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Hierarquias brasileiras: A abolição da escravatura e as teorias do racismo científico.

Hilton Costa1

A escravidão esteve presente desde o início da ocupação lusitana na América.


Primeiramente, as populações nativas foram submetidas a este regime e posteriormente (por
motivos que não cabem ao escopo deste texto) se deu uma sendo gradual substituição pelos
povos africanos. A instituição escravista foi um dos alicerces ao estabelecimento dos
portugueses na América, bem como à manutenção do Império do Brasil. A sociedade da
colônia lusitana e a do Brasil imperial eram hierarquizadas, mesmo que em última instância
sua base organizacional residisse no princípio da igualdade. E em ambos os períodos, as
hierarquias postas possuíam um marco fundamental, uma instituição central à organização da
visão de mundo dos indivíduos nestes contextos – a escravidão.
A partir desta reflexão e se mantendo uma visão ampliada de hierarquia, avançando
para além da idéia de dominação de um grupo sobre outros, caminhando para noções de
interdependência e, sobretudo, da hierarquia como organizadora da percepção de mundo. E é
isso que nos interessa aqui, sua contribuição à construção da visão de mundo dos indivíduos.
Ou seja, a interferência, substancial da hierarquia na forma como os indivíduos constroem a
sua própria imagem, do mundo a sua volta, da sua atuação neste mundo, em suma como ela
age na forma de se ler e interagir com o mundo.
Desta feita, a transição de espaço submetido à Coroa Lusitana para a condição de país
independente não alterou em praticamente nada a situação. O Império do Brasil continuou
preso às mesmas amarras escravistas de outrora, ainda que o debate antiescravista já estivesse
presente no contexto da emancipação do país, a primeira lei antiescravista só apareceu em
1831. “A Lei de 7 novembro de 1831, que proibiu o tráfico de escravos com a África,

1
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, NEAB, UFPR.

1
considerou livres todos os africanos desembarcados no Brasil depois dessa data, ficando o
Governo a repatriá-los.”2 Entretanto, essa lei permaneceu letra morta durante muito tempo,
mesmo com a regulamentação de 1835. A situação começa a apresentar sinais de alteração na
década seguinte, com a aprovação em 1845, pelo parlamento inglês da lei conhecida como
Bill Aberdeen autorizando, a esquadra britânica a apresar navios negreiros e prender seus
tripulantes como piratas.3 Esta legislação, agregada à intensa pressão diplomática, forçou o
Império do Brasil a ceder. Sob protestos da sociedade local, em 1850 é aprovada a Lei
Eusébio de Queirós, que vinha a reafirmar a lei de 1831 e a regulamentação de 1835 na
proibição do tráfico internacional de escravos. E dessa vez a decisão estatal não ficou apenas
na letra, pois já no ano seguinte à sua aprovação houve uma queda acentuada na entrada de
escravos no Brasil.4 Todavia, uma outra lei aprovada no ano de 1850 é tão ou mais importante
que essa no que diz respeito a ordenamento social brasileiro – a lei de terras. Esta asseverava
que a posse das terras devolutas só se daria mediante a compra essa lei a princípio não tem
relação direta com questões raciais. Porém, como a lei de terras privilegiava setores
proprietários em detrimento dos não proprietários, subsidiando o fim da prática da posse das
terras devolutas. Assim, ao mesmo tempo em que se proíbe o tráfico internacional de escravos
(um sinal da possibilidade do fim da escravidão) já se fixa uma outra lei direcionada a manter
determinados padrões hierárquicos de relacionamento. Pois, numa sociedade agrária, a posse
da terra é condição fundamental à entrada no mundo dos iguais.
Se a Lei Eusébio de Queirós foi um momento relevante no processo de extinção da
escravidão brasileira, na década seguinte encontra-se outro, ainda mais significativo – a
Guerra do Paraguai, 1865-70. Entre outros fatores, a Guerra foi um marco em função da
posição adotada pelo Exército Imperial após a contenda, de não mais atuar, efetivamente,
como força mantenedora do regime escravista. A perseguição de escravos fugidos, a prisão e
à repressão a escravos revoltosos são funções que começam a ser renegadas pelo Exército
Imperial. Com tal atitude uma parte essencial do aparelho de Estado afirma nas entrelinhas,
não reconhecer mais legitimidade na escravidão. Além disso, outro ponto fundamental
desvelado mais claramente neste conflito é a crise hierárquica presente na essência da
sociedade imperial brasileira. Se não há como negar a existência de uma legislação que
“protegia” o escravo, concedia a ele alguns “direitos”, ainda assim ele continuava a ser por

2
MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
p.18.
3
Cabe notar que muitos navios em vias de serem apreendido jogavam sua “carga” ao mar para eliminar a “prova” do crime.
4
Estimativas dão conta que em 1849 entraram oficialmente cerca de 54.000 escravos no Brasil no seguinte aproximadamente
a metade disso e em 1852 bem menos da metade.

2
definição, um não cidadão, um não-membro da sociedade dos iguais. A presença de escravos
no Exército Imperial durante a Guerra borra a fronteira entre as atividades próprias para
pessoas livres e para as escravizadas - a atividade militar exemplifica isso.5 Sinal de um
regime escravista em desagregação.
No período da Guerra do Paraguai e, principalmente, no pós-guerra, entra em cena um
outro elemento, em parte conseqüência da campanha internacional contra tráfico de escravos e
da lei que proibia o tráfico internacional - um aumento considerável no preço dos escravos. E
a procura se mantinha, em função da demanda por sua mão-de-obra para sustentar a expansão
cafeeira no sudeste. O escravo, outrora relativamente abundante, agora se apresenta escasso e
caro, logo, acessível a número mais reduzido de pessoas. Tal situação também colabora no
processo de perda de legitimidade da instituição escravista no Brasil. Com o término da
Guerra do Paraguai, as forças contrárias à escravidão organizam-se em várias frentes, umas
formadas por ilustres membros da sociedade outras, provavelmente mais numerosas,
constituídas por inúmeras organizações, praticamente, anônimas que promoviam inúmeras
ações em prol do fim da escravidão. Havia, naturalmente, a ação de um ator extremamente
relevante no processo extinção da escravidão: o próprio escravo e/ou ex-escravo pressionando
a sociedade envolvente para atender suas demandas.
Todas essas transformações são golpes duros à manutenção do regime. Na década de
1870, o fim da escravidão em terras brasileiras é mais do que nunca uma questão de tempo,
para muitos ela já estaria passando por uma espécie de sobrevida, sobrevida que vai durar até
o ano de 1888. Mas, é sobremaneira interessante notar que nesta mesma década, de 1870,
chega ao Brasil uma nova base teórica para se interpretar a realidade, nas palavras de João
Cruz Costa Um Bando de Idéias Novas.6 Elas trazem consigo todo um jargão cientificista,
evolucionista, determinista, positivista e também as proposições referentes ao racismo
científico. Tais proposições estavam em voga na Europa desde fins do século XVIII e
princípios do século XIX, e a elite letrada brasileira mostrava-se sempre muito bem articulada
com a produção intelectual européia. As idéias circulavam muito rapidamente, mas é
necessário distinguir circulação e fixação, entre um e outro existe uma distância considerável.
Como explicar, portanto, a fixação do racismo científico entre nossas elites letradas apenas
em fins do XIX e início do século XX, se muito provavelmente ele já era um velho conhecido
dos intelectuais locais? Uma possibilidade interpretativa para esta disparidade temporal

5
Dentre as obras que destacam a importância da Guerra do Paraguai para a crise do escravismo brasileiro destacamos a de:
SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco, raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro : Paz e Terra,
1976.
6
COSTA, João Cruz. Contribuição à História das idéias no Brasil. 2.ª ed.. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1967

3
enfatiza a coincidência entre a proximidade da abolição e a entrada/fixação do racismo
científico no Brasil. Esta é a hipótese aqui sugerida, que pretende relacionar o advento da
equiparação jurídica entre as pessoas com disseminação de uma série de idéias de cunho
hierárquico baseadas na desigualdade racial.

***
A Princesa Isabel Regente em nome de Sua Majestade o Imperador D. Pedro II faz saber a todos os
súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e Ela sancionou a Lei seguinte:
Art. 1.º - É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.
Art. 2.º - Revogam-se as disposições em contrário.
Manda, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer,
que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém.
O Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e Interino dos
Negócios Estrangeiros, Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de Sua Majestade o
Imperador, o faça publicar e correr.
Dado no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888.
- 67º da Independência e do Império.7

O decreto imperial supracitado já gerou e continua a gerar inúmeros debates. Neles ele
é ora motivo de louvação, ora de defenestração. Aqui, a recuperação do decreto imperial de
13 de maio de 1888 pretende enfatizar sua significação como marco histórico. Marco de um
novo ordenamento social, uma vez que até esta data a sociedade brasileira tinha a escravidão
como ponto central a sua organização. Ou seja, havia uma desigualdade básica, reconhecida
juridicamente, entre livres e escravos, mesmo a sociedade se pensando pautada, em última
instância pela igualdade. O que diz respeito, uma vez mais, à questão da igualdade para os
iguais, uma hierarquização básica organizadora da visão de mundo dos indivíduos. E é
justamente este universo que o decreto vai abalar, pois a equiparação jurídica entre todos os
indivíduos amplia substancialmente o mundo dos iguais, altera e rompe a hierarquização
básica formadora da concepção de mundo dos sujeitos. Todavia, a conformação de uma visão
de mundo socialmente aceita exige um processo mais longo do que aquele necessário ao
estabelecimento de um decreto. A concepção de mundo vigente apresenta dificuldades em
aceitar os novos iguais em seu mundo.
Desta feita, uma das formas de pensar a coincidência entre a proximidade da abolição,
da equiparação jurídica das pessoas, e a entrada do racismo científico no Brasil pode estar na
necessidade de demarcar posições na sociedade, ou seja, manter uma dada hierarquia sem
exigir a construção de uma legislação específica. O discurso do racismo científico diluído e
absorvido pela sociedade brasileira funcionaria como um novo marco à construção de uma

7
Apud. MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo,
2004. p. 15.

4
visão de mundo, ou melhor, para a manutenção de uma, a mesma vigente à época da
escravidão. Trata-se de uma apropriação intelectual capaz de possibilitar a perpetuação de
uma visão de mundo que condiciona tanto as populações brancas quanto as negras de um
ordenamento social onde estas e sua descendência deveriam (ou só poderiam) ocupar posições
subalternas. Substancia esta argumentação a produção do letrado brasileiro que mais se
aproximou do racismo científico em fins século XIX e principio do século XX, Raymundo
Nina Rodrigues, 1862-1906. A obra do médico maranhense, radicado na Bahia, busca
demonstrar a inferioridade das raças negra e amarela, segundo os pressupostos da ciência da
época, indicando então a sua inaptidão dessas pessoas uma série de atividades, como, por
exemplo, a capacidade de desenvolver uma civilização. Não obstante, ele destaca que caberia
ao brasileiro previdente, em primeiro lugar reconhecer, que o povo brasileiro se ergueu sobre
os negros puros ou miscigenados e depois buscar localizar o quanto isso representaria de
atraso para a nação. Argumenta ele que a presença negra no Brasil funcionará
permanentemente como uma espécie de limitador das capacidades civilizatórias do país. Nina
Rodrigues não refuta, todavia, o principio da perfectibilidade racial como um todo, pois
haveria a possibilidade de melhora, ainda que limitada. Tal limitação seria proveniente da
miscigenação, pois o autor considera a presença dos tipos mestiços pior do que a negra.8
A refutação dos tipos mestiços por parte de Nina Rodrigues o distância de outro
importante letrado da época, Silvio Romero, 1851-1914, uma vez que este acreditava no
mestiço como a genuína formação racial brasileira.9 Para Romero, o mestiço seria a grande
marca de originalidade do Brasil perante o mundo, diferenciando a nação brasileira das
demais, e este tipo racial teria plenas capacidades de alcançar a civilização. O letrado
sergipano faz uma interessante combinação entre determinismo biológico e geográfico, com o
darwinismo, na qual o mestiço brasileiro, em especial o formado do encontro de tipos brancos
e negros, seria o tipo ideal para o clima tropical, devido a sua capacidade adaptação. Por outro
lado, inspirado pela teoria da sobrevivência do mais apto, ele concebe que no processo de
miscigenação os caracteres brancos deveriam predominar, assim, o mestiço preconizado por
Romero seria, numa linguagem contemporânea, o de fenótipo branco.10
O debate em torno da miscigenação estava presente em praticamente todo o universo
letrado brasileiro, - o número de trabalhos publicados a respeito do tema foi enorme. Dentre

8
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. 7.ª ed.. São Paulo : Editora Nacional ; Brasília : Ed. da
Universidade de Brasília, 1988.
9
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira, tomo I. org de Luiz Antonio Barreto. Rio de Janeiro : Imago ed.;
Aracaju, SE : Universidade Federal de Sergipe, 2001. p. 101.
10
Idem. p. 176.

5
este vasto escopo de referências, será destacado aqui apenas mais um letrado, Euclides da
Cunha, 1866-1909. Em sua obra máxima, Os sertões, 1898-1902, Euclides demonstra em
vários momentos, como nos indica a Mariza Corrêa, uma grande aproximação às teses de
Nina Rodrigues, sua crítica aos “mulatos neurastênicos do litoral” pode ser reveladora deste
fato ou ainda quando o engenheiro-literato esforça-se para negar a presença negra no povoado
de Canudos, ao mesmo tempo postula o sertanejo como mestiço prestes a formar um novo
tipo, uma nova raça.11 Neste ponto evidencia-se, de modo análogo ao que fez Romero, uma
interessante diálogo entre determinismo geográfico e biológico com a teoria darwiniana da
hibridação.
O período em questão e os letrados nele inseridos buscavam construir uma
determinada identidade nacional, um rosto para o brasileiro, e demonstrar as possibilidades de
progresso desse brasileiro, de acordo com os valores considerados científicos à época, assim
eles não concebiam como problema refutar os mestiços em alguns momentos, em outros notar
os mestiços como limitados, responsabilizar a população de origem africana pelo suposto
atraso do Brasil. Toda essa discussão se fará presente no parlamento imperial e depois no
republicano, figurará nas Gazetas, nas Escolas e finalmente tomará conta do senso comum12,
sendo aí interiorizada pelos atores sociais, tanto os supostamente superiores quanto os
inferiores, que passam a incorporar os papéis sociais em função da ampla divulgação e
diluição dos valores do racismo científico. E aí novamente é pertinente recorrer à obra de
Mariza Corrêa, pois para ela:

(...) não parece ter sido apenas pela persuasão ideológica, apoiada em relações de favor entre as raças
que os negros e seus descendentes foram socialmente excluídos da participação de vários setores da
vida pública brasileira, mas também pela manutenção de uma política autoritária em cuja definição a
presença da discriminação não pode ser esquecida. Essa exclusão parece ter sido também o resultado de
uma atuação coerente, apoiada por um racismo ‘científico’, que legitimou iniciativas políticas seja no
nível nacional - como no caso dos privilégios concedidos à imigração que tiveram como conseqüência
uma entrada maciça de brancos no país – seja em nível regional, como políticas específicas de repressão
das atividades religiosas ou culturais dos negros. (...) Se não foi explicitado em leis civis
discriminatórias, como a segregação racial norte-americana, o racismo enquanto crença na
superioridade de determinada raça e na inferioridade de outras, teve larga vigência entre os nosso
intelectuais no período do final do século passado [século XIX] e início deste [século XX], sendo o
ponto central de suas análises a respeito de nossa definição como povo e nação.13

11
CUNHA, Euclides. Os Sertões: campanha de Canudos. 39.ª. Rio de Janeiro : Livraria Francisco Alves Editora, 1997.
12
NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Qual a condição social dos negros no Brasil depois do fim da escravidão? – O pós-
abolição no ensino de História. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade (org.). A República e a Questão do Negro no
Brasil. Rio de Janeiro : Museu da República, 2005. p 11-26.
SCHWARCZ, Lilia Moritiz. Retrato em Branco e Preto
13
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2.ª. Bragança Paulista
: Editora da Universidade São Francisco, 2001. 43

6
Em assim sendo, de fato não há necessidade de uma legislação especifica, tradicional,
codificada de cunho segregacionista, pois a atuação do racismo científico criou um outro tipo
de legislação mais densa, mais coesa e difícil de ser modificada que é aquela internalizada
pelos sujeitos e tida como natural. Como foi dito em algum momento da História do Brasil:
“aqui não tem dessas coisas de racismo, porque o preto sabe o seu lugar”. A internalização
desta máxima, tanto pelos indivíduos, tidos como superiores, os brancos, quanto pelos
supostamente inferiores, os negros/mestiços, resultam na naturalização de um padrão de
relações sociais que também é um balizador da ação social, e por isso um componente
essencial para a construção da visão de mundo de ambos os grupos. O racismo científico re-
afirma, a seu modo, a visão de mundo do período escravocrata. A ausência da alma é
substituída pela inferioridade biológica e a re-afirmação desta visão de mundo é também a re-
interação de um padrão hierárquico. E este padrão é em muitos momentos um jogo puro e
simples de dominação de um grupo sobre outro, e ele é por vezes um jogo mais sutil e velado
onde cada um sabe até onde se pode ir, “cada um sabe o seu lugar”, admitindo a hierarquia e
se localizando e atuando através dela, conseguindo, em muitos casos avançar para além
daquilo que seria “originalmente permitido”. Com efeito, esse tipo de “trânsito” entre
posições estabelecidas reforça a idéia de a essência da sociedade ser igualitária, pois se um
indivíduo conseguiu ultrapassar as barreiras existentes outros também podem fazê-lo.
As marcas do racismo científico na construção de uma visão de mundo da sociedade
brasileira são substanciais, não só por re-interar os padrões sociais advindos do período
escravista no momento pós-escravista, mas também por de fato modificar a paisagem humana
do Brasil. Se não conseguiram, por um lado, construir um rosto para o brasileiro com a
homogeneidade desejada, por exemplo, por Euclides da Cunha, quando este reclamava da
falta de unidade racial do povo brasileiro14, por outro ajudaram a fornecer ao país a maioria
branca tão almejada. Pois, se há uma marca nítida e extremamente visível do racismo
científico no Brasil é a política de imigração adotada pelo país em fins do século XIX e
princípios do século XX. Esta política visava nitidamente à vinda de norte-europeus e vetava
com todas as forças a vinda de colonos negros e amarelos.15 E, nessa direção observar a

14
“Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca.” In: CUNHA, Euclides. Os Sertões: campanha de Canudos.
39.ª. Rio de Janeiro : Livraria Francisco Alves Editora, 1997. p. 84.
15
Confirmam esta argumentação, entre outros estudos, os trabalhos realizados por: SEYFERTH, Giralda. A colonização e a
questão racial nos primórdios da República. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade. A República e a Questão do
Negro no Brasil. Rio de Janeiro : Museu da República, 2005. p 27- 46; SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação:
Hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In: MAIO, Marcos Chor e SANTOS,
Ricardo Ventura (org.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro : Editora Fiocruz/CCBB, 1996. p. 41-58 e LESSER,
Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo :
Editora UNESP, 2001.

7
região sul do país que à época englobava a Província, e posteriormente o Estado de São Paulo
mostra-se tarefa, indispensável.
***
O senso comum dos brasileiros de hoje geralmente oferece adjetivos poucos valorosos
para o seu próprio país. A crença no atraso, no subdesenvolvimento, na falta de caráter das
pessoas são marcas da visão que os brasileiros têm de si. As conversas informais nos cafés,
bares, botequins trazem sempre, em meio a assuntos diversos, críticas ao Brasil, ao povo
brasileiro. Ao mesmo tempo, contudo, é igualmente usual alguém se levantar em defesa de
um Brasil diferente, um Brasil que deu certo e que existe logo ali. O logo ali, onde se situa
este Brasil diferente, este Brasil que deu certo, de acordo com este mesmo senso comum, é o
Brasil localizado ao sul do paralelo 20º. Agora, é importante notar que o senso comum não
parte do vazio, ele não nasce por geração espontânea, ele têm suas bases. E tais bases
normalmente estão num tipo particular de apropriação da produção intelectual.
A construção da imagem da região sul como o Brasil que deu certo ou que dá certo é
fruto não somente de propaganda política deste ou daquele administrador público, mas
também da combinação de elementos do determinismo geográfico, biológico, cultural e do
racismo científico. A combinação (ou as combinações) em pauta tem origem num certo
debate intelectual que acaba por invadir as Gazetas, as escolas e logo fazem parte do
instrumental utilizado pelas pessoas para ler e interagir com o mundo, ou seja, são elementos
formadores da sua visão de mundo. De modo sucinto, este tipo de interpretação enfatiza,
primeiramente, que a região sul não é tropical, ela é mais fria, mais própria ao
desenvolvimento da civilização - é o determinismo geográfico em ação, negando a
possibilidade de civilização nos trópicos. Por ser uma região de clima mais “ameno”, o sul
possibilitou a melhor adaptação dos colonos europeus, assim ele detém um estoque humano
melhor qualidade, mais apto ao trabalho disciplinado, mais capaz de desenvolver a civilização
- estas são as contribuições do determinismo biológico e cultural. As contribuições do racismo
científico aparecem expressos de forma diluída, ele pode ser lido como um dos grandes
responsáveis pela construção da imagem da região sul como o Brasil que deu certo, o Brasil
diferente. Ele sintetiza a crença na superioridade racial dos tipos brancos europeus sobre os
demais tipos humanos, na sua maior capacidade de trabalho, maior beleza, senso estético,
racionalidade científica, enfim todas as características valorizadas pela “civilização”. E como
há uma presença estatística e simbolicamente significativa destes tipos humanos,
brancos/europeus, na região, ela é interpretada como mais desenvolvida, ou ainda detentora da

8
maior capacidade de desenvolvimento, pois as premissas do racismo científico estão
internalizadas.
A imagem contemporânea na região sul não está somente em quem nela vive, mas em
quem está para além dela no território brasileiro. Porém, este quadro do Brasil que deu certo
(ou que está mais próximo disso) foi, evidentemente, construído. Uma vez que ela não detinha
de saída todas as características necessárias para incorporar o papel do Brasil desenvolvido.
Se por um lado a natureza forneceu o clima por outro não deu as pessoas ideais,
brancos/europeus. Então, elas tiveram que ser trazidas em algum momento para que hoje, o
senso comum possa ter a imagem, a pouco descrita, da região. Deste modo, como era de se
esperar a imagem de senso comum de hoje é o resultado de um processo histórico, a “região
mais européia do Brasil” é fruto, então, de atuação política coerente que contava com grande
influência do racismo científico. O debate intelectual que subsidia o senso comum, no plano
teórico, também o sustenta de modo empírico. Assim, o debate acerca do racismo científico
brasileiro revela-se ainda mais evidente por meio de um outro debate, também marcante, de
fins do século XIX e principio do século XX, aquele realizado em torno da imigração. A idéia
do Brasil enquanto um vazio demográfico a ser preenchido era recorrente. Ocupar o território,
assim como conhecê-lo e integrá-lo constituem pontos de pauta sempre visitados pelos
letrados do país. Neste contexto muito se discutia o ponto em torno de quem seria o tipo racial
ideal para ocupar o território. Como é sabido, a preferência é dada aos colonos europeus,
imigrantes de outras regiões são veementemente vetados, considerados perigos à
nacionalidade, ao já debilitado povo brasileiro.16 As tentativas de assentamento de colonos
europeus têm inicio na primeira metade do século XIX, mas vão ganhar impulso de fato nos
últimos anos deste mesmo século, quando tanto o governo imperial quanto o provincial de
São Paulo passam a subsidiar a empresa imigratória.
A política imigratória brasileira pode ser abordada por inúmeros ângulos, a quantidade
considerável de trabalhos que a possui por tema denotam isso. Todavia, à época da sua
implementação, destacavam-se três maneiras de problematizá-la. Uma defendia a entrada de
colonos europeus como uma estratégia para inserir na visão de mundo dos brasileiros a
mentalidade do trabalho livre, da pequena propriedade rural, assim como um meio de plantar
cá a semente da indústria. A imagem tinha do trabalhador europeu era a de naturalmente
melhor que o nacional de mais apto ao trabalho livre. Esta corrente, enfim, acreditava no
efeito pedagógico da imigração, na sua capacidade de melhorar o Brasil e seu povo, mas não

16
LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São
Paulo : Editora UNESP, 2001.

9
descartava o investimento nos nacionais. Assim, questões básicas como educação,
redistribuição de terras e políticas de amparo para os ex-escravos caminhavam em conjunto
com a defesa da vinda de europeus. O nome mais conhecido desta vertente, possivelmente é o
de Joaquim Nabuco. Outro argumento proposto defendia a vinda dos imigrantes para
aumentar o contingente populacional branco, o que também aparece na corrente anterior, e
isso, “naturalmente”, ampliaria as possibilidades de desenvolvimento do país. Há, portanto,
uma pronta responsabilização das populações não-brancas pelas mazelas do Brasil. E mais,
seguindo as postulações do darwinismo social no processo de concorrência natural entre as
espécies, os mais aptos prevaleceriam - neste caso, as populações brancas permaneceriam e as
demais desapareceriam. Em algumas regiões esta proposição de fato se realizou, mas de modo
artificial, com populações sendo expulsas à força ou mesmo exterminadas. Por fim, a terceira
maneira dava conta de trazer um contingente populacional branco para, como nos dois casos
anteriores, “desafricanizar” o Brasil e melhorar a “raça brasileira”. Pois, aplicando as
máximas da sobrevivência do mais apto à miscigenação, acreditava-se que após cruzamentos
sucessivos da população brasileira com os colonos europeus, os caracteres brancos
prevaleceriam, transformando o Brasil num país de população branca. Esta era, em certa
medida, a crença de Silvio Romero, apesar da sua desconfiança no formato dado à política
imigratória brasileira. As duas últimas argumentações em prol da imigração diferem de
maneira marcante, justamente, naquilo que diz respeito à miscigenação. A segunda a condena
enquanto a terceira localiza nela uma solução.
É evidente o pressuposto comum de todas estas vertente: a superioridade do elemento
branco/europeu sobre os demais. As diferenças entre elas estão em como tal superioridade
seria útil ao Brasil. Pois, ao mesmo tempo em que a imigração era vista como uma
possibilidade de redenção do país, ela também poderia ser sua perdição, sua aniquilação
através da fragmentação. Nesse sentido, concordavam alguns letrados importantes do
contexto, como Nina Rodrigues, Silvio Romero e Euclides da Cunha. Todos eles estavam
preocupados com a constituição da nação, de uma nação forte e imponente segundo os
parâmetros (europeus) da época. Logo, eles viam o assentamento de um contingente
significativo de indivíduos da mesma “raça” em localidades próximas, com um clima
considerável favorável por ser semelhante ao que imigrantes estavam acostumados na Europa,
como um perigo iminente à nação. Ocorre, então, uma situação interessante na qual é possível
encontrar favoráveis à imigração européia, mas contrárias à sua concentração em áreas
próximas. O temor era o da constituição de nichos estrangeiros dentro da nação, de modo que
o desejo era por colonos que se incorporassem a vida nacional. O “Brasil diferente” almejado

10
afinal não deveria ser tão diferente, por isso a assimilação à vida nacional dos colonos
europeus era ponto pacifico.17
A política de imigração brasileira é parte da política do branqueamento e sem dúvida
uma expressão nítida da influência do racismo científico na composição da visão de mundo
dos brasileiros, uma vez que expressa a descrença no brasileiro como tipo apto ao
desenvolvimento, por um lado, e a crença nos tipos brancos/europeus como superiores, por
outro. E uma das formas de materialização disto pode ser observada no senso comum. Como
foi dito o Brasil melhor, o Brasil ideal, o Brasil que deu certo na visão de mundo vigente no
país é aquele, supostamente, mais perto da Europa, mais branco. O Brasil do sul. Essas
medidas todas nos fazem retomar o argumento de Mariza Corrêa, quando a autora afirma que
as diferenças sociais existentes entre brancos e negros no Brasil não são reflexo do acaso, do
desenvolvimento “natural” das forças produtivas, nem da existência (um dia) da escravidão, a
exclusão dos negros e descendentes de vários setores da vida pública brasileira igualmente
não advém de uma legislação específica. “(...) Essa exclusão parece ter sido também o
resultado de uma atuação coerente, apoiada por um racismo ‘científico’, que legitimou
iniciativas políticas (...) como no caso dos privilégios concedidos à imigração que tiveram
como conseqüência uma entrada maciça de brancos no país(...)”.18
Com efeito, o período pós-abolição é marcado pelo fim da desigualdade jurídica entre
os membros da sociedade brasileira com a extinção da escravidão. Ao mesmo tempo pela
busca em se manter o mesmo padrão de relações sociais altamente hierarquizadas através de
um discurso e de uma atuação intelectual coerente, ativa e responsável, em grande medida,
pela internalização de atributos de superioridade por uns e de inferioridade por outros. Desta
feita, as hierarquias brasileiras, elementos importantes à constituição da visão de mundo
vigente no país tanto no período do pós-abolição quanto ainda hoje são devedoras, em muito,
dos pressupostos do racismo científico.
Referências:
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política. São Paulo :
Cosac e Naify, 2003.
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil.
2.ª. Bragança Paulista : Editora da Universidade São Francisco, 2001.

17
Alusão a obra de Wilson Martins, este defende a tese de quase ausência de escravidão no Paraná, em função disso a
presença negra e de não-brancos não seria significativa, logo, a região seria predominantemente fruto da colonização
européia do XIX, Um Brasil diferente.
18
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: A escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2.ª. Bragança Paulista
: Editora da Universidade São Francisco, 2001. p. 43

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