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11/12/2018 Folha de S.

Paulo - O demônio de Álvares de Azevedo - 22/10/1995

São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995

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O demônio de Álvares de Azevedo


Decio de Almeida Prado analisa a peça 'Macário'

DECIO DE ALMEIDA PRADO


ESPECIAL PARA A FOLHA

Pensem nisto! A razão é um


poder frio e lento que nos
enleia pouco a pouco com
idéias que ela aduz uma
após outra, como os laços
sutis, desligados e
inumeráveis de Gulliver.
Alfred de Vigny

"Macário" divide-se em duas partes, relativamente autônomas,


chamadas, talvez por isso, episódios, não atos. O "Primeiro Episódio"
mostra a chegada de um estudante, de quem só conhecemos o nome -
o da peça- a uma cidadezinha de que não ficamos sabendo nem
mesmo o nome. Mas o diálogo dá sobre ela umas poucas e precisas
informações: tem o nome de um santo; foi fundada por jesuítas; é um
centro estudantil, não fica muito distante do mar, separando-se dele,
contudo, por uma escarpada subida de serra. Tanto bastou, e mais
alguns pormenores geográficos, para que toda uma série de
comentaristas, cheios de boas razões, a identificassem com São Paulo,
onde Álvares de Azevedo, ao morrer, iria cursar o quinto ano da
Academia de Direito.
Nesse caso -somos levados a perguntar- não poderia ser Macário a
imagem do próprio autor da peça, que se teria retratado numa de suas
viagens entre o porto de Santos, em que desembarcava vindo do Rio
de Janeiro, e o modesto burgo que era então São Paulo? A hipótese é
tentadora -muita gente deixou-se tentar- mas não parece provável.
Existem, é verdade, certas similitudes entre o criador da peça e a sua
criatura ficcional. Ambos têm 20 anos, ambos estudam em São Paulo,
ambos são poetas, com maior ou menor desenvoltura. Mas as
diferenças são maiores. Para citar uma só: Álvares de Azevedo
pertencia a uma família de alguma projeção social e política, ao passo
que Macário, perguntado a respeito, responde com uma ponta de
humor negro: "Se não fosse enjeitado, dir-te-ia o nome de meu pai e
de minha mãe. Era de certo alguma libertina. Meu pai, pelo que
penso, era padre ou fidalgo". A bastardia, de resto, tornara-se um
troféu romântico, desde que Antony, personagem teatral de Alexandre
Dumas, citado na peça brasileira, agitara no ar, como uma bandeira
negra de revolta, a sua ilegitimidade.
Essa reversão, do mundo real para o fictício, leva-nos a indagar, de
volta, se o vilarejo para o qual se encaminha Macário seria mesmo
São Paulo. A resposta, desta vez, surge sob forma dubitativa. Será
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com certeza São Paulo, mas transfigurada pelo que Antonio Candido
qualificou, apropriadamente, de "invenção literária da cidade de São
Paulo" (1). O universo em que se move Álvares de Azevedo nunca
vai além do literário. As pessoas que o habitam são poetas,
romancistas, historiadores, filósofos. Mas esta peça demonstra que ele
era igualmente capaz de fazer o percurso inverso: pegar a realidade
bruta e transformá-la em matéria literária. O que era, na verdade, a
cidade paulista em meados do século 19? Para os estudantes de
direito, um gueto artístico, uma ilha de saber jurídico cercada pela
ignorância roceira. Para os paulistanos, a convivência, nem sempre
tranquila, com um bando de jovens forasteiros, inclinados a
metamorfosear o tédio provinciano, a falta de ocupação e diversão,
em elegante "spleen" europeu, quando não, na linguagem estudantil
da época, em alegre e caprichoso "cinismo".
Essa é a cidade de São Paulo que Álvares de Azevedo transpõe para o
palco, vista, não diretamente, mas através de uma sucessão de frases
sardônicas, epigramáticas, que nem por terem sido citadas à exaustão
perderam o viço da juventude. Seguem-se alguns exemplos, colhidos
entre os mais repisados. Sobre a moldura geográfica: "A cidade,
colocada na montanha, envolta em várzeas relvosas, tem ladeiras
íngremes e ruas péssimas. É raro o minuto em que não se esbarra a
gente com um burro ou com um padre". Sobre a condição moral:
"Demais, essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma
vila e pobre como uma aldeia". Sobre a fauna humana que nela
reside: "Mulheres, padres, soldados e estudantes. As mulheres são
mulheres, os padres são soldados, os soldados são padres, e os
estudantes são estudantes: para falar mais claro, as mulheres são
lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes
vadios".
Desse modo, graças ao toque poético, ao dom de iluminar as palavras
umas pelas outras, a negatividade do real passa a ser positividade
artística. A sensação de vazio, de monotonia, de insuficiência vital, dá
origem a um painel romanticamente impregnado de vício e
sensualidade mal reprimida.
Para completar o quadro só falta o diabo? Não, também ele está
presente, sob o formato de um Satã moderno, nórdico, aristocrático,
que pouco tem a ver com o velho demônio do cristianismo. São de
sua autoria, aliás, todas aquelas descrições de São Paulo, corroídas,
como se leu, pelo ceticismo e pelo espírito de maledicência. O seu
aspecto físico é tão agradável, tão contrário à idéia do Mal absoluto,
que ele tem de recorrer à eloquência para persuadir Macário quanto à
sua verdadeira identidade:
"Macário - E tu és mesmo Satã?
Satã - É nisso que pensavas. És uma criança. De certo que quereis
ver-me nu e ébrio como Caliban, envolto no tradicional cheiro de
enxofre! Sangue de Baco! Sou o diabo em pessoa! Nem mais, nem
menos: porque tenha luvas de pelica e ande de calça à inglesa, e tenha
olhos tão azuis como uma alemã! Queres que tu jure pela Virgem
Maria?".
A sua condição infernal só se trai pela frieza da mão (e da perna,
quando esta, na subida da serra, roça a de Macário) e por alguns
truques do ofício que ele executa em cena, como sacar do bolso uma
garrafa de vinho e um cachimbo já pronto para ser aceso na vela da
estalagem, onde os dois viajantes param para descansar.
Começou há pouco a fase de transição entre o natural e o
sobrenatural. A estalajadeira parece ter feições de bruxa, ouvem-se
vozes anônimas vindas de fora da cena, fugiu o burro que conduzia
Macário. A falta de conexão instala-se às vezes, com fins levemente
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humorísticos, até no diálogo:


"Macário, bebe - Eu vos dizia pois... Onde tínhamos ficado?
O Desconhecido - Não sei. Parece-me que falávamos sobre o Papa.
Satã, minutos antes de revelar-se como tal, propusera a Macário um
pacto, prontamente aceito:
"O Desconhecido - Aperta a minha mão. Até sempre: na vida e na
morte!
Macário - Até sempre, na vida e na morte!"
Álvares de Azevedo, grande admirador de "Fausto", de Goethe, uma
de suas referências constantes, acaba de dar a Macário o seu
respectivo Mefistófeles.
Saem os dois, à noite, o rapaz sentado na garupa do burro preto de
Satã (descendente "em linha reta do burro em que fez a sua entrada
em Jerusalém o filho do velho carpinteiro José"). Mas nunca chegarão
a entrar efetivamente na cidade colimada. A viagem que fazem juntos
é outra, liberada das contingências do espaço e tempo. Quadros
sucessivos, de títulos soltos, como "Num Caminho" e "Ao Luar",
levam-nos a entrar pelo território não-geográfico do sonho e do
pesadelo.
Satã é o próprio espírito da negação, como lhe observa Macário:
"Para ti nada há bom. Pelo que vejo, na criação só há uma perfeição, a
tua. (...) Substância da soberba, ris de tudo o mais embuçado no teu
desdém". O tom blasfematório, que respinga aqui e ali por todo o
diálogo, atinge o máximo quando o rapaz, sonhando, ouve uma
terrível imprecação: "Cristo, sê maldito. Glória, três vezes Glória ao
anjo do Mal". O Mal, neste momento, não é uma ausência, mas uma
presença forte e real, como a do Bem.
Quanto a Macário, ele se julga velho e ressequido espiritualmente,
talvez pelo excesso de pensamento, talvez pela dúvida metafísica -ou
seja, pela sombra da descrença religiosa. Até a natureza tropical, a
única riqueza brasileira, é-lhe indiferente: "O luar é sempre o mesmo.
Esse mundo é monótono a fazer morrer de sono". Mas, de fato, não
passa de um menino. É o que lhe diz Satã: "Falas como um descrido,
como um saciado! E contudo ainda tens lábios de criança".
Satã, num ímpeto de crueldade, conduzirá Macário até o centro do
desespero infantil, em meia hora de pesadelo que parece durar
séculos:
"Macário - E de quem é esse suspiro? por que é essa oração?
Satã - De certo que não é para mim... Insensato, não adivinhas que
essa voz é de tua mãe, que essa oração era para ti?
Macário - Minha mãe! minha mãe!
Satã - Pelas tripas de Alexandre Bórgia. Choras como uma criança!".
No dia seguinte, depois de renegar Satã, Macário acorda na
estalagem, como se nada tivesse acontecido durante a noite. São três
horas da tarde, a ceia da véspera está intacta, o burro que montava não
fugiu, a mulher da estalagem não viu desconhecido algum em sua
casa. Todo o espírito referente a Satã deve ter sido o resultado de um
mau sonho. Mas, não: "Há uns sinais de queimado aí pelo chão. É um
trilho de um pé". A estalajadeira, horrorizada, tira, para Macário, a
conclusão desse "Primeiro Episódio": "Um pé de cabra... um trilho
queimado... Foi o pé do diabo! O diabo andou por aqui!".
Quebra-se, desse modo, aquela hesitação entre o natural e o
sobrenatural que, segundo Todorov, constitui a essência da literatura
fantástica (2).
Esse ato de "Macário" é em si mesmo uma peça completa, com
princípio, meio e fim. A ação evolui do comum ao insólito, sobe até o
sobrenatural, retorna à realidade, para terminar com uma derradeira
reviravolta. Esse fio de enredo, apenas esboçado, faz com que o
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diálogo nunca perca o rumo e o ritmo teatral nunca se desgarre de


todo por vias colaterais.
A prosa de Álvares de Azevedo, que nos escritos teóricos, sobretudo
nos discursos acadêmicos, apóia-se não raro sobre redundâncias,
busca de efeitos retóricos, liberta-se dessa crosta oratória, cingindo-se
à limpidez da expressão poética. O autor nos autorizara, no prólogo, a
classificar como desejássemos a sua peça -"drama, comédia,
dialogismo". Há de fato na textura desse "Primeiro Episódio" leves
traços cômicos, na insolência de certas formulações verbais, no
cinismo provocador de Satã, como há um evidente fundo dramático
nas provações existenciais a que é submetido Macário. Mas só por
exceção cai-se no simples dialogismo, se entendermos por esse termo
a conversa resumida a si mesma, sem a tensão, o ímpeto para a frente,
que caracteriza a linguagem teatral.
O gênero fantástico, nascido em torno do romantismo, tem como
proposta primeira contar uma história perturbadora, que desafie as
leis da verossimilhança, jogando habilmente com as fronteiras da
realidade. Não é, portanto, devido a este caráter lúdico, o instrumento
mais apropriado para extrair de uma obra de ficção os pontos de vista
pessoais do autor, como se faria, sem maiores dificuldades, com uma
peça de tese, que marca claramente as suas posições.
Assim mesmo, cremos que é possível delimitar nesse "Primeiro
Episódio" alguns tópicos que não hesitaríamos em ligar à
personalidade de Álvares de Azevedo. Por exemplo, a disputa entre
crença e descrença religiosa, a primeira mais confiável, mais segura
moral e socialmente, a segunda com o prestígio das coisas perigosas e
proibidas. A falta de fé -parece dizer o poeta- estiola a alma, mas,
além de alargar o campo da experiência humana, talvez estimule, em
alguns escritores, como Byron, a força da fantasia poética.
Outro ponto que merece menção -e muitos já o fizeram- é o apego de
Macário à figura da mãe, embora se diga enjeitado, num tipo de
relacionamento com a mulher que antecede a plena expansão da
sexualidade. Ele, aliás, espicaçado por Satã, discorre livremente sobre
o amor, encarado em seus dois aspectos, o físico e o espiritual. De um
lado, para ele, está a virgem, assim descrita em termos ideais: "Eu a
quereria virgem n'alma como no corpo. Quereria que ela nunca
tivesse sentido a menor emoção por ninguém". De outro lado, situar-
se-ia a prostituta, cuja atividade nada teria a ver com o amor: "O
amor? Quem te disse que era o amor? É uma fome impura que se
sacia".
Mário de Andrade, em ensaio justamente célebre, partiu daí, e da
análise do conjunto das suas poesias, para concluir pela inexperiência
sexual do poeta brasileiro, relativa ou total. "Todas as mulheres -
escreveu- que vêm na obra de Álvares de Azevedo, se não são
consanguineamente assexuadas (mãe, irmã), ou são virgens de 15
anos ou prostitutas, isto é, intangíveis ou desprezíveis" (3). A crítica é
sagaz e pertinente. Mas peca, a nosso ver, ao não levar em conta que
esse dualismo entre amor e sexo, entre virgem e prostituta, decorria
da própria situação social que o jovem brasileiro enfrentava no século
19 (e boa parte do século 20). José de Alencar, anos mais tarde, ainda
fazia dessa dissociação o fulcro de alguns de seus romances e peças
de teatro.

Continua à pág. 5-7

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