com certeza São Paulo, mas transfigurada pelo que Antonio Candido
qualificou, apropriadamente, de "invenção literária da cidade de São
Paulo" (1). O universo em que se move Álvares de Azevedo nunca
vai além do literário. As pessoas que o habitam são poetas,
romancistas, historiadores, filósofos. Mas esta peça demonstra que ele
era igualmente capaz de fazer o percurso inverso: pegar a realidade
bruta e transformá-la em matéria literária. O que era, na verdade, a
cidade paulista em meados do século 19? Para os estudantes de
direito, um gueto artístico, uma ilha de saber jurídico cercada pela
ignorância roceira. Para os paulistanos, a convivência, nem sempre
tranquila, com um bando de jovens forasteiros, inclinados a
metamorfosear o tédio provinciano, a falta de ocupação e diversão,
em elegante "spleen" europeu, quando não, na linguagem estudantil
da época, em alegre e caprichoso "cinismo".
Essa é a cidade de São Paulo que Álvares de Azevedo transpõe para o
palco, vista, não diretamente, mas através de uma sucessão de frases
sardônicas, epigramáticas, que nem por terem sido citadas à exaustão
perderam o viço da juventude. Seguem-se alguns exemplos, colhidos
entre os mais repisados. Sobre a moldura geográfica: "A cidade,
colocada na montanha, envolta em várzeas relvosas, tem ladeiras
íngremes e ruas péssimas. É raro o minuto em que não se esbarra a
gente com um burro ou com um padre". Sobre a condição moral:
"Demais, essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma
vila e pobre como uma aldeia". Sobre a fauna humana que nela
reside: "Mulheres, padres, soldados e estudantes. As mulheres são
mulheres, os padres são soldados, os soldados são padres, e os
estudantes são estudantes: para falar mais claro, as mulheres são
lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes
vadios".
Desse modo, graças ao toque poético, ao dom de iluminar as palavras
umas pelas outras, a negatividade do real passa a ser positividade
artística. A sensação de vazio, de monotonia, de insuficiência vital, dá
origem a um painel romanticamente impregnado de vício e
sensualidade mal reprimida.
Para completar o quadro só falta o diabo? Não, também ele está
presente, sob o formato de um Satã moderno, nórdico, aristocrático,
que pouco tem a ver com o velho demônio do cristianismo. São de
sua autoria, aliás, todas aquelas descrições de São Paulo, corroídas,
como se leu, pelo ceticismo e pelo espírito de maledicência. O seu
aspecto físico é tão agradável, tão contrário à idéia do Mal absoluto,
que ele tem de recorrer à eloquência para persuadir Macário quanto à
sua verdadeira identidade:
"Macário - E tu és mesmo Satã?
Satã - É nisso que pensavas. És uma criança. De certo que quereis
ver-me nu e ébrio como Caliban, envolto no tradicional cheiro de
enxofre! Sangue de Baco! Sou o diabo em pessoa! Nem mais, nem
menos: porque tenha luvas de pelica e ande de calça à inglesa, e tenha
olhos tão azuis como uma alemã! Queres que tu jure pela Virgem
Maria?".
A sua condição infernal só se trai pela frieza da mão (e da perna,
quando esta, na subida da serra, roça a de Macário) e por alguns
truques do ofício que ele executa em cena, como sacar do bolso uma
garrafa de vinho e um cachimbo já pronto para ser aceso na vela da
estalagem, onde os dois viajantes param para descansar.
Começou há pouco a fase de transição entre o natural e o
sobrenatural. A estalajadeira parece ter feições de bruxa, ouvem-se
vozes anônimas vindas de fora da cena, fugiu o burro que conduzia
Macário. A falta de conexão instala-se às vezes, com fins levemente
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11/12/2018 Folha de S.Paulo - O demônio de Álvares de Azevedo - 22/10/1995
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