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N.

º 6

candido
janeiro
2012

jornal da biblioteca pública do paraná


Ilustração: Rafael Sica

Procura-se
Quem são os precursores
e os novos nomes da
literatura policial brasileira

• Todos os anjos | Luiz Vilela • Dois contos | Luiz Felipe Leprevost • Poema | Heinrich Heine •
2 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

editorial

U
m dos gêneros mais populares da li- humor expediente

teratura, o romance policial produ-


andré dahmer
ziu livros e escritores sensacionais no
mundo todo, principalmente nos pa-
íses de língua inglesa, onde surgiram os pio- Governador do Estado do Paraná: Beto Richa
neiros do gênero, autores como Edgar Allan Secretário de Estado da Cultura: Paulino Viapiana
Poe, o criador do romance policial, Raymond Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira
Chandler, Dashiell Hammett, David Goo- Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Gerson Gross
dis e Patricia Highsmith. A partir da primei-
ra metade do século XX, o gênero ganhou Coordenação Editorial: Rogério Pereira e Luiz Rebinski
adeptos no mundo todo. No Brasil, vários Junior. Redação: Fernanda Rodrigues, Felipe Kryminice e
foram os autores que se arriscaram a ela- Guilherme Sobota Fotografia: Kraw Penas. Projeto gráfico e
borar tramas detetivescas. Mas será que te- diagramação: Versão Design. Colaboradores desta edição:
mos, hoje, uma literatura policial brasileira? André Dahmer, André Seffrin, André Vallias, Diego Gerlach,
A partir dessa indagação, Flávio Moreira da Flávio Carneiro, Flávio Moreira da Costa, José Aguiar, Luiz
Costa traça um panorama do gênero no país, Vilela, Luiz Felipe Leprevost, Marco Jacobsen, Ramon Muniz,
do pioneiro Medeiros e Albuquerque, no co- Rafael Sica e Rafael Campos Rocha.
meço dos anos 1920, até Luiz Alfredo Gar- Redação: imprensa@bpp.pr.gov.br - (41) 3221-4974
cia-Roza, um dos nossos autores contempo-
râneos mais lidos. Biblioteca Pública do Paraná
“Não é unitária ou contínua — nem Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 – Curitiba - PR.
poderia sê-lo — a evolução da literatura po- Horário de funcionamento: segunda a sexta: 8h30 às 20h.
licial brasileira, razão pela qual precisamos Sábado: 8h30 às 13h
pular de tendência a tendência, seguir esta
ou aquela pista, a fim de desenhar um pou- cartas Critérios para publicação de originais
co do mosaico que a constitui”, escreve Mo- Todos os originais enviados ao Cândido, serão analisados pelo
reira da Costa, autor de romances policiais Parabéns por mais esse jornal com que o Paraná brinda escritores e leitores de todo o país. Adorei em seu Conselho Editorial, que avalia a partir dos seguintes critérios:

e organizador da antologia Crime feito em particular a edição de novembro, dedicada ao conto, gênero que deveria ser mais valorizado, sobretudo • Contribuição relevante ao jornal;
casa — contos policiais brasileiros (2005), que nesses tempos de pressa e solicitações variadas, quando raros são os que têm tempo para leituras • Adequação às propostas do Cândido, que privilegia
obras inéditas que tenham relevância para a cultura.
compila os principais nomes do gênero no mais extensas. Abraço e, mais uma vez, parabéns pela iniciativa.
Brasil. Já Flávio Carneiro, que em 2009 de- Miriam Mambrini — Rio de Janeiro/RJ. Para obter a aprovação para publicação, as obras
butou na narrativa policial com o romance devem preencher os seguintes requisitos:
• De estilo: correção, clareza, coerência, rigor,
O campeonato, revela os bastidores da con- Acabo de receber o exemplar nº 4 do Cândido. Agradeço duplamente, isto é, pelo envio e pelo coesão e propriedade.
fecção de um livro policial, um trabalho por • De conteúdo: nível apropriado de aprofundamento dos temas,
conteúdo total, embora destaque a gostosa poesia de Iacyr Anderson Freitas, as notícias sobre evidência de pesquisa e reflexão, consistência de argumentação
vezes intrincado e cerebral.
o projeto “Um escritor na biblioteca” (com o excelente depoimento de Marçal Aquino), a seção e elaboração; originalidade da abordagem.
Em sua primeira edição de 2012, o
“Biblioteca Afetiva” e o artigo sobre Plano Estadual do Livro, Leitura e Literatura do Paraná. O Conselho Editorial não analisa:
Cândido tem a honra de publicar um con-
to inédito do mineiro Luiz Vilela, autor de
Ah, Minas, ou Juiz de Fora, especificamente, onde estamos? • Originais incompletos, em progresso ou ainda sujeitos
Lygia Toledo — Juiz de Fora/MG. à correção do autor.
algumas das histórias curtas mais célebres de As obras devem estar corretamente padronizadas e revisadas,
de modo a permitir a leitura crítica e a análise final da obra.
nossa ficção. Entre os inéditos, a edição ain-
da traz contos do curitibano Luiz Felipe Le- Um passo gigantesco para a humanidade é ter grandes publicações, ainda mais quando de livre Serão imediatamente desconsiderados os originais que atentem
prevost e poemas do alemão Heinrich Heine, acesso, como a que acabo de revisar em poucos minutos. Cândido, o jornal da Biblioteca Pública contra as declarações de direitos humanos e congêneres, as leis
e os dispositivos morais e éticos, nomeadamente os casos de:
traduzidos por André Vallias, autor do livro do Paraná, em sua terceira edição, de outubro de 2011, é fundamental em conhecimentos literários • Violação dos direitos políticos, sociais, econômicos,
Heine, hein? — Poeta dos contrários (2011). e desencadeador legítimo de desejos da reflexão. Diante do desafio da leitura descritiva da escritora culturais e ambientais;
• Que fomentem ou mostrem simpatia pela violência
E, como é de praxe, os ilustradores fa- paranaense Helena Kolody, pude perceber ainda mais a sensibilidade e versatilidade do escritor Roberto e desrespeito a crianças, idosos, bem como os
zem das páginas do Cândido um espaço de Gomes em narrar parte da vida da escritora. Com indicação de um amigo bibliófilo, conheci o mais preconceitos de raça, religião, gênero etc.
livre criação e invenção, como o gaúcho Ra- recente livro de Gomes, O conhecimento de Anatol Kraft, o qual não só indico como leitura obrigatória,
fael Sica, que assina a capa. mas também faço apologia como um dos melhores escritos nacionais realizados em 2011. Todos os textos são de responsabilidade exclusiva
do autor e não expressam a opinião do jornal.
Boa leitura a todos. Juliano Evangelista — Via e-mail.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 3

biblioteca afetiva curtas da bpp


Divulgação
Das muitas leituras marcantes da adolescência, uma parece ter me BPP e SESC-PR iniciam parceria em exposições
deixado uma marca bem mais sensorial que intelectual: o conto “Uma
descida no Maelstrom”, de Edgar Allan Poe. Os contos do Poe estão entre O SESC-PR e a Biblioteca Pública do Paraná iniciam, em 2012, uma parceria que visa promo-
os grandes responsáveis pelo despertar do meu interesse pela escrita, ver e valorizar as artes visuais no Estado. A partir de janeiro, o SESC realizará a curadoria das
por sua capacidade quase inigualável de construir maravilhamentos na exposições que ao longo do ano serão montadas no hall da BPP. Por meio de sua Divisão de
imaginação do leitor. É a mesma qualidade que encontramos em obras Educação e Cultura, o SESC desenvolverá uma curadoria analítica das exposições, que envolve
como Moby Dick ou Grande Sertão: Veredas, um sublime específico que a escolha de artistas, seleção de obras, acompanhamento das montagens, etc. “É um caminho de
somente a descrição literária pode alcançar. As descrições que o narrador de Poe faz da democratização da cultura, inclusive para que os artistas tenham uma circulação maior entre os
descida noturna no redemoinho gigantesco, com a lua cheia iluminando as paredes de ébano diversos espaços de exposição e nas instituições”, diz Christophe Spoto, analista de apoio ope-
no abismo tubular, me dão arrepios até hoje, só de lembrar. racional, na área de artes visuais, da Gerência de Cultura do SESC-PR. Para o diretor da Bi-
Daniel Galera é escritor e tradutor. Autor, entre outros, dos romances Mãos de cavalo (2006) blioteca Pública do Paraná, Rogério Pereira, a parceria é mais um passo importante que a BPP
e Cordilheira (2008). Vive em Porto Alegre (RS).
dá rumo à modernização e à democratização de seu espaço. “O SESC-PR é uma instituição de
Divulgação inegável competência, que vai nos ajudar a oferecer exposições de alto nível para nossos usuá-
Quando gosto de um ficcionista, quero ler toda a obra e saber tudo rios.” Além do hall, o segundo andar da biblioteca também continuará a abrigar exposições. A
sobre o dito cujo. Alguns favoritos: Jorge Amado, Miguel Torga (o primeira mostra, “A Floresta Atlântica”, tem início no próximo dia 16 de janeiro.
contista), Guimarães Rosa, Raymond Chandler. Quando gosto de um
poeta, leio a obra toda várias vezes, e nunca me canso, e sempre
descubro novas margens de leitura. Neste sentido, Jorge de Lima “Um Escritor na Biblioteca”
continua sendo o “autor dos melhores e dos piores versos” da nossa
língua — palavras de Mario Faustino — e aquele que me conecta terá transmissão especial em janeiro
mais intensamente com este mistério a que chamamos “poesia”. Kraw Penas
Claufe Rodrigues é jornalista e escritor. Vive no Rio de Janeiro (RJ). As edições do projeto “Um
Divulgação Escritor na Biblioteca” de
Em Conversa na Sicília, de Elio Vittorini, Silvestro, após 15 anos, retorna 2011 serão retransmitidas
a sua aldeia natal para rever a mãe. Dominado pelas montanhas pela TV E-Paraná nos meses
calcinadas da Sicília, o lugarejo simbolicamente se desgarra da realidade de janeiro e fevereiro. Entre
comezinha da vida pregressa do protagonista, passada nas cidades os dias 3 de janeiro e 7 de fe-
industrializadas do norte da Itália, para criar uma paisagem interna vereiro, sempre às terças-fei-
bastante complexa. Pois, nesta obra, o prosaísmo das conversas se ras, às 21h, seis programas
impregna da densidade do mito; aqui, tudo são sentidos e materialidade gravados com grandes es-
e, ao mesmo tempo, afirmação política em defesa do “gênero humano critores brasileiros serão re-
ultrajado”. De uma beleza indescritível é o esboço da figura do pai, que encenava Shakespeare prisados na TV. Serão trans-
nas estações de trem da região, ou o inesperado encontro com o irmão. Coisa rara, este livro mitidos os bate-papos com
estupendo deu origem a um filme de igual magnitude — Gente da Sicília, de Jean-Marie Cristovão Tezza, Elvira Vig-
Straub e Danielle Huillet, um experimento radical com a linguagem cinematográfica. na, Ana Paula Maia, Luiz
Marcos Flamínio Peres é diretor de redação da revista Cult e autor de A fonte envenenada: Ruffato, Antonio Torres e
transcendência e história em Gonçalves Dias (FFLCH-USP/Nova Alexandria). Foi editor do
caderno “Mais!”, do jornal Folha de S. Paulo, entre 2004 e 2010. Vive em São Paulo (SP). Marçal Aquino.

Gosto muito de literatura brasileira e, hoje, quero dirigir o olhar


Kraw Penas
Seção Infantil promove programação de férias
para a leitura de um livro especial do Rubem Alves, chamado
O amor que acende a lua. Um livro maravilhoso de crônicas. No período de férias escolares, a Seção Infantil da Biblioteca Pública do Paraná promove em ja-
Numa delas, o escritor faz com que eu partilhe totalmente de neiro uma programação especial. De segunda a sexta-feira, às 11h e às 15h, “A hora do conto” traz
suas palavras, quando diz: “Não é verdade que o sofrimento a tradicional contação de histórias da BPP. A cada semana, a Seção também oferece oficinas de
torna melhores as pessoas. O sofrimento embrutece, tira produção, que variam entre recorte e colagem, monotipia, brinquedos de sucata e pintura. As aulas
a sensibilidade... A única força capaz de fazer as pessoas de noções básicas de xadrez continuam com as inscrições abertas. Além disso, de 9 de janeiro a 29
melhores é o amor”. Boa leitura! de fevereiro, a Seção Infantil promove a “Gincana da Leitura” — uma gincana dividida por faixas
Maria Marta Sienna é bibliotecária e chefe da Divisão de Extensão da BPP. etárias que tem por objetivo motivar as crianças para a prática da leitura como lazer durante o pe-
Vive em Curitiba (PR).
ríodo de férias. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone 41 3221-4980.
4 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Fotos: Kraw Penas

Luiz Alfredo
Garcia-Roza
Um dos autores mais lidos da literatura
policial brasileira, o criador do delegado
Espinosa fala sobre como e por quê,
aos 60 anos, começou a escrever
romances policiais, após uma longa e
bem-sucedida carreira acadêmica
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 5

O
Formação de leitor fia disponíveis. Então, fui estudar na Bi-
carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza estreou na
Minha formação como leitor é um blioteca Nacional, que tem nove milhões
literatura de ficção aos 60 anos de idade. Formado pouco heterodoxa. Comecei a ler muito de títulos, dá para satisfazer o mais gulo-
em psicologia e filosofia, o escritor teve uma longa cedo, anarquicamente. Não tinha nenhu- so dos leitores. É um lugar lindo, uma bi-
ma seleção. Comecei com livros que quase blioteca maravilhosa. Eu não sei se gosta-
carreira como professor da Universidade Federal todos nós começamos: os “Tarzans”, Júlio va de ir e sentar naquele salão enorme e
do Rio de Janeiro (UFRJ) antes de enveredar para Verne, etc. Fui menino no Rio de Janeiro, ficar apreciando aquele silêncio, ou se re-
e tinha pouca biblioteca lá. Uma das pou- almente ia lá para estudar. Passei no ves-
a ficção. Escreveu vários livros acadêmicos, principalmente cas bibliotecas que consegui frequentar foi tibular, de modo que devo ter estudado
sobre psicanálise, até sua estreia literária com o romance O a biblioteca Thomas Jefferson, da embaixa- alguma coisa. Daí, o meu hábito de fre-
da americana, que ficava na esquina da Av. quentar a BN se estendeu por toda mi-
silêncio da chuva (1996), que recebeu os prêmios Nestlé e Atlântica. Um lugar de alto luxo para uma nha formação superior. Então, na verda-
Jabuti, tornando-se um best-seller. “Se você resolve ser escritor biblioteca. Mas como não poderia deixar de de convivi com dois tipos de bibliotecas: a
ser, a maioria das edições era em inglês, e eu biblioteca pública e a biblioteca particular.
aos 20 anos, pode cometer todos os erros que quiser, dá
não lia em inglês naquela época, era meni-
tempo de recomeçar, consertar, fazer curso, ficar amigo de no. A solução foi comprar os livros. Com o Primeiras leituras
um escritor e pedir ajuda. Em suma: você pode fazer grandes dinheiro de mesada que meu pai me dava, As minhas primeiras leituras mais
eu ia juntando e comprando livros. Até fa- consistentes foram dos livros do Júlio Ver-
tentativas. Você pode sonhar em escrever Guerra e paz de zer minha primeira prateleira, depois mi- ne, que eu consideraria um infantojuve-
novo, dá tempo. Quando resolvi fazer ficção [aos 60 anos], nha primeira estante, depois a primeira mi- nil já passando para adulto. Li Júlio Ver-
nibiblioteca, e assim foi crescendo. ne de ponta a ponta, era um bocado de
pensei: ‘Não se meta a escrever grandes romances. Aliás, coisa, setenta e tantos volumes, e depois
não se meta a escrever romances’”, disse o escritor, que foi o Bibliotecas públicas descobri livros policiais, tipo de Sherlo-
e particulares ck Holmes. Acabei entrando em contato
nono convidado do projeto “Um Escritor na Biblioteca” em com os romances de Dashiell Hammett e
Durante todo esse tempo, acabei
2011. Criador do delegado Espinosa, personagem central juntando uma grande quantidade de li- Raymond Chandler, aí vi que era possível
de quase todas as suas histórias, Garcia-Roza se tornou uma vros — que eu não chamaria de assom- fazer literatura policial de boa qualidade.
brosa, mas que é assombrosa para quem Desde então nunca mais parei de ler livro
referência do romance policial no Brasil com seus 11 livros, não pretendia ser bibliófilo, nem colecio- policial. Paralelamente a isso, fui lendo a
“escritos em 15 anos”. As histórias de Espinosa se passam nador de livros. Eu já devo ter chegado literatura clássica, ocidental. Comecei com
a juntar qualquer coisa perto de uns dez Dostoiévski — iniciei pesado, poderia ter
no Rio de Janeiro, especialmente no bairro de Copacabana, mil livros. Me desfiz de cinco mil e já ad- ido um pouco mais leve, tinha 14 anos —
onde mora o delegado. Porém, nos romances de Garcia- quiri outros. Hoje tenho duas bibliotecas: e gostei muito dele.
uma em casa, cujo espaço divido com a
Roza, surge um Rio de Janeiro muito particular, uma cidade minha mulher [a também escritora Livia Releituras
narrada a partir da visão do heterodoxo policial Espinosa — Garcia-Roza], e outra em meu escritório As minhas releituras foram, na ver-
— um luxo recente —, que tenho só para dade, mais importantes que as leituras.
solitário, introspectivo, fã de boa literatura e de boa música.
escrever. Com isso, acabei juntando duas Tive releituras surpreendentes, como a de
Durante o bate-papo, mediado pelo jornalista Christian bibliotecas consideráveis, que não são ex- Lord Jim, do [ Joseph] Conrad. Cinquen-
Schwartz, Garcia-Roza ainda falou sobre a influência da cepcionalmente grandes, mas têm, na pior ta anos depois de tê-lo lido, li novamen-
das hipóteses, cinco mil exemplares. É um te. Quando li, achei o livro interessante;
psicanálise em sua literatura (“Deliberadamente, não utilizo bocado de livro, sobretudo quando você quando reli, achei ótimo. Como a releitu-
nada da psicanálise em meus romances.”), sua rotina de vai se mudar. Por exemplo, quando mudei ra do Dostoiévski, com Os Irmãos Kara-
de casa, uns vinte anos atrás, acabei dando mázov, já traduzido diretamente do russo.
escrita (“Trabalho todo dia. Um pedaço da manhã, um pedaço uns cinco mil livros porque simplesmen- Comprei a coleção do Dostoiévski quan-
da tarde.”) e sua relação com as bibliotecas (“Convivi com te não sabia o que fazer com eles. Mas do era menino e, muito tempo depois, fui
isso não eliminou minha relação com as me dar conta que os livros eram traduzi-
dois tipos de bibliotecas: a biblioteca pública e a biblioteca bibliotecas. Quando fui fazer vestibular dos do francês e do inglês. Aquilo me de-
particular.”). Confira, a seguir, os melhores trechos da conversa. para filosofia, não havia livros de filoso- cepcionou. Quando os romances começa-
6 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

“ Minha relação com a literatura é


ram a ser traduzidos diretamente do russo, do enigma, é o que faz com que o enigma
por Boris Schnaidermann, enfim, tradu- seja reinventado, ou redito, ou reeditado,
ções magníficas, comprei tudo novamente em suma: o enigma é como o sonho. Você
e foi uma releitura enriquecedora. É curio-
so: meu percurso literário é feito de leitu-
inteiramente selvagem. Sou um leitor selvagem.” interpreta uma vez, outra vez, outra vez...

ras e releituras, sendo que as releituras são Poe


mais ricas do que as leituras. Por incrível que pareça, Poe está
sistiria a incluí-lo entre os livros policiais. O romance policial nos dois grupos. No começo de Assassi-
Biblioteca afetiva Como Crime e castigo tem uma coisa de A grande divisão para mim é a que natos da rua Morgue, ele faz uma belíssima
A minha biblioteca afetiva sem dú- romance policial: tem crime, investiga- se faz entre os cartesianos, cerebralistas, exposição do raciocínio lógico dedutivo.
vida alguma inclui um Faulkner. É um es- ção, etc. Eu não sei se diria que eles me que acham que o romance policial é um Resolver crimes é isso que está aqui. No
critor magnífico. Palmeiras selvagens e Luz influenciaram em termos de romance po- tratado de matemática com certa ação. Há ano seguinte, ele escreve O homem da mul-
em agosto são obras-primas da literatu- licial. Eles me influenciaram como litera- um determinado crime, esse crime é visto tidão, em que começa dizendo: “O essen-
ra, dois dos maiores livros do século XX. tura e como leitor de literatura, tout court. como um problema, esse problema então cial de todo crime permanece irrevelado”.
A distância é curta, mas eu incluiria Dos- Tenho uma admiração grande pelos dois, vai ser equacionado, enunciado, é só uma Ora, se é isso, há algo no crime, no assassi-
toiévski, ele me habita permanentemen- mas não consigo ver marca de autor ne- questão de aplicar o método hipotético nato, que ultrapassa o “whodunit”, o “quem
te. Gosto muito do Herman Melville. Bar- nhum no que escrevo. Não é por arro- dedutivo, e aí no fim junta a turma num fez isso”. O crime tem uma complexidade
tleby é magnífico. Como eu gostaria de ter gância intelectual, é porque não consigo ambiente fechado e simpático, e então diz social, filosófica, política, religiosa, o dia-
escrito aquilo. Sem contar Moby Dick, que mesmo. Absorvi tanta coisa nos meus 60 como o crime foi cometido nos seus maio- bo a quatro, que vai muito além do ato de
é uma Odisseia sem Ulisses. Mas também anos de leitor, que é impossível saber, nes- res detalhes. Essa é a perspectiva que vê no descobrir quem matou.
Conrad, Philip Roth e, para citar um bem te caldo fantástico que se criou por essa crime um problema a ser resolvido, e uma
recente, Umberto Eco. Eu seria incapaz de absorção selvagem, o que é devido a fula- vez resolvido, afastada a causa do crime e Opção pelo romance policial
nomear todos eles. Provavelmente ficaram no, sicrano e beltrano. Eu me sinto como evidentemente o criminoso, o “whodunit”. Se você resolve ser escritor aos 20
alguns de fora, mas esses, pelo simples fato se fosse habitado por esses autores todos. Sherlock Holmes, Agatha Christie, quase anos, pode cometer todos os erros que
de terem me ocorrido assim de imedia- Eles estão aqui dentro. Deve estar uma todos os ingleses, também franceses, como quiser, dá tempo de recomeçar, conser-
to, estão mais à flor da pele. Dos policiais, enorme bagunça, mas eles estão aí. o Simenon, se utilizam desse recurso. O tar, fazer curso, ficar amigo de um escritor
sem dúvida alguma, me habita permanen- outro tipo de narrativa policial, é quando o e pedir ajuda, em suma: você pode fazer
temente a Patricia Highsmith, que é uma Autores brasileiros crime não é um problema a ser resolvido, grandes tentativas. Você pode sonhar em
autora muito pouca ortodoxa, até porque o Dos policiais, poucos autores me mas um enigma a ser decifrado. A diferen- escrever Guerra e paz de novo, dá tempo.
personagem principal dela é um psicopa- influenciaram porque falta massa crítica ça é enorme: no primeiro caso, “uma vez Quando resolvi fazer ficção, pensei: “Não
ta. O Ripley é um assassino frio, psicopa- para se falar em literatura policial no Bra- o problema enunciado, ele está resolvido”. se meta a escrever grandes romances. Ali-
ta, mas todo mundo gosta dele. Eu não en- sil. Agora, dos outros autores, de Machado É só uma questão de proceder lógico-de- ás, não se meta a escrever romances.” Não
contrei ninguém até hoje que tivesse lido a de Assis a Milton Hatoum, vários auto- dutivamente. No enigma, não. O enigma se meta a fazer um romance extremamen-
Highsmith e não gostasse do Ripley. E, no res me agradaram. Mas também não se- não tem essa transparência, essa clareza, te complexo, porque você não vai ter tem-
entanto, ele mata operacionalmente quan- ria capaz de falar em marca, nem preten- ele não é feito de ideias claras e distintas po. Aos 60 anos, eu me perguntava: “quan-
do o sujeito está atrapalhando. Gosto mui- do ter marcado ninguém, a não ser desse como o problema. O enigma tem uma to tempo vou ter de vida inteligente pela
to do Hammett e do Chandler. E de Edgar jeito impressionista. Uma coisa que quero parte da verdade que te revela, te insinua, frente?” Eu acho, inclusive, que eu já estou
Allan Poe, que fundou o romance policial, deixar claro, para não parecer que estou fa- e uma parte que ele oculta. A parte oculta, lucrando. Então decidi pelo romance po-
fundou a ideia da cena do crime, da inves- zendo uma seletividade maior do que eu
tigação, e, principalmente, fundou o leitor. deveria fazer: a minha relação com a lite-

“ Acabei
Ele inventou o leitor de romance policial. ratura é inteiramente selvagem. Sou um
É fantástico. Assassinatos da rua Morgue e O leitor selvagem. Eu usaria este termo no entrando em contato com os
homem da multidão (que não é um livro po- mesmo sentido que o Levi Strauss usou:
licial) são duas peças que também me habi-
tam permanentemente.
no sentido pré-crítico. Não leio literatura
criticamente. As releituras podem ser crí-
romances de Dashiell Hammett e Raymond
Influências
ticas. Mas as leituras não são. Então, diria
que eu só “acho” em termos de leitura. É
Chandler, aí vi que era possível fazer
O nome da rosa, por exemplo, tem
tudo para ser um livro policial. Mas eu re-
quase que um achismo. Não sou capaz de
teorizar sobre literatura. literatura policial de boa qualidade.”
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 7

licial. Primeiro, porque eu gosto. Segundo, anos, eu disse: “tá bom”. Saí da universi-
porque não é bem um romance, é uma no- dade e comecei a escrever um romance.
vela, é mais enxuto, na quantidade de per- Foi O silêncio da chuva. Escrevi sem mos-
sonagens, em tudo. Isso não tem a ver com trar para ninguém, sem nunca aprender
o número de páginas, mas com a comple- a como escrever literatura — eu já tinha
xidade da coisa. Então a primeira coisa uns oito ou nove livros teóricos publica-
a fazer era inventar um detetive. Quem? dos. Mas uma coisa é publicar ensaios so-
Pensei: “qual é o sujeito menos policial bre psicanálise e filosofia, outra coisa é fa-
que você conhece na vida?”. É o Spinoza. zer ficção. O livro conceitual te abraça, te
O filósofo Baruch de Spinoza, do sécu- põe no colo. Tem os comentadores, en-
lo XVII, figura magnífica, das mais belas fim, qualquer descaminho que se cometa
da filosofia ocidental, de uma integridade num livro conceitual, há orientadores que
absoluta, um pensador que nunca cedeu a te apoiam, te orientam. Na ficção, não tem
qualquer tipo de pressão. Um sujeito que nada. É como estar nu, sozinho, no meio
conseguiu ser excomungado pela igreja da rua. Não adianta pedir socorro porque
católica, protestante, pelos judeus, etc. En- ninguém vai te ouvir. É um estado de de-
tão pensei se era possível criar um policial samparo absoluto. Eu acho que o autor de
que tivesse toda essa integridade pessoal, ficção é o ser mais desamparado que exis-
não precisava ser o maior pensador do sé- te. Porque ele se coloca deliberadamente
culo, não, mas que tivesse nele essa coisa na posição de Deus, ele vai criar. Ele cria
da imagem do Spinoza. Daí, botei, inclu- o mundo que quer, o cenário, as pessoas,
sive o nome. Mas você imagina um dete- mata um, mata outro, desmata se quiser,
tive desse, até com o nome de um filósofo, conserta, ele faz o que bem entender. Não
um judeu? Qual é o problema? E o nome é só Deus, é um Deus brincalhão. Se você
eu acho simpático. Inclusive o nome ori- olhar para o lado, para o outro, para bai-
ginal, é grafado com “S” e “za” no fim, mais xo, para cima, você não vê mais ninguém.
chique. Eu botei português mesmo, Espi- Ou você é Deus e está ali sozinho, ou en-
nosa. Até porque ele nasceu em Portugal. tão não é. Essa é a consciência de que o
escritor de ficção tem que ter.
Espinosa
Espinosa surgiu absolutamente de Pesquisa
repente. Não só o Espinosa, mas eu como Na verdade, eu nunca tinha entra-
autor policial surgi de repente. Sempre do numa delegacia de polícia até escrever
gostei de romance policial, sempre li, mas O silêncio da chuva. Tenho um amigo, ad-
não tinha pensado seriamente em vir a ser vogado criminal, que me levou numas de-
um escritor de romance policial. Eviden- legacias, para ver como funcionava e tal.
te que tinha feito fantasias, “puxa, como O problema é que muda muito: quando
deve ser bacana ser escritor policial, o su- o Espinosa nasceu, ele era inspetor. De-
jeito que é um escritor de romance po- pois, deixou de existir inspetor, não tem
licial é tudo na vida, ele pode sair na rua mais, só tem delegado e detetive. Aí mu-
de peito aberto porque é o tal”. Coitado, dei, botei ele como delegado. Aí, não tem
eu devia ter menos de 20 anos. E aí, fui a mais detetive, só tem inspetor, mas em
vida toda professor, profissão que não dá compensação não tem mais delegado, e
canja para fazer outras coisas. Fiz tam- sim comissário. Bem, resolvi que não vou
bém mestrado, doutorado, criei um dou- acompanhar isso. Eu vou deixar o Espi-
torado na UFRJ em psicanálise, me dedi- nosa numa certa atemporalidade em re-
quei à pesquisa, etc. Em suma: minha vida lação a essas mudanças, porque isso acaba
profissional foi muito intensa, não dava virando um inferno, fica difícil até para o
tempo para mais nada. Na virada dos 60 leitor acompanhar.
8 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Espinosa envelhecendo adjuvantes, que pudessem manter uma tro- lícia. Aí, a coisa começa a enrolar.
Esse foi um dos maiores problemas
que eu enfrentei: se eu fazia o meu perso-
“ O crime tem uma
complexidade social, filosófica,
ca, manter a história mesmo. Daí o Welber.
Psicanálise
nagem histórico ou a-histórico. Quando Copacabana Deliberadamente, não utilizo nada
comecei, Espinosa tinha 42 anos, e a na- política, religiosa, o diabo a As histórias de ficção tem como da psicanálise em meus romances. Esse
morada dele 30. Bem, agora ele devia ter matéria-prima o imaginário, mas também foi um dos grandes perigos que eu sabia
55 anos, e ela 40 e tantos. Eu não poderia
quatro, que vai muito além do a realidade, até por uma questão de veros- que tinha que enfrentar. Eu tinha uma
deixar o personagem descolado da histó- ato de descobrir quem matou.” similhança. A matéria-prima que utili- formação muito forte em filosofia, mais
ria, não posso fazê-lo sem história, porque zo vem daí. Conheço Copacabana não só forte do que em psicanálise. Era o risco
os acontecimentos externos vão mudando, como a palma da minha mão, mas tam- de começar a fazer filosofismos ou psi-
a vida da cidade vai mudando, coisas vão bém subterraneamente. O Rio de maneira canalismos na ficção. O que mataria, no
mudando no entorno dele, e eu não pos- geral. Então, tenho o material da realidade, nascedouro, qualquer tentativa minha de
so mantê-lo na década de 1980 e as coisas
acontecendo em 2011. Então, fui acomo-
“ Até hoje, acho que
consegui, em todos os meus
do que eu vejo, do que acontece, e o resto
é o imaginário mesmo. Mas eu tenho, por
fazer novela policial. Isso foi uma coisa
que eu sempre tomei o maior cuidado.
dando cronologicamente o Espinosa aos exemplo, na parede do meu escritório, um Quando muito, há uma citação do Espi-
livros. Entreguei agora mais um livro. O livros, não fazer nenhuma mapa de três metros, só de Copacabana, nosa a respeito de alguma coisa de psica-
Espinosa atual está com 55 anos, se não feito pela prefeitura do Rio, tão meticulo- nálise, mas inteiramente gauche, porque
me engano, portanto já houve uma mu-
interpretação psicanalítica em so que ele te dá cada prédio com o núme- ele mesmo não entende muito de psi-
dança. Ele envelheceu. Ele sofre com pro- qualquer momento.” ro de andares, e quantos metros ele tem canálise. Agora, o que a psicanálise fez
blemas da idade. de frente e de fundo. Dá as ruas, as sinali- comigo para eu escrever como escrevo?
zações, tudo. Também caminho bastante, Isso aí é outra história. Fez muita coi-
Romance sem Espinosa você tem que fazer isso, porque nem sem- sa. Tanto quanto a vida fez comigo. O
Eu fiz esse romance [Berenice pro- ela é uma caixa de ressonância, está o dia pre o mapa corresponde exatamente. quanto sai dos meus livros que acontece-
cura] para não matar o Espinosa. Como inteiro ouvindo coisas, informações, ela cir- ram efetivamente? Não sei, muita coisa
o Espinosa é um personagem que apare- cula pela cidade, conhece todo mundo do Construção do romance provavelmente. Talvez coisas que eu não
ce em todos os livros, como que é que você bairro. Por isso imaginei a Berenice [perso- Não construo o crime, deixo ele tenho nem ideia que aconteceram. Im-
faz? Você repete no segundo livro o que nagem de Berenice procura]. E, para com- vir. Por exemplo: eu estava saindo de um possível, num ato de criação, seja na lite-
disse no primeiro romance sobre o Espi- plicar, imaginei uma história que se passa restaurante uma vez, em Copacabana, ratura, na pintura, na música, determinar
nosa, para o leitor saber como ele é? Vou nos subterrâneos do metrô. tarde da noite, e no outro lado da rua, ti- o que teve uma origem exterior e o que
ter que dizer como ele namora, como é nha uma caixa de papelão, de geladeira. teve um começo absoluto no momen-
a namorada dele, ou seja, vou ter que ex- Coadjuvantes Quando eu vejo, uma cabeça sai de den- to em que se está escrevendo. E mes-
plicar tudinho, de novo, a cada livro? Não O Welber, por exemplo, surgiu logo tro da caixa: era um pivete que estava dor- mo esse começo absoluto, dificilmente
vou suportar um negócio assim. Então, me no começo, da necessidade de ter um in- mindo ali, coitado, não tinha outro lugar será um começo absoluto, porque você já
dei conta que tinha coisa que eu não falava terlocutor para o Espinosa. Ele já é solitá- para dormir. Aí, eu vi sair um bêbado do é um adulto, vivido, que está ali, escre-
mais. Eu fazia de conta que o leitor já sa- rio, se não tivesse um interlocutor, iria virar mesmo restaurante, que esbarrou, chutou vendo. De modo que eu não me preocu-
bia, mas não poderia fazer isso, porque o um personagem chato. Então, ele precisava a caixa. O garoto botou a cabeça para fora po com o quanto fui marcado pela psi-
leitor pode entrar na livraria e comprar o de um interlocutor, de uma namorada in- para ver o que estava acontecendo. O co- canálise. Eu me preocupo em não fazer
último livro, e não ter lido nenhum ante- teressante, com todo aquele fogo que a Ire- meço de Achados e perdidos é exatamente isso deliberadamente. Até hoje, acho que
rior. Então, senti que já estava empurran- ne tem, uma mulher extremamente sensual, esse. É um delegado que está saindo de consegui, em todos os meus livros, não
do algumas coisas do Espinosa que tinha mas também não perturbadora da ordem um restaurante com uma prostituta, um fazer nenhuma interpretação psicanalíti-
que dizer, para o leitor saber como ele é, dele. Mas a própria presença dela já mexe delegado aposentado e alcoólatra, e acon- ca em qualquer momento.
e isso estava me amolando. Então escrevi com ele. Ele precisava disso, senão aquele tece uma série de coisas, só que ele dei-
um livro que não tinha o Espinosa, para personagem não se sustentaria. Ou seja, o xou cair a carteira no chão, então o garoto Método de trabalho
dar uma limpada na cabeça, inventar uma próprio Espinosa tem um ar plácido, pre- pega a carteira e descobre que dentro dela Trabalho todo dia. Um pedaço da
história, que seja de investigação, que te- cisava de um entorno, um conjunto de co- tinha uma carteirinha de delegado de po- manhã, um pedaço da tarde. Não escre-
nha um crime, mas em que Espinosa se-
quer é mencionado. Quem será o perso-
nagem, então? Uma mulher. Aí, ninguém
melhor que uma motorista de táxi, porque
“ O personagem não pode te surpreender. Ele não existe.”
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 9

Gosto pela leitura


Isso é um mistério. Não cres-
ci num ambiente de leitores. Eu, muito
novo, comecei a fazer minha prateleira.
Tem gente que lê onde pode, na hora
que pode, contra tudo e contra todos.
Porque gosta de ler. E você vê que ele lê
nas piores condições possíveis, sem ter
nem incentivo nem apoio de ninguém.
E tem gente que cresce numa biblio-
teca como a do Borges, por exemplo.
Quer dizer, eu nem sei se o Umberto
Eco tem filhos, acho que tem uma filha,
mas ele tem quarenta mil livros. Os fi-
lhos dele cresceram em meio a quaren-
ta mil livros. Ou eles tomaram um ódio
absoluto e total por livros, ou eles foram
se interessando, nem que fosse pelo li-
vro materialmente, não pelo conteúdo,
nem pela literatura, mas pelo livro en-
quanto tal. Eu só sei o seguinte: acho
ótimo quando vejo uma criança len-
do qualquer coisa, pode ser bula de re-
médio. Porque o ato de ler, essa relação
com a escrita, é que vai fazer, um dia,
a coisa mágica. Uma vez, falando aqui
mesmo em Curitiba, dei um exemplo:
abrir um livro é uma experiência aná-
Christian Schwartz e Garcia-Roza no auditório Paul Garfunkel da BPP. loga a da criança que vai olhar no bura-
co da fechadura o que os pais estão fa-
zendo no quarto com a porta fechada. O
vo desesperadamente. Às vezes, em casa, à
noite, quando tem alguma coisa que está
a história te surpreenderia, fosse diferente
do que você imaginava. Não. Se isso acon- “ Abrir um livro que tem por trás desta porta? Tem um
mundo misterioso e fantástico. Ele é ca-
muito na cabeça, que não consegui sol-
tar, pego o computador e continuo o que
tece, você já estava dando aquele cami-
nho. O personagem é inteiramente passi-
é uma experiência paz de ficar pendurado ali na maçane-
ta, até conseguir ver alguma coisa. Essa
fiz durante o dia. Mas é raro. Eu procuro
manter a maior continuidade possível, por-
vo, não é sujeito de ação, nem de sugestão.
Às vezes, você pode ter a impressão de que análoga à da criança magia do oculto, desse lugar, que é o lu-
gar do não visto e do não dito, é o lugar
que as quebras são muitos prejudiciais. Se a história está tomando o rumo que não do silêncio, dessa coisa silenciosa, e in-
fico dois dias sem trabalhar, a retomada é
difícil. Em 15 anos, escrevi 11 livros. Dois
era o original, que certamente esse rumo
está sendo dado por certos personagens.
que vai olhar no visível, que está ali, dentro da sua casa,
e que deve ser ameaçadora, porque está
livros a cada três anos. Mais ou menos isso.
Acho que escrevo rápido. Se eu fosse pru-
Mas é evidente que não, aqueles persona-
gens ali são os seus dedinhos que não estão
buraco da fechadura trancado. Essa experiência, que é a expe-
riência analítica por excelência, para fa-
dente, escreveria um pouco mais lento —
mas aí entra a questão da urgência.
funcionando, eles não são sujeitos de ação
nenhuma. Então, nunca fui surpreendido. o que os pais estão zer jus à presença da psicanálise, é essa
outra cena, que seria a cena do incons-
Até fiquei surpreso comigo por ter dado ciente. Então, abrir o livro é uma experi-
Personagem versus autor certa solução a alguma coisa que eu ainda fazendo no quarto ência análoga a isso. Você abre um uni-
O personagem não pode te surpre- não tinha imaginado durante o livro. Mas verso novo, de personagens, de histórias,
ender. Ele não existe. Antes eu acredita-
va nisso: que se você não tomasse cuidado,
dei aquela solução naquela hora, foi dada
por mim. Esse risco não existe.
com a porta fechada.” tudo. Há, em cada criança, a curiosidade
por aquilo que não foi visto e dito. g
10 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

memória literária | Wilson Martins

Gratidão a Wilson Martins


André Seffrin escreve sobre a monumentalidade daquela História, “o

sua relação com a obra e


maior livro das Américas, vejam bem,
escrito por um único autor”. Foi o que “ Dos nossos poucos críticos que resistem
o legado literário do crítico,
bastou para, entre meus 16 e 17 anos,
dar início a uma série de leituras a par-
às releituras, ele é de fato o mais lido, consultado
tir de O modernismo, da História da in-
morto há dois anos teligência brasileira e das dezenas de tí- e imitado por admiradores e detratores.”
tulos que Wilson Martins elogiava em
sentenças críticas por vezes reproduzi- Quando me transferi definiti- e imitado por admiradores e detratores
André Seffrin das em capas, contracapas e orelhas das vamente para o Rio de Janeiro, em fe- — estes, em geral confusos e ressenti-
edições da José Olympio, Globo ou Ci- vereiro de 1987, procurei reeditar, sem dos. Julgá-lo crítico taciturno, superado

E
m 1962 Wilson Martins se trans- vilização Brasileira, mais constantes na sucesso, A palavra escrita. Wilson ain- e sem emoção é hoje lugar-comum. Ao
feriu para Nova York, quando deu referida biblioteca do colégio. da morava em Nova York quando ini- contrário, suas severas atividades de crí-
início à doação de grande parte dos Nesse período, li obsessivamente, ciamos uma correspondência. E logo tico militante e historiador são multifa-
livros acumulados no exercício da sem qualquer método, poesia, ficção, crí- nos encontramos pessoalmente numa cetadas e de linhagem generosa.
crítica para o acervo da Biblioteca Pú- tica, ensaio, teatro. Eram páginas e mais tarde de sol do verão de 1989, no Ho- Para compreendê-lo melhor é
blica do Paraná, prática que não abando- páginas de livros e cálculos que me habi- tel Ouro Verde, em Copacabana, onde necessário ler o que escreveu sobre um
nou ao longo dos anos. Sim, “os [livros] tuei a fazer, doentiamente, a fim de cro- acompanhei sua entrevista ao Jornal de encontro com Monteiro Lobato, pági-
que não posso guardar doo à Biblioteca nometrar livros lidos e tempo restante de Letras. Em 1998, compareci à sua pos- na reveladora de sua paixão pela litera-
Pública”, disse ele em entrevista a Mi- vida para ler todos os livros de todas as se no P.E.N. Clube do Brasil, realizada tura e pelas figuras que a representam:
guel Sanches Neto em 1997. Exemplares estantes, como se a vida comportasse o no palco do Instituto Histórico e Ge- “Eu tinha dezessete anos quando, em-
com anotações de próprio punho, com absurdo. Febre de leitura que era júbilo ográfico, quando pude cumprimentá-lo purrado por essa grande criadora de ta-
dedicatórias de escritores de todos os e vertigem e fatalmente alterou signifi- após a cerimônia e ouvir seus comen- lentos que é a Necessidade, me vi secre-
cantos do país e do exterior, e por vezes cados e valores. Tanto que a bibliotecá- tários bem humorados. No mais foram tariando um pequeno jornal na cidade
edições raras que despertariam o delírio ria do colégio, atenta à insidiosa frequ- conversas telefônicas, poucas, e cerca de paranaense de Ponta Grossa” (Pontos de
de qualquer bibliófilo. Ao que tudo in- ência do aluno, não demorou a fornecer três dezenas de cartas ou cartões, reca- vista, v. 1, p. 435). O resumo do que foi
dica, Wilson não supervalorizava dedi- o endereço de um dos maiores sebos da dos eventuais, não raro ligados a traba- a entrevista que realizou com o “ido-
catórias, e raridades bibliográficas só lhe cidade e, é claro, o da Biblioteca Públi- lhos, até o último semestre de 2009. latrado” Lobato da campanha do pe-
interessavam como ferramenta de traba- ca do Paraná, onde encontrei o mapa Um tanto dispersas ou esgarça- tróleo traz o emblema de um apaixo-
lho. Mas, como se sabe, e ele sabia, dedi- do tesouro. Que eram dezenas de li- das nos quatro parágrafos anteriores, nado do ofício, pois daquele encontro
catórias contam uma história secreta da vros com anotações de Wilson Martins, estas recordações recompensam minha ele “guardou para sempre o que mui-
literatura, também fascinante. com sua marca de posse, sua assinatu- decisão de, desde cedo, viver entre li- tas pessoas mais importantes jamais
Menos de vinte anos depois, ra ou dedicatória de autores nacionais. vros e profissionalmente de literatura, puderam obter”, isto é, um abraço de
em 1981, na biblioteca do Colégio Es- Por quatro ou cinco anos, apartado do como mais tarde aconteceu. Tudo afi- amizade. Esse fator humano, altanei-
tadual Professor Loureiro Fernandes, rumor das ruas, no silêncio catedralesco nal se justifica porque uma parte do que ro, encontramos em todas as linhas e
em Curitiba, onde fui aluno de Vi- daquela biblioteca, dediquei-me à tarefa sou devo a Wilson Martins. Dos nossos entrelinhas da História da inteligência
cente Ataide e cursei os antigos giná- destrambelhada de ler tudo quanto fos- poucos críticos que resistem às releitu- brasileira. E em A palavra escrita, em
sio e científico, encontrei um exemplar se para alcançar, quem sabe, o segredo ras, ele é de fato o mais lido, consultado que o humanista Wilson Martins tra-
de O modernismo, ensaio paradigmático da grande máquina chamada História da tou da censura e da civilização eletrô-
de Wilson Martins, e os cinco volumes inteligência brasileira ou dos sucessivos nica, tocando as franjas de uma paisa-
iniciais de História da inteligência brasi-
leira. Adolescente, encarei aqueles livros
artigos publicados por Wilson Martins
em O Estado S. Paulo e no Jornal do Bra- “ Wilson Martins criou além
disso um estilo de crítica baseado
gem sombria: “Não é apenas o livro que
se encontra ameaçado de desaparecer: é
como uma imensa catedral do conheci- sil, que nessa época eu já acompanhava o próprio homem, no que tem de mais
mento. E Vicente, em aula, alertou para de maneira esporádica. na honestidade consigo mesmo.” caracteristicamente seu, naquilo que o
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 11

Ramon Muniz

“ Impossível medir o bem que


nos fez e faz, confirmando em
nós o compromisso de ler melhor
e certamente nos reconhecer
melhor no que lemos.”

define e distingue na escala zoológica”.


Wilson Martins criou além disso
um estilo de crítica baseado na honestida-
de consigo mesmo, de quem conhecia as
limitações humanas e a precariedade dos
juízos. Ao conceber a crítica como criação,
atuou com coragem, franqueza, indepen-
dência, pluralismo e fidelidade, capacida-
des inerentes a um mestre do seu ofício.
Frente ao espetáculo da vida, soube ler o
sentido oculto das coisas com despreten-
siosa ironia. Como estilista da literatura e
escritor no sentido largo do termo, admi-
tiu que o crítico ideal é “animal tão raro
quanto o legendário licorne da mitolo-
gia”, e “a discordância e a concordância”
são “pólos orgânicos da vida nacional”, em
cuja oscilação nos desenvolvemos literária
e politicamente. Impossível medir o bem
que nos fez e faz, confirmando em nós o
compromisso de ler melhor e certamente
nos reconhecer melhor no que lemos, “em
nome de um ideal mais alto que é a digni-
dade profissional da literatura”.
Nesta minha breve memória de
juventude, na marca dos dois anos de
sua ausência, e com a imperdoável pre-
tensão de falar por todos, chego ao fim
como no início, Wilson, “descobrindo o
que me destes sem saber que o davas”
— com que expresso meu tributo a você
em versos de Drummond, nosso maior
inventariante de bens e sangue. g

André Seffrin nasceu em Júlio de Castilhos


(RS) e reside há vinte e cinco anos no Rio de
Janeiro. Organizou, entre outros livros, Contos e
novelas reunidos, de Samuel Rawet (Civilização
Brasileira, 2004), Roteiro da poesia brasileira:
anos 50 (Global, 2007) e Poesia completa e
prosa, de Manuel Bandeira (Nova Aguilar, 2009).
12 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

entrevista | josé castello


Matheus Dias/Rascunho
co; e seu terceiro romance, que tem como

“O escritor
Luiz Rebinski Junior
nome provisório Ninguém.

N
o começo dos anos 1990, o carioca

precisa
José Castello, depois de uma carrei- No começo dos anos 1990 você ganhou
ra bem-sucedida no jornalismo im- um prêmio Jabuti por O poeta da paixão,
presso, resolveu que se dedicaria à a biografia de Vinícius de Moraes (1993).
sua grande paixão: a literatura. A decisão Quase vinte anos depois, você recebe o
logo se confirmaria acertada, quando em prêmio por Ribamar, um livro de ficção e

reinventar
1994, o escritor ganhou o prêmio Jabuti bastante pessoal. O Jabuti por Ribamar,
por sua biografia de Vinícius de Moraes, um romance, tem mais importância pes-
O poeta da paixão. “O prêmio para meu soal e profissional para você?
primeiro livro foi uma espécie de sinal, Os dois prêmios são igualmente importan-
um aviso de que eu não devia recuar, de- tes. O Jabuti para O poeta da paixão foi um
via prosseguir no caminho da literatura”, prêmio para meu primeiro livro. Uma espé-

a literatura”
diz Castello. Em 2011, outro Jabuti vol- cie de sinal, um aviso de que eu não devia
ta às mãos do escritor, dessa vez para re- recuar, devia prosseguir no caminho da lite-
afirmar a crença de Castello em sua car- ratura. Um prêmio que me deu muita força,
reira de romancista. que quebrou minha insegurança de inician-
O prêmio por Ribamar (2010), um te — apesar de eu já ter, naquele momen-
José Castello, que romance que trata da relação de Castello
com seu pai, também serviu para que o es-
to, 40 anos. O Jabuti para Ribamar, aos 60
anos de idade, tem um significado parecido:
em 2011 venceu o critor encontrasse sua “voz literária”, como dez anos depois de lançar Fantasma, meu
costuma dizer. Ao fundir diversos gêneros primeiro romance — um livro que, eu pen-
prêmio Jabuti com o literários — da crônica à crítica literária — so, não foi muito bem compreendido, tal-

romance Ribamar, diz em um livro de ficção, o escritor encontrou


a trilha pela qual deverá seguir no futuro.
vez nem por mim —, este prêmio pelo meu
segundo romance me diz que, sim, o cami-
que está cada vez mais “Gosto muito de trabalhar nas fronteiras,
de escrever à beira do abismo.” Tal “esti-
nho é esse, devo seguir em frente na via da
ficção. E vou seguir, não há mais volta.
interessado em trabalhar lo” de narrar, no entanto, vem sendo buri-
lado há décadas. Castello já vinha experi- Você tem dito que está, cada vez mais, in-
nas fronteiras dos mentando essa fusão de gêneros em livros teressado na fusão de gêneros literários
gêneros literários de viés crítico, como A literatura na poltro-
na (2007) e, principalmente, Inventário das
que marca a construção de Ribamar, onde
você mistura memórias, ensaio e até crí-
sombras (1999), livro que se equilibra entre tica literária em um texto de ficção. Acha
o perfil e a crítica literária. que com Ribamar você encontrou defini-
Radicado desde 1994 em Curiti- tivamente sua voz?
ba, José Castello já trabalhou nos princi- Creio que sim, que encontrei, com uma
pais meios de comunicação do país. Além clareza que desconhecia, o que desejo fa-
de sua coluna semanal no caderno Prosa zer. Gosto muito de trabalhar nas frontei-
& Verso, do jornal O Globo, é colaborador ras, de escrever à beira do abismo. Os gêne-
de diversos meios de comunicação, como ros literários dogmáticos, com suas regras,
o jornal Valor Econômico e a revista Bravo!. suas proibições, seus modelos, me incomo-
Na entrevista que segue, Castello fala de dam e desagradam. Creio que tiveram sua
jornalismo, leitura e crítica literária. Tam- importância, mas hoje eles engessam os es-
bém revela que terá um 2012 agitado, com critores. Tiveram seu sentido até o século
diversos projetos: um ensaio sobre o nasci- XIX, mas o século XX os exterminou. No
mento de escritores, a sair pela Companhia século XXI, temos que procurar outros ca-
das Letras; uma série de “retratos” de escri- minhos. Escrever, mais do que nunca, se
tores que fará para o jornal Valor Econômi- torna uma invenção. A cada livro, o escri-
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 13


tor precisa reinventar a literatura. Agora é relato dessa travessia, dessa aventura e des-
assim, e isso é muito bom para a literatu- livros se encontro. É o que faço em minha colu- A literatura é uma
ra, porque lhe dá energia, a empurra para na e é o que chamam de crítica literária. Se travessia, que você, ou faz
frente, lhe dá vida. é mesmo crítica literária, é muito diferen-
Inventário te da praticada nas universidades, e tam- de corpo inteiro, ou não faz.”
Fantasma, seu primeiro romance, apesar das sombras bém na imprensa. Mas é a que sei fazer, é
de trazer a marca indelével de seu texto, é a que gosto de fazer. Quanto às entrevistas
bastante diferente de Ribamar no que re- com os escritores, devo retomá-las a partir
fere à forma. Qual a diferença do roman- de fevereiro para o suplemento EU&, do
cista de Fantasma para o de Ribamar? jornal Valor Econômico, de que sou colabo- crítica literária, mas sim resenha. Nesse
Como já disse, acredito que, a cada novo rador. Escreverei não bem entrevistas, mas tipo de comentário fica explícito o tom
livro, o escritor deve se reinventar. O José Fantasma retratos. Não tanto retratos clássicos, que pejorativo. Os textos sobre literatura nos
que escreveu Fantasma não é o mesmo pretendem esgotar a figura do entrevistado, jornais de 30 ou 20 anos atrás eram me-
José que escreveu Ribamar. Então, como mas instantâneos — retrato de um escritor lhores do que os de hoje?
seria possível conservar a mesma ideia de no presente. É esse o título que sugeri, aliás, Respondo com uma frase que é o lema do
ficção? A ficção, para mim, se torna cada para a série: “Instantâneos”. Salgueiro, a escola de samba do Rio: nem
vez mais ampla. Penso, mesmo, que ela é melhor, nem pior, apenas diferente. Cada
uma espécie de cola do mundo — é ela Na crítica literária, ou resenha, o objeti- tempo produz seus estilos, suas estratégias,
que nos mantém vivos e inteiros. É ela vo é sempre falar de um livro ou escritor, suas obsessões. Não gosto muito de com-
que preenche nossos buracos, nossos va- A literatura nunca sobre si mesmo. Mas não acha que parar as coisas, prefiro apreciar suas singu-
zios, nossa ignorância e fraquezas. É ela na poltrona esse tipo de texto pode revelar mais sobre laridades. E essa é minha posição quando
que dá sentido a nossas vidas. E não falo o resenhista do que sobre o resenhado? escrevo sobre literatura. Sobre literatura?
só da ficção praticada nos romances, ou Acha que o leitor procura, também, essa Sempre que escrevo sobre literatura, como
nos contos. Creio que toda a realida- revelação nesse tipo de texto? já disse, escrevo um pouco, também, e mes-
de está impregnada de ficção. Que nossa É claro que a crítica sempre revela muito a mo que não queira isso, sobre mim. Um es-
vida cotidiana é, em grande parte, ficção. Ribamar respeito de seu autor. Não penso só em da- critor não se separa de seus textos. O mais
Inventamos projetos, princípios, ideais, la- dos biográficos, em eventos de vida pesso- “científico” dos textos guarda, sempre, uma
ços afetivos, maneiras de ser, estilos, tudo al, mas em maneiras de observar o mundo, visada, vestígios, um estilo pessoal. No Se-
isso para viver. Viver não é fácil. Mas, sem em um estilo pessoal, que revela — desnu- minário Internacional de Crítica Literária,
a ficção, se torna impossível. da — suas escolhas. Se o crítico opta por do Itau Cultural, realizado este mês [de-
uma linha teórica, e não outra, eis aí, des- zembro de 2011] em São Paulo, afirmei
Inventário das sombras e A literatura na de já, uma escolha, eis aí, desde já, algo em que a crítica literária é, ela também, um gê-
poltrona são dois livros bastante queri- que ele fala de si. A maneira de escrever, nero de ficção. Afirmei e reafirmo — ape-
dos pelos leitores. Em ambos você mis- idade, e parta dele para pensar como nas- as ficções e poemas que escolhe para estu- sar do incômodo que minha declaração
tura jornalismo com critica literária, ce um escritor. Você vê: a base do ensaio já dar, as referências teóricas, tudo isso acaba provocou entre alguns professores presen-
ensaio e crônica. Você pretende voltar a é uma experiência pessoal. De novo, repe- desnudando um crítico — ainda que ele se tes. Há muito de invenção na crítica. Há
esse tipo de texto em livro? Aliás, sente tindo o que fiz em Ribamar, pratico uma julgue protegido (como a maioria se julga) muito de pessoal. Existem escolhas, des-
falta de entrevistar escritores, como fa- “escrita íntima” — mas que resulta em um pela armadura acadêmica. Quando leio cartes, repulsas, paixões, obsessões — tudo
zia quando era repórter? livro completamente diferente. É isso, ali- Kafka e escrevo sobre Kafka, estou escre- isso entra em cena na mais “fria” das críticas.
Sim, no momento estou trabalhando em ás, o que faço em minhas colunas no Prosa vendo não tanto sobre Kafka, mas sobre a Você pode não ver diretamente, na primei-
um ensaio sobre o nascimento dos escri- & Verso, de O Globo — que costumam cha- minha maneira de ler Kafka, de observá- ra olhada, mas essas coisas estão lá, e são de-
tores, já contratado pela Companhia das mar de crítica literária. Não sei se faço crí- -lo, de interpretá-lo, sobre o modo como cisivas. O próprio Eu, não devemos esque-
Letras. Não é um ensaio clássico: escrevo- tica literária. Atravesso um livro como um suas ficções batem em mim, me abalam, cer disso, é uma forma de ficção! Quando
-o na primeira pessoa, ele me traz muitas aventureiro que atravessa um deserto. No me perturbam, sobre as perguntas e dúvi- digo que sou isso e sou aquilo, mas não sou
lembranças pessoais, é, digamos, um en- meio do caminho, o cara esbarra em um das que elas me oferecem. tal ou qual coisa, estou “inventando” meu
saio muito íntimo. Embora trate da lite- tesouro — não “O” tesouro, com maiúscu- próprio retrato, estou falando de minhas
ratura — mais especificamente, de Robin- la, mas seu tesouro pessoal, aquele que es- Seus textos críticos trazem um tom bas- ilusões, falando da imagem parcial (e in-
son Crusoe, de Daniel Defoe, o primeiro tava ali para que ele (e mais ninguém) o en- tante pessoal. As pessoas costumam di- terior) que tenho de mim. Portanto: estou
romance que li na vida, aos 11 anos de contrasse. Então o que escrevo? Escrevo o zer que, hoje, no Brasil, não se faz mais trabalhando com ficção também.
14 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

entrevista | josé castello


Matheus Dias/Rascunho
A Cosac Naify acaba de lançar a primeira eles as perguntas, intermináveis perguntas, fazer perguntas que não têm respostas,
edição de Guerra e Paz, do escritor Leon que tanto a atormentavam. Clarice é uma para enfrentar personagens enigmáticos
Tolstói, com tradução direto do russo. O escritora “verdadeira”, não porque diga A e situações desestabilizadoras. Sinto uma
livro tem mais de duas mil páginas. Quem Verdade (com maiúsculas), mas porque es- grande força nos estudantes. Mas é bom
é o leitor desse tipo de livro hoje, uma épo- creveu para dizer, de forma direta e até es- deixar claro: não sou um inimigo da uni-
ca marcada pela fragmentação, onde as candalosa, a sua verdade singular. O leitor versidade! Ao contrário: sempre digo que,
pessoas parecem não ter tempo para nada? não é bobo: ele sabe, perfeitamente, quan- em 500 anos de história, a instituição mais
Concordo que não são muitos os leitores do um escritor está fazendo gênero, co- importante criada no Brasil é a Universi-
que, hoje, têm forças, tempo, interesse in- piando os clássicos, ou dando lição de mo- dade de São Paulo. Agora, é preciso ter a
telectual, disponibilidade para enfrentar li- ral. O leitor, o bom leitor, é aquele que faz coragem de encarar os fatos: as faculdades
vros como Guerra e Paz, Dom Quixote ou uma conexão íntima com o livro. A crítica de jornalismo não estão conseguindo pre-
a Divina Comédia. Ou, exemplo talvez ex- canadense Claire Varin fala na “leitura te- parar os jornalistas. Os bons jornalistas que
tremo, Em busca do tempo perdido, o sete to- lepática”. Afirma que só através dela é pos- temos, e são muitos, se formam sozinhos,
mos de Proust. Livros imensos, que exigem sível ler uma escritora como Clarice. O que por si mesmos, na prática diária das reda-
muito tempo e concentração, que exigem, é a “leitura telepática”? É aquela em que o ções, na mais absoluta solidão. É preocu-
de fato, uma grande paixão pela leitura. Vi- leitor, em vez de se identificar com perso- pante, muito preocupante, e as faculdades
vemos em tempos fragmentados, em que nagens, ou de ler “para aprender”, etc., con- de jornalismo deviam ter a coragem de se
se valoriza a rapidez, a superficialidade, a segue se colocar no lugar do escritor. Como questionar, de se interrogar a respeito de
objetividade, o pragmatismo (a tal relação diz Claire: quando consegue isso, o leitor, de seu papel social, de se transformar.
custo-benefício). Para que “serve” ler Guer- certo modo, é, ele também, “autor” do livro
ra e Paz — um leitor contemporâneo pode que lê. E isso é verdade sempre: um livro é Depois de Ribamar, virão novos roman-
se perguntar. Talvez seja melhor assistir sempre um livro diferente na mente de cada ces? Tem algo engatilhado?
a um filme inspirado no livro, ou mesmo leitor. É na mente do leitor singular, de cada Sim, há quase dez anos rascunho em cader-
ler uma versão em quadrinhos, ou um re- leitor diferente, que um livro existe. nos um terceiro romance. Ele tem o título
sumo na internet... Eis um perigoso enga- provisório de Ninguém. Mas os romances
no! Acredito imensamente na potência da Você ministra cursos de jornalismo cultu- não surgem quando queremos. Eu come-
literatura no século em que vivemos. Num ral há algum tempo. Qual a sua percepção cei a rascunhá-lo antes do Ribamar e, no
momento em que tudo nos leva para fora, e dos estudantes de jornalismo hoje? Em entanto, Ribamar se impôs e me veio pri-
para a rapidez, e para as imagens e gráficos, geral, são pessoas com boa formação, pre- meiro. Não mandamos na escrita de fic-
tudo se torna veloz e superficial, a literatura paradas para escrever sobre cultura? ção. Creio que na escrita em geral. Gosto
se torna um reduto preciso de introspecção, Infelizmente, não. Claro, temos sempre as muito da célebre frase de Clarice Lispector,
de silêncio, de diálogo interior, de lentidão. exceções. Mas a impressão que tenho é a que sempre repito: “Não sou eu que escre-
São coisas que se tornam cada vez mais ra- de que a universidade não está conseguin- vo, são meus livros que me escrevem”. Vejo
ras e, por isso mesmo, mais preciosas. Bas- do dar conta do preparo das novas gerações os escritores como “cavalos” em que as fic-
ta ler Guerra e paz e o leitor entenderá isso. de jornalismo. Talvez por dogmatismo, por ções se incorporam. É preciso estar atento,

O poeta espanhol Juan Ramón Jiménez “ O mais ‘científico’ dos textos


guarda, sempre, uma visada,
apego a um estilo de ensino burocrático,
por distanciamento excessivo da realida-
é preciso saber ouvir, saber o momento em
que uma ficção pede para nascer. São expe-
disse certa vez que a literatura é a arte de de, não sei dizer. Mas o fato é que isso está riências muito íntimas, e um tanto inexpli-
uma “imensa minoria”. É uma missão acontecendo. E o problema não está nos cáveis. No entanto, nada têm de sobrenatu-
bastante difícil fazer com que um ato tão
vestígios, um estilo pessoal.” estudantes. No laboratório de jornalismo rais, são absolutamente humanas. Não, não
transformador, mas bastante pessoal, se que ministro no projeto “Rumos Jornalis- acredito em Musas, nem em Espíritos, ou
torne um sentimento coletivo? ou planejado um “estilo popular”, sido uma mo Cultural”, do Itau Cultural, por exem- em Anjos... Tudo isso vem de nós mesmos.
Essas coisas não se planejam, nem se con- escritora “que sabia o que fazia”. Ao con- plo — projeto que farei, em 2012, pela ter- E por isso escrever ficção é tão difícil, e por
trolam. A não ser que pensemos nos fabri- trário! Clarice escrevia em plena cegueira e ceira vez —, os estudantes chegam cheios isso também é uma espécie fascinante de
cantes de best-sellers... Veja o caso de Cla- falava diretamente ao coração de seus lei- de vontade de aprender, cheios de coragem aventura. A ficção não é um ofício — como
rice Lispector, que hoje — 35 anos depois tores. Sua ficção é absolutamente “íntima”: para se lançar na experiência direta do real. a carpintaria — mas uma experiência. Não
de sua morte — vive um verdadeiro “boom”. ela dialoga todo tempo com o leitor. Não Sim, o jornalismo, mesmo o cultural, exige é algo que você possa fazer “distanciada-
Por que se lê cada vez mais Clarice? Não para lhe dar lições de vida, ou para trans- coragem. Exige disposição para se defron- mente”. A literatura é uma travessia, que
porque ela tenha seguido fórmulas eficazes, mitir ensinamentos, mas para dividir com tar com o desconhecido e o estranho, para você, ou faz de corpo inteiro, ou não faz. g
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 15

conto

Todos os anjos
C
omo são as coisas, ele já pensara e estava de novo pensando ali, enquan-
to, sentado num banco da praça, esperava pelo filho: ele, que, ao longo
— Qualquer uma.
O menino disse que sim, com a cabeça.
Luiz Vilela
de toda a sua juventude, à custa de muita reflexão, muita leitura e às ve- — Qual é a que vocês cantam?
zes com muita dor, conseguira escapar do “pestilento pântano da reli- O menino não respondeu.
gião”, como dizia, ele era agora, pelas contingências da vida em família, obri- — Qual é a música que vocês cantam? Luiz Vilela nasceu em 1942.
gado a levar toda sexta-feira, à tarde, hora em que a mulher ainda não voltara — Ah, Pai, não sei. É um dos maiores contistas da
literatura brasileira, autor, entre
do serviço, o filho para, veja só, a aula de catecismo. — Você não disse que vocês cantam?
outros, dos livros de contos
— É... — disse para si mesmo, resignado, e logo viu o menino, que, — Eles — explicou —, eles cantam. Tremor de terra (1967), A cabeça
saindo da igreja com outros, entrara na praça e vinha, sozinho, andando deva- — Eles quem? (2002). Seu mais recente livro é
o romance Perdição (2011)
gar, em sua direção. — Os meninos.
Vive em Ituiutaba (MG).
Levantou-se e deu-lhe a mão: — E você não?...
— Vamos? — Não.
Os dois foram. — Por quê?
Ao passarem sob as árvores, antigas e altas, o menino se curvou quase — Ih, Pai, você quer saber de tudo, hem?
todo para trás, perscrutando os galhos. — Quero.
— Assim você vai acabar caindo... — Eu não canto porque eu acho
O menino se endireitou, e continuaram a andar. a música feia; é por isso.
— O que você estava procurando? — Mas os outros meninos cantam...
— Eu não estava procurando. Sacudiu a cabeça.
Deixaram a praça, atravessaram a rua e foram seguindo em dire- — E como você faz?
ção a casa. — Como que eu faço o quê?
— Mas e aí, my son? Quais foram as últimas do mistifório? — Você não canta: o Irmão não se importa?
— Quê? — Ele não sabe.
— O que você aprendeu lá hoje, na aula de religião? — Não sabe?
— O que eu aprendi eu não sei: eu sei o que a freira ensinou. — Eu finjo, Pai.
— Boa resposta... — Finge? Como?
— Eu sei isso. — Ê, mas você está chato hoje...
— E o que a freira ensinou? — Eu só quero saber isso: como você finge?
— Ah — o menino respondeu, com um gesto de enfado —, ela falou — Com a boca.
lá sobre anjo... — Com a boca?... Agora é que eu não entendi mesmo...
— Anjo? O menino parou:
Ele então cantou: — É assim, ó; eu vou te mostrar. Olha pra mim...
— “Os anjos, todos os anjos, os anjos, todos os anjos, louvem a Deus O menino executou, então, uma mímica, mexendo a boca, fran-
para sempre, amém.” zindo a testa e movimentando a cabeça...
— Onde você aprendeu essa música? — o menino quis saber. — Viu?
— Quando eu era menino, a gente a cantava na igreja. Vocês não can- — E você faz assim, lá na missa...
tam? Sacudiu a cabeça.
— Essa música? — E o Irmão não percebe...
— Ele é meio bobo, pai. E, também, eu treinei, né? Eu treinei
16 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto

Ilustração: José Aguiar muitas vezes, no espelho lá de casa.


— Hum...
— Você quer ver?
O menino tornou a parar.
— Eu vou cantar uma música pra
você. Presta atenção, hem?
Mexeu de novo, por alguns minu-
tos, em silêncio, com a boca, os olhos, a
cabeça, o corpo todo. Então parou.
— Viu?
— Vi.
— Que música é a que eu cantei?
— Ah, agora você me apertou...
— Ô, pai...
— Agora...
— Você conhece ela...
— Conheço?
— Eu vi um dia você assobiando...
— Hum...
— Faz assim: eu vou cantar de
novo.
— Não — ele o brecou. — Outra
hora você canta. Lá em casa. Senão eles
vão achar que nós somos dois doidinhos
aqui...
Pegou-lhe a mão e atravessou rá-
pido a rua, na frente de um carro que vi-
nha com velocidade.
Andaram um pedaço em silêncio.
— Mas então? — ele disse. —
Voltando aos anjos: o que a freira lá falou
sobre eles?
— Foi sobre o anjo da guarda.
— Anjo da guarda? Isso ainda
existe?
— Você não tem anjo da guarda,
Pai?
— Eu não.
— A freira disse que todo o mun-
do tem.
— Eu tinha, sabe; mas o meu anjo
da guarda andava muito chato, aí eu meti
o pé na bunda dele e ele foi louvar a Deus
para sempre, amém.
O menino riu.
Andaram mais um pouco.
— Eu queria perguntar uma por-
ção de coisas... — o menino disse, então,
num tom de descontentamento.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 17

— Perguntar a quem, meu filho? delas: o minhoquês. hora o anjo está na frente de quem pediu.
— À freira, pai. — Minhoquês? — É assim? — o menino perguntou, admi-
— E por que você não perguntou? — É. rado.
— Por quê? Porque uma vez eu perguntei, e — Como que é o minhoquês? — É.
aí sabe o que ela disse? — Ê... Já estou quase dando razão à freira... — Legal, hem, Pai?
— O quê? — Hem, Pai, como que é o minhoquês? — É super-rápido.
— Ela disse: “Aqui quem faz perguntas sou — Meu filho, o minhoquês é só as minho- — Ela sabe disso?
eu; vocês só respondem.” Ela falou desse jeito. cas que sabiam; ninguém mais. — Ela quem?
— Que maravilha. Nem um delegado de — Elas também tinham escola? — A freira.
polícia se sairia melhor. — Quem sabe? — Duvido.
— “Aqui quem faz perguntas sou eu.” Aí eu — E aula de catecismo? — Eu posso contar pra ela?
não perguntei mais, né? Eu ia perguntar? — Ah, isso é certeza. Aula de catecismo é — É melhor não contar.
— O que você queria perguntar a ela? certeza. — Então você conta.
— Ah, uma porção de coisas... — E freira? — Eu? De freiras e padres eu quero distân-
— Por exemplo? — Oh, não; tenhamos piedade das mi- cia, meu filho.
— Por exemplo: asa de anjo é feita de pena nhocas... — Então eu vou contar...
igual a asa de passarinho? — E anjo? Elas tinham anjo? — Se você contar, sabe o que ela pode fazer
— Hum. — Tinham. Anjo era uma minhoca com com você?
— Essa é uma coisa que eu queria per- asas. Mais tarde ela se transformou na cobra-voa- — O quê?... — O menino perguntou, curio-
guntar. dora. Você não ouviu falar em cobra-voadora? so, olhando para ele.
— Sei. — Não... — Te jogar num caldeirão de água fervente.
— Outra coisa: anjo voa feito passarinho? — Pois é, cobra-voadora... — Ah, mas aí, né, aí eu pego o celular e: “Alô,
— Ah, então era isso... Agora eu entendi... O menino ficou pensativo. eu quero um anjo-da-guarda!”
— Entendeu o quê, Pai? — Bom, mas... Você queria saber se anjo Ele riu.
— Acho que eu vou tirar o meu estilin- voa, não é isso? — Aí o anjo vem, me tira do caldeirão, e eu
gue da gaveta... — É. tibum!, jogo a freira lá dentro.
— Estilingue? — É como eu disse: voava. Antigamente — É isso o que ela está mesmo merecendo...
Viraram na esquina. eles voavam. Mas hoje é tudo por controle-remoto. — Jogo a freira lá dentro; e aí eu quero ver...
— Bem: quer dizer que você queria saber — Controle-remoto? Chegaram em casa.
se anjo voa... — O anjo é teleguiado, entende? É assim: o — Sua mãe já está aí...
— É. sujeito telefona lá para o depósito de anjo. Ele abriu a porta, mas antes de entrarem, o
— Voava. Antigamente eles voavam. No — Depósito de anjo? Tem isso, Pai? menino pediu que ele se abaixasse, e disse, baixinho,
tempo em que os animais falavam. — Tem. em seu ouvido:
— Os animais, Pai? Os animais falavam? — É feito depósito de gás? — Pai, não conta pra Mamãe, não, hem? Eu
— Falavam. — É; feito depósito de gás. Lá, no depósito vou dizer uma coisa, mas é só pra você...
— Feito gente? de anjo, lá tem anjo de tudo quanto é tipo. O sujei- — Diga.
— É. to então telefona pedindo um anjo assim ou assado. — Sabe o que eu acho?
— Quem te contou? — Assado? — Hum...
— Eu fiquei sabendo. — É um jeito de dizer; você nunca me ou- — Eu acho que anjo existe, mas é só de
— Gato, cachorro, tudo falava? viu dizendo isso? mentirinha...
— Falava. — Eu achei que você estava dizendo que o — Grande, garoto, grande! — ele disse,
— E passarinho? anjo é assado... passando a mão na cabeça do menino. — Você
— Passarinho não; passarinho só cantava. — Não; anjo assado é só no restaurante. vai longe...
— Por quê? Uma vez eu comi um, mas não achei bom, não: tem Tomara que fosse mesmo, e então descobri-
— Sei lá. É porque era assim. gosto de pena. ria, com o tempo, que não era só anjo que existia de
— E minhoca? — Eco... — o menino disse, fazendo uma mentirinha: eram muitas outras coisas também, a
— Minhoca?... careta de nojo. começar do Papai do Céu.
— Minhoca também falava? — Mas aí, aí o sujeito telefona lá para o de- Papai do Céu, ele pensou, fechando a porta:
— Falava, mas minhoca só falava na língua pósito, e eles pst! apertam uma tecla, e na mesma que coisa mais idiota... g
18 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | literatura policial

Existe uma Ilustrações: Rafael Sica

literatura
policial
brasileira?
Autor de romances policiais e organizador da
antologia Crime feito em casa — contos policiais
brasileiros, Flávio Moreira da Costa traça um
panorama do gênero no país, desde os
precursores até os autores contemporâneos
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 19

Flávio Moreira da Costa numa idílica Lagoa Rodrigues de Freitas, rebral, ajudado pelo médico e amigo dr. ro: deram-lhe o título de Mystério, com
Lima se antecede a uma tendência qua- Watson. Pois, acometido por essa febre, o devido ipsilone da época. Não esco-

P
ara falar da literatura policial brasi- se majoritária de literatura (e do cinema) Medeiros e Albuquerque, que vivera na lheram um dentre eles para dar o acaba-
leira de hoje, preciso falar antes da policial até hoje: a de desenvolver o enre- desvairada Paris da Belle Époque, quando mento final ao texto. Curiosamente, cada
literatura policial brasileira de on- do em cima de um faits divers escondido se deixou contaminar pelos livros de Co- um assinava o capítulo escrito, e assim a
tem. Afinal, acredito que o futuro entre as páginas dos jornais. Dificilmente, nan Doyle, escreveu a primeira coletâ- insustentável leveza do Mystério ficou
da literatura policial, como aliás, de qual- no começo do século XX, algum beletrista nea de contos policiais da nossa literatu- insustentável demais na estrutura roma-
quer literatura, está no seu passado. pensaria sequer em se utilizar de uma no- ra. Adivinhem o título... Se eu fosse Sherlock nesca e não se sustentou no ar. Mesmo
O policial brasileiro existiu ou exis- tícia policial para escrever suas histórias. Holmes. A verdade, e ele já o diz no título, é assim, Mystério teve três edições em for-
te? Vamos supor que sim. Incipiente ain- Para não nos alongarmos, o conto de João que Medeiros não era Conan Doyle, mas ma de livro, com uma venda surpreen-
da, e muito em forma de contos, gênero do Rio situa-se na fronteira com o conto seus contos ainda subsistem, como fenô- dente para a época — e mesmo para hoje
em que predominou durante décadas, se de horror, à moda dos escritores decaden- meno da época, e bem mereceriam uma — de dez mil exemplares.
não até hoje, como registra minha anto- tistas da Belle Époque francesa, como um reedição. Essa posição de livro único de (Esta experiência de autoria cole-
logia Crime feito em casa — contos policiais Jean Lorrain. Já a história de Olavo Bi- contos policiais, manteve-se até o surgi- tiva seria retomada anos depois, com Os
brasileiros (2005). À época consegui rastre- lac, é um conto criminal — narrativa que mento de Luiz Lopes Coelho, outro pio- mistérios de M.M., com outros “compar-
ar cerca de 35 contos, dentro de uma pers- sempre antecedeu a literatura policial —, neiro, quase três décadas depois, autor de sas”, aliciados desta vez por João Condé:
pectiva histórica. Vamos alinhar aqui al- lidando com problemas de culpa e cons- A morte no envelope, O homem que matava Lúcio Cardoso, Raquel de Queiróz, Jor-
guns deles, dentro desta perspectiva. ciência, como acontece (e sem compara- quadros e A ideia de matar Belina. A erudi- ge Amado, José Conde, Antonio Calla-
Na primeira parte — o início do ções, que seriam desproporcionais) em ção de Otto Maria Carpeaux não o im- do e... Guimarães Rosa, que aliás, co-
início —, que chamei de “(bons) antece- Crime e Castigo, de Dostoiévski. pediu de saudá-lo como bom contista do meçou publicando contos policiais na
dentes”, selecionei quatro contos, respecti- E assim chegamos à década de gênero. Lopes Coelho criou um detetive à revista O Cruzeiro).
vamente, “O enfermeiro”, de Machado de 1920, do século passado. brasileira, o Dr. Leite. O que se sustenta no ar da litera-
Assis, “A mágoa que rala”, de Lima Bar- E um nome se impõe aqui como Mas Medeiros e Albuquerque, no tura policial brasileira, ainda iniciante, é
reto, “A aventura de Rosendo Moura”, de pioneiro indiscutível: Medeiros e Albu- seu entusiasmo, aliciou e arregimentou a obra do paulista Marcos Rey. Escritor
João do Rio, e “O crime”, de Olavo Bi- querque, um antigo membro da Acade- cúmplices à sua volta para juntos, numa profissional numa época em que viver de
lac. Nenhum deles é o que se poderia cha- mia Brasileira de Letras, hoje esquecido. espécie de “quadrilha de escribas”, publi- literatura no Brasil era coisa de dois ou três
mar hoje — e ontem mesmo nem assim Um modelo internacional já se impunha carem um folhetim policial na imprensa autores, Rey nunca se envergonhou de es-
se chamavam — de contos policiais: são na mal iniciada literatura policial. Ali- carioca. Compunham essa “quadrilha do crever literatura popular, pelo contrário,
precursores. Tem, cada um deles, um tra- ás, dois: Conan Doyle e Sherlock Hol- bem” seus colegas de Academia Brasileira
ço, uma tendência, uma “levada”, como di- mes, criador e criatura, que levaram o gê- de Letras Coelho Neto, Afrânio Peixo-
riam os músicos, do que viria a se desen- nero de detetive à categoria de literatura to e Viriato Correia que, juntamente com
volver no gênero policial. de massa, ou às listas de best-sellers — se o mentor intelectual do delito, Medeiros
A presença mais contestada, por existissem listas à época. Era uma febre a e Albuquerque, perpetuaram o que se-
uma crítica, pelo menos, foi a de “O enfer- leitura deste detetive cocainômano e ce- ria o primeiro romance policial brasilei-
meiro”. Que Machado de Assis tenha sido
um leitor pioneiro de Edgar Allan Poe, é
coisa sabida de todos. Escrevi na pequena
introdução ao conto que ele “sempre sur-
preendente, nos revela aqui uma persona-
gem — o enfermeiro —, uma situação e
um clima que parecem saídos, ao mesmo
tempo, de um relato de Poe misturado a
um filme classe B, em direção conjunta
de Roger Corman e [Alfred] Hitchcock.
O conto tem um andamento e um clima
bastante noir — aliás, bem avant la let-
tre.” Já o conto de Lima Barreto, “A mágoa
que rala”, não permite contestação: escri-
to a partir de um crime comum ocorrido
20 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | literatura policial

Adão Flores adquiriu outra profissão, pa- cronológicas que talvez justifiquem a au- do profissionalismo, em contraste com o
ralela à de empresário da noite, a de dete- tocitação, meu livro Cosa Nostra – Eu vi eterno amadorismo da nossa literatura,
tive particular, mas sem placa na porta, ati- a Máfia de perto, depois reeditado como no que foi ajudado pelas versões cinema-
vidade restrita apenas a cenários noturnos A perseguição, saiu em 1973, classificado tográficas desses livros. Títulos, por sua
e pessoas conhecidas.” O detalhe de “sem como “reportagem de ficção”, foi o pri- vez, que unem jornalismo à ideia de re-
placa na porta” parece anunciar Ed Mort, meiro de uma longa lista. Só depois, com tratos da sociedade dos velhos romances
o personagem satírico de Luís Fernando livros de José Louzeiro, Aguinaldo Silva realistas ou naturalistas, com vigor narra-
fazia-o com gosto, habilidade e um bom Verissimo. Ocorre que Marcos Rey levou e outros, nossa imprensa começou a falar tivo e ficção policial. Havia, como houve,
domínio técnico. Mesmo embutindo as o gênero a milhares de jovens; ele foi um em “romances-reportagens”. leitores para eles.
marcas da geração norte-americana dos best-seller com suas duas dezenas de livros Foi uma espécie de mini ciclo, que Na mesma época, os anos 1960,
anos 1930 — Hammett, Chandler, mas juvenis, de grande potencial de adoção es- teve repercussão, inclusive de vendas. E surgia um contista que “mostrou-se inte-
também Goodis e Horace McCoy —, o colar, com tiragens em escala de milhões. pelo menos dois ou três pontos dignos riormente livre para erguer um modo de
escritor paulista abrasileirou a narrativa de Creio que já deu para perceber que de se destacar vamos encontrar em li- ver e ser, de criar um estilo inconfundí-
mistério — não parecia, como outros, ser não é unitária ou contínua — nem poderia vros como Araceli, meu amor, Lúcio Flá- vel”, nas palavras do crítico gaúcho — e
um americano escrevendo em português. sê-lo — a evolução da literatura policial vio — passageiro da agonia e Pixote, todos meu professor de literatura na adolescên-
Vejam como ele apresenta seu detetive brasileira, razão pela qual precisamos pu- de José Louzeiro, para ficarmos no autor cia — Carlos Jorge Appel. O crítico fala-
no conto “O último cuba-libre”: “Duran- lar de tendência a tendência, seguir esta ou de maior destaque dessa contraparte do va de Rubem Fonseca, que escreveu uma
te o dia Adão Flores era um gordo como aquela pista, a fim de desenhar um pouco romance policial, além da passagem do série de livros magistrais, como Os prisio-
qualquer outro. Sua atividade e seu char- o mosaico que a constitui. conto para o romance como meio de ex- neiros (1963), A coleira do cão (1965), Lúcia
me começavam depois das 22 horas e às Assim, nos anos 60/70 surgiu en- pressão. Em primeiro lugar, a opção por McCartney (1967), Feliz ano novo (1975),
vezes até mais tarde. Então era visto le- tre nós uma espécie de ciclo do roman- assuntos brasileiros e da atualidade (o O cobrador (1979) e os romances A grande
vando seus 120 quilos às boates, a bistrôs ce-reportagem, que muitas vezes se con- faits divers alimentando a ficção), em ple- arte (1983) e Bufo & Spallanzani (1986).
e inferninhos da cidade (...) Com o tempo fundem com o gênero policial. Por razões na ditadura brasileira; depois, o exercício Rubem Fonseca chegou para con-

estante do crime

Bellini e o Killshot As esganadas Informações


demônio Tiro certo sobre a vítima
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 21

a literatura popular, derrubando o muro


de Berlim que separa, ou separava, boas
intenções de boas realizações, “literatu-
ra” de “subliteratura” — e coloco aqui as-
pas nas duas palavras. É certo que esse
muro já havia caído lá fora, desde Sime-
non (louvado por André Gide), passan-
do pelos americanos do ramo, e até de
William Faulkner, com seu romance In-
truder in the dust, no qual mistura o assas-
sinato de um branco por num camponês
negro, heranças da Guerra de Seces-
são, com técnicas sofisticadas de stream
of consciensness. Além de Allan Robbe-
-Grillet, que recria em seu romance de
estreia A gun for fire, de Graham Gre-
ene. Mas o que importa aqui é o nos-
so contexto, e se Fonseca nos confunde,
é porque ele nos sacode, balança nossas
idées reçus, nossas certezas e preconceitos.
Difícil dizer, depois dele, que não exis-
te uma literatura policial brasileira, mui-
to menos que ela se restrinja ao conceito
difuso e velado de “subliteratura”.
É boa literatura policial que vem
Edgar Allan Poe Dashiell Hammett fazendo uma ou mais gerações depois
de Rubem Fonseca. Alguns nomes para
fundir. Confundir as insustentáveis fron- bem Fonseca seja um autor policial ou Chandler/Philip Marlowe, criador e cria- prestarmos atenção: Alfredo Garcia-Ro-
teiras de literaturas menores e literaturas um grande escritor: ele é as duas coisas. tura. O próprio narrador deixa isso cla- za, com seu detetive Epinosa, morador do
maiores, de gêneros e subgêneros, confun- A sombra do noir e do hard-boiled está ro ao se referir, no final, a dois títulos de Bairro Peixoto — como Maigret, de Si-
dir o comodismo teórico e classificatório presente em vários contos do autor, mas Chandler: O longo adeus e O grande sono. menon, na Avenue Richard-Lenoir e ar-
das nossas universidades ou academias, é a conhecida narrativa chamada “Man- Mas é nos romances, em parti- redores da Bastilha —, já fazendo carreira
confundir a separação entre literatura de drake” que se impõe quase que como um cular em A grande arte e Bufo & Spallan- internacional; Marçal Aquino, que pro-
massa e literatura de elite, o bom-mocis- paradigma do gênero, ou dos rumos que zani, que Rubem Fonseca traça sua move o abrasileiramento do gênero, reto-
mo estético da realidade cruel que nos en- o gênero tomou depois de Hammett e marca divisória na literatura policial bra- mando nesse sentido Marcos Rey; Tony
volve cotidianamente. Confundindo, ele Chandler. “Mandrake”, aliás, é paradigma sileira, unindo e misturando a grande li- Bellotto, mostrando o lado noir do rock,
nos renova: não se pode dizer que Ru- e propositalmente pastiche de Raymond teratura com a “pequena literatura”, com ou o lado rock and roll do romance noir; e

O silêncio Os espiões
Atire no A garota da chuva A dama
pianista de Cassidy do lago
22 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | literatura policial

ainda discípulos de Rubem Fonseca, como


Patrícia Melo. Além dos novos autores
surgindo: Tabajara Ruas, Joaquim No-
gueira, Braz Chediak — o cineasta, estre-
ando em 2011 como Cortina de sangue. E
mais virão, pois o futuro da literatura poli-
cial brasileira está no passado, e no presen-
te da literatura como um todo. Sobretudo,
na tendência mundial/editorial de valori-
zação do gênero.
A literatura de mistério, que co-
meçou quase como sinônimo de literatura
anglo-saxã, já vem fazendo sua globaliza-
ção há pelos menos 50 anos. Não se tra-
ta de nenhuma teoria literária especula-
tiva: é também uma questão de mercado.
Sem um mercado nacional e internacio-
nal, portanto sem uma profissionalização
editorial e autoral, não haveria, nem have-
rá, a literatura de mistério ou policial. E ela
não seria tão rica, nem estaria espalhada zação do imaginário policial. Mas depois
pelo mundo como está hoje. Seria o caso
de lembrar que a maioria dos países têm
de um longo e lento começo, como tentei
mostrar aqui, e que de certa forma resul-
“ Não se pode dizer que Rubem Fonseca
bons, excelentes — e mesmo ruins, por
que não? — autores policiais. Dos países
tou nos livros de Rubem Fonseca, já po-
demos dizer que “yes, nós podemos”. Tal-
seja um autor policial ou um grande
escandinavos, passando pela Espanha, Itá-
lia, Grécia, Japão, Cuba, Rússia e África do
vez o sentido secreto do título de Fonseca,
O cobrador, seja este: precisamos nos co- escritor: ele é as duas coisas.”
Sul, há muitos autores policiais espalhados brar, nós, escritores, editores e leitores. As
pelo globo. Vale lembrar também da nos- duas coleções do gênero que existem en-
sa vizinha Argentina, que chegou antes de tre nós, da Record e da Companhia das
nós ao gênero, graças a leitores, diretores
de coleções e tradutores como Jorge Luis
Letras (duas, em contraste com quase
cinquenta na França, por exemplo), pu- “ Não é unitária ou contínua —
Borges, Bioy Casares e Rodolfo Walsh,
ainda nas décadas de 40/50.
blicam majoritariamente romances tra-
duzidos. Em 2000, meu livro Modelo para
nem poderia sê-lo — a evolução
Não seria justo dizer que nós es-
tamos no mesmo patamar desta globali-
morrer foi uma espécie de corpo estranho
na Coleção Negra, da Record, entre deze- da literatura policial brasileira.”

estante
do crime

Os seminaristas O falcão Os corvos de Dívida Ação ilegal


maltês Hollywood de sangue
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 23

Agatha Christie James Ellroy Tony Bellotto

Flávio Moreira da Costa é escritor, autor


nas de títulos estrangeiros. de As armas e os barões e O equilibrista do
arame farpado (1997). Várias vezes premiado,
Já é um bom começo. Falta o meio
organizou três dezenas de antologias de
e o fim. Falta o enredo. Mais ação. Mais sucesso, como Os cem melhores contos de
talentos? humor, Melhores contos fantásticos e Contos
de amor e desamor. Vive no Rio de Janeiro (RJ).
Faltam mais cadáveres iniciais —
em contraponto à nossa realidade, onde
eles abundam —, mais investigações, mais
detetives e leitores, mais, enfim, literatura,
fora de divisões e de preconceitos. O fi-
lósofo Hegel escreveu que o problema da
História é a história do problema. Proble-
ma ou mistério, tanto faz: o mistério desta
história é a história desses mistérios.

“ Faltam mais cadáveres


Ainda no século XIX, o poeta
Rimbaud anunciava a nossa época: “Voi-
ci le temps des assassins!” Só faltou falar em
Fernandinho Beira-Mar, nas quadrilhas
do Rio e de Brasília, nos tiranos como Ka-
iniciais, mais investigações,
dhafi. Sim, crime e poder, como mostrou
Hans Magnus Ensenberger.
mais detetives e leitores, mais,
Crime e castigo? Nem sempre.
É esta, me parece, a insustentável enfim, literatura, fora de divisões
leveza do mistério. Ou será que não tem
mistério? Nem leveza? g e de preconceitos.”
24 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | literatura policial

Bastidores de
um romance policial
Autor de vários livros de um enredo chinfrim, se tiver um bom

ficção, Flávio Carneiro narrador terá uma boa história. Macha- Romance de enigma
do de Assis sabia disso (afinal, quem faz
relata como foi escrever de Dom Casmurro um romance genial versus romance negro
não é o enredo, bastante simplório, mas
O campeonato, seu o narrador Bentinho). da redação

Então precisava achar um narra- Dois tipos de literatura policial se firmaram entre a crítica e o público a partir do
primeiro romance policial dor para o meu romance e pensei num século XIX: o chamado romance de enigma — cujos principais nomes são Edgar
narrador detetive, com algo diferencia- Allan Poe (o criador do gênero), Agatha Christie e Artuhr Conan Doyle — e o ro-
do. Exagerei no gosto dele pela leitu- mance negro, que tem em Dashiell Hammett, considerado o precursor do subgê-
Flávio Carneiro ra e este ficou sendo um dos seus tra- nero, e Raymond Chandler seus maiores representantes. Edgar Allan Poe, o criador
ços principais. O outro era a juventude. do romance policial, é também o escritor mais expressivo da narrativa de enigma,

T
odo detetive é um leitor. O pri- Não queria um detetive experiente, que se carateriza por sempre ter um personagem da trama como narrador, mas nun-
meiro detetive de que se tem no- queria algo que fugisse um pouco à tra- ca o próprio detetive. A narrativa se dá em um momento pós crime e também pós
tícia na história da ficção policial, dição, sem, no entanto, fugir ao gênero. investigação, assumindo um tom memorialista. Outro traço marcante do romance
Dupin, criado por Edgar Allan Isso é importante: se você opta por ex- de enigma é a forte presença da dedução lógica e da intuição dos detetives — em
Poe em Assassinatos da rua Morgue, de- perimentar demais, transgredir demais, Poe, esse trabalho é quase exclusivamente intelectual. Já Conan Doyle eleva o ofício
cifra o mistério aparentemente indeci- acaba saindo do gênero policial. Eu a métodos científicos, assim como Agatha Christie. Já o romance negro, oriundo
frável lendo as notícias sobre os assassi- queria fazer um romance policial com da tradição norte-americana, teve seu auge na “Serie Noire”, publicada na França a
natos publicadas nos jornais e, também, cara de romance policial. E que trou- partir de 1945. Sua plataforma principal se deu nas chamadas revistas pulp, publica-
claro, lendo os signos não escritos — xesse alguma novidade. Esse foi então o ções baratas, com baixa qualidade de impressão. É onde, a partir de 1925, Dashiell
porque, como todo leitor, um detetive motivo por ter criado um narrador de- Hammett começa a publicar seus contos. Diferentemente do romance de enigma,
não lê apenas palavras. tetive de 26 anos que sabe tudo de as- nos livros “negros” os detetives não são elegantes e finos, a narrativa transcorre, ge-
Quando me veio a ideia de escre- sassinatos, pistas, criminosos, vítimas, ralmente, ao mesmo tempo que a ação — o que propicia possibilidades diferentes
ver um romance policial, a primeira coisa sem nunca, porém, ter investigado um de leitura —, os trabalhos de investigação não terminam necessariamente na reso-
que pensei foi: vou criar um detetive que caso sequer. Aprendeu tudo a partir de lução lógica dos casos e as histórias têm forte conotação social.
goste de ler. Não um leitor comum, ima- sua condição de leitor.
ginei algo mais radical — um leitor vi- Criado o narrador — ou pelo
ciado em leitura. E viciado em leitura de menos seu esboço, porque o narrador só
romances policiais. Assim surgiu o narra- vai sendo criado mesmo quando você Doyle ao criar Watson, e está presente incrível autocontrole de trabalhar numa
dor de O Campeonato, André, e o seu ví- passa a colocar palavras em sua boca, ou no chamado romance de enigma. Mas livraria (o Gordo é vendedor numa li-
cio maldito, que o leva a perder um em- seja, quando ele de fato começa a contar achei que seria interessante o André vraria no centro do Rio) e nunca ler du-
prego atrás do outro, o último deles numa a história —, parti para o segundo pas- ter um assistente e pensei num perso- rante o expediente.
biblioteca (foi pego algumas vezes lendo so: inventar seu assistente. Não é obri- nagem sem nome, que seria designado Quis também fazer uma pequena
escondido num canto qualquer, enquan- gatório que o detetive tenha um assis- por seu apelido: Gordo. inversão no que estamos acostumados a
to os usuários aguardavam atendimento). tente. Na tradição do romance negro, O Gordo também é um leitor ver nos policiais clássicos, em que o de-
Como em todo romance ou con- por exemplo, muitas vezes não existe o apaixonado por romances policiais, em- tetive é mais astuto que seu assistente.
to, policial ou não, achar a voz certa assistente, que é também uma criação bora não chegue a ser obsessivo como Pensei no meu detetive como um leitor
para o narrador é tudo. Você pode ter de Poe, revista e ampliada por Conan o André, que o admira sobretudo pelo que sabe observar e articular signos — é
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 25

isso que define o detetive, sua capacida- para um romance policial (Rubem Fon-
de de saber o que observar e o que fazer seca e Garcia-Roza que o digam). An- Policial no cinema
com aquilo que observou —, e quis que dré mora em Copacabana (outro bairro
da redação
seu assistente fosse um pouco mais frio bom para um romance policial), mas é
na leitura das pistas e tivesse o raciocínio no centro que a maior parte das cenas A indústria cinematográfica sempre teve na literatura
mais rápido. acontece e é onde mora o Gordo. uma fonte inesgotável de boas histórias. Com a lite-
Como o leitor do romance sabe- Por fim, o enredo. Tinha uma ratura policial essa lógica foi ainda mais verdadeira. A
ria dos fatos apenas pelo olhar do André, ideia inicial básica. Precisando de grana estrutura dramática bem definida, com forte apelo vi-
achei que seria uma boa estratégia colo- e sem conseguir parar em nenhum em- sual, fez do gênero policial um grande filão no mercado
car o Gordo como mais astuto. Dessa prego fixo, André resolve fazer um cur- cinematográfico. Desde a primeira metade do século
forma, assim como, em algumas cenas, so de detetive por correspondência (isso XX, os filmes policiais tiveram grande destaque. O ci-
André se surpreende com as sacadas do existe), já que entende tudo do assunto e neasta inglês, naturalizado americano, Alfred Hitchco-
Gordo, o leitor também se surpreende- assim poderia continuar lendo seus ro- ck foi, certamente, um dos grandes nomes do cinema
ria. Este, aliás, é um velho truque, que mances — como se fosse a trabalho. Ele noir — não só do período, como de todos os tempos.
Conan Doyle conhecia bem: o narrador e o Gordo colocam um anúncio no jor- Em 1935, Hitchcock já havia feito 18 filmes, mas foi
é sempre aquele que sabe menos. O lei- nal. Aparece um primeiro cliente, que- com Os 39 Degraus, adaptação do romance homônimo
tor acompanha a história pelo olhar de rendo saber do paradeiro do filho, um de John Buchan, que o cineasta solidificou sua repu-
Watson e fica surpreso, como o narra- adolescente que desapareceu sem deixar tação de mestre do cinema de suspense. O filme se-
dor Watson, a cada dedução brilhante rastros. Não há pedido de resgate, nem gue um ritmo frenético, com uma série ininterrupta de
de Sherlock — se fosse o contrário, se motivos aparentes para o desapareci- sequências de ação e cenas de perseguição pontuadas
soubéssemos o que Sherlock está pen- mento, o garoto simplesmente sumiu. por diálogos espirituosos e um suspense cativante. Ca-
sando a cada página, talvez ele não fosse A partir daí fui montando a tra- racterísticas que marcariam algumas de suas produções
o herói que é, porque teríamos acesso a ma, que é bastante movimentada, en- que se tornariam célebres, como Intriga internacional
suas dúvidas e erros, como temos acesso volvendo o irmão de André (os dois não (1959) e Um corpo que cai (1958). Mesmo os idiossin-
às dúvidas e erros de Watson. se dão nada bem), mulheres sedutoras crásicos cineastas oriundos da Cahiers du Cinéma, a
Fiz então essas pequenas mudan- (romance policial tem que ter mulheres revista francesa que pregava o “cinema de autor”, caí-
ças no formato tradicional do gênero: sedutoras), criminosos, charlatães (um ram na tentação do romance policial e das adaptações.
um detetive viciado em romances poli- escritor de autoajuda que escreveu um François Truffaut, em seu segundo longa, filmou Atire
ciais, jovem, inexperiente, e com um as- best-seller chamado As flores do bem), no pianista, o clássico noir do escritor David Goodis. A
sistente que sabe mais do que ele. Falta- virgens (meninos e meninas), falcatru- abordagem caótica e não linear, antecipou o que, déca-
va agora o cenário e isso não foi difícil as, algumas pistas falsas. E com humor. das depois, nos anos 1990, Quentin Tarantino faria em
porque esse romance é o primeiro de um Há sempre alguma dose de hu- seu já clássico Cães de aluguel (1992). Outros diretores,
projeto que chamei de “Trilogia do Rio mor nos romances policiais. Ferino, irô- também afinados com o “cinema de arte”, fizeram bons
de Janeiro”. A ideia era escrever três ro- nico, escrachado, paródico, o humor vai filmes policiais, como Roman Polanski, que em 1974
mances passados no Rio, cada um dialo- estar lá, um pouco que seja. Quis que filmou Chinatown, e Martin Scorsese, que se notabili-
gando com um gênero popular diferen- meu romance fosse divertido, que tivesse zou por seus filmes de gangster, como os incríveis Ca-
te. Daí nasceu O Campeonato (policial), os ingredientes pesados do gênero, mas minhos perigosos (1973) e Os bons companheiros (1990).
A Confissão (fantástico) e o recém-lança- também alguma leveza — que busquei Na seara da máfia italiana, ninguém fez melhor do que
do A Ilha (ficção científica). ao optar por um narrador meio ingênuo, Francis Ford Coppola, com sua trilogia de O podero-
Decidi que o centro da cida- com traços quase românticos às vezes, e so chefão, baseado na obra de Mário Puzo. Os grandes
de seria o bairro principal do cenário. ao escolher o humor como parte inte- mestres do romance policial, claro, também foram fis-
Fiz isso porque é ali que os signos estão grante do estilo de narrar deste detetive. gados por Hollywood. A adaptação de O falcão maltês,
numa verdadeira festa da linguagem. Se funcionou ou não, se a dupla de Dashiell Hammett, feita por John Huston, perma-
Com seu casario antigo, prédios mo- André & Gordo deu conta do recado, nece como um dos filmes noir de maior sucesso. Um
dernos, largas avenidas e ruelas de pa- só cabe ao leitor dizer. Afinal não é ele, filme que, assim como as versões para O assassinato do
ralelepípedos, frequentados pelos tipos o leitor, o verdadeiro detetive? g expresso do oriente (1974), de Agatha Christie, e Los An-
mais diversos que você pode imaginar, geles, cidade proibida (1997), de James Ellroy, ajudou a
Flávio Carneiro é escritor, autor do romance
dos certinhos aos malucos de carteiri- policial O campeonato (2009). Seu mais recente popularizar um clássico da literatura policial.
nha, o centro do Rio é cenário perfeito livro é A ilha (2011). Vive em Teresópolis (RJ).
26 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto

Antes de abatê-los
T
em este velho do décimo sétimo. Ele
está internado. Morrendo. Talvez não Luiz Felipe Leprevost
volte do hospital. Aluga salas. É dono de Ilustração: Diego Gerlach
trinta e oito conjuntos comerciais nes-
te prédio. Seu escritório tem grossas grades
protegendo a porta. Estamos em horário co-
mercial. E a porta e a grade, abertas. O velho
nos diz bom dia. Vejo seus pés só com meias.
Os sapatos de couro ao lado. Que bom, tem
uma mulher bonita no trio, ele diz. A gente
ri. Cadê o dinheiro? O velho é direto. Meus
olhos passeiam pelas paredes carcomidas da
sala abarrotada de pastas e caixas de arquivos.
Minha sócia conta as cédulas, em seguida al-
cança o maço ao velho. Ele pergunta se mi-
nha sócia é casada. Meu filho também não é.
O seu filho trabalha aqui com o senhor?, per-
gunta meu sócio. É bom ouvir sua voz agu-
da. Esqueço que ele sabe falar. Nunca lembro
que ele está entre nós. Meu sócio é invisível.
A mãe dele se incomoda, viu, a coitada sofre
de pressão alta, qualquer dia cai dura. O se-
nhor pode me dar um recibo, diz minha só-
cia. Claro, o recibo, repete o velho. E procu-
ra com os pés os sapatos debaixo da mesa.
Ele arfa. Só então levanta da cadeira, um cor-
panzil de quase dois metros de altura e lar-
ga estrutura. Lento paquiderme sem idade.
Resurge de dentro de um dos arquivos. Vou
mostrar a vocês o meu tatu. Ele tem uma faca
reluzente na mão. O cabo é feito de casco de
tatu, diz. Você já esteve fuça a fuça com um
bicho destes? Olho novamente para baixo da
mesa, o tapete me enoja. Adoro o aço, diz o
velho, tenho mais de noventa facas em casa.
Eu e o velho naquela fazenda, de tocaia, es-
pingardas em punho. Vamos cercá-los. O ve-
lho conversa, encanta os animais antes de
abatê-los. Adoro o aço e a pólvora, também
coleciono armas de fogo.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 27

Peste uma peste


A
ndo no corredor escuro. No fim mulher apaga o quadro. Ninguém se
dele vejo uma mulher trajada a abala com o gordo se esgoelando. Ela
rigor. Se eu tivesse conhecimen- apaga e apaga e apaga o quadro verde,
to cartográfico. Ardem as solas o pó do giz, neblina na sala. Ela lim-
dos pés. De onde venho? No percur- pa as mãos no jaleco, a mulher traja-
so fui derretendo as solas dos sapatos, da a rigor. Sua boca se abre, posso ver,
deixando para trás farrapos das meias. é grande, os dentes são perfeitos, bran-
Sigo. O chão, o fundo dos vulcões. cos, a língua vermelha e amarela como
Não há janelas neste corredor. Espre- lava. Sou incapaz de capturar as frases
mo na narina o descongestionante na- que soam sobrepostas. Só ouço o eco
sal. Sempre desejei morrer no miolo de é uma peste uma peste peste. Quando
tudo o que possuo. Há uma luz no fun- eu era seu filho ouvia nunca mais você
do. Da mulher iluminada me aproxi- me deu um beijo na cara. Será isso?
mo. É uma peste, diz a meu respeito. O lobo com bafo podre e presas afia-
Na escuridão, sou somente a ponta do das de um conto em que o final nem
cigarro que trago aceso. Não dou uma sempre é um ensinamento edificante.
banana porque ninguém diz é proibi- A criança sentada ao meu lado sugere
do fumar aqui. Tenho frutas nos bol- pisque lentamente, as pálpebras são o
sos. E mosquitos que vieram com elas. que temos de melhor para demonstrar
Chego na luminosidade que perseguia. gratidão. Os dias, ao contrário de se ar-
Ninguém se abala com o berro que rastarem com correntes atadas aos tor-
vem de dentro da sala à direita. Procu- nozelos, deveriam ser um começo em-
rar esse lugar fez de mim um homem pilhado em cima de outro começo. O
passado da meia-idade. A porta está berro do gordo ainda está no ar, como
aberta, mesmo assim bato na porta pe- fosse o vagido de alguém que nasce. É
dindo licença. Entro. Há quanto tem- uma piedade torpe a que sinto por ele.
po não vinha a essa escola. Aceno para Meu coração está dilacerado por me-
mulher em pé com giz na mão. Sen- táforas, sentimentalismo e tanta ca-
to na última carteira da fila que está raminhola. Comove aquele que está
bem no meio da sala. Não há janelas, a colar penas umas nas outras com o
só uma fresta na veneziana. Foda-se a intuito de produzir asas. Mas o paraí-
vida. Eu não devia ter vindo. Tanta cla- so é sempre tão reles. Levanto. Saio da
ridade explodindo em meus olhos, não sala. Entro em outro corredor. Penso ir
posso desenhar com precisão o rosto na direção do banheiro. Sigo o escu-
da mulher. Ela ameaça jogar o apaga- ro. Peste uma peste peste. Quem ama
dor em mim porque converso sem pa- ama, e isso é uma impossível verdade. Luiz Felipe Leprevost é poeta e
rar com as outras crianças. É uma pes- Nunca mais você me deu um beijo na escritor, autor dos livros Tornozelos
deitados (2005), Cecília roendo unhas
te. Apago o cigarro na nuca do menino cara. Quem ama ama quem ama, eis. (2005) e Ode mundana (2006). Acaba
gordo sentado em minha frente. Ago- Mesmo quem ama nem sempre con- de lançar o romance E se contorce igual
ra entendo de onde vinha o grito. A segue ser angelical. g a um dragãozinho ferido (2011).
Vive em Curitiba (PR).
28 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Perfil do Leitor | fábio elias

O leitor-compositor
Fã de biografias e poesia, o guitarrista Felipe Kryminice “Com 15 anos li Como vejo o mun-
do, do Einstein, e fiquei fascinado. Ele di-
e compositor Fábio Elias faz da leitura

A
os 15 anos, Fábio Elias teve o pri- zia que a guerra era a maior ignomínia
o mote para as composições de sua vilégio de descobrir o que iria fa-
zer profissionalmente na vida: ser
que conhecia. Achei aquilo forte pra ca-
ramba, vindo de um gênio como o Eins-
banda, a Relespública músico. Mas, para ele, mais urgen- tein. Então, se a guerra é a coisa mais
te do que a vocação, era achar um nome desprezível, é reles; e se quem vai para a
que traduzisse o som sujo e básico que guerra é alguém do povo, é público. Aí
sua incipiente banda fazia. E ele, o nome, juntei as duas coisas e saiu a Relespúbli-
surgiu pela via menos esperada. Ao invés ca”, conta o músico curitibano.
de referências que lembrassem a cultu- E realmente está lá, na página 22
ra mod de bandas como The Who e Ira!, do livro: “A pior das instituições gregárias
influências capitais para Fábio Elias, o se intitula exército. Eu o odeio. Se um ho-
nome Relespública veio de Albert Eins- mem puder sentir qualquer prazer em des-
tein, o físico alemão. filar aos sons de música, eu o desprezo. Não
merece um cérebro humano, já que a me-
dula espinhal o satisfaz... A guerra é a coisa
mais desprezível que existe. Prefiro deixar-
-me assassinar a participar dessa ignomí-
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 29

nia”. O livro inspirou ainda Fábio a com- cípio se chamaria mesmo ‘Medo e delírio’”.
por uma música com o mesmo título do Fábio Elias estudou em um colégio
livro, o que se tornou algo recorrente na sua tradicional de Curitiba, onde começou a se
carreira. “Sempre que leio um livro, acabo interessar por ficção e poesia. Mas, conta o
traduzindo aquilo em música”, explica Fá- guitarrista, o gosto pelas palavras veio ain-
bio, que depois de uma empreitada pelo da criança, quando se apaixonou pelos gi-
sertanejo, em 2012 volta a gravar e excur- bis. Assim como acontece com a música, o
sionar com os parceiros de Relespública: o cantor se diz um “leitor sem preconceitos”.
baterista Emanuel Moon e o baixista Ri- “Leio de tudo, não tenho preconceito com
cardo Bastos. Com quatro discos de estú- nada. Por um tempo, fui seletivo demais,
dio — E o rock n’roll Brasil? (1998), O circo chegava a ser um pouco estreito. Quando
está armado (2000), As histórias são iguais comecei a tocar, fiquei muito naquela de
(2003) e Efeito moral (2008) —, a Reles, rock e acabei deixando passar muitas coisas
como é conhecida, se prepara para lançar legais. Então comecei a variar mais, com-
um novo DVD, chamado Antes do fim do pondo outras coisas: sambas, modinhas e
mundo, em que a banda toca ao vivo músi- música sertaneja. E isso abriu várias janeli-
cas novas e antigos hits. nhas para mim. Com a literatura é a mes-
A Relespública tem mais de 20 ma coisa”, diz o cantor, que é leitor fiel de
anos de estrada e nesse período passou por poetas como Paulo Leminski, Dylan Tho-
algumas mudanças em sua formação. Mas mas e Charles Bukowski. “Quando o Buk
o núcleo central, formado pelos três inte- morreu, lembro que tomamos um por-
grantes atuais se mantém. Influenciados re para homenagear o Velho Safado. Mas
pelo rock sessentista britânico — de bandas gosto muito também dos poetas curitiba-
como The Who, The Jam e Rolling Stones nos, como Thadeu Wojciechowski, Ed-
— e pela geração do Brock dos anos 1980 son de Vulcanis e o falecido Marcos Prado,
— Ultraje a Rigor, Titãs e Ira! —, a Re- parceiros de música. Aliás, adoro esse cli-
lespública se tornou uma grande referên- ma boêmio de Curitiba”, comenta o mú-
cia da música curitibana a partir da segun- sico, que também arrisca uns haicais, que
da metade dos anos 1990, quando gravou posta na internet.
algumas das músicas que fizeram parte da Fábio também é um grande fã de
trilha sentimental de muitos adolescentes biografias. Comentarista de música em
e jovens, com músicas como “Nunca mais”, uma rádio de Curitiba, o guitarrista costu-
“Garoa e solidão”, “Marcianos”, “Sol em ma levar para o programa as histórias de
Estocolmo” e “Essa canção”. grandes ídolos da música pop. Entre um
cometário e outro, toca canções do artis-
Leitor-compositor ta em questão. Com o mercado editorial
Leitor assíduo de jornais e revistas, brasileiro farto em relatos biográficos de
Fábio escreveu a música “Homem bom- músicos, o compositor tem se esbaldado
ba”, do disco Efeito moral, a partir de uma em livros sobre Lobão, Ozzy Osbourne e de ler as biografias, pesquisa outras fon- porque incomoda os vizinhos. Então des-
matéria de jornal sobre catástrofes provo- o indestrutível Keith Richards, guitarrista tes para traçar a história do artista. Além ligo tudo, TV, som, computador, e leio.”
cadas pelo homem e pela natureza. Como dos Rolling Stones que sobreviveu a déca- da carreira e dos discos, fala sobre algumas O compositor também não gosta de ler
os cut-ups de William Burroughs e as co- das de excesso de álcool e drogas. “Vida, a curiosidades dos músicos e responde per- mais de um livro ao mesmo tempo. Apre-
lagens de Valêncio Xavier, o músico curi- biografia do Keith Richards, indico a todo guntas enviadas pelos ouvintes. cia curtir o livro, digeri-lo, começar e ter-
tibano separou palavras-chave do texto e mundo que tenha interesse pela história do Com uma vida noturna agitada, Fá- minar a leitura sem interrupções. “É como
montou a letra. “Li o texto e fiz uma co- rock. O cara conta coisas incríveis, de como bio Elias só lê de madrugada, quando os na música: quando começo a fazer um dis-
lagem, fui juntando os fragmentos e fiz a cresceu em meio às bombas da Segunda shows e outros compromissos arrefecem. co, entro de cabeça naquilo. Não misturo as
letra. Medo e delírio em Las Vegas, livro do Guerra Mundial e, anos depois, conquis- Lê nesse horário porque é quando não tem coisas. Não sou aquele leitor que devora ro-
Hunter Thompson, também me influen- tou o mundo com a música.” Para enca- nenhuma distração que lhe tire o foco da mances, livros de poesia e biografias, tudo
ciou a escrever essa música, que em prin- rar as duas horas de programa, Fábio, além leitura. “Na madrugada não posso tocar ao mesmo tempo agora.” g
30 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

cândido, 133

A pequena Babel como os títulos que traziam a assinatura


de Wilson Martins, que durante déca-
das foi um dos maiores doadores de li-
vros da BPP, muitos deles com dedica-
tórias dos próprios autores.
Kraw Penas
Em maio de 2011, a Bibliote-
Uma das salas mais ca Pública do Paraná também adquiriu
177 novos exemplares de 14 títulos que
visitadas da Biblioteca são cobrados no vestibular da Universi-
Pública do Paraná, a Seção dade Federal do Paraná, suprindo a de-
manda por esses livros.
de Linguística e Literatura
História
abriga aproximadamente A seção atual de Linguística e
150 mil volumes, desde Literatura existe desde 1990, mas sua
história é antiga: o primeiro registro
Homero até os best-sellers que se tem de separação de obras lite-
rárias consta do primeiro regulamento
da literatura contemporânea da instituição, de abril de 1858, em que
os livros de ficção ficavam na “classe” de
Belas Artes.
Guilherme Sobota Em 2011, o acervo da Seção foi
incrementado: pelo menos 6 mil novos

N
o conto “A biblioteca de babel”, Usuários na sala de Literatura e Linguística da BPP. livros foram adquiridos pela Secreta-
do livro Ficções, o argentino Jorge ria de Estado da Cultura e repassados
Luis Borges imagina um mun- à BPP. As aquisições, segundo o diretor
do constituído por uma infinida- sua maioria, mulheres. Mas não é difí- ry David Thoreau. Wojtecki, que esta- da Biblioteca Pública do Paraná, Rogé-
de de livros, de todas as línguas, em que cil encontrar pessoas muito diferentes va à procura de livros do cubano Pedro rio Pereira, devem se tornar uma rotina
os volumes contêm todas as possibilida- desse perfil no local à procura de boa Juan Gutiérrez, ressalva que, apesar de a partir de 2012. “O restabelecimento
des da realidade. Na Seção de Linguís- literatura. O estudante universitário às vezes ter dificuldade em emprestar do acervo da Biblioteca é uma das nos-
tica e Literatura da Biblioteca Pública Bruno Calzavara conta que começou a alguns livros, por serem muito procu- sas prioridades. Estamos trabalhando
do Paraná, o leitor, assim como no con- frequentar a BPP quando precisou ler rados, o acervo da Biblioteca atende às numa ampla curadoria.”
to de Borges, pode experimentar a sen- as obras indicadas para o vestibular de suas necessidades. “Prefiro que a Biblio- Os autores mais procurados na
sação de estar em meio a um universo uma universidade estadual e que, desde teca guarde os livros e disponibilize o Seção são bem conhecidos. Entre os
inesgotável de saber, onde todas as his- então, mantém o hábito de emprestar seu acesso, por isso não compro muitos brasileiros, estão na lista os curitibanos
tórias estão ao alcance das mãos. Uma livros, especialmente nas férias. “Sem livros”, afirma Wojteck. “Mais do que o Dalton Trevisan e Paulo Leminski,
das seções mais visitadas da BPP, a Li- sair do lugar, posso viajar, conhecer pes- lazer, a literatura é uma necessidade.” além de outros autores considerados
teratura, como a sala é chamada, tem soas, lugares, situações”, afirma Calza- Alguns títulos se tornaram cult canônicos da nossa literatura: Carlos
um acervo de 147.366 volumes, divi- vara. “É brega, mas é isso”, completa. entre os leitores da BPP e quase sem- Drummond de Andrade, Luís Fer-
didos entre 52.525 títulos de literatura Hábito compartilhado pelo pro- pre estão emprestados, mesmo com vá- nando Verissimo, Nelson Rodrigues e
estrangeira e brasileira (prosa e poesia), fessor de ensino médio Thiago Wojte- rios exemplares à disposição dos leito- Rubem Fonseca. Na lista dos estran-
livros de linguística e ensaios, títulos cki, que inclusive já trabalhou na BPP res. É o caso do romance Cartas na rua, geiros, a diversidade é o que chama
que compõem o maior acervo biblio- como estagiário e continua a frequentar do norte-americano Charles Bukowski, atenção: estão lá autores de várias épo-
gráfico da Divisão de Obras Gerais da o local. Wojtecki prefere emprestar os um hit literário entre os frequentadores cas e nacionalidades, como o ameri-
BPP, a qual a Seção está vinculada. livros a comprá-los, especialmente por da Seção de Literatura. Os livros do po- cano J. D. Salinger, o alemão Günter
Segundo a chefe da Divisão, Si- conta do preço. “Os três livros que eu eta curitibano Paulo Leminski, alguns Grass, o russo Dostoiévski, a inglesa
zuko Takemiya, em média, os frequen- empresto aqui saem por quase R$ 150 deles há vários anos fora de catálogo, Virginia Woolf e o tcheco Kafka. Uma
tadores da Seção de Linguística e Li- numa livraria”, diz, segurando um títu- portanto indisponíveis para compra nas pequena Babel capaz de satisfazer o
teratura têm mais de 30 anos e são, em lo do naturalista estadunidense Hen- livrarias, também são disputados. Assim mais voraz dos leitores. g
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 31

retrato de um artista

edgar allan poe


Por Rafael Campos Rocha

Edgar Allan Poe nasceu em


janeiro de 1809, em Boston,
Massachusetts (EUA). Foi poeta,
escritor, crítico e também
trabalhou em diversos periódicos.
Seu poema “O Corvo”, de 1845,
é talvez o mais famoso poema
da literatura norte-americana.
Também é considerado mestre e
grande precursor de dois gêneros
literários: o terror e o policial.
Assassinatos na Rua Morgue,
A narrativa de Arthur Gordon
Pym e O poço e o pêndulo estão
entre suas principais obras.
Poe faleceu em 1849 em
decorrência do alcoolismo.

Rafael Campos Rocha


é artista plástico e
cartunista. Faz trabalhos
para o caderno “Ilustríssima”,
da Folha de S. Paulo.
Vive em São Paulo (SP).
32 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

poesia Heinrich Heine Tradução: André Vallias Ilustração: Marco Jacobsen

Der Tod das ist die kühle Nacht,


Das Leben ist der schwüle Tag.
Es dunkelt schon, mich schläfert,
Der Tag hat mich müd’ gemacht.

Ueber mein Bett erhebt sich ein Baum,


Drin singt die junge Nachtigall;
Sie singt von lauter Liebe,
Ich hör’ es sogar im Traum.

A morte é a noite que refresca;


A vida, um dia de calor.
Já fica escuro, eu adormeço –
O dia muito me cansou.
Henrich Heine nasceu em dezembro
de 1797, em Düsseldorf, na
Eu vejo, na árvore que cresce
Alemanha. Foi poeta, escritor e
À minha cama, um rouxinol jornalista. Sua obra mais importante
André Vallias é poeta e designer
gráfico. Em 2011, publicou Heine,
Jovem cantando por amor – é Livro das canções, que teve 13
Hein? – Poeta dos contrários.
edições durante a vida do autor.
Até no sonho, ouço a canção. Vive no Rio de Janeiro (RJ).
Heine faleceu em 1856, em Paris.

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