre os
relacionamentos afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo na já citada pesquisa GRAVAD. Com vistas a
incluir em sua amostragem um recorte amplo de sujeitos que reportavam identidade homossexual ou
bissexual, como aqueles que mantiveram experiências sexuais sem aderir a essa forma de autoclassificação,
elas empregam a estratégia de deslocar o problema das identidades para as práticas. Desta forma, utilizam
como recurso indagar se informantes mantiveram, ao longo da vida, experiência “de natureza sexual” com
pessoa do mesmo sexo. Utilizo aqui este recurso como forma de reportar-me aos sujeitos que rejeitaram a
classificação como homossexuais, quando perguntados a este respeito, mas reportam a uma carreira
homossexual, no sentido do estabelecimento de ligações afetivo-sexuais com os dois sexos, mas a declaração
de uma preferência por pessoa do mesmo sexo. Esses argumentos foram desenvolvidos por mim em artigo
anterior (Natividade, 2003).

223
pai. As mães possuíam primeiro ciclo do fundamental completo (quatro), fundamental
incompleto (quatro), fundamental completo (três) e outra com o ensino médio completo.
Destes doze entrevistados, observa-se que todos foram socializados em famílias que
professam alguma religião, sendo mais recorrente, a criação em denominações evangélicas
(oito); seguida do catolicismo (dois) e do culto afro-brasileiro (dois). Desta amostra, três
moravam com a avó, outros dois com os pais e irmãos, dois com a mãe e uma irmã, um
somente com a mãe, um declarou morar sozinho, outro em casa localizada em terreno
habitado por outros dez núcleos familiares. Neste grupo de entrevistados, as residências
localizavam-se em bairros como Ramos, Madureira, Jardim América, São Cristóvão,
Mesquita e Marechal Hermes (Rio de Janeiro) ou em municípios da Baixada Fluminense,
como Nova Iguaçu, Belford Roxo e Duque de Caxias (Rio de Janeiro).
Das 21 entrevistas feitas com integrantes de igrejas inclusivas, dezessete foram
coletadas entre fiéis e quatro com lideranças religiosas (todos pastores). Nove possuíam
idades entre os trinta e quarenta anos, sete entre os vinte e vinte e nove, um tinha idade
inferior aos vinte anos e quatro, superior aos quarenta anos.
Onze desta amostra possuíam ensino superior completo; três ingressaram no ensino
superior; seis tinham o ensino médio completo; um reportou não ter concluído este grau de
escolaridade. As ocupações eram publicitário, auxiliar administrativo, técnico em
telecomunicações, enfermeiro, securitário, funcionário público, vendedor, auxiliar de
cozinha e despachante. Os pais tinham profissões como pedagogo, micro-empresário,
caminhoneiro, pedreiro, engenheiro, datilografo e os demais ocupavam funções de nível
médio. Já as mães eram donas de lar, passadeira, secretária, farmacêutica, professora. Os
pais chegaram a completar o ensino superior (seis) ou tinham ensino médio completo
(cinco); dois reportaram que os pais tinham o primeiro ciclo do fundamental incompleto;
outros dois haviam completado o fundamental. Os dados sobre a escolaridade das mães
desse grupo de entrevistados revelaram que quatro tinham superior completo; três, o
fundamental completo; quatro primeiro fundamental incompleto; três, o fundamental
concluído; uma tinha o primeiro ciclo do fundamental completo.
Com relação ao perfil religioso familiar, doze reportaram ter socialização em
denominações evangélicas, alguns em contexto de pluralismo religioso (três); cinco, no

224
catolicismo; um foi criado em uma família muçulmana. Seis entrevistados moravam com
companheiro, dois informaram morar “com amigos”; nove, com “parentes” e quatro
declararam morar ‘sozinhos’. Desse total de vinte e uma entrevistas, cinco possuíam
familiares em altos cargos eclesiais como pastores ou referiram ter na família “fundadores
de igreja” (pais, avós, irmãos). Os locais de residência eram distribuídos entre bairros como
Catete, Rio Comprido, Centro, Cidade Nova, Vila Isabel, Méier, Bonsucesso, Freguesia,
Campo Grande, Pavuna, Guadalupe, Santíssimo e Madureira (Rio de Janeiro). Nas três
entrevistas realizadas em São Paulo, os bairros reportados foram Interlagos, Osasco e
Centro.
Nas próximas páginas focalizo um pequeno conjunto de entrevistas que possui uma
peculiaridade: foram coletadas entre indivíduos que se declaram “homossexuais” e
encontram-se inseridos como membros em igrejas evangélicas que propalam a proibição
desta prática. O objetivo será analisar de que forma indivíduos significam suas práticas e
se/ como mantêm adesão a crenças que condenam estilos de vida que abraçam. A questão
que desejo responder é: de que modo eles conciliam a homossexualidade e adesão em uma
religião que define como pecado este comportamento, oferecendo recursos ideológicos para
mudança (Machado, 1998; Natividade, 2006)? Na seção posterior, focalizarei as entrevistas
nas quais os informantes declaram estar em luta com o desejo homossexual, aderindo aos
ethos religioso e buscando adequar-se aos valores propalados na religião. O objetivo será
lançar um foco de luz sobre esse momento das trajetórias e também elucidar como se dão as
interações no ambiente religioso: como se processam situações de aconselhamento e como
se dá a participação em rituais? Na última seção do capítulo procedo ao exame de um
distinto conjunto de entrevistas, aquelas obtidas entre integrantes de igrejas inclusivas, em
sua maior parte, homossexuais masculinos. O objetivo será analisar de que modos se
realizam passagens entre as religiões anteriormente abraçadas e a adesão a uma igreja
inclusiva, refletindo sobre o lugar deste trânsito religioso na atribuição de sentidos ao
desejo sexual. Procurarei responder qual o impacto dessa participação sobre a construção
da subjetividade.

225
4.1. ENTRE ASSUMIR-SE E SER DISCRETO: O DESAFIO DA NORMA RELIGIOSA
E O CULTIVO DO SEGREDO COMO FORMA DE GESTÃO DE SI

Claudio tem 24 anos, é branco, morador de Madureira e integrante de uma Igreja


Universal. A mãe freqüenta uma comunidade da Assembléia de Deus e os pais e irmãos,
com pouca regularidade. Na família, há ainda parentes católicos e evangélicos. Atualmente,
ele tem um “namorado”, que freqüenta a casa e hoje é aceito por seus familiares. Quando o
entrevistei havia um fato interessante. Era uma data próxima ao seu aniversário. Haveria
uma festa para os “amigos gays” e outra, em data posterior, para “o pessoal da igreja”. Ele
preferia “separar bem as coisas”. A medida evitava promover o encontro (“constrangedor”)
entre essas duas redes. Tal junção era percebida por ele como “desnecessária”, já que na
religião, muitos não compreendiam a situação. A primeira experiência homossexual
ocorrera aos dezenove anos, com um homem mais velho, casado. Este momento é situado
por ele como de questionamento dos dogmas religiosos, pois o relacionamento com outro
homem era contrário ao “plano de Deus”. Ele relatou uma cena na qual emerge um drama
familiar. Passarei ao seu relato sobre a ocasião em que familiares descobrem sobre sua
homossexualidade.
O pai vinha notando seu comportamento “estranho” dentro de casa, já que passara a
“dormir fora”, o que era incomum. Dentre as atitudes que levantavam suspeitas, estava sua
recusa de que qualquer pessoa atendesse seu celular. Ele corria e exilava-se em seu quarto
para “ter privacidade”. Uma noite em que chegara do trabalho, trancou-se. Estava brigado
com o namorado. Em uma conversa telefônica, discutiram. O rapaz, do outro lado da linha,
se declarou, dizendo que o amava. De repente a porta do quarto foi aberta com um
empurrão. O pai gritava. A mãe irrompeu chorando. O pai era “da roça”, “conservador”.
Não lhe agrediu fisicamente, mas “com palavras”. Disse que ‘ouvira tudo’ na extensão
telefônica. Inquiriu se ele era “veado”, aos berros. Ele respondeu que ‘gostava de homem
sim’. Nos dias, semanas, meses, anos que se passaram tentou “sair disso” e namorou uma
menina. Passou a evitar que os amigos gays fossem a sua casa. Hoje, as coisas eram
diferentes. Não pretendia mais fazer a família feliz, mas sim buscar sua própria felicidade.

226
Tornara-se “muito amigo” da mãe, que se transformara em uma confidente e já o
‘aceitava’. Claudio argumenta que soube se impor e obter “respeito”, pois ocorrera uma
mudança na atitude de sua família, relacionada ao fato de ter estudado, passando a ser mais
‘valorizado’:

É a questão da formação. Eu mostrei pra eles. Minha família é humilde, vieram


da roça, essa historia toda. Eu sou o primeiro neto da minha avó. Na minha
família o primeiro a ter o nível superior, e com 21 anos eu me formei. E eles
começam a ver outros tipos de valores, que você é uma pessoa, independente do
que vive, você tem valor. Você é uma pessoa que contribui,que tem sentimento.
E foi aí que comecei a assumir as coisas e hoje em dia, tudo está encaminhado.
(Claudio, 24 anos, professor, Igreja Universal).

Dois aspectos chamam atenção em sua fala. Em primeiro lugar, a ênfase numa
possibilidade de negociação, mediante um circuito de reciprocidade. Ele passou a
‘contribuir’ em casa, de forma que empreende uma contra dádiva, em um sistema de
obrigação familiar. A reconstrução que faz de sua trajetória passa também pela percepção
de que a aquisição de maior status (já que a família tem pouca escolaridade) é relevante na
valorização e reconhecimento que obtém, passando a ser aceito – interpretação que reporta
mediante o diagnóstico da redução dos conflitos familiares e uma maior ‘abertura’ para a
inserção dos amigos (e do atual relacionamento) na vida familiar.
O relato contém muitos elementos que são recorrentes nas trajetórias dos demais
entrevistados. A tensão família-religião-sexualidade está presente. Por outro lado, indica
uma forma de gestão de si na qual o aprendizado da homossexualidade está relacionado ao
cultivo do segredo. A decisão sobre ocultar informação sobre a sexualidade na congregação
está baseada na convicção de que pastores e membros acreditam que este comportamento é
“errado”, “uma coisa do diabo”, “uma aberração”. Vale observar que o aprendizado social
da homossexualidade em muitos contextos envolve a gestão da informação pelo silêncio e
segredo, como forma de manipulação de estigmas (Pollack, 1990, 1985; Guimarães, 2004;
Sívori, 2004). Quando este aprendizado é acrescido do elemento socialização em famílias e
ambientes religiosos, a crucialidade desta estratégia torna-se mais evidente, sobretudo,
quando se está falando de vertentes evangélicas – que exortam à mudança (Natividade e
Gomes, 2006). Essa análise evoca uma compreensão do tipo de experiências que sujeitos

227
sociais vivenciam em suas escolhas sexuais, implicadas em certo repúdio, atitude motivada
pela existência de ambientes sociais avessos a este tipo de prática. Seguindo essa ética da
discrição, o entrevistado citado, prefere se preservar no ambiente de trabalho, porque
poderia ser vítima de “preconceito”. Afinal, “quem ia querer ou permitir que o filho
115
estudasse com um professor gay”? O circuito por redes sociais “gays” possibilitou que
ele ‘conhecesse pessoas’, inclusive, estabelecesse um relacionamento com rapaz de sua
faixa etária, que hoje freqüenta sua residência. Um marco em sua trajetória é o ingresso na
universidade, momento reconhecido como de maior liberdade, passando a circular por
boates e outros locais de sociabilidade homossexual. A ampliação das redes sociais é
concomitante a saída do ministério de louvor, medida empregada diante de sua percepção
de estar em desacordo com as regras religiosas.
O relato em questão demonstra como uma análise deste tipo não pode deixar de
contemplar as dimensões da relação com o grupo familiar, as redes religiosas e demais
esferas de sociabilidade. A trajetória de Claudio é marcada por uma discreta ascensão
social concomitante ao processo de constituição de sua percepção de si como homossexual.
Vejamos como estes dilemas são presentes em outras biografias.
Integrante de uma pequena denominação pentecostal autônoma, Giovani tem 27 anos,
é negro e, apesar de estar ‘formado’ e ter nível superior, está desempregado. Ele tem
passagem por denominações como Igreja Batista e também pelo Ministério Apassentar de
Nova Iguaçu. A maior parte de sua trajetória, contudo, é vivida em uma pequena
denominação autônoma pentecostal, a Casa de Davi. Quando fui apresentado a ele, obtive a
informação de que era casado e vivia uma crise relacionada à decisão de ‘assumir-se’.
Antes de examina com mais cuidado este aspecto, faço uma breve digressão sobre sua
trajetória familiar por considerá-la peculiar, em termos de suas costuras e passagens
religiosas. Iniciado em umbanda, ele passara anos de sua vida “no Santo”, devido ao
vínculo familiar com essa religião: as avós (materna e paterna) eram “mães de santo”.
Contudo, a trajetória religiosa acompanha um movimento de migração religiosa ao
115
Esta estratégia assemelha-se ao que Pechenny (2002) nomeou de discriminação antecipada, tipo de
gerenciamento de si cujo conhecimento das normas sociais leva à adoção de comportamentos de reserva ante
a expressão visível da homossexualidade. Esta reflexão foi suscitada no âmbito do Grupo de Estudos sobre
diversidade sexual (PPGAS/MN/UFRJ), a partir de um debate no interior do grupo entre eu, os antropólogos
Igor Torres e Leandro de Oliveira e o graduando Lucas Bilate.

228
pentecostalismo ocorrido na própria família: muitos se converteram e mudaram do
espiritismo para denominações evangélicas, em especial, a família paterna, primos e tios.
Nas imediações do bairro onde mora, há pelo menos duas igrejas evangélicas, situadas em
cada um dos quarteirões. Ele articula essa oferta religiosa ao fato de sempre ter convivido
com pessoas evangélicas, já que o “povo da Baixada é crente”.
Aos seis anos de idade ele foi ‘iniciado’. Posteriormente, fez obrigações e recebeu a
função de “mão de faca” (dom para “cortar bichos”). Na reconstrução de sua trajetória, ele
compreende o vínculo com a religião afro-brasileira, como “uma ligação muito forte com a
116
cultura africana” – uma espécie de amor pelas “coisas do santo”, que percebe como
contraditório com a nova religião. Desta forma, mesmo afastado dessa religiosidade,
concorda que a avó (uma “grande sacerdotisa de nação angola”) “cuide” de seus Orixás
(Oxum e Oxossi) e faça suas “obrigações”, informado a ele sobre esses procedimentos
rituais.
Os anos vividos na umbanda foram “de fervo”: uma convivência animada com
homossexuais, paqueras, muito interesse por outros rapazes. Por oposição, a adesão a
crença pentecostal propicia um maior controle sobre sua sexualidade, o que incluiu o
casamento com uma mulher, o nascimento de um filho e algumas ‘recaídas’ que
suscitavam crises. Em seu relato, o tema da ‘descoberta’ e ‘aceitação’ pela família também
aparece com grande destaque. Da mesma forma que o entrevistado anterior, a revelação de
uma relação afetivo-sexual com outro rapaz, aos dezesseis anos, redundou em um drama
familiar:

Eu vivi um período da minha vida, que ficava fervendo com um vizinho meu,
sabe? Todo dia. Até que um dia meu tio descobriu. Foi um escândalo. Meu tio
já desconfiava de mim. E ficou ouvindo minha conversa atrás do muro.
Quando eu entrei em casa e ele ouviu tudo e falou: “Vou falar com tua mãe
agora”. Aí foi falar com minha mãe, foi o maior escândalo. Falou com minha
mãe. A minha família me levou na casa do menino, ela [a mãe] me levou na
porta do menino. Perguntou se ele havia feito alguma coisa comigo, ele falou
que não. Eu chorando, desesperado, já tinha dito que sim. Minha mãe deu na
minha cara, bateu, todo mundo vendo. Foi um escândalo na rua. Foi aí que todo
mundo descobriu que eu era o viadinho.
(Giovani, 27 anos, desempregado, denominação pentecostal autônoma)

116
Giovani relatou cultivar um interesse pela mitologia afro-brasileira e pelo estudo da história dos Orixás.

229
Os conflitos foram atenuados após sua “conversão” a uma igreja evangélica, quando
117
atravessou uma situação limite. A adesão a denominação pentecostal foi valorizada
pelos familiares como prova de que vivia de forma mais regrada (“não estava na gandaia”).
Giovani ingressou na vida religiosa e assumiu a posição de “ministro de libertação”,
auxiliando o pastor da denominação em casos de possessão. Assombrado pelo desejo por
pessoas do mesmo sexo, ele procurou o sacerdote e ‘confessou’ seu problema, obtendo
orientação sobre como resistir às suas inclinações pessoais. O líder religioso suspeitava da
influência de poderosas entidades sobre sua sexualidade: responsáveis pelas brigas
conjugais e pela facilidade com que vinha se envolvendo “em homossexualismo, pomba-
giras seduziam e ‘colocavam’ homens em seu caminho.” Ele então participou de rituais
privados, nos quais um psicólogo evangélico e o pastor buscaram ‘desvendar’ as entidades
que ‘trabalham’ para ‘transformá-lo’ em homossexual, inquirindo sobre práticas sexuais,
desejos, sentimentos e pensamentos. Reproduzo um trecho da entrevista em que descreve a
experiência:

Giovani: Eu fiz a libertação. Fiz três vezes.


MN: Três vezes?
Giovani: Fiz três vezes. Não tomei jeito. Quer dizer, tomei um pouquinho. Fiquei
menos safado. É interessante, eles vão ministrando outras áreas. Na verdade ministra
todas as áreas da sua vida, ministra todas as áreas mesmo. Aí chega na sexualidade. Eu
respondi um questionário. Ninguém vai pra libertação sem responder um questionário.
Porque se ministra com aquilo que você ‘sabe’. A gente tem uma ficha de sete, oito
páginas, que a pessoa responde, preenche, escreve.
MN: E o que tava acontecendo na tua vida quando você foi fazer a primeira libertação?
Giovani: Eu queria me firmar na igreja, mas o que me incomodava era uma atração
muito forte por homens. Eu era casado, e eu queria me livrar disso. Foi quando eu
conheci o pastor, que é o homem da Baixada Fluminense que trabalhava com isso.
MN: Conta da tua libertação.
Giovani: Foi na quarta-feira bem cedinho. Eu, a “doutora”, que é uma psicóloga que
trabalha com libertação também. Porque na verdade, pra você fazer libertação, você
tem que confessar os seus pecados. Você confessa os seus pecados, você confessa as
relações todas que você teve. Eu tive que dar uma lista de nome de homem, uma lista
de homem que eu tinha transado, pra eu estar ‘quebrando’: “eu renuncio toda relação
117
O entrevistado reporta como motivação para sua adesão religiosa uma experiência de proximidade da
morte. Ele saía de um “pagode em Madureira”, na companhia de um grupo de amigos, quando foi alvejado
por uma saraivada de balas, numa troca de tiros entre policiais e traficantes. Após inúmeras cirurgias, passou
a receber a visita de vizinhos e conhecidos crentes no hospital. Declarou que neste momento, em que pensara
que ‘ia morrer’, recebeu um “chamado” e decidiu “aceitar a Jesus”.

230
que eu tive com fulano e cicrano e beltrano. E vai falando os nomes. Porque na Palavra
de Deus, todos os pecados têm que ser confessados. Pergunta de relação sexual anal,
pergunta tudo. A quantidade de relações sexuais anais que você teve, como é que foi o
envolvimento, se não teve. Tudo isso pergunta. Isso é ministrado na hora e você
renuncia a tudo isso. E na verdade eu não lembrei, eu não conseguia. Aí eles acreditam
que ficam portas abertas pro desejo homossexual. O pastor dizia pra mim que ficam
brechas, que eu não vou me libertar.
MN: Então você não conseguia se lembrar. Conta isso. O que acontece?
Giovani: Nada. Ministra: “renuncio, repreendo”. Porque na verdade, eu não me
manifesto. Quem manifesta sai pomba-gira, recebe tudo. Recebe, vomita, passa mal.
Comigo foi muito simples. Eu senti arrepios, mas manifestar, nada disso. Gente que
recebe, fica a pomba-gira lá, que fala: “eu botei ele assim”, “Fui eu que botei ele assim,
mulher”. Comigo não. O que o pastor F. diz que comigo é difícil porque eu não tenho
essas manifestações. Não se fala, não se diz, não dá pra saber qual é a raiz da porra do
negócio.

Obstáculos “espirituais” emperravam o processo de libertação: como não se lembrava


dos nomes daqueles com quem ‘transara’, nem conseguia evocar todos os pecados
cometidos, os líderes religiosos não eram capazes de ‘descobrir’ as causas de sua
homossexualidade. Argumentavam que existiam “brechas”. Que o demônio era ardiloso e
se escondia. Como não ocorria manifestação de espíritos, era difícil expulsar o diabo.
Após formar-se no curso superior, Giovani conseguiu o primeiro emprego. Rompeu
com a esposa e com a família, mudando-se, em seguida, para o bairro da Tijuca, onde
passou a dividir um apartamento com outros gays. O ônus de se ‘assumir’ era ter que
“cuidar de sua própria vida”: pagar suas contas, o novo aluguel, a pensão da filha, senão ‘ia
preso’. Essas dificuldades eram compensadas com a liberdade que passou a desfrutar ao
descobrir o “mundo gay”. Passou a freqüentar boates e chegou a ‘se montar’ em algumas
118
ocasiões. “Um rodízio de homens muito grande”, foi a expressão empregada para
descrever sucessivas ligações afetivo-sexuais sem compromisso.
As estratégias empregadas pelo entrevistado na gestão das relações familiares e na
manutenção de sua inserção na igreja são singulares. Ele não promoveu um desligamento
efetivo dessas redes. Em alguns fins de semana, seguia para a Baixada Fluminense para
visitar a mãe e ‘ficar com a filha’. Nessas ocasiões, freqüentava os cultos na denominação

118
Montar-se é termo nativo que correlato a travestir-se. Um indivíduo que ‘se monta’ veste roupas
usualmente femininas, adereços e maquiagem. O informante declarou freqüentar locais gays ‘montado’.

231
pentecostal aos domingos. O pastor fazia muitas perguntas e, o exortando a retornar,
argumentava não querer saber de sua ‘opção sexual’: ele fazia falta na “obra do Senhor”.
Giovani ingressou então num relacionamento com um rapaz recém-formado em
engenharia. Como o parceiro era “do santo”, ocorreu um regresso ao culto afro-brasileiro.
Os dois fizeram visitas ao terreiro de sua avó e cumpriram algumas obrigações. Após um
ano de “namoro”, o rompimento e a perda do emprego propiciam uma nova crise,
culminando no retorno para a casa da família e para a igreja. O fato é interpretado por ele
como uma prova de que jamais seria feliz numa “vida homossexual” (a ex-esposa se casara
e ele estava sozinho). Embates com o pastor ocorreram, nos quais ele afirmou que não
pretendia “deixar de ser gay”, replicando o líder religioso: se permanecer “nessa vida”,
“morrerá de AIDS”.
A análise da biografia de Giovani coloca de forma crucial a tensão constante entre
permanecer-sair da igreja e as implicações da opção por se ‘assumir`. A dificuldade de se
‘curar’ e livrar-se dos desejos homossexuais é tomada por ele como sinal de que uma
mudança na conduta sexual é difícil, quase impossível. Giovani produz assim uma
justificativa religiosa: o fracasso da cura pode ser decorrente, talvez, de uma “permissão
divina”. A independência econômica e o ingresso em redes homossexuais são
concomitantes ao processo de ‘assumir-se’. Contudo, ele não promoveu um rompimento
definitivo com a família e a religião, optando por visitar a filha e mãe nos fins de semana.
Participa “sem compromisso” das atividades na igreja, resistindo aos apelos pastorais para
retornar. A “decepção amorosa” promove um retorno ao ambiente religioso: ele teme ser
vítima de ardis diabólicos. Apesar disso, cultiva o sentimento de que não deve empossar
ministério ou cargo, pois não tem tido uma vida em “comunhão com Deus”. É notável na
trajetória de Giovanni o trânsito do culto afro-brasileiro, tendencialmente suposto como
mais tolerante com a homossexualidade – inimigo visceral das crenças evangélicas – ao
universo pentecostal, que exige regeneração moral e adequação ao modelo do homem
cristão. A participação em rituais de libertação evidencia a técnica da confissão como
recurso privilegiado para a produção de novos sentidos do eu. É necessário confessar e
renunciar o pecado. O aconselhamento e o incentivo ao inventário de si aliam-se aos
procedimentos mágicos de cura interior e cura das memórias e experiências passadas. Jesus

232
atuaria sobre cada cena, ato ou interação pecaminosa do passado, apagando-lhe a mente e
purificando-lhe o corpo. Contudo, a relação que Giovani estabelece com o culto afro-
brasileiro é ambivalente, não implicada em um rompimento total. Ele “respeita” e promove
retornos e afastamentos dessa crença, associando-o a uma herança espiritual que rejeita
“em nome de Jesus”: no caso de morte da avó, mãe de santo, o destino e gerência do
terreiro estaria sob sua responsabilidade. A maneira como interpreta esse impasse passa
pela visão das coisas do santo como “obrigação”, enquanto a aquisição da identidade de
crente é liberdade de seguir a Jesus. Essa ambivalência comporta ainda um outro elemento,
quando reporta o conflito entre sua “identidade de negro” e “brasileiro”, cujas raízes estão
na religião africana e a “identidade de evangélico”, que acredita no poder do demônio de
seduzir e levar a destruição, sob a forma de promessas enganadoras de santos, exus,
entidades diversas. Tal paradoxo o levaria a demonizar expressões da cultura tipicamente
brasileiras, o que percebia como um problema sem resolução do ponto de vista pessoal: era
um negro, evangélico, pentecostal e ainda por cima “homossexual”.
Meses após a realização da entrevista, tive a oportunidade de inteirar-me sobre os
novos acontecimentos. Giovani conseguiu um emprego. Mas as dificuldades eram muitas.
O pequeno salário, de aproximadamente quatrocentos reais por mês, não era o suficiente
para “sair de casa”. Ele precisava investir mais em sua “formação”, “fazer mestrado”, para
“melhorar de vida”. Essa necessidade de mudança/ qualificação era percebida por ele como
condição para a própria estabilização de sua vida emocional. Atravessava depressões. Com
vistas a reduzir os conflitos, acatava a exigência da mãe: não receber “veados” em casa. O
comentário realça que, embora a família não seja majoritariamente religiosa, prevalecia a
reprovação deste comportamento. Apesar disso, algumas possibilidades de negociação
ocorriam: aprofundava a amizade com a irmã mais nova, esta passando a apoiá-lo. Ela o
defendia, quando ocorriam contendas familiares, das ofensas feitas pela mãe: ele era
promíscuo, não gostava de trabalhar, quando ia arrumar um emprego e deixar de viver “na
aba”, em uma situação de dependência?
A análise de seu relato reporta a um ambiente social avesso ao exercício da
homossexualidade: a igreja exorta à mudança e a família ‘não aceita’. Os dilemas
decorrentes do confronto entre suas disposições sexuais e os valores cultivados nas redes

233
religiosa e familiar ensejam soluções. Em seu caso, emprega a lógica da evitação,
ocultando seus envolvimentos afetivo-sexuais enquanto não conquistou sua autonomia
definitiva e optando por manter sociabilidade restrita aos ambientes externos ao núcleo
doméstico.
A trajetória de Luciano contém estratégias semelhantes à descrita por Giovani
relacionada ao cultivo do segredo e a gestão das relações familiares pelo ‘silêncio’ sobre a
sexualidade. Membro da Igreja Universal, esse ex-obreiro, branco, de vinte anos, mora com
a família (pai, mãe e irmãos). Ele percebe-se hoje, “menos praticante” da religião, dada a
necessidade de “crescer profissionalmente”, já que “faz faculdade” e trabalha. O tempo
atual é de menos “serviço” na “Casa do Senhor”, mas freqüenta os cultos “de avivamento”
aos domingos e às quartas-feiras (Culto do Espírito Santo). Considera que a religião é
muito importante em sua vida, pois se tornou uma “pessoa de boa índole”, já que teve uma
“base bíblica” em casa (familiares integram os quadros da Igreja Universal). O recente
ingresso em um relacionamento estável com um homem mais velho, de trinta e oito anos, é
tomado como um fato marcante. O controle familiar tem sido minimizado em função das
possibilidades de “dormir fora de casa”, coisa anteriormente impensável. “Dar menos
satisfação” é a expressão que emprega para ilustrar sua atual atitude relacionada ao controle
da informação sobre sua vida pessoal. Essa estratégia está baseada na percepção de que a
família “não sabe” e deve ser preservada. O pai, que é menos religioso, poderia ‘aceitar
melhor’. A maneira como tem procurado obter respeito é “trabalhando” e cultivando a
discrição. Alguns namorados chegaram a freqüentar sua casa, sem que ninguém viesse a
desconfiar. Mas Luciano preza, sobretudo, a discrição nos gestos e maneira de se
apresentar, observando que homossexuais não devem ser afeminados. Embora tenha uma
vida sexualmente ativa, a mãe pensa que ele é virgem. Contudo, acredita que pode haver
certa tolerância se cultivar um comportamento discreto. Essa suspeita ocorreu depois de
uma conversa que teve com a mãe quando os dois assistiam um programa de TV, conforme
relatou:

Num programa de televisão do Raul Gil tem o show de calouros. Então tinha um
determinado cantor que é gay e a minha mãe tava vendo o programa. Embora
esse quadro fosse só quase no final do programa, ela fazia questão de falar assim:

234
‘coloca lá que eu quero ver o meu ídolo’ e o ídolo dela era justamente o cantor
gay. Aí certo dia eu perguntei pra ela assim: ‘mãe, a senhora não acha ele
estranho, meio afeminado?’ E ela respondeu: ‘um pouco’. Como vi que ela não
ia dizer mais nada, eu disse: ‘Mas ele é discreto e se for discreto pra senhora não
teria problema?’ Ela disse: ‘Não’. Fiquei calado e falei assim comigo: ah, então
tá bom”. (Luciano, 20 anos, auxiliar de escritório, Igreja Universal)

O relato aponta as margens de negociação nesse ambiente social: ainda que o cultivo
do segredo seja essencial, para além do ‘revelar-se’ e ‘ser aceito’ está a exposição pública
de certa forma de apresentação de si. É essencial ser discreto, disfarçar bem, não ser
afeminado. As cobranças de namoro da família são dribladas ao argumentar que estuda
muito e não tem tempo para namorar. Também na igreja nunca confidenciou nada a
qualquer membro. Embora os pastores exerçam severo controle moral sobre os jovens da
comunidade com conselhos sobre namoro, Luciano prefere não se abrir. Entendia que uma
mudança se produzia em sua visão de mundo, pois não enxergava tanto as coisas “pelo lado
espiritual”. ‘Filtrava’ o que lhe diziam na igreja, de modo que não considera muito
importantes críticas que são dirigidas aos homossexuais no ambiente religioso. Atualmente,
tem procurado sair mais com pessoas que são da igreja. Contudo, o equilíbrio da situação é
abalado a partir de eventos específicos como o narrado por ele na entrevista, quando
encontrou um rapaz de sua igreja na boate gay que freqüentava:

Da última vez que eu fui a uma boate gay eu encontrei uma pessoa da igreja.
Eu tava subindo pro terceiro andar da boate e vi esse rapaz dançando. Eu
escondi o rosto atrás do meu namorado, que é mais alto do que eu. Aí ele
perguntou: ‘o que foi?’ Eu falei: ‘Sobe! Lá em cima eu te explico’. Quando eu
cheguei lá em cima eu expliquei que tinha encontrado uma pessoa que era da
igreja ali na boate, mas que eu achava que não tinha me visto. Aí o Ricardo (o
namorado) me deu uma bronca. Falou que eu não tinha que ficar reparando
porque se ele tava ali era pelo mesmo motivo que eu: tava querendo se divertir
num ambiente homossexual. Aí eu pensei: ‘poxa, não tem porque ficar me
escondendo aqui dentro. Posso até me esconder, manter discrição, mas aqui
dentro não preciso disso (Luciano, 20 anos, auxiliar de escritório, Igreja
Universal)

A fala de Luciano é ilustrativa, evidenciando a permanente tensão entre ocultar e


revelar informações sobre a sexualidade. O encontro de uma personagem que conhece sua

235
identidade religiosa em um ambiente em que procura vivenciar sua homossexualidade
produz um impasse. O evento inusitado leva à reflexão, contudo, de que ali não precisava
se esconder posto que ambos compartilhavam o mesmo segredo. Personagem central na
resolução do evento é o namorado que, através de uma ‘bronca’, exorta-o a não temer a
situação: naquele contexto é possível ‘revelar-se’.
Como nas trajetórias anteriores, a ampliação das redes de sociabilidade é essencial a
reserva que adota frente aos ditames religiosos, embora já tenha buscado “namorar garota
evangélica”. O mesmo pode ser observado sobre a trajetória de outro entrevistado,
integrante da Igreja Universal.
Bruno reside com os pais e irmãos, que são membros da Assembléia de Deus. A vida
religiosa comportou uma intensa participação em atividades e cultos, que culminou em sua
função de “obreiro” na Universal. A saída desta posição na igreja era recente, porque
refletira que tivera “muita renúncia nessa parte da sexualidade”. Atualmente, ele é
integrante de uma rede de sociabilidade homossexual estabelecida no ambiente de trabalho,
freqüenta a residência de um casal gay e ocasiões sociais através das quais estabeleceu
outras ligações afetivo-sexuais com homens. É neste contexto - que contrasta com o
ambiente conservador da família, da igreja e da comunidade - que Bruno encontra
confiança e compreensão. A busca de amizades que o entendem é uma importante
estratégia na elaboração de um discurso sobre si, centrado na identificação com o grupo, na
aceitação da diferença e na consolidação de uma imagem positiva de si (Guimarães, 2005).
Esse momento contrasta com seu passado em que não se aceitava e no qual buscara cura e
libertação na igreja. Apesar de já ter mantido ligações afetivo-sexuais com os dois sexos,
define-se como homossexual por acreditar que tem atração apenas por homens. Sua
formulação a respeito da homossexualidade é ambivalente, afirmando ser uma opção
sexual já que Deus lhe deu livre-arbítrio. Por outro lado, acredita que ‘foi uma coisa que
não escolheu’. O desejo de confidenciar à mãe sobre sua ‘preferência’ convive com a
intuição de que não deve fazer isso, já que a família não concorda, acha uma “aberração”.
Suspende os confrontos pela gestão do silêncio. Contudo, a percepção de que talvez a
homossexualidade não fosse um pecado tão detestável aos olhos de Deus, é resultante de
um desafio. Em um culto da Universal, prostrara-se de joelhos e desafiara Jesus: por que

236
Ele não arrancava aquele desejo? O Deus que “podia todas as coisas” se recusava a tirar o
‘espinho’ de seu coração? O que Deus queria dizer-lhe com tudo aquilo? A resposta veio
por meio de uma sensação de acolhimento e da percepção de que Jesus o ‘abençoava’,
independente das suas ‘fraquezas’.
Ronaldo também reportou a necessidade de ocultar na igreja informações sobre sua
vida sexual. Afinal, era uma pessoa muito conhecida no meio religioso por ocupar um
cargo na hierarquia eclesial, o que o colocava numa posição delicada diante da exposição
de sua vida pessoal. Ele entendia que a revelação de sua homossexualidade na igreja levaria
a destituição de sua posição e poderia implicar até mesmo a perda do emprego, já que
trabalhava em uma empresa dirigida por membro da denominação. De forma semelhante, a
mãe, com quem residia, não poderia saber. Por isso, ele optava por freqüentar locais de
sociabilidade estritamente de encontros sexuais como saunas e cinemas pornográficos longe
de seu bairro. O conflito decorrente de ser “um rapaz homossexual e evangélico” era difícil
de resolver, sobretudo porque era “temente a Deus”. Por outro lado, não estava na igreja
obrigado, mas sim porque “se sentia bem”. Achava que pastores e outras pessoas no
ambiente religioso “discriminavam”, por isso era preciso “separar bem as coisas”. Contudo,
a tensão maior se apresentava na possibilidade desta faceta de sua ‘personalidade’ ser
revelada no ambiente familiar e religioso. Nessa situação, se via obrigado a sair da igreja já
que no âmbito doutrinário este é um comportamento contrário aos planos de Deus. A
proibição era “bíblica”, um “pecado”. Desde que vivenciou “esse lado” houve uma
119
diminuição de sua espiritualidade: atualmente não tinha o batismo do Espírito Santo e
acreditava que necessitava melhorar sua relação com Deus.
As entrevistas de Victor e Fábio também fornecem elementos para essa análise. Os
dois são amigos e freqüentam respectivamente um pequeno ministério pentecostal
autônomo e uma denominação da Assembléia de Deus nas imediações de suas residências,
na Baixada Fluminense. O primeiro declarou-se “numa fase homossexual”, embora, há bem
pouco tempo estivesse em luta contra ‘esses desejos’. Contudo, tanto ele, quanto Fábio não
descartam a hipótese de que pudessem vir a ser ‘libertos’ pelo Espírito Santo, alocando à
cura à condição de um projeto futuro que, se ocorresse, seria “no tempo de Deus”. Victor

119
Experiência mística ligada à descida do Espírito Santo sobre si, promotora do fenômeno de glossolalia.

237
estava afastado da “obra”, considerando viver um momento de distanciamento das coisas
de Deus, apesar de não ter se desligado da denominação. 120 Um sinal desse afastamento era
a perda do dom da cura, que anteriormente utilizava em benefício das pessoas. Por isso,
necessitava de maior proximidade com Deus, pois a Bíblia era clara: os homossexuais não
herdarão o Reino de Deus. Apesar disso, estava em busca de um relacionamento
homossexual, pois precisava permitir-se viver “esse lado”.
Já Fábio mantinha uma ligação afetivo-sexual com um homem mais velho -– hoje
pastor da igreja que freqüenta – que conhecera em uma “pregação” no trem. Comentários
jocosos na congregação comparam os dois aos personagens bíblicos Jonas e Davi. A
referência a essa amizade supostamente homoerótica deixava no ar uma suspeita de que
ambos mantivessem uma relação homossexual. Diante do perigo constante das sanções
institucionais se o “caso” fosse descoberto, Fábio passou a estabelecer ligações afetivo-
sexuais com meninas da vizinhança “para despistar”, incentivado pelo pastor. Com vistas a
proteger sua imagem perante a família, mantém o que descreveu como “namoros de
esquina”, encenando uma personagem que ocultaria seu verdadeiro eu, homossexual,
exibindo aos vizinhos e comunidade suas conquistas femininas. A estratégia ressalta sua
masculinidade e produz uma dúvida sobre sua sexualidade. Assim, afirmou: “ninguém
121
tinha certeza de nada”. Apesar disso, ele interpreta os namoros com mulheres como um
uma satisfação social - decorrente do temor do preconceito, caso sua situação fosse
revelada - que Jesus um dia iria “quebrar”. Assim, recorrendo ao jargão religioso, ele
externou sua percepção de que Jesus cuidaria das circunstâncias para que pudesse se
assumir, deixando de lado máscaras que não correspondiam ao ‘verdadeiro eu’.
120
Victor converteu-se na Igreja Nova Vida, já visitou a Assembléia e hoje é de uma pequena comunidade
neopentecostal, tendo desempenhado nessas igrejas cargos diversos. Até os 14 anos, foi adepto de candomblé,
religião de sua família. A história de sua conversão, em suas palavras, está intimamente articulada a sua
passagem por esta religião. Por causa da “desobediência aos santos” teve um tumor na cabeça. À iminência de
ser operado, Victor procurou uma igreja evangélica (Nova Vida), levado por uma vizinha. Naquele mesmo
culto foi curado do tumor e também de um estado depressivo do qual não saía há tempos. Na Nova Vida
permaneceu por dez anos, tendo sido batizado nas águas e recebido o batismo no Espírito e o dom de curar.
No atual ministério, onde está há dois anos, teve fortes experiências com o Espírito Santo, estas traduzidas em
desmaios, visões, além de intensas sensações corporais (quentura no corpo, arrepios e outras) durante o
batismo do Espírito.
121
O relato coloca em evidência que o jogo de gerenciar os conflitos por meio do ocultamento de informação
relativa à sexualidade é potencialmente mais arriscado quando ocorrem experiências afetivo-sexuais com
parceiros que pertencem à rede de vizinhança ou ambiente religioso. Nesse sentido, estratégias refinadas são
empregadas pelos atores, com vistas a minimizar o perigo iminente da revelação.

238
Acompanhando a análise de Duarte (2005), sobre os paradoxos da adesão/
pertencimentos religiosos na contemporaneidade, os relatos analisados elucidam as
complexas e múltiplas situações, próprias do mundo moderno, em que freqüentar uma
congregação não envolve necessariamente um continuado sentimento interno de
compartilhamento dos valores ou crenças cultivados no espaço religioso (Duarte, 2005:
142). Sugerem a existência de complexos roteiros religiosos, expressos na possibilidade de
combinações e convivências entre mapas culturais conflitantes (Duarte, 2005: 153). Nos
casos analisados, não se rompe com a religião, mas se emprega soluções singulares para os
descompassos entre estilos de vida abraçados e a adesão religiosa. Há margem para
interpretações pessoais (ou passagens), embora nessas narrativas, elas evidenciem o
complexo ônus psicológico da contravenção de dogmas religiosos (Duarte, 2005: 156). O
que salta aos olhos é que, ainda que as concepções cultivadas no ambiente religioso
permaneçam como um pano de fundo de valores, o comportamento sexual é regido por uma
ênfase no hedonismo e no privilégio da escolha e satisfação pessoal. Os atores envolvidos
no dilema de conciliar suas inclinações sexuais com a vida religiosa movem-se menos no
sentido da conversão - leitura dramática do passado - do que das justificações religiosas:
“as mensagens religiosas relativas ao controle comportamental ou ao ethos privado
parecem funcionar para os sujeitos sociais mais como justificações (paradoxais, porque
inconscientes) de suas adesões pessoais; seja sob a forma de desobediência pontual aos
preceitos de uma religião já assumida, seja sob a forma de uma substituição/ alternação
religiosa, na direção de uma melhor adequação ao estilo de vida abraçado” (Duarte, 2005:
167).
A análise iluminou, contudo, as formas como os meus entrevistados lidam com a
tensão entre disposições sexuais e valores religiosos. Em primeiro lugar, é relevante
observar o lugar social ocupado pelos entrevistados em cultos e igrejas. Na reconstrução de
suas trajetórias religiosas chama atenção, uma prevalência dos informantes em “ministérios
de música” (coordenador de louvor, solistas ou cantores), “ministérios de interseção/
libertação” (funções de obreiro ou auxiliar de pastores) e “ministério de jovens” (alguns
foram coordenadores de “juventude” ou “escolas bíblicas”). Há também projeto
missionário de pastorado, como era o caso do informante Victor e Bruno. Todos os

239
entrevistados ocuparam cargos/ funções ligadas ao exercício do “dom da música” ou
participaram em atividades rituais de “cuidados espirituais”. Apesar disso, o momento mais
recente é marcado pelo afastamento de cargos eclesiais. Explicações apresentadas para o
abandono da vida eclesial estão relacionadas ao exercício da sexualidade contrário aos
ditames religiosos. A afirmação de Bruno sobre sua ‘saída de obreiro’ é ilustrativa: não
queria “sujar a imagem da igreja”. Outros referiram a uma situação de ‘apartamento de
Deus’, mediante a percepção da necessidade de “melhorar a vida espiritual”, de “orar
mais”, de ter mais “intimidade com Deus”. Há relatos do temor das sanções institucionais,
em especial o receio de “ficar no banco”. Essa expressão descreve uma situação de
liminaridade na congregação, implicando o afastamento de atividades ou funções rituais
provisoriamente, decorrente de práticas em desacordo com a doutrina. Ela implica o
reconhecimento coletivo de uma condição de ‘impureza’, que desautoriza a execução de
atividades ‘sagradas’. O término “do banco” é concomitante ao processo de purificação
ritual pelo qual o crente deve passar para retomar ao cotidiano da vida religiosa. A
categoria elucida sobre as tensões presentes no desafio às normas religiosas e processos de
disciplinamento, que podem envolver ainda o “desligamento”/ expulsão da denominação ou
ainda advertências, aconselhamentos e outras formas de cuidado pastoral. Ainda que não
haja uma relação causal entre o ingresso numa carreira homossexual e a “saída da obra”, ela
é apresentada como uma “justificação”/ negociação da realidade (Duarte, 2005) por meio
da qual sujeitos interpretam fatos e eventos ligados à vida religiosa em relação com os
percursos afetivo-sexuais. Na reconstrução da trajetória, há uma representação do momento
de adesão ao culto como de maior fervor religioso, implicado na atitude de contenção, na
busca de santidade e de adequação aos modelos de comportamento presentes no culto.
Em relação ao cuidado pastoral, o indivíduo pode ser exortado a participar de
libertações e tratamentos. Por outro lado, recebe exortações à regeneração moral, como
aquela empregada pelo pastor ao nosso informante, baseada na pressuposição de que se ele
não ‘mudasse’, ‘morreria de AIDS’.
Os relatos sobre as relações familiares assinalam que há tensões e negociações
advindas da crítica à conduta sexual dissidente da norma heterossexual. Revelou-se a
existência de um ambiente social avesso às práticas homossexuais, que enseja formas de

240
gestão de si complexas, baseadas no cultivo do segredo e na gestão pelo silêncio. A
homossexualidade, nesse contexto, constitui um segredo íntimo, cuja posse faz com que o
indivíduo se sinta separado e diferente, caracterizando uma distância social subjetivamente
sentida (Goffman, 2001: 133). Apontam nesse sentido, declarações dos entrevistados sobre
a necessidade de esconder a homossexualidade, pelo medo de ser expulso de casa, da
reação dos pais, pois sabiam que estes não aprovavam, achavam uma aberração, uma
coisa pecaminosa, uma sem-vergonhice. Em contraposição, declarações sobre as sucessivas
tentativas de parar (e abandonar a homossexualidade) e o desejo de levar uma vida
normal, sugerem um conjunto de experiências semelhantes, relativas ao aprendizado social
do estigma sexual. Na reflexão sobre as trajetórias pessoais, percebe-se a prática da
homossexualidade como uma coisa errada, que originava sentimentos de vergonha e
culpa. Essa fala ilustra como o sentimento de vergonha reporta uma dupla censura: interior
e exterior. Norbert Elias chama a atenção para o embricamento dessas duas censuras, em
sua definição sociológica sobre o sentimento da vergonha: uma espécie de medo da
degradação social, um embaraço “diante da superioridade de outras pessoas”, uma
percepção de fragilidade face aos outros. “A vergonha tira sua coloração específica do fato
de que a pessoa que a sente fez ou está prestes a fazer alguma coisa que a faz entrar em
choque com pessoas a quem está ligada de uma forma ou de outra, e consigo mesma, com o
setor de sua consciência mediante o qual controla a si mesma. O conflito expresso no par
vergonha-medo não é apenas um choque do indivíduo com a opinião social prevalecente:
seu próprio comportamento colocou-o em conflito com a parte de si mesmo que representa
essa opinião” (Elias, 1993: 242). Nesta perspectiva interpretativa, culpa (enquanto
expressão de censura interna) e vergonha são emoções interdependentes, que expressam
tanto tensões subjetivas como interpessoais.
Algumas dessas vivências foram relatadas com mais ênfase pelos entrevistados
socializados no ambiente religioso. É verdade, contudo, que mesmo nas falas dos
informantes que não foram socializados em religiões cristãs, a desaprovação da família com
relação à homossexualidade também é recorrente. Vale frisar que a constituição de si como
homossexual em um ambiente refratário a essa prática enseja soluções singulares,
associadas às trajetórias pessoais, à etapa da vida em que o sujeito se encontra, ao suporte

241
de redes sociais nas quais está inserido, implicando em negociações e na produção de
justificações que rejeitam a idéia de ‘libertação’ do desejo, por meio de um diagnóstico
sobre o fracasso da cura. Por outro lado, se produzem então justificações como a
“permissão divina”, baseada na convicção de que Deus não pode (ou não quer) curar aquilo
que não é doença, mas uma “essência”, uma “coisa natural”. Em alguns casos, cultivam-se
interpretações conflitantes. Victor e Fábio acreditam que Deus pode inclusive “curar a
sexualidade”, pois Ele “opera todo milagre”. O diagnóstico do insucesso da libertação
adquire o sentido de um “fracasso provisório”, consistindo a cura em um projeto a ser
realizado no “tempo de Deus”. 122
Outro aspecto recorrente diz respeito às soluções encontradas pelos informantes
quanto à relação instituição-fiel e divindade-fiel. Igrejas, denominações, doutrinas e
“religiões” de uma forma geral, podem ser percebidas como instâncias reguladoras mas a
interação fiel-divindade é apaziguadora, consoladora, produzindo sentimentos de aceitação
ou bem estar. A máxima “as instituições discriminam”, mas Deus “consola”, “trata” e
“abençoa” é exemplar. A despeito dessa interpretação foi recorrente também a percepção
de certo apartamento das coisas de Deus, por meio da saída da obra. Relatos enfatizam a
necessidade de melhorar a relação com Deus, baseada na percepção de que atualmente tem
sentido menos a presença do Senhor, tem orado menos, tem havido uma perda de nível
espiritual. A relação com Deus aparece perturbada, implicada no menor serviço na Casa do
Senhor. A expressão que reporta a esta percepção é a de ter “relaxado” nas questões
espirituais. As experiências com o sexo oposto são interpretadas por todos como uma
satisfação social, fruto de pressões familiares para o casamento ou namoro. Uns declaram a
falta de “desejo” ou “tesão” pelo sexo oposto. Outros afirmam a homossexualidade como
um querer mais profundo, contra o qual não há como lutar. 123

122
Mafra desenvolve a noção de fracasso provisório ressaltando que a não obtenção de cura no universo
pentecostal pode ser tomada como um estado provisório que aponta para a metafísica do pentecostalismo.
Nesta religiosidade a batalha que se trava contra aqueles que seriam os enganos do demônio e suas artimanhas
adquire a forma de um “constante ir e vir entre processos de ‘libertação’ e ‘limpeza’, com relação ao mal, e a
busca e o ‘recebimento do Espírito’ e da ‘determinação divina’, com relação ao bem” (Mafra 2002: 217).
Segundo esta metafísica, a própria dinâmica da vida envolve uma série de vitórias parciais e fracassos
provisórios.
123
Aspectos da relação entre carreiras afetivo-sexuais e trajetórias religiosas em processos de construção de si
foram inicialmente elaborados e explorados por mim em artigo específico (Natividade, 2003).

242
Conforme já salientei, a respeito dos trânsitos religiosos é particularmente interessante
o relato de Giovani acerca de seu retorno ao culto afro-brasileiro em decorrência do namoro
com um parceiro adepto dessa crença. Os dois recorreram ao centro da avó de Giovani e
nele encontram suporte ao relacionamento. Fazem trabalhos juntos, obrigações para
resolver os possíveis conflitos do “casal”. O término dessa relação promove um retorno ao
culto pentecostal e a nova adesão de Giovani aos discursos religiosos sobre a sexualidade:
estaria ele sendo vítima da atuação do demônio? Apesar disso, sua solução é sincrética: a
despeito de não fazer uso dos procedimentos rituais do culto-afro-brasileiro, ele concorda
que a avó cumpra suas “obrigações”. Este relato mostra como processos de construção de si
são complexos e não implicam numa necessária linearidade e coerência.
A dimensão das alternações ficou evidente quando, no decorrer da pesquisa, tive
notícias dos informantes após a realização das entrevistas. Através de telefonemas ou
conversas informais era atualizado sobre novos acontecimentos. Fiquei sabendo que Victor
tivera um retorno ao seu projeto missionário e ingressara na vida pastoral em uma
tradicional igreja pentecostal. Ele viajava com um grupo religioso itinerante e realizava
ministrações de libertação. A carreira religiosa ensejara novamente o projeto de
‘casamento” com uma mulher na igreja. Ronaldo, a quem encontrei em outras ocasiões,
numa das quais ele declarou-se “noivo” e prestes a se casar. Esses relatos sinalizam para a
importância de compreender as sutilezas da experiência religiosa em diferentes etapas da
vida que podem implicar em maior ou menor adesão aos valores e práticas religiosos.
Abordarei em seguida um distinto conjunto de depoimentos: daqueles que são
membros de igrejas convencionais e que se declaram em “luta espiritual” na esfera da
sexualidade no momento de realização da entrevista.

243
4. 2. O COMBATE DA CASTIDADE: ENTRE O DESEJO DA CARNE E A VONTADE
DE DEUS

O conjunto de entrevistas que focalizarei aqui se caracteriza pelo agrupamento dos


relatos em que os informantes declaram forte adesão aos princípios religiosos em torno do
exercício da sexualidade. Eles declaram enfrentar “batalha espiritual” na sexualidade e a
experiência religiosa importa na busca de adequação aos modelos existentes no culto
cristão. Embora a proposta seja buscar os nexos entre percursos religiosos e sexuais
subjacentes aos processos de construção de si, empregarei um distinto recurso analítico:
focalizarei as descrições e narrativas sobre a forma como eles empreendem essa luta,
priorizando não apenas os fatos e eventos da vida religiosa e da carreira afetivo-sexual, mas
também, as interações entre agentes religiosos e os sujeitos. Essa abordagem objetiva
elucidar formas de cuidado pastoral e a experiência dos sujeitos nesse contexto e etapa da
vida.
A análise dessas biografias mostrou que as trajetórias religiosas seguem uma espécie
de roteiro que abarca a socialização numa família adepta de crença/ religião cristã, com
prevalência de evangélicos; a migração de religião ou vertente quando há o caso de
passagem do catolicismo ao culto evangélico ou migração intra-religiosa; o afastamento da
religião ou diminuição das atividades na igreja, concomitante ao aprendizado social da
homossexualidade mediante o circuito por redes de sociabilidade gay; regresso ao religioso.
Conforme exploraremos adiante, em alguns casos, há o recurso a programas de
“libertação”, que envolvem aconselhamentos pastorais e em outros, a participação em
rituais de exorcismos. As entrevistas não constituem um material homogêneo, contudo, é
possível identificar algumas recorrências e salientar as nuances relativas às trajetórias
pessoais.
“Nascer no meio evangélico” e “ter uma introdução à Palavra” foram expressões
utilizadas para descrever a criação em família de adesão protestante, cujos valores são
estruturantes na visão de mundo dos entrevistados. A identidade religiosa apresentou-se
como crucial na definição de si dessas pessoas. Sobretudo, na reconstrução de eventos e
cenas que importaram na escolha do atual pertencimento religioso. Fazem parte desses

244
eventos o “apelo” ou “chamado” em uma situação específica em que prevalece a emoção de
sentir-se acolhido, da mesma forma que se enfatiza a percepção da religião como portadora
de eficácia na resolução de sofrimento, angustias e aflições. Vejamos como essas
dimensões são presentes nos relatos feitos pelos sujeitos sociais.
Henrique (branco, quarenta e quatro anos) foi criado numa família católica praticante,
mas teve contato com a Assembléia de Deus a partir da conversão de uma irmã. No
catolicismo fez parte de grupo jovem, crismou-se e “desviou”. Depois desse período
envolveu-se com “homossexualismo”, ficando “sem religião”. Na reconstrução de sua
biografia, contudo, há uma lacuna resultante de sua dificuldade de expressar seus
sentimentos em torno das experiências com pessoas do mesmo sexo. Ele argumentou que
não queria trazer à memória circunstâncias e fatos envolvidos em sua carreira amorosa-
sexual em decorrência das emoções que a situação poderia evocar. Não desejava cultivar
um comportamento “saudoso”, pondo-se a reviver coisas que poderiam abalar suas atuais
convicções. Afinal, tratava-se de um “passado” que ‘não lhe fez muito bem’. Limitou-se a
dizer que passou quase ‘noventa por cento de sua vida’ “no homossexualismo”. E que,
apesar disso, nunca vivera bem com essa escolha pelo “lado religioso”. Essa compreensão
era resultante de uma sensação subjetiva de que era um comportamento que desagradava e
entristecia a Deus:

A gente sabe pela própria Bíblia que é uma coisa que vem em desagrado a Deus. São
várias passagens que falam. E por mim mesmo... (...) não sei, se é porque eu fui criado
também dentro da Igreja e a Igreja Católica também não admite esse tipo de
comportamento (...) acredito que nenhuma Igreja que se diz cristã venha a concordar
com um comportamento desses. E eu, por mim mesmo, eu não era satisfeito com isso.
Embora pudesse me trazer prazer, mas não era algo que me trazia paz, me trazia...
Entendeu? Como têm muitas pessoas que são felizes (Henrique, 44 anos, funcionário
público, Assembléia de Deus).

Apesar de reprovar a homossexualidade, o catolicismo é percebido por ele como uma


religiosidade frouxa demais, que não oferece recursos ideológicos para que uma pessoa
pudesse mudar “coisas erradas”. A crença evangélica, por outro lado, permitia que se
trilhasse um novo caminho. Na biografia de Henrique, o retorno ao religioso ocorre aos
vinte e quatro anos, cedendo aos convites da irmã para que freqüentasse a Assembléia de

245
Deus, “sem compromisso”. A reunião dos “novos convertidos” na Assembléia de Deus foi
o primeiro passo, seguindo-se do batismo na igreja. Paralelamente, o reencontro de uma ex-
namorada na denominação ensejou uma esperança de que Deus estivesse lhe abrindo um
novo destino. Essa sensação era contrastante com a percepção de que já se decepcionara
demais no “mundo gay”, considerando-o excessivamente promíscuo. O dilema de já ter
completado trinta e cinco anos e sentir-se solitário, dadas sucessivas “decepções amorosas”
com homens, era acrescida de sua percepção de si como uma pessoa “muito família”, que
não era chegada à boate, circuitos gays ou vida noturna, embora já tivesse tido sua época de
“noitadas”. O recente “casamento” e a emoção da gravidez da esposa constituíam uma
prova de que estava no caminho certo.
Adriano também mencionou a migração do catolicismo ao culto pentecostal e
períodos de afastamento e proximidade da religião. Natural do Estado do Maranhão, aos
trinta e dois anos, um marco em sua trajetória é a migração para o Rio de Janeiro, onde
descobriu “o mundo gay” e passou a conhecer parceiros pela Internet. As expectativas
familiares de casamento, somadas a sua percepção de estar “ficando velho”, também foram
citadas como deflagradores de angustia. O medo da solidão e as sucessivas conversas
familiares sobre seu estado civil, deixavam-no receoso quanto ao preconceito. Circulavam
comentários que alimentavam a suspeita sobre sua orientação sexual na família. Afinal,
“homem que passa dos trinta e não casa é veado”. Por outro lado, havia uma visão
profundamente negativa acerca dos desejos homossexuais, que aprendera ser “errada”,
“uma abominação”. O recurso empregado por Adriano para lidar com esse dilema é a
reaproximação de um ambiente religioso, visto que estava afastado da igreja. Está
freqüentando uma congregação da Assembléia de Deus no subúrbio de Madureira, e
também “paquera” uma mulher evangélica do trabalho, que demonstra interesse por ele,
cultivando a esperança de com ela vir a se casar.
Se, por um lado, no conjunto das entrevistas, prevalece uma percepção negativa do
desejo sexual, a religião oferece recursos rituais e ideológicos para superar o sofrimento.
Como crença que expurga todo pecado, torna-se atrativa ao colocar no centro do ritual o
relato do “regenerado”, do “liberto”, propiciando o desenvolvimento de esperança e alívio.

246
A este respeito, um entrevistado relatou, recorrendo à noção do “apelo”, como é tomado
pelo choro, ao sentir no culto, o “chamado” para “aceitar a Jesus”:

Foi no final do ano passado. Tava havendo uma guerra espiritual muito grande
na minha vida. (...) Eu fui. Fiquei assistindo ao culto, e o líder tava
ministrando, falando das obras que Deus fez na vida dele, porque ele era
viciado em drogas, era casado e não tinha amor pelos filhos dele. Ele cometia
adultério também. Ele começou a ministrar a Palavra de Deus, dando o
testemunho dele também. E fez o apelo, que é quando você é convidado a estar
aceitando a Jesus se você estiver sentindo essa necessidade no seu coração. E
eu tinha fechado os olhos pra orar, como ele havia pedido. Eu chorava muito.
Mas eu não sabia por que eu chorava tanto. E ele falava, "se você aceita a
Jesus, levante a sua mão". E eu não conseguia levantar. E ele falava, "o
inimigo, ele tá com um peso na sua mão, porque aqui está havendo uma batalha
e ele não quer te perder. Então ele tá colocando esse peso na tua mão". E era
literalmente um peso, porque eu não estava conseguindo levantar a mão de
jeito nenhum. E até hoje eu nunca vi um apelo que demorou tanto. E ele falava:
“eu não vou terminar, não vou parar, enquanto você não se converter”. Ele
falava pras pessoas: “porque Deus tá dizendo que hoje é o dia, que hoje você
vai ter a transformação na sua vida”. Foi quando eu, depois de uns dez minutos,
levantei a mão e terminou o apelo. Eu chorei muito, quando cheguei ali na
frente. Eu me senti acolhido desde o primeiro dia quando eu me converti, e dali
foi a concretização da promessa de Deus na minha vida (Sandro, 20 anos,
auxiliar administrativo, Igreja Batista).

O relato é de Sandro, vinte anos, morador da Pavuna, e atualmente estudante de um


curso superior em uma faculdade particular. Trabalha durante o dia e freqüenta os cultos
evangélicos no horário noturno, alternando-os com os dias em que ‘tem’ de ir à escola. Tios
e avós eram envolvidos com espiritismo e migraram ao pentecostalismo. Em sua residência,
ele e o irmão são evangélicos e a mãe está tendo uma aproximação gradual da denominação
que freqüentam. Contudo, o emprego da noção de apelo, em sua fala, deve ser analisado. O
testemunho do líder religioso não é apenas um convite à sua salvação, mas ele é um relato
compartilhado (Mafra, 1997), a partir do qual o informante decide aceitar a Jesus. Nesse
sentido, o rito cumpre seu objetivo persuasivo, o que é realçado quando Sandro infere que a
transformação que se processou na vida do orador é aquela que poderá constituir-se na sua.
Ele sente que seu problema (“o homossexualismo”) poderia também ser entregue a Deus, e
após essa constatação, decide aceitar a Jesus. O cumprimento dos amigos e a sensação de

247
acolhimento constituem o sinal de que esta é a decisão acertada. Ali, acredita Sandro, as
bênçãos sobre sua vida ‘começaram’.
A expectativa de abandonar as práticas sexuais com outros homens é confluente ao
sentimento que este e outros entrevistados cultivam sobre a transgressão de uma norma
familiar. Conforme argumentei na seção anterior, a prática homossexual constitui um
segredo íntimo e a percepção de si como portador de uma diferença negativa é uma
recorrência nos relatos analisados. O desejo de ser “normal”, e não mais ostentar uma
‘diferença’ encontra na religião evangélica, cuja ênfase está na mudança e transformação,
um solo fértil. Em todos os casos, o “respeito” e apreço à família são colocados como
fundamentais na rejeição da vivência do prazer hedonista. Segundo esta visão, a submissão
ao plano de Deus (o casamento heterossexual) importa em sentimentos de aprovação por
Deus e pela família em oposição a um comportamento egoísta, centrado numa visão
equivocada do sentido da vida. Vejamos como estes dilemas estão presentes em alguns
relatos.
Glauber, negro, vinte e cinco anos, reside com a avó, interior do Estado do Rio de
Janeiro. Atualmente ele vive da venda de adesivos evangélicos em uma estação ferroviária.
Ele já trabalhou como “coveiro”, como “pintor de paredes” e também “com carpintaria”.
Conheceu as drogas e a prostituição desde cedo. Mas aquilo ocorrera devido a sua índole:
uma força diabólica o arrastara para outro lado, fazendo-o conhecer os prazeres do mundo,
para em seguida ‘destruí-lo’, já que ‘o salário do pecado era a morte’. Depois de ‘sujar-se’
numa vida de pecados, Deus o levou de volta à igreja, que conhecera muito pequeno,
levado pela avó e mãe. Jesus estava fortalecendo sua vida e implantando nele o sonho
antigo de ter uma família. Ele descreveu perceber-se entre dois “entendimentos”: um “do
corpo” - que o dirige para experiências homossexuais - e um “divino”, que é a “ordenança
de Deus”, para “casar com uma mulher”. A proibição bíblica constava do livro de Tiago:
era um duplo “ânimo”, uma “dupla personalidade”, um duplo “querer”. Uma “vontade
terrível” queria arrastá-lo. Enfrentava o desafio orando, e então os anjos do Senhor
acampavam ao seu redor. Deus estava ‘mexendo em suas lembranças’. Às vezes tinha nojo
do homossexualismo. Deus estava fazendo uma “grande obra em sua vida”, que culminaria
na extirpação daquele desejo horrendo.

248
A percepção do informante de estar cindido entre dois desejos - um do corpo e outro
do espírito divino; um da carne corrompida e outro de uma forca divina; um maligno e
outro de Deus - é exemplo do modo como noções presentes na cosmologia oferecem um
sentido à experiência. O desejo sexual é significado a partir das referências religiosas,
constituindo parte da batalha espiritual. Nessa visão de mundo, haveria as coisas de Deus
(do Espírito) e as coisas do diabo (da carne). Entre esses dois mundos, o crente é instado
permanentemente a optar por qual caminho seguirá, atentando para sua responsabilidade
individual.
Do ponto de vista de certo aprendizado da sexualidade, os relatos são variados.
Henrique e Adriano reportaram que a primeira experiência homossexual ocorreu na
infância, significando-a como um “abuso”, perpetrado por um parente mais velho. A
iniciação sexual inter-geracional tem sido um roteiro sexual presente nos relatos dos
sujeitos sociais que entrevistei. Contudo, aqui, ela é significada a partir de categorias
disponíveis em um cenário social mais amplo, apropriada pelo discurso religioso (as noções
de “abuso” e “violência”, que incidem sobre sujeitos vulneráveis). Este “abuso” teria
originado os desejos perversos por pessoa do mesmo sexo. Apesar de não ter obtido um
relato exaustivo sobre os eventos ligados ao percurso amoroso-sexual dos entrevistados,
algumas pistas possibilitaram elucidar a forma como o desejo é significado por diferentes
atores sociais.
Aos treze anos Glauber teve contatos homossexuais com um colega de escola e aos
dezesseis começou a “fazer programa” na Cinelândia, levado por um amigo. Paulo, entre os
onze e quatorze anos manteve um “caso” com um primo mais velho e, posteriormente, com
um tio. Sandro percebeu-se portador de um desejo ‘diferente’ a partir de brincadeiras
vivenciadas com meninos de sua rua. Em situações de “masturbação coletiva” percebia que
os desejos de seus colegas eram heterossexuais e os seus eram homossexuais. Quando
começou a trabalhar, resolveu assumir-se, pois passou a ter “facilidade para conhecer
outros rapazes”, inclusive marcando encontros pela Internet.
Sérgio descobriu a “pegação”, levado por um colega a uma praia em que
homossexuais freqüentavam. Ele descreve esse aprendizado por meio do qual passou a
procurar parceiros em locais de sociabilidade homossexual:

249
O Fulano se envolveu com homossexualismo. Ele era da igreja. (...) Ele me
levou numa praia que tem a área que os gays freqüentam. Ele me levou pra
conhecer, pra ver. E eu acho que nessa época foi quando eu já tava começando
a me envolver com eles. Hoje eu sei mais ou menos o que é, que se chama
“pegação”. Eu sou muito curioso, sabe? Aí a gente chegou lá e ele me mostrou,
apontando: - olha só ali. Ele me chamava pra ir a boates e falava: - olha só o
relógio que eu ganhei. Olha a roupa que eu ganhei. Falava. Mas isso nunca me
interessou. Aí eu conheci um rapaz na Praia muito legal. (...) Ele tava sentado
na Praia, nas pedras. Saímos. Fomos fazer caminhada. Tinha um lugar deserto.
A gente parou e daí teve uns momentos de carícia. O relacionamento que eu
tive com ele foi mais ou menos assim. Carícia mesmo. Beijo na boca não tinha
porque eu não queria. A gente tirava a roupa toda e namorava e depois
masturbava um ao outro. Depois eu conheci outra pessoa (Sérgio, 27 anos,
desempregado, Igreja Batista).

O relato desses eventos assinala a variedade de roteiros disponíveis para a atribuição


124
de sentido ao desejo sexual. Conforme a análise de Gagnon, a conduta sexual é menos
resultante de estados internos do que de um contexto (Gagnon, 2006: 219). Acompanhando
essa perspectiva, os relatos obtidos assinalam a riqueza das situações apreendidas. Sandro,
por exemplo, enfatizou a percepção de seu desejo como ‘diferente’ da maioria dos
indivíduos que compõe o network que circulava naquele momento, promovendo um auto-
estranhamento na definição de si. A cena da masturbação coletiva é o contexto no qual
interação e vida mental se conectam: são jogos eróticos que fornecem instruções e
procedimentos sexuais. Por outro lado, o ingresso no mercado de trabalho propicia o
surgimento de novas situações, que podem ser percebidas como sexuais, como paqueras,
olhares, cantadas. Há ainda a narrativa de Sérgio sobre a instrução de pares sobre os
benefícios e recompensas das trocas sexuais entre sujeitos de diferentes estratos sociais e
gerações. Tudo isso é dito aqui para enfatizar que essas instruções e regras engendram
complexos processos de construção de si, sobretudo, ligados à gestão da vida religiosa e da
sexualidade.
124
Tomo aqui a idéia de roteiro como formulada por Gagnon (2006), para quem o aprendizado social da
sexualidade importa na análise de três planos: o intrapsíquico (percepção individual), o interpessoal e o
cenário cultural (planos de ação que existem na vida coletiva). O programa teórico e analítico do autor
assinala que a atribuição de significados sobre a sexualidade é resultante de instruções recebidas pelos sujeitos
sociais em contextos específicos. Narrativas sexuais são desenvolvidas a partir de uma cena. O aprendizado
da sexualidade está imbricado a instruções recebidas ao longo da vida sobre como agir, o que sentir e fazer e
as conseqüências sociais de suas escolhas e ações. Sistemas de instrução sobre a sexualidade propiciam
versões do que é bom ou ruim, lícito e ilícito, assinalando a articulação da vida mental às formas de interação.

250
Como nas biografias analisadas anteriormente, as experiências com o sexo oposto são
relativamente esparsas, de uma forma geral foram relatadas como “namoros” com garotas
na comunidade religiosa. Elas podem envolver “namoro forte, sem sexo”, porque “as
meninas evangélicas levam a sério a religiosidade e o desejo de casar virgem”. Um
informante declarou não gostar ou sentir desejo por mulher. Glauber contou que a única
“relação” com uma mulher ocorreu em uma ocasião que pagou “dez reais” a uma garota de
programa para ter relação, “matar sua curiosidade”, “ver como era uma mulher” -
experiência que considera: “não foi muito legal”. Adriano teve várias namoradas, mas
“ficava só na amizade”. Henrique tinha medo de “não conseguir”, porém aos trinta e seis
anos “viu que podia se relacionar sexualmente com uma mulher” ao ter a primeira transa
com a namorada, hoje sua esposa.
A rejeição consciente de uma auto-identificação como “homossexual” contrasta com
a percepção de uma ‘preferência’ pelo mesmo sexo, passível de reparo divino. Contudo, em
algumas ocasiões o desejo emerge forte, sob a forma de “provações” e “tentações”, de um
pendor da carne ou de “ciladas”, “armadilhas” plantadas pelo demônio. Enquanto Paulo
identificou-se como um heterossexual buscando a solução para a homossexualidade, Sérgio
comentou não conseguir definir se era gay ou não. É certo que uma “luta espiritual” ocorria
contra esse “desvio de comportamento involuntário”, algo ele que não escolheu.
A concepção de que uma força espiritual ‘leva’ aos desejos homossexuais é descrita
por Glauber. Um “bombardeio espiritual” procura afastá-lo da igreja, pois não quer que ele
“ouça a Palavra de Deus”. Necessitava de oração e comunhão com o Espírito Santo.
125
Somente prostrando-se diante do Senhor, ajoelhado, com a “boca no pó”, poderia obter
renovação.
Tomei seu depoimento em um bar, no bairro de Madureira. Após a entrevista, com o
gravador desligado, ele fez revelações muito pessoais, pois se sentiu mais à vontade.
Contou que havia feito “um programa” na noite anterior em troca de uma “ajuda” quando
passava pelo Largo da Carioca, no Centro da Cidade, seguindo dali para um hotel com um
senhor “de cabelo branco”. Como não tinha “bom relacionamento” com a família,

125
“Boca no pó” foi expressão empregada por alguns para descrever a atitude de prostrar-se de joelhos ante a
divindade.

251
enfrentava dificuldades financeiras e acabou no motel com um parceiro bem mais velho do
que ele. Ficava dilacerado e entristecido por dar “brecha ao diabo”.
A adesão a idéia de “luta espiritual” na sexualidade, contudo, não comporta apenas a
dimensão individual, implicando também dimensões de um cuidado pastoral. Uma situação
narrada por Sérgio após o relacionamento com uma namorada ter “esfriado” é ilustrativa.
Espontaneamente ele procurou o pastor que lhe fez várias perguntas para saber “se ele era
gay ou não”, concluindo que não havia evidência sobre sua homossexualidade:

Ele fez várias perguntas pra saber se eu sou gay ou não. (...) Ele perguntou o que
eu sentia quando eu via um homem, quando eu pego num homem, seguro na mão
de um homem. (...) E eu expliquei a ele. Eu falei a ele o que acontece. (...) Falei
pra ele que eu tenho uma coisa comigo, desde assim, mais novo, mais
adolescente, eu gosto de ver um corpo masculino. Eu acho muito bonito um
corpo masculino bem feito, aqueles homens musculosos, essas coisas assim. Um
corpo bem legal. É isso que me chama a curiosidade, porque eu não sou assim. É
o que eu gostaria de ser. Eu até digo pra você, eu tenho muita vontade de chegar
e pegar num músculo daqueles homens musculoso assim, pegar num peito assim.
Eu tenho muita curiosidade disso. Eu quero saber como é que é, eu quero sentir
como é que é. Entendeu? Foi isso que eu falei pra ele. Eu vejo isso, se eu vejo um
homem bonito, eu digo é bonito mesmo, se eu vejo que tem um corpo bonito, tem
o corpo bonito. Ele falou: pelo o que você me conta, eu não vejo que você seja
gay. Você não é gay. Ele me perguntou se eu vejo uma mulher bonita o que eu
sinto. Eu gosto de ver mulher bonita, essas coisas todas. Daí que ele falou, você
não é gay, você tem algumas coisas que precisa ser trabalhada, tem que trabalhar
com você em algumas áreas. Mas você não é. (...) Eu comecei a fazer até um
encontro com ele. Tinha toda quarta-feira, mas depois veio o carnaval, ele entrou
de férias em abril, essas coisas todas e aí acabou depois de não ter mais tempo.
(...) No início era uma hora só. Não era muito tempo não. (...) Ele ia escrevendo
no papel, ele ia lá e anotava. Quando você era criança como é que era isso, o teu
relacionamento, como é que foi na escola, o relacionamento com parente, tio,
primo. Tudo isso ele perguntava. (...) O relacionamento com minha mãe, com
meu pai, o que as pessoas achavam de mim. Eu falei pra ele que o que me
machucava muito era que as pessoas, alguns colegas duvidavam da minha
personalidade pelo meu jeito de ser, meu jeito de ser sensível, de gesticular
muito. Apontavam muito: - Ah, ele é gay, olha o jeito que ele fala. (...) E eu me
sentia mal quando apontavam desse jeito. Até eu me tornei uma pessoa tímida
por isso. (...) Aí ele começou a falar que certas coisas ‘tavam’ acontecendo
comigo era por que eu já ‘tava’ com problemas na minha cabeça. Achando que já
era tal coisa, que eu já era gay mesmo. Aí ele falava: Você já tá vendo isso em
você, você já tá aceitando que você é gay e que você tem que procurar alguém
pra você do mesmo sexo porque é o que as pessoas dizem (Sérgio, 27 anos,
desempregado, Igreja Batista).

252
O depoimento evidencia o impacto das tensões e interações na percepção de si. A
religião é oferta que colabora na resolução de conflitos interiores decorrentes dos estigmas
sexuais vividos e da concepção de si como ‘inferior’. O dilema “ser ou não um gay” é
promotor de uma crise relacionada também ao sentimento de não ser um bom cristão e
ceder aos ditames da “carne”. A situação narrada aponta para uma terapêutica religiosa que
se apropria da noção de confissão. Conforme analisei em outro capítulo, o aconselhamento
implica na exortação ao exame de si enquanto técnica de produção da verdade. A confissão
dos sentimentos, das emoções e experiências vivenciadas na sexualidade implica, contudo,
um diagnóstico. O pastor concluiu que ‘ele não era gay’. As sessões realizadas de
aconselhamento tinham a função pedagógica de colocar em evidência uma suposta gênese
do comportamento desviante da norma religiosa.
Outra forma de confissão são os testemunhos que reportam à vida anterior do fiel. É o
caráter exemplar do passado que é posto em evidência, através de uma história que contém
um ensinamento moral, um apelo, uma sugestão prática, uma espécie de conselho
(Natividade e Gomes, 2006). O testemunho de sua condição de liberto da
homossexualidade foi uma forma de Adriano compartilhar a ‘transformação’ pela qual
passava. Da mesma forma, Sandro subiu ao púlpito da denominação que freqüenta para
atestar sua fé e demonstrar publicamente como o “Deus do impossível” pode qualquer
milagre, inclusive resgatar uma pessoa do homossexualismo.
Na igreja, apesar de nem sempre revelar fatos e informações sobre sua vida sexual, o
sujeito pode ser passível de conselhos, admoestações, indicações de comportamento
calcados na avaliação que outros fazem de seu desempenho de gênero. A este respeito um
informante fez um relato que narro a seguir.
A cena se dá em uma conversa entre nosso informante e um casal de amigos quando
os três voltavam de carro de uma reunião. O tema da sexualidade aparece sob a forma de
uma crítica feita pelo amigo a sua ‘timidez’ com as mulheres:

Sérgio, você precisa ser mais malicioso. Eu falei: Malicioso? Ele: É, você tem
que ter mais malícia nas coisas, você precisa ter malícia. Você tem que pegar
umas mulheres e falar assim: oh, mulher gostosa. (...) E a mulher dele: quer
parar com isso! E ele: É isso mesmo, mulher gostosa, eu adoro a bunda da
minha mulher. E ela: Meus Deus, que vergonha. E eu adoro outras coisas dela

253
também. É muita gostosa a minha mulher. E ele falava: É isso que mulher
gosta, Sérgio. Aí eu: Tá bom, eu vou ser mais malicioso. E ele: É isso que você
precisa. Então, eu tinha um ótimo relacionamento com o pessoal da Igreja
(Sérgio, 27 anos, desempregado, Igreja Batista).

O papel de conquistador não desempenhado aparece como um indicativo de que algo


deveria ser corrigido em seu comportamento. Não se trata aqui da cura divina, mas da
representação de um papel socialmente imputado ao indivíduo do sexo masculino. Em
outras ocasiões, amigos da igreja o incentivavam a “pegar uma garota” porque ela ‘gostava
dele’.
Nas narrativas analisadas, não é possível deixar de mencionar a existência de outra
personagem, a namorada. Figura a quem se pode recorrer na tentativa de obter ajuda para
sair da homossexualidade. A confissão do problema redundou na decisão de Silvana em
ajudar Sérgio a “sair dessa”. A motivação é religiosa, consistindo em parte da prova a que
podem ser submetidos os sujeitos na luta espiritual. Após o fim do relacionamento com um
tenente do exército casado e a decepção amorosa, Sérgio entrou em luta novamente contra
suas inclinações pessoais e ‘botou propósito’ de ‘querer namorar’, retornando a um antigo
namoro e confessando essa parte de sua vida. Silvana já ouvira fofocas sobre a
possibilidade dele ser gay, mas decidiu que isso não iria impedir que namorassem, afinal,
ela estava ali pra isso, para ajudá-lo a sair dessa. Os dois choraram e resolveram ficar
juntos. Até que nova crise sucedesse e Sérgio decidisse romper e vir para o Rio de Janeiro
em busca de trabalho, deixando sua família e igreja em Recife. A ajuda feminina para sair
da homossexualidade também foi citada por Henrique, que confiou seu segredo a
namorada, recém convertida. Tudo se procedeu de maneira rápida, incluindo o casamento.
Henrique reconhece uma situação de guerra espiritual quando seu “ex-caso” quis ir ao seu
casamento. Ameaçou “fazer escândalo”. Mas felizmente não apareceu. Ele enfatizou a
necessidade de “vigiar”, pois se “der bobeira”, as coisas voltam a acontecer. Olhares na rua,
telefonemas antigos, muitos podiam ser os gatilhos para o desejo aparecer: uma foto de um
homem em um outdoor, a saudade de um antigo namorado. O diabo sabia muito bem como
mexer com os sentimentos de uma pessoa.
Apesar desse investimento no autocontrole, as recaídas podem ocorrer, como contou
Adriano, a partir de uma situação vivenciada recentemente. Ele estava sendo vítima de

254
cantadas de um rapaz no trabalho. A amizade dos dois abalou-se porque Adriano ‘não
estava aberto’. Um dia o amigo confessou o interesse. Ele decidira repudiar essa “cantada
de homem”. Estava pronto pra dizer: - o que é isso, cara? Ta me estranhando? Decidiram
conversar:

Ficou tarde e ele foi pra minha casa. Eu nunca gostei de muita brincadeira, e
ele fazia algumas coisas pra me irritar. Ah, eu nunca gostei de papinho de
bichinha, essas coisas. Ele sabia disso. Eu tinha um copo de maionese com uns
bichinhos e ele começou a dizer que parecia coisa de bichinha. Aquilo
começou a me irritar. Irritou tanto que eu estava com uma garrafa na mão e eu
dei um banho de água gelada nele. E ele: porra, cara? Como é que eu vou
embora agora? Eu disse: você faz o seguinte: eu seco a sua roupa no ferro. Aí
ele tirou a camisa e eu sequei. Ele tirou a calça e eu sequei. E quando eu estava
secando a calca dele, e ele estava só de cueca ele veio por trás de mim e me
abraçou. Aí eu empurrei ele, calma, calma. E nesse calma, calma começou. Eu
só sei que eu tremia mais que vara verde. Tremia, tremia, “que isso, cara? Tu ta
doido? Não, se afasta de mim! E nesse não, não, não... entendeu? (risos). Eu
não fiz nada. Ele na verdade é que fez. Ele baixou a minha cueca e fez lá sexo
oral em mim e acabou dormindo lá em casa, deitado no chão. Mas não
aconteceu nada além disso. E depois desse dia, aconteceu uma segunda vez”
(Adriano, 32 anos, auxiliar administrativo, Assembléia de Deus).

Não ter forças para resistir às investidas do rapaz é avaliado por Adriano como
indicativo de que necessitava de renovação espiritual, apesar de não ter tido “culpa da
situação”. Ele não pretendia envolver-se em um relacionamento gay e sentia-se abalado por
essa “fraqueza”. Considerava o fato como uma “prova”, afinal quando se busca trilhar o
“caminho do Senhor”, aí sim, ocorrem investidas de Satanás. Por isso, todo cuidado com o
tipo de pensamentos que se cultiva era pouco, consistindo numa luta espiritual enfrentada
cotidianamente. É preciso saber “desviar dos maus caminhos”. Uma situação limite foi
vivida por Paulo, que após o “compromisso com Deus” recebeu uma proposta de um rapaz
que desejara anteriormente. Definindo o ex-pretendente como um homem com quem
“formaria uma casa”, se “casaria”, teria um “relacionamento sério”, surpreendeu-se quando
foi “cantado” por ele. O demônio colocava diante de seus olhos um “prato principal”, com
o rapaz confessando que queria ter com ele um relacionamento “mais profundo”. A
situação só podia ser batalha espiritual, o que muitas vezes ocorria quando se buscava
seguir a obra de Deus.

255
O combate na sexualidade implica o engajamento em atividades promotoras de ascese
e purificação. É preciso examinar bem os sentimentos e analisar a origem (divina ou
demoníaca) destes. Informantes contaram ter participado de “correntes”, “campanhas”,
“subidas ao monte”, de cultos específicos como “culto da família”, “do descarrego”, “de
libertação”. Além disso, na vida cotidiana era preciso empregar hábitos que colaborassem
para o crescimento espiritual, por meio de orações.
Henrique não vai mais a boates, nem a cinemas pornográficos e outros “inferninhos”
que freqüentava. Durante o dia, quando está no trabalho, procura sempre ocupar os
pensamentos ouvindo CD Gospel e manter-se em oração. Adriano evita ir a casa de amigos
gays porque isso pode alimentar a mente com “coisas que Deus abomina”. Também não vai
mais ao Centro Cultural do Banco do Brasil, muito freqüentado por gays, nem às “festas de
urso” que gostava antigamente. Sérgio procura sempre fundamentação bíblica, por isso,
atualmente, entrou num novo estudo sobre “como seguir os mandamentos cristãos”. Paulo
acredita que o Espírito Santo alerta sobre os perigos, fazendo desviar dos maus caminhos.
A luta adquire aqui os contornos da renúncia sexual. Vigilância constante e o exame dos
pensamentos fazem parte dessa batalha. Henrique declarou ‘repreender’ esse desejo sexual
pelo controle do pensamento:

Você passa e vê um homem bonito e eu não vou ser hipócrita de dizer que eu
não me sinto, vamos dizer, seduzido. Mas essas coisas você tem que aprender
a conviver com isso. É bonito, sim? Mas não é pra mim. Dá até vontade de
parar e olhar pra trás. Mas eu sigo o meu caminho. Porque se eu der entrada,
uma coisa vai puxando a outra e daqui a pouco você está nas mesmas
atividades (Henrique, 44 anos, funcionário público, Assembléia de Deus).

Em situações de luta espiritual, quando “pessoas tentavam levar pro outro lado”,
Glauber “clamou”, confessou suas falhas diretamente a Deus, jejuou e orou. Um dia, sentiu
a proteção de dois anjos que acampavam ao seu redor. O “temor a Deus” o protegia. Sentia
uma força muito grande para ‘mudar’. Sandro teve experiência semelhante. Acreditava que
cada pessoa trazia consigo a presença de entidades do mal ou anjos “ao derredor”. Isso
dependia da sintonia espiritual de cada um. O “inimigo” caminhava com ela e procurava
uma “brecha”, sondava pensamentos ou pequenas atitudes incorretas. Um ato
aparentemente insignificante podia instaurar uma poderosa indução pelo demônio porque a

256
126
pessoa dera “legalidade” para o diabo agir em sua vida. Sandro sabia que duas vontades
lutavam dentro de si: a dele e a de Deus. Por meio de oração, Deus “dava discernimento”
para “sair de situações” ligadas à carne. Quando enfrentava ‘provas’, ele recorria aos anjos
e ao Espírito Santo. Estes o protegiam com uma “cortina de fogo”, instalada ao seu redor.
Quando o diabo tentava tocá-lo era “queimado”, “lançado no inferno”. Ele comprovava a
ação de Deus por meio de sensações de calor ou quentura provenientes do “fogo de Deus”.
A opção pela contenção e busca de regeneração pessoal podem encontrar seu
substrato em experiências místicas vivenciadas na igreja. Em alguns casos, declarou-se a
participação em rituais de libertação, nos quais havia a incorporação de demônios. Sandro,
que já fora “espírita”, recebeu uma pomba-gira, que foi amarrada e expulsa depois de
confessar que queria lhe fazer mal. Na ocasião fora liberto da maldição da vidência, por
meio do qual tinha visões, inclusive de espíritos mortos. Esse foi o primeiro passo para o
processo de cura da homossexualidade, como ele contou em entrevista:

Foi numa libertação, onde estávamos. (...). Ele se manifestou em mim. E


começou a falar. Quem veio foi um espírito de pomba-gira, mas eu não sei qual
delas, porque são várias. (...) Aí ela começou a debochar, começou a rir. Aí
fizeram a libertação desse espírito. Eles amarraram, mandaram ajoelhar,
mandaram o demônio ajoelhar. Nisso, ele ficava indo e vindo pra que eu
pudesse estar ouvindo tudo que estava acontecendo. E dizia que tinha vindo na
minha vida pra poder me destruir. Aí eu lembro que depois que foi feita a
libertação eu fiquei com o corpo leve. Eu me senti muito diferente. Você sente
que saiu realmente uma coisa de você. Quando você retira isso, você tem que
encher com a glória de Deus. Deus te enche com a glória Dele, você sente
aquele alívio. Mas ali eu só tinha tido a libertação da vidência. Eu sou muito
detalhista, guardo as datas. Depois foi o processo de libertação da
homossexualidade. Porque desde que eu me converti, eu falei pra Deus, falei:
‘Deus, embora eu não esteja liberto ainda, eu não quero mais isso pra minha
vida’. Eu falei: "Deus, mesmo que eu ainda não esteja liberto, eu não quero
mais isso pra minha vida". Eu não vou ter mais esse tipo de atitude, eu não vou
mais andar onde eu andava (Sandro, 20 anos, auxiliar administrativo, Igreja
Batista).

126
A expressão “dar legalidade” reporta a oposição entre a Lei de Deus e a perversão desta pelo diabo. Ao
homem é atribuída a responsabilidade pela ação do demônio em sua vida por meio da noção de livre arbítrio.
A prática de um ato que contraria a Lei de Deus coloca o homem sob a tutela do maligno. Contudo, a
legalidade pode ser transferida através dos pecados familiares, consistindo em algo que pode ser herdado. Em
todo caso, ao indivíduo cabe a iniciativa de buscar retornar a viver segundo a Lei.

257
A experiência narrada envolveu uma decisão de mudar a conduta sexual. A
descoberta de que a luta não era mais contra um desejo natural, mas contra demônios e
potestades, enseja um engajamento na vida religiosa. Ele deve “encher-se com a Glória de
Deus”. Deste relato depreende-se uma gramática da libertação: manifestação do demônio,
confissão do pecado e expulsão do mal. Com efeito, nem todos os processos relatados
envolveram a cena descrita, na qual o maligno está presente, encarnado na pomba-gira para
em seguida ser expulso. O informante sentiu alívio e teve a impressão de que “saiu algo”.
Depois de uma luta que se travou pela posse de seu próprio corpo (o demônio entrava e
saía enquanto o pastor ministrava), o mal foi amarrado e fortemente retirado. Ali mesmo
foi liberto de maldições e começou o processo de libertação da homossexualidade. Em um
retiro espiritual, posteriormente, foi feito um “altar de sacrifício”, uma enorme fogueira
onde fiéis se despojaram de pertences, objetos, sentimentos e emoções, com vistas a obter
libertação. Para deixar os hábitos e a vida homossexual, Sandro queimou CDS de musica
dance e internacional, todos os DVDS dos cantores Sandy e Júnior, que idolatrava; roupas
que considerava afeminadas e com as quais se vestia para freqüentar ambientes gays. O
informante Paulo participou de uma “corrente de libertação” na Igreja Universal e fez uma
descrição de ritual semelhante, na qual descobriu que Maria Padilha, entidade que
consultava no espiritismo, causava seu homossexualismo:

(...) a pomba-gira Maria Padilha, que eu admirava no candomblé e a quem eu pedia


ajuda, ‘manifestou’ na igreja no corpo de uma pessoa. Ela falou o que tava fazendo na
minha vida: o problema do homossexualismo era posto por ela; a solidão que eu sentia;
os problemas familiares... tudo era posto por ela (Paulo, 20 anos, desempregado, Igreja
Universal).

Como no relato anterior, participam da cena diferentes atores. O pastor é a


personagem que detém o poder, instituído por Deus, para expulsar o mal. O incorporado é o
canal por meio do qual o demônio se expressa. Existe ainda a pessoa a ser liberta e a
comunidade. Na seqüência, o pastor dirige-se ao demônio e o inquire como ele atua e
escraviza a vida o indivíduo. O demônio, impotente, confessa. O líder religioso “amarra” a
ação do diabo. Nesse caso, ele descreveu a cena em que a mulher incorporada tinha as mãos
para trás, seguras por obreiros que auxiliavam o pastor. Esse ato tem o significado

258
simbólico de submeter o diabo ao Poder de Deus e impedir sua ação. Ele está controlado.
O pastor grita: “sai, em nome de Jesus”. A comunidade participa entoando repetidamente a
frase. A derrota do maligno ocorre quando este é expulso. O incorporado treme, faz
rodopios e cai no chão. Paulo contou que teve tremores, arrepios e sentiu que o diabo
deixava de ter poder sobre sua vida. Estava pronto para trilhar um novo caminho.

Como enfatizado nos relatos, a “batalha espiritual” na sexualidade adquire o sentido


de enfrentamento do mal. Nesse caso, contra um impulso sexual implantado pelo “inimigo”
o discurso religioso ensina a “ter atitude” e “postura de luta”. Por outro lado, os
informantes percebem a libertação como um processo, adequando as expectativas ao que é
vivido. Sandro descreveu que na libertação “saiu” um espírito do mal, em seguida iniciou-
se um processo de “cura das emoções”. Conforme exercitava sua resistência, ia recebendo
“toques” de Jesus, que procedia milagres sobre sua mente, apagando as saudades, as
ilusões, as decepções, diminuindo a força dos sentimentos “que não vêm de Deus”.
Implantava-se em sua vida uma “nova alegria”, resultante de sua compreensão da batalha
espiritual e da esperança de encontrar uma namorada e se casar.

Essa análise aclara um momento específico das trajetórias religiosas dos informantes
desta pesquisa, o de adesão à luta na sexualidade e o cultivo de um projeto de adequação
aos modelos religiosos. Insere novos elementos para pensar o lugar e papel da religião na
vida desses indivíduos. Há relatos sobre o aprendizado dos mapas culturais religiosos que
iluminam a forma como nessas redes ocorre uma pedagogia da sexualidade.
Sandro descreveu longamente a importância de seu ingresso na “rede de
127
adolescentes” da denominação em seu processo de conversão. Os líderes da juventude
tinham conhecimento sobre sua “condição” e iniciam um processo de ‘explicação’ sobre os
problemas que ocorriam com ele. Ele foi assim “apresentado à Palavra de Deus” pelo
pastor e sua esposa, participando de aconselhamento e de reuniões específicas da rede de
juventude como seminários, retiros espirituais, reuniões de louvor, ministrações. Problemas
amplos da juventude podiam ser reportados ali, como o uso de drogas, namoro,
sexualidade, vida profissional. Constituía um suporte de aconselhamento para instruir os
127
Ministério religioso voltado a atividades e instruções sobre a vida cristã para jovens e adolescentes.

259
jovens nos preceitos de uma “vida cristã”. Ele lembra que nas conversas com o pastor e sua
esposa, estes mostravam “os fatos da Bíblia”, principalmente que o “homossexualismo” era
um sentimento “que não vem de Deus” porque “Deus criou Adão e Eva”. Sandro descreveu
este momento de sua vida religiosa como uma “fase de consolidação”, na qual ele
encontrou respostas às dificuldades que vivia. Na igreja indagava a Jesus o porquê de seu
128
sofrimento como homossexual e aos poucos foi tendo uma compreensão bíblica. Em sua
trajetória, assim como nas demais, a religião oferece solução aos conflitos internos
decorrentes de uma situação de descrédito social. As narrativas acentuam que a submissão
às regras são promotoras de um equilíbrio provisório, resultante da adesão às explicações
cosmológicas.
A religião colabora na gestão da sexualidade por meio de mecanismos de controle
específicos: aconselhamentos, cuidados pastorais (práticas de orações de intercessão e
cura), rituais de purificação, técnicas de exame de si etc. O ingresso nas redes religiosas
possibilita um conjunto de experiências que objetivam instruir em um modelo de
sexualidade específico, estabelecendo e reforçando os limites entre o proibido e o permitido
por meio de uma definição de “vida cristã”. Essa noção é central na formulação das
respostas aos dilemas vivenciados, consistindo em uma “pedagogia do sexo”. A noção de
possessão por demônios e as influências espirituais na sexualidade encarregam-se de
estabelecer um horizonte de significados que orienta para a ação. Imbuídos do “poder de
Deus” os indivíduos se percebem como agentes, implicados em uma luta infinita contra os
enganos de Satanás e/ou desejos da carne. Essa luta espiritual constitui uma performance,
necessitando de reiteração. A afirmação (no universo religioso) de que a homossexualidade
não é inata motiva para a mudança. Todos os informantes relataram a ‘descoberta’ da
origem de seu “problema”, revelando a adesão ao universo de explicações religiosas
(constelações familiares, atuação de entidades). A batalha espiritual na sexualidade
constitui uma luta pela posse de si (enquanto indivíduo de Deus ou orientado pelo
maligno). O problema do autocontrole está no centro dessa batalha, oscilando os indivíduos
entre a perda e a aquisição deste.
128
Nesse período, ele assumindo a liderança de uma das células da igreja, passou a ter compromisso com um
trabalho missionário. Nela, realizavam-se “estudos” que incluíam temas da batalha espiritual

260
A adesão dos entrevistados ao ethos religioso da batalha espiritual implica um
aprendizado da teoria da pessoa, como Birman (1998) sugere, a adesão a uma cosmologia
que enfatiza a interferência contínua de Deus na ordem do mundo. Nessa cosmologia, que
dialoga intensamente com os cultos afro-brasileiros, os espíritos “estão sempre presentes
como elementos constitutivos das pessoas e dos acontecimentos que as envolvem” (Birman,
1998: 71) através de uma disputa entre Deus e os diabos pela posse e intervenção sobre o
sujeito.
Clara Mafra (2002) acrescenta a essa análise, ao se deter sobre o sistema ritual da
Igreja Universal do Reino de Deus, o sentido performativo dessa religiosidade que
incentiva mudança do sentido ontológico. A constante referência ao demônio e à
redescoberta de um mal personalizado reforçam o dualismo entre o bem e o mal e enfocam
as performances que se realizam no culto religioso: a manifestação do demônio – e sua
confissão acerca do mal que causa aos fiéis – fornece aos participantes um roteiro e um
sentido para o sofrimento. Contudo, é também no contexto ritual que o crente aprende a
derrotar o maligno. As orações poderosas, a corrente humana e a atuação do pastor, que
exerce sua autoridade na expulsão dos demônios, tornam o culto uma espécie de aula de
enfrentamento do mal. Desemprego, angústias e aflições são obra daquele que vive a
atazanar os homens e a disputar com Deus a habitação do corpo do crente. Em contraste,
viver em Cristo e tornar-se um templo do Espírito Santo resguarda das investidas do
enganador, capacitando o crente a enfrentar as provações e as tentações no cotidiano.
Essa religiosidade, por sua ênfase na mudança e seus recursos rituais, se torna atrativa
à população investigada nessa tese, constituindo um recurso na manipulação de estigmas. A
expectativa de abandono da homossexualidade e a mudança na conduta sexual são
vivenciadas como estratégias de superação da desqualificação social que incide sobre os
homossexuais na sociedade mais ampla. A idéia foi desenvolvida por Machado (1998), que
analisou a conversão religiosa de um ex-adepto de culto afro-brasileiro ao pentecostalismo,
implicada em uma reorientação da conduta sexual. A rejeição ao rótulo de “bicha”, a
problematização de sua condição de “homossexual passivo”, assim como o medo de
“exposição à Aids” e aos preconceitos associados a essa doença são acionados como
motivação para o desejo de “tornar-se heterossexual”. No caso de meus entrevistados, o

261
recurso a rituais privados, aconselhamentos e terapias religiosas que prescreviam a
regeneração da homossexualidade e um retorno à vida heterossexual, assinalando para
modernas formas de gerenciamento da sexualidade em contextos religiosos (Natividade,
2006). A busca de obtenção do status de heterossexual é vivenciada como promessa de
livrar-se dos sofrimentos associados a essa condição desigual, nesse caso, não inata mas
insuflada por entidades e constelações familiares não adequadas. Para essas pessoas,
perseguir a “cura” alimenta o sentimento de ser um bom cristão, que enfrenta as provações
cotidianas e resiste (pelo Poder de Deus) aos enganos do maligno.
Nesse sentido, chama atenção no conjunto das entrevistas um reconhecimento da
homossexualidade como sexualidade implicada em experiências de “preconceito” e
“rejeições”. Por outro lado, propala-se que uma das formas de escapar ao preconceito é
exercer uma vida heterossexual e recusar a rotulação de si como homossexual. Essa
estratégia é definida por Michel Pollack (1990) como des-identificação, e ela foi
impulsionada como uma resposta à AIDS e estigmas que incidiram sobre os homossexuais
por conta da epidemia. Para o autor, indivíduos cujos comportamentos são socialmente
reprováveis tendem a realizar um complexo processo de construção de si que envolve a
gestão de uma identidade indizível. Ainda que processos sociais em curso tenham insuflado
uma “liberalização dos costumes” e novas alternativas identitárias, em muitos contextos
prevalecem sutis formas de exclusão que podem levar à gestão de si pelo silêncio. Como
indivíduos potencialmente desacreditáveis, muitas vezes portador de uma desvantagem,
homossexuais, comumente inicia uma construção consciente de si em torno dos desejos que
originam sua diferença. Trata-se de um processo de diferenciação social em que a
composição de um círculo de amigos permite romper o isolamento social, criando uma
“segregação livremente escolhida”. Nesse sentido, a homossexualidade desconhecida ou
“aceita” é fonte de equilíbrio estável e durável e uma homossexualidade conhecida e
recusada provoca situações difíceis. Pollack argumenta que o homossexual se vê obrigado a
produzir justificações para sua diferença (Pollack, 1990: 27). Instaura-se uma complexa
“obrigação sentida” de confessar sua orientação sexual e, ao mesmo tempo, as dificuldades
ou impossibilidades de fazê-lo em função de uma reprovação social. Originam-se, nessa
tensão, complexas formas de gestão de si implicados em processos de coming-out. Nos

262
casos analisados, a religião é elemento que reforça a proibição. Embora o indivíduo
conviva com mapas culturais contraditórios (religião e sexualidade), nessa tensão ele se
constitui. A proximidade da igreja e dos valores religiosos e o trânsito por redes que
reforçam a homossexualidade como um comportamento reprovável funciona como
elemento de permanência. O momento da vida dos indivíduos descrito nesse capítulo
demonstra como a religião, por meio de um discurso de acolhida, busca transformar e
regenerar.
Em concordância com Pollack (1990), entendo que o aprendizado social da
homossexualidade é um lento e gradual processo de cooptação e iniciação equivalente a um
novo nascimento (ou conversão), processo de aquisição gradual de uma crença sobre a
diferença que exige justificações. Nesse sentido, os indivíduos cujas narrativas estiveram
em foco nesta seção, buscam remover essa diferença por meio da adesão aos recursos
rituais e de aconselhamentos. Contudo, esse processo de cooptação não é unilinear e pode
comportar alternações, tensões e passagens. Nesse sentido, a cooptação por redes religiosas
pode ensejar processos de desidentificação. O desejo de normalidade e a busca de adequar-
se são apresentados como possibilidade de recusa do pecado. Sensações de proteção por
Deus, de cura e perdão sinalizam para essa experiência e a “ajuda” na igreja consiste no
suporte para essa desidentificação. Como se trata de um complexo processo de construção
de si, o “temor de Deus” e o respeito à família são apresentados como elementos
importantes que importam na decisão de mudar a conduta sexual.
Se processos de coming out encontram suporte em processos de desentranhamento
das redes familiares (Guimarães, 2004; Pollack, 1990), os casos analisados apontam para a
manutenção destas. Os informantes constituem um complexo processo de gerenciamento de
si em função dessa relação. Em alguns relatos, as redes religiosas e familiares se
superpõem. As tensões familiares são minimizadas em decorrência da adesão aos valores
religiosos.
Em termos de mecanismos de gestão da vida afetiva, ressaltou-se a existência de um
mercado erótico nas igrejas/ denominações, por meio do qual se incentiva o
estabelecimento de ligações afetivo-sexuais com vistas ao “casamento”. Esse mercado é
regulado por regras e normas que devem ser observadas contextualmente. Por exemplo, o

263
recurso dos fiéis aos conselhos pastorais sobre a escolha adequada do cônjuge, a existência
de homens ou mulheres dispostos a “ajudar” uma pessoa a mudar sua orientação sexual
estabelecendo com esta um projeto de casamento. Em todo caso, o indivíduo encontra
respostas aos dilemas vividos na carreira homossexual. Se alguns informantes queixaram-se
da dificuldade de encontrar um relacionamento monogâmico no meio homossexual, na
religião, encontram explicações. Essas relações são intrinsecamente promíscuas, em
decorrência de influências espirituais. Nesse discurso reitera-se a necessidade de observar
as fronteiras religiosas. Uma promessa de solução é o casamento - única forma de
relacionamento no qual prevalece o princípio da fidelidade - e a constituição de uma
“família de Deus”.
Contudo, tudo que foi dito até aqui não esclarece alguns aspectos relevantes. Afinal,
qual o impacto da adesão a esses grupos sobre a construção da subjetividade? Qual o poder
de atração dessa religiosidade para a resolução de conflitos internos? Uma pista
interpretativa pode ser encontrada na pesquisa realizada por Michelle Wolkomir (2001),
junto a grupos de “ex-homossexuais” e também sobre a participação de homossexuais em
“igrejas gays” nos Estados Unidos. Para a autora, essas ofertas religiosas recrutam pessoas
a partir de uma “promessa emocional”. Neles, os indivíduos são ensinados sobre o
gerenciamento das emoções, tornando a participação inicialmente tolerável e
posteriormente recompensadora. Indivíduos que aderem a um ministério de cura da
homossexualidade ou a uma igreja gay são igualmente conduzidos a autenticar novos
sentidos de si na experiência emocional vivida. A religião encorajaria – através de
mecanismos diversos – o compartilhamento de emoções que constroem identidades
coletivas. Um dos mais cruciais aprendizados consiste na manutenção de um alto nível de
comprometimento, visando à autotransformação e autenticação de um novo self. Para tal, é
preciso perseguir as idéias do grupo e seus sistemas de significados, objetivos e metas. A
igreja e a comunidade alimenta, por meio de uma “promessa emocional”, altos níveis de
compromisso. As etapas descritas pela autora dessa experiência são: inicialmente, momento
de “promessa” e “apelo” ao indivíduo para adesão (“chamado individual”); aprendizado do
gerenciamento das emoções negativas; a emoção da autenticação de um novo sentido de
si. Wolkomir observou que os freqüentadores do grupo de ex-homossexuais, através de

264
“oração sincera”, teriam os pedaços da “psique quebrada”, curados pelo poder de Deus,
levando a “maturidade psicológica” e, assim, à heterossexualidade. A autora ensina que a
experiência religiosa em questão está ancorada na “promessa” da neutralização das
emoções negativas e na vivência de emoções positivas relacionadas ao perdão de Deus.
Esta análise ajuda a elucidar alguns pontos fundamentais dessa seção,
primordialmente, como indivíduos são atraídos às igrejas, grupos e congregações,
motivados por uma “promessa de cura” e salvação. Ainda que haja divergências
contextuais, é possível encontrar similaridades estruturais entre essas ofertas religiosas na
contemporaneidade. Os resultados de minha pesquisa iluminaram como uma percepção
negativa de si é subjacente aos relatos de pessoas que vivenciam desejos sexuais
contraditórios da norma religiosa. O sentido de “desagradar a Deus” ou de estar cometendo
“pecado abominável” instaura crises e sentimentos de vergonha e culpa. Contudo, a busca
de adequar-se às regras e sentir-se “normal” (numa religiosidade que incentiva a mudança)
enseja sentimentos positivos de si. Os percursos individuais, contudo, não são lineares e as
possíveis recaídas, tentações e provações podem conduzir a outros intensos dramas pessoais
(acometimento de novos processos de culpa, sensações de pecado, medo da reação de Deis
e reforço de sentidos negativos de si). É importante observar que as biografias dos
entrevistados desta pesquisa mostram um padrão de alternações, idas e vindas da religião,
motivados por novos fatos e eventos, exemplificando as peculiaridades de processos de
construção de si nos quais estão articulados identidade sexual e religião.

265
4. 3. DEUS ME ACEITA COMO EU SOU: JUSTIFICAÇÕES RELIGIOSAS SOBRE A
HOMOSSEXUALIDADE ENTRE INTEGRANTES DE IGREJAS INCLUSIVAS

Esta seção analisa depoimentos de homens integrantes de igrejas inclusivas que


assumem uma identidade homossexual. Nesse caso, quis entender como eles significam o
desejo sexual, quais as mudanças/continuidades entre distintos movimentos religiosos e
como se produzem justificações para o desejo.
Inicio pela trajetória de Murilo, pastor da Comunidade Cristã Nova Esperança.
Conhecemos-nos em um culto de aniversário da Igreja Cristã Contemporânea. Visitava o
Rio de Janeiro com membros de sua denominação, localizada em São Paulo. Fui
apresentado a ele antes do culto, quando me convidou para conhecer sua igreja. A
denominação que conduzia naquela cidade integrava cerca de 400 pessoas - sendo a maior
“igreja inclusiva pentecostal do país”, onde, segundo ele, congregavam travestis,
transexuais, gays, lésbicas e alguns poucos heterossexuais. Naquele dia, no Rio de Janeiro,
eu assisti sua pregação, que me lembrou o estilo de pastores da Assembléia de Deus.
Era um homem de aparência simples, negro, de baixa estatura e voz possante, vestido
com um terno preto e portando uma Bíblia, que logo abriu sobre o púlpito ao entoar um
“boa noite”. Iniciou dizendo que estava feliz pelo convite para pregar na Igreja
Contemporânea. Cumpria, em conjunto com outros “pastores inclusivos”, o “chamado” de
Deus para alcançar os excluídos. Enfatizou a necessidade de um “compromisso com Deus”,
que dava “cobertura espiritual”. Durante uma longa preleção, ele falou sobre uma
passagem bíblica que enfatizava a “igreja” como “uma noiva”, à espera de seu “amado”
(Deus). Comparecia aqui, como vimos no capítulo três, a imagem de uma igreja feminina e
uma divindade com características tipicamente masculinas, indicando que nesse campo
religioso estão presentes formas de interação entre Deus e os homens (igreja) que passa por
‘relação amorosa’. Na preleção do pastor, o noivo (Deus) batia à porta e não obtinha
resposta. Ele então batia mais forte. E mais forte. E nada. Ela estava adormecida. Ela, que
devia esperá-lo “pura”, sem máculas, estava adormecida. Deus era como esse noivo, que
não media esforços para ver sua amada. Ele se sacrificava. Ele batia à porta. Mas a noiva
daquela passagem era egoísta, não atendia seu chamado: “E quantos de nós não

266
deixávamos Deus bater à nossa porta e a fechávamos para Ele?”, disse. Deus estava sempre
a chamar, como um noivo que ama demais. O pastor então advertiu que quem não abria a
porta para Ele, perdia suas bênçãos e o bem que Ele queria fazer. Era necessário assumir
um compromisso, uma “aliança com Deus”, como um noivo e uma noiva fazem. Cultivar a
fidelidade e obter “cobertura espiritual”. O louvor era a melhor forma de mostrar esse
compromisso. A Igreja Cristã Contemporânea tinha a missão de ajudar a conquistar o Rio
de Janeiro para Jesus, assim como em São Paulo, a Comunidade Cristã Nova Esperança
vinha arrebanhando as almas. Muitos homossexuais estavam sendo “libertos”. Ele
profetizava: nenhum homossexual, nem qualquer pessoa ficaria sem ouvir a Palavra de
Deus. Um louvor iniciou-se e o pastor Murilo começou a “ministrar” a congregação. Pediu
perdão a Jesus. Aquela igreja era como uma noiva ansiosa. Ela havia demorado a abrir suas
portas para Ele. Estavam atordoados e sonolentos. Era o “sono do pecado” que atrapalhava
e impedia de aproximar-se de Deus. Mas a noiva estava preparada. Já se banhara e não
mais iria se sujar. Estava pronta para recebê-lo. Cada um ali, não queria mais andar
sozinho, mas ter um compromisso com Deus. O louvor conduzido pelos “levitas” tomou o
templo.
Após o culto, integrantes da Comunidade Cristã Nova Esperança e da Igreja Cristã
Contemporânea se confraternizaram. Havia um bolo de aniversário. O pastor Murilo e eu
nos refugiamos um pouco ao fim do templo. Ali, eu liguei o gravador e ouvi sua história.
Ele fora integrante da Igreja da Transfiguração, uma igreja pentecostal ortodoxa.
Como a homossexualidade era proibida, casou-se, teve três filhos e se considerava, por
muitos anos de sua vida, “uma pessoa heterossexual”. A homossexualidade ficara
‘adormecida’. Um dia tomara a decisão mais importante de sua vida: a separação.
Constatara a verdade: apesar de ter “assumido” a heterossexualidade por muitos anos, sua
“orientação” era homossexual. Muitos homens com “postura hétero” viviam a se mutilar e
sofriam porque não podiam corresponder às necessidades emocionais de suas esposas. O
resultado era “uma mentira muito grande”, uma “vida de enganos”. Isso era “pecado”. O
dilema do confronto de seus desejos sexuais com as regras da religião o levou à separação
da esposa e ao abandono da vida religiosa.

267
A reconstrução de sua trajetória aponta para um percurso religioso de “idas” e
“vindas” da igreja e tentativas de estabilização de uma orientação sexual dissidente da
norma e vida eclesial. Freqüentou a Igreja Renascer, mas não se identificou. Gostou um
pouco mais da Assembléia de Deus porque sentia muito ‘fervor religioso’ e se fortaleceu
espiritualmente. Muitos anos depois, uma amiga mencionou a existência de uma “igreja
gay”, o Ministério Outras Ovelhas, um pequeno grupo homossexual que se reunia em um
apartamento com o propósito de fundar uma igreja para homossexuais. Ao lado do novo
parceiro, ele foi conhecer a denominação. O culto era um pouco contido, mas ele lembra
que “era muito gostoso”. Os gays se encontravam e viviam um momento de louvor. Havia
Deus ali. O grupo foi crescendo. Moradores do prédio fizeram abaixo-assinado para eles
deixarem o prédio. Eles não compreendiam a proposta e ostentavam uma atitude
homofóbica diante da visibilização das atividades do grupo. Internamente, havia
divergência de opiniões. Ele apresentava algumas reservas teológicas pois preferia um
culto “mais avivado”, “exagerado”, porque sentia mais o “Poder de Deus”, quando via
pessoas falando em línguas ou outras manifestações do Espírito Santo sobre o povo. Um
pequeno grupo passou a se reunir com uma nova proposta. Era uma reunião de estudos
bíblicos. Começou a crescer. Eles alugaram um salão em cima de uma loja de artigos
eróticos (um Sexyshop), muito freqüentada por homossexuais. A disseminação da notícia
do grupo naquele lugar levou a expansão. Alguns gays subiam (da loja erótica) para ‘ver
como era’ e participavam de uma “maravilhosa experiência com Deus”. Jesus resgatava
todas as pessoas e fazia sua obra onde menos se podia esperar. Ali foi fundada a
Comunidade Cristã Nova Esperança. Ele sentia que uma igreja como aquela nascera da
“vontade de Deus” de chegar aos homossexuais e aceitá-los como eles eram. Todo gay
deveria “sair do armário”. O importante era refletir sobre o momento certo, e o seu
momento chegara. Na “Zona Rosa” de São Paulo - nas imediações da Rua Vieira de
Carvalho, famoso ponto de encontro gay - eles “adoravam a Deus”.
A trajetória de Murilo é exemplar. Ela comporta migrações religiosas, períodos de
rompimento e novas adesões, reinterpretações de alguns dogmas e recriações de outros.
Seu encontro com Deus numa igreja inclusiva o leva à missão religiosa de assumir um
cargo eclesiástico, tal como exercera em uma igreja convencional, o de pastor. Sua

268
biografia é marcada pela busca de uma igreja que se adequasse ao seu jeito (pentecostal) e
a sua orientação sexual homossexual. Antes de liderar uma denominação inclusiva e
assumir o pastorado, ele migrou entre diversas igrejas evangélicas, sem sentir que
encontrara seu lugar. A necessidade de viver a verdade leva-o a uma constante busca, cujo
equilíbrio situa-se entre o re-encontro com Deus e o assumir-se como homossexual. Sua
trajetória foi marcada ainda pela reinterpretação dos dogmas da proibição da
homossexualidade, instruída pela perspectiva teológica inclusiva. A descoberta de que a
homossexualidade não era proibida por Deus, nem pecado, convivia com a certeza de que
Deus criou todas as coisas, inclusive a homossexualidade. Desta forma, esta orientação
sexual não poderia ser vista como pecado ou doença porque Ele ‘nada faz de imperfeito’. A
“mentira” e o “casamento” como meios de escapar ao preconceito podiam ser vistos como
“pecado”, porque Deus sabia todas as coisas e ‘sondava’ todos os corações. Por este
motivo, Murilo acredita que todos “nascem gays” e criticava homossexuais evangélicos
que se casavam e ostentavam uma farsa perante Deus. Ao rememorar fatos sobre sua vida,
afirmou encontrar provas de sua ‘diferença’ já na infância. Enquanto uns meninos
gostavam de jogar futebol, ele era mais retraído. Preferia até “brincar de bonecas”. Isso
tudo fora muito difícil de ser absorvido por sua família que era evangélica e de
descendência indígena. O amor de Deus, contudo, curava e apagava as lembranças
doloridas. Apesar disso, como pastor, ele acreditava que uma vida sexual tinha que ser
moderada e a santificação independia da orientação sexual. Gays e “héteros” necessitavam
se aproximar de Deus e se afastar do pecado, pois somente as relações estáveis eram
condizentes com a vida religiosa. Deus cuidava da vida do casal e o abençoava com muitas
graças. É essencial frisar aqui a justificação que se produz no âmbito da hermenêutica das
igrejas inclusivas, pois o pecado não é mais ser gay ou lésbica, como propalado por
segmentos religiosos hegemônicos. Homossexuais e heterossexuais se igualam e podem
sofrer dos mesmos pendores e pecados. Como pano de fundo está uma espécie de cidadania
cristã, em que todos os seres humanos são iguais e podem alcançar a graça divina. Gays
não são mais posicionados como pessoas de segunda classe, mas eles podem, tanto quanto
qualquer ser humano, ser escolhidos por Deus, ‘eleitos’ a realizar na Terra a Sua obra.

269
Os dilemas e soluções encontrados por Murilo não são próprios de sua trajetória, mas
com diferentes ênfases e desenlaces, se encontram presentes nas demais biografias. A
passagem por diferentes denominações, a constante busca por viver a verdade de sua
sexualidade e a possibilidade de justificações aparecem em outros depoimentos, como
veremos.
Do ponto de vista das trajetórias analisadas é possível destacar três aspectos que
explorarei aqui: as relações interpessoais, as do indivíduo consigo mesmo (percepção de si)
e a relação com Deus. Descreve-se, de uma forma geral, a passagem de uma igreja,
denominações ou religião que não aceitam, excluem ou rejeitam a homossexualidade ao
ambiente religioso de acolhimento das igrejas inclusivas. Buscarei explorar um pouco os
relatos concernentes ao que é percebido pelos entrevistados como o momento anterior ao
ingresso em uma denominação inclusiva. Esse período da vida é referido como de não
aceitação de si, implicado em severos sentimentos de reprovação interior e culpa. De forma
semelhante aos entrevistados abordados na seção anterior, realça-se o sentimento negativo
de si, ligado ao questionamento de serem ou não “gays”. Um interessante relato é feito por
outro líder religioso, integrante da Comunidade Cristã Nova Esperança. Os
questionamentos acerca de sua identidade sexual – marcados pela tensão de suas
disposições sexuais e seus valores religiosos - o levavam repudiar não apenas a
homossexualidade, mas expressões feminizadas desta, rejeitando para si o rótulo
homossexual:
Porque eu perseguia os homossexuais, entendeu? Eu era fatalmente
homofóbico. (...) Odiava ver, olhar assim uma pessoa afeminada. Eu achava
engraçado, mas eu chegar perto, não. Entendeu? É muito homofóbico, tá
entendendo? Não admitia nenhuma pessoa afeminada lá na igreja. Assim
quando a pessoa, que eu percebia que era um afeminado, que ia lá na frente e
pegava o microfone e começava a falar bem delicado, eu saia da igreja,
entendeu? Mesmo nem sabendo da vida da pessoa, entendeu? Mas, de qualquer
forma eu era muito homofóbico. Daí tava um turbilhão minha vida, né? (...) Aí,
isso me incomodava muito assim, porque até então eu era homofóbico e eu
sabia que (...) sentindo atração por homens, eu era homofóbico eu tinha
consciência disso, eu só não tinha consciência de que eu era. Eu achava que
Deus ia fazer uma mudança na minha vida e eu ia ser uma pessoa, um hetero.
Um hetero mesmo, entendeu? (Umberto, 30 anos, Comunidade Cristã Nova
Esperança)

270
Ele emprega a categoria “homofobia” para descrever a estágio anterior de sua vida
em que não se aceitava, mas uma poderosa atração por homens o levava a conflitos
intensos. A abjeção de certos modos de expressão da homossexualidade motivava a recusa
da rotulação de si como homossexual. Essa atitude, possivelmente ligada à manipulação de
estigma, é contrastada ao presente, no qual se percebe como homossexual. A oposição
entre ‘não saber o que era’ e agora ‘aceitar-se’ mostra como o processo de construção de si
compreende ajustes entre valores religiosos e o auto-estranhamento promovido pelo sentido
de diferença. Uma consciência do desejo pelo mesmo sexo implicava a percepção negativa
de si e o receio de ceder ao “pecado”. Por outro lado, a esperança de ser ‘uma outra
pessoa’, heterossexual e normal o levava a desejar a mudança, o toque curador do Espírito
Santo em sua vida. O discurso comporta ambivalência na forma de significar a
homossexualidade: o desejo é expressão de uma verdade interior, contudo, há esperança de
extirpá-lo, de modo que venha a exercer uma vida genuinamente religiosa e possa sentir-se
um ‘bom cristão’.
A fala de um outro entrevistado aponta como um processo de exame de si e um
intenso interrogar (-se) sobre a sexualidade instaura uma percepção do desejo como
constituinte da verdade de si, a despeito de este ser conflitante às normas religiosas. Beto
é ex-integrante da Assembléia de Deus e atualmente participante da Igreja Contemporânea.
Refletindo sobre a descoberta de sua ‘orientação sexual’, ele explicou:

Eu tava na transição de adolescente, jovem-adolescente e tal, tal e tal. Muito


resolvido com a minha sexualidade. Muito mesmo. Que desde pequeno, eu já
sabia o que eu seria. E muito, colocando assim de uma forma muito pra Deus:
Eu gostava de homem, eu gostava de homem. (...) A minha grande
preocupação era ‘Dele’ não me aceitar como eu era, entendeu? Ao mesmo
tempo, eu não queria me auto-flagelar, fazer alguma coisa tipo namorar uma
menina pra tentar mudar isso em mim. Porque eu via que não ia mudar, que o
desejo era muito grande. Eu cheguei a namorar meninas. Eu não sei nem se eu
namorei com o desejo de mudar, ou se eu namorei mais pra provar que eu sabia
que não gostava (Beto, 36 anos, publicitário, Igreja Contemporânea)..

A maneira como reconstrói seu passado passa pela compreensão de que sempre
soubera ‘o que seria’, que ‘era resolvido’ com sua sexualidade pelo fato de gostar de
‘homem’. Contudo, a dúvida sobre a aprovação de Deus quanto a sua ‘diferença’ instaura

271
conflitos interiores. Ao mesmo tempo em que buscara a mudança, ‘namorando garotas’,
estes namoros são percebidos como ‘auto-flagelo’. O entrevistado avalia não saber a
motivação para o estabelecimento de vínculos heterossexuais: seria uma busca genuína de
transformação ou o desejo de provar que ‘não gostava’? Esses questionamentos são
constitutivos do processo de atribuição de novos sentidos de si no âmbito dessas biografias.
Alguns entrevistados reportaram situações de tensão no ambiente religioso
relacionadas à compreensão cultivada nas igrejas evangélicas a respeito da
homossexualidade: a visão desta prática como “pecado abominável” ou problema espiritual
instaurava conflitos interpessoais, originando ‘atenção’ e ‘cuidado’ quando o assunto era
trazido ao conhecimento pastoral. Reporto-me ao relato feito por alguns informantes.
Mesmo sem confessar sua homossexualidade a qualquer pessoa na Igreja Metodista,
Beto foi chamado à “salinha do pastor”, onde recebeu “conselhos” e orientação para
procurar um grupo que ‘ajudava’ pessoas a “sair da homossexualidade”, no interior do
Estado do Rio de Janeiro. Ele reporta o evento como prova de sua não aceitação por
algumas pessoas na religião. Por outro lado, reconhece que havia alguns (em sua família e
na religião) que, mesmo ‘sabendo’ de sua “opção” gostavam dele. Essa relativa forma de
aceitação, contudo, é oriunda da visão de que sempre respeitara a família e a igreja,
mantendo “uma postura” não-afeminada que evitasse externar em demasia sua
homossexualidade. Tal medida era empregada, sobretudo, porque atuava em ministério de
crianças e adolescentes e não desejava que pessoas se espelhassem em atitudes suas que
pudessem originar preconceito social. Contudo, notava algumas ‘reservas’ a sua pessoa,
relacionada à ‘orientação sexual’. Por exemplo, o grupo de rapazes do louvor masculino
não mais o chamava para cantar, já que ocorria suspeita sobre sua homossexualidade.
Também se lembra de ter ouvido “piadas” em situações sociais, como a ocasião em que
visitara a casa de uma amiga da igreja para um ensaio do grupo de louvor: ele ouvira, no
corredor, comentários sobre sua ‘voz afeminada’, que ‘pensavam ser uma menina ao
telefone’. Atribuiu-se ao seu desempenho de gênero a categoria “comportamento estranho”.
Duas importantes cenas relacionadas a este sentimento de não aceitação foram
narradas pelo informante Michel: uma ligada à tensão familiar que se estabeleceu quando o
pai ‘descobriu’ sua homossexualidade, ainda na infância, e uma distinta, ocorrida em

272
função da visibilidade de sua “condição” na igreja. Michel contou que sua família é
‘religiosa’, embora alguns tenham se “desviado” nos últimos anos. Ele tem passagem pelo
catolicismo. Apesar disso, não vê diferença na abordagem da sexualidade nas duas
vertentes religiosas: ambas concebem a homossexualidade como “pecado”.
O primeiro episódio ocorreu aos dez anos, quando ele e um vizinho se “acariciavam”
e foram surpreendidos pelo pai. Essa situação é percebida por ele como o início de uma
dúvida quanto a sua sexualidade na família:

Uma criança de cinco anos de idade não faz nada demais, a não ser um ficar olhando
o corpo do outro, um ficar tocando o corpo do outro, entendeu? Ele me segurou pelo
queixo, me levantou só com a mão e me falou: “Você é homem. Nunca mais faça
isso”. Aí, a partir dali eu também perdi o carinho do meu pai, como se ele tivesse
morrido pra mim. Ele passou a ser um pai ausente. (...) Eu era o xodó do meu pai, né?
Primeiro filho, aquela coisa toda. Ele me levava na feira pra passear com ele, sempre
vinha com mimos, entendeu? E a partir daí ele continuou sempre me tratando bem,
mas, cada vez mais, à distancia. Até que hoje em dia é aquilo... Já no fundo ele sabia
que alguma coisa tinha dado errado. Alguma coisa nesse bolo devia ter solado (risos).
Ele tinha noção. Homem sabe como é o comportamento de um outro homem mesmo
quando criança (Michel, 26 anos, auxiliar de cozinha, Igreja Contemporânea).

Embora o policiamento da sexualidade não esteja ligado necessariamente a valores


religiosos, aqui ele indica a existência de uma atenção relacionada ao temor da
transgressão. Chama atenção como o informante elabora a experiência dessa relação; o pai
percebeu que “o bolo solou”, “algo deu muito errado” diante das expectativas sociais. Na
cena seguinte, o entrevistado refere o que percebe como um “tratamento diferenciado”
diante da ‘confissão’ de sua sexualidade na igreja. Na época ele era integrante de um grupo
jovem católico e resolvera ‘compartilhar’ com o grupo sobre sua sexualidade:

A maioria já sabia, algumas pessoas desconfiavam, e eu me reuni com o pessoal


e falei. Mas, na época, eu joguei como bissexualidade, “Gente, sabe? Eu sou
bissexual”. Aí ficou aquela coisa assim, “Não, você é nosso irmão, estamos aqui
pro que der e vier, nós te aceitamos como você é, nós gostamos de você”. Tudo
mentira! Passou uma semana, começou o tratamento diferenciado. Poucas
pessoas passaram a estar atrás de mim. Se a minha turma fosse fazer primeiro a
Eucaristia, aí aparecia uma coisa assim: “Nossa, mas a turma dele vai? Mesmo
ele sendo assim?”. Se a gente fosse pra algum grupo jovem e fosse algum padre
revoltado ou frustrado porque não podia mais dar o rabo, falasse qualquer coisa

273
em relação à homossexualidade, aí surgia um olhar assim: “Tá vendo? Você pode
mudar”. Enfim, as cobranças só aumentaram. Aquilo que me foi apresentado
como uma grande roda de amigos, uma grande família, aquilo era tudo mentira.
(...) O grupo mais conservador da igreja ficou com medo de eu ficar andando
com os filhos deles. Aí eu lembro uma vez que eu fui fazer um retiro de carnaval,
entrou uma senhora desesperada, segura o rapaz que estava levando a gente pro
retiro, “Meu filho vai ficar dormindo ao lado dele? Você sabe como ele é, né?
Você sabe o mal que ele tem”. Aquilo ali marcou (Michel, 26 anos, auxiliar de
cozinha, Igreja Contemporânea).

Em seu relato, Michel entende ser vítima de um olhar que enfatiza a sua ‘diferença’
negativa, nesse caso perigosa e contaminadora. Considera que sua passagem por igrejas
evangélicas aponta para semelhante forma de controle, uma vez que toda igreja evangélica
“diz que vai para o inferno”. Em ambos os contextos, a informação sobre sua sexualidade
engendra necessidade de correção.
Em outro depoimento enfatiza-se semelhante experiência. O pastor Heraldo, ex-
integrante da Igreja Anglicana do Brasil, pastor da Igreja da Comunidade Metropolitana,
descreve a forma como situações em que a homossexualidade se torna pública enseja o
medo da contaminação:

A pessoa pode ser homossexual e viver ali naquela igreja durante anos, mas
quando ela diz “eu sou gay, olha pra mim, eu sou homossexual”, ela passa a ser
inoportuna. Essa é a experiência que eu tive e que muitas pessoas têm. Então
quando elas passam a ser inoportunas elas passam a não servir mais, a ser
tratadas como um cristão de segunda categoria e passa-se a ter cuidado com ela.
Todo mundo sabia que eu era gay [na igreja anglicana]. Quando eu disse
publicamente que eu era – eu era professor da escola dominical, trabalhava com
crianças – eu percebi que sempre tinha alguém me espionando. Aí um dia eu
perguntei pra alguém que gostava muito de mim (e eu gostava da pessoa): porque
fazem isso?. A pessoa me disse muito encabulada: eles têm medo que você
maltrate algum menino durante a aulinha da escola dominical, durante a
catequese. Isso foi uma coisa que me fez muito mal, porque eu disse: eu não sou
um depravado, um mal tratador de criança. (...) Eu não sou uma ameaça às
crianças (Heraldo, 44 anos, pastor, Igreja da Comunidade Metropolitana)

Em outro relato, Marcelo, ex-integrante da Igreja Batista da Lagoinha (a mesma que


congrega toda a sua família), em Belo Horizonte, contou que o namoro com um “irmão” da
denominação levou à descoberta de sua homossexualidade por toda a igreja. A experiência
de “ficar no banco” envolveu exortações e uma pedagogia do gênero. Ele interpreta a

274
experiência como uma forma de “exclusão”, implicada na necessidade de “virar homem” e
se arrepender. Primeiramente, ele confessou o fato à família, que envergonhada, buscou o
auxílio pastoral:

Eu saí com um irmãozinho da igreja. Ele não agüentou e contou pros pais dele
e antes que os pais dele contassem pros meus pais, eu já corri na frente. [risos].
E acabou que a família dele nem comentou, mas como eu contei pra minha
família. Isso deu um problema muito grande, porque minha família, minha mãe
se sentiu envergonhada. Porque assim, as igrejas tradicionais, elas têm mania
de intrometer muito na vida do irmão, do outro. Então assim, a igreja toda
ficou sabendo, eu fiquei um pouco mal, sabe? Os meninos da igreja começaram
a se afastar de mim. (Marcelo, 23 anos, Igreja Cristã Contemporânea, Rio de
Janeiro)

Em um distinto trecho ele explica:

Você está acostumado a ter um convívio aí com as pessoas e você abre mão de
coisas que você construiu. Ficar no banco não é muito bom. (...) Você fica só
olhando, vai lá, assiste o culto e vai embora. E isso é realmente uma coisa
muito, muito, muito complicada, muito chata. (...) Na igreja, não sei se você já
ouviu falar em ‘exclusão’. Dentro da igreja cristã evangélica quando a pessoa
faz alguma coisa errada, não se expulsa a pessoa da igreja, mas ela é
exonerada dos cargos dela. Ela tinha realmente que tomar uma postura ali pra
mostrar que se redimiu. (...) Então assim, eles queriam que eu virasse homem
de qualquer maneira e eu falei que não que é uma ciosa que realmente eu
sempre tive. (...) Falaram que eu tinha que virar homem, que eu tinha que ter
uma postura de homem, que eu tinha que imitar um homem, enfim; coisas e
mais coisas. (...) Eles mandaram eu ler o livro do Apocalipse inteiro, que eu já
sei de cor e salteado [risos]. E também tem uma referência que agora eu não
lembro onde está, mas um pedaço [que diz]: ai do homem que se deitar com
outro homem (Marcelo, 23 anos, Igreja Cristã Contemporânea, Rio de Janeiro)

Os relatos feitos pelo informante apontam para formas de cuidado pastoral na igreja
que incidem sobre o gênero: a necessidade de virar homem e ostentar um comportamento
reconhecidamente masculino reaparece nesse conjunto de entrevistas. Nesse caso, redimir-
se e tornar-se um bom cristão é necessariamente corrigir a efeminação, além de buscar
relações heterossexuais. A sanção institucional que recai sobre o desvio da regra é

275
novamente a impossibilidade de exercer certas atividades rituais e a retirada de cargos:
‘ficar no banco’.
Retomo aqui a análise da entrevista de Umberto, na qual ele evoca a situação em que
a revelação de um romance com um rapaz da igreja, na Assembléia de Deus, ensejou
suspeitas de “pedofilia” (temores de que ele abusasse e/ ou influenciasse jovens), a
suspensão de suas atividades como líder de mocidade, participante do louvor e professor de
“escola bíblica de crianças”. Inicialmente foram feitas “orações” para sua libertação e
concomitantemente seu afastamento de posições na hierarquia. Devido sua condição de
“pecado”, foi colocado “no banco”:

Diziam assim "Vamos orar? Eu vou orar por você... Você não vai poder mais
cantar. Você não vai poder mais pregar". Eu que saia de um lado para o outro,
todo mundo me levava pra todos os cantos pra pregar e de repente você não vai
fazer mais nada, vai ficar no banco da igreja! E o pior é que quando eu me
sentava no banco da igreja o povo se levantava não queria sentar comigo. Sabe o
quê que Deus fazia? As crianças sempre se atraíram a mim, entendeu? Se atraiam
a mim. Quando as crianças me viam, assim no banco, sozinho aí vinham e
passavam a mão na minha cabeça ‘Você tá triste’? Aí eu dizia ‘Eu tô, mas Deus
sabe, deixa pra lá, vai lá brincar com a mamãe’. Elas vinham e sentavam do meu
lado, porque eu fui professor de criança também. Eu percebo que Deus, Ele tava
com a mão sobre minha cabeça. (...) Eu acho que isso [a homossexualidade] pega
(risos). Talvez eles podiam pensar: "Se alguém me ver do lado dele vai pensar
que eu sou também. Vai pensar que eu tenho alguma coisa com ele". As pessoas
se levantavam do banco (Umberto, 30 anos, Comunidade Cristã Nova
Esperança).

O relato demonstra como a prática sexual (não necessariamente o desejo) enseja um


estado de impureza ritual. Umberto retornou, após um período, ao “ministério de louvor”,
até que por reincidir no “pecado vergonhoso” da homossexualidade fosse novamente
afastado. A narrativa que emprega acerca de sua trajetória religiosa mostra como o
momento anterior ao encontro de uma igreja inclusiva é percebido como implicado em
tensão constante com o poder religioso. No conjunto das entrevistas a percepção da não
aceitação (na igreja e no grupo familiar de origem) convive com uma visão inferior de si.
Vejamos como esta ‘diferença negativa’ aparece em outras biografias.

276
Zedir, socializado em crença mulçumana, apresenta um relato que assinala essa auto-
percepção. Para ele, a rejeição da prática homossexual na religião implicava uma espécie de
morte social. Seu relato chama atenção para a demonização do comportamento:

É como se você se tornasse a própria figura do satã, uma aberração literalmente.


E aberração tem que ser destruída. Então é aquela coisa assim, entendeu? Se um
filho se torna homossexual você morre, acabou. Então não tem diferença...
quando assim... tem família que considera assim: “poxa, saiu na rua um carro
atropelou e morreu, não temos mais filho”, entendeu? Então considera assim. A
partir daquele momento você tá morto literalmente mesmo. (Zedir, 47 anos,
vendedor, Igreja Contemporânea)

Em um distinto trecho ele reflete sobre o sentimento de temor que vivia em relação a
Deus e à própria sexualidade:

Hoje eu percebo que desde criança eu era homossexual. Eu notava os homens


desde criança. Eu tinha sonhos, sabe? Eu me lembro uma época que eu tinha dois
anos de idade; eu tive um sonho, eu transando com homem, mas assim: na vida
real eu tinha dois anos, mas no meu sonho já era adulto. (...) Eu tinha aquele
conflito de saber que eu era, mas eu lutava contra mim mesmo o tempo todo, né?
Chegou num ponto que eu até tentei me matar, mais na parte, no período da
adolescência, que é a pior fase. (...) Uma fase horrível da minha vida, entendeu?
Fase horrível! E eu tentei suicídio, aí todo mundo queria saber por que, aí eu não
falava, entendeu? Eu passava por louco. (...) Eu me aprofundava em orações, em
jejum, eu entrava na religião, me dedicava a Alá pra eu esquecer. Eu tinha medo,
tinha medo de tudo e de todos. Eu pensava, já nessa fase adulta, saindo da
adolescência pra fase adulta, eu temia o preconceito, eu temia a reação da
família, eu temia a represália da família, eu temia... a represália da própria
sociedade, na escola, os amigos. Eu tinha muito medo. (...) Eu temia, talvez que
se eu admitisse pra mim mesmo que eu era homossexual, ou aceitasse isso, eu
tinha medo que ocorresse alguma transformação no meu corpo. Eu achava que
poderia crescer peito, que os meus hormônios poderiam mudar, que ia nascer
vagina em mim, de repente desaparecer meu pênis. Era coisa da ignorância, da
inocência. Então, era uma loucura, Então, eu tinha muito medo. (Zedir, 47 anos,
vendedor, Igreja Contemporânea)

Como nas narrativas anteriores, comparecem os dilemas relacionados às tensões


interpessoais que ocorrem no âmbito da família, religião e outras redes sociais. Contudo, o
medo das emoções que a prática da sodomia evocaria na divindade - e o receio do sofrer
preconceito - leva ao cultivo de ‘pensamento suicida’, motivado por forte culpa. Orações,

277
jejuns e outros recursos rituais são empregados na busca por mudança do desejo sexual e na
tentativa de obtenção do amor de Deus. Esta análise realça como no conjunto das
entrevistas, a homossexualidade é vista nas religiões de origem como “um pecado”, uma
“aberração”, “uma coisa do diabo”. Este comportamento que precisa de cura e libertação,
levava à exclusão ou afastamento de atividades e ministérios, assim como a métodos de
purificação e correção (participação em ‘correntes de libertação’, retiros espirituais e
‘subidas ao monte’, jejuns e oração). Em alguns casos, ocorreu a desinstitucionalização da
religião, sendo recorrente o relato do afastamento da igreja, denominação ou cultos em
decorrência da descoberta da orientação sexual. Em outros, há retornos, motivados pelo
bem-estar que a religião evoca (sensações de proteção e cuidado por Deus) diante de
dilemas típicos das carreiras sexuais.
Contrastando com a adesão anterior, marcada pela rejeição, ´silêncio´ e não aceitação,
o encontro de uma igreja inclusiva produz sentimentos de “acolhimento”. A experiência
importa na descoberta do amor (incondicional) de Deus e na emoção de ser aceito por Ele.
No caso deste entrevistado, estamos diante de uma dupla conversão: a passagem da
crença mulçumana ao cristianismo, mas, vale observar, a um certo tipo de cristianismo, o
das igrejas inclusivas. A descoberta de uma religião cristã em que se possa conciliar vida
religiosa e orientação sexual é vivida com ‘espanto’, no momento de ingresso nas igrejas
inclusivas. Zedir contou que ‘ouviu falar’ sobre “igrejas gays”, tendo desenvolvido
‘reserva’ morais sobre a proposta: eram todos “adoradores do diabo”, “blasfemos”,
“atrevidos”. Com a freqüência à Igreja Cristã Contemporânea percebeu que havia a
“presença de Deus” naquele lugar, passando a sentir que Ele o ‘perdoava’ e ‘aceitava’. O
ingresso na vida religiosa ensejou um desejo interior de ‘mortificação da carne’ através de
oração e jejuns. É com essa motivação que ele freqüenta ‘poucos lugares gays’ e quando o
faz, busca um ‘comportamento correto’ aos olhos do Senhor (sem envolvimentos em
contatos afetivo-sexuais sem compromisso). O aprendizado na igreja está ligado ao cultivo
de um “coração misericordioso”, por meio do qual busca desenvolver a “compaixão”, se
colocando no lugar de sofrimento de outras pessoas e engajando-se em atividades de
“intercessão espiritual”. Zedir contou freqüentar semanalmente às reuniões de intercessão,
na qual oravam por pedidos e intenções da comunidade.

278
Dimas (ex-Assembléia de Deus) contou que a primeira vez que foi a uma
denominação inclusiva, na época a Igreja da Comunidade Metropolitana, teve “revelações”,
vendo as manifestações espirituais que ocorriam no templo. Obteve a ‘prova’ de que Deus
agia ali. Produziu-se um questionamento: se a homossexualidade era pecaminosa, como
sentia enormemente a presença do Senhor naquele ambiente? Nessas revelações, Deus lhe
ordenava que ingressasse “naquela obra”.
A participação no grupo “inclusivo” é interpretada como a superação de uma situação
de isolamento social, significando o encontro de uma comunidade de iguais. Essa narrativa
é feita por Delcio, 45 anos, branco, divorciado, ex-católico:

[A Igreja Contemporânea] Tem me ajudado muito a conhecer pessoas porque


eu sou uma pessoa muito sozinha. Eu tenho muito poucos amigos. Meus
amigos ficaram do outro lado quando eu me separei. Então ninguém veio,
ninguém me acompanhou como meu amigo. Aqueles amigos de escola, de rua,
que eu morei antes de casar. Eu tenho contato com eles e tudo, até essa semana
eu encontrei com um. Eles me respeitam e tal mas não sabem da minha vida.
[A Igreja Contemporânea] É um lugar que eu me sinto muito feliz, muito à
vontade, e o que eu puder fazer pela igreja, eu vou fazer. Eu gosto de
participar, eu gosto de ajudar. Eu estou participando do coral agora. Isso está
me fazendo muito bem. Como eu te falei (...) eu não poderia comungar e nessa
igreja eu posso. E eu sou divorciado, na Igreja Católica eu não poderia. Eu
quebrei um sacramento de matrimonio. A Igreja Católica desta forma, ela nos
exclui. Exclui os separados, independente de sexualidade. E a gente por ser
gay. Isso não é cogitado, não é falado. (Délcio, 45 anos, funcionário público,
Igreja Contemporânea).

O depoimento destaca que a vida religiosa pregressa implicava o cultivo do segredo


sobre o desejo sexual (Natividade e Gomes, 2006). Predominava na igreja anterior a gestão
pelo silêncio, de forma que – por sua condição de pessoa casada com desejos pelo mesmo
sexo – ele percebia-se em pecado, em condição indigna de obter o sacramento da
comunhão. Em contraste, na igreja inclusiva, toda pessoa, sem qualquer restrição, poderia
comungar. A experiência de participar da “ceia”, na Igreja Contemporânea, é tomada por
ele como um sentimento de inclusão e também de aceitação por Deus. Por outro lado, sua
fala sublinha que a situação de divórcio, decorrente do fato de ter ‘se assumido’, engendra
uma perda das amizades e redes: “os amigos ficaram do lado de lá”. Contudo, ele declarou
que tem conhecido pessoas e superado a ‘solidão’, na Igreja Contemporânea.

279
Já a narrativa elaborada por Elton traz novos elementos. Aos 27 anos, ele é ex-
integrante da Igreja Batista e da Igreja Renascer. Definindo-se como negro, homossexual,
este filho de um pastor evangélico, contou ter cursado “faculdade de teatro” e também
cursos de dança. O fato é acionado como mostra de um distanciamento dos valores
cultivados pela família. Ele mencionou ter adquirido uma “cultura diferente”, que trazia
“problemas dentro de casa”, interpretando as tensões familiares como “uma questão
geracional”, oriundas de sua tentativa de “cortar o cordão umbilical”: a família não via com
bons olhos o desejo de ‘ser artista’. Na Igreja Batista, desenvolveu muito “o lado musical”,
passando a cantar no grupo do louvor e dedicar-se a este ministério. Contudo, a auto-
descoberta e questionamentos sobre sua identidade sexual ensejaram dilemas interiores:

De alguma maneira eu estava em crise com essa questão da orientação sexual,


eu estava começando a descobrir isso. Na verdade, eu já tinha descoberto, só
que eu estava começando a querer explorar isso, a querer buscar saber o que
era, enfim... e nunca passou pela minha cabeça naquele momento que sexo
poderia ser uma coisa normal, e é normal. Então, crise familiar e busca de
identidade. (Elton, 27 anos, técnico em telecomunicações, Igreja
Contemporânea)

A reserva subseqüente quanto aos dogmas religiosos foi motivada por esse ‘descobrir-
se’ homossexual. Ele estava há dois anos desligado de uma igreja, mas sentindo falta de um
contato maior com a espiritualidade:

Eu estava sem Igreja, tinha saído da Renascer, estava chateado, não queria mais,
justamente porque quando eu voltei e a minha sexualidade veio à tona. [Na
Renascer] eu não gostei muito da maneira que trataram isso. Primeiro que
olharam como um defeito e não é um defeito. Depois porque trataram como
gente rica vê os problemas: não vê. Acho que de onde eu venho, se eu tenho um
problema, eu resolvo, não deixo de olhar para ele e achar que uma hora ele vai
[embora], não é assim. Saí da Renascer, estava chateado com igreja. (Elton, 27
anos, técnico em telecomunicações, Igreja Contemporânea)

Elton mudara-se recentemente do Complexo do Alemão, onde morava com os pais,


para uma ‘kitinete’ no Centro, compartilhada com dois amigos da Igreja Contemporânea. O
contato com esta denominação é percebido em termos de uma maior “abertura” para se
“deixar conhecer” por si mesmo e pelas pessoas. Ele descreveu essa experiência por meio

280
de uma reflexão sobre a interação com “irmãos”, através da atividade religiosa do
“discipulado”. Ele possuía sete “discipulos” e com eles procurava desenvolver uma relação
de “ajuda” e conhecimento mútuo:

Na Igreja Contemporânea, eu tinha voltado a fazer teatro eu estava muito


assim... muito triste. Eu sentia falta de ir a uma Igreja, eu sentia falta de estar
congregando e aí eu ouvi falar. Um amigo do trabalho tinha falado meses
antes, ele tinha me dito onde era, um belo dia eu resolvi ir. (...) Vesti a roupa e
fui. (...) Foi muito legal, eu gostei da igreja, era muito diferente daquilo que eu
imaginava que fosse (...). Eu imaginava que era uma reunião de bichas
sentidas, que foram rejeitadas, e que você ia ter uma climatização meio de
boate, de pub, de Café Odeon. (Elton, 27 anos, técnico em telecomunicações,
Igreja Contemporânea)

O que lhe chamava atenção era a “vontade das pessoas” de estar com Deus, e na
interação descobriu a importância de ser “discipulado” por um membro da igreja e obter um
aprendizado religioso:

Foi justamente no “discipulado” que graças a Deus eu tive contato com um


“discipulador” que pudesse me mostrar a importância de estar em contato com
pessoas, de deixar as pessoas chegarem, deixar as pessoas conhecerem. Eu fazia
muito uma coisa que, eu usava, um esquema muito parecido com o que a
Madonna gravou, que é ‘Nobody Knows Me’. Ela fala sobre muitas coisas, “eu
criei personagens, eu criei coisas e não deixei que você se aproximasse de mim”.
“Na verdade ninguém me conhece, estou intacta, estou viva”. Por isso eu estou
vivo. Na verdade as pessoas usam o que conhecem de você justamente para
atingir você e isso não é legal. Justamente par não ter que entrar em litígio eu
evitava isso, sempre fugi de chatos. (Elton, 27 anos, técnico em
telecomunicações, Igreja Contemporânea)

A narrativa assinala como a mudança se produz na intersubjetividade. O encontro


com o outro (igual a si) é central no processo de aceitação que sua sexualidade (sua
“orientação sexual”) foi projetada por Deus. Desta forma, como assinala a letra da música
que citou, não ‘cria’ mais “personagens” ou “máscaras” que encubram sua ‘verdadeira
essência’. Ter voltado a “estudar teatro” e o encontro de uma igreja que acolhe sem exigir
“cura” é central no processo de construção de si.

281
A superação dessa diferença ‘negativa’ é assinalada na fala de Saulo. Ele reporta o
período que conheceu a Igreja Presbiteriana de Copacabana, que classificou como ‘aberta
aos homossexuais’:

Há uns anos atrás eu conheci um grupo de pessoas que freqüentavam uma


igreja em Copacabana, a Igreja do [Pastor] Nehemias. [Eles] Formaram o
Grupo Convivência Cristã. Eu freqüentei um bom tempo com esse pessoal. Lá
eu dirigia louvor, cantava com eles, fiz algumas caminhadas, alguns passeios
com eles também. E uma delas foi subir o Pão de Açúcar. Nós éramos seis
pessoas e um dos rapazes que já fez seminário Batista como eu, começou a
falar umas coisas legais. Leu a bíblia e começou a falar: (...) acho que Deus me
ama como eu sou’. Eu comecei a rir compulsivamente, e falei é isso aí. Chega
disso, eu sou feliz como sou, Deus me ama como eu sou, vou continuar
amando a Deus. Eu achava ingratidão de Deus ter me feito diferente e de uma
forma que sofro porque sou perseguido. É chacota para todo mundo, ser
homossexual. Naquele dia eu senti que Deus me amava como eu era e falei
chega! Acabou! Vou me amar assim e vou viver como eu quero viver. (Saulo,
44 anos, funcionário público, Igreja Contemporânea)

O depoimento sublinha as justificações produzidas nesse contexto. Deus “fez assim”.


A divindade o ‘aceita’ como ‘é’. Como assinala Wolkomir (2001), na já citada pesquisa
junto a “igrejas gays” americanas, a promessa de aceitação por Deus e de Seu “amor” e
“perdão” são centrais para o estabelecimento do compromisso com o grupo. Na fase
seguinte, os indivíduos são encorajados a experimentar esse ‘amor divino’ e a “cura” para
as emoções negativas, decorrentes da discriminação, preconceito e rejeição social. Eles são
exortados pelo poder pastoral a ‘entender’ que Deus não julga, não exclui, não hierarquiza
pessoas, mas “compreende”, “cura”, “toca”, “limpa” as emoções negativas, libertando do
preconceito e das “feridas psicológicas” que tornam uma pessoa emocionalmente “doente”.
Esse discurso, conforme analisei no capítulo dois desta tese, é indicativo de uma
apropriação de técnicas e métodos oriundos da psicologia pela religião, traduzindo-se no
uso de uma linguagem terapêutica nos rituais. Seguindo a pista de Lewgoy (2005), no
centro da proposta pastoral está a noção de bem-estar e da cura emocional.
No citado relato, o sentido da diferença é convertido de negativo em positivo, de
modo que é acentuado o exemplo fornecido pelo outro ‘igual’. Saulo acabou por migrar
posteriormente para a Igreja Cristã Contemporânea e nela afirmou ter ouvido “palavras de

282
amor” e “de aceitação”. A inserção neste grupo religioso é tomada também como
possibilidade da superação de “perdas” (um relacionamento, a morte de parentes e um
sentimento de solidão). A este respeito Michel relatou que, após o término de um
relacionamento homossexual, solitário e em crise, superou a “perda” ao sentir o “amor de
Deus”:

Foi numa quarta-feira, eu fui num culto de unção. Foi quando eu falei com
Deus: eu agora desisto por aqui. Já fui à pomba-gira, já fui a preto velho, já
recorri a tudo e a todos. Então, se realmente existe uma força bem maior, agora
está nas tuas mãos. Então, comecei a aceitar o término do relacionamento.
Entendi que não foi nem ele, nem eu. Erramos os dois. E também que as coisas
são como tem que ser e todo mundo já teve as suas quedas de relacionamento e
nem por isso vai morrer. E comecei a ser mais paciente. (...) e foi como se
minha vida toda eu tivesse feito vários caminhos. (...) Hoje em dia eu consigo
louvar a Deus, sentindo realmente a presença ‘Dele’, o amor ‘Dele’ na minha
vida, principalmente que ‘Ele’ não me condena pela minha orientação.
(Michel, 25 anos, auxiliar de cozinha, Igreja Contemporânea)

Uma outra entrevista, concedida por Saulo, oferece descrição confluente:

Eu conheci a igreja por um e-mail que um amigo me mandou em maio do ano


passado. (...) Tem um ano e pouco agora. Eu fui abraçado. Posso dizer que a
igreja nesse período me salvou porque estava longe dos amigos, família, muito
perseguido no trabalho, longe dos meus ideais. (...) No principio foi ouvir
coisas que precisava e queria ouvir. Eram palavras de amor, eram palavras de
carinho, palavras de aceitação. Nem só isso, eu estava muito quebrado, muito
dolorido. Então assim, eu me sentia muito só, apesar de ter muitos amigos, mas
os amigos moravam longe, não podiam estar do meu lado. A maioria são
casados, tem suas esposas, tem os seus filhos. (...) Aqui [na Igreja
Contemporânea] a maioria mora mais ou menos próximo, um bom grupo mora
próximo. Tem o mesmo pensamento, passaram o que eu passei com questões
de igreja. Porque muitos vieram de outras igrejas, muitos vão se agregando de
lá, mas muitos vêm de outras igrejas. Não são aceitos em outras igrejas. Eram
muito respeitados, por incrível que pareça, eram lideranças nas suas igrejas,
eram respeitados nas suas igrejas. A maioria. Então ali, eu via pessoas
inteligentes, pessoas cultas, pessoas com um bom crescimento espiritual,
também. É, são essas pessoas que eu estou lidando hoje. Então, além de chegar
ali, ouvir uma palavra maravilhosa vinda do pastor, que eu sei que veio de
Deus, eu creio nisso e entendo desta forma também. Falou muito no meu
coração, me dava conforto, me fazia chorar, desabafar. Eu refletia também. Eu
fui sendo recebido, a principio nem tanto, mas logo depois eu fui me
enturmando, a coisa foi crescendo, e hoje o perfil da igreja é muito esse,
acolhedor. (Saulo, 44 anos, funcionário público, Igreja Contemporânea)

283
Uma interpretação particular é esboçada em outra entrevista. Nela, o entrevistado faz
uso de uma linguagem metafórica para comparar homossexuais com seres mutantes,
recorrendo ao exemplo de uma história de super-heróis. Os X-men são personagens dos
quadrinhos Marvel que, levados a uma “escola” por um bem-feitor, descobrem-se
portadores dessa diferença poderosa, com a qual devem aprender a conviver e desenvolver
ao máximo suas potencialidades inatas na “luta contra o mal”. Um dado interessante do
enredo dos quadrinhos é que os mutantes, anteriormente, viviam sua diferença como uma
“aberração”. Na descoberta de outros iguais encontram uma missão e recuperam seu
sentido de normalidade. Vejamos como o informante elabora essa narrativa:

Eu brinco que todo gay é um ‘X-man’, ele tem um ‘xiszinho’ na testa, ele
precisa se reunir pra realmente resgatar a dignidade, a auto-estima “Sou gay
sim, mas isso não me impede que eu bote meu joelho no chão, que eu clame a
Deus. Sou gay sim, mas isso não impede de orar pra você e profetizar que você
vai ser uma pessoa abençoada. Vai ter uma benção em sua vida”. Não é pelo
fato de eu ser gay que isso vai impedir de eu ser usado, sabe? (...) Porque o gay
é muito marginalizado, aquilo que é marginalizado é porque ele vive a
margem, ele vive largado, ele vive em guetos, vive escondido, aí da pra
associar bem ao desenho dos X-men, porque se você ver bem, cada
personagem tem sua qualidade, tem coisas que pode ser útil e a mesma coisa o
gay. (Michel, 25 anos, auxiliar de cozinha, Igreja Contemporânea)

Tal como no enredo do quadrinho, o que está em jogo é a aceitação de sua ‘natureza’
e descoberta da diferença como positiva. A passagem da aberração à normalidade coloca
em evidência o empoderamento dos sujeitos. Não mais um pecador que Deus castiga ou
despreza, mas alguém que pode ser usado por Deus, este indivíduo é detentor de uma
missão religiosa. No encontro com outros iguais, ele descobre que há dentro de si “força”,
“dignidade”, que foi “selado” por Deus, com dons espirituais.
A relação consigo mesmo é matizada pela percepção de uma intimidade e
reconciliação com a divindade, anteriormente rompida ou perturbada pela sensação de
transgressão às normas religiosas pela prática do pecado. Se é recorrente o relato de
“desafios” feitos a Deus, relacionados ao desejo de curar-se e tornar-se uma pessoa

284
129
“normal”, “heterossexual”, a descoberta de uma igreja inclusiva e de outros sujeitos
sociais que atravessam o mesmo dilema leva ao retorno da vida eclesial e do sentido
religioso de si. Há a passagem de uma condição de apartamento de Deus a uma nova visão
de si como indivíduo ‘escolhido’.
Chama atenção nas entrevistas a referência a uma sensação de acolhimento pela
igreja, que possibilita a percepção de si enquanto ‘normal’. O depoimento de Delcio, já
citado neste capítulo, assinala esse dilema. Ele refere que a separação de sua esposa, com a
qual viveu cerca de vinte anos, e a decisão de ‘assumir-se’, originaram conflitos interiores:
Na minha cabeça era errado ter esses desejos. Eu tive a oportunidade de não ter
casado. Eu tive chance de ter tido relações com homens e com medo [do pecado]
(...) eu fui me anulando. Eu tinha uma irmã que ela tinha um amigo gay, ele
levava umas revistas eróticas lá pra casa. (...) Eram uns contos eróticos. Eu era
novo, tinha 10, 12 anos e eu catava a revista e lia. Não sabia nem como me
masturbar. Era muito estranho, tenho até vergonha. Eu roçava na toalha e deitava
no chão do banheiro de casa. (...) Eu não tinha nenhuma orientação sexual, eu
descobri no tapa a minha sexualidade. E que mais? E fui vivendo a minha vida.
(...) Eu era muito tímido, eu tinha uma certa dificuldade pra me relacionar com
mulheres e tentei namorar uma menina mas eu não tinha assunto com a garota. A
gente ficou um dia junto e eu não sabia beijar a garota direito. E minha mulher...
eu tinha 21 anos. (...) Foi a minha primeira namorada, com 21 anos. Virgem com
21 anos. E a gente começou a namorar em fevereiro, e a gente botou na cabeça
que ia casar no ano seguinte. (...).No inicio do ano de 2000, eu conheci uma
pessoa (...) e eu me apaixonei por essa pessoa e comecei a me afastar da minha
ex-mulher, e quando veio o aniversario de casamento, são três meses de namoro,
eu briguei. (...) No meu caso eu tava me traindo também porque eu acho que foi
um período que eu envelheci muito. Eu não estava sendo eu mesmo, eu tava
vivendo dois mundos. (...) Era uma pessoa sem caráter porque eu queria ter o
meu lado homossexual e ao mesmo tempo não tinha coragem de me livrar do
meu mundo que estava criado. Eu tinha que desligar, eu estava com uma pessoa
que eu estava feliz e tal, e chegava em casa, eu tinha que demonstrar que estava
feliz, e tinha que interpretar um papel que eu não queria pra minha vida, mas eu
levei dois anos. Foi um período muito difícil. Eu acho que eu chorei muito por
dentro, eu perdi muito da minha vida. (Delcio, 40 anos, funcionário público,
Igreja Contemporânea)

129
O conseqüente diagnóstico do “fracasso da cura” leva ao questionamento da missão religiosa. Há ênfase na
percepção de si como pecador. Isto é realçado nas entrevistas em que há menção ao afastamento de cargos
eclesiais porque “não se sentiam bem”, agindo em desacordo com a doutrina religiosa e o que prega a Palavra
bíblica.

285
Délcio argumenta que o período em que viveu casado com uma mulher não tinha uma
“orientação sexual”. Por outro lado, reporta o medo do pecado como motivador de seu
ingresso em um casamento heterossexual. Há em sua narrativa a percepção de que a
“timidez” e a “dificuldade” para se relacionar com uma mulher eram indicativos de sua
‘diferença’. A infidelidade à esposa é interpretada como uma “traição”, a si próprio e a sua
verdadeira natureza. Ele interpreta a necessidade de ‘separar-se’ como forma de evitar viver
entre “dois mundos”: um artificial, resposta às convenções sociais, e outro, no qual pode
“ser feliz”. A representação de um papel que não corresponde ao seu verdadeiro eu
ensejaria o desenraizamento da família e da igreja. Ele contou durante a entrevista sobre o
aprendizado do “amor de Deus”:

(...) Quando eu fui pra Contemporânea, foi uma coisa: eu não fui pra procurar ninguém,
não fui pra procurar homem. Fui pra procurar um ambiente religioso mesmo, assim, fui
para conhecer e descobri uma coisa muito boa lá dentro. E eu podia ser eu mesmo. (...) A
comunhão dos casais. Irem dois homens lá e receberem a comunhão, juntos. Eu acho
aquilo muito bonito. (...) Então isso me fez muito bem de ver que a gente tem um lugar
que a gente se respeita e é respeitado. Eu só tenho melhorado, ainda estou aprendendo
muito. Agora que eu comprei minha Bíblia. Ainda não sei mexer na Bíblia. Eu to
apanhando, eu to engatinhando ainda. Mas eu já tenho noção do que eu quero pra mim.
(...) Eu vim aprender que Deus me ama, não é possível que Deus não me ame. (Delcio,
40 anos, funcionário público, Igreja Contemporânea)

É importante observar, contudo, que processos de construção de si são complexos e


multifacetados, importando o trânsito entre diferentes mundos sociais. Embora atribua à
experiência religiosa uma dimensão central de sua vida, Júlio compreende que a descoberta
da homossexualidade está relacionada a um desejo de expandir-se além dos domínios da
família e do contexto em que fora criado: em uma cidade do interior do Rio de Janeiro. A
migração geográfica (do interior ao centro urbano) é tomada como propiciadora de um
processo de autoconhecimento e questionamento das expectativas sociais tanto de sua
família quanto da igreja de origem, sobre o casamento e a heterossexualidade. Expressões
como “abrir a mente” que incluiu ainda a adesão à terapia psicanalítica são empregadas por
ele para descrever essa experiência:
Você acaba abrindo sua mente pra várias coisas e acaba vendo o mundo de forma
diferente. E esse é um processo legal, um processo de conhecimento mesmo de
você. Você pode escolher: ou você cresce ou você continua daquela maneira. Eu

286
poderia realmente... não sei se eu poderia - mas como algumas pessoas fazem -
apagado a minha sexualidade, vivido em Magé, casado e hoje ter uma
familiazinha lá mais ou menos, como milhões de pessoas na mesma história tem.
(...) Eu queria mais. Eu queria ser quem eu era, eu queria descobrir mais,
conhecer mais. Eu queria fazer parte de uma classe média, elitista, não estava
contente no mundo que eu vivia. Da maneira que vivia. Acho que essa ansiedade
de querer mais de Deus, de querer conhecer mais, saber mais, não só de Deus,
mas de tudo. Foi um processo... ih terapia... vai lá (risos). (Júlio, 24 anos, auxiliar
administrativo, Igreja Contemporânea)

A narrativa indica que a atribuição de novos significados ao desejo é concomitante ao


circuito das novas redes sociais e ao contínuo processo de interrogar-se sobre si. A adesão à
denominação inclusiva consiste aqui mais um dos recursos modernos disponíveis ao projeto
reflexivo que engendra o exame do passado, presente e especulações sobre o futuro
(Giddens, 1992: 40).
A trajetória desse entrevistado contém elementos típicos do aprendizado social da
homossexualidade, tal como Carmem Dora Guimarães analisou em sua clássica pesquisa
“O homossexual visto por entendidos”, realizada a partir de trabalho de campo em redes
homossexuais, nos anos 1970. Naquele contexto sócio-cultural, destaca a autora, era
premente a atribuição de novos sentidos sobre si na passagem de situações/ contextos rurais
tradicionais ou interioranos (rede de malha estreita) ao contexto urbano do Rio de Janeiro
(rede de malha frouxa ou de anonimato social relativo). A constituição da auto-identidade
para os sujeitos sociais estava associada à descoberta de novos nichos sociais para a
expressão da diferença e de um sentido positivo de si. O processo de construção descrito
pela autora comportava a manipulação de estigmas por meio da rejeição da categoria
“bicha” e da adesão à identidade de “entendido”, um homossexual moderno, discreto, que
não ostentava sinais tão marcantes de sua opção sexual. A trajetória de seus informantes é
marcada pelo relativo desentranhamento dos sujeitos sociais de certas redes e de seu
ingresso e socialização em um novo circuito. Nos casos analisados neste capítulo da tese,
processos similares de desentranhamento ocorrem em confluência com a inserção no
universo inclusivo, constituindo este um elemento adicional no processo de assumir-se
homossexual; nesse caso, um “gay cristão”.

287
A adesão ao novo culto representa um aprendizado marcado pela ressignificação do
desejo sexual: de pecado à bênção. A passagem ao grupo inclusivo compreende a
experiência de que ‘Deus ama’ o homossexual como ele ‘é’. A “orientação sexual” é re-
interpretada como bênção que aproxima de Deus e não como pecado, signo de
inferioridade. Produz-se uma situação de confluência entre o desejo sexual e a vida
religiosa.
Por outro lado, vale observar que essa experiência não possibilita o rompimento
dramático com o universo de valores anterior, mas apresenta continuidades. Nas biografias
analisadas identificou-se uma tensão entre permanência e mudança, por meio da qual se
incorporam concepções e valores do universo hegemônico religioso, como a crença em
demônios e idéias cosmológicas próprias do pentecostalismo. Apresenta-se também como
um elemento constitutivo da experiência de boa parte desses sujeitos a adesão a uma ética
sexual que contrasta com a visão hedonista do prazer, com foco na intensidade e variedade
das experiências. Isso é premente na análise dos discursos sobre o exercício da sexualidade,
que preza pela monogamia e relações estáveis, mas funda-se em uma concepção menos
moral do que ética. O mal existe e demônios podem arrastar aos prazeres. Ao indivíduo,
cabem as decisões sobre a gestão de sua vida sexual. Contudo, ele necessita refletir sobre o
“corpo templo”. O maligno apresenta-se sob a forma da suscetibilidade à fraqueza, à falta
de controle, ao prazer que “não acrescenta”, a ausência de amor, de cuidado consigo que
expõe ao perigo de doenças. Nesse sentido, o controle da religião é desejado e uma crença
que reforça a importância do comedimento é coerente com esse universo de valores. Esse
aspecto é significativo em alguns depoimentos.
José é negro, estudante universitário, morador de Ramos e integrante da Igreja
Contemporânea. A trajetória religiosa comportou o trânsito por mais de dez denominações
como Igreja Batista, Nova Vida, Universal do Reino de Deus e Igreja Renascer e inúmeras
outras. Nesta última, teve maior contato com ministérios de cura e libertação. 130 Ele
descreveu esse período como de “aprendizado” sobre “guerra espiritual”. Por exemplo, fora
instruído sobre como demônios ‘regiam’ países, bairros, áreas geográficas específicas,
130
Quando pequeno era levado por uma tia e outros parentes, a um templo Testemunha de Jeová. Outra parte
da família era integrante da Igreja Batista. De uma forma geral, familiares professavam fé evangélica e
possuíam cargos eclesiais.

288
originando determinados comportamentos sexuais. No Brasil, Iansã induzia ao
homossexualismo feminino. Maria Padilha e outras pomba-giras levavam à prostituição.
Esses diabos faziam pessoas acreditarem em “conceitos” que não refletiam o “cristianismo
puro”. Havia ainda a questão espiritual: quando uma pessoa se unia sexualmente à outra,
ela podia criar vínculos demoníacos porque as duas se tornavam “uma só carne”. Nessas
denominações convencionais, contudo, um homossexual que confrontava a norma, era
“julgado”, “apontado”. Por esta razão, ele pensara em “arrumar uma mulher” e constituir
família. No auge das suas “crises existenciais com Deus” conhecera uma sala de bate papo
de “gays evangélicos”. Nela, soube sobre a existência das “igrejas inclusivas”. Ele descreve
quando esteve pela primeira vez na Igreja Contemporânea:

Eu cheguei lá, olhei as pessoas cantando. Achei muito estranho. Me senti um


pouco fora, mas me senti muito bem. Ao mesmo tempo que me sentia deslocado
por não conhecer mesmo ninguém ali, eu sentia muita paz. Eu olhava pra cara
das pessoas e via, me sentia solidário. As pessoas querem viver o que elas são e
não querem deixar Deus por isso. E aí eu vi muita sinceridade, e aí eu gostei.
Nunca mais faltei ao culto. Tô lá até hoje. (José, 20 anos, universitário, Igreja
Contemporânea)

A chegada à igreja inclusiva significa o encontro de uma comunidade de iguais. Ao


realçar que se sentiu solidário naquele primeiro momento reforça essa interpretação. Depois
de um tempo, ele tornou-se “aspirante” a diácono e cultiva o desejo de ser pastor. Participa
também como “levita”, que é aquele que tem a função de “levar o povo a louvar a Deus”.
Recebera a “unção de Deus” para essas duas funções.
A entrevista dele ocorreu em um bar na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, nas
imediações de seu trabalho. Na ocasião ele contou que Deus já o ‘salvara’ de muitas
situações. Recentemente fizera um teste anti-HIV porque queria ficar com ‘a consciência
tranqüila’. Vivera grande angústia antes de obter o resultado. Mas estava aliviado.
Aprendera com a lição. Procurava agora mudar seu comportamento e não se envolver em
situações como antigamente: quando “ficava” com muitas pessoas numa mesma noite.
Criticou boates e locais GLS que tinham espaço para sexo como darkroom, mas as que
visitava, não possuíam essa dependência, o que aprovava porque tornava “a luta menor”.

289
Quando freqüentava uma reunião de meninos gays no shopping Tijuca, chegara a beijar três
ou quatro em plena praça de alimentação. Agora, não vivia mais como “pinto no lixo”. Era
mais “responsável”. Na igreja inclusiva que freqüentava, crescia o rigor com o controle
comportamental. Ele via isso de forma positiva e espiritual. O pastor recebera revelações
recentes sobre a necessidade de que gays tinham de ser fiéis e tementes a Deus e aos seus
parceiros. Esse rigor não o incomodava, pois tinha clareza de que nem tudo era conveniente
a um cristão. Ele definiu como pecado atitudes que excediam os limites de Deus para o
exercício da sexualidade humana, destacando preocupação, sobretudo, com a troca de
parceiros. Deste modo, à luz da nova adesão religiosa compreende o passado como de
“excessos” na sexualidade:

Eu cheguei a exagerar algumas vezes. As coisas que eu fazia, mas eu acho que é
questão de quem tá conhecendo mesmo. Por exemplo, entrar naqueles quartos
escuros. Sabe, pra mim hoje, eu não vou entrar ali, eu tenho um medo daquilo
danado. Já entrei, cheguei a entrar umas três vezes. Depois eu fiquei com a
minha consciência pesada, porque eu não achei legal aquela coisa toda. Na hora é
muito bom, mas depois eu não gostei daquilo. (...) Porque é um ambiente muito
promíscuo, que não condiz com o meu caráter aquilo ali. Eu não concordo com
aquilo ali, mas se você tá envolvido com aquilo, sabe? O sexo é a coisa mais
importante. Seus amigos só falam em sexo, sexo, sexo, sexo. Em momento
nenhum a questão amorosa é posta, então você vai fazer sexo. Me preservei, tudo
direitinho, mas depois fiquei com a maior consciência pesada, sabe. Aí fiz todos
os exames possíveis do mundo, graças a Deus não deu nada. (...) Posso ir, posso
chegar perto, brincar, mas igual, igual, igual tava não, não mesmo. Uma das
coisas que a Igreja Contemporânea me ajudou é que ela me botou uma pessoa
“responsável”, que eu tava numa irresponsabilidade tremenda, sabe, num
extremo que eu ia acabar morrendo. (José, 20 anos, universitário, Igreja
Contemporânea)

A categoria “responsabilidade” é central na forma como uma ética sexual orienta-se


por este valor. Trata-se, sobretudo, de enfatizar a responsabilidade individual do sujeito na
direção de seus comportamentos e atitudes no plano da sexualidade e da opção por seguir
os princípios de uma “vida cristã”.
De forma coerente com os valores dominantes do cristianismo, a ênfase concorre para
a monogamia e uma crítica ao sexo sem compromisso. Na fala apresentada, é premente a
adesão a uma ética sexual que implica reflexão sobre a importância do amor e de um

290
comportamento comedido. Contudo, quando indagado sobre o uso de preservativos nas
ligações monogâmicas, afirmou não sentir tanta necessidade depois de ‘conhecer a pessoa’.
Outra entrevista oferece elementos para reflexão. Em perspectiva semelhante, Dimas
emprega a noção de “pecado” para situar as formas de exercício da sexualidade que não
correspondem a um modelo de união estável e desvinculada da noção de “amor”. Formas
“ímpias de sexo” seriam opostas à estabilidade do “casamento”, de uma “relação estável”
com outro homem. Ser evangélico e ser um homossexual temente a Deus implica em “se
cuidar”, evitar “caminhos de perdição”. Como profissional de saúde, sabia que a
“libertinagem” era “uma coisa séria”. Ele considera que, apesar de já ter conhecido saunas e
cinemas gays, nunca foi “muito pervertido”. Poderia contar as poucas vezes que
freqüentara. Quem “se perde” se expõe a doenças como HIV e outras sexualmente
transmissíveis. Havia influências espirituais que podiam levar pessoas a ter
comportamentos negligentes com seu corpo. O diabo gostava de causar doenças e destruir
uniões abençoadas. Quando uma pessoa caía “em pecado”, exercia seu “egoísmo” e isso se
oporia ao amor sublime da relação estável. Em um trecho de sua entrevista, Dimas explicou
a forma como percebe, contudo, que existem “pendores da carne” e “ação maligna” para
arrastar ao pecado:

Eu acho que pecado é pecado! (...) Eu não concordo com a questão pegação. (...)
Eu acho que aqueles homossexuais que, pessoalmente, não se cuidam, esses
acabam pegando não só uma HIV, uma hepatite! (...) Ser homossexual não
significa você ser safado, ser homossexual não significa que você é pervertido,
ser homossexual não significa que eu seja um tarado, não significa isso. Ser
homossexual significa que a minha opção é por outro homem! Sei lá, então ah, eu
sou homossexual então agora eu posso fazer pegação? Posso fazer no campo de
Santana, no banheiro da Central [do Brasil], posso fazer não sei onde, posso
fazer não sei que lá? Vou pra linha do trem de não sei onde? Não! No Aterro do
Flamengo que o povo fala tanto! (..) Então o que acontece? Eu acho que é
libertinagem é uma coisa, liberdade é outra. (...) Pecado é tudo aquilo que te faz
mal. Sexo é fisiológico? É fisiológico sim, com certeza! É muito bom? É muito
bom! (...) Existem espíritos, demônios de prostituição, entendeu? (...) porque na
verdade, o demônio ele não inventa, ele só atiça aquilo que você tem. Se você
tem tendências a mentir, ele vai exacerbar, ele vai aumentar a sua vontade de
mentir. Se você tem tendência a se prostituir, ele vai abrir as portas pra você se
prostituir. (...) O que é espiritual ‘sai’, mas a carne é a carne. E se a carne é a
carne, se minha tendência é ser infiel, as portas da infidelidade ela vai ser aberta
como ninguém. (...) Existem coisas da carne, existem coisas do espírito e existem

291
coisas demoníacas. Eu não vou dar uma de advogado do diabo e dizer que nem
tudo que acontece é demônio, nem tudo que acontece é carne, nem tudo que
acontece é Deus. (...) O que acontece é o seguinte: a gente tem uma porção de
querer fazer o mal, (...) é a vontade da carne fazer o mal o tempo todo. (...) Eu
estar no fato de uma pegação pode ser só um momento carne, sem interferência
nenhuma do inimigo? Até que ponto eu sou usado por Deus e até que ponto eu
sou usado pelo inimigo para destruir uma família? (...) Eu acho que tem sim o
dedo do inimigo sim, mas tem muitas coisas, mas é aquele negócio, o inimigo ele
não faz as cosias sozinho, ele não faz, ele te sugere “Olha, tem isso aqui pra
fazer. Você quer?” A opção é sua. Ele não te empurra, ele faz assim uns assédios,
ele vai assim nos pontos “Xs” pra poder mexer com você, mas só sede se você
quiser. (Dimas, 32 anos, enfermeiro, Igreja Contemporânea).

O depoimento é rico na forma como Dimas interpreta as intenções do demônio em


afetar as uniões monogâmicas. Contudo, ressalta que o “inimigo” apenas ‘sugere’ o
pecado, cabendo ao indivíduo a responsabilidade de ceder ao desejo da carne ou pelo
“temor a Deus”, resistir. Nessa visão cosmológica, há ênfase na noção de livre arbítrio e na
responsabilidade para o cuidado de si. Ser usado por Deus (ser responsável, optando por
reduzir excessos sexuais) se opõe a ser usado pelo diabo (irresponsável, praticando sexo de
forma desordenada). A mensagem é exemplar dos valores que permanecem como pano de
fundo: o ethos religioso protestante originário da Reforma, exemplo forte da adesão à ética
da constância moral e de uma concepção de indivíduo moderno responsável, exorta ao
autocontrole e ao exame de si no campo da sexualidade, É com base nesse ethos que outro
informante cedeu seu relato, enfatizando a crença na gestão das relações afetivas por Deus.
Quando o entrevistei, Michel ingressara na Igreja Contemporânea há
aproximadamente um mês. Estava em processo de crescimento de sua “intimidade com
Deus”. Buscava “falar em línguas”. Ele tivera passagem pelo catolicismo, macumba e
espiritismo kardecista. Contudo, a confissão da experiência religiosa anterior ao pastor
inclusivo levara a exortações de que deveria abandonar definitivamente a freqüência a
cultos espíritas, se quisesse seguir a Jesus e se libertar. Em sua interpretação, apesar disso,
o espiritismo era “cristão” e fornecia boas explicações para os fatos da vida. Isso
possibilitava que ele se apresentasse a mim como um rapaz “gay kardecista evangélico”.
Acreditava que uma pessoa era homossexual não por “vontade de Deus” mas por
“permissão”. Nesse caso, há resgate de “erros do passado” e correção de “coisas graves”

292
cometidas. Trata-se de uma questão de “caminhada espiritual”. Por exemplo, era muito
difícil ser um “casal homossexual”, dada a “natureza promíscua” do homem.
Homossexuais tinham problemas para ser fiéis devido à dificuldade para lidar com a
sexualidade. Nesse sentido, Michel percebia que a vivência na macumba ensejava um
comportamento mais permissivo. Ele bebia e fumava muito, além de ir com regularidade
ao Buraco da Lacraia, uma boate que acreditava se assemelhar à cidade de Sodoma e
Gomorra, onde “o mundo se acabava em sexo”. O espiritismo ajudava, contudo, a perceber
que nem tudo era lícito. Desta forma, apesar de freqüentar lugares gays, afirmou cultivar a
crença de que esse comportamento desagradava a Deus. O ingresso nessa igreja inclusiva
pentecostal colaborava para a reflexão sobre os excessos que cometia na área da
sexualidade. Recorrendo ao “poder do Espírito Santo”, não perdia mais noite de sono,
reduziu a bebida e não praticava mais sexo com desconhecidos. O estabelecimento de um
relacionamento estável com um rapaz da igreja consistia em “livramento divino”:

De repente eu poderia estar na frente de um hospital, sendo um pré-paciente de


cirrose. De repente eu poderia estar na fila pra buscar um coquetel, com uma
doença. Então eu louvo a Deus por isso. Essa é a minha forma de agradecer, de
adorar a Ele. É cantar louvores a Ele, cantar da forma que meu coração esteja
eternamente grato. Grato pela minha vida, grato pelo projeto Dele na minha
vida, acima de tudo. (...) E o interessante é que as outras pessoas olham pra
mim e “Nossa, você está diferente. Você está mais calmo. Eu não sei o que está
acontecendo contigo”. E é gostoso ouvir isso. Eles podem não saber, mas eu
sei o que está acontecendo comigo. Eu sei que é Deus, é a unção de Deus que
está vindo. (Michel, 25 anos, auxiliar de cozinha, Igreja Contemporânea)

Michel então narrou como recebera, no dia de seu aniversário, um “presente de


Deus”. Naquele dia, quando chegara a igreja, enfrentara uma séria luta espiritual. Estivera
numa boate gay na semana anterior e bebera em demasia, como era costumeiro. Dirigindo-
se para o culto, refletia que não queria mais “aquela vida”. O reencontro com um rapaz que
paquerava pareceu-lhe um “sinal de Deus”. Apesar de não pretender “arrumar namorado na
igreja”, estava diante de uma situação inesperada. Tudo se passara rápido demais nos dias
anteriores. Os dois tinham se aproximado. Foram advertidos, contudo, de que era proibido
o relacionamento na igreja, pois ele ainda não estava “firme na fé”. Ambos vinham
seguindo a orientação pastoral e puseram-se a orar para saber se aquela relação era “da

293
vontade de Deus”. A resposta positiva veio naquele dia. Michel desafiara a Deus,
questionando-o sobre sua “sexualidade conturbada”. Não conseguia ficar nem um dia “sem
ir a um banheiro público”, buscar contatos sexuais com outros homens. Queria um
relacionamento de Deus. Naquele dia, assistiram ao culto juntos. Na hora da oração, cada
um entregara a vida do outro a Deus. Depois da reunião, pediram ao pastor que fizesse uma
“oração para o casal”. Naquele momento, o pastor os apresentou a Deus e concedeu a
“benção”. Desta forma, apesar do interdito, puderam iniciar um relacionamento com a
anuência do pastor e de Deus. A leitura da Bíblia em conjunto, cotidianamente, foi
fundamental para buscar viver uma relação “na presença do Senhor”, cultivando a
fidelidade e o respeito mútuos. Deus estava atuando e ‘restaurando’ suas vidas. Por este
motivo, Michel acreditava que o ambiente da igreja era uma espécie de “hospital”, sendo
Jesus Cristo “o cirurgião” que opera milagres na vida de quem chega. Em seu caso, o
milagre estava associado ao resgate de situações sexuais nas quais considerava se expor ao
risco de doenças. Esse cuidado de si, conforme já foi dito, pode estar, contudo, mais ligado
ao ingresso no casamento (como forma de gestão do risco) e redução de parceiros sexuais,
do que no emprego de outras formas de prevenção. Nesse sentido, na igreja é premente
uma cultura dos relacionamentos estáveis (Gagnon, 2006).
De forma semelhante, Leonardo e Leandro eram reconhecidos como um “casal da
igreja”, apesar de não coabitarem. Ambos passaram pelo catolicismo e por religiões não
cristãs (kardecismo, macumba, budismo). Leandro transitou por igrejas evangélicas (Igreja
Batista, Testemunha de Jeová e outras). Na trajetória de ambos consta a desvinculação
religiosa, interpretada como resultante do repúdio do cristianismo aos homossexuais. A
primeira igreja “aberta aos gays” que conheceram foi a Igreja Presbiteriana de Copacabana,
ingressando em seguida no Grupo ativista Convivência Cristã, que funcionava nas
dependências da denominação. Anos depois, ocorreu a migração para a Igreja Cristã
Contemporânea, quando atravessavam o que ambos definem como uma crise em seu
“casamento”. Leandro reporta a uma grave briga do casal, quando estavam decididos a
romper. Contudo, o apoio da comunidade e o compromisso com a denominação
propiciaram um fortalecimento da relação. Ambos participavam como coordenadores de
ministérios. Leonardo reflete que já estão juntos há cinco anos e a relação segue “nos

294
moldes tradicionais”. Apesar de cada um residir com seus familiares, eles mantêm uma
ligação estável. Uma importante mudança que Leandro identifica no que concerne à gestão
da vida afetiva é a resolução dos atritos. Atualmente, constantes conversas são o meio de
evitar o desgaste do relacionamento. Leonardo comentou que a adesão religiosa provocou
uma importante reflexão: desejava “quantidade” ou “qualidade” em sua vida sexual? A
resposta veio por meio de atitudes práticas, valorizando o atual parceiro e refletindo sobre o
saldo do relacionamento. Em sua atual vida afetiva, obtinha os principais combustores de
uma união saudável: sexo, tesão, amor, cumplicidade e projetos. À época da entrevista,
cultivavam a esperança de adotar uma criança. O “amadurecimento” da relação estava
ligado, sobretudo, aos “esclarecimentos bíblicos” sobre a importância de um casal que
busca Deus. O crescimento da espiritualidade é medido em termos de uma maior
intimidade com o Espírito Santo. A ocorrência de algumas experiências místicas (tremores
e sensações corporais no culto) indicavam melhora na relação com Deus. Quanto à
sociabilidade, ambos consideram ambientes homossexuais “muito pesados”
espiritualmente, optando pela freqüência a casa de amigos, jantares, programas culturais. A
convivência com outros casais da igreja é valorizada, pois “edifica” e os ‘exemplos’ ajudam
na manutenção dos conflitos.
Vale frisar que, a despeito do cultivo dessa ética sexual, as experiências não são
homogêneas, havendo possibilidades de desacordos e re-interpretações da norma. A este
respeito, obtive o depoimento de um integrante de uma igreja inclusiva de forte viés
pentecostal. A dificuldade de manter uma relação nos moldes aprovados pela religião
ensejava-lhe conflitos: deveria ou não permanecer na denominação?
Renato abordou-me quando soube que eu estava realizando esta pesquisa e pediu para
ser entrevistado. No dia seguinte ao culto no qual nos encontramos, almoçamos juntos e ele
mencionou que precisava desabafar. Egresso de uma igreja evangélica convencional,
declarou ter ingressado no segmento inclusivo motivado pela busca de um lugar onde
pudesse ‘ser ele mesmo’ e louvar a Deus. Apesar disto, achava que algumas igrejas
inclusivas, ao pregar a necessidade de um relacionamento estável, reproduziam alguns
conceitos do campo religioso mais amplo. Em sua visão, não se tratava de uma atitude de
preconceito, mas da obtenção de maior status aos casais e demais pessoas compromissadas.

295
Aqueles que freqüentavam lugares públicos em busca de sexo, que faziam “o banheirão”
(recorrendo à sociabilidade estritamente sexual em saunas e cinemas pornográficos),
podiam ser considerados “pecadores”. As recaídas e reincidências originavam conflitos
interiores, declarando ele nem sempre sentir-se ‘acolhido’ em razão de sua dificuldade de
encontrar um namorado ou mesmo de seu desejo de “ficar” e manter relacionamentos sem
compromisso. Naquele momento da vida, Renato questionava-se sobre sua participação em
igrejas inclusivas, afirmando que talvez fosse mais prudente recorrer a uma forma de
espiritualidade desinstitucionalizada, dada sua dificuldade de praticar o “sexo saudável”,
propalado no ambiente religioso.
O relato enfatiza que as normas não são vividas da mesma forma por todos os
indivíduos que freqüentam o culto. O controle (e rigor comportamental) pode ser vivido
como desejado por uns e, por outros, como constritor da liberdade. Coloca em evidência a
diversidade de experiências e sentidos atribuídos a sexualidade em diferentes momentos
das trajetórias individuais. Conforme observamos na seção anterior, a promessa emocional
do culto é axial na elaboração de novos sentidos sobre si. No caso da adesão as igrejas
inclusivas, o aprendizado de que Deus não reprova mas ama e aceita valida a constituição
de um novo self, possibilitando a atribuição de um sentido positivo do eu. Contudo, a
reincidência em comportamentos desaprovados pela religião pode ensejar conflitos internos
e novos dilemas.
Os relatos aqui sintetizados possibilitam antever, contudo, a passagem entre uma
visão negativa de si a uma visão positiva de si, centrada no aprendizado de que Deus a
homossexualidade é uma “criação de Deus”, parte de seu plano divino. O papel do grupo
nessa passagem é fundamental visto que agentes religiosos são os instrutores dessa
pedagogia da ‘aceitação’. Ao ser ‘aceito’ e acolhido no grupo o indivíduo encontra recursos
(rituais e sociais) à validação do novo self centrados na ideologia e mensagem divulgada
pela teologia inclusiva que ensina o amor de Deus a todas as pessoas, independente da
“orientação sexual”. O aprendizado do amor de Deus consolida-se na medida em que essa
oferta religiosa possibilita o ingresso em cargos e ministérios e a articulação entre vida
religiosa e o exercício da homossexualidade.

296
CAPÍTULO 5:

A GUISA DE CONCLUSÃO: NEOTRADICIONALISMO,


“ORIENTAÇÃO SEXUAL”, POLÍTICA E MOVIMENTOS
RELIGIOSOS

Era uma tarde de domingo. Michel estava lá em casa, iríamos


juntos à igreja. Eu estava absorto revisando a tese. Michel, na
sala, perguntou se podia ler o que havia escrito sobre ele no
trabalho. Eu lhe disse, receoso, que era a ‘minha visão’ do que
ele havia me confidenciado. Entreguei-lhe então as 343 páginas
que eu finalizara naquele mesmo dia, e me dirigi ao outro
cômodo da casa, enquanto ele folheava as páginas. Quando
retornei o encontrei com um semblante um pouco triste.
Perguntei o que havia ocorrido. Ele disse que “era difícil ler
aquilo”. Sentei-me a seu lado e ele começou a chorar. Disse que
não se lembrava daqueles eventos, que não se lembrava ‘que o
bolo havia solado’. Eu disse que entendia, que não ficasse
‘assim’. As lágrimas corriam mais forte por seu rosto. Nos
abraçamos e choramos juntos.

Setembro de 2008.

Esta tese problematizou as formas como a homossexualidade é significada em


contextos religiosos evangélicos, com ênfase tanto em perspectivas institucionais,
doutrinárias e cosmológicas como em perspectivas individuais. Refletiu, a partir de uma
controvérsia no espaço público e de práticas religiosas ocorridas no privado, sobre
configurações contemporâneas da religião e sexualidade. Argumentei que processos sociais
relacionados à separação entre sexualidade e reprodução, à aceitação social da
homossexualidade, às redefinições dos modelos familiares ensejam respostas religiosas
plurais: reforço de dogmas, flexibilização e/ ou pluralização das normas. Essas reações
instituem, contudo, novas formas de regulação da sexualidade, pautadas em certas
convenções culturais.

297
O engajamento de religiosos em missões pelo ‘resgate da heterossexualidade’
aponta a emergência de uma cruzada moral pela contenção e retração da visibilidade social
e reconhecimento político da homossexualidade. Ações de evangélicos na esfera pública e
privada evidenciam os contornos de um neotradicionalismo que reforça a divisão
hierárquica dos gêneros, instilando o medo da “desconstrução social”, da dissolução da
família e dos papéis de gênero. A categoria neotradicionalismo é empregada aqui no
sentido de designar o reforço de certas posições ‘conservadoras’ no confronto com
mudanças culturais atinentes ao campo da sexualidade, particularmente, no que tange a
homossexualidade. Este não constitui apenas a afirmação das convenções, regras e normas
sociais tradicionais, mas apropriam-se de categorias e discursos modernos nas redefinições
do que se entende por “vida cristã” no campo religioso contemporâneo. Uma postura de
forte rejeição moral e repúdio de certas expressões da sexualidade moderna se expressa sob
a forma de um familismo radical, resposta aos processos sociais em curso (Christiano,
2000). Santos (2006) argumenta que um campo de forças tenso se estabelece na disputa de
distintos atores em torno da construção de novas identidades. Temas como aborto,
eutanásia e homossexualidade emergem como foco de conflitos intensos e revelam tanto o
a emergência de afirmações autoritárias como discursos que desestabilizam normas e regras
do campo religioso. A tese mostrou que o reconhecimento público da homossexualidade
coloca em questão princípios que poderiam ser considerados fundamentais das religiões
cristãs: a monogamia, o modelo do casamento cristão heterossexual, as divisões de gênero e
os usos do corpo. Discursos de ‘acolhida’ no campo hegemônico constituem aparentes
flexibilizações, pois recriam e insuflam a proliferação de estereótipos que reforçam uma
visão negativa da homossexualidade. Ao considerarem-se portadores de valores tradicionais
ameaçados, religiosos assumem uma posição bélica quanto ao que está fora dos modelos
propalados. Essa visão se reforça, quando evangélicos apresentam-se relativamente mais
liberais no tocante a outros temas, apoiando ou discutindo distintas demandas políticas. No
tocante ao aborto, há maior margem para negociação no campo das políticas públicas
(Gomes, 2007). O neotradicionalismo é realçado quando novos agentes e igrejas estão
engajados em eleger como ‘inimigos’ sujeitos e “minorias” empenhados em obter
reconhecimento. Os discursos que promovem a igualdade de gays e lésbicas, pelos mais

298
variados canais (mídia, publicidade, políticas públicas) tornam-se alvo de cruzadas morais,
são desqualificados e objeto de suspeita quanto a sua legitimidade. Na visão Pedro Paulo de
Oliveira (2004: 158), “os novos fundamentalistas cristãos” no Brasil reagem à corrosão dos
ideais de masculinidade, à valorização das formas de vivência do prazer e da sexualidade
que não se guiam pelo modelo cristão.
Investigando as modernas configurações da sexualidade esta tese tomou como
problema inicial o confronto entre líderes de missões religiosas de resgate da
heterossexualidade e certas personagens sociais. A emergência de dispositivos religiosos e
laicos de gerenciamento da sexualidade mostra como ambos os lados na controvérsia
constituem modernas formas de gestão da intimidade. Religiosos que atuam em missão pela
‘regeneração’ da homossexualidade, com técnicas próprias de produção da verdade,
argumentam que a heterossexualidade é divinamente criada e endossam que gays e lésbicas
devem submeter-se ao “plano de Deus”, casando-se (com parceiros de outro sexo) e
constituindo uma família cristã. Para tanto, devem sujeitar-se a certas normas de conduta e
tecnologias de si, apartando-se de redes de sociabilidade homossexual e “repreendendo”
esse desejo sexual por meio de orações e conversas com Deus. Em contraponto, existe a
perspectiva da afirmação de que a homossexualidade é uma forma de expressão legítima da
sexualidade humana. Esta é solidária de um discurso sobre os direitos humanos que
preconiza o exercício da sexualidade livre de ‘constrangimentos sociais’, assinalando o
cultivo de uma representação desentranhada da sexualidade (Duarte, 2004). As posições
contrastantes assinalam que a disputa sobre o significado da homossexualidade compreende
o emprego de categorias como “pecado”, “abominação”, “aberração”, “demônios”,
“traumas” (discurso anti-gay) contra o valor da “liberdade”, do “direito” a “não
discriminação”, da “visibilidade social” (discurso dos direitos humanos).
Entre religiosos engajados na missão de converter gays em heterossexuais há o
endosso de que as sexualidades contrárias ao modelo cristão constituem uma “construção”
social. Isso indica uma apropriação seletiva (retórica) de certos discursos científicos pela
prática religiosa construindo uma concepção negativa da homossexualidade, “orientação
sexual” que pode ser mudada por meio de exercícios, orações, aconselhamento, confissão,
rituais, terapias. Em contraste, há o discurso de que uma “orientação sexual” (homossexual)

299
não é passível de “cura” ou “retorno”, indicando sua naturalização. Vale observar que em
ambos os lados há reificação de uma natureza que pode vir à tona, mesmo se desviada de
seu curso. Na visão dos religiosos que preconizam a “cura” toda pessoa ‘nasce
heterossexual’. A homossexualidade é desvio do curso natural da sexualidade humana tal
como Deus a criou. Emprega-se lógica semelhante invertendo os pressupostos entre
discursos religiosos inclusivos. Para estes, certas pessoas ‘nascem homossexuais’, exercem
uma vida heterossexual por convenções sociais, emergindo sua ‘verdadeira natureza’ em
algum momento de suas trajetórias, como foi visto no capítulo que contemplou aspectos da
subjetividade. Essa concepção também recorre à idéia da “criação divina”, já que nesse
caso a orientação homossexual pode ser vista como parte do plano de Deus. Essas
concepções indicam o valor da noção de orientação sexual no contexto contemporâneo.
Oliveira (2008) argumenta que a orientação sexual deve ser vista como “crença”,
fundada no pressuposto da existência de dois sexos. Essa ‘convicção’ institui taxonomias
que regulam os usos do corpo: “Diz-se que as orientações sexuais seriam duas ou três, e
tudo se passa como se cada um tivesse a sua – que poderia ‘mudar’ ao longo da vida, mas
em determinado momento de sua trajetória, a pessoa seguramente teria alguma orientação”
(Oliveira, 2008: 6). De acordo com sua análise a ‘crença’ de que seres humanos se dividem
em heterossexuais, homossexuais e bissexuais é indicadora de certos modos de
classificação cujo potencial normatizador encobre o caráter processual do aprendizado da
sexualidade, ancorando-o à materialidade dos corpos. A orientação sexual é um esquema de
categorização arbitrário e culturalmente específico, que se apresenta como “medida
comum” das condutas e subjetividades eróticas, norma vivida como fato e implantada no
tecido social no curso de micro-relações de força. Contudo, a subjetividade erótica dos
sujeitos se constitui na circulação por redes sociais específicas, em que pode haver adesão a
essa crença em diferentes graus. Oliveira defende que em certas redes que servem de
suporte à obtenção de parceiros sexuais, as convenções que incidem sobre o gênero podem
ter, na regulação das condutas eróticas, maior peso que as categorias de orientação sexual.
Esta tese avança em direção um pouco distinta, mostrando como crenças religiosas
aparentemente refratárias à norma das orientações sexuais, que ostentam modelos
neotradicionais do gênero como um valor, podem paradoxalmente reforçar essa norma ao

300
tomá-la como ponto de oposição. Os discursos voltados para a cura da homossexualidade
afirmam a naturalidade da orientação sexual heterossexual, estando presos, em algum nível,
à mesma retórica de seus oponentes, que categoriza a identidade de uma pessoa a partir do
sexo biológico dos parceiros sexuais que ela escolhe. A discussão coloca no centro do
debate as condutas sexuais, indicando certas formas de regulação e a incitação a falar sobre
o sexo na religião, em perspectivas discordantes e em diferentes níveis de apropriação e
reinvenção. Novamente, os argumentos desenvolvidos por Oliveira (2008) são inspiradores
por ressaltar os efeitos políticos do uso dessa categoria:
“a expressão orientação sexual possui uma série de vantagens do ponto de
vista político, que tornam sua reiteração estratégica para atores engajados na
defesa dos direitos das minorias sexuais. Ao legitimar o exercício do
erotismo com parceiro do mesmo sexo como estando aquém do livre arbítrio
e isento de patologização, possibilita a formulação de demandas por
reconhecimento na esfera política no sentido de neutralização de estigmas e
assimetrias sociais que incidem sobre sujeitos que vivenciam sua
sexualidade nesses termos. (...) A orientação sexual deve ser tomada não
como um atributo substantivo que poderia se fazer ‘presente’ ou ‘ausente’
nos sujeitos, mas enquanto um aparato normativo, um alinhamento entre
práticas e discursos muito distintos que convergem em torno de um certo
tema constituindo e regulando sujeitos” (Oliveira, 2008: 6-8).

Os argumentos do autor ressaltam o caráter produtor dos discursos sobre a


sexualidade, realçando seu potencial enquanto crença arraigada que orienta práticas sociais
e constitui os sujeitos. Como ele ressalta, “essa normatividade incita o sujeito a definir a si
mesmo a partir de seu ‘ verdadeiro sexo’ e do ‘verdadeiro sexo’ do parceiro. A orientação
sexual é norma e crença para religiosos e demais personagens da controvérsia, com usos
políticos muito distintos, opondo naturalização e construção de ambos os lados. A
polêmica que se forma entre os atores alinhados entre esses dois blocos discursivos
interdependentes realça relações de poder em uma dada sociedade, revelando tensões e
posições bélicas nas quais a disputa sobre os significados da homossexualidade oscila entre
uma visão negativa (missões de resgate da heterossexualidade) e uma positiva (grupos
inclusivos e segmentos ligados a defesa dos direitos humanos dos homossexuais).

301
A tese também discutiu configurações do religioso ao analisar discursos sobre “cura”
e “libertação” partindo da literatura religiosa e relatos de campo. A incorporação pela
religião de linguagens modernas de mapeamento do self indica a complexa junção de
mútuas influências culturais: como vimos, surgem novas formas rituais, nas quais ênfases
individualizantes são conjugadas a imperativos morais do religioso. A análise dos discursos
das ‘missões pelo resgate da heterossexualidade’ mostrou como a ênfase na mudança das
condutas sexuais elege como um de seus eixos as fronteiras de gênero. Retornar à
heterossexualidade é, a grosso modo, a submissão a uma pedagogia da masculinidade (para
homossexuais afeminados) e a da feminilidade (para lésbicas masculinizadas). O discurso
anti-gay pressupõe que homossexuais são afeminados e lésbicas masculinizadas. O cuidado
pastoral é voltado à regeneração e purificação, fazendo retornar à natureza heterossexual. O
modelo propalado no religioso enfatiza o homossexual como sujeito perigoso, de potencial
contaminador, ensejando a necessidade de conversão. A personagem do “ex-homossexual”,
penitente e ‘regenerado’, assinala que o discurso de acolhida nessa religião visa a
transformação, motivada pelo repúdio da diferença. A construção da imagem do
homossexual nesse contexto é de um sujeito sem controle, cujos excessos sexuais são
prejudiciais à sociedade. “Promíscuo”, “infeliz”, “solitário”, “endemoniado”, tendente ao
crime, à pedofilia, indivíduo que necessita de correção. Conforme ressaltei, o modelo de
homossexualidade construído por esse discurso constitui a homossexualidade como
diferença negativa.
A emergência de “igrejas inclusivas”, cuja hermenêutica articula vida religiosa e
homossexualidade, confere positividade a esta, opondo-se a visão hegemônica. Cismas
internos ao campo assinalam a emergência de distintas estratégias políticas de legitimação e
justificação. A comparação entre discursos produzidos pela Igreja da Comunidade
Metropolitana (ICM) e pela Igreja Cristã Contemporânea (ICC) no período de pesquisa de
campo enfatizou esta dimensão. Situei estas estratégias em termos de particularismo e
universalismo. Para a ICM a homossexualidade como extremamente positiva e valorizada,
empregando-se ações no sentido de realçá-la. O discurso elaborado pela ICC almeja apagar
ou minimizar a separação entre homossexuais e heterossexuais. As duas formas de atuação
estão em consonância com o dilema constitutivo do movimento homossexual. A busca por

302
reconhecimento social é perpassada por decisões e reflexão sobre como proceder na
promoção da igualdade: tomar a diferença como eixo das reivindicações ou elaborar
discursos que tendem a apagá-la, forjando fendas e forçando rachaduras em sistemas de
valores tradicionais, de modo a obter mudanças estruturais mais profundas?
O tema da exclusão de gays e lésbicas, recorrente nas falas pastorais e nos cultos da
ICM, associando-se à luta contra a “homofobia” e formas de discriminação – inclusive a
proveniente de segmentos religiosos - realça essa estratégia particularista. A teologia
inclusiva é um dos principais instrumentos nessa luta. Ao empregar outro tipo de discurso,
pautado na ênfase no caráter mais tradicional, relacionado à preeminência da vida religiosa,
optando por um ethos da contenção, a ICC demonstra uma discurso político menos voltado
a realçar a diferença. A principal linha de ação desta denominação era a que reivindicava
certa tradicionalidade, ainda que no confronto com o contexto mais amplo líderes se
percebessem ‘inclusivos’, engajados numa missão (mais religiosa e menos política) contra a
homofobia cristã. Outro elemento unificador é que todas as igrejas inclusivas, nesse
sentido, preconizam uma ‘aceitação’ da homossexualidade. Homossexuais, gays, lésbicas e
travestis são parte do “povo de Deus”, antes excluído da possibilidade uma vida com Deus.
As nuances desses discursos podem ser mais detidamente examinadas, por ora cabe
assinalar que a oposição destas duas estratégias pode ser referida em termos de uma
paradoxal junção entre ativismo e religião, cujos impactos e efeitos são ainda pouco
conhecidos. A idéia de passagem elucida relações complexas dos planos micro e macro
sociais. Essa atuação política (plural) está imbricada às modernas lutas por reconhecimento,
constitutivas das políticas de identidade do cenário cultural global.
A emergência de reflexões sobre as relações entre homossexualidade e religião cristã
ocorre no bojo de um processo recente, muito amplo, de políticas de identidade. Desta
forma, é visível que estas denominações, em geral, proferem recorrentemente um discurso
alinhado a demandas por legitimidade de segmentos de gays, lésbicas, travestis e
transexuais. Conforme venho argumentando, há também afinidades eletivas entre algumas
dessas demandas, como o casamento gay (e a união civil) e o modelo de relacionamento
estável e monogâmico, valorizado pelas igrejas inclusivas de uma forma geral. Ainda que
possa haver dissensos, as formas de relacionamento afetivo-sexuais propaladas são aquelas

303
enquadradas dentro dos parâmetros cristãos, incidindo sobre as outras, relativa
desqualificação. A visibilidade de homossexuais em posições eclesiais nesse segmento
religioso assinala que estamos diante de importantes mudanças culturais. Apesar disso, é
possível ponderar de que modo se dá distribuição de certas posições sociais. O poder parece
estar majoritariamente concentrado entre homossexuais masculinos, sendo a feminilidade
exibida por alguns homossexuais um lugar de menor prestígio social. É possível assim
observar que mesmo a inclusão obedece a regras do mesmo modo que todo processo social.
‘Incluir’ ou ‘acolher’ algo ou alguém é obrigatoriamente reforçar as fronteiras entre o
dentro e o fora, entre quem são os sujeitos que estão habilitados a este novo lugar e quais
deverão ser resgatados ou objeto de regulação e rituais de agregação. O modelo de conduta
idealizado contém os pressupostos da construção social da homossexualidade nesse
contexto. O “gay cristão” ou o “homossexual inclusivo” é virtualmente definido em termos
da responsabilidade e consciência de cidadania, da discrição (contenção de desempenhos
inadequados ao seu ‘verdadeiro sexo’), da não promiscuidade, da busca pela santidade e
ingresso na missão religiosa de resgatar outros homossexuais - ‘desviados da luz’ e
ausentes do ‘amor de Deus’, devido aos sofrimentos e exclusões vivenciados. É claro que
tal modelo sofre reapropriações e reinvenções quando enunciado a partir da experiência e
narrativa dos sujeitos, contudo, enquanto ideal para a ação ele aparece. Essa análise enfatiza
que o homossexual produzido nesse contexto é o cidadão respeitável, moderno, distante do
modelo hierárquico, analisado por Fry (1982) mas igualmente distante do homossexualismo
que o discurso evangélico hegemônico repudia e marca como abjeto. A persona pública do
homossexual respeitável é forjada no bojo de intensas lutas por reconhecimento social e
nas tensões que se produzem contrariamente aos estigmas dirigidos a ele. A interseção
dessa batalha com valores e práticas do cristianismo compreende a complexa ‘passagem’
realizada pelas igrejas inclusivas na busca de sua consolidação como movimento: cultiva-se
como valores o hedonismo e a autenticidade e, de outro lado, apregoa-se o ideal da
monogamia e da contenção sexual. O valor da liberdade, do prazer e do subjetivismo na
busca de aceitar-se e ser aceito funde-se às trajetórias e experiências pessoais anteriores,
coloridas pelo repúdio de um ambiente social avesso à expressão da homossexualidade.
Essa passagem é marcada por um desejo de mudança e permanência que produz

304
subjetividades e colabora na construção da homossexualidade. Para esses indivíduos, a
questão que inspirou o título da tese (Deus aceita os homossexuais?) é instituinte de um
constante interrogar-se a si mesmo: Deus rejeita, condena, odeia o homossexual, ou Ele os
criou de tal forma e sendo eles parte de sua criação Deus os aceita como são? Essa pergunta
pode ser tomada como motivação das ações e reflexões protagonizadas por certa categoria
de pessoas que se sente prejudicada em razão de sua ‘diferença’, nesse caso, relativa à
tensão entre “orientação sexual” e “religião”. O dilema de compatibilizar duas dimensões
da vida anteriormente intocáveis leva a decisões sobre o melhor caminho a ser percorrido,
considerando as reações de ‘aceitação’, ‘respeito’ ou repúdios de segmentos da sociedade
mais ampla. Esse dilema aqui referido nos termos de um particularismo em oposição a um
universalismo é confluente com as tensões constituintes da trajetória do movimento
homossexual (realçar a diferença ou afirmar a igualdade) e também àquelas provenientes
das lutas ocorridas na esfera política. Um exemplo é fornecido por Carrara (2008) ao
analisar posicionamentos ocorridos na I Conferência Nacional GLBT, onde o autor
identifica duas estratégias de ação na formulação de políticas públicas: um modelo de
inclusão social de gays e lésbicas ancorados na ênfase da diferença e na criação de
propostas particulares (exemplo, delegacias gays) que o autor nomeia de “separados, mas
iguais” e outro modelo cuja ênfase está num horizonte de inclusão social mais voltado às
sínteses, cujo lema é: “iguais e misturados”. Argumento que esta tensão comparece nos
cismas das igrejas inclusivas que, ora realçam a diferença positiva, ora propalam a
necessidade de mistura e afirmam a importância de atenuar essa diferença em nome da
igualdade. Em todo caso, está em jogo a criação e a manutenção de identidades coletivas e
dinâmicas muito complexas de integrar ou segregar; e com isto definir os limites e
fronteiras dos grupos e segmentos que disputam legitimidade (Fachinni, 2004).
Baumam (2003), ao refletir sobre lutas políticas por reconhecimento, compreende que
as políticas de identidade criam comunidades de iguais ao projetar um modelo de
identidades dotadas de “fundamentos sólidos”. Nesse sentido, o princípio dos direitos
humanos agiria como catalisador do estimulo à produção e perpetuação da diferença. Para
ser adequada ao princípio dos direitos humanos a diferença precisa ser encontrada ou
construída (Bauman, 2003: 71). Ressalta, nesse sentido, as dimensões bélicas da política de

305
identidade. Baumam opõe, contudo, as políticas de diferença às lutas por justiça social,
considerando que o potencial combativo das guerras pelo reconhecimento (políticas de
diferença) é fadado a moldura da “auto-afirmação” e “auto-realização”, sem caminho para
concretude. Por outro lado, se os discursos de reconhecimento se remeterem à problemática
geral da justiça social, levariam a um diálogo e a uma nova unidade, considerando seu
potencial político mais eficaz (Baumam, 2003: 72-73). Embora o autor esteja se referindo a
discussões muito amplas sobre reconhecimento social, ajuda a inspirar a polêmica sobre a
inclusão social relativa aos gays, lésbicas e travestis. Este mesmo autor, contudo, em
consonância com outros autores evocados nessa tese, assinala o caráter contínuo da
construção das identidades, recolocando o problema no campo dos aprendizados sociais.
O caráter processual das formas de construção de si foi abordado no último capítulo,
partindo da análise de três distintos conjuntos de entrevistas. No primeiro evidenciou-se a
situação de sujeitos que se percebem como homossexuais e encontram-se vinculados a
igrejas evangélicas convencionais. Argumentei que as tensões advindas do confronto entre
suas disposições sexuais e religiosas apresentavam complexos modos de gestão de si. Em
um ambiente social avesso à homossexualidade empregam-se estratégias baseadas no
cultivo do segredo. Apesar disto, a análise das biografias mostrou a possibilidade de
negociações, associadas ao cultivo de um ethos da discrição. Entre ser aceito ou não, entre
assumir-se e esconder-se, a contenção gestual (ser discreto) minimiza tensões nas relações
familiares e no ambiente religioso. Estas, muitas vezes, estão associadas à visibilidade da
homossexualidade, por meio de desempenhos sociais feminizados. Vale destacar a
emergência de justificações religiosas para o desejo sexual entre esses sujeitos. A idéia da
‘permissão divina’ é recorrente, estando associada a uma concepção naturalizada da
homossexualidade: “Deus não pode (ou não quer) curar aquilo que não é doença, mas uma
essência”.
O segundo grupo de entrevistas assinalou a intensa adesão aos discursos que
prometem cura e libertação da homossexualidade por alguns sujeitos. Indivíduos com
conflitos interiores relacionados às suas disposições sexuais e religiosas, motivados pela
busca de “normalidade”, recorrem ao discurso evangélico convencional como forma de
elaboração de sentidos positivos de si. As promessas e os apelos da religião para a

306
regeneração, a percepção de estar desagradando a Deus e cometendo um pecado
abominável, ensejam tentativas de mudança da orientação sexual e de adequação às
normas. A expectativa da obtenção do status de heterossexual – casar e ter família – leva à
recusa do rótulo de homossexual, recorrendo a uma elaboração do desejo como originado
externamente ao indivíduo. Neste caso, não se trata de natureza, mas de desejos
implantados por entidades, traumas e abusos. A homossexualidade continua a ser elaborada
negativamente, fundada na idéia de que “deus não aceita” esses desejos sexuais.
O último grupo de entrevistados enfatizou a passagem de igrejas evangélicas
convencionais a igrejas inclusivas, assinalando o papel dessa oferta religiosa na construção
de um novo sentido de si. A produção de justificações que endossam a idéia de que a
homossexualidade foi criada por Deus serve de suporte a processos de coming out. O
ingresso nesse grupo religioso mostra o aprendizado social da homossexualidade implicado
na passagem do pecado à benção divina. Cabe frisar o papel pedagógico dessa vertente
religiosa no processo de aceitação de si como homossexual. A construção de si é marcada
pelo pressuposto teológico-hermenêutico de que Deus não condena, não julga, não castiga,
mas sim os “aceita como são”. Pastores e outros agentes religiosos são fundamentais na
condução dos sujeitos nessa passagem, desempenhando um papel ‘terapêutico’ relevante
para uma nova compreensão do desejo sexual. A tabela abaixo assinala os modos como
indivíduos conjugam trajetórias religiosas, significados sobre o desejo sexual e processos
de construção de si na passagem por distintas igrejas evangélicas:

307
Tabela: Gestão de si e significado do desejo

INDIVÍDUOS EM INDIVÍDUOS EM IGREJAS INDIVÍDUOS EM


IGREJAS CONVENCIONAIS IGREJAS INCLUSIVAS
CONVENCIONAIS

Gestão de si Confronto com a Adequação da norma e recusa Migração religiosa para


norma e cultivo do do rótulo “homossexual” igreja inclusiva
segredo

Religião e Religião e Adesão à identidade de “ex- Adesão à identidade


sexualidade homossexualidade homossexual” homossexual
em tensão
Homossexualidade Ambígua Negativa Positiva
Inserção Afastamento de Inseridos como membros ou Inseridos como membros ou
institucional cargos eclesiais em cargos em cargos
Relação com a Apartamento de Relação tensa com Deus Aceitação de Deus e auto-
divindade Deus/perda de dons aceitação
Justificação para o ‘natureza’, ‘essência’, Possessões, traumas, abusos Bênção divina, criação de
desejo permissão divina Deus, natureza

Essa análise assinala como processos de aprendizado da homossexualidade são


imbricados às trajetórias religiosas, e a atribuição de sentidos de si relacionados a interação
entre fiel e divindade. Chama atenção aqui o ônus psicológico do desafio da norma
(Duarte, 2005), exemplificado pela situação de apartamento de Deus, vivida por sujeitos
inseridos em igrejas convencionais e deu relativo afastamento de cargos eclesiais. Por outro
lado, a percepção de ser aceito por Deus (e assim ‘aceitar-se’), de alguns sujeitos sociais
inseridos nas igrejas inclusivas aponta a produção de sentidos positivos de si que
colaboram em processos de coming out. Esse modelo, contudo, não tem correspondência
estreita com a realidade, sendo indicativo apenas de determinadas situações narradas nos
depoimentos, representativas das interpretações dos indivíduos em um dado momento de
sua vida, pois conforme venho argumentando, as trajetórias não são lineares nem
prescindem do princípio da contradição, cabendo numa biografia a possibilidade de
infinitas conversões e reconversões e também a convivência com mapas contraditórios.

308
A tese elucidou como o tema da conduta sexual é premente no campo religioso
contemporâneo. Conforme argumentei ao longo dos capítulos, a relação entre sexualidade e
evangélicos é pautada pela centralidade da contenção e da ética sexual. Contudo, apontei
novas possibilidades de interpretações, rupturas e continuidades, imbricadas a processos
sociais mais amplos. A percepção da existência de uma homogeneidade do campo
evangélico muitas vezes impede a apreensão de dinâmicas e processos de mudança. Do
ponto de vista dos estudos acadêmicos, ressalta-se a oposição entre crenças cristãs e cultos
afro-brasileiros em especial em relação à sexualidade. O cristianismo compreendido como
conservador e normativo e as religiões de matriz africana como mais liberais ou tolerantes.
É possível assinalar que em ambos os sistemas religiosos encontram-se complexas formas
de ‘acolhida’ e construção da homossexualidade. O resgate do debate acadêmico sobre
religião e homossexualidade no campo afro-brasileiro é ilustrativo. Vale frisar que os
evangélicos constituem as crenças de matriz africana como seu mais hostil inimigo,
empregando verdadeiras guerras com contra suas entidades e mitologia. Eles atribuem
nexos à “perversão sexual” de gays e lésbicas e sua ‘passagem’ por cultos de umbanda ou
candomblé. De modo intrigante, nesta tese foram recorrentes relatos de entrevistados que
migraram das religiões afro-brasileiras para salvar seus espíritos e buscar cura, do mesmo
modo que descrevi retornos e relações de sincretismo. Isso enfatiza que os roteiros
religiosos são complexos e que buscar os nexos destes às carreiras afetivo-sexuais é um
desafio que não se finda aqui.

O confronto da perspectiva inclusiva com a religiosidade afro-brasileira permite


algumas reflexões sobre os modos de construção da homossexualidade nesse campo. A
literatura acadêmica cultiva uma representação das crenças afro-brasileiras como espaço
social aberto a expressões da homossexualidade. Entre 1938 e 1939, a antropóloga norte-
americana Ruth Landes (2002), realizou pesquisa de campo e demonstrou a freqüência de
“homossexuais passivos” entre o povo de santo de Salvador. Esse universo religioso, por
ter o seu prestígio assentado na ação do matriarcado das mães-de-santo, ofereceria a essa
população a possibilidade de desempenhar papéis femininos, pois somente homens

309
131
efeminados podiam exercer nos cultos a função de médiuns. Eles podiam adquirir
prestígio e status como líderes religiosos, compensando assim sua posição social inferior,
ao ingressar na carreira religiosa de pai-de-santo (Landes, 2002: 326-327). 132 Partindo dos
resultados de campo realizado em Belém do Pará, no norte do Brasil, em fins dos anos
1970, Peter Fry (1982) sustentou a hipótese sobre o empoderamento, nos cultos afro-
brasileiros, de sujeitos cuja orientação sexual era divergente da norma hegemônica. Ele
argumentou que tanto a homossexualidade como os cultos de possessão eram práticas
sociais marginalizadas em relação aos padrões dominantes brasileiros. A forte associação
entre as categorias bicha e pai-de-santo, que emergia de um jogo de acusações no culto,
apontava para a reprodução de hierarquias que articulam possessão, feminilidade e o
desempenho do papel receptivo na cópula. Contudo tal assimetria – que espelha a
dominação do masculino sobre o feminino – era construída como vantagem positiva, posto
que o marginal era significado como poderoso. Na esfera ritual, o estatuto social
subordinado das bichas era invertido e transformado em fonte de poder: “a ligação entre
homossexualidade masculina e os cultos não é fortuita, mas se deve ao fato de que ambos
são classificados como marginais e perigosos dentro das estruturas existentes e dotados de
133
poderes mágicos” (Fry, 1982: 79). Pais-de-santo homossexuais possuem mais
possibilidades de uma carreira bem sucedida no santo: livre dos laços sociais familiares,
eles podiam direcionar todo o investimento social para realçar seu status dentro da religião.

131
O estudo, a despeito de sua densidade etnográfica, apresenta concepções patologizantes da
homossexualidade, correntes no contexto e época em que foi produzido. Nesse cenário cultural, os saberes
biomédicos encarregavam-se de propor teorias e explicações que apresentavam a homossexualidade como
perversão ou anormalidade, algumas das quais incorporadas pela autora.
132
O trabalho de Landes assinala que, contrastando com o modelo patriarcal hegemônico na sociedade
brasileira, essa religiosidade seria atraente aos homossexuais, proporcionando o exercício de uma carreira
religiosa consoante com as preferências eróticas desses indivíduos. A autora sugere que a maior receptividade
dos cultos afro-brasileiros aos homossexuais em seu quadro de fiéis e sacerdotes articula-se, ainda que
indiretamente, à organização dos cultos e à cosmologia, na qual há uma valorização simbólica do feminino.
133
A análise do autor apresenta também a visão dos fiéis acerca da separação entre vida no santo e vida
secular, remetendo à crença difundida na macumba de que santos e orixás não interferem na sexualidade das
pessoas, exceto quando há falta no cumprimento de obrigações rituais. A doutrina apresentaria, assim,
escassos mecanismos de regulação, já que as poucas restrições que o culto impõe diziam respeito ao
intercurso sexual antes e depois dos rituais, sem fazer menção ao sexo das pessoas envolvidas (Fry, 1982:
70-73). No contexto pesquisado pelo antropólogo, o discurso nativo significava a homossexualidade como um
fato da vida que, como tal, exige medidas e interpretações práticas que não se encontram articuladas à
cosmologia e vivências religiosas. Dinâmicas de prestígio e status estabelecidas em torno do rito religioso
evidenciam os nexos entre o exercício da vida religiosa no santo e carreira religiosa do homossexual.

310
O argumento repousa na análise do papel do pai-de-santo no culto: ele é o centro de um
circuito de distribuição de serviços mágicos, em troca de dinheiro e reconhecimento
público – a partir do que se instaura uma circulação ininterrupta desses elementos que
garante o sucesso de um terreiro.
Patrícia Birman (1985) inseriu-se no debate ao investigar as relações entre o sistema
classificatório relativo às opções sexuais dos fiéis e o sistema de crenças religioso,
identificando a existência de um jogo de acusações na casa de santo cujo conteúdo
assinalava o alto potencial contaminador da homossexualidade na respeitabilidade do culto.
De um lado, cultivava-se a crença de que “homem que tem orixá de frente pode virar
bicha”, insuflada pela concepção de que o pai de santo pode alterar a preferência sexual dos
fiéis e, de outro, uma percepção de que a moralidade da casa e a eficácia religiosa podem
ser afetadas pela preferência por homens de alguns pais de santo. Complexificando a
análise, a autora descreve cenas rituais nas quais a presença de uma personagem (a pomba-
gira) é signo da valorização nesse sistema religiosa da ambigüidade do feminino no corpo
masculino. Uma Pomba-Gira encarnada em um homem, normalmente de sexualidade
divergente do padrão heterossexual, seduz e captura os olhares masculinos, embeleza a
festa. Essa figura ambígua de prostituta e dama num corpo de homem é mediadora do
terreiro e da sociedade: ela desempenha ao mesmo tempo seu papel de “mulher natureza” e
“homem social”. Birmam (1995) sugere que há neste sistema ritual uma forma de
construção da pessoa que dissocia gênero de sexo biológico, construindo um campo de
virtualidades em torno do feminino, a partir da noção de possessão (Birman, 1995). Em sua
interpretação, o candomblé reconhece e fomenta uma segmentação interna do gênero
feminino, por oposição ao masculino, rigidamente demarcado. A masculinidade plena será
definida pela exclusão da possessão. Uma vez que a incorporação implica perda de
masculinidade, inaugura-se um domínio do feminino mais amplo e flexível, pelo exercício
dessa função ritual por homens, numa espécie de continuum que abarca diferentes atores
sociais. Entre o pólo masculino (ocupado pelos ogãs, que protegem a casa e tocam
instrumentos de percussão nos rituais) e o feminino (presidido por mulheres que praticam a
possessão), encontram-se diversas categorias intermediárias: os filhos-de-santo (sobre os
quais paira a suspeita de homossexualidade), os adés (homossexuais masculinos, iniciados,

311
que exploram a feminilidade na dança e vestimentas) e as ekedis (mulheres com função de
auxiliar daqueles que estão em transe). Os homens responsáveis pela mediação entre os
dois domínios representam um gênero ambíguo: identificados como bichas ou suspeitos de
homossexualidade. O candomblé explora uma linguagem sexual que articula o religioso ao
prazer e ao erotismo, principalmente por intermédio da performance dos adés, figuras
valorizadas pela competência ritual em manifestar a presença dos orixás no culto,
conferindo prestígio aos terreiros. Esses trabalhos apontam uma forma de construção da
homossexualidade nos cultos afro-brasileiros. Contudo, a análise de Birman (1995) assinala
os termos dessa relação: no lugar social dos “adés” ou “bichas”, que embelezam as festas e
atraem ao terreiro. Essa forma de inserção convive com a percepção da homossexualidade
como um tipo de comportamento que afeta a respeitabilidade do culto.
Essa literatura retrata o cultivo de um modelo de sexualidade que hierarquiza homens
e bichas, homossexuais ativos e passivos. Apesar do relativo consenso sobre a maior
flexibilidade doutrinária, as análises evidenciam que se mantém a rígida divisão dos
gêneros. Nesse sentido, o recente trabalho de Rios (2004; 2002) colabora para uma
compreensão dos processos de hierarquização das identidades sexuais nos cultos afro-
brasileiros. O antropólogo sugere a existência de duas tendências contemporâneas nesse
campo religioso: candomblés de veadeiro e candomblés tradicionais. Nos candomblés de
veadeiro, a modernização se faz acompanhar de uma visibilização da homossexualidade
masculina. Em terreiros desse tipo a homossexualidade tem valor positivo: é possível
expressar orientações sexuais através das coisas do santo (adereços, roupas e performance
corporal na dança). Já nos cultos que se apresentam como tradicionais há menos
possibilidade de expressão de preferências eróticas através da performance, ocorrendo às
vezes sua censura. Uma das estratégias religiosas que operam nesse sentido é a interdição
da raspagem de orixás femininos em cabeça de homem. O estudo aponta que as atitudes
diante da homossexualidade variam em função da posição de cada comunidade no campo
religioso. Uma macumba em busca de reconhecimento pode evitar a presença de
homossexuais no terreiro, reivindicando a si uma tradicionalidade, que poderia ser
denegrida pela associação com o veadeiro (Rios, 2002: 7). A identificação destas
tendências permitiria desconstruir a imagem dos candomblés como cidades das bichas. As

312
assimetrias se reproduzem nas categorias sociais que fazem parte do linguajar do povo de
santo, embebidas nas concepções populares acerca da homossexualidade. Uma lógica
classificatória que valoriza o masculino em detrimento do feminino revelaria uma
gramática de gênero hierárquica.
No diálogo com esses estudos é possível aguçar a compreensão do que é específico
na construção social da homossexualidade entre os evangélicos. Nos cultos afro-brasileiro,
“homossexuais passivos” (na terminologia de Landes) ou os “adés” ou “bichas” (na
terminologia dos terreiros) recebem orixás e ocupam os cargos de liderança. A ‘tolerância’
mascara por assim dizer o trabalho produtivo do candomblé que celebra um certo sentido
da homossexualidade, sobretudo, certas formas de hierarquização. Em seu interior há
reprodução de conceitos e noções de gênero da sociedade mais ampla, demarcando zonas
de interdição. Os sentidos atribuídos à homossexualidade não são unívocos, mas
dependentes de um conjunto de relações complexo, que envolve a reprodução de certos
estereótipos e modos de categorização das pessoas. Estendo esse modelo de análise ao
universo inclusivo, considerando suas especificidades e nuances.
Assim como os cultos afro-brasileiros, o movimento inclusivo evangélico possui suas
formas de incorporação ao sistema religioso. Neste aspecto, há uma valorização desses
modos de expressão da sexualidade como componente importante do culto. Se no campo
evangélico mais amplo prevalece o discurso considerado excludente, mostrou-se que ocorre
uma ‘acolhida’, mesmo nas igrejas convencionais. Apesar disso, explicitei os termos dessa
acolhida: o projeto de regeneração moral e conversão à heterossexualidade. As missões de
resgate da heterossexualidade e demais grupos que propõem cura aos homossexuais
oferecem respostas e promessas de solução aos conflitos interiores. Na adesão a estas
práticas religiosas sujeitos encontram equilíbrios ‘provisórios’, já que há possibilidades de
novos eventos, fatos e reconstruções biográficas nos complexos processos de construção de
si. O modelo divulgado do “ex-homossexual” evidencia que prevalece o não lugar para
expressão dessa sexualidade, enfatizando-se uma percepção negativa dessa prática.
A novidade neste campo religioso é o surgimento de igrejas inclusivas, nas quais a
atuação de homossexuais em cargos eclesiais e de lideranças é constitutivo. Este segmento
produz um modelo que sintetiza elementos da tradição religiosa combinados a novas

313
leituras teológicas. O movimento inclusivo confere aos homossexuais um papel de agentes
na hierarquia e sistemas religiosos cristãos. Em certo sentido, inova-se no protagonismo da
criação de novos espaços e igrejas, ao mesmo tempo em que adota uma moral religiosa
pautada na contenção e na regulação. O homossexual produzido nesse discurso religioso é
regulado por uma junção complexa de normas do religioso (cultivo de valores da
monogamia e de comportamentos pautados numa ética sexual rigorista) e valores modernos
relacionados ao ethos privado e a importância do prazer e do hedonismo na definição de si
(Duarte, 2005).
Nesse sistema religioso inclusivo, a homossexualidade tem seu valor positivo, sendo o
homossexual idealizado como não promíscuo, não afeminado, responsável e portador de
direitos, assumindo seu lugar de igual perante os heterossexuais. Aqui se reivindica a
equidade das pessoas (heterossexuais e homossexuais), mas se concebe o modelo de um
homossexual aceitável, o ‘homossexual evangélico’ ou o “gay cristão”. Tais discursos não
são unívocos, e há dissensos, ocorrendo constantes fluxos de negociações entre os modelos
ideais, a experiência dos sujeitos e as situações de confronto, que levam a rever discursos e
estratégias.
Nesse segmento religioso emergem discursos múltiplos e contraditórios, nos quais
convenções culturais se entrecruzam, gerando novas formas de controle e gerenciamento
das condutas sexuais. Saberes teológicos e cosmológicos são imbricados a discursos
relativos ao direito dos homossexuais em constituir família e/ou formas de relações
estáveis. O discurso de valorização da conjugalidade nesses cultos encontra afinidades
eletivas com os ideais cultivados na tradição cristã sobre o exercício de uma sexualidade
santa no interior do ‘casamento cristão’. Também comparecem aqui argumentos relativos
ao cultivo de um ideal de “corpo templo”, que evoca noções de pureza e perigo. Um corpo
santo tem que se resguardar e renunciar a certos prazeres, sob pena de contaminação.
Práticas motivadas pelo hedonismo (esvaziadas de um sentido sagrado do casamento) são
percebidas como “perigosas” ou “sujas”, podendo ser significadas como pecado, também
entre segmentos inclusivos.
Em alguns segmentos inclusivos, como a Igreja Cristã Contemporânea, percebem-se
novas formas de categorização da homossexualidade, incorrendo críticas aos desempenhos

314
públicos feminizados, no caso dos homossexuais masculinos - norma talvez mais
exacerbada em relação às lideranças. A difusão de uma cultura dos relacionamentos
estáveis (Gagnon, 2006) na igreja pode levar também a formas de distinção de certos
indivíduos que passam a ocupar um lugar de maior status. Ser “casado” ou ter um
companheiro estável é exemplo de uma boa conduta a ser seguida, estabelecendo-se os
limites entre as formas de exercício da sexualidade aceitáveis e as que devem ser evitadas
(Butler, 2003). 134
É preciso observar que as conclusões deste trabalho são relativas a determinado
período dessas igrejas, que estão em processo de construção. Essas estratégias e discursos
estão em constante fluxo, sendo objetos de adequações ou novas direções, no processo de
institucionalização dos grupos. Seguindo esta lógica, esta etnografia é um registro do
momento em que a desvinculação de líderes da ICM e a formação de uma nova igreja
ensejou ações de ambos os lados no estabelecimento de identidades contrastivas. O
interdito de desempenhos feminizados no culto constituía, naquele momento, uma norma
na ICC, que pode ser lida no bojo de tantas outras respostas aos estigmas, encontrando suas
afinidades com o modelo de homossexualidade discreta que vêm sendo cultivado – como
um dos possíveis modos de construção da homossexualidade moderna - no cenário mais
global. Essas estratégias, contudo, estão em permanente construção. Em recentes visitas a
esta igreja, findo o campo desta tese, observei novas mudanças em curso. Por exemplo, a
criação de um novo espaço para discussão de textos bíblicos nomeado Instituto de
Desenvolvimento Espiritual (IDE) recoloca o problema da interpretação e dos
ensinamentos da Bíblia. Após a consolidação da igreja, o tema da “diversidade sexual” é
reposicionado e novas estratégias de direcionamento ao público homossexual são
135
empregadas. Um anúncio no Jornal O Sexo, mostra como o “evangelismo” vem sendo
repensado, articulado a necessidade de alcançar os homossexuais e colaborar no
crescimento e consolidação da igreja. Em agosto de 2008, assisti um culto em que uma
travesti conduziu um “louvor”. Observei também a adesão de um número maior de
134
Butler situa discursos sobre conjugalidades homossexuais como uma resposta à aids e aos estigmas que
incidem sobre certas minorias sexuais, na qual se estabelecem os limites do saudável e do patológico ao
mostrar como alguns homossexuais (não todos) podem manter relações estáveis ao longo do tempo.
135
Publicação voltada ao público gays distribuída em espaços de sociabilidade homossexual como saunas,
cinemas pornôs e outros.

315
mulheres, lésbicas ou não, à denominação. Em um culto de comemoração de aniversário da
Igreja Contemporânea em setembro de 2008, o comparecimento de pastores de outras
igrejas inclusivas, enfatizou a importância do movimento. O ideal de uma “unidade
inclusiva” foi ressaltado, de modo a que diferenças fossem atenuadas em função da missão
religiosa de combater a exclusão. A unidade da “nação de Deus”, antes excluída e agora
“propriedade exclusiva de Deus” havia sido prevista através de uma profecia. O evento era
a concretização disso. Abraçados ao púlpito, pastores dessas igrejas, oraram e receberam
‘unção’ para o fortalecimento da missão inclusiva. A criação de um “ministério de dança”
e de um “ministério de teatro” colocava em evidência a importância de uma linguagem
corporal no culto e a realização de performances dimensionava as formas de expressão dos
“louvores”, que passaram a ser encenados pelos bailarinos além de cantados pelos “levitas”.
A comemoração do “aniversário dessa igreja” ensejou também o convite para familiares
participarem dos cultos. Um fato marcante foi o anúncio da presença das ‘mães’ dos
pastores e diáconos. Nesses cultos, um discurso sobre o amor de Deus foi focalizado e a
preocupação com a exclusão de gays e lésbicas mencionada. Essa nação, que não era “povo
de Deus”, agora mostrava sua força e poder como “povo de Deus”, pois Deus ama as
pessoas como elas são. Profecias foram erigidas sobre a missão de resgatar novas almas e
os presentes receberam “unção” de missionários nessa empreitada.
Essas mudanças mostram que o processo de construção e consolidação de uma igreja
é complexo e imprevisível. Esta tese, portanto, representa um momento específico mas,
creio crucial, dessa trajetória.
Espero, nas paginas que aqui se findam ter conseguido traduzir em texto – etnografar
– algo da jornada que trilhei ao longo dos últimos seis anos, conversando, refletindo,
sentindo e construindo laços com gays evangélicos e outras pessoas para as quais a
espiritualidade representa uma dimensão preciosa da vida. Conforme ressaltei na
introdução deste trabalho, minha vivência de pessoa criada em religião cristã foi axial na
forma como desfiei trajetórias pessoais ligadas a exclusões e dimensões da subjetividade
atinentes à vida religiosa. Ao final da redação deste trabalho, tenho a sensação de que
poderei ainda revisitar essas idéias após a aproximação mais efetiva que venho cultivando
junto a igrejas inclusivas. Lembro aqui da narrativa de Luis Felipe Rios que, ao final de sua

316
tese de doutoramento iniciou-se no culto-afro-brasileiro. A etnografia de Vagner Gonçalvez
da Silva (2000) sobre as relações entre antropólogos e adesão religiosa nessa religiosidade
aponta trânsitos complexos entre academia-religião/ religião-academia, evidenciando
infinitas possibilidades de diálogos.
A adesão do antropólogo a uma religião representaria um ‘tornar-se nativo’? Quando
falamos em ‘nativo’, usualmente pensamos naquela pessoa que, nascendo em uma dada
cultura, é portador ‘autêntico’ de suas crenças e valores. Contudo, ‘nascer’ não é um rito
único e definitivo: há pessoas que ‘nascem de novo’. E quem sabe, assim o fazemos
continuamente. Entendendo o nascimento como um processo, me permito compartilhar
aqui o sentimento de transformação que vivenciei a partir do encontro com as personagens
dessa tese. Não sei quando comecei a me sentir parte e personagem dessa história, mas em
algum momento me surpreendi sentindo saudade das pessoas, cantando louvores, desejando
ir à igreja, levando amigos, fazendo amigos, vivendo afetos, sendo afetado. Minha
experiência de pesquisa e aproximação nessas comunidades como uma espécie de nativo,
me instigam a pensar que, apesar de ter aparentemente chegado ao fim deste percurso, a
caminhada não terminou.

317
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