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Ano 2 | Nº 9 | Mar 2014


ISSN 2316-8102

ALIVE: (AO) VIVO


por Adrian Heathfield

A necessidade de traduzir Alive: (ao) Vivo (que é um texto introdutório do


livro Live: Art and Performance, organizado pelo autor Adrian Heathfield) deve-
se ao fato de que, através dele, o leitor é acionado para todo o valoroso conteúdo
das palavras e imagens presentes no restante do livro. De um evento ocorrido no
museu Tate Modern de Londres em 2003, surgem inúmeras reflexões em torno
das artes performativas e a sua inerente relação com o “ao vivo”, bem como sobre
a arte realizada na virada do século XX para o XXI, além de motes que ainda
permanecem vivos na arte da nossa atualidade.

Estou defronte de The Pursuit of Oblivion (2004), de Damien Hirst,


tentando fitar os olhos firmes de um peixe vivo enquanto desliza, com notável
indiferença, sobre o cume aguçado de uma faca de trinchar. Percorre-me um
frêmito. Perante essa obra de arte, o tempo vai passando devagar e eu fico preso
por um sentimento estranho. A escultura em performance: o objeto está vivo.
A extraordinária escultura aquática viva de Hirst (um enorme aquário que
também contém duas peças de carne a emoldurar um guarda-chuva aberto
suspenso sobre uma mesa de talhante) concentra, numa única obra, várias das
correntes “inquietantes” da prática contemporânea das artes visuais. The Pursuit
of Oblivion parece ser mais sobre a apresentação de alguns fenômenos do que
sobre a representação de alguma coisa. A brutalidade da colagem tende a obrigar
os visitantes a tomar fôlego. Decomposição e beleza exótica, estase e fluidez, o
elementar e o ornamental, destruição e preservação, tudo isso lado a lado nessa
obra, chocando os sentidos. Ocupando um espaço difícil de categorizar entre a

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escultura, a instalação e a Live Art, esta é uma obra poderosamente afetiva que
produz sentimentos e questões com grande carga emocional nos espectadores.
Oblivion é um habitat minúsculo, em meio a um ambiente superabundante
da exposição colaborativa In-A-Gadda-Da-Vida: uma reunião eclética do trabalho
de Angus Fairhurst, Sarah Lucas e Hirst. À medida que deambulo pelo espaço
transformado da galeria, sinto uma urdidura vibrante do Jardim do Éden: é como
se não estivesse sequer numa galeria; é mais como uma feira de diversões, um
circo ou um sonho, propiciado por químicos, de um museu de uma história não
natural. Pode parecer um local estranho para se experienciar uma performance ou
até para servir de início a um livro subordinado ao tema da performance e da Live
Art. Mas a forma como Hirst choca as sensibilidades dos espectadores, e algumas
das normas culturalmente transmitidas nas quais essas sensibilidades se assentam,
não constitui uma novidade. As estratégias estéticas aqui empregues (matéria
corpórea, movimento no tempo, objetos vivos e ambientes complexos) têm já um
vasto historial na arte da performance e o jogo presente em Oblivion, ali na
fronteira entre a vida e a morte, o humano e o animal, o teatral e o elementar,
soará familiar a qualquer pessoa que já tenha visto uma obra de Live Art.
Formas e ideais em constante movimento. Os solavancos para a
percepção, ambiguidades formais e paradoxos vitais que constituem esse trabalho
surgem de uma cena cada vez mais intrincada de práticas das artes visuais, na qual
as tradições formais são inflexivelmente quebradas e recombinadas, e a influência
estética, filosófica e cultural é viral. Nas artes visuais tem havido uma utilização
vincada de objetos táteis e animados, do efêmero, de ambientes e instalações, lado
a lado com estratégias artísticas informais, ad hoc, itinerantes e intervencionistas.
Oblivion exemplifica algumas mudanças subjacentes fulcrais na arte visual
contemporânea: do duradouro ao temporário, do óptico ao háptico, do distante ao
próximo, da relação estática à troca fluida. A esse respeito, Oblivion é sintomática
de um ímpeto profundo na cultura e arte contemporâneas no sentido da
imediatidade, da imersividade e da interação: uma mudança para o (estar/ser)
vivo. Nos ambientes altamente tecnologicizados e espetacularizados do ocidente, a
produção cultural está presentemente obcecada com a animação, com a vida.
Notícias imediatas, celulares, tecnologias de imagem, transmissões pela Web e
reality-shows televisivos precipitam-nos em experiências simultâneas, na natureza

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sentida dos eventos, aproximando-nos das “realidades” que veiculam. As


tecnologias dos meios de comunicação de massas cada vez mais aparecem para
desaparecer, para negar a distância e a estruturação em que se baseiam. As raízes
da tendência cultural ampla para a imediaticidade e interatividade estão
indubitavelmente na natureza extremamente atomística das sociedades ocidentais,
e na qualidade densamente mediada da experiência cultural nas mesmas. O
impulso para reunir tudo aquilo que agora está distante de nós pode consistir num
reconhecimento da nossa ligação e interdependência e numa forma de encontrar
novas realidades, mas pode também consistir no modo através do qual a “ameaça”
dessas realidades pode ser afastada, controlada e contida. A viragem da arte visual
para a imediaticidade e interatividade oferece um espaço reflexivo no qual se
podem questionar essas dinâmicas culturais, para encenar uma pesquisa perspicaz
daquilo que nos é próximo, querido e atual.
Este impulso para o vivo há muito que é a preocupação crítica da
performance e da Live Art, em que o evento incorporado foi empregue como força
geradora: para chocar, para destruir pertença, para quebrar tradições da
representação, para colocar o empírico em primeiro plano, para abrir diferentes
tipos de compromisso com o significado, para estimular o público. Este livro
versa sobre a vida dessas tradições no presente; sobre o “gênero” da performance
e Live Art; sobre o elemento vivo da arte contemporânea, a respectiva estética,
potencial filosófico e cultural. Live trata da performance em finais do século XX e
inícios do século XXI. Não é uma análise exaustiva, já que tal requereria um livro
com o triplo ou o quádruplo do tamanho deste. Em vez disso, procura destacar e
abordar alguns dos principais artistas, obras e afirmações atuais de Live Art,
explorar algumas das suas preocupações formais e temáticas recorrentes e colocar
algumas questões fundamentais sobre o fenômeno da animação, da vida na arte.
Como é que a Live Art se enquadra no ambiente contemporâneo da cultura e das
artes visuais? Quais são as linhas de correspondência entre a performance e a
prática de artes visuais mais abrangentes, entre essas áreas e a ampla ânsia cultural
pelo que é (ao) vivo? O que é que a presença desse impulso nos diz sobre as
condições da corporização, da identidade e do tecido social em inícios do século
XXI?
Live emerge de diversos eventos ao vivo, mas foi criado a partir de

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energias, diálogos e experiências performáticas intensas do evento Live Culture,


que ocorreu no Tate Modern em março de 2003, e cujos curadores fomos eu, Lois
Keidan e Daniel Brine. Muitas das excelentes fotografias, que ilustram estas
páginas, foram tiradas por Hugo Glendinning nas exibições desse evento. Os
ensaios, entrevistas e estratégias que dali surgiram, tal como todos os resquícios
de performance, transformaram substancialmente e prolongaram o evento, criando
algo completamente novo e diferente.
Um livro com tais perspectivas plurais e ambições diversas estava
condenado a ser um fracasso exemplar desde o início: uma só voz não conseguiria
abarcar nem condensar o âmbito das diferenças aqui reunidas. Abraçando esse
fracasso, gostaria de me delongar um pouco mais nesse espaço do esquecimento
(imediato, imersivo, interativo) para traçar algumas linhas recorrentes da prática e
do pensamento que, em parte, caracterizam a cena contemporânea da Live Art.
Esses pensamentos requerem uma revisão da dinâmica do tempo, espaço e
existência corporizada e da relação que tanto preocuparam a prática da arte da
performance. Dessa forma, abordarei sumariamente as áreas dos vários
contributos para este livro.

Tempo fora do tempo


Os choques causados à percepção, que são frequentemente propiciados
pelos artistas Live contemporâneos, similares aos de outros artistas visuais,
colocam o espectador em condições de imediaticidade em que a atenção se eleva,
a relação sensorial é carregada e o mecanismo do pensamento é agitado. A obra
de arte está viva. Parece, pois, que essas condições nos levam, enquanto
espectadores, a uma nova relação: para dentro do agora da representação, o
momento a momento do presente. Esse encontro com o tempo e no tempo tem
marcado a história da arte da performance desde os seus diversos inícios nas artes
visuais, no teatro e na prática social. As genealogias estéticas da performance
foram admiravelmente delineadas nas obras substantivas de RoseLee Goldberg;
linhas de desenvolvimento que ela cuidadosamente revê e atualiza no respectivo
contributo para este livro [1]. Desde os primórdios, nos movimentos modernistas
como o Futurismo, o Dadaísmo e o Situacionismo, pelo aparecimento através de
Happenings e da correspondência com o Minimalismo e a arte conceitual, a

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performance tem substituído ou qualificado, de forma coerente, o objeto material


como um ato temporal. O nascimento da performance dentro e por oposição à
forma dramática está igualmente enraizado num comprometimento com o tempo
da atuação e o respectivo potencial disruptivo em relação ao tempo ficcional ou
narrativo. Para aqueles artistas cujo investimento na performance emerge do ou
está direcionado para o estatuto enquanto ritual social, a capacidade de relacionar
tempos remotos com o presente, de deslizar para uma temporalidade limiar, é um
dos elementos mais vitais.

La Ribot, Panoramix. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia do artista e de Hugo Glendinning
Photograph © Hugo Glendinning

La Ribot, Panoramix. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia do artista e de Hugo Glendinning
Photograph © Hugo Glendinning

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La Ribot, Panoramix. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia do artista e de Hugo Glendinning
Photograph © Hugo Glendinning

A Live Art contemporânea recorre atualmente a várias formas diferentes


de experiências com o tempo: reduzindo as dinâmicas “conhecidas” e ensaiadas
da performance, abrindo-a à improvisação e ao acaso; empregando ações “em
espaço e tempo real”; banindo, rompendo ou urdindo a narrativa e o tempo
ficcional; agendando exibições para horas “impróprias”; criando obras cuja
duração é autônoma e ultrapassa a capacidade do espectador de lhes assistir;
apresentando a experiência da duração pelo corpo; apresentando a estética da
repetição que desfaz a fluidez e a progressão; e prolongando ou encurtando
radicalmente a duração para lá de toda e qualquer convenção existente. Muitas
vezes, essas táticas são combinadas entre si. Vejamos, por exemplo, Panoramix
(2003), a obra de dança-performance da artista La Ribot, documentada nesta
coleção. Trata-se de uma peça de longa duração que combina e repete, em
imagem-ação, de forma muito breve, as várias performances da artista nos últimos
dez anos. Separados dos tempos normais da programação da performance, os
trabalhos individuais que compõem Panoramix parecem demasiado fragmentários
e ligeiros para constituírem verdadeiramente performance, ao passo que a grande
obra, que os trabalhos juntos acabam por formar, parece ser demasiado
prolongada para ser suportada com um mínimo de conforto. Nesta combinação do
demasiado breve e demasiado longo, La Ribot informa os espectadores de que
estão sob o domínio de uma temporalidade impossível (fugaz e durável), um
tempo que não tem um tempo próprio. À medida que o espectador entra no espaço
sensório, denso e de progressão lenta dessa obra, o tempo ortodoxo do relógio
desliza para os campos imensuráveis do tempo sensorial. As coisas levam o seu

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tempo e o próprio tempo é exposto como um produto de corpos, sentidos e


percepções. Esse tempo, tal como é experienciado, não é o tempo normativo e
progressivo da cultura, mas um tempo sempre dividido e sujeito a diversos
(per)cursos e velocidades: um tempo saído do tempo.
As variegadas aplicações do tempo alterado na performance
contemporânea colocam, invariavelmente, a obra de arte na condição de ela não
passar de um evento. Quer surja do choque entre o tempo “real” e o “fictício”, de
um ferimento físico efetivo ou da densidade excessiva de eventos encenados, a
carga de atenção empregue por muitos artistas Live contemporâneos coloca o
espectador dentro do momento presente em que se cria e se destrói a significação
e o sentido. Essa condição é, amiúde, incontestavelmente instável e ambivalente,
pois embora a “presença” do artista ou do espectador no momento possa ser um
pré-requisito, a natureza transiente e elusiva dessa presença torna-se o tema da
obra. Como se costuma dizer: tinhas de lá ter estado! Porém, o “lá ter estado”, no
cerne das coisas, recorda-nos a impossibilidade de alguma vez se estar
completamente presente para o próprio, para os outros ou para o trabalho artístico.
A qualidade de ser um evento permite aos espectadores viverem um instante no
paradoxo de dois desejos impossíveis: estar presente no momento, saboreá-lo, e
guardar o momento, aquietar e preservar o seu poder mesmo muito depois de ser
passado. Essa é uma estratégia deliberada de muitos artistas da Live Art,
colocando a recepção da obra nas condições elusivas do real, em que a relação
entre a experiência e o pensamento pode ser testada e rearticulada. As diversas
obras-limite de Franko B são um exemplo. Recorrendo ao corpo cortado ou aberto
em determinadas exposições à duração, Franko apresenta eventos performáticos
simples com uma carga intensíssima, nos quais o ato de ferir é colocado dentro e
em oposição a contextos relacionais específicos. A sua assombrosa peça I Miss
You! de 2003, também aqui documentada, ocorre durante o breve lapso de tempo
de uma perda de sangue especificamente medida. O sangramento escorre ao longo
de um percurso repetitivo sobre uma tela disposta como uma passarela perante a
assistência. A abjeção de Franko, silenciosamente envolvente, o sangue vermelho
contra o branco, o derramamento mudo do seu interior sobre as superfícies diante
dos nossos olhos, faz com que dificilmente consigamos estar fora do evento. Na
servidão de eventos assim, como Tim Etchells astutamente afirmou, somos mais

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testemunhas do que espectadores, envolvidos num espaço vibrante entre a


experiência e o pensamento, lutando num presente carregado para acomodar e
resolver o imperativo de criar sentido(s) a partir daquilo que vemos. Nas palavras
de Henry M. Sayre, no ensaio que escreveu para a coleção sobre a natureza da
duração, esse tipo de obra de arte exige de nós que a refaçamos com a
imaginação.

Forced Entertainment, 12 AM: Awake & Looking Down. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia
dos artistas e de Hugo Glendinning Photograph © Hugo Glendinning

A ampla tendência da performance contemporânea para a imediaticidade,


presente não só nas práticas que têm por base os limites físicos, a resistência ou a
dor, permite aos artistas criarem obras cuja força viva é excessiva. A
incompreensão popular reduz, frequentemente, as forças estéticas e as
consequências culturais desses movimentos a uma noção genérica de “estratégia
do choque” que supõe uma fixação e um gosto superficial exatamente por aquele
momento do “trauma” de um espectador. Todavia, os interesses dos artistas Live
só muito raramente residem nesse pequeno pomo de dificuldade, pois residem
muito mais nas suas implicações e consequências, no curso complexo traçado pela
consciência até aos valores sociais e culturais, de fora. A performance no excesso
tende a evidenciar que o evento do respectivo encontro, como dizem os teóricos
do trauma, é constituído pelo colapso do seu entendimento. Assim, os artistas
conseguem criar fissuras ou buracos na percepção e na interpretação,
desestruturando o pensamento, fazendo com que os espectadores voltem
repetidamente à questão levantada e em aberto da enunciação da obra. Para
muitos artistas Live, essa é uma forma de criticar normas culturais, percepções
fixadas e valores sedimentados que pertencem ao corpo, à identidade e à

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sociedade. Expondo a criação das ideologias e crenças culturais no presente, estas


ficam marcadas como dependentes de uma época: ficam com a contingência e a
instabilidade abertas ao escrutínio. Veja-se, por exemplo, a obra de Forced
Entertainment, 12 AM: Awake & Looking Down, de 2003, com a duração de doze
horas, “capturada” nesta recolha, em que os performers pedalam, de forma
incansável, através de um catálogo aparentemente infinito de nomes, fatos,
posições e relações, presos numa tentativa condenada ao fracasso de encontrar
uma duração prolongada da identidade. Uma consequência desse trabalho, entre
muitas outras, está na exploração da nossa dependência psicológica e social, em
todas as suas ramificações, da denominação e da identidade: a busca de
estabilidades através das quais possamos ver a nós e aos outros e pelas quais
possamos reger a nossa vida.
Contudo, esses movimentos da performance não são apenas sobre a
sujeição do trabalho artístico às vicissitudes e encantos do tempo; muitas vezes
eles assumem o próprio tempo como tema da sua abordagem. Essas experiências
na performance e da performance consciencializam-nos de que o próprio tempo é
um produto de estruturas de pensamento, que as nossas percepções e
entendimentos sobre o tempo são uma construção cultural e, por isso mesmo,
estão sujeitas a revisões e alterações. Ao abordar e criticar as noções de tempo, a
performance consegue também enfraquecer estruturalmente algumas das
narrativas e forças culturais mais resistentes do nosso tempo: o progresso da dita
civilização, a acumulação de cultura. O escrutínio que a performance acarreta para
a temporalidade tem, pois, um significado vital nas culturas aceleradas do
capitalismo recente. Aqui o tempo tornou-se uma mercadoria extremamente
regulada: a celeridade é o valor primordial e tempo desperdiçado é dinheiro
perdido. Representando com frequência um gasto contemplativo e esbanjador do
tempo, a performance dá continuidade à sua longa disputa com as forças do
capital. Uma tática recorrente consiste em abrandar as coisas, examinar o gesto, a
relação, entendendo a produção não apenas enquanto processo, mas como
fenômeno muitíssimo mais lento. As obras “duracionais” da companhia de
performance Goat Island, de Chicago, são exemplo disso. Sua performances
elaboradas de fragmentos gestuais, textuais e sonoros são aqui documentadas
através de resquícios fílmicos e pelas reflexões poéticas da diretora Lin Hixson.

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Como as ausências e reescritas dos textos em palimpsesto dessa companhia


evidenciam, a sua estética de lentidão procura encenar uma forma alternativa de
prática comemorativa, tão atenta ao silenciado e esquecido como ao que pode ser
lembrado e, assim, reencenado.
Os movimentos de lentidão (slow) proporcionam uma oportunidade para
desabituar e desnaturalizar percepções do tempo, para des-ligar as exigências tão
predominante na cultura contemporânea de relações instantâneas entre arte e
significado, intenção e realização, desejo e cumprimento. Assim, a performance
pode reintroduzir maneiras de ser/estar e entendimentos menos apressados. Os
poderes que constroem conhecimentos e experiências sociais do tempo tentam,
inevitavelmente, esconder e naturalizar a sua força, para tornar invisível a sua
operação sobre as pessoas. A performance tornou-se um meio vital através do
qual se pode contestar a natureza e os valores desses poderes e aligeirar o domínio
controlador. Na atenção prestada às ordens do tempo e na subversão brincalhona
das mesmas, a performance abre portas a outras temporalidades: para o tempo
como é sentido no corpo, tempo não apenas como progressão e acumulação, mas
também como algo hesitante, não linear, multidimensional e multifacetado.

Deslocações
O fato de a performance privilegiar e analisar o tempo dentro da obra de
arte e da atenção que o espectador lhe dedica tem sido frequentemente
acompanhado por uma exploração da dinâmica do espaço. Embora os fenômenos
do espaço e do tempo sejam inseparáveis, o discurso em torno do espaço em
termos de forma, funcionamento e política tende a dominar na escrita crítica sobre
a performance, bem como na encenação e na estética. Nos contextos urbanos do
ocidente, o espaço público cedeu perante o espaço privatizado, onde o gregarismo
é condicionado por um individualismo dominante e a ação é rigorosamente
regulada e cuidadosamente observada. Cada vez são mais expostas a moldagem e
a contenção do espaço cultural através das operações de lugar. Graças à expansão
das novas tecnologias, emergiram novos lugares em campos virtuais, de tal forma
que a nossa experiência do espaço se situa atualmente entre a proximidade e a
distância, entre um espaço virtual expansivo e um real instável. Essas mudanças
no espaço e no lugar têm sido o contexto e o catalisador para a performance se

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tornar cada vez mais migratória, desafiando as forças que procuram estabelecê-la
num local, deixando os lares institucionais, levando um curso inquieto e errante
para outros lugares, outras esferas da arte e da vida, “situando-se” onde o ditem as
necessidades de expressão, relação e finanças. Nessa migração, a performance
tornou-se num meio com o qual se testam as bases e as fronteiras da identidade,
num meio para se colocar o mesmo em novas relações com os seus “exteriores” e
terceiros. Tendo saído de casa, a performance provou incansavelmente a sua
inigualável capacidade de gerar novas formas de relação, de colaboração e de
comunidade que negociam e atravessam divisões que, em outros tempos, já foram
sólidas.
Desde que os artistas de finais dos anos de 1960 e início dos anos de 1970
se apartaram das restrições associadas às galerias, dos predecessores imediatos,
para passarem a outros locais de prática criativa, a arte da performance tem-se
mantido coerentemente próxima de uma arte específica de determinado local na
investigação do assunto, da concepção e da percepção do espaço [2]. As contínuas
fugas dos artistas dos sítios institucionais de produção performática, sejam
galerias ou teatros, são um desafio à propriedade do local e àquilo que é operado
em quem o habita. O lugar, longe de ser neutro, é encarado por muitos artistas
Live como uma força que se que deve abrir e à qual se deve resistir. O lugar é aqui
o produto de determinadas ideologias ou bases racionais que ordenam a sua
arquitetura, práticas habituais, movimentos físicos e encontros sociais que
acontecem nesse lugar. Quer aconteça nas ruas, nos parques, em armazéns
abandonados, estações, hotéis, escolas, em locais de trabalho ou em espaços
domésticos, seja em contextos urbanos ou nesses lugares de “natureza”
denominados como “outros” relativamente aos urbanos, a performance é
frequentemente usada como um meio para testar e transformar o espaço.
Tomemos o exemplo das diversas obras, específicas de determinado local, da
performer britânica Bobby Baker, que examinam e articulam as gradações e
experiências da vida cotidiana. Baker mina a vida interior, as relações de objetos e
os micromundos de atividades, como cozinhar, ir às compras e cuidar dos filhos,
muitas vezes nos mesmos lugares onde acontecem essas experiências. Quer a sua
obra Kitchen Show (1991), realizada em sua própria casa, quer a apresentada neste
livro e mais recente, Box Story (2001), desenvolvida numa igreja, examinam e

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reestruturam atos rituais localizados e, ao fazê-lo, encenam transformações


temporárias desses lugares e das respectivas práticas associadas a eles. Cada vez
mais, os locais onde esse tipo de intervenção performática pode ocorrer não se
limitam a lugares materiais e podem, efetivamente, ser lugares de informação ou
de discurso. Veja-se, por exemplo, a discussão de Ricardo Dominguez sobre a
utilização que o Electronic Disturbance Theatre faz das táticas de performance e
da pirataria em locais da Web estatais oficiais para subverter o fluxo de
informação e, dessa forma, o poder estatal.
Desde obras de arte extremamente formais e empenhadas nas relações
estéticas entre corpos, movimento e arquitetura, até às agitações mais tensas da
arte ativista, a performance é utilizada como uma intervenção dentro do espaço
social e um meio de rearticular a sua constituição. Nesse jogo de corpos no
espaço, a performance é repetidamente uma inserção do impróprio ou do absurdo
num determinado lugar, e ocorre um certo realinhamento e ativação através dessa
intervenção, abrindo possibilidades antes invisíveis ou proibidas na realidade
social. Considere-se, por exemplo, The Disciples (2000), de Brian Catling, uma
série de atos rituais silenciosos realizados em vielas, sarjetas e soleiras de porta de
Londres e Cambridge com estranhos manequins quebrados: performances que
marcam e valoram a vida “marginal” que pulula nesses lugares. Conforme
Andrew Quick refere nestas páginas, na sua análise inicial do teatral enquanto
local, a performance tende a funcionar em termos de deslocação, subvertendo ou
usurpando lugares, desbloqueando a formação, questionando os pensamentos,
discursos e denominações pelos quais um local está solidamente constituído. A
performance encena uma transgressão sentida e interrogativa de fronteiras, um
processo de ruptura que coloca em questão as próprias oposições de que o local é
formado. Pensemos nas diversas incursões vitais no espaço público do performer
Alastair MacLennan, que revê as coordenadas e princípios do labor artístico de
toda a sua vida nestas páginas. As suas “atuações” (performance/instalações) são
intervenções que reordenam o espaço e a relação, muitas vezes interpondo
calmamente aquilo que foi violentamente excluído ou esquecido num lugar. Aqui,
como em muitos exemplos da Live Art contemporânea, pode revelar-se e desafiar-
se um conjunto de associações emocionais, psicológicas e políticas que se
agrupam em divisões espaciais: o presente e o ausente, o interior e o exterior, o

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privado e o público, o urbano e o selvagem, o refreado e o livre, o que é “nosso” e


o que é “deles”.
Nos espaços estabelecidos da cultura global, as noções de lugar e as
fronteiras que as constituem foram profundamente rompidas, desestabilizando as
identidades que tinham sido fundadas sobre a integridade das mesmas. À medida
que as fronteiras nacionais e culturais são abertas, encontram-se outras formas de
ser e de pensar, diferenças assimiladas, acomodadas ou, como frequentemente
acontece, agressivamente repelidas. A performance opera por meio de um sujeito
performativo que testa a sua relação com um lugar; assim, é o lugar de teste da
pertença. A performance permite que artistas e espectadores (tornados
inseparáveis um do outro) experienciem e pensem até que ponto uma determinada
identidade, ou a própria subjetividade, está ancorada num lugar físico ou nos
respectivos determinantes discursivos. E isso para questionar até que ponto pode
um sujeito afastar-se das amarras do lugar.

Mundos da carne
As trajetórias da performance e da Live Art em termos de experimentação
com tempo e espaço envolveram, necessariamente, a exploração, uso e
observação do corpo humano. Afastando-se da representação do sujeito humano
que se encontra na pintura e da representação que o artista faz de si nos
autorretratos, os artistas do século XX entraram progressivamente dentro da
moldura, usando os próprios corpos como lugares de experimentação e de
expressão. A emergência desse gesto através dos vários momentos do
modernismo foi traçada, a par da manifestação como gênero forte da Body Art de
finais dos anos de 1960 até aos nossos dias [3]. A correlação entre a arte da
performance e o corpo em movimento da dança, enraizada na estética minimalista
dos coreógrafos experimentais dos anos de 1960 e de 1970, mantém-se presente,
com práticas como as de Jérôme Bel e de La Ribot, aqui documentadas. Neste
volume, André Lepecki avalia, cuidadosamente, a relação da dança como
performance com noções históricas e filosóficas de movimento. A performance
contemporânea continua numa trajetória de incorporação, na qual o corpo do
artista, os respectivos adornos, ação e resíduos não são apenas o sujeito, mas
também o objeto material da arte. A entrada física do corpo do artista para a obra

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de arte é um gesto transgressor que confunde as distinções entre sujeito e objeto,


vida e arte: um movimento que desafia as propriedades assentes nessas divisões.
A performance explora o estatuto paradoxal do corpo enquanto arte: tratando-o
como objeto num campo de relações materiais com outros objetos e,
simultaneamente, questionando a sua objetificação através da representação do
corpo como ruptura ou resistência à paralisação e fixidez. A entrada do corpo na
moldura garante que a exploração que o artista faz dos significados e ressonâncias
da corporização contemporânea será recebida em (e através de) uma relação
intersubjetiva fenomenal.

Marina Abramović, The House with the Ocean View. Performance. Sean Kelly Gallery, Nova
York, 2002. Fotografia de Steven P. Harris

O uso do corpo do artista levou a que se questionasse a relação entre o

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próprio e o outro. Para artistas como Marina Abramović, aqui entrevistada, cuja
prática, desde a década de 1970, tem estado na primeira linha na performance
dentro da esfera das artes visuais, isso tem significado uma investigação
elementar da dinâmica psicológica e somática da relação humana íntima e, mais
recentemente, a exploração dessa relação através da “divisão” performer-
espetador. A divisão é precisamente aquilo que a performance põe em questão,
interrogando o contrato, frequentemente não verbalizado, que existe entre as duas
partes e as noções éticas, morais e políticas nas quais ele se baseia. Esta cena
incorporada da relação, como evidencia a discussão de Peggy Phelan sobre a mais
recente obra de Abramović, The House with the Ocean View (2003), é uma zona
de trocas imprevisíveis onde se põem em risco sentidos, emoções e intelecto. A
obra de Abramović, como a de artistas como Ron Athey (também aqui
documentado), cujas performances incluem atos de penetração, perfuração e
escarificação, tem envolvido repetidamente riscos físicos e respectivas
ressonâncias internas, nas consciências, e externas, na esfera político-cultural.
Esse tipo de investigação evoca as relações de poder entre o próprio e o outro e,
em consequência, as dinâmicas do prazer e da dor, do desejo e da repulsa, do
amor e do ódio que perpassa essa relação. O corpo do artista é des-naturalizado e
usado como objeto mutável nessas intensas experiências performáticas. Os
limites, ações e aspeto são muitas vezes manipulados e transformados
energicamente para refletir as forças violentas em jogo na relação incorporada.
Amelia Jones, que escreveu proficuamente sobre a história da Body Art e
respectiva investigação sobre a formação da subjetividade e da relação, encontra
espaço nestas páginas para articular um conjunto de “movimentos” temáticos de
fleshworks (obras da carne) na prática performática contemporânea. Para Jones, o
uso que o artista faz do corpo como matéria artística pode ser encarado através do
jogo de relações entre a superfície e a profundidade, a pele e a carne, a imagem e
a matéria, a consciência e a experiência corpórea, o exterior e o interior. Amelia
Jones vê nessas mutações radicais dos campos fenomenais da relação entre artista
e espectador, a capacidade de reorganizar as histórias do pensamento,
coordenadas do poder e sistemas de representação que moldam o sexo, o gênero e
a etnicidade. A relação entre materialidade e discurso, restrição e liberdade,
sujeição e ação, que forma uma parte das análises que os artistas fazem do lugar, é

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ainda mais flagrantemente evidente nessas explorações ao vivo da existência


encarnada. Essas questões emergem, não só por se quebrarem barreiras do corpo,
como também na própria apresentação em condições extremas. Vejam-se, a título
de exemplo, as performances de resistência de rua de um artista como William
Pope.L, que também colabora conosco, cujo trabalho testa os limites tão reais às
oportunidades dos que nasceram num corpo negro na América contemporânea.

Guillermo Gómez-Peña & La Pocha Nostra e Manuel Vason, Collaboration#5, Liverpool, 2002

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O corpo performativo é muitas vezes apresentado como um lugar de


contestação entre duas dinâmicas opostas: como recipiente passivo para ser
inscrito por instituições sociais, por discursos culturais, ideologias e por ordens de
poder, e como agente ativo através do qual a identidade e a relação social podem
ser testadas, rearticuladas e refeitas. Essa dinâmica paradoxal ecoa através das
diversas discussões dos poderes políticos dos corpos performativos encontrados
nestas páginas. O eco sente-se, por exemplo, na resposta poética de Matthew
Goulish ao trabalho de Jones, Athey e Oron Catts, aqui reunido, no reiterar da
noção de que a sujeição é um lugar de ação através do qual pode acontecer a
transformação. Encontra (con)figuração na invocação de Jean Fisher do performer
como embusteiro. Perpassa a discussão de Guillermo Gómez-Peña acerca do
organismo radical da arte da performance em relação aos estereótipos culturais e
projeções de alteridade étnica à larga nos meios dominantes da cultura ocidental
da atualidade. Através de recombinações jocosas, ainda que interrogativas, de
imagens populares de “outras etnias”, Gómez-Peña tenta subverter as lógicas
culturais que tornam os outros alvos de fetiches, seres exóticos, marginalizados e
desprezíveis. O discurso de Gómez-Peña a esse respeito e a documentação da sua
prática performática e da dos seus colaboradores do La Pocha Nostra revelam
uma consciência quer das capacidades transformadoras da performance
corporizada quer dos meios através dos quais esses atos podem ser rapidamente
recuperados dentro das economias incansáveis da objetificação, da representação
e do consumismo que caracterizam o ocidente.
O desenvolvimento tecnológico causou igualmente um profundo impacto
no estatuto, na imagem e na concepção do corpo na cultura contemporânea.
Também esse é cada vez mais analisado e aberto pelas tecnologias, tornando-se
um lugar cuja construção na cultura e através da cultura está evidentemente em
questão. Como o meio cultural das últimas sociedades capitalistas ocidentais é
cada vez mais densamente mediado e irreal, pode parecer que o corpo se oferece
como último reduto onde se pode encontrar e sentir o real. Mas embora elementar,
este “corpo real” é muitas vezes o próprio tema tratado na performance. Alguns
artistas Live, como Stelarc, cujo uso de próteses e extensões virtuais do seu ser
corpóreo está aqui registrado e abordado, questionam a validade e a integridade
do interesse cultural resiliente no “corpo real”, anunciando, em vez disso, a

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“obsolescência” iminente do mesmo. A Live Art, com o seu historial de testar


limites físicos e psicológicos, com o enfoque persistente sobre o corpo
performativo, oferece-se como um lugar primordial onde se podem desenrolar os
impulsos da cultura mais abrangente com vista à integridade e dissolução
corpóreas. Nesse lugar somático de testes, a performance apresenta e interroga as
transformações do material basilar e dos significados fundacionais da existência
carnal.

Vida elementar
A investigação da matéria da vida, o seu desmantelamento e apresentação
em nudez, na performance e na Live Art, não se limitam ao corpo humano e ao ser
humano. Os artistas Live há muito que utilizam corpos de animais, vivos e mortos,
para questionar os limites definitivos da cultura e da natureza, do humano e do
animal. O performer russo Oleg Kulik, cuja imagem embeleza a capa deste livro,
tem estado na primeira linha dessa interrogação. Kulik é sobretudo conhecido
pelas suas performances irrefreadas como cão. Essas performances fazem parte da
série Zoophrenia, na qual ele declara que temos de renunciar ao antropocentrismo,
à linguagem da cultura humana, e comungar com a natureza animal, de forma a
reanalisar os valores da arte, da cultura e do intercâmbio humano. A representação
que Kulik faz do cão leva o mimetismo a um limite excessivo; aqui as polaridades
de cão-homem parecem oscilar, colidir e colapsar. É interessante notar a diferença
entre esse trabalho e o agora famoso encontro de Joseph Beuys com um coiote,
que Kulik claramente referencia, I Like America and America Likes Me (1974), e
nessa diferença há um jogo entre os polos separados do humano e do animal.
Outro tipo de ser indeterminado surge nas performances de Kulik como cão, em
que os espectadores começam a encontrar o animal dentro do humano e vice-
versa, pelo que está em questão a respectiva diferença fundacional. Para lá de um
espetáculo de abjeção, as performances do cão são um encontro, um tombo, uma
apresentação do ser em estado alterado a ponto de se tornar um animal e nessas
performances se sentem subitamente as implicações dos perigos e possibilidades.

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Oleg Kulik, Armadillo for Your Show. Tate Modern, Londres, 2003. Cortesia do artista e de Hugo
Glendinning Photograph © Hugo Glendinning

Esses gestos nos limites do ser humano aumentam o interesse da


performance não no que é essencialmente humano, mas na sua constituição
elementar. Na obra Armadillo for Your Show (2003), registrada nesta coleção,
Kulik girou lentamente durante mais de uma hora como uma estrutura humana de

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espelhos suspensa em altura no espaço Turbine Hall do Tate Modern,


acompanhado por uma mistura eclética de música arrebatadora. Parte pássaro,
parte humano, parte estátua, girando e parado, hirto e relaxado, vendo e sendo
visto, sendo visto para ver, é uma imagem em ação que não é um objeto mas um
gesto realizado no jogo entre o material e o imaterial, entre a absorção e a
emanação da luz. Houve aqui uma poderosa invocação do encontro cara a cara
com a alteridade que a performance frequentemente encena, e da força imperativa
do elementar que lhe acontece no interior. Embora seja possível ler essa obra em
relação com a política da cultura popular, com o mercado da arte, com a figura e
com a autoridade do artista, é mais importante dizer que há uma abertura
irredutível nessa obra através do elementar, do animal e do humano, do natural e
do cultural. O que Kulik apresenta é uma abertura sensacional para outra forma de
ser: abjeta, liminar, sem identidade. O despertar do humano-animal é uma
recordação inevitável da proximidade da rasura, da precariedade da vida.
Esse jogo com o elementar é também evidente nos espetáculos
intensamente teatrais do realizador Romeo Castellucci, cujo trabalho também aqui
está documentado. Com a sua companhia, a Societas Raffaello Sanzio, Castellucci
encenou em várias cidades europeias uma série de obras de grande escala,
específicas em cada país. A simples apresentação feita por Castellucci dos corpos
dos intervenientes na performance, corpos marcados pela abjeção e alteridade
(feridos, anoréxicos ou contorcidos), é nivelada pelo seu interesse na presença
humana de extremos etários e na vida de animais no palco. Embora cada um seja
figurado dentro das estruturas complexas do espetáculo e da narrativa, Castellucci
volta repetidamente aos afetos elementares do velho, da criança e do animal, às
questões que a presença destes coloca com relação aos limites definitivos da
humanidade e relativamente aos corpos mortais a que essas noções estão
associadas. Nas palavras de Alan Read, nas notas de encerramento sobre a “vida a
nu” que estão presentes neste livro, essas aberturas estéticas inauguram questões
biopolíticas, interrogando a designação e o significado do sacrifício, desfazendo a
lógica pela qual as autoridades culturais colocam certos corpos em condições de
exceção e exclusão do que é humano.
O encontro da Live Art com as novas tecnologias e o interesse pelos
limites da existência corpórea também colocaram sob uma observação mais

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cuidada os fatos e significados da vida biológica. Neste trabalho, pioneiro na


pesquisa artística e, por vezes, até científica, a Live Art enfrenta alguns dos
problemas morais e políticos mais difíceis de inícios do século XXI. A obra de
Oron Catts com o Tissue Culture & Art Project, que o próprio aqui aborda,
desafia valores e percepções fundamentais em torno da função social da arte e da
ciência e começa a dar os primeiros passos no empenho crescente da Live Art nas
questões da biopolítica. O desenvolvimento de “obras de arte semivivas”
(esculturas de tecido vivo criado fora do corpo) representa uma perturbação
complexa e até então pouco teorizada de alguns princípios fundamentais do
humanismo: o entendimento do ser como integral, indivisível e unitário e a
respectiva separação ontológica de outras formas de vida, particularmente da vida
animal. A aliança histórica entre as biologias experimentais e os projetos
eugênicos fascistas, e a recente prossecução politicamente motivada de membros
do Critical Art Ensemble, cuja prática performática e artística (como a de Catts)
encena uma investigação radical das implicações das biotecnologias, deveriam
alertar-nos para os potenciais políticos profundamente divergentes dessas
experiências na fronteira da arte e da ciência. Embora a história seja longa, o
questionamento artístico ao vivo da vida elementar ainda acabou de começar.
Esses gestos, que perpassam a performance e a Live Art, as contínuas
obsessões com o tempo, com o espaço e com a existência e a relação incorporada,
apontam para algumas ligações estéticas, filosóficas e políticas entre os diversos
contributos artísticos e críticos aqui reunidos. A lógica desta reunião e o âmbito
do seu alvo ultrapassam em muito os limites simples do discurso. Por isso, espero
que este livro seja quase como um evento. Vale sempre a pena reiterar, nas
palavras introdutórias e nas finais, como as fotografias de performance ficcional
de Hayley Newman aqui reunidas nos recordam, que o documento da
performance é uma nova versão criativa, um remake, cujo referente se mantém
ausente, com insistência [4]. Os pensamentos e as palavras aqui compilados, à
semelhança das reveladoras fotografias de performance de autoria de Hugo
Glendinning, ambos acertam e falham no que diz respeito aos momentos ao vivo
que tentam capturar, mas, ao fazê-lo, permanece algo, da vida deles e do (ser/
estar) vivo.

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Notas
[1] Vd. RoseLee Goldberg, “Performance: Live Art Since 1960“, Nova Iorque,
1998; RoseLee Goldberg, “Performance Art: From Futurism to the Present“, Londres, 1979 (com
tradução brasileira: “A Arte da Performance – Do futurismo ao presente“, São Paulo, Martins
Fontes, 2006); Vd. também Paul Schimmel (ed.), “Out of Actions: Between Performance and the
Object 1949-1979“, Londres, 1998.
[2] Eis os textos fundamentais sobre essa relação: Carter Ratcliff, “Out of the Box: The
Reinvention of Art 1965-1975“, Nova York, Allworth Press: School of Visual Arts, 2000; Miwon
Kwon, “One Place After Another Site-Specific Art and Locational Identity“, Cambridge,
Massachusetts, MIT Press, 2002; Nick Kaye, “Site-Specific Art: Performance, Place and
Documentation“, Londres, Routledge, 2000; Mike Pearson e Michael Shanks,
“Theatre/Archaeology“, Londres/Nova York, Routledge, 2001.
[3] Os principais textos aqui são: Lea Virgine, “Body Art and Performance: The Body as
Language“, Milão, Skira, 2000; Amelia Jones, “Body Art: Performing the Subject“, Mineápolis,
University Minnesota Press, 1998; Tracey Warr (ed.), “The Artist’s Body” [com um contributo de
Amelia Jones], Londres, Phaidon, 2000; Kathy O’Dell, “Contract with the Skin: Masochism,
Performance Art and the 1970s“, Mineápolis, University Minnesota Press, 1998; Francesca Alfano
Miglietti, “Extreme Bodies: The Use and Abuse of the Body in Art“, Milão/Londres,
Skira/Thames & Hudson, 2003.
[4] Para mais textos sobre estratégias críticas, documentais e criativas a respeito dessa
ausência, conferir: Peggy Phelan, “Unmarked: The Politics of Performance“, Nova Iorque,
Routledge, 1992; Adrian Heathfield, Fiona Templeton e Andrew Quick (eds.), “Shattered
Anatomies: Traces of the Body in Performance“, Bristol, Arnolfini Live, 1997; Tim Etchells,
“Certain Fragments: Contemporary Performance and Forced Entertainment“, Londres, Routledge,
1999; Matthew Goulish, “39 Microlectures: in Proximity of Performance“, Londres, Routledge,
2000.

Tradução de Susana Canhoto e Adrian Heathfield


Revisão de Marcio Honorio de Godoy
© 2014 eRevista Performatus e o autor

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