! 1
!
!
escultura, a instalação e a Live Art, esta é uma obra poderosamente afetiva que
produz sentimentos e questões com grande carga emocional nos espectadores.
Oblivion é um habitat minúsculo, em meio a um ambiente superabundante
da exposição colaborativa In-A-Gadda-Da-Vida: uma reunião eclética do trabalho
de Angus Fairhurst, Sarah Lucas e Hirst. À medida que deambulo pelo espaço
transformado da galeria, sinto uma urdidura vibrante do Jardim do Éden: é como
se não estivesse sequer numa galeria; é mais como uma feira de diversões, um
circo ou um sonho, propiciado por químicos, de um museu de uma história não
natural. Pode parecer um local estranho para se experienciar uma performance ou
até para servir de início a um livro subordinado ao tema da performance e da Live
Art. Mas a forma como Hirst choca as sensibilidades dos espectadores, e algumas
das normas culturalmente transmitidas nas quais essas sensibilidades se assentam,
não constitui uma novidade. As estratégias estéticas aqui empregues (matéria
corpórea, movimento no tempo, objetos vivos e ambientes complexos) têm já um
vasto historial na arte da performance e o jogo presente em Oblivion, ali na
fronteira entre a vida e a morte, o humano e o animal, o teatral e o elementar,
soará familiar a qualquer pessoa que já tenha visto uma obra de Live Art.
Formas e ideais em constante movimento. Os solavancos para a
percepção, ambiguidades formais e paradoxos vitais que constituem esse trabalho
surgem de uma cena cada vez mais intrincada de práticas das artes visuais, na qual
as tradições formais são inflexivelmente quebradas e recombinadas, e a influência
estética, filosófica e cultural é viral. Nas artes visuais tem havido uma utilização
vincada de objetos táteis e animados, do efêmero, de ambientes e instalações, lado
a lado com estratégias artísticas informais, ad hoc, itinerantes e intervencionistas.
Oblivion exemplifica algumas mudanças subjacentes fulcrais na arte visual
contemporânea: do duradouro ao temporário, do óptico ao háptico, do distante ao
próximo, da relação estática à troca fluida. A esse respeito, Oblivion é sintomática
de um ímpeto profundo na cultura e arte contemporâneas no sentido da
imediatidade, da imersividade e da interação: uma mudança para o (estar/ser)
vivo. Nos ambientes altamente tecnologicizados e espetacularizados do ocidente, a
produção cultural está presentemente obcecada com a animação, com a vida.
Notícias imediatas, celulares, tecnologias de imagem, transmissões pela Web e
reality-shows televisivos precipitam-nos em experiências simultâneas, na natureza
! 2
!
!
! 3
!
!
! 4
!
!
La Ribot, Panoramix. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia do artista e de Hugo Glendinning
Photograph © Hugo Glendinning
La Ribot, Panoramix. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia do artista e de Hugo Glendinning
Photograph © Hugo Glendinning
! 5
!
!
La Ribot, Panoramix. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia do artista e de Hugo Glendinning
Photograph © Hugo Glendinning
! 6
!
!
! 7
!
!
Forced Entertainment, 12 AM: Awake & Looking Down. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia
dos artistas e de Hugo Glendinning Photograph © Hugo Glendinning
! 8
!
!
! 9
!
!
Deslocações
O fato de a performance privilegiar e analisar o tempo dentro da obra de
arte e da atenção que o espectador lhe dedica tem sido frequentemente
acompanhado por uma exploração da dinâmica do espaço. Embora os fenômenos
do espaço e do tempo sejam inseparáveis, o discurso em torno do espaço em
termos de forma, funcionamento e política tende a dominar na escrita crítica sobre
a performance, bem como na encenação e na estética. Nos contextos urbanos do
ocidente, o espaço público cedeu perante o espaço privatizado, onde o gregarismo
é condicionado por um individualismo dominante e a ação é rigorosamente
regulada e cuidadosamente observada. Cada vez são mais expostas a moldagem e
a contenção do espaço cultural através das operações de lugar. Graças à expansão
das novas tecnologias, emergiram novos lugares em campos virtuais, de tal forma
que a nossa experiência do espaço se situa atualmente entre a proximidade e a
distância, entre um espaço virtual expansivo e um real instável. Essas mudanças
no espaço e no lugar têm sido o contexto e o catalisador para a performance se
! 10
!
!
tornar cada vez mais migratória, desafiando as forças que procuram estabelecê-la
num local, deixando os lares institucionais, levando um curso inquieto e errante
para outros lugares, outras esferas da arte e da vida, “situando-se” onde o ditem as
necessidades de expressão, relação e finanças. Nessa migração, a performance
tornou-se num meio com o qual se testam as bases e as fronteiras da identidade,
num meio para se colocar o mesmo em novas relações com os seus “exteriores” e
terceiros. Tendo saído de casa, a performance provou incansavelmente a sua
inigualável capacidade de gerar novas formas de relação, de colaboração e de
comunidade que negociam e atravessam divisões que, em outros tempos, já foram
sólidas.
Desde que os artistas de finais dos anos de 1960 e início dos anos de 1970
se apartaram das restrições associadas às galerias, dos predecessores imediatos,
para passarem a outros locais de prática criativa, a arte da performance tem-se
mantido coerentemente próxima de uma arte específica de determinado local na
investigação do assunto, da concepção e da percepção do espaço [2]. As contínuas
fugas dos artistas dos sítios institucionais de produção performática, sejam
galerias ou teatros, são um desafio à propriedade do local e àquilo que é operado
em quem o habita. O lugar, longe de ser neutro, é encarado por muitos artistas
Live como uma força que se que deve abrir e à qual se deve resistir. O lugar é aqui
o produto de determinadas ideologias ou bases racionais que ordenam a sua
arquitetura, práticas habituais, movimentos físicos e encontros sociais que
acontecem nesse lugar. Quer aconteça nas ruas, nos parques, em armazéns
abandonados, estações, hotéis, escolas, em locais de trabalho ou em espaços
domésticos, seja em contextos urbanos ou nesses lugares de “natureza”
denominados como “outros” relativamente aos urbanos, a performance é
frequentemente usada como um meio para testar e transformar o espaço.
Tomemos o exemplo das diversas obras, específicas de determinado local, da
performer britânica Bobby Baker, que examinam e articulam as gradações e
experiências da vida cotidiana. Baker mina a vida interior, as relações de objetos e
os micromundos de atividades, como cozinhar, ir às compras e cuidar dos filhos,
muitas vezes nos mesmos lugares onde acontecem essas experiências. Quer a sua
obra Kitchen Show (1991), realizada em sua própria casa, quer a apresentada neste
livro e mais recente, Box Story (2001), desenvolvida numa igreja, examinam e
! 11
!
!
! 12
!
!
Mundos da carne
As trajetórias da performance e da Live Art em termos de experimentação
com tempo e espaço envolveram, necessariamente, a exploração, uso e
observação do corpo humano. Afastando-se da representação do sujeito humano
que se encontra na pintura e da representação que o artista faz de si nos
autorretratos, os artistas do século XX entraram progressivamente dentro da
moldura, usando os próprios corpos como lugares de experimentação e de
expressão. A emergência desse gesto através dos vários momentos do
modernismo foi traçada, a par da manifestação como gênero forte da Body Art de
finais dos anos de 1960 até aos nossos dias [3]. A correlação entre a arte da
performance e o corpo em movimento da dança, enraizada na estética minimalista
dos coreógrafos experimentais dos anos de 1960 e de 1970, mantém-se presente,
com práticas como as de Jérôme Bel e de La Ribot, aqui documentadas. Neste
volume, André Lepecki avalia, cuidadosamente, a relação da dança como
performance com noções históricas e filosóficas de movimento. A performance
contemporânea continua numa trajetória de incorporação, na qual o corpo do
artista, os respectivos adornos, ação e resíduos não são apenas o sujeito, mas
também o objeto material da arte. A entrada física do corpo do artista para a obra
! 13
!
!
Marina Abramović, The House with the Ocean View. Performance. Sean Kelly Gallery, Nova
York, 2002. Fotografia de Steven P. Harris
! 14
!
!
próprio e o outro. Para artistas como Marina Abramović, aqui entrevistada, cuja
prática, desde a década de 1970, tem estado na primeira linha na performance
dentro da esfera das artes visuais, isso tem significado uma investigação
elementar da dinâmica psicológica e somática da relação humana íntima e, mais
recentemente, a exploração dessa relação através da “divisão” performer-
espetador. A divisão é precisamente aquilo que a performance põe em questão,
interrogando o contrato, frequentemente não verbalizado, que existe entre as duas
partes e as noções éticas, morais e políticas nas quais ele se baseia. Esta cena
incorporada da relação, como evidencia a discussão de Peggy Phelan sobre a mais
recente obra de Abramović, The House with the Ocean View (2003), é uma zona
de trocas imprevisíveis onde se põem em risco sentidos, emoções e intelecto. A
obra de Abramović, como a de artistas como Ron Athey (também aqui
documentado), cujas performances incluem atos de penetração, perfuração e
escarificação, tem envolvido repetidamente riscos físicos e respectivas
ressonâncias internas, nas consciências, e externas, na esfera político-cultural.
Esse tipo de investigação evoca as relações de poder entre o próprio e o outro e,
em consequência, as dinâmicas do prazer e da dor, do desejo e da repulsa, do
amor e do ódio que perpassa essa relação. O corpo do artista é des-naturalizado e
usado como objeto mutável nessas intensas experiências performáticas. Os
limites, ações e aspeto são muitas vezes manipulados e transformados
energicamente para refletir as forças violentas em jogo na relação incorporada.
Amelia Jones, que escreveu proficuamente sobre a história da Body Art e
respectiva investigação sobre a formação da subjetividade e da relação, encontra
espaço nestas páginas para articular um conjunto de “movimentos” temáticos de
fleshworks (obras da carne) na prática performática contemporânea. Para Jones, o
uso que o artista faz do corpo como matéria artística pode ser encarado através do
jogo de relações entre a superfície e a profundidade, a pele e a carne, a imagem e
a matéria, a consciência e a experiência corpórea, o exterior e o interior. Amelia
Jones vê nessas mutações radicais dos campos fenomenais da relação entre artista
e espectador, a capacidade de reorganizar as histórias do pensamento,
coordenadas do poder e sistemas de representação que moldam o sexo, o gênero e
a etnicidade. A relação entre materialidade e discurso, restrição e liberdade,
sujeição e ação, que forma uma parte das análises que os artistas fazem do lugar, é
! 15
!
!
Guillermo Gómez-Peña & La Pocha Nostra e Manuel Vason, Collaboration#5, Liverpool, 2002
! 16
!
!
! 17
!
!
Vida elementar
A investigação da matéria da vida, o seu desmantelamento e apresentação
em nudez, na performance e na Live Art, não se limitam ao corpo humano e ao ser
humano. Os artistas Live há muito que utilizam corpos de animais, vivos e mortos,
para questionar os limites definitivos da cultura e da natureza, do humano e do
animal. O performer russo Oleg Kulik, cuja imagem embeleza a capa deste livro,
tem estado na primeira linha dessa interrogação. Kulik é sobretudo conhecido
pelas suas performances irrefreadas como cão. Essas performances fazem parte da
série Zoophrenia, na qual ele declara que temos de renunciar ao antropocentrismo,
à linguagem da cultura humana, e comungar com a natureza animal, de forma a
reanalisar os valores da arte, da cultura e do intercâmbio humano. A representação
que Kulik faz do cão leva o mimetismo a um limite excessivo; aqui as polaridades
de cão-homem parecem oscilar, colidir e colapsar. É interessante notar a diferença
entre esse trabalho e o agora famoso encontro de Joseph Beuys com um coiote,
que Kulik claramente referencia, I Like America and America Likes Me (1974), e
nessa diferença há um jogo entre os polos separados do humano e do animal.
Outro tipo de ser indeterminado surge nas performances de Kulik como cão, em
que os espectadores começam a encontrar o animal dentro do humano e vice-
versa, pelo que está em questão a respectiva diferença fundacional. Para lá de um
espetáculo de abjeção, as performances do cão são um encontro, um tombo, uma
apresentação do ser em estado alterado a ponto de se tornar um animal e nessas
performances se sentem subitamente as implicações dos perigos e possibilidades.
! 18
!
!
Oleg Kulik, Armadillo for Your Show. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia do artista e de Hugo
Glendinning Photograph © Hugo Glendinning
! 19
!
!
! 20
!
!
! 21
!
!
Notas
[1] Vd. RoseLee Goldberg, “Performance: Live Art Since 1960“, Nova Iorque,
1998; RoseLee Goldberg, “Performance Art: From Futurism to the Present“, Londres, 1979 (com
tradução brasileira: “A Arte da Performance – Do futurismo ao presente“, São Paulo, Martins
Fontes, 2006); Vd. também Paul Schimmel (ed.), “Out of Actions: Between Performance and the
Object 1949-1979“, Londres, 1998.
[2] Eis os textos fundamentais sobre essa relação: Carter Ratcliff, “Out of the Box: The
Reinvention of Art 1965-1975“, Nova York, Allworth Press: School of Visual Arts, 2000; Miwon
Kwon, “One Place After Another Site-Specific Art and Locational Identity“, Cambridge,
Massachusetts, MIT Press, 2002; Nick Kaye, “Site-Specific Art: Performance, Place and
Documentation“, Londres, Routledge, 2000; Mike Pearson e Michael Shanks,
“Theatre/Archaeology“, Londres/Nova York, Routledge, 2001.
[3] Os principais textos aqui são: Lea Virgine, “Body Art and Performance: The Body as
Language“, Milão, Skira, 2000; Amelia Jones, “Body Art: Performing the Subject“, Mineápolis,
University Minnesota Press, 1998; Tracey Warr (ed.), “The Artist’s Body” [com um contributo de
Amelia Jones], Londres, Phaidon, 2000; Kathy O’Dell, “Contract with the Skin: Masochism,
Performance Art and the 1970s“, Mineápolis, University Minnesota Press, 1998; Francesca Alfano
Miglietti, “Extreme Bodies: The Use and Abuse of the Body in Art“, Milão/Londres,
Skira/Thames & Hudson, 2003.
[4] Para mais textos sobre estratégias críticas, documentais e criativas a respeito dessa
ausência, conferir: Peggy Phelan, “Unmarked: The Politics of Performance“, Nova Iorque,
Routledge, 1992; Adrian Heathfield, Fiona Templeton e Andrew Quick (eds.), “Shattered
Anatomies: Traces of the Body in Performance“, Bristol, Arnolfini Live, 1997; Tim Etchells,
“Certain Fragments: Contemporary Performance and Forced Entertainment“, Londres, Routledge,
1999; Matthew Goulish, “39 Microlectures: in Proximity of Performance“, Londres, Routledge,
2000.
! 22
!