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SCRUTON  CONFISSÕES DE UM HERÉTICO
Uma coleção de ensaios provocativos de um dos mais influentes
intelectuais contemporâneos, Roger Scruton. Scruton explora o
conflito entre o Iluminismo inspirado pelo cristianismo e o Islã
e tenta encontrar um remédio para o vazio no coração da nossa
civilização. Por que capitulamos ante aqueles que são mais ign-
roantes do que nós? Por que viramos as costas a todos aqueles
que desejam defender os nossos mais profundos valores contra
aqueles que querem a sua destruição? Esses ensaios colocam em
questão e ameçam o convecionalismo das opiniões consolidadas.

Roger Scruton é um dos mais importantes filósofos da


atualidade, membro da Royal Society of Literature e con-
decorado com a medalha da Ordem do Império Britânico.
Foi por mais de vinte anos professor na Universidade de
Londres e atualmente está na Universidade de Buckin-
gham.
BIBLIOTECA antagon sta

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Belo Horizonte | Veneza
DIRETOR EDITORIAL
Pedro Fonseca

COORDENAÇÃO EDITORIAL
André Bezamat

CONSELHEIRO EDITORIAL
Simone Cristoforetti

PRODUÇÃO EDITORIAL
Fábio Saldanha

EDITORA ÂYINÉ
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ROGER SCRUTON
CONFISSÕES DE UM HERÉTICO
Artigos selecionados

TRADUÇÃO André Bezamat


PREPARAÇÃO Lígia Azevedo
REVISÃO Fernanda Alvares
TÍTULOS ORIGINAIS:

CONFESSIONS OF A HERETIC

© Roger Scruton

© 2017 EDITORA ÂYINÉ

IMAGEM DA CAPA: Julia Geiser


PROJETO GRÁFICO: ernesto
SUMÁRIO

confissões de um herético 15

Prefácio 17
Capítulo 1 | Fingindo 18
Capítulo 2 | Amando os animais 42
Capítulo 3 | Governando corretamente 64
Capítulo 4 | Dançando da forma certa 86
Capítulo 5 | Construindo para durar 108
Capítulo 6 | Nomeando o inominável 138
Capítulo 7 | Escondendo-se atrás da tela 144
Capítulo 8 | Chorando a perda 172
Capítulo 9 | Rotulando a garrafa 186
Capítulo 10 |Morrendo na hora certa 204
Capítulo 11 |Conservando a natureza 232
Capítulo 12 |Defendendo o Ocidente 262
CONFISSÕES DE UM HERÉTICO
Artigos selecionados

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PREFÁCIO

Esta coletânea de artigos é fruto de uma década


de engajamento com a cultura britânica e norte-ame-
ricana. Alguns foram publicados em papel, outros na
internet, outros ainda estão sendo apresentados ao
público pela primeira vez aqui. Descrevo-os como
confissões, uma vez que revelam aspectos de meu
pensamento que, caso as palavras de meus críticos se-
jam levadas a sério, deveriam ter sido mantidos em
segredo. Compilei material de cunho acadêmico e me
esforcei para incluir somente artigos que lidam com
assuntos que interessam a qualquer pessoa inteligente,
nos tempos voláteis em que vivemos.
Scrutopia, Natal de 2015

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Capítulo 1 falsidade vem à tona, uma vez que criou em torno de
FINGINDO si uma rede de confiança, da qual ele próprio era um
membro.
Em todas as épocas, pessoas mentiram no intuito
«Sê fiel a ti próprio», diz Polônio, personagem de escapar das consequências de suas ações. O primei-
de Hamlet, «e não precisarás ser falso com ninguém.» ro passo na educação moral das crianças é ensiná-las
Viva em verdade, aconselhou Václav Havel. «Que a a não mentir. O fingimento, todavia, é um fenômeno
mentira venha ao mundo», escreveu Soljenítsin, «mas cultural mais proeminente em alguns períodos que
não com minha ajuda.» Até onde devemos levar a sé- em outros. Há muito pouco disso na sociedade des-
rio essas frases? E como poderíamos colocá-las em crita por Homero, por exemplo, ou na descrita por
prática? Chaucer. Na época de Shakespeare, entretanto, poetas
Há duas maneiras de se faltar com a verdade: e dramaturgos começaram a se interessar fortemente
mentir e fingir. A pessoa que mente diz algo em que pelo assunto.
não acredita. A pessoa que finge diz algo em que acre- Em Rei Lear, as perversas irmãs Goneril e Regan
dita, ainda que somente naquele momento e tendo um pertencem a um mundo de emoções fingidas, conven-
propósito em mente. cendo a si mesmas e a seu pai de que sentem o mais
Qualquer um consegue mentir. Basta dizer algo profundo amor do mundo, quando na verdade têm o
com a intenção de enganar. Fingir, no entanto, é coração duro como pedra. E o interessante é que elas
uma façanha. Envolve ludibriar as pessoas, inclusive não se veem assim, caso contrário, nunca poderiam
a si próprio. O mentiroso pode se fazer de chocado ter tamanho descaramento. A tragédia do rei Lear co-
quando é pego em uma mentira, mas seu fingimento meça quando os personagens sinceros — Kent, Cordé-
é parte dela. O fingidor fica de fato chocado quando a lia, Edgar, Gloucester — dão espaço aos falsos.

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O fingidor é aquele que cria a si mesmo com vis- uma experiência de outra ordem. A arte se tornou um
tas a ocupar uma posição social diferente daquela que caminho rumo ao transcendental, a entrada para um
lhe seria natural. Assim é o Tartufo de Molière, o im- tipo mais elevado de conhecimento.
postor religioso que toma o controle de uma residên- A originalidade se tornou o teste que distinguia
cia lançando mão de uma armação baseada na mais a arte verdadeira da falsa. É difícil dizer em termos
pura piedade fingida, tanto que seu nome se tornou gerais em que a originalidade consiste, mas posso dar
sinônimo de homens que se comportam dessa manei- exemplos: Ticiano, Beethoven, Goethe, Baudelaire.
ra. Assim como Shakespeare, Molière percebeu que Eles nos mostram como a originalidade é algo di-
o fingimento se arvora no mais profundo recanto de fícil de se alcançar: ela não pode ser encontrada em
seu agente. Tartufo não é simplesmente um hipócri- qualquer lugar, ainda que aparente ter sido o caso de
ta, alguém que finge possuir ideais com os quais não alguns prodígios da estirpe de Rimbaud ou Mozart.
se importa. Ele é uma pessoa fabricada, que acredita Requer estudo, disciplina, domínio de um tema espe-
em seus próprios ideais, tão ilusórios quanto quem os cífico e — o mais importante — sensibilidade e aber-
professa. tura a experiências que envolvem inevitavelmente so-
O fingimento de Tartufo era uma questão de ca- lidão e sofrimento.
rolice religiosa. Com o declínio da religião ao longo do Portanto, adquirir o status de artista original não
século xix, surgiu um novo tipo de fingidor. Os poetas é nem um pouco fácil. Contudo, em uma sociedade
e pintores românticos viraram as costas para a religião em que a arte é reverenciada como a maior realização
e buscaram a salvação nas artes. Eles acreditavam no cultural possível, as recompensas são enormes. Com
gênio do artista, dotado de uma capacidade especial isso, a motivação para se fingir que é um artista se tor-
de transcender a condição humana por meio da cria- na forte. Artistas e críticos se unem para se ajudar, os
tividade, quebrando todas as regras de forma a obter primeiros posando de promotores de descobertas in-

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críveis, e os segundos se julgam astutos juízes arautos torna tão arraigado que nenhum julgamento é correto,
das verdadeiras correntes de vanguarda. exceto o que adota a linha do «real» no lugar da cópia,
Nesse sentido, o urinol de Duchamp virou um o que é um julgamento falso. A conclusão a que chega-
tipo de paradigma para os artistas modernos. É assim mos é que tudo é arte, porque nada é.
que se faz, dizem os críticos. Pegue uma ideia, colo- É importante nos perguntarmos por que o culto
que-a em evidência, chame-a de arte e mostre-se mui- da falsa originalidade possui um apelo tão forte em
to seguro disso. O truque foi repetido com as caixas nossas instituições culturais, tanto que nenhum mu-
de Brillo de Andy Warhol e em seguida com os tuba- seu ou galeria de arte pode se dar ao luxo de não le-
rões e vacas conservados em formol de Damien Hirst. vá-lo a sério. Os primeiros modernistas — Stravinski
Em ambos os casos os críticos se aglomeraram como e Schoenberg na música, Eliot e Pound na poesia, Ma-
pintinhos excitados ao redor do ovo inescrutável, e o tisse na pintura e Loos na arquitetura — se uniam na
fingimento foi projetado para o público com todos os crença de que o gosto popular havia se tornado cor-
aparatos necessários para ser reconhecido como algo rupto, que o sentimentalismo, a banalidade e o kitsch
real. O ímpeto do fingimento coletivo é tão poderoso haviam invadido as várias esferas da arte e eclipsado
que hoje é raro alguém ser finalista do Turner Prize sua mensagem. As harmonias dos tons haviam sido
sem ter produzido um objeto ou evento que se provou corrompidas pela música popular, a pintura figurativa
artístico só porque ninguém consideraria pensar nele perdera espaço para a fotografia; a rima e a métrica
como tal até que os críticos o apontassem. haviam sido relegadas a cartões de Natal, as histórias
Gestos originais aos moldes de Duchamp não po- eram repetitivas. Tudo ao redor, no mundinho da gen-
dem ser repetidos — assim como uma piada, só fun- te ingênua e inculta, era kitsch.
cionam uma vez. Por isso o culto à originalidade acaba O modernismo foi a tentativa de resgatar a since-
levando rapidamente à repetição. O hábito de fingir se ridade, a verdade, o esforço rigoroso de se fazer arte,

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do pântano das emoções fingidas. Ninguém duvida de posto de que não há como existir criação autêntica na
que os primeiros modernistas obtiveram sucesso na esfera das altas artes que não seja de alguma maneira
empreitada, presenteando-nos com obras de arte dig- um «desafio» às complacências da cultura pública. A
nas de inspirar o espírito humano em um novo contex- arte tem que ser ofensiva, saindo do futuro munida
to de modernidade, estabelecendo uma continuidade contra o gosto burguês pelo conformismo e pelo cô-
com as grandes tradições de nossa cultura. No entan- modo, o que nada mais é que um sinônimo para kitsch
to, o modernismo foi dando lugar a fingimentos cons- e clichê. Mas o resultado é que a ofensa se torna um
tantes: a árdua tarefa de manter a tradição se provou clichê. Se o público se torna tão imune ao choque ao
menos atraente do que os caminhos ordinários que ponto de que só um tubarão morto lhe desperta um
haviam escolhido rejeitar. Em vez de dedicar toda uma breve espasmo de indignação, então de fato o artista
vida ao estudo para apresentar o rosto de uma mulher não tem outra saída a não ser produzi-lo — isso, ao
através de uma linguagem nova, como aconteceu com menos, é um gesto autêntico.
Picasso, deu-se lugar a casos como o de Duchamp, que Assim, formou-se ao redor dos modernistas uma
simplesmente pintou uma Mona Lisa de bigode. classe de críticos e de empresários que se engajam em
O interessante, porém, é que o hábito de fingir explicar por que não é uma perda de tempo olhar para
surgiu do medo do fingimento. A arte modernista foi uma pilha de tijolos, ficar ouvindo dez minutos de
uma reação à emoção fingida e aos clichês reconfor- um ruído infernal ou estudar um crucifixo encharca-
tantes da cultura popular. Além disso, a ideia era subs- do de urina. Os especialistas começaram a promover
tituir a pseudoarte, que nos anestesia com mentiras o incompreensível e o ultrajante como se fossem algo
sentimentais, pela realidade da vida moderna, que so- ordinário, por medo do público encarar seus serviços
mente a verdadeira arte consegue alcançar. Por conse- como redundantes. Para se convencer de que são ver-
guinte, já faz um longo tempo que se parte do pressu- dadeiramente progressistas, que surfam na vanguarda

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da história, esses empresários se cercaram de pessoas somente duas possibilidades ao artista de sua época:
com as mesmas motivações, promovendo-as em todos ou ele pertencia à corrente vanguardista, desafiando
os comitês que podem aumentarem seus status e es- as velhas formas dos quadros figurativos, ou produ-
perando reciprocidade. Então surgiu o establishment zia algo kitsch. E o medo do kitsch é uma das razões
modernista — o círculo fechado de críticos que for- da ofensividade compulsória de tanta arte produzida
ma a espinha dorsal das instituições culturais oficiais hoje. Não importa que seu trabalho seja obsceno, cho-
e semioficiais, que negociam a «originalidade» e a cante, perturbador — contanto que não seja kitsch.
«transgressão», «forjando novos caminhos». Esses são Ninguém sabe ao certo de onde surgiu a palavra
os termos emitidos pelos burocratas dos conselhos de «kitsch», embora fosse de uso comum na Alemanha
arte e dos museus sempre que querem gastar dinheiro e na Áustria no fim do século xix. Tampouco se sabe
público com coisas que nenhum deles ousaria exibir como defini-la exatamente. Contudo, sempre reco-
em sua própria casa. Só que esses termos são clichês, nhecemos quando vemos algo kitsch. Barbie, Bambi,
assim como tudo o que costumam enaltecer. Logo, o Papai Noel no supermercado enquanto toca Bing
tem-se que clichê acaba em clichê, e a tentativa de ser Crosby cantando «White Christmas», poodles com
genuíno acaba em fingimento. lacinhos nas orelhas. No Natal, somos engolfados pelo
Nos ataques de outrora às formas de se fazer as kitsch, por clichês ultrapassados que perderam sua
coisas, uma palavra era comum: kitsch. Uma vez in- inocência sem nunca chegar a destilar qualquer sabe-
troduzida, ela pegou. O que quer que você faça, não doria. Crianças que acreditam em Papai Noel inves-
pode ser kitsch. Tornou-se, assim, o primeiro preceito tem emoções reais em uma ficção. Nós que deixamos
do artista modernista, qualquer que fosse o seu meio. de acreditar temos somente emoções fingidas a ofe-
Em um famoso artigo publicado em 1939, o crítico recer. Mas esse fingimento é agradável, sentimo-nos
americano Clement Greenberg escreveu que existem bem com ele. Quando todos nos juntamos na encena-

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ção, a impressão é de que não estamos fingindo nada. dido sua capacidade de distinguir as emoções precisas
O escritor tcheco Milan Kundera nos brindou e reais de suas substitutas vagas e auto-satisfatórias.
com uma famosa observação: «O kitsch faz com que Nos quadros figurativos, nas músicas tonais, nos poe-
duas lágrimas rolem sucessivamente pelo seu rosto. mas cheios de clichês do amor heroico e a da glória
A primeira diz: ‘Que legal ver crianças correndo na mítica, encontramos a mesma doença — o artista não
grama!’. A segunda diz: ‘Que legal me sentir emocio- explorava o coração humano, só criava um substituto
nado, junto com toda a humanidade, com as crianças empolado, com o propósito de colocá-lo à venda.
correndo na grama!.» Em outras palavras, ele não É claro que você pode utilizar os estilos do passa-
diz respeito à coisa observada, e sim ao observador. do, mas não pode levá-los a sério. Porque, se levá-los,
A emoção não se deve à boneca, mas ao fato de você o resultado será kitsch — produtos padronizados, ba-
a vestir com tanto zelo. O sentimentalismo funciona ratos, produzidos sem grandes esforços e consumidos
dessa forma, redirecionando a emoção do objeto para sem se pensar muito. Quadros figurativos se tornam
o sujeito, criando uma fantasia de emoção sem o cus- cartões de Natal, música se torna algo sem substância
to real de senti-la. O objeto kitsch encoraja a pensar e sentimental, a literatura descamba para o clichê. Ki-
«Como sou adorável experimentando esse sentimen- tsch é arte fingida, que expressa emoções fingidas cujo
to, veja só». É por isso que Oscar Wilde, referindo-se propósito é enganar o consumidor, fazendo-o pensar
a uma das cenas de morte mais desagradáveis de Di- que sente algo sério e profundo, quando na verdade
ckens, disse que «o homem precisa ter um coração de não sente nada.
pedra para não rir da morte do pequeno Nell». Entretanto, evitar o kitsch não é tão fácil quanto
Esse era o motivo, resumidamente, pelo qual os parece. Você poderia tentar ser ultrajantemente van-
modernistas tinham tanto horror ao kitsch. Eles acre- guardista, fazendo algo que ninguém nunca teria pen-
ditavam que, ao longo do século xix, a arte havia per- sado em fazer e chamando de arte; talvez ridicularizar

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um ideal cultuado ou um sentimento religioso. Mas ciais em torno do verdadeiro kitsch, e com isso espe-
isso também acaba conduzindo ao fingimento — ori- ra preservar as suas credenciais artísticas. Pegue por
ginalidade forçada, significância falsa, um novo tipo exemplo uma estátua de Michael Jackson abraçando
de clichê, como vemos em muito da Britart. Você pode seu chipanzé de estimação, Bubbles, pinte com cores
até posar de modernista, mas isso não necessariamen- exageradas e adicione uma camada de verniz, então
te vai torná-lo um Eliot, um Schoenberg ou um Ma- molde a figura de forma que pareça a madona e o fi-
tisse, que souberam tocar o coração moderno em seus lho; atribua uma expressão piegas a seu rosto, como se
recantos mais profundos. O modernismo é difícil; ele quisesse causar em seus espectadores uma irresistível
requer competência em uma tradição artística, bem vontade de vomitar. O resultado é algo tão kitsch que
como a arte de abandonar uma tradição de forma a no fim das contas não pode mais ser classificado como
dizer algo novo. kitsch. Jeff Koons com certeza queira dizer algo mais,
Essa é uma razão para a emergência de toda uma pensamos, algo sério e profundo que tenha nos passa-
nova indústria artística, que chamo de «kitsch preven- do despercebido. Seu trabalho artístico pode ser uma
tivo». A severidade modernista é difícil e impopular, forma de interpretar o kitsch, deixando-o tão kitsch
por isso os artistas, em vez de evitar o kitsch, foram que se torna metakitsch, por assim dizer.
de encontro a ele, motivando o surgimento de Andy Ou pegue Allen Jones, cuja arte consiste em mó-
Warhol, Allen Jones e Jeff Koons, entre outros. A pior veis feitos a partir de formas femininas retorcidas,
coisa que existe é se sentir culpado de ter produzido bonecas com calcinhas que deixam as partes sexuais
algo kitsch involuntariamente; o bom mesmo é pro- à mostra, visões infantis vulgares e desagradáveis da
duzi-lo deliberadamente, pois dessa forma ele deixa mulher, tudo marcado por sentimentos tão fingidos
de ser kitsch e se torna um tipo de paródia sofistica- quanto a expressão de uma modelo na passarela. No-
da. O kitsch preventivo estabelece citações referen- vamente o resultado é tão evidentemente kitsch que

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não pode ser kitsch. O artista certamente deve estar vistos em espelhos paralelos, elas se repetem infinita-
nos contando algo sobre nós — sobre nossos desejos mente, e a cada repetição o preço aumenta, até que um
e paixões — e nos forçando a confrontar o fato de que cachorro de bexiga de Jeff Koons, algo que qualquer
gostamos do kitsch, ao mesmo tempo que o ridicula- criança poderia conceber e muita gente poderia fazer,
riza sem retoques ou eufemismos. Em vez de colocar chegue a ser vendido pelo maior valor já pago para um
nossos ideais imaginários em molduras douradas, ele artista vivo — a não ser pelo fato, claro, que ele não
nos oferece lixo envolto em referências. pode ser definido tal.
O kitsch preventivo é o primeiro anel de uma ca- Falsa originalidade, falsa emoção e o falso co-
deia. O artista finge se levar a sério, os críticos fingem nhecimento dos críticos — tudo isso está por aí em
que julgam seu produto, e o establishment modernista tamanha abundância que mal sabemos como pro-
finge que o promove. Ao fim de todo esse fingimento, curar pelo real. Ou será que não existe real? Talvez
alguém que não consegue perceber a diferença entre a o mundo da arte seja de fato um grande fingimento
coisa real e o fingimento decide que deve comprá-la. do qual todos nós participamos, uma vez que, no fim
Somente após esse ato a cadeia chega a um fim, e o va- das contas, não há nenhum custo, a não ser para gente
lor real desse tipo de arte se revela — no caso, monetá- como Charles Saatchi, rico o suficiente para investir
rio. O comprador, obviamente, precisa acreditar que o em sucata. Talvez tudo seja arte se alguém diz que é.
que adquiriu é verdadeira arte, e, portanto, intrinsica- Talvez não exista um juiz qualificado. «É questão de
mente valioso, um pechincha. Caso contrário, o preço gosto», fala-se. É assim que as coisas caminham. Mas
refletiria o fato óbvio de que qualquer um — inclusive será que não há como rebater essas asseverações? Não
o comprador — poderia fingir ter uma obra de arte. A temos mesmo como diferenciar a arte verdadeira da
essência das coisas falsas é que não são realmente elas fingida, ou dizer por que a arte importa? Exporei al-
mesmas, mas suas substitutas. Assim como objetos gumas sugestões propositivas.

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Primeiro, entretanto, precisamos ignorar os fato- nio oficial consequentemente favorece inexoravelmen-
res que distorcem nosso julgamento. Quadros e escul- te obras que são arcanas, chocantes ou sem sentido, em
turas podem ter dono, podem ser vendidos e adqui- vez daquelas que possuem apelo real e duradouro.
ridos. Tanto que há um vasto mercado para eles, que Sendo assim, qual é a fonte de tal apelo? E como
possuem um preço, tenham ou não valor. Oscar Wilde julgamos se uma obra de arte o possui ou não? Três
definiu o cínico como aquele que conhece o preço de palavras resumem a minha resposta: «beleza», «for-
tudo e o valor de nada. E o mercado de arte é inevi- ma» e «redenção».
tavelmente gerido por cínicos. Pilhas de lixos se acu- Para muitos artistas e críticos, a beleza é uma ideia
mulam nos nossos museus porque possuem um preço. desacreditada. Ela denota as cenas silvestres melosas e
Não se pode obter uma sinfonia ou um romance da melodias cafonas que arrebatavam nossas avós. A men-
mesma forma que se pode obter uma obra de Damien sagem modernista, de que a arte deve mostrar a vida
Hirst. Por conseguinte, há bem menos sinfonias fingi- como ela é, sugere a muita gente que, se você almeja
das ou romances fingidos em comparação. por beleza, acabará no kitsch. No entanto, isso é um
As coisas também são distorcidas pelos canais de erro. O kitsch diz quão legal você é, oferecendo sen-
patrocínios oficiais. O Conselho de Arte existe para timentos fáceis a baixo preço. A beleza diz para você
subsidiar artistas, escritores e músicos cuja obra é im- parar de pensar em si mesmo, e despertar para mundo
portante. Mas como os burocratas definem quais obras dos outros. Ela diz olhe para isso, escute isso, estude
são importantes? A cultura lhes diz que uma obra é im- isso, porque é mais importante que você. O kitsch é um
portante se é original, e a prova de que uma obra é ori- meio para emoção barata, enquanto a beleza é um fim
ginal é o fato de o público não apreciá-la. Convenha- em si mesma. Nós a atingimos deixando nossos inte-
mos: se o público realmente gostasse de uma obra de resses de lado e permitindo que o mundo se abra dian-
arte, por que ela precisaria de um subsídio?. O patrocí- te de nós. Há várias formas de fazer isso, porém a arte

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é indiscutivelmente a mais importante, uma vez que algo criado conscientemente, em que a necessidade
nos apresenta com a imagem da vida humana — nossa humana por forma triunfa sobre a aleatoriedade dos
própria vida e tudo o que ela significa para nós — e nos objetos. Nossas vidas são fragmentadas e distraídas:
pede para olhá-la diretamente, não para que possamos as coisas têm início nos nós sentimentos e não en-
retirar algo disso, mas para que consigamos dar algo de contram sua completude. Muito pouco nos é revela-
nós a ela. Através da beleza, a arte limpa o mundo da do para que possamos compreender totalmente o seu
mancha causada pela obsessão por nós mesmos. significado. Na arte, porém, criamos um domínio da
Nossa necessidade humana por beleza não é algo imaginação em que todo começo encontra seu fim e
de que podemos prescindir se quisermos ser pessoas cada fragmento faz parte de um todo significativo.
realizadas. É uma necessidade que surge de nossa O tema de uma fuga de Bach parece se desenvolver
natureza moral. Podemos vagar pelo mundo, aliena- em seu próprio acorde, preenchendo o espaço musi-
dos, ressentidos, cheios de suspeitas e desconfianças. cal, movendo-se de maneira lógica até seu desfecho.
Ou podemos encontrar nosso lar aqui, vivendo em Só que isso não é um exercício de matemática. Tudo
harmonia com os outros e com nós mesmos. E a ex- em Bach é gravido de emoção, movendo-se no rit-
periência da beleza nos guia ao longo desse segundo mo da vida interior de seus ouvintes. Ele nos leva a
caminho: ela nos diz que o mundo é nosso lar, que já um lugar imaginário e nos apresenta ali a imagem
é um lugar ordenado às nossas percepções, adaptável de nossa própria realização. Da mesma forma, Rem-
a formas de vida como a nossa. É isso que vemos nas brandt captura cada mancha no rosto de uma face
paisagens de Corot, nas maçãs de Cézanne ou nas bo- envelhecida e mostra como cada detalhe representa
tas desamarradas de Van Gogh. um aspecto da vida interior, de modo que a harmonia
A verdadeira obra de arte não é bela da mesma formal das cores retrate a completude e a unidade da
forma que um animal, uma flor ou uma paisagem. É pessoa. Em Rembrandt, vemos um caráter integrado

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em um corpo desintegrado. Não nos resta nada além das cores se adquire através do estudo do mundo natu-
de reverenciá-lo. ral e descobrindo suas próprias emoções refletidas nas
A perfeição formal não pode ser atingida sem co- tinturas secretas das coisas, como foi o caso de Cézan-
nhecimento, disciplina e atenção aos detalhes. As pes- ne, que encontrou a paz em um prato de maçãs.
soas estão começando lentamente a entender isso. A Se olharmos para os verdadeiros apóstolos da
ilusão de que a arte jorre de nós e a ideia de que o único beleza em nosso tempo — refiro-me a compositores
propósito de uma escola artística é abrir as torneiras como Henri Dutilleux e James MacMillan, pintores
não são mais levadas a sério. Já se foram os dias em que como David Inshaw e John Wonnacott, poetas como
se podia criar um alvoroço envolvendo um prédio em Ruth Padel e Charles Tomlinson, prosadores como
isopor como se fosse Christo ou sentar diante de um Italo Calvino e Georges Perec — nos damos conta
piano em silêncio por quatro minutos e 33 segundos imediatamente da enorme quantidade de trabalho
como John Cage. Para ser realmente moderno, você despendido por eles, em seu isolamento tão aplicado,
tem de criar obras de arte que peguem a vida moderna, na atenção aos detalhes que caracteriza suas obras de
com todas as suas disjunções, e a encha de significado arte. A beleza deve ser conquistada na arte, e o traba-
e resolução, assim como fez Philip Larkin em seu gran- lho é árduo, enquanto a ignorância que nos cerca flo-
de poema «The Whitsun Weddings». Um compositor resce. Em face da dor, da imperfeição e da fugacidade
pode preencher suas peças com sons dissonantes e con- de nossos afetos e alegrias, perguntamos por quê. Pre-
juntos de acordes, como Harrison Birtwistle; porém, se cisamos de conforto. Buscamos na arte a prova de que
ele não souber nada de harmonia e de contraponto, a vida nesse mundo tem significado e de que o sofri-
o resultado não passará de barulho sem sentido, não mento não é algo tão sem sentido como muitas vezes
música. Um pintor pode simplesmente derramar tinta aparenta ser, e sim uma parte necessária de um todo
como faz Jackson Pollock, porém o real conhecimento maior e redentor. As tragédias nos mostram o triunfo

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da dignidade sobre a destruição e da compaixão sobre
o desespero. De um maneira que sempre será um mis-
tério, atribuem ao sofrimento uma completude for-
mal que restaura o equilíbrio moral. O herói trágico
é completado através de seu destino; sua morte é um
sacrifício, que renova o mundo.
A tragédia nos lembra de que a beleza é uma
presença redentora em nossas vidas; é a face do amor
brilhando no meio da desolação. Não deveríamos nos
surpreender que muitas das mais belas obras da arte
moderna surgiram como reação ao ódio e à crueldade.
Os poemas de Akhmatova, os escritos de Pasternak e
a música de Shostakovitch lançaram uma luz sobre
a escuridão do totalitarismo, iluminando o amor em
meio à destruição. Algo similar pode ser dito acerca
dos Quatro quartetos de Eliot, do War Requiem de Bri-
tten, da capela de Matisse em Vence.
O modernismo surgiu porque artistas, escritores
e músicos se agarraram à visão da beleza como uma
presença redentora em nossas vidas. E essa é a diferen-
ça entre a obra de arte real e o fingimento: ela é uma
obra de amor, enquanto a arte fingida é um engodo.

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Capítulo 2 uma morte agonizante causada por um ferimento. Na
AMANDO OS ANIMAIS maioria dos casos, isso se aplica à vida selvagem tam-
bém. As aves de caça ou são alvejadas ou são comidas
por raposas; ratos e outros roedores são vítimas dos
Moro numa fazenda de pasto, numa parte da In- urubus e gaviões; peixes são engolidos rapidamente
glaterra em que uma fina superfície recobre um subso- pelas garças. Morte em decorrência de idade, doença
lo de argila. É possível cultivar grama nessa superfície; ou ferimento é raro, e fazemos o que podemos para
mas não é possível ará-la sem revirar a argila, na qual ajudar os animais selvagens quando chega o inverno,
nada cresce; portanto, a terra só serve para alimentar seja dando restos de comida para os carnívoros, seja
animais que vivem ali mesmo ou por perto. Refiro-me distribuindo milho e nozes para os pássaros.
a vacas, ovelhas, porcos, frangos, aves de caça e cavalos. Claro que há muita coisa a ser melhorada, e al-
O mais lucrativo, ao menos na nossa fazenda, são os guns aspectos de nossa administração me tiram do sé-
cavalos, que atraem pessoas que ganham dinheiro de rio. Por exemplo, o fato de que nossos afetos naturais
verdade no campo, e os encoraja a investir esse dinheir favorecem alguns animais em detrimento de outros.
na grama. Aqueles que tentam transformar grama em Nós nos esforçamos para garantir que os predadores
dinheiro têm uma situação muito mais complicada. sobrevivam ao inverno rigoroso, mas não fazemos
Não obstante, no fim das contas, vejo nossa pequena quase nada em relação aos ratos do campo, ao mesmo
fazenda como um belo exemplo de parceria entre ho- tempo que procuramos acabar com os ratos comuns.
mens e animais. Todos eles vivem em um ambiente ao Não os envenenamos, uma vez que isso acabaria atin-
qual estão adaptados, desfrutam de relativa liberdade gindo as corujas, os gaviões e as raposas que se ali-
e são salvos por nossas intervenções do sofrimento mentam deles. Mas a verdade é que interferimos na
que acompanha a velhice e as doenças, ou mesmo de ordem natural das coisas, e não conseguimos enxergar

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uma vida na fazenda sem essa interferência. Lebres forma que nós. Refiro-me àquelas pessoas que se mu-
são bem-vindas, coelhos nem tanto; arminhos e do- daram para o campo para desfrutar da tranquilidade,
ninhas gozam de nossa proteção; corvos e pica-paus que é um subproduto das fazendas de outras pessoas, e
não ousam se aproximar. Nunca encontrei alguém do trazem sua própria horda de bichos — animais adora-
interior que não faz algum tipo de escolha desse tipo, dos, que aproveitaram de todos os confortos que uma
e quando leio a respeito de «santuários de vida selva- vida na cidade grande pode oferecer. São os gatos e os
gem» me pergunto quão longe eles pensam em levar cachorros dessas pessoas que mais perigo trazem para
sua jurisdição no intuito de proteger espécies que, dei- o que tanto tentamos equilibrar, e isso me faz tirar
xadas à sua própria sorte, transformariam um habi- algumas conclusões acerca da distinção entre o jeito
tat viável em um deserto — como esquilos-cinzentos, certo e o jeito errado de amar os animais.
gansos-do-canadá e corvos-marinhos. Um vizinho tem um cachorro com o qual pas-
Embora eu me preocupe com nossa intromissão seia pela trilha pública, deixando-o livra para fazer
na ordem das coisas, conforta-me o fato de que espé- incursões pelas cercas vivas. Ele faz o que todos os ca-
cies que nunca haviam sido vistas na fazenda antes de chorros fazem: cheira e cheira até encontrar algo para
eu comprá-la há vinte anos passaram a se assentar na caçar, então sai em busca de sua presa. No inverno,
área, como dom-fafes, lavandiscas, francelhos, antílo- quando se escondem sob as folhas, guardando energia
pes, arminhos e cobras-d’água-de-colar. Temos vários da melhor forma que podem, os pássaros não sobrevi-
tipos de abelhas e os lagos estão repletos de sapos, pe- vem à perseguição diária. Os mesmo se passa com as
rerecas e libélulas. Mas também temos vizinhos, de lebres, os coelhos e os ratos do campo. Claro que nossa
longe a maior ameaça para os animais que habitam vizinha se recusa a admitir que seu cachorro seja ca-
nossas terras. Não me refiro aos fazendeiros, pessoas paz de matar essas criaturas que persegue com tanto
que cuidam de suas terras mais ou menos da mesma ardor — ele só obedece o que sua natureza lhe impõe.

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Ou os arminhos, os faisões e qualquer outro animal competições justas e injustas, entre vermes e espécies
atrás do qual corra. A diferença é que o cachorro tem que devem ser protegidas, entre amigo e inimigo, não
sempre uma casa quentinha para voltar no final do dia significa nada para um gato, que foge de casa para
e um jantar, que consiste de outros animais enlatados, caçar passarinhos, ratos do campo, jararacas e outras
à sua espera, enquanto seus oponentes passam fome criaturas inofensivas sem ter nada em mente que não
e mal têm tempo de se recuperar para o combate do seja o apetite por sangue. Estima-se que, todo ano, 180
dia seguinte. milhões de aves selvagens e mamíferos são vítimas de
Outro vizinho tem dois gatos — belos animais, gatos no Reino Unido.1 O gato doméstico é a espécie
que sabem simular afeto enquanto vigiam tudo que de fora da mata mais devastadora que já foi coloca-
acontece ao redor, com seu ar de espécie dominan- da em nossa ilha, mas, graças ao sentimentalismo dos
te. Tanto gatos como cachorros são predadores, mas britânicos amantes dos animais, é crime atirar neles.
só os últimos podem ser treinados para não matar. O amor possui inúmeras formas, e não há ne-
É possível condicioná-los a direcionar seus instintos nhuma razão para supor que meu amor por animais
caçadores a determinada espécie em particular ou a de fazenda e pela fauna selvagem é de alguma forma
atividades mais úteis do ponto de vista humano, como superior ao amor de meus vizinhos por seus animais
pastorear ovelhas ou coletar aves caçadas. Já gatos não. de estimação. No entanto, duas questões deveriam ser
Todos os aspectos de sua natureza são relacionados a levantadas acerca de cada um dos amores. Ele benefi-
matar, ainda que com bastante mimo essa tendência cia o objeto? Ele beneficia o sujeito? Independente de
possa se amainar um pouco. Não obstante, o mimo
pode afiar ainda mais seu instinto assassino. Um gato
1 Michael Woods, Robbie A. McDonalds e Stephen Harries,
de verdade gosta de estar fora, onde não quer saber «Predation of Wild Animals by Domestic Cats in Great Britain»,
de outra coisa que não seja matar. A distinção entre publicado em The Mammal Society, disponível na internet com
revisão mais recente em 1o de março de 2003.

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concordamos ou não com Oscar Wilde, que disse que crescimento. O amor, assim como qualquer emoção,
cada um mata aquilo que ama, é certamente verdade tem de ser disciplinado para que não caia no senti-
que existem amores que destroem seus objetos, e as mentalismo ou na dominação.
razões são dadas por Blake: Há muita literatura que escolhe o amor entre os
seres humanos e os animais como tema, e a nenhum de
O amor busca somente a autossatisfação nós falta exemplos para ilustrar como essa relação en-
Para atrelar o outro ao seu deleite tre espécies pode ser boa ou ruim. Sou tão suscetível a
Regozija-se na intranquilidade do outro amar animais de estimação como qualquer outra pes-
E ergue um inferno às custas do céu soa, tanto que ainda me lembro com profunda emoção
de meu cachorro de infância, uma criatura repulsiva,
Há amores que escravizam, sufocam, exploram e desprovida de qualquer virtude canina. Quando meu
abusam. E há amores que corrompem o sujeito, dan- cavalo Barney, pelo qual nutria grande amor, morreu
do-lhe uma falsa e lisonjeira visão de si, bem como um na minha frente numa caçada, fiquei abalado por um
quadro reconfortante de sua própria amabilidade gra- bom tempo, até ganhar um novo. Normalmente os ga-
tuita. O amor não é bom em si mesmo: é bom enquan- tos têm uma queda por mim. Eles se espreguiçam à
to virtude e ruim enquanto vício. Nesse caso, temos minha frente e se acomodam em meu colo sem noção
que ouvir Aristóteles, que diz que o bom não é amar, alguma do desdém que sinto pela espécie. Não impor-
mas amar o objeto certo, na ocasião certa e no grau ta, pois nada disso me impede de perguntar quando e
certo.2 Aprender como amar e que isso faz parte do como é certo amar um animal.
O primeiro ponto a se fazer é que o amor aos
animais significa raramente amor a uma espécie de
2 Adaptando as aclamadas observações acerca da raiva em Ética animal. Amo os animais da fazenda, embora poucos
a Nicômaco, livro 4, cap. 5.

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dentre eles sejam objetos específicos do meu amor: é diante do perigo, e era disso que nascia minha fonte
a presença de dom-fafes, não um dom-fafe em parti- de afeto. Não tinha nada a ver com guardar um lu-
cular, que me agrada. É claro que me preocupo quan- gar especial em seu coração para mim, como eu fazia
do vejo uma ave ou um mamífero mal e faço de tudo com ele.
para ajudar, mas isso não é amor, é bondade. Com Mas tenho para mim que existem maneira ruins
os cavalos é diferente, pois sinto algo especial em re- de se amar um cavalo, tanto para o animal quanto para
lação a eles. Conheço suas fraquezas e suas caracte- o sujeito. Um amor que enxerga o cavalo como um
rísticas, montando-os, muitas vezes sem sela circuns- brinquedo, cujo propósito é satisfazer os caprichos do
tâncias nas quais dependemos um do outro para a dono um objeto de mimo e carinho que o próprio ani-
nossa segurança e até sobrevivência. Nessas circuns- mal não tem a menor condição de compreender é na
tâncias uma conexão especial surge — a qual fez com verdade uma falta de consideração e, de certa maneira,
que Alexandre, o Grande, velasse o bravo Bucéfalo e corrupto. Uma pessoa que trata um cavalo com tanto
construísse uma cidade em seu nome. Contudo, não mimo ou está se enganando ou tirando prazer de um
se pode dizer que os cavalos tratem os donos como afeto fantasioso, usando o cavalo como um meio para
indivíduos ou que são capazes de sentir o mesmo tipo liberar suas próprias emoções, o que, no fim das con-
de afeto. Eles sabem distinguir um lugar seguro de tas, acaba sendo o que realmente lhe importa. O cava-
um perigoso; reconhecem uns aos outros e se relacio- lo se transforma então em um objeto de amor-próprio,
nam; sabem que tipo de tratamento esperar depen- um afeto que tem mais a ver com si mesmo do que a
dendo de quem se aproxima. Porém, seus afetos são coisa «amada». Não leva verdadeiramente em consi-
fracos, desfocados e facilmente cambiáveis. Barney, deração o cavalo e não está muito longe de se equi-
aos meus olhos, tinha muito de Bucéfalo: corajoso, parar a uma simples negligência para com o animal,
ansioso por ser o primeiro a sair a galope, obediente pois basta um dia (e esse dia chega) o animal perder

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o encanto superficial que o amor desaparece. Cavalos que podemos receber do mundo animal, exacerbada
que recebem tal tipo de tratamento costumam ser des- pelo fato de que é uma necessidade, não um presente.3
cartados como um boneco. E é de fato um boneco que Parece-me que o destinatário de tamanho amor está
ilustra melhor, do ponto de vista da filosofia do amor, responsabilizado pela criatura que oferece isso, e isso
os erros mais agudos que o ser humano comete nesse cria um ambiente propício ao amor, algo que devemos
tema. As crianças exercitam a afeição com seus bone- levar em consideração. O dono de um cachorro amo-
cos: é como desenvolvem as expressões, os hábitos e roso tem uma responsabilidade que vai além daquela
os gestos que vão evocar a proteção e o amor daqueles do dono de um cavalo. Negligenciar ou abandonar um
ao seu redor. Mas esperamos que, justamente por essa cachorro é trair uma confiança que cria uma obriga-
razão, elas os larguem um dia e comecem a exercitar ção objetiva em relação a um indivíduo. Sendo assim,
o amor de verdade, que de fato acarrete em um custo meu vizinho está correto em achar que sua obrigação
para aquele que o sente, que coloca o ego nas mãos de para com seu cachorro vem antes da minha para com
outra pessoa e que forma a base para a fundação de a vida selvagem. Afinal, ele ocupa um polo da relação
uma ligação recíproca de carinho. de confiança, de modo que seria uma deficiência mo-
Cada espécie funciona de um jeito, e os cães não ral de sua parte receber todo o carinho que seu cão lhe
somente respondem à afeição de seus donos, como se proporciona enquanto lhe nega uma recompensa. Não
apegam a indivíduos, que se tornam insubstituíveis o julgo, portanto, por sua irritante e intransigente ati-
— tanto que a dor de um cachorro pode nos como- tude em defesa de seu amor para com seu bichinho: a
ver de tal forma que nós, seres com acesso a vários
meios para nos consolar, chegamos a senti-la. Quando
3 Entre os muitos relatos afetivos desse relacionamento na
ocorre, porque nem todos são assim, a dedicação fo- literatura, separo aqui o de George Pitcher, The Dogs Who Came
cada do cachorro é uma das coisas mais comovedores to Stay (Nova York, 1995), já que conheço o autor e conheci os
cães.

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culpa é minha, assim como é minha a culpa por me es- ções, embora simples, são condicionadas, e carregam
tressar com o egoísmo das famílias nos trens, sempre as marcas de toda uma história de relação mútua.
tão ávidas por assegurar os melhores lugares. Todos Dessa forma, é possível identificar no compor-
temos uma esfera de amor, e isso implica obrigações tamento de um cachorro algo relacionado com as
com as pessoas que a habitam. interações interpessoais encontradas nas relações hu-
Dito isso, ainda temos que traçar uma linha en- manas. O cachorro não é uma pessoa, mas é como se
tre o jeito certo e o errado de se tratar um cachorro. fosse uma a partir do momento que incorpora traços
Como todo animal, eles são indivíduos, mas, se é que humanos adquiridos através da experiência, chegando
se pode expressar dessa forma, têm um grau maior a ser quem é devido a relações específicas com certas
de individualidade do que pássaros, e ainda maior do pessoas de seu convívio. Então por que digo que ele
que os insetos. Com isso quero dizer que seu bem-es- não é uma pessoa? A resposta, sem muitas delongas, é:
tar está mais envolvido com sua natureza específica, a individualidade de uma pessoa está situada em um
as circunstâncias, seus afetos e seu caráter do que o plano metafísico diferente daquele dos animais, mes-
bem-estar das outras espécies. Um pássaro se relacio- mo dos que os amam como indivíduos. Os humanos
na com seu entorno na condição de membro de uma se identificam usando a primeira pessoa, reconhecem-
espécie, não como alguém que criou para si uma rede -se como «eu», e fazem escolhas baseadas nessa iden-
de relacionamentos permeada de medos e expetati- tificação. São soberanos em seu mundo, e a distinção
vas. O cão apaixonado depende de certos indivíduos entre o eu e o outro, o «meu» e o «não meu», decidir e
e sabe disso. Ele responde ao seu ambiente de manei- não decidir, penetra cada pensamento e cada ação sua.
ras que distinguem aqueles que também fazem parte O cão que olha nos olhos de seu dono não está
dele e reconhece demandas que lhe são endereçadas julgando, não o está lembrando de suas responsabi-
diretamente, as quais sabe que deve suprir. Suas emo- lidades nem se colocando no papel de um indivíduo

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que possui direitos próprios. Está somente reivindi- sinais que entende de maneira distinta da qual imagi-
cando algo junto a alguém de sua própria tribo, na návamos a priori. Se basearmos nosso amor por nosso
esperança de que sua vontade seja feita. Isso não tem cão na premissa de que é uma pessoa assim como nós,
a ver com um contato entre dois «eus», fenômeno que acabamos fazendo mal tanto a ele quanto a nós mes-
distingue os seres humanos do resto da natureza, ou mos. Fazemos mal a ele a partir do momento que lhe
ainda, como disse Kant, que mostra que o ser humano exigimos coisas que nenhum animal é capaz de fazer e
de fato não faz parte da natureza. Embora eu me re- atribuindo-lhe responsabilidades que não fazem o me-
lacione com meu cachorro na condição de indivíduo, nor sentido para um cachorro. Sentiremos a obrigação
essa condição está em um plano de individualidade de mantê-lo vivo, assim como com outros seres huma-
que ele não consegue atingir. Ideias, tais como respon- nos, por conta de uma relação que, por ser mantida em
sabilidade, dever, direito e liberdade, que governam parâmetros pessoais, é eterna. Parece-me errado dizer
minhas intenções, não existem em seu pensamento. que uma pessoa ama seu cãozinho se ela não aceita
Para ele sou outro animal — um animal especial, cla- sacrificá-lo quando seu estado de saúde é irreversível.
ro, mas ainda assim alguém que existe no mesmo pla- Para mim, o pior nem é o sofrimento que implica para
no dele e cujas deliberações nunca compreenderá, a o animal, mas aquele pelo qual passa o dono. Nenhum
não ser em termos da inquestionável unidade do ser cachorro exige que seu companheiro seja virtuoso ou
que é a soma dos afetos caninos. honrado: independente do caráter de seu provedor, ele
Parece-me que o jeito certo de amar um cachorro pulará em seu colo após um dia de ausência. Cães não
é amá-lo não como se fosse uma pessoa, mas como julgam, e seu amor é incondicional somente devido ao
uma criatura que cresceu no limite da humanização, fato de que não fazem sentido do termo «condições».
para assim podermos olhar para situações que pensa- Pode-se esperar de um cachorro, pois, uma motivação
mos ser opacas para ele, mas que, na verdade, emitem que independe de qualquer ação moral de nossa parte.

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E é justamente isso que vemos por toda parte: a di- O amor humano funciona de várias maneiras. Em
minuição dos afetos humanos, que sempre é condicio- sua forma mais elevada, vem como uma dádiva, ofe-
nal e depende de um trabalho moral, e o aumento do recida livremente para outra pessoa com a promessa
amor gratuito pelos animais de estimação. de apoio. Mas tal amor não vem de graça. Há sempre
Quem busca esse amor quer as duas coisas ao um custo para o sujeito, bem como para o objeto. O
mesmo tempo: preservar a inocência pré-lapsariana amor pode ser traído pelo objeto a partir do momento
de seu objeto enquanto acredita em sua capacidade de que este não se mostra merecedor de recebê-lo e inca-
julgamento moral. O cachorro é um animal tolo, por- paz de retribuí-lo. Passar por essa experiência é uma
tanto incapaz de agir mal; mas é justamente por essa das maiores provas para o ser humano. É justamente
razão que é visto como correto em seus julgamentos, por essa razão que o amor impõe um custo ao objeto,
dedicando seu afeto a objetos que o merecem e apro- uma vez que se sente obrigado a atingir as expectativas
vando seu dono com seu amor. Essa é a causa primária de tamanho amor, fazendo o máximo para se mostrar
de todo o sentimentalismo para com a vida animal que merecedor. O amor é um desafio moral com o qual
torna um filme como Bambi algo tão nefasto, ao fazer nem sempre deparamos; na busca por ele, procuramos
com que as pessoas tratem animais como bonecos, nos desenvolver e viver corretamente. É por isso que
acreditando que são «direitos» e dotados de vantagens suspeitamos tanto de gente que não ama — pessoas
morais. Mas não se pode ter tudo na vida: ou os ani- que não oferecem amor e que, portanto, normalmente
mais se encontram fora da esfera do julgamento moral tampouco o recebem. Não é que elas estejam fora do
ou não. Se estão fora, seu comportamento não pode círculo de afetos humanos. É só que estão separadas
ser tomado como prova de sua «inocência». Caso es- do principal motivador de bondade humana: o desejo
tejam dentro, algumas vezes cometerão erros, e devem de atingir as demandas de pessoas que se importam
carregar o peso da culpa. com você mais do que com elas mesmas.

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Se de fato concebermos o amor humano des- esse tipo de dedicação, que é fruto de um sentimen-
sa maneira, podemos ver claramente que todos nós to moral genuíno, é uma virtude de quem o demons-
temos uma grande motivação para evitá-lo. Porém, tra, e não se assemelha em quase nada à febre com os
como aprendemos com a tragédia de rei Lear,4 tal ati- Bambis que tomou conta da vida moderna, almejando
tude é um erro. Não obstante, a verdade é que a vida reescrever a história de nossa relação com animais em
é mais simples sem o amor interpessoal, uma vez que termos de direitos.
existem formas de amor mais básicas, abaixo do ra- Já me posicionei contra a ideia de direitos do ani-
dar do julgamento moral. E esse é o porém de tratar mais.5 Minha convicção é fruto não de desrespeito por
um animal de estimação com tantos mimos. Ele acaba eles, mas de respeito pela razão moral e pelos concei-
sendo uma rota de fuga da afeição humana, o que tor- tos — direito, dever, obrigação, virtude — que dela se
na a relação supérflua. Evidentemente, há momentos depreende e dos quais dependem todos os pontos que
em que nos vemos tão deprimidos pelas surpresas que constituem os traços distintivos da autoconsciência.
a vida nos traz que a presença de um animal pode ser No entanto, talvez o maior dano causado pela ideia de
nosso único consolo, uma vez que essa criaturinha nos direito dos animais caia sobre eles próprios. Elevados
lembra que a chama do amor segue viva dentro de nós. dessa maneira ao plano da consciência moral, vêm-se
É o que acontece em Uma alma simples, de Flaubert, em uma posição em que são incapazes de responder
em que a dedicação do protagonista pelo papagaio às distinções que a moralidade requer. Os animais não
não está relacionada a um fracasso moral. De fato, sabem diferenciar o certo do errado; não podem re-
conhecer o significado de prestação de contas ou as
obrigações vinculativas da lei moral. Por causa disso
4 Ver o importante artigo de Stanley Cavell, «The Avoidance of
Love: A Reading of the King Lear», em Must We Mean What we
say?, edição atualizada, Cambridge, CUP, 2002. 5 Ver Animal Rights and Wrongs, Londres, Continuum, 2002.

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nós os julgamos puramente em termos de sua capaci- expandimos e dominamos habitats que confiscamos
dade de compartilhar o ambiente doméstico, de tirar sem nenhum escrúpulo e aproveitamos sem nenhum
proveito de nosso afeto, e de tempos em tempos retri- remorso. Nossa falta de escrúpulos é amplificada por
bui-lo a seu modo dependente e quieto. E é justamente sentimentalismos alimentados pelo amor aos animais
isso que engendra nosso favoritismo sem escrúpulos de estimação. Esse amor desmesurado e infantil tam-
— aquele que fez meu país considerar que atirar em bém faz com que nos acomodemos cada vez mais com
gatos é um crime, independente de quão destrutivo afetos tranquilos, gratuitos e autocomplacentes, mi-
possa ser seu comportamento, enquanto envenenar nando nossa capacidade de exercitar a virtude huma-
ratos é uma ação digna de aplausos, afetando profun- na, fator do qual a natureza tanto depende.
damente toda a cadeira alimentar, da qual várias espé-
cies dependem.
Não é que tenhamos que deixar de amar nossos
animais de estimação: é nossa obrigação retribuir o
amor que nos dão. Contudo, temos que reconhecer
que, ao amá-los como se fossem indivíduos, estamos
colocando em risco outros animais que não recebem
o mesmo carinho e afeto. Atrapalhamos a cadeira ali-
mentar natural, com prejuízo maior para os pássaros
e os animais do campo. E, embora essas criaturas não
tenham direitos, isso não quer dizer que não tenha-
mos deveres para com eles, os quais se tornam mais
sérios e exigentes a cada dia que passa, à medida que

62 63
Capítulo 3 de servos obedientes, dispostos a trocar sua liberdade
GOVERNANDO CORRETAMENTE e sua responsabilidade pelas benesses de um estado
onipresente. Basta olhar para a Europa para ver aonde
essa atitude leva.
Em seu discurso de posse, Ronald Reagan anun- Os países europeus são governados por uma clas-
ciou que «o governo não é a solução do nosso pro- se política que consegue escapar de prestar contas pelo
blema; o governo é o problema», a sua pontuação que acontece atrás das portas fechadas das suas insti-
cuasou grande impacto em seus apoiadores conser- tuições. Elas confeccionam uma enormidade de leis e
vadores. Os conservadores americanos, exortados a regulações sem fim sobre cada aspecto da vida, desde
definir suas posições, reiteraram a mensagem de que a quantidade de horas por dia que se deve trabalhar
«o governo está inchado». A aparente expansão in- até os direitos das minorias sexuais. Em todo lugar da
contornável das regulações, o crescente controle do União Europeia o politicamente correto faz com que
dia a dia das empresas, do espaço público e mesmo seja difícil tanto manter quanto respeitar os preceitos
das famílias, a constante invenção de cada vez mais que violam as ortodoxias impostas pelo Estado. Leis
crimes e delitos, visando controlar como e com quem antidiscriminatórias forçam muitos crentes a ir con-
nos associamos, as tentativas de limitar os direitos da tra os ensinamentos de sua fé — no que diz respeito à
primeira e da segunda emenda — tudo isso era vis- homossexualidade, à pregação pública e à exibição de
to pelos conservadores com grande desconfiança. símbolos religiosos. Ativistas no Parlamento europeu
Parecia que os Estados Unidos estavam caminhando buscam impor em todos os Estados da União Europeia,
para longe daquele caminho de associações livres de independente da cultura, da fé e da soberania local, o
cidadãos que se autogovernam vislumbrado pelos pais direito irrestrito ao aborto, bem como tipos de «educa-
fundadores da nação e indo rumo a uma sociedade ção sexual» desenhadas com o intuito de preparar os

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jovens como se fossem commodities para o mercado expandiu para muito além do que pretendia o New
sexual em vez de garantirem que se tornem adultos Deal, e a Suprema Corte está cada vez mais acostu-
responsáveis, maduros o suficiente para enfrentar as mada a impor uma moralidade da elite liberal sobre
dificuldades que o amor e o compromisso demandam.6 o povo americano, queira ele ou não. Tais tendências
Uma certa histeria de repúdio tomou conta dos aumentam a sensação entre os conservadores de que
círculos formadores de opinião europeus, e agora se o governo está tomando conta de tudo. O país, pen-
pega um por um costumes de mais de 2 mil anos para sam eles, está abdicando dos direitos e da liberdade
proibi-los ou distorcê-los de tal maneira que acabam de seus cidadãos em troca de uma falsa segurança que
se tornando uma caricatura de seu real significado. E um Estado gigante provê. Certas obrigações que só o
tudo isso acompanha a gradual transferência da vida governo é capaz de realizar — a defesa do território,
econômica das empresas privadas para o governo cen- a manutenção da lei e da ordem, a manutenção da
tral, de tal forma que na Itália e na França mais da me- infraestrutura e a coordenação de ajuda em casos de
tade dos cidadãos recebem salário do governo, ao pas- emergências — acaba sendo dividido com iniciativas
so que os pequenos negócios lutam desesperadamente que cidadãos livres dão perfeitamente conta de cum-
para se adequar às inúmeras regulações do regime que prir através de associações de voluntariado, apoiadas,
parece existir apenas para eliminá-los. sempre que preciso, pelas seguradoras privadas. Não
Muitas dessas tendências estão sendo replicadas foram essas associações de voluntariado que possibi-
nos Estados Unidos. O Estado do bem-estar social se litaram, para Alexis de Tocqueville, o grande experi-
mento americano , mostrando que a democracia não
é uma forma de desordem, mas outro tipo de ordem,
6 Ver os relatórios de Lunacek, Estrella e Zuber, membros do que consegue conciliar a liberdade do indivíduo e a
Parlamento Europeu, que podem ser encontrados analisados no obediência à lei geral?
site da European Dignity Watch (europeandignitywatch.org).

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A emasculada sociedade europeia serve, pois, tempos, as quais conectam gerações em uma relação
como um aviso aos conservadores e reforça sua cren- de comprometimento mútuo.
ça de que os Estados Unidos devem reverter essa ten- A verdade é que o governo, de um tipo ou de ou-
dência da política moderna, que fez com que o Estado tro, é presente em todas as nossas tentativas de viver
arrogasse poder e responsabilidades que pertencem em paz com o próximo. Possuímos direitos que nos
à sociedade civil. É contra isso que se levanta o Tea blindam daqueles que escolhemos para nos governar
Party, e foi com esse mesmo espírito que a bancada — muitos deles antigas common laws, como aquela a
partidária republicana se uniu para lutar contra o que se deu o nome de habeas corpus. Mas esses direi-
Obamacare, chegando ao ponto de arriscar a própria tos só são reais porque há um governo que os garante
probidade fiscal da nação e polarizando o povo. É per- — mesmo que contra nossa própria vontade, caso seja
tinente, portanto, não só considerar o lado ruim do necessário. O governo não é o que muitos conserva-
governo — o qual os americanos podem reconhecer dores pensam ser nem o que a esquerda acredita que é
facilmente —, mas também o lado bom. Os conser- quando não está no poder: um sistema de dominação.
vadores americanos estão correndo o risco de parecer Trata-se da busca por ordem e poder, mas somente a
totalmente desprovidos de qualquer proposta positi- partir do momento em que o poder se faz necessário
va de governo, como se a sua única função no parla- através da ordem. Ele está presente nas famílias, nas
mento fosse se opor a qualquer programa federal, não vilas, nas associações de vizinhos e nos «pequenos
importa quão importante seja para o futuro e para a pelotões» celebrados por Edmund Burk em seu livro
segurança da nação. O mais importante é que pare- Reflexões sobre a revolução na França e por Alex de
ce estarem perdendo a noção de que o governo não Tocqueville em A democracia na América. Está no pri-
somente é natural à condição humana, mas também meiro movimento afetivo e de boa vontade, que é de
uma expressão das lealdades conservadas através dos onde os laços da sociedade florescem. Nada mais é do

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que o outro lado da liberdade e aquilo que faz com que Não somos, no estado de natureza, livres, muito
ela seja possível. menos indivíduos, dotados de direitos e deveres, ca-
Rousseau nos disse que nascemos livres, argu- pazes de tomar as rédeas de nossas vidas. Tornamo-
mentando que temos apenas que remover as corren- -nos livres ao longo de nosso desenvolvimento, que
tes que nos foram impostas pela ordem social se qui- depende em todos os aspectos de uma rede de rela-
sermos desfrutar de todo o nosso natural potencial. cionamentos que nos conecta com um mundo social
Embora os conservadores americanos demonstrem maior. Somente alguns tipos de redes de relaciona-
ceticismo em relação a essa ideia e tenham se man- mento encorajam as pessoas a se ver como indivíduos,
tido firmes contra sua influência destrutiva durante blindados por seus direitos e ligados por seus deveres.
a radical década de 1960, eles apesar disso possuem Somente sob algumas condições não somos unidos
uma natural tendência a aderir a ela. São herdeiros da em sociedade por necessidade de organização, mas
cultura pioneira. Idealizam o empreendedor solitário, por livre consenso. Colocando de maneira simples,
que toma para si a responsabilidade de seus projetos e o indivíduo humano é uma construção social. E sua
abre espaço para que o resto de nós o siga timidamen- emergência no curso da história é parte do que distin-
te. Esse personagem, elevado a proporções míticas nas gue nossa civilização de tantas outras que existiram na
obras de Ayn Rand, possui, em encarnações menos história da humanidade.7
exageradas, um lugar de direito na história americana. Portanto, mesmo tendo profundas suspeitas em
Contudo, a história confunde as pessoas, fazendo-as relação ao governo, possuímos uma necessidade ain-
imaginar que o indivíduo livre existe no estado de da mais profunda de tê-lo. O governo é envolto pelas
natureza e que nos libertamos quando removemos as
amarras do governo. Nada poderia estar mais longe
da verdade. 7  Ver Larry Siedentop, Inventing the Individual: The Origins of
Western Liberalism, Londres, 2004.

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próprias fibras do tecido social. Emergimos como in- legais, costumes ou tradições que resguardassem a re-
divíduos porque nossa vida social foi moldada dessa lação de prestação de contas da qual toda verdadeira
forma. Quando, no primeiro impulso de afeição, uma arte de governar depende — a arte de governo como a
pessoa se torna amiga de outra, surge imediatamente entendemos enquanto indivíduos. Nas tiranias árabes
entre elas uma relação de prestação de contas. Pro- só havia poder, exercido através de família ou tribo, e
metem-se coisas. Elas se tornam unidas em uma teia sem qualquer preocupação com o cidadão ou com a
de obrigações mútuas. Se uma fere a outra, a relação nação como um todo. Em tais circunstâncias, quando
corre o risco de ser desfeita caso não haja um pedi- se tira um tirano só se abre espaço para outro tomar
do de desculpas. Elas planejam coisas, compartilham seu lugar, não sem antes a sociedade cair em um esta-
suas ideias e esperanças, expressam alegria e culpa. do de caos geral, no qual valentões e fanáticos despe-
Em tudo o que fazem juntas existe uma prestação de jam sua violência reprimida por toda parte.
contas. Se essa relação não funciona, temos o que se No dia a dia também existem pessoas que se re-
pode chamar de exploração. lacionam com os outros sem se preocupar com pres-
O mundo pulula de sistemas políticos nos quais tação de contas. Elas estão presas a um jogo de domi-
a relação básica de prestação de contas ou não emer- nação. Se estão construindo um relacionamento, não
giu ou foi distorcida em interesses de família, partido, é um relacionamento livre. Um relacionamento livre
ideologia ou tribo. Se existe uma lição a ser aprendi- é aquele que garante direitos e deveres para ambas as
da da chamada Primavera Árabe, é certamente essa: partes, elevando a conduta dos dois lados para um
os governos que foram depostos não prestavam con- nível mais elevado no qual o mero poder dá lugar a
tas para a população da qual dependiam. As tiranias uma verdadeira mutualidade de interesses. É isso que
do Oriente Médio deixaram um vazio em sua esteira, está implícito na segunda formulação do imperativo
uma vez que não havia instituições, procedimentos categórico de Kant, que nos impele a tratar seres ra-

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cionais como fins, não meios — em outras palavras, Em outras palavras, em nossa tradição, governo
basear nossas relações em uma teia de direitos e de- e liberdade têm a mesma fonte: a disposição humana
veres. Tais relações livres não são apenas formas de em cobrar de seus semelhantes a responsabilidade por
afeto: são formas de obediência, em que a vontade suas ações. Nenhuma sociedade livre pode se realizar
da outra pessoa exerce o direito de ser ouvido. De sem colocar em prática essa disposição, e a liberdade
acordo com a forma que vejo, a mensagem de Kant é: que os americanos desfrutam com direito é simples-
indivíduos soberanos também são sujeitos obedien- mente o outro lado do seu hábito de reconhecer as
tes, que interagem uns com os outros na base do «eu» profundas obrigações que cada cidadão tem para com
com o «eu». a sociedade. Quando confrontados com uma emer-
Há outras maneiras de expressar essas verdades gência local, os americanos se unem para enfrentá-la,
sobre nossa condição. Podemos enxergá-las ao nosso ao passo que os europeus ficam esperando que o Es-
redor: na família, na equipe, na comunidade, na escola tado os socorra. É isso que temos em mente quando
e no ambiente de trabalho. As pessoas se tornam livres dizemos que a América é a «terra da liberdade». Não
aprendendo a se responsabilizar por suas ações. Essa nos referimos a uma terra sem governo, mas a uma
responsabilidade é construída a partir das relações que terra com este tipo de governo – que surge esponta-
estabelecemos com os outros na base de sujeito para neamente entre indivíduos responsáveis.
sujeito. Os indivíduos livres a quem os fundadores da Um governo assim não é imposto de fora: vai
nação se referiam eram livres apenas à medida que crescendo dentro da comunidade, como uma expres-
criavam laços com a sociedade, chegando ao ponto de são dos afetos e dos interesses que a une. Ele não ne-
se responsabilizar totalmente por suas ações e conferir cessariamente coloca tudo em votação, mas respeita
os direitos e os privilégios entre si que estabeleceram cada participante e reconhece que, em última análi-
um tipo de igualdade moral entre eles. se, a autoridade do líder deriva do fato de as pessoas

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aceitarem ser lideradas por ele. Foi por isso que as Mas isso seria um grande erro, e – porque é um erro
comunidades de pioneiros americanos criaram rapi- que muitos conservadores cometem – chegou a hora
damente suas próprias leis, formando clubes, escolas, de alertar a respeito.
esquadrões de resgate e comitês no intuito de lidar O governo emerge em pequenas comunidades
com as necessidades que não davam conta de resolver como sendo a solução para o problema de coorde-
sozinhas, necessitando da cooperação de vizinhos. O nação. As regras surgem não necessariamente como
hábito associativo que tanto impressionava Tocquevil- comandos despejados por alguma autoridade central,
le não era apenas uma expressão de liberdade: era um mas como convenções a que todos aderem esponta-
movimento instintivo na criação de um governo no neamente — como a convenção que dita as boas ma-
qual uma ordem compartilhada conteria e amplifica- neiras. Ninguém faz objeção a um juiz local ou legis-
ria as responsabilidades dos cidadãos. lador que presta contas para o povo por ser um deles,
Quando os conservadores resmungam contra o ou contra o comitê de planejamento local que convida
governo é contro um governo que lhes parece ter sido todos a expressarem de maneira igual suas opiniões
imposto de fora, como se fosse um governo de uma antes da tomada de decisão final. Hayek e outros estu-
força de ocupação estrangeira. Exatamente o tipo de daram essas formas de «ordem espontânea», da qual
governo que cresceu na Europa durante a época do a common law — a grande dádiva que nós do mundo
comunismo e que está crescendo novamente sob a inglês compartilhamos — talvez seja o exemplo mais
égide da União Europeia. E é fácil ver que uma forma vívido. Seus argumentos sugerem que, à medida que
hostil semelhante de governo está criando raízes nos as sociedades vão ficando maiores e passam a incorpo-
Estados Unidos, resultado de uma política liberal que rar mais e mais territórios, mais e mais formas de vida
consiste em arregimentar o povo de acordo com cren- e de ocupação distintas, os problemas de coordenação
ças morais que, em certa medida, lhe são estranhas. aumentam. Chega um ponto em que a coordenação

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não pode ser feita de baixo, ou seja, pela vontade natu- Essa causa foi prejudicada graças à dificuldade de
ral dos cidadãos de acomodar os desejos e os planos de muitos conservadores de entender o verdadeiro signi-
seus vizinhos. É nessa hora que a coordenação começa ficado de Estado de bem-estar social. Durante o século
a ter a necessidade de um governo que age de cima, xx, ficou claro que muitas questões que anteriormente

o qual estabelece regras e regulamentos para toda a não haviam sido contempladas no processo político
comunidade, e possui o que Weber chamava de «mo- chegaram à pauta pública. Os políticos começaram
nopólio da força» — em outras palavras, um sistema a reconhecer que, caso o governo quisesse desfrutar
de sustentação da lei que não tolera rival. do apoio daqueles que não tinham uma vantagem
É essa nossa condição. Reconhecer isso não signi- comparativa na sociedade, ele tinha que oferecer uma
fica que eu esteja desmerecendo as críticas em relação espécie de quid pro quo. Isso ficou patente nas duas
ao governo moderno, que se tornou demasiadamen- grandes guerras, em que pessoas de todos os níveis da
te intrusivo, determinado a impor hábitos, opiniões e sociedade tiveram que lutar e dar suas vidas. Por que
valores que não são bem-vistos por muitos cidadãos, deveriam fazer tudo isso, uma vez que a sociedade em
e motivado a colocar obstáculos no caminho da livre que estavam inseridos não lhes recompensava à altu-
iniciativa e das livres associações. Contudo, isso não é ra? Foi assim que o princípio fundamental de que o
intrínseco ao governo. É resultado da maneira de pen- Estado tem uma responsabilidade para com o bem-
sar liberal, circunscrita a uma pequena elite dentro da -estar dos cidadãos se tornou amplamente aceito. Esse
nação. O papel dos conservadores é criticar aqueles princípio nada mais é do que a versão em larga escala
que estão usando o governo de forma indevida, ten- da crença compartilhada pelas pequenas sociedades
tando alargar sua alçada para além dos limites que a de que a comunidade tem que cuidar de seus integran-
maioria julga correta. O conservadorismo deveria ser tes quando estes se mostram incapazes de fazê-lo por
a defesa do governo contra seu abuso pelos liberais. conta própria.

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A emergência do Estado de bem-estar social foi, lhe ser creditado. Essas pessoas não são responsáveis
portanto, uma consequência inevitável da democra- pela própria vida, visto que não foram «qualificadas»
cia popular à luz de uma guerra total. Se o Estado para tal. Nesse caso, a responsabilidade passa a ser do
de bem-estar social se tornou controverso nos últi- Estado. A única questão é o que mais o Estado deveria
mos tempos, não foi porque é uma ruptura com a fazer por eles para remediar os problemas advindos
ideia natural de governo. Isso se deu mais devido ao parcialmente de sua própria benevolência.
fato de ter se expandido a tal ponto que solapou sua Entretanto, essa maneira de ver as coisas reflete
legitimidade. Como podemos ver tanto no exemplo uma falsa concepção de do governo. As responsa-
americano quanto no europeu, políticas de bem-es- bilidades exercidas por ele se baseiam na prestação
tar social podem levar à criação de uma classe so- de contas dos cidadãos. Quando o governo cria uma
cialmente disfuncional. Sustentadas sem trabalhar, classe que não presta contas, ele ultrapassa sua al-
pessoas de geração em geração perdem o hábito de çada, solapando a relação da qual sua legitimidade
prestar contas, dão as costas para a liberdade e se fe- depende.
cham em patologias sociais que solapam a coesão da Por conseguinte, a maneira pela qual a esquer-
sociedade. da liberal enxerga o mundo leva a uma concepção de
Esse resultado é o oposto daquele que se tinha em governo que os conservadores veem com muita des-
mente, e chegou-se a ele parcialmente devido à cren- confiança. De acordo com essa visão — nitidamente
ça da esquerda liberal de que somente os ricos devem encarnada nas ideias de John Rawls —, o Estado existe
prestar contas, uma vez que são os únicos verdadei- para alocar o produto social. Os ricos não são ricos
ramente livres. De acordo com essa visão, o pobre, o de verdade, já que suas posses não são realmente suas.
indigente e o vulnerável nunca são culpados, portanto Todos os bens, para a esquerda liberal, não são de nin-
nada de mal que surge em virtude de sua conduta pode guém até serem distribuídos. E o Estado os distribui de

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acordo um princípio de «justiça» que não leva em con- No entanto, esse Estado não encarna mais o éthos
ta o legado moral de nossos livres acordos ou os efeitos de uma nação, não exercendo qualquer tipo de lealda-
morais de uma subclasse subsidiada pelo Estado. de além daquela de uma rede de lojas qualquer. Como
Na visão da esquerda liberal, portanto, governar se vê nas democracias da Europa, as exibições públicas
é a arte de dominar e redistribuir as coisas boas às de patriotismo, lealdade compartilhada e orgulho do
quais todo cidadão tem direito. Não diz respeito a ver passado se resumem a alguns espasmos desconexos, e
uma ordem social preexistente moldada pelos nossos a classe política como um todo começa a ser vista com
livres acordos e pela nossa disposição natural em co- sarcasmo e desdém. O governo deixa de ser nosso e
brar responsabilidades de nossos vizinhos. Governar é se torna deles — propriedade de uma burocracia sem
criar e administrar uma ordem social de acordo com a face, da qual nossos confortos estão à mercê.
doutrina dominante de justiça, imposta sobre as pes- Essa mudança na fenomenologia do governo é
soas através de decretos que vem de cima para baixo. marcante, mas ainda não está completa nos Estados
Aonde quer que essa concepção prevaleça, o governo Unidos. Americanos normais ainda conseguem en-
se agiganta, ao mesmo tempo que vai perdendo sua xergar seu governo como sendo uma expressão de sua
autoridade interna. Ele se torna o «Estado-mercado» unidade nacional. Eles sentem orgulho da bandeira,
de Philip Bobbit, que oferece um acordo com seus do Exército, das cerimônias nacionais e de seus íco-
cidadãos em troca de impostos e não exige lealdade nes. Almejam reivindicar o país como seu por direito,
ou obediência além de um respeito pelos termos dos bem como a compartilhá-lo com seus vizinhos. Dão
acordos assinados.8 um tempo em seus conflitos no intuito de reafirmar
uma herança política e social compartilhada e ainda
vêm as instituições do Estado com respeito. No que
8  Ver Philip Bobbit, The Shield of Achilles: War, Peace and the tange aos temas cruciais, acreditam que o presidente
Course of History, Nova York, Knopf, 2002.

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não representa um partido político ou uma ideologia, dade guiada pelo espírito público. Só que o espírito
mas a nação — o que significa todos nós, unidos na público cresce somente entre pessoas que são livres
ordem espontânea que nos fez viver juntos nesta terra. para colocá-lo em prática e assim gozar de seu resulta-
Em outras palavras, americanos normais enten- do. O espírito público é uma forma de empresa priva-
dem o governo como sendo uma ocorrência natural, da, que morre quando o Estado se agiganta. É por isso
ao passo que divergem da esquerda liberal, que o vê que a caridade privada desapareceu quase que com-
como uma máquina de redistribuição. Ao atacar essa pletamente da Europa continental e hoje só aflora nos
ideia, os conservadores deveriam deixar claro que de- países anglo-saxões, onde a common law está sempre
fendem uma alternativa real e natural. Afinal, estão a lembrar seus cidadãos que eles devem prestar contas
defendendo que o Estado é uma expressão simbólica aos outros para usufruir e desfrutar da liberdade.
e de autoridade que reflete nosso profundo dever de Os conservadores, portanto, têm a obrigação
prestar contas de nossos atos. de delinear o verdadeiro domínio do governo, assim
E isso não significa dizer que os conservadores como alertar quando ele ultrapassa sua área de atua-
estão agarrados a uma concepção libertária de um ção e atrapalha a liberdade dos cidadãos. Mas me pa-
Estado mínimo. O crescimento das sociedades mo- rece que fracassaram na hora de oferecer ao eleitorado
dernas criou necessidades que os velhos padrões das uma direção crível para isso, justamente porque fra-
livres associações não podem mais satisfazer. Porém, a cassaram na hora de compreender que a liberdade que
resposta correta não proíbe o Estado de se intrometer defendiam não é uma liberdade livre de governo, mas
nas áreas de bem-estar social, saúde, educação e por aí uma liberdade com um governo melhor — um gover-
vai, mas sim de limitar sua contribuição ao ponto em no que encarne tudo aquilo que confiamos aos nossos
que as iniciativas dos cidadãos possam mais uma vez vizinhos, a partir do momento que nos juntamos a eles
tomar a dianteira. Conservadores querem uma socie- para formar uma nação.

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Capítulo 4 Dançar para os gregos não era meramente par-
DANÇANDO DA FORMA CERTA te de um drama, um espetáculo comparável ao balé
moderno. Também era uma ocasião social, embo-
ra homens em mulheres dançassem separadamente.
Os vasos gregos antigos muitas vezes mostram Meninas eram educadas em coros. Elas aprendiam a
imagens de dançarinos, alguns deles dançando em recitar, cantar e dançar juntas, não podendo arriscar
conjunto, outros ao som de melodias que os demais suas reputações ao dançar com homens. Os poemas
nem podem ouvir. Seus corpos têm uma autossufi- de Safo provavelmente eram escritos com as meninas
ciência partiuclar: suas pernas e seus braços dão a de seu coro em mente. A educação de um coro objeti-
impressão de refletir uma força interna, enquanto vava unir a alma ao corpo da virgem, em uma imagem
os rostos estão sempre inclinados, como se os dan- contínua de graça conjugada.
çarinos estivessem absortos em seus pensamentos. A separação dos sexos na dança sobreviveu no
Essas imagens sugerem que dançar é uma ocupação Mediterrâneo até os anos de minha juventude. É bom
que envolve o sujeito por inteiro, bem como uma exi- ressaltar que os gregos eram especialmente bons nisso,
bição de graça e completude da alma. Assim como sempre munidos de roupas nacionais ou locais, dan-
as tragédias áticas indicam, era a forma preferida de çando em formação que acompanhava seus ritmos
apresentar a comunidade no palco, e os versos eram complexos e por vezes irregulares, que foram sendo
recitados ou cantados segundo passos rítmicos com- passados de século em século. Os homens dançavam
plexos. Eles tanto uniam o coro em um único orga- de maneira atlética em formações que frequentemente
nismo social quanto impunham uma disciplina ela- parodiavam uma batalha e as mulheres acompanha-
borada, elevando nossa consciência das palavras e da vam, dançando com uma espécie de hilaridade gentil
solenidade da ocasião. que era uma maravilha de ver.

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A dança, como retratada nos vasos gregos, mos- emprestado uma bela frase de Durkheim.9 A dança é
tra como os seres humanos são diferentes dos outros uma atividade social, na qual exaltamos e idealizamos
animais e mais elevados. Ela é, para usar um termo nossa natureza racional. Ela mostra a liberdade e a dis-
de Nietzsche, uma arte apolínia, que se curva para os ciplina unidas em um único gesto, ao mesmo tempo
ideais da razão. É um epítome das virtudes e da gra- que é condicionada pelas demandas da ordem social.
ça ordenadamente regido pela razão e pelas regras, Vejamos aquele quadro ideal da dança grega
do qual depende a estabilidade da sociedade. Se teve antiga. Embora não corresponda à realidade, ele nos
ou não uma versão dionisíaca também e se foi ou não permite dizer coisas importantes acerca do declínio da
dessa versão que emergiu a forma de arte da tragédia, dança nos dias atuais. Todos os jovens precisam dan-
é outra discussão. Talvez Nietzsche tivesse razão quan- çar, e — a não ser que as convenções sociais proíbam
to a isso, talvez estivesse errado. Ao escrever O nasci- —de forma que sua natureza sexual fique exposta.
mento da tragédia, talvez estivesse compensando sua Coloque um grupo de jovens na presença de música
frustração por ser ele próprio um pária social. Talvez rítmica e todos vão começar a se mover no mesmo
o frenesi dionisíaco retratado por Eurípedes em As ba- compasso e coordenar seus movimentos. Eles podem
cantes fosse algo além da dança, mas também abaixo formar casais e ficar de rosto colado ou levantar bra-
dela — um lapso no sentido de uma condição mera- ços e pernas para o ar em movimentos sincronizados.
mente animal, da qual a experiência da tragédia tem Hoje, porém, esses movimentos raramente envolvem
como um de seus objetivos nos resgatar. Em todo caso, passos coreografados; eles não são aprendidos, são
vejo os vasos, os poemas de Safo, os coros trágicos e as espontâneos. Os dançarinos tendem a evitar contato,
descrições de música de Platão e de outros apontando
em direção a uma visão diferença da dança, no caso
na direção de uma «efervescência coletiva», para pegar 9  Émile Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, São
Paulo, Martins Fontes, 2003.

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uma vez que não existe uma convenção acordada acer- pelo computador no intuito de manipular os movi-
ca de que forma deveriam se dar. mentos da multidão. A música se transforma em ins-
Para fazer com que os jovens dancem dessa ma- trumento de controle de massa, e esse poder fica peri-
neira é preciso que superem sua estranheza. O medo gosamente concentrado nas mãos de uma pessoa sem
que têm de começar uma conversa e sua falta de jeito que nenhum talento o justifique. nas mãos de uma
em geral são o resultado natural da educação à qual pessoa cuja posição não é justificada por nenhum.
foram expostos, direcionada a retirar toda a ideia de A partir do momento que os jovens caem na pista
elegância, distinção e graça de seus comportamentos, nesse ritmo, um desejo agudo de encontrar um parcei-
virtudes antiquadas vistas como elitistas e politica- ro é naturalmente suscitado, uma vez que a música su-
mente incorretas. Mas, ainda assim, a verdade é que os gere movimentos e união sexuais. Então eles tendem
jovens precisam dançar, e esse objetivo pode ser atin- a formar pares, pulsando ambos no mesmo ritmo, em
gido desde que haja música alta o suficiente para que geral sem se olhar e certamente sem se falar, ainda que
seja impossível conversar e que os ritmos proporcio- profundamente conscientes de seus corpos, como coi-
nem bastante espasmos para que as pernas se movam sas repletas de movimentos governados por máquinas.
de um lado para o outro intuitivamente, aos moldes Os corpos se tornam objetos sexuais, desprovidos de
das patas de um sapo eletrocutado. A melhor música personalidade, visto que essa é uma ideia relacional,
para se atingir tal estado não é aquela produzida por e nenhuma relação existe em uma pista de dança que
uma banda, uma vez que bandas gostam de ser apre- não seja entre corpos. Portanto, quando esse tipo de
ciadas, adaptando-se ao humor de sua audiência. Ela dança se dá, é terrível ver crianças e velhos aderindo:
é produzida por uma máquina, com uma mãozinha primeiro porque transgride os limites do sexualmente
humana. Assim surgiu o fenômeno do DJ, alguém que permitido, segundo porque sugere uma perda de dig-
não cria a música, só controla uma variedade de sons nidade e vergonha social.

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O espetáculo que descrevi se relaciona com a na maioria das vezes executada em pares e, de for-
dança da mesma forma que um bando de gente co- ma a exibir um impacto total, pode ser apresentada
mendo hambúrgueres na esquina se relaciona com um com música ao vivo, executada por uma banda que
jantar de gala. Ele representa um vazio social em uma esteja tão envolvida nos movimentos quanto aqueles
área onde no passado era exibida, desfrutada e exalta- que os executam. Segundo, envolve passos formais,
da nossa maior forma de humanidade compartilhada, que devem ser aprendidos de maneira a fazer com
e interações animalescas no lugar de relações pessoais. que as pessoas se movam coordenadamente. Tercei-
Infelizmente, da mesma forma que o dinheiro sujo ro, exige parceiros ou grupos de dança predefinidos,
desmerece o dinheiro limpo, a dança ruim toma o lu- pessoas que se completam no intuito de formar um
gar de seu antepassado de qualidade em um evento todo harmônico. Algumas vezes se pode trocar de par-
em que se requer música. Casamentos, formaturas, ceiro — e isso é uma das coisas mais interessantes da
festas de quinze anos — todos lugares em que formas dança escocesa, ver-se dançando com completos es-
elegantes e sociáveis de dança dariam um significado tranhos, pessoas de todas as idades e até mesmo do
fundamental ao evento — agora são dominados por mesmo sexo. Quarto, ela envolve padrões, formações,
DJs e sua música alta que não servem para nada além rotações, jeitos de se criar um movimento ordenado
de eletrocutar as pernas. melhor do que o individual. E, finalmente, essa dança
O que quero dizer com antigas formas de dan- deve ter uma conclusão, chegando a um ponto em que
ça? Não me refiro ao coro grego, certamente, mas a todos os turnos foram desempenhados, todos os pares
algo que me vem claramente à memória e que é, de foram trocados ou todas as variações executadas.
tempos em tempos, ainda ressuscitado, como o ceilidh Somente aqueles que já participaram desse tipo
dos escoceses e o tancház dos húngaros. Penso numa de dança entendem o ponto alto a que se chega no
dança que mantêm cinco características. Primeiro, é final. Ao contrário do mundo dos DJs, essas danças

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expressam não um excitamento, mas uma verdadeira de direção animadamente e sem trombar.
alegria; não prazer, mas felicidade. A alegria é atingida Tudo é organizado de maneira que o pri-
meiro abre espaço para o segundo antes
quando fazemos algo que não seja um meio para se deste chegar, tudo se une tão habilmente
chegar a um fim, mas que é um fim em si mesmo, e e ao mesmo tempo tão naturalmente que
quando estamos unidos a outros na mesma sintonia parece que cada um segue seus próprios
instintos sem se atrapalhar. Essa é a ima-
em prol disso. Essa sintonia valida nossa natureza ra- gem mais apropriada de uma liberdade
cional e nos mostra que somos de fato livres. pessoal conservada, que respeita a liber-
dade dos outros.
Talvez seja um modo um tanto quanto kantiano
de colocar as coisas, mas não sou o único filósofo que
vê dessa maneira. Temos aqui Schiller falando sobre O que Schiller percebeu é que o tipo de disciplina
o que ele chama de dança «inglesa», apesar de ter em envolvida na formação de uma dança existe não so-
mente a tradição escocesa: mente para restringir nossa liberdade, mas também
para desenvolvê-la. Através da dança ficamos cons-
A primeira lei da fidalguia é: tenha consi- cientes de nossa liberdade e conscientes de que ela é
deração pela liberdade dos outros; a segun- uma condição social compartilhada. É precisamente
da: demonstre sua liberdade. O cumpri-
mento correto de ambas é infinitamente porque nossos movimentos não são meios para um
difícil, no entanto a fidalguia exige que a fim, mas fins em si mesmos, que os vivenciamos como
busquemos incessantemente, e isso por si movimentos da pessoa como um todo. O «eu» se faz
só leva ao cosmopolitismo. Não conheço
imagem mais apropriada do ideal das be- presente nos movimentos da dança, é nela encarnado
las relações do que a convoluta dança in- e fica cara a cara com o outro que o completa.
glesa tão bem executada. O espectador na Refiro-me a esse fenômeno como o «estar junto»
plateia assiste a inúmeros movimentos que
se cortam, cheios de cores, e que mudam da dança, e apoio meu pensamento nos ombros da au-

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toridade da imortal Xântipe.10 A dança de formação se mira um desejo no outro, em vez de ele surgir com
tradicional envolve uma postura para com o outro, o o outro. A decadência das boas maneiras que vemos
parceiro. Ela inclui integralmente o outro e o integra nos tempos recentes é em grande medida resultado
como um ser livre, cujos passos são consensualmen- da perda do «estar junto» e do aumento do «estar no
te relacionados aos seus próprios. Esse «estar junto» é outro». Falta de educação, obscenidade, as maneiras
uma espécie de molde para as outras relações sociais, rudes dos apresentadores de televisão — tudo isso é
uma forma de mutualismo que ilustra a gentileza de uma forma de «estar no outro». Cortesia, boas manei-
nossa raça e molda a habilidade de se acomodar e se ras, negociação e deferência são, por outro lado, jeitos
desviar dos outros nas relações de reciprocidade. de se «estar com o outro».
É muito claro que ele não se faz presente nas E aqui vemos por que importa, e profundamente,
danças dos DJs que descrevi anteriormente. Os jo- o fato de que o amor antigo pela dança quase que de-
vens que se esparramam no chão, abaixando a cabeça sapareceu em nossas sociedades. Ela não era somente
para o mestre atrás das caixas de som, não se movem a imagem do ideal, em que a liberdade e a ordem se
com o outro de forma nenhuma. Quando dançam, fa- aperfeiçoavam e reconciliavam. Era também uma for-
zem-no no outro. A diferença entre «no» e «com» é ma de educação, na qual as pessoas aprendiam a se
umas das mais profundas que conhecemos em termos tratar como iguais e livres. Essa forma de educação se
psicológicos. Ela é exemplificada em todos os nossos baseava menos em regras e preceitos e mais em en-
encontros com outras pessoas — mais claramente em carnar uma ideia de graça e de completude. Era assim
abordagens sexuais. A essência do abuso sexual é que nos tempos dos coros de meninas na Grécia antiga. E
era assim nas academias de dança dos séculos xix e xx.
A perda de tal educação acarretou em uma maior
10  Ver R. Scruton (Org.), Perictione in Colophon, South Bend, St ausência do «estar junto» nas interações humanas. Pe-
Augustine’s, 2001, cap. 1.

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gue a relação entre garoto e garota, da forma como se Mais interessante do que as consequências mo-
desenvolve hoje. A pergunta que vem quase que ime- rais são as consequências estéticas que se seguiram à
diatamente em mente é: vamos ou não fazer sexo? A perda de amor pela dança. Talvez a principal conse-
ideia da união sexual como sendo a culminação de um quência tenha sido a decadência gradual do senso de
balé desenrolado mutuamente por meio de gestos de- ritmo, que podemos ver na maioria das músicas po-
ferentes desapareceu quase que por completo da men- pulares atuais. Muitas vezes o que parece ritmo, ou
talidade dos jovens. Cortejar a pessoa pretendida lhes um estágio para se entrar no ritmo, é na verdade uma
parece uma total perda de tempo, para não dizer uma falta de ritmo, um cancelamento do ritmo perpetrado
hipocrisia social. Não obstante, a verdade é que, quan- pela batida. O ritmo separado da organização meló-
do o sexo chega de forma atabalhoada, a tendência é dica perde sua última ligação com a dança social. Ele
que seja vivido como uma espécie de trauma, como então se torna inerte; já não é um gesto verdadeiro,
se pode ver nas repetidas acusações de estupro depois e com isso a plasticidade do gesto se perde. Sempre
de encontros feitas pelas jovens nos Estados Unidos. nos dizem que o ritmo é de importância primordial
A razão é clara: o sexo feito com outro pode ser uma no pop, música feita para se dançar, e que aqueles que
benção; o sexo feito no outro é quase sempre um assé- o julgam de acordo com padrões de música clássica
dio. Entretanto, o «estar junto» é um atributo social do não compreendem seu sentido. Essa resposta pode até
ser livre e racional. Ele deve ser aprendido, e a melhor valer para os críticos mais empedernidos, mas levanta
maneira de fazer isso é através da dança. Sem ela, os uma questão de profunda importância para o estudo
jovens perdem a chance de aprender como entrar de de música, que diz respeito à natureza do ritmo.
fato em sintonia. Não seria um fato consumado que Ritmo não é a mesma coisa que medida. Não se
tudo isso tem muito a ver com a confusão emocional trata somente de dividir o tempo em unidades repetí-
que testemunhamos hoje? veis. Diz respeito a organizá-lo em uma forma de mo-

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vimento, de forma que uma nota leve a seguinte a um do «estar junto». Em uma música como «Heartbreak
lugar que ficou vago. É exatamente isso que acontece na Hotel» o ritmo é gerado internamente, pela linha me-
dança — na dança real, quero dizer. A música pop nos lancólica e por uma única voz. A segunda voz então
velhos tempos do rock, uma forma de dança herdada se junta, não dosando as linhas de compasso e cor-
em que os passos e os parceiros faziam parte integral tando a sequência de tempo, mas entrando no ritmo
da prática. É claro que a valsa e o foxtrote já estavam de Elvis. A medida, aqui, não é imposta sobre a linha
descambando para a não dança narcisista que vemos melódica como uma grade, mas emerge dela, fazendo
por aí. O efeito no longo prazo da valsa vienense, trans- linhas de compassos virtuais no ouvido, ao passo que
mitida ao mundo moderno na forma da valsa parada respondemos às síncopes da voz. Não tambores vio-
e do foxtrote (sua equivalente em quatro batidas), foi lentos, baixos ensurdecedores, nenhum aparelho que
fragmentar a comunidade da pista de dança em uma — ouso dizer — substitui o ritmo usado na música po-
assembleia de casais, cada um deles envolto em uma pular contemporânea. O «estar junto» está ali na voz
aura de eletricidade sexual exalada pelos corpos aper- do cantor, não foi expelido pelo «estar no outro» da
tados um contra o outro. Ainda assim, o suficiente se bateria. E esse «estar junto» é sentido pelos ouvintes
manteve das antigas formas de dança para que esses como um chamado à dança, a se olhar ao redor e pro-
casais se apresentassem com alguma cortesia e elegân- curar a mão de uma pessoa que possa ser conduzida
cia. Valsas e foxtrotes exigiam passos, seguiam regras e até a pista.
convenções; podiam ser desfrutados por gente de todas Quando o ritmo é organizado melodicamente,
as idades, independente da intimidade que tinham. como em Elvis, ele se alça do nível da medida até o
O rock ‘n’ roll se conecta com essas antigas for- do gesto e do movimento. A diferença aqui não é ma-
mas de dança pelo fato de que esses casais se tocavam, terial, é fenomenológica: uma diferença em como as
remexiam-se, moviam-se na tentativa de resgatar algo repetições são ouvidas. Em um caso são ouvidas como

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batidas regulares, como o pulso de uma máquina; no Quando esse tipo de música tenta provocar dança —
outro, são ouvidas como movimentos repetidos, do como em um ato de «The Chairman Dances» de John
tipo que nossos corpos produzem quando estamos Adam, na ópera Nixon in China —, acaba produzin-
correndo, andando ou dançando. E assim era com a do um ostinato vibrante, longe da leveza alegre de um
música pop nos dias que se seguiram imediatamen- scherzo de Dvorák ou a intensa descontração da vida
te ao rock ‘n’ roll — músicas como as dos Beatles, do corporal em A sagração da primavera.
Pink Floyd, Grateful Dead e centenas de outros, que E não é só na música que somos infectados por
são amplamente ouvidas nos dias atuais, mas rara- essa perda de ritmo. Nossos movimentos em casa e no
mente dançadas, justamente porque contêm uma trabalho, nossas palavras em uma conversa, nossas de-
memória da verdadeira dança. Seu caráter melodioso cisões e nossos desejos, tudo envolve um componente
garante que não farão parte do repertório de nenhuma musical. O que as antigas formas de danças nos ensi-
casa noturna, dando lugar a uma grotesca caricatura naram não é algo solitário, mas um tipo de consciência
de música em que o ritmo é meramente uma batida e social. «Tenho ritmo», diz Ira Gershwin, e George nos
a melodia são meras repetições. mostra o significado disso. Contudo, esse ritmo não é
A perda das verdadeiras formas de dança, por- algo que o cantor tem por si próprio. Os Gershwin se
tanto, envolve a perda de um sentido de ritmo. Ela referem a um jeito de «ser para com os outros», de-
afeta todo tipo de música, até mesmo a de concerto. monstrado pela música. Peço desculpas por utilizar
Cortada a experiência natural do «estar junto», aquela essa expressão heideggeriana, uma vez que não posso
alegria pura do entrelaçamento mútuo que tínhamos imaginar nenhum ser humano mais avesso à músi-
com as danças de salão, a música séria adquire uma ca do que Heidegger. Porém, infelizmente, a verdade
qualidade metálica mais pungente, como se estivesse é que ele muitas vezes nos proporciona as palavras
tentando atiçar as pernas de metal de uma máquina. que precisamos para expressar aquilo que almejamos.

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Aprendemos como ser em nossos corpos aprendendo Não há nenhuma razão para não se acreditar que
como somos perante os outros, e o ritmo é algo que esse tipo de dança que descrevo volte um dia. De fato,
internalizamos através do movimento, da fala e do a sanha pela salsa é um indicador disso. E não há ra-
pensar, de forma a acomodar o olho e o ouvido. zão para não se pensar que os jovens não descobri-
E talvez o ritmo mais importante que a dança rão algum dia o «estar junto» que não veem nas casas
nos trouxe tenha sido a cortesia purificada de todas noturnas. Talvez o surgimento do esporte como uma
as emoções sexuais. Na música que exige formação, arena social possa ser explicado, ao menos em parte,
os jovens casais apreensivos eram rapidamente sepa- por essa fome por uma exibição elegante do corpo hu-
rados, de maneira que o jovem rapaz acabava tendo mano. E talvez, quando os jovens procurarem, como
que dançar com a avó e a jovem com outro homem. acho que deveriam, por um paradigma do «estar jun-
O ritmo que eles compartilhavam era, pois, purifi- to», acabem por encontrá-lo em um campo de futebol.
cado de conotação sexual, dotado de um significado Se isso acontecer, nada terá sido perdido. No entanto,
social mais elevado e mais duradouro do que os im- vale a pena retirar mais uma lição desse pensamento.
pulsos egoístas do desejo, construído no contexto da A dança social do tipo que tenho elogiado não exer-
experiência da comunidade. Havia nisso uma inocên- cia meramente as virtudes de liberdade e de ordem.
cia renovadora, bem como um respeito pelas idades e Ela obedecia a preceitos de igualdade. Todo mundo
condições da vida humana. Essas virtudes ganhavam podia aprender os passos, todos eram bem-vindos,
um tipo de realidade rítmica, e a vemos refletida nas independente de agilidade, idade ou beleza. As novas
rotações, nas roupas que impunham certo ritmo e nas atividades que tomaram seu lugar surgiram, em certa
cortesias estendidas que ajudavam nossos ancestrais a medida, como uma cultura oficial de igualdade e po-
mesclar a distância com o respeito e a liberdade com a liticamente correto, com medo de elegância e de dis-
disciplina, maneiras que perdemos em grande medida. tinção. Elas são, porém, fortemente discriminatórias.

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O culto ao esporte, ainda que seja importante para en-
tender o conceito de «estar junto», faz com que foque-
mos nossas atenções para os jovens, atléticos e belos,
deixando os outros com a sensação de estar fora do
jogo. Ao perder o amor pela dança, perdemos também
uma importante fonte de amor por nós mesmos.

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Capítulo 5 que têm em suas cidades, perceberão quão pouco cui-
CONSTRUINDO PARA DURAR dadosos seus compatriotas foram em suas tentativas
espasmódicas de criar cidades. No entanto, o turista
americano que não seguir a rota recomendada pelo
A cidade, da forma como a herdamos dos gregos Ministério do Turismo logo verá que o milagre de
antigos, é tanto uma instituição como uma maneira de uma cidade como Paris pode ser explicado somente
se viver, a qual coincide com a civilização europeia. A pelo fato de que poucos arquitetos modernos tiveram
confluência de estranhos a um único local sob a mesma permissão de mexer com ela. Nas demais partes, as ci-
lei, vivendo pacificamente lado a lado, acompanhados dades europeias caminham para a mesma direção que
por redes de relacionamentos, cooperações econômi- suas contrapartes americanas: altos prédios de escri-
cas e uma competição amistosa envolvendo esportes tórios no centro, rodeados por um anel de abandono
e festividades, é uma das mais notáveis realizações de e presença de condomínios fechados mais afastados,
nossa espécie, que foi responsável por todas as grandes para os quais fogem todos aqueles que trabalham na
inovações culturais, políticas e religiosas da civilização. cidade ao final do dia. Para ser justo, a verdade é que
Nada é mais precioso na herança ocidental, pois, que as não existe nada tão escandaloso quanto o que aconte-
cidades da Europa. Elas dão testemunho do triunfo da ce com Buffalo, Tampa ou New Brunswick (para pe-
humanidade civilizada não somente em suas ruas, de gar três cidades que me causaram verdadeiro pânico).
suas fachadas majestosas e dos monumentos públicos, Não obstante, o mesmo desastre moral está começan-
mas também nos menores detalhes arquitetônicos e nos do a abater o velho continente — o desastre de cida-
intricados jogos de luzes sobre as cornijas e entradas. des em que ninguém quer morar, nas quais os espaços
Americanos visitando Paris, Roma, Praga ou públicos são vandalizados e os espaços privados ficam
Lisboa, ao comparar o que vêm nesses lugares com o cada vez mais segregados.

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Até recentemente, os arquitetos europeus ou passado teriam que ser preservados, mas sempre dis-
foram coniventes com o desmantelamento de suas postos em novos contextos que roubavam sua alma
cidades ou o promoveram ativamente. Valendo-se estética, exatamente como feito com a catedral St.
da retórica espúria de Le Corbusier e Gropius, legi- Paul’s, em Londres.
timaram projetos totalitários da elite política, cuja Embora os cidadãos tenham protestado e socie-
intenção no pós-guerra não era restaurar as cidades, dades de conservação por toda a Europa, brigado pela
mas abrir espaço para «favelas», completando assim o antiga ideia de como uma cidade deveria parecer, os
trabalho dos bombardeios. As favelas consistiam nas modernistas ganharam a batalha, dominaram as es-
harmônicas ruas clássicas de casas a preços acessíveis, colas de arquitetura e trataram de garantir que a dis-
semeadas de indústrias locais, lojas de conveniência, ciplina clássica não seria nunca mais aprendida, uma
escolas e templos religiosos, tudo o que fizera com que vez que não seria ensinada. A aniquilação do currículo
fosse possível que comunidades reais florescessem nos foi completa: os estudantes das escolas europeias de
centros das cidades. As «favelas» seriam substituídas arquitetura não são mais ensinados a compreender as
por arranha-céus dentro de grandes parques, do tipo modelagens, a desenhar monumentos existentes, ruas
proposto por Le Corbusier em seu plano de demoli- urbanas, a figura humana ou mesmo algum fenômeno
ção da zona ao norte do rio Sena em Paris. Enquanto estético vital como a queda da luz em uma capitel co-
isso, todas as formas de trabalho e de diversão seriam ríntio ou a sombra de um campanário em um telhado
realocadas para outro lugar. Os prédios públicos te- curvo; eles não aprendem mais sobre fachadas, corni-
riam que ser expressamente modernistas, com arma- jas, entradas ou o que podia ser apreendido de um es-
ção e divisória de aço e concreto, mas sem fachadas tudo acerca dos grandes tratados clássicos de Serlio e
ou aberturas distinguíveis, além de nenhuma relação Palladio. O novo currículo foi pensado com o intuito
com seus vizinhos. Os importantes monumentos do de produzir engenheiros ideologicamente motivados,

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cujas habilidades representativas não passa de planta John Simpson, que cresceram no caos reinante, eman-
baixa e desenhos isométricos, e que fossem capazes de ciparam-se dos grilhões modernistas e começaram
executar «projetos» gigantescos requeridos pelo esta- a desenhar prédios e quarteirões em estilo clássico.
do socialista: enfiar pessoas em bairros residenciais, Enquanto isso, trabalhando em relativa obscuridade
planejar áreas industriais e centros de negócios, erigir como assistente do eclético James Stirling, havia um
estradas sobre o centro das cidades velhas. Esses arqui- diplomado da escola de arquitetura modernista da
tetos, assim como suas obras grandiosas, parecem estar Universidade de Stuttgart, Léon Krier, nascido em Lu-
sempre lembrando a população da vigilância do Gran- xemburgo em 1946, que começava a publicar mono-
de Irmão, do fato de que ela já não está no controle. grafias lacônicas e desenhos satíricos que viriam mais
Agora tudo isso está mudando. A geração que se tarde formar a base de um manifesto antimodernista.
rebelou contra o planejamento socialista se rebelou Krier se engajou na arquitetura, mas é ainda um
contra o urbanismo coletivista dos modernistas. A filósofo e pensador social que acredita que o moder-
arquitetura alienante do período pós-guerra foi asso- nismo cultural não é apenas feio, mas também está
ciada, e com boas razões, com as políticas de Estado baseado em erros gritantes a respeito da natureza da
socialistas. Ela simbolizava a abordagem da vida hu- sociedade humana. Como ele mesmo declarou em
mana de pessoas que acreditavam que detinham todas uma recente entrevista a Nikos Salingaros:
as respostas e poderiam ditá-las ao restante. O espírito
de rebelião contra essa atitude ficou particularmente A humanidade aprende por tentativa e
evidente no Reino Unido, onde o objetivo da Luftwaf- erro, sendo que algumas vezes comete
fe havia quase sido cumprido em muitas cidades atra- erros monumentais. O modernismo ar-
quitetônico e urbanístico pertence — as-
vés dos planejadores do pós-guerra. Arquitetos como sim como o comunismo — a uma classe
Quinlan Terry, Liam O’Connor, Demetri Porphyrios e de erros da qual não se tem muita coisa a

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aprender ou tirar proveito. São ideologias dbury, adjacente a Dorchester, que lhe foi conferida a
que levam até as pessoas mais inteligentes oportunidade que tanto precisava para pôr suas ideias
e sensitivas a desperdícios, riscos e perigos
inaceitáveis. O erro fundamental do mo- em prática. Seu trabalhou imediatamente começou a
dernismo, porém, é se propor como um atrair a atenção dos críticos. Arquitetos profissionais,
fenômeno universal (ou seja, inexorável e apavorados com a ameaça ao monopólio modernis-
necessário), substituindo legitimamente e
excluindo soluções tradicionais. ta, fizeram de tudo para destruir sua reputação, bem
como para desmerecer seu trabalho, rotulando-o de
sonhador nostálgico. Porém, para seu espanto, Poun-
O que é necessário, portanto, é um repertório de dbury atraiu vários residentes entusiastas, assim como
soluções reais aos problemas do design urbano. E foi indústrias e lojas, e acabou se tornando um lugar de
isso que Krier tratou de produzir. peregrinação, tão popular entre turistas quanto qual-
Durantes os anos 1970, com a ajuda de seu igual- quer cidadezinha medieval, e um modelo que está
mente talentoso irmão Rob, Léon Krier começou a sendo seguido em outras partes. O movimento do
produzir designs que visavam mostrar como o tecido Novo Urbanismo, com membros nos Estados Unidos,
urbano da Europa poderia ser revertido, melhora- na Itália, na Espanha e no Reino Unido, deve muito
do e expandido, respondendo às necessidades reais ao pensamento de Léon Krier, expresso em Arquitetu-
das pessoas. Algumas câmaras muncipais de cidades ra: Escolha ou fatalidade, publicado em 1998, que está
mais esclarecidas — em especial as de Bremen e de aos poucos se transformando em referência, apesar de
Luxemburgo — encomendaram planos e projetos a profundamente odiado pelo establishment arquitetô-
Krier, ainda que em sua maioria de tipo exploratório. nico. Krier trabalhou nos Estados Unidos, apresentan-
Foi só nos anos 1980, quando Krier foi convidado pelo do projetos para a construção de Seaside, na Flórida,
príncipe de Gales a planejar a nova cidade de Poun- onde projetou uma casa para si próprio. Ele também

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desenhou uma impressionante prefeitura em Windsor cam a lei dos benefícios privados, vícios públicos. O
— uma nova comunidade concebida de acordo com benefício privado de uma localidade charmosa é pago
os princípios que defende. pelo vício público de detonar nossas cidades. Roger,
Krier introduz o primeiro princípio da arqui- em particular, é famoso por criar prédios que não têm
tetura como uma dedução do imperativo categórico nada a ver com seus arredores, que não podem ter a
de Kant (que nos diz para agirmos de acordo com a sua função modificada, são extremamente caros de se
máxima de que só podemos querer algo que possa ser manter e que destroem a personalidade dos bairros —
inserido em uma lei universal). Deve-se «construir de como o Beaubourg no centro de Paris, que acarretou a
tal forma que você e as pessoas que ame usem seus derrubada de acres e acres de ruas e deliberadamente
prédios, vejam-nos, trabalhem neles, passem suas fé- deu as costas para o bairro histórico do Marais, ou o
rias neles e envelheçam neles com prazer». O princípio Lloyd’s de Londres, um pedaço de um utensílio de co-
é confirmado, sugere Krier, pelos próprios modernis- zinha polido no meio de uma pilha de lixo, atirado no
tas. Isso porque todos eles seguem o inverso da famosa centro como se tivesse caído de avião.
enunciação de Mandeville em A fábula das abelhas. Os A arquitetura tradicional produzia formas que
vândalos modernistas gostam do fato de que Richard expressavam os interesses humanos — palácios, casas,
Rogers e Norman Foster (que juntos são responsáveis fábricas, igrejas, templos — e se encaixavam bem no
por alguns dos piores atos de destruição nas cidades ambiente ao redor. As formas da arquitetura moder-
europeias) morem em antigas casas elegantes situadas na, argumenta Krier, são inomináveis, denotando não
em localidades charmosas, onde estilos artesãos, ma- coisas familiares e seus usos, mas «o que se conven-
teriais tradicionais e escalas humanas ditam o ambien- cionou chamar de objetos», que são conhecidos no
te arquitetônico. No lugar do princípio de Mandeville máximo por seus apelidos, nunca pelo nome verda-
— «vícios privados, benefícios públicos» —, eles colo- deiro. A Casa das Culturas do Mundo, em Berlim, por

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exemplo, é conhecida como a «ostra grávida», a Unité Krier identifica o erro inicial do modernismo nas
d’Habitation de Corbusier, que fica em Marselha, é co- ideias de Le Corbusier, Gropius e Mies, que separa as
nhecida como «o hospício», o novo prédio do Queen’s partes que sustentam as estruturas daquelas que dão para
College de Oxford é «o estacionamento», e o prédio a fachada exterior. A partir do momento que os prédios
da onu em Nova York é «o radiador». O apelido, de se tornaram cortinas dependuradas em armações invisí-
acordo com Krier, é o nome certo para um objeto ki- veis, todas as maneiras de criar e transmitir significado
tsch — ou seja, «forçado», que se acomoda em suas foram destruídas. Não obstante a cortina seja moldada
redondezas como se fosse um estranho de máscara no como se fosse uma fachada clássica, ela é «forçada» e
meio de uma reunião familiar. As formas clássicas são possui uma expressão vazia. No entanto, normalmente
resultado de convenções e consenso através dos sécu- é uma lâmina de vidro ou painéis de concreto, sem qual-
los; seus nomes veem — casa, palácio, igreja, fábrica quer abertura discernível. O prédio mesmo fica escon-
— de uma compreensão natural que suscitam, e nada dido, e sua posição, como a de um membro da cidade
neles é exagerado. As formas modernistas, ao contrá- que fica de pé no meio dos vizinhos apoiando seu peso
rio, foram impostas por gente possuída por ideologia. no chão, se torna sem sentido, uma vez que é impossível
Não derivam nenhum significado humano dos mate- vê-lo. Toda a relação com as estruturas vizinhas, com
riais que as compõem, do trabalho que as produziu ou a rua e com o céu é perdida, de forma a não transmitir
da função que exercem, e sua qualidade monumental nada além da dureza de sua geometria.
não é nada além de forçada. Os arranha-céus de escri- Mas há outros efeitos negativos. Prédios cons-
tórios e os shoppings gigantes não dialogam com nada truídos assim são caros de ser mantidos e possuem
além de seus limites — de modo que não adquirem durabilidade incerta. Eles usam materiais que nin-
valor simbólico ou refletem uma visão da cidade como guém entende totalmente, os quais possuem um coe-
espaço público. ficiente de expansão tão grande que todas as juntas se

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soltam dentro de alguns anos. Envolvem uma grande modernista, somente linhas — que podem ter um fim,
devastação ambiental em sua construção, para não mas nunca chegam a um desfecho. A falta de vocabu-
mencionar o estrago que fazem ao ambiente ao lon- lário também explica o efeito alienante do aeroporto
go de décadas. Os prédios modernistas são catástrofes moderno, como o de Newark e o Heathrow. Diferente-
estéticas e ecológicas: ambientes fechados, dependen- mente da estação de trem clássica, que guia o viajante
tes de constante fornecimento de energia, sujeitos à seguramente até os guichês, as plataformas e o saguão,
«síndrome do enjoo de prédio», exigindo que se abra o aeroporto típico não possui símbolos arquitetônicos
suas janelas para respirar ar puro. Ademais, tais edifí- que carregam significados. É um amontoado de escri-
cios não usam nenhum vocabulário arquitetônico que tos, todos competindo por atenção e amplificando o
possa ser «lido», como acontece com suas contrapar- sentido de urgência sem oferecer uma resposta satis-
tes clássicas. Essa incapacidade de «leitura» é sentida fatória. Talvez os lugares mais relaxantes e funcionais
pelo pedestre como uma grosseria. Prédios modernis- nos Estados Unidos sejam as poucas estações de trem
tas excluem o diálogo, e o espaço ao seu redor não é concebidas à maneira clássica — a Union Station, em
público, mas um desdobramento da malha urbana. Washington, a Grand Central Station, em Nova York
Essa ausência de vocabulário inteligível não é um —, lugares em que a arquitetura leva vantagem sobre
defeito trivial do estilo: ela é a razão pela qual os pré- os avisos por escrito e onde as pessoas, não importa
dios modernistas não conseguem se harmonizar com quanta pressa tenham, se sentem tranquilas só de es-
seus vizinhos. Tanto na arquitetura quanto na música, tar neles. É significativo que quando o anúncio da de-
a harmonia é a relação entre partes que são ao mesmo molição da Penn Station, de McKim, Mead e White,
tempo independentes e dotadas de significado, uma moldada nos banhos de Caracalla, em Roma, foi feito,
realização de ordenação de elementos que criam uma em 1962, até mesmo modernistas como Louis Kahn
validade e reagem a ela. Não há acordes na arquitetura se uniram para protestar. Mas a demolição seguiu em

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frente, visto que a lei de propriedade americana nunca novos centros urbanos, com seus próprios espaços e
dá lugar à virtude cívica. Hoje tal iniciativa é motivo de prédios públicos, escritórios e áreas de lazer; que os
arrependimento, não somente devido ao espaço me- novos assentamentos cresçam não como subúrbios,
díocre criado, com teto baixo que causa alienação nos mas como cidades, assim como Poundbury, adja-
viajantes, mas também pelo topo horrível e opressivo. cente a Dorchester. Desse modo, conseguirão captar
Essas considerações alimentam as críticas da o verdadeiro sentido de assentamento, de se lograr
ideia de «zoneamento», que, como Jane Jacobs defen- uma comunidade humana em um lugar que seja «nos-
deu em Morte e vida de grandes cidades, foi ampla- so», em vez de se debandar para lotes afastados que
mente responsável pela fuga do centro e pela perda no final das contas não pertencem a ninguém; criam
da rua como espaço de socialização. Entretanto, o que um conjunto de lugares, em vez de se instalar em um
torna Krier novo e tão importante para nós nesse mo- «não lugar» que se perde de vista no horizonte. Essa
mento crítico ao qual chegamos, em que todos, com solução tem um precedente em Londres, que cresceu
exceção dos arquitetos profissionais, reconhecem que junto com Westminster em uma competição amistosa,
as cidades só podem ser salvas se substituirmos essa e onde as áreas residenciais de Chelsea, Kensington,
força centrífuga por uma centrípeta, é que ele possui Bloomsbury e Whitechapel cresceram na condição de
um remédio claro e persuasivo, que pode ser adota- vilas autônomas, não como refúgio dos centros. Tudo
do pelos planejadores urbanos e pelos construtores de o que é preciso para isso, defende Krier, é um plano
qualquer lugar, e colocado em prática imediatamente diretor. E com isso ele não se refere àqueles experi-
caso seja posto em votação. mentos sinistros em engenharia social que tanto ape-
A solução de Krier é substituir a ideia de «cen- teciam aos modernistas, mas a simples conjuntos de
tro mais subúrbios» por assentamentos policêntricos. opções bem definidas, entre as quais as pessoas podem
Se as pessoas querem se mudar, que se mudem para escolher aquilo que melhor lhes convém.

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O plano diretor de Krier envolve uma configura- ria poder levar menos de dez minutos para chegar
ção geral, um plano de rua para cada quarteirão, re- a qualquer lugar a partir de sua casa. Essa teria que
gras que governem coisas como o tamanho dos lotes, o ser a motivação para fazer com que alguém quisesse
número de andares permitidos (cinco, que, de acordo morar perto de um bando de estranhos. A regra dos
com sua visão, é o máximo natural), e os materiais e as dez minutos não é assim tão rígida como os ameri-
configurações técnicas em que os prédios devem se en- canos pode imaginar: Paris, Roma, Florença, Madri,
quadrar. O objetivo é controlar a qualidade do «prédio Londres e Edimburgo se encaixam nesse padrão, as-
normal, regular e inevitável». No momento é somente sim como teriam se encaixado os subúrbios america-
o maior prédio que puxa as atenções dos planejadores, nos, caso houvessem seguido as diretrizes de Krier,
sendo normalmente concebido, como aqueles de Da- ou seja, se tivessem sido separados do centro na con-
niel Libeskind e Frank Gehry, para se destacar, em vez dição de «polipólis», de forma que as pessoas pudes-
de se misturar, para atrair os olhares para si, em vez sem trabalhar, fazer compras, divertir-se e rezar per-
de servir de ponto de alívio para a comunidade. Não é to de casa. Um bom planejamento urbano não tem
o prédio grande, mas o inevitável que dita o ambiente a ver com criar distâncias entre as pessoas, da forma
em que as pessoas comuns vivem e trabalham. É aqui como fazem os subúrbios no fim do mundo de Frank
que as regras se fazem mais necessárias, e era de acordo Lloyd Wright, mas aproximá-las de um jeito que se
com a forma e o aspecto dos prédios inevitáveis que sintam bem no local onde vivem comunitariamente.
os livros de referência clássicos (tais como os de Asher É esse o objetivo da cidade, e ele é, nas palavras de
Benjamin e Minard Lafever, usados pelos construtores Krier, facilmente alcançável. A «polipólis» é uma
originais das cidades da Nova Inglaterra) eram escritos. rede de espaços públicos genuínos, com assenta-
O plano tinha que se encaixar na «regra dos dez mentos comunitários marcados na disposição das
minutos» de Krier, ou seja, qualquer pessoa deve- ruas e no ordenamento dos prédios. Todo detalhe

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visual deveria ser arquitetônico, defende Krier, uma Essa é a visão que Krier tentou pôr em prática em
vez que cada um faz parte do espaço público. Os es- Poundbury, onde trabalhou lado a lado com arquite-
tilos de prédios tradicionais se conformam esponta- tos neoclássicos como Liam O’Connor e Quinlan Ter-
neamente a esse princípio, dado que foram ditados ry para realizar seu plano diretor. A cidade, que ainda
pelas boas maneiras: o construtor sabia que estava está sendo construída, é concebida como um espaço
adicionando algo ao espaço público da cidade e por público único e contínuo, organizado em torno de
isso teria que se adequar às leis silenciosas da poli- uma prefeitura, com cada prédio contribuindo para
dez. Como coloca Krier: a vista pública da qual faz parte. É um assentamen-
to pequeno, que crescerá com o tempo a 10 mil ha-
Todos os prédios, grandes ou pequenos, bitantes — Krier entende que uma cidade maior que
públicos ou privados, possuem uma face isso não precisa de um centro maior, e sim de outro
pública, uma fachada; portanto, sem ne-
nhuma exceção, causam um efeito nega- centro. E agora Poundbury é uma nova e bem-suce-
tivo ou positivo na qualidade do domínio dida comunidade, onde as pessoas trabalham, moram
público, enriquecendo-o ou empobre- e fazem compras, cujos residentes podem caminhar a
cendo-o de maneira radical e duradoura.
A arquitetura de uma cidade e do espaço qualquer lugar que precisem ir. A sensação é de uma
público é um assunto de preocupação co- cidade medieval, apesar de ter lugares mais apropria-
mum da mesma ordem que a lei e a lín- dos para nossa era mais atarefada, como um armazém
gua, fundamentos da civilidade e da civi-
lização. Sem sua aceitação por todos não que negocia somente produtos sustentáveis, dos quais
pode haver constituição nem manutenção o príncipe de Gales é um defensor fervoroso. Poun-
de uma vida civilizada. Elas não podem dbury também contém fábricas e depósitos, assim
ser impostas e sua rejeição comum não é
sinal de falta de compreensão, mas de um como escritórios e edifícios públicos. A única coisa
erro de conceito. que falta — um indicador de falha no plano de Krier

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de regeneração das cidades — é uma igreja. Não cabe acusado de ser pouco prático, a despeito do eviden-
ao arquiteto conceber tal construção, argumenta Krier, te sucesso de Poundbury. Inabalado pela hostilidade
pois é algo que os moradores têm que requisitar. No dos colegas de profissão, ele continua expandindo
entanto, é evidente que não podemos ignorar o fato de sua visão através de palestras, artigos e painéis, lem-
que os assentamentos tradicionais, que ele tanto admi- brando sua plateia e seus leitores de que é isso que ele
ra, começaram com a marcação de um local sagrado está fazendo: lembrando. Dentro da mente cada um,
até erguer-se um templo para ser a morada dos deuses. formando a medida das expectativas e a imagem dos
Onde Deus se sente em casa, nós também nos senti- assentamentos, existe uma ideia de lar que não é in-
mos; o verdadeiro significado das formas modernis- dividual, mas coletivo. Esse é o arquétipo que precisa
tas é o pressuposto de que não existe Deus, de modo ser recuperado, aquele que as políticas de deseducação
que essa concepção não tem lugar mais na sociedade, dos modernistas nos encorajaram a tirar da cabeça.
controlada pelo Grande Irmão. Krier parece concor- Como as leis da lógica ou os princípios da moralidade,
dar; mas o problema, ele diz, é encontrar uma forma não podemos encontrar essa ideia sem sermos persua-
de construção que permita que as pessoas descubram didos de sua obviedade. Já vi Krier dar palestras para
isso por elas mesmas. Tentar impor uma visão indo de um auditório cheio de céticos de esquerda que concor-
encontro aos instintos e aos planos da gente comum é daram com muita relutância em ouvir esse apologista
simplesmente repetir o erro dos modernistas. O ver- de uma era perdida. E, com modéstia, com suas ma-
dadeiro plano para uma cidade é deixar opções bem neiras que demonstram um autoconhecimento típico
definidas em aberto para cada um escolher, não esta- de um verdadeiro professor, Krier os persuadiu de que
belecer um objetivo comum de crença. as ideias que pregava não eram dele, mas deles. To-
É típico de nossa época que o projeto de Krier dos saíram do auditório com uma viva percepção de
para a renovação urbana tenha sido amplamente autoconhecimento, cientes de que suas utopias sociais

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eram «notícias do nada», comprometidos com o mun- Há aqueles que dizem — não somente a respeito
do real em que viviam. Tal é o efeito de Krier, como de Krier, mas de todo o movimento do Novo Urbanis-
pude verificar, em todo mundo que conhece. mo — que isso tudo é ótimo, mas chegou muito tarde.
Nada é mais distintivo de sua personalidade, no A tendência centrífuga da cidade já é irreversível, e a
entanto, do que o traço que o separa do resto dos ar- combinação estrutura de aço/divisórias chegou para
quitetos: a modéstia. Ele calmamente abre seus esque- ficar. Esses críticos, parece-me, precisam ser lembra-
mas acerca da cidade do futuro, ao mesmo tempo bus- dos de que a dispersão é insustentável e produzirá
cando nossa concordância e aberto a sugestões. Sua inexoravelmente uma situação em que o movimento
cara larga e seus olhos eufóricos irradiam entusiasmo; centrípeto acabará sendo a única alternativa ao colap-
à medida que desenrolam seus desenhos da pólis ima- so. Como Quinlan Terry demonstrou repetidas vezes,
ginária, suas mãos se parecem com a de um pai que construir com armação de aço e divisórias também é
tira gentilmente seu filho recém-nascido do berço. insustentável: as estruturas erigidas dessa maneira se
Embora ele deteste o vandalismo modernista que des- degradam facilmente e se mostram de manutenção
truiu o coração de nossas cidades, nunca deixa esca- cara. Ademais, são pouco adaptáveis, incapazes de
par nenhuma palavra ofensiva aos responsáveis. Todo acompanhar as mudanças das estruturas à sua volta.
o seu ser é voltado para o consenso, para uma união O que os adeptos do Novo Urbanismo estão propon-
democrática de nossas energias coletivas, no intuito do não é uma utopia, mas a única alternativa viável à
de criar um ambiente urbano onde nos sentiremos em contínua decadência urbana. Evidentemente, como o
casa. Ao lado de sua figura avantajada porém plácida, século xx — dos modernistas — nos ensina, as pessoas
você se sente na presença de uma energia incansável, possuem uma impressionante habilidade de seguir
que expressa um amor inabalável pela humanidade rumo à catástrofe entoando bordões e empunhando
comum. bandeiras. Mas por que deveríamos endossar tal com-

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portamento se estamos em plena posse de nossa facul- te atrairão as atenções para si, destacando-se da vizi-
dade crítica? A melhor coisa a fazer é meditar sobre as nhança. Muitos desses arquitetos-celebridade — Da-
palavras de Krier: niel Libeskind, Frank Gehry, Richard Rogers, Norman
Foster, Zaha Hadid, Peter Eisenman, Rem Koolhas —
Ao criar cidades, criamos nós mesmos. se muniram de jargões para explicar sua genialidade
Quando as despojamos, despojamos nós àqueles que se mostraram incapazes de captá-la. E,
mesmos. Nossas memórias mais queridas
a partir daí gerarão um arrependimento, quando se gasta dinheiro que pertence ao povo ou aos
uma perda irreparável, até mesmo de ódio acionistas, se é facilmente influenciado por jargões li-
em relação àquilo de que mais gostáva- sonjeiros confeccionados para se fazer crer que se está
mos. Nisso fugimos do mundo e de nós
mesmos. Uma linda vila, uma bela casa, gastando muito em algo original e revolucionário. A
uma cidade maravilhosa podem se tornar vítima disso tudo acaba sendo a cidade, bem como to-
uma casa para todos, uma casa universal. dos aqueles que a consideram seu lar e a amam.
Porém, se perdemos esse objetivo de vis-
ta, erigimos nosso próprio exílio aqui na Houve alguns arquitetos de fato geniais — Mi-
Terra. chelangelo, Palladio, Frank Lloyd Wright. No entanto,
como mostrou Krier, uma cidade viva não é obra de
um gênio: é obra de trabalhadores simples e de suas
O exílio é o que as utopias coletivistas prometem;
constantes conversas consigo própria. Uma cidade é
o lar se encontra na direção oposta. Contudo, é uma
um tecido em contínua evolução, retocado e reparado
direção que nossos planejadores urbanos e funcioná-
para nosso uso, no qual a ordem emerge através de
rios públicos ainda se recusam a aceitar. Os projetos
uma «mão invisível» proveniente do desejo das pes-
públicos em nossas cidades são sempre designados a
soas em se dar bem com seus vizinhos. É isso que fez
uma mesma panelinha de «arquitetos-celebridade»,
com que cidades como Veneza e Paris, onde até os
escolhidos para desenhar estruturas que seguramen-

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grandes monumentos — a praça San Marco, a Notre- surpreender, portanto, que as «obras geniais» que os
-Dame, a praça Vendôme, a San Rocco —, um bálsa- planejadores urbanos não só autorizam, mas enco-
mo para os olhos que irradia um sentimento de per- mendam, pareçam com coisas que não têm nada a ver
tencimento, fossem possíveis. No passado os gênios com arquitetura: um legume, um carro, um secador
fizeram de tudo para criar harmonia entre ruas, céu e de cabelo, uma máquina de lavar ou uma tralha de
espaços públicos — como Bernini na praça San Pietro fundo de quintal. O que faz com que um prédio entre
—, ou para criar um vocabulário — como fez Palladio na concepção de arquitetura, ou seja, a habilidade de
— que formasse uma língua franca compartilhada de embelezar uma localidade e de fortalecer o sentimento
uma cidade na qual todos poderiam se sentir em casa. de lar, já não é mais levado em conta.
Na direção oposta, a nova arquitetura, tipificada É por vezes levantado que as amarras modernis-
pelo caríssimo Museu Guggenheim de Gehry em Bil- tas tornam impossível para os arquitetos se comportar
bao, pela distorcida prefeitura de Londres de Norman como seus predecessores, recobrindo os edifícios com
Foster, pelo prédio do Banco Lloyd, que mais parece um verniz clássico reminiscente dos estilos clássicos
um utensílio de cozinha, de Richard Rogers, ou pe- ou góticos, colocando pedra lavrada sobre armações
las reluzentes bugigangas de Zaha Hadid, é feita para de ferro ou coroando uma rua com uma fachada que
desafiar a área ao redor, bem como para se destacar contenha uma cornija vignolesca de estanho. O que
como sendo um trabalho de um artista inspirado, o antes eram soluções baratas para uma demanda públi-
qual não constrói para o povo, mas esculpe espaços ca por ornamento e ordem agora se tornaram custos
para saciar sua própria vontade de se expressar. Essa proibitivos. O espaço é limitado, o trabalho de quali-
abordagem da arquitetura é encorajada pelas escolas dade é raro e as obras de engenharia gigantescas de
e outras instituições arquitetônicas, tais como a Ar- fácil percepção não muito caras em termos relativos. É
chitectural Association e a RIBA. Não deveríamos nos por isso que pedimos benção para os arquitetos-cele-

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bridade, já que autorizam o que seria um vandalismo
em larga escala.
O típico prédio desses arquitetos não possui fa-
chada ou uma orientação que dividem com seus vi-
zinhos. Frequentemente parece que são modelados
como utensílios de cozinha, como se a ideia fosse que
mãos gigantes pudessem manuseá-los. Não cabem em
uma rua nem jazem alegremente ao lado de outros
prédios. A bem da verdade, são concebidos como um
desperdício — um descarte arquitetônico que envolve
vastas quantidades de matérias e muita energia, e que
serão demolidos dentro de vinte anos. Paisagens ur-
banas erigidas sob essa arquitetura se assemelham a
aterros — pilhas de lixo plástico espalhado que nossos
olhos tentam evitar desesperadamente. Engenhocas
arquitetônicas são largadas na paisagem urbana como
se fossem dejetos, sem encarar nem incluir os tran-
seuntes. Podem oferecer abrigo, mas nunca propor-
cionam um lar. Ao nos habituarmos a elas, perdemos
um componente fundamental no que tange nosso res-
peito pela terra. E, no fim das contas, é para isso que
serve uma cidade: consagrar a terra abaixo de nós.

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Capítulo 6 maiores transgressores foi Kierkegaard, que defende
NOMEANDO O INEFÁVEL de cem forma distintas que o supremo é impossível
de ser expressado, que a verdade é «subjetiva», que o
significado da vida não pode ser dado por nenhuma
São Tomás de Aquino, que dedicou algo em torno fórmula, proposição ou abstração, somente pela expe-
de 2 milhões de palavras para explicar, na Suma teo- riência concreta de rendição, cujo conteúdo não pode
lógica, a natureza do mundo, o propósito de Deus ao nunca ser codificado em palavras.
criá-lo e nosso destino nele, terminou sua curta vida A mesma ideia pode ser vista em Schopenhauer,
(curta em comparação com nossos parâmetros atuais, para quem a verdade do mundo é a vontade, que não
pelo menos) em estado de êxtase, dizendo que tudo o pode ser representada por conceitos. Ele dedicou qua-
que havia escrito não tinha o menor significado além se 500 mil palavras a essa coisa que nenhuma palavra
da visão beatífica que lhe havia sido concedida, a qual pode capturar e estabeleceu uma tendência que ainda
as palavras não podiam descrever. Ele foi talvez o mais sobrevive. Por exemplo, há um livro curto (ainda bem)
contundente exemplo de um filósofo que chegou à de Jankélévitch, La Musique et l’inefable, em que esse
conclusão de que o mundo era inefável. Tendo chega- argumento é elucidado logo na primeira página — no
do a esse ponto, obedeceu à injunção de Wittgenstein, caso, que a música funciona com base em melodias,
cujo Tratado lógico-filosófico se encerra com a seguin- ritmos e harmonias, e não em conceitos, e que não
te proposta: «daquilo que não se pode falar, deve-se contém mensagens que possam ser traduzidas em pa-
calar». Mas são Tomás de Aquino era uma exceção. lavras. Em seguida se vê 50 mil palavras dedicadas às
A história da filosofia está cheia de pensadores que, mensagens da música — na maioria sugestivas, poéti-
tendo concluído que a verdade era inefável, passaram cas e atmosféricas, mas ainda assim palavras, dedica-
a escrever páginas e mais páginas sobre isso. Um dos das a um tema que não admite explicação através delas.

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A tentação de se refugiar no inefável não é cir- você não acrescente (como ele fez) maiores e melhores
cunscrita aos filósofos. Toda a investigação acerca dos pormenores. Todo mundo que atravessa a vida com a
princípios iniciais, causas originais e leis fundamen- mente e o coração abertos encontrará momentos de
tais, deparará eventualmente com uma questão irres- revelação, momentos que são impregnados de signi-
pondível: o que faz com que esses princípios iniciais ficados, os quais não podem ser postos em palavras.
sejam verdadeiros ou essas leis fundamentais, válidas? Eles são preciosos para nós. Quando ocorrem é como
O que explica as causas originais ou condições ini- se, subindo a penumbra da escada em caracol da nossa
ciais? A resposta é que não há resposta — ou ao menos vida, de repente deparássemos com uma janela, através
nenhuma resposta que possa ser dada em termos cien- da qual avistamos outro mundo mais brilhante, ao qual
tíficos que exigem que esses princípios, leis e causas pertencemos, mas em que não podemos adentrar.
constituam o parâmetro central. Mas ainda assim que- Também tenho uma tendência a verbalizar o ine-
remos uma resposta. Então como devemos proceder? fável. Assim como os filósofos que me precederam,
Não há nada de errado em se referir ao inefável quero descrever o mundo do lado de fora da janela,
quando se chega a esse ponto. O erro é descrevê-lo. apesar de saber que ele não pode ser descrito, somente
Jankélévitch está certo quanto à música. Ele está certo revelado. Não sou o único que pensa que o mundo é
em relação a algo poder ter significado ainda que ele real e importante. Mas há muitos que enxergam que
fuja a qualquer tentativa de ser colocado em palavras. tal visão é uma ficção não científica. Pessoas com essa
A Balada F acentuada de Fauré é um exemplo: assim disposição mental me parecem muito desagradáveis.
como o é o sorriso de Mona Lisa; assim como o é a luz Suas convicções de que os fatos por si só podem sig-
do crepúsculo sobre o morro da parte de trás da minha nificar e de que o «transcendental» e o eterno não são
casa. Wordsworth descreveria tais experiências como nada além de palavras os definem como incompletos.
«intimidações», o que não é nada mais justo, desde que Há um aspecto da condição humana que lhes é ne-

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gado, e de suma importância. Nossos amores e espe- causas, pois ele possui um significado que nunca é re-
ranças de alguma forma dependem dele. Amamos uns velado. Só que não, não há caminho, nem mesmo esse,
aos outros como os anjos amam, buscando o incog- para se chegar à causa do mundo, pois, sobre aquilo
noscível «eu»; nutrimos esperança da mesma forma que não podemos falar, temos que guardar silêncio —
que os anjos nutrem: com nossos pensamentos fixos como fez são Tomás de Aquino.
no momento em que as coisas deste mundo se desfa-
zem, envoltos em «uma paz que supera a compreen-
são». Colocar meu ponto dessa forma indica que já fa-
lei muito. Isso porque minhas palavras fazem parecer
que o mundo do lado de fora da janela na verdade está
aqui, como uma fotografia na parede da escada. Mas
não; ele está lá, para além da janela que não pode ser
aberta.
Contudo, sinto o cutucão de uma pergunta, as-
sim como você deve sentir. O que os momentos de
revelação têm a ver com nossas questões existências
supremas? Onde a ciência não alcança, como naque-
les princípios e condições dos quais as explicações
nascem, a visão da janela supre os termos científicos?
Nossos momentos de revelação apontam para a causa
do mundo? Quando não penso sobre isso, a respos-
ta parece bastante clara. Sim, há mais no mundo que

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Capítulo 7 se levantar da mesa e ir até a casa do amigo. Não há
ESCONDENDO-SE ATRÁS DA TELA necessidade de reuniões semanais, encontros em me-
sas de bar ou restaurante. Todos esses esforços para se
encontrar não fazem mais sentido: com um toque no
Muitos observadores diriam que redes sociais teclado você está lá, onde queria estar, no lugar que de-
como o Facebook proporcionam benefícios psicológi- fine seu amigo. Será que isso pode ser realmente uma
cos, ajudando aqueles que são muito tímidos a dar as amizade, uma vez que foi desenvolvida de maneira tão
caras ao mundo, a ter uma identidade e a interagirem fácil e sem custo? O relatório do Centro Annenberg re-
com os outros. Esses sites também possibilitam manter vela, com toda a alegria do mundo, que 20% daqueles
contato com um amplo círculo de amigos e colegas, au- que participam de comunidades on-line também se en-
mentando a vida afetiva e inundando o mundo de men- gajam em alguma atividade off-line com outros mem-
sagens positivas e boas intenções. Até onde as pesquisas bros ao menos uma vez ao ano. Só uma vez ao ano!
chegam no que tange as opiniões daqueles que utilizam Ou veja por outro ângulo. Um total de 80% das pessoas
essas redes, parece que o veredito é bastante positivo. O que participam de comunidades on-line não tem um
Centro Annenberg Para o Futuro Digital, da Universi- encontro cara a cara, nem mesmo uma vez ao ano, com
dade da Carolina do Sul, declarou em seu sexto relató- essas pessoas que elas contam como suas amigas.
rio anual que a internet finalmente está mostrando seu A evidência pode ser analisada de ambos os la-
potencial, de ferramenta social e pessoal. dos. Claro que a amizade real se mostra em ação e
Porém, algo novo está surgindo no universo hu- afeição. O amigo de verdade é aquele que socorre você
mano com essas redes sociais aparentemente inofensi- na hora de maior necessidade, aquele que o conforta
vas. Agora existe uma facilidade maior em contatar os nas adversidades e compartilha o sucesso dele. É difí-
outros através de uma telinha. Não há necessidade de cil fazer isso por uma tela — afinal, ela é uma fonte de

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informação, não de ação. Uma mão não pode sair dela De fato, como Christine Rosen defendeu tão
para acariciar você, dar-lhe dinheiro, impedir o golpe convincentemente, um conceito inteiramente novo
de um inimigo, ainda que um usuário do blog Profy de amizade está surgindo em vistas desses novos si-
alegue que, quando as coisas ficaram apertadas, al- tes. Os amigos são links, que direcionam para links
guém com quem ele jogara durante alguns anos tenha de outros amigos, e cada um possui seu próprio site,
lhe enviado 1500 dólares. Esse tipo de gesto espontâ- os quais consistem em exibir os gostos, os hobbies
neo é possível em qualquer tipo de relacionamento, e as fotos da pessoa em questão. É isso que virou o
obviamente. Contudo, é de pensar que, quanto mais conceito de amizade nos dias de hoje. O site existe
as pessoas satisfaçam sua necessidade por companhia não para exercê-la, mas para esbanjá-la; as pessoas se
através de relacionamentos mediados por uma tela, preocupam em «colecionar» amigos, e sua autoestima
menos desenvolverão amizades do outro tipo, que aumenta em função de quantas pessoas estão conec-
oferece ajuda e conforto nas piores provações. Amiza- tadas à sua página. Cada site tem um único propósito
des construídas e mantidas diante de uma tela dificil- que figura acima de qualquer outro: exibir o dono da
mente podem ser transplantadas para outro domínio conta. Como diz Rosen, a máxima délfica «conhe-
e, quando são, não há a menor garantia de que vão ce a ti mesmo», que para os gregos era a essência de
se consolidar. De fato, é exatamente sua facilidade, o uma relação social significativa, foi substituída por:
rosto sempre bonito e agradável que emana da telinha, «mostre a ti mesmo». E a amizade se dá simplesmente
que atrai a maioria para essa modalidade de intera- mostrando a si mesmo na companhia de outro. Nada
ção — tanto que o Facebook se torna um vício, e as sugere que ela é uma esfera de atividade, muito menos
pessoas frequentemente acabam tendo que se proibir uma esfera de obrigações. Esse é o mundo sem custos,
de verificá-lo por dias no intuito de poder seguir em com todos nós lado a lado na vitrine, como se fôsse-
frente com suas vidas. mos um coral.

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Evidentemente, amizades que se originaram na pessoas se tornavam amigas por estarem na presença
internet podem se desenvolver fora dela, nessa arena uma da outra, compreendendo todos os vários sinais
tão perigosa de atividades reais e desejos concretos. E bem sutis, tanto verbais quanto corporais, que entre-
é nela que as novas oportunidades de engano e pre- gavam o verdadeiro caráter, as emoções e as intenções
dação se revelam. Todos sabemos o quanto crianças e do interlocutor, construindo assim afetos e confiança
jovens são vulneráveis àqueles que estão à espreita na simultaneamente. A atenção era voltada para o outro
internet. Todo tipo de mentira pode ser orquestrada — para sua cara, para suas palavras e seus gestos. E
em frente da câmera: uma biografia de mentira, uma sua natureza como uma pessoa encarnada era o foco
foto falsa, endereço, intenções — nada disso pode ser dos sentimentos de amizade que ela inspirava. Pessoas
detectado até que se encontre cara a cara nas circuns- que constroem amizade dessa maneira estão perfei-
tâncias ditadas pelo predador, e aí já é tarde demais. tamente cientes de que são vistas da mesma forma
É claro que nada disso é totalmente novo: agências de que veem. O rosto do outro é um espelho no qual se
encontros amorosos sempre foram vítimas de preda- enxergam. É precisamente pelo fato de que a atenção
dores sexuais, e as armadilhas perpetradas através de está voltada para o outro que existe a oportunidade
cartas existem desde que se inventou a escrita. Não de autoconhecimento e autodescoberta, e essa liber-
obstante, hoje há a oportunidade de se criar uma per- dade expansiva que sentimos na presença de alguém é
sonalidade virtual e com ela adentrar o mundo real uma das maravilhas da vida. O objeto de sentimentos
no intuito de tomar para si bens adquiridos de forma de amizade olha você de volta e responde livremente
desonesta e que se mostram mal protegidos. à sua liberdade, amplificando tanto sua consciência
O que estamos testemunhando é uma mudança quanto a dele. Resumindo, a amizade, como conce-
na atenção que media e possibilita a amizade. Quan- bida tradicionalmente, é governada pela máxima do
do as condições de contato humano eram normais, as «conhece a ti mesmo».

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Quando a atenção está voltada para a tela, porém, cia. Isso é algo que sei sobre ela que ela sabe que eu sei
há uma notável mudança de ênfase. Para começar, fico — e vice versa. E assim cresce entre nós um encontro
com meu dedo no teclado. Isso me permite apagar a de risco reduzido, em que ambos estão cientes de que
tela a qualquer momento, ou passar para uma conver- o outro se encontra refém ao mesmo tempo que sobe-
sa com qualquer outra pessoa. O outro também pos- rano nas torres de seu castelo cibernético.
sui a mesma liberdade, só que não está livre no meu, No entanto, essa não é a única forma como os re-
pois fica totalmente à mercê da minha decisão de não lacionamentos cibernéticos são afetados pelo meio no
o cortar. Em última instância, eu mantenho o contro- qual foram formados. Tudo o que aparece na tela com-
le, e, de algum modo, a verdade é que não coloco a pete pela atenção do amigo, à distância de um clique.
amizade em risco da mesma maneira que colocaria Você clica em um amigo da mesma forma como você
pessoalmente. Claro, o outro talvez atraia tanto minha clica em uma notícia, em uma música, em um vídeo.
atenção, com suas mensagens, imagens e sugestões, Ele é só mais um produto na prateleira. Essa amizade,
que posso ficar grudado na tela. Não obstante, não e as amizades como um todo, acaba caindo na cate-
deixa de ser uma tela a isso a que me grudo, e não o goria de divertimentos e distrações, uma commodity
rosto do outro lado. Toda interação é à distância, e só que pode ou não ser escolhida, dependendo da oferta
pode me afetar caso eu escolha ser afetado. Desfruto ao lado. Suas amizades já não são mais especiais para
de um poder sobre essa pessoa de que ela própria não você nem definem sua vida moral: elas são divertimen-
tem noção — uma vez que não pode saber o grau da tos — o que os marxistas chamariam de «fetiches»,
minha vontade de reter sua presença no espaço dian- coisas que não possuem vida real própria, existindo
te de mim. Ela, portanto, tampouco arriscará muito, somente em função de como os usuários as enxergam.
adotando a postura de permanecer na tela somente Como eu disse, é pertinente a ideia de que a expe-
sob a condição de estar no controle em última instân- riência do Facebook, que atraiu milhões de pessoas no

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mundo todo, seja um antídoto para a timidez, uma for- encorajar um tipo de narcisismo, uma postura autos-
ma de pessoas normalmente desajeitadas e com medo suficiente, no lugar do que deveria ser uma disposição
de se aventurar na sociedade conseguir superar seus de cooperação e compartilhamento. A verdade, no fim
problemas e desfrutar dos relacionamentos afetuosos das contas, pode ser que nada importa além da exibição
dos quais nossa saúde mental tanto depende. Contudo, de si mesmo, e as pessoas elencadas nas listas de amigos
também é pertinente a ideia de que a experiência do talvez sejam desprovidas de qualquer valor em si.
Facebook só aumenta a timidez, retendo seus traços Na maioria das vezes, porém, o encontro pelo
principais, ao mesmo tempo que substitui o afeto real, Facebook ainda é um encontro — não importa quão
que a timidez tanto teme, por um ilusório. Isso por- sincero — entre pessoas. Estamos testemunhando
que, ao colocar uma tela entre você e seu amigo, ainda o próximo estágio do vício das telinhas, no qual elas
que retenha o controle em última instância sobre o que finalmente tomarão o controle, deixando de ser um
aparece nela, você também se esconde do encontro real meio de comunicação entre pessoas reais, que estão
— proibindo ao outro exercer o poder e a liberdade de em lugares distintos, para se tornar o lugar onde as
desafiar sua natureza mais profunda e cobrar sua res- pessoas atingem a realidade, o único espaço onde se
ponsabilidade, aqui e agora, por vocês dois. relacionam de um jeito coerente. Refiro-me ao fenô-
Aprendi que a timidez não é uma virtude, e sim meno do «avatar», em que cria-se seu próprio subs-
um defeito, e ela surge do fato de se colocar um valor tituto, cuja vida na tela é tudo o que interessa no fim
muito alto em si mesmo — o que impede alguém de das contas, o que possibilita todos a viver suas vidas da
assumir riscos interagindo com os outros. Acredito de forma mais autocomplacente possível, sem se expor a
verdade nesse diagnóstico. E isso corrobora a ideia con- qualquer tipo de risco, mas mesmo assim desfrutando
trária à experiência do Facebook. Ao remover os riscos de um afeto substituto através das aventuras de suas fa-
reais dos encontros interpessoais, a rede social pode ces cibernéticas. O Second Life, que oferece um mun-

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do virtual e convida você a entrar nele na forma de um caso no ciberespaço sem demonstrar nenhum pingo
avatar que pode ser escolhido entre suas várias opções de culpa em relação à parte traída, exibindo suas emo-
de modelos diferentes, possui mais de 100 milhões de ções narcisistas como se tivesse feito uma espécie de
usuários mundo afora. Dentro dela se tem uma moe- descoberta moral, seguros de que foram seus avatares,
da própria, com a qual as compras podem ser feitas e não eles dois, transaram.
em suas lojas. Espaço é alugado para os avatares como Talvez seja esse o modelo que muitos seguirão,
se morassem e trabalhassem ali. Também proporcio- do adultério sem riscos. John dá à luz ciberneticamen-
na oportunidades para ação «social», com posições te a Johngo, um avatar que possui todas as qualida-
atingidas por mérito. Dessa forma as pessoas podem des que falta a ele: é forte, bonito, corajoso e cheio de
aproveitar, por meio de seus avatares, versões grátis de vida, ainda que não seja tão inteligente, uma vez que
emoções sociais, tornando-se heróis da «compaixão» a criatura não pode ser tão esperta quanto o criador.
sem que seja preciso levantar um dedo no mundo real. John fica o dia inteiro grudado na tela, navegando com
Algumas nações já têm inclusive embaixadas no Se- Johngo pelo espaço cibernético em busca de encon-
cond Life, que seu avatar pode visitar para obter con- tros que testarão sua coragem e lhe trarão fama. En-
selhos sobre imigração, comércio e política. Em um quanto isso, Mary deu à luz seu próprio avatar, uma
incidente notório recente, um avatar tentou processar garota cibernética linda e cheia de graça, de deixar
outro por conta de direitos autorais, e está sempre à qualquer homem de queixo caído, Masha. Ainda que
espreita a crescente tentação da pornografia, com sites na vida real Mary seja uma chocólatra obesa que tema
de avatares em que uma criança cibernética pode rea- os homens, com Masha ela pode se permitir todo o
lizar suas fantasias mais selvagens sem nenhum risco tipo de luxúrias e promiscuidades reprimidas. Johngo
para você. No YouTube se pode ver um filme em que e Masha se encontram, e como não se impressiona-
um casal que nunca se encontrou de fato descreve seu riam um com o outro? O garanhão tolo e a promís-

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cua manipuladora começam um relacionamento que samento ressuscita todas aquelas críticas, outrora fora
pode a qualquer momento ser rompido na fonte, basta de moda, relacionadas a alienação e fetichismo das
John e Mary enjoarem um do outro. Se o caso seguir, commodities que Marx e seus seguidores usaram para
é unicamente porque ambos gostam da fantasia de um castigar a sociedade capitalista. Ele nos dá a chance de
relacionamento em que nenhuma das partes se apega; revisitar essas críticas de modo a analisar se há algo de
caso acabe, não haverá corações partidos, uma vez que verdade a ser descoberto nelas.
não há corações a ser partidos. Ainda assim, John e A origem das antigas críticas está em uma ideia
Mary sabem que seus avatares não têm nenhum futu- de Hegel de importância duradoura, que está sempre
ro. Johngo e Masha conheceram suas respectivas nê- voltando em diferentes roupagens, principalmente
meses, e sua rotina pode continuar para sempre, presa nos escritos de psicólogos preocupado em mapear os
ao amontoado de fantasias que controlam a tela. contornos da felicidade ordinária. A ideia é: nós, seres
Penso que muita gente veria nisso um relaciona- humanos, nos preenchemos através de nossas próprias
mento pouco saudável. Uma coisa é colocar uma tela ações livres, e é através da consciência que elas indicam
entre você e o mundo, outra é habitar essa tela como se nosso valor individual. Mas não somos livres natural-
não houvesse relacionamentos fora dela. Ao suprir sua mente nem temos, fora do mundo das relações huma-
vida emocional com aventuras de um avatar, você está nas, o tipo de consciência do «eu» que permite valori-
abandonando os relacionamentos reais completamen- zar e proporcionar nosso preenchimento. A liberdade
te. Em vez de ser um meio para desenvolver as rela- não é reduzida às escolhas desimpedidas que até mes-
ções pessoais fora dele, o computador pode acabar se mo um animal pode desfrutar; nem a autoconsciência
tornando seu único domínio social — com uma vida é simplesmente uma questão de imersão prazerosa nas
irreal e pessoas irreais. Quem controla o avatar pôs experiências imediatas, como o daquele rato de labo-
essencialmente «seu ser fora de si próprio», e esse pen- ratório que pressiona incansavelmente o botão do pra-

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zer. A liberdade envolve um engajamento ativo com o dade e minha individualidade e em seguida as testo
mundo, em que obstáculos são encontrados e supera- no mundo das relações humanas. É somente entrando
dos, riscos são tomados e satisfações são ponderadas. nesse mundo, com seus riscos, conflitos e responsabi-
Já que nos falta um exercício de razão prática, é na pro- lidades, que passo a me enxergar como livre, podendo
cura dos objetivos, cujos valores nós lhes atribuímos, assim desfrutar de minha própria perspectiva e indivi-
que se deve justificar os esforços necessários para os dualidade, e me tornar uma pessoa realizada no meio
obter. Bem como a autoconsciência, em sua forma to- de outras. Em Fenomenologia do espírito e em Prin-
talmente realizada, envolve não apenas uma abertura cípios da filosofia do direito, Hegel elenca várias pa-
à experiência presente, mas também um sentido da rábolas agradáveis e provocativas acerca do caminho
minha própria experiência como indivíduo, com pla- pelo qual os sujeitos atingem a liberdade e a realização
nos e projetos que podem ser cumpridos, e com uma através de seu Entäusserung — sua objetificação — no
concepção clara do que EU estou fazendo, com que mundo dos outros. E o status dessas parábolas — se-
propósito e com que esperança de felicidade em mente. jam elas argumentos ou alegorias, análises conceituais
Todas as ideias estão contidas no termo, primei- ou generalizações psicológicas — sempre foi um tema
ramente introduzido pelo filósofo alemão pós-kantia- envolto em disputas. Mas não acho que nenhum psi-
no J. G. Fichte no intuito de denotar o objetivo interno cólogo hoje seria contra a alegação fundamental que
de uma vida pessoal livre, Selbstbestimmung, ou auto- permeia todas elas: de que a liberdade e a realização
certeza. A alegação crucial de Hegel é de que a vida da do eu se dá somente a partir do momento que reco-
liberdade e da certeza só pode ser obtida através dos nhecemos os outros. Sem os outros, minha liberdade é
outros. Eu me torno eu mesmo completamente nos uma cifra vazia, e o reconhecimento dos outros envol-
contextos em que sou compelido a reconhecer que sou ve tomar responsabilidade total pela minha experiên-
outro aos olhos de outros. Não adquiro minha liber- cia própria na condição de indivíduo.

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Em seus esforços para «recolocar a teoria de Hegel Permita me deixar claro que não endosso essa crí-
nos trilhos», o jovem Marx traçou um importante con- tica da propriedade e do mercado, e a vejo como um
traste entre a liberdade verdadeira, que nos vem através transbordamento extravagante de uma filosofia que,
do relacionamento com outros sujeitos, e a escravização compreendida apropriadamente, endossa as transações
velada que surge quando nossas andanças no mundo de livres dentro doo mercado tanto quanto endossa as rela-
fora não se dão na direção de sujeitos, mas de objetos. ções livres entre pessoas no geral, inclusive vendo aque-
Em outras palavras, ele sugeriu, temos que discernir la como nada mais que uma aplicação desta. Contudo,
entre a realização do eu, na relação livre para com os a discussão não me parece relevante para se chegar ao
outros, da alienação do eu no sistema das coisas. Essa é meu ponto: a ideia de Entäusserung, a realização do eu
a essência de sua crítica à propriedade privada, tão im- através de relações responsáveis com os outros. Essa é,
pregnada de alegoria e história quanto os argumentos ao meu ver, a maior contribuição da filosofia românti-
hegelianos iniciais. Em seus escritos posteriores, ela é ca alemã para a compreensão da condição moderna, e
transformada na teoria do «fetichismo», que diz que as é uma ideia que tem uma aplicação direta nos proble-
pessoas perdem sua liberdade através do fetiche com mas que vemos emergir no novo mundo de vícios da
que tratam as mercadorias. Um fetiche é algo que ganha internet. Parece-me incontroverso que, considerando a
vida por meio de uma vida transferida. O consumidor liberdade um valor, a liberdade é um artefato que vem
em uma sociedade capitalista, de acordo com Marx, a existir através da interação entre pessoas. Essa intera-
transfere sua vida para a mercadoria que o enfeitiça, e ção mútua é o que nos ergue da condição de animal à
nisso a perde, tornando-se escravo do objeto precisa- de gente, possibilitando que nos responsabilizemos por
mente porque enxerga o mercado como bens, em vez nossas vidas e ações, que nosso caráter e nossas metas
de vê-lo como as interações livres entre pessoas, um lu- sejam avaliados, tanto para entender a natureza de nos-
gar onde seus desejos são negociados e realizados. sa realização pessoal quanto para nos colocarmos em

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uma posição de desejar algo e correr atrás. Esse proces- — uma coisa inanimada na qual investimos nossa
so é crucial, como enfatiza os hegelianos, para o cresci- vida de modo que acabemos por perdê-la. É lógico
mento do sujeito humano na condição de agente que se que mantemos o controle final em relação à televi-
autoconhece, capaz de utilizar e habilitar as faculdades são, porque podemos desligá-la. Mas as pessoas, em
racionais, com uma perspectiva em primeira pessoa de- sua maioria, não a desligam, passando tanto tempo
senvolvida e um senso de realidade próprio como um diante da tela que perdem momentos preciosos para
sujeito no meio de outros tantos. É um processo que construir relacionamentos, deixando de interagir em
depende de conflitos reais e soluções reais, dentro de conversas, atividades, conflitos e projetos. A televisão,
um espaço público compartilhado onde cada um de ao menos no caso de milhões de colegas, destruiu as
nós deve prestar contas pelo que diz que faz. Qualquer refeições familiares, os hobbies, o hábito de cozinhar,
coisa que interfira com esse processo, na medida em que o estudo e os jogos em família, como charadas. Ela
solapa o crescimento das relações interpessoais, confis- deixou muita gente desarticulada e privou essas pes-
cando responsabilidade ou desencorajando e impedin- soas das formas simples de se fazer contato, por meio
do um indivíduo de fazer escolhas racionais no longo de conversas com seus semelhantes. Não me refiro
prazo e adotar uma visão concreta de sua própria rea- somente à afirmação de que a tv «emburrece e acaba
lização, é um mal. Pode ser um mal evitável, mas ainda com a imaginação» nem mesmo à manipulação dos
assim é um mal, que devemos lutar para abolir. desejos das massas através de imagens extravagantes.
É inegável que há maneiras de fugir ou atrapalhar Tampouco me refiro à sua qualidade viciante — ain-
o processo de autorrealização, e o vício em internet é da que pesquisas conduzidas por Mihaly Csikszent-
só uma delas. Muito antes de surgir e preparando o mihalyi e Robert Kubey atestem sem sombra de dúvi-
caminho, veio o vício da televisão, que corresponde da que a tv vicia da mesma maneira que as drogas e
exatamente à crítica marxista e hegeliana do fetiche os jogos de azar.

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Refiro-me à natureza da televisão como um subs- ou relacionamentos. Os do segundo grupo apresen-
tituto para os relacionamentos. Ao assistir pessoas in- tam ideias, vão atrás dos outros, irradiam o tipo de
teragindo na tv, o viciado se sente dispensado de se liberdade e espírito aventureiro que faz com que es-
engajar em suas próprias interações. Essas energias e tudar seja um prazer e um desafio. Muitos desses jo-
esses interesses, que de outra forma seriam dirigidos vens independentes da tv receberam a maior parte de
para outras pessoas, contando histórias, argumen- sua educação em casa, ou de produtos relacionados
tando, cantando, jogando, caminhando, papeando, à religião, estando acostumados a cantar hinos e re-
comendo e interpretando, agora são consumidos pela zar em casa. E, sim, isso quer dizer que eles são fre-
tela através de vidas vicárias que não envolvem ne- quentemente reprimidos pelos professores liberais
nhum engajamento das capacidades morais do espec- que desprezam a Bíblia, sem se dar de conta de que é
tador. Assim, suas capacidades mentais só vão atro- o espírito dela que ainda sustenta os Estados Unidos
fiando. Vemos isso por toda parte na vida moderna, de pé. Mas, na minha opinião, a verdade é que esses
mas em nenhum lugar fica mais escancarado que na alunos largaram bem na frente que seus contempo-
vida daqueles que acabaram de entrar em uma facul- râneos viciados em tv. Eles podem ser, de fato, livres
dade. Eles se dividem em dois grupos: os das casas em desses vícios, e o propósito do esporte universitário,
que reina a tv e os daqueles que cresceram conver- do teatro, da música, e por aí vai, é fazer com que a
sando. Os do primeiro grupo tendem a ser reticen- tv se torne algo marginalizado no campus. Porém,

tes, desarticulados, dados a agressões quando estão em vários outros espaços públicos ou semipúblicos a
sob estresse, incapazes de contar uma história ou de tv já se tornou quase que uma necessidade; ela bri-

expressar um ponto de vista, além de se mostrar vi- lha nos bastidores, garantindo àqueles que investiram
sivelmente atrapalhados quando lhe são atribuídas nela que suas vidas não acabarão tão cedo. A resposta
responsabilidades relacionadas a tarefas, atividades correta a esse tipo de vício não é atacar quem produz

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os aparelhos ou quem a infesta de programas de mau físico imediato ou vergonha emocional, nem precisa-
gosto: é concentrar no tipo de educação que faz com mos prestar contas aos outros caso resolvamos apertar
que seja possível criticar essa abordagem da tv, de for- um botão e sair da bolha. Você pode decidir «matar»
ma que demande dos aprendizes insights verdadeiros sua identidade de tela qualquer hora e não sofrerá ne-
e emoções reais, em vez de espasmos kitsch, Disney e nhuma consequência por isso. Mas por que nos preo-
pornografia. E o mesmo vale para o iPod. cupar em entrar no mundo dos encontros verdadeiros,
Trabalhar em direção dessa abordagem crítica quando temos à nossa disposição um dispositivo que a
significa esclarecer as virtudes associadas às relações substitui tão bem? A verdade é que, quando esse subs-
diretas e por que elas são melhores do que as relações tituto se torna um hábito, as virtudes necessárias para
vicárias. Por que nos damos ao trabalho de viver em os encontros reais não se desenvolvem.
vez de, como disse Villiers de L’isle Adam, pedir aos Não podemos deixar de mencionar que o hábi-
empregados que o façam por nós? Por que criticamos to de reduzir riscos se espalhou por toda a sociedade,
quem come hambúrguer no sofá diante da tela? Dei- sendo inclusive encorajado pelo Estado. Uma obses-
xemos essas perguntas bem respondidas, e aí sim po- são doentia com a saúde e uma loucura desmesurada
deremos começar a educar nossas crianças na arte de com segurança confiscaram muitos dos riscos em que
desligar a televisão. gerações anteriores nunca nem pensaram, tomando-
Somos seres racionais, dotados de razão prática -os como partes constituintes do processo de educa-
e teórica. Nossa razão prática se desenvolve através da ção moral. Seja o acolchoamento do parquinho de
confrontação com o risco e a incerteza. Em um sentido diversões das crianças, os capacetes obrigatórios para
importante, a vida na tela é livre de riscos. Podemos os skatistas ou a criminalização do vinho na mesa do
tomar a decisão de desligar o aparelho ou mudar de ca- jantar da família, os fanáticos pela saúde e pela segu-
nal, pois não estamos expostos a nenhum tipo de risco rança estão de olho em tudo, com uma teia de proibi-

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ções ao mesmo tempo que encorajam a ideia de que O hábito de evitar o risco nas relações humanas
os riscos não são um problema individual, mas objeto significa evitar a prestação de contas, recusar-se a se
de políticas públicas. As crianças como um todo não colocar para julgamento perante os olhos dos outros, a
são encorajadas a tomar riscos físicos por si próprias e, ficar cara a cara com outra pessoa, a se dar para quem
como consequência, acabam tampouco tomando ris- seja, fugindo do risco da rejeição. Prestar contas não é
cos emocionais no futuro. algo que devemos evitar, é algo que precisamos apren-
Entretanto, não penso que isso seja nem uma der. Sem isso não poderemos nunca adquirir a capa-
fonte da falta de hábito de se tomar riscos em nossa cidade de amar e a virtude da justiça. Os outros serão
sociedade nem um indicativo real dos jeitos certos e sempre aparelhos complexos para nós, coisas a ser tra-
errados de resolver o problema. Não há dúvidas de tadas da mesma forma que animais, sempre buscando
que crianças necessitam de riscos físicos e de aventura tirar nossa parte e nunca abertos à possibilidade de
para se desenvolver como adultos responsáveis, apro- um julgamento mútuo. Justiça é a habilidade de ver
veitando-se de toda a cota de coragem, prudência e que o outro tem direito a algo seu, é vê-lo como sendo
sabedoria prática que demandam. Só que os riscos da um sujeito igualmente livre, portanto digno de exigir
alma são diferentes dos riscos do corpo. Não se apren- e de prestar contas. Para adquirir essa habilidade, você
de a administrá-los expondo somente seu corpo a eles precisa adquirir o hábito de ter encontros cara a cara,
— muito pelo contrário. Como sabemos, crianças ex- nos quais solicita o consentimento e a cooperação do
postas a abuso sexual não aprendem a lidar com ele, outro, em vez de sair impondo suas vontades. A reti-
adquirindo o hábito de fechar seu lado sexual como rada para trás da tela é uma forma de manter um con-
um todo, reduzindo-o a uma barganha tensa e crua, trole completo do encontro, o que implica não levar
aprendendo a ser tratadas como objeto e perdendo a em conta o ponto de vista do outro. Implicitamente, a
capacidade de se arriscar no amor. pessoa atrás da tela está impondo sua vontade, como

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se fosse uma realidade virtual, sem se preocupar com
riscos relacionados a escolhas, uma vez que não há ou-
tros a ser encontrados. Encontrar outra pessoa em sua
liberdade é reconhecer sua soberania e seus direitos;
é reconhecer que a situação em desenvolvimento não
está mais exclusivamente sob seu controle, que você
não tem noção do seu desenrolar e que não há escapa-
tória à prestação de contas, uma vez que o outro tam-
bém espera que suas ideias e vontades sejam levadas
em consideração.
Talvez consigamos sobreviver em um mundo de
relações virtuais, mas as crianças não podem entrar
facilmente nele, a não ser como intrusos. Avatares po-
dem se reproduzir na tela, mas não podem povoar o
planeta com crianças de verdade. Os pais cibernéticos
dos avatares, desprovidos de tudo aquilo que faz com
que as pessoas cresçam como seres morais — riscos,
vergonha, sofrimento e amor — vão se tornar meros
pontos de vista, em um mundo em que eles não acon-
tecem de verdade.

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Capítulo 8 co familiar, no qual o apoio que tínhamos — talvez
CHORANDO A PERDA sem nem nos dar conta dele — não está mais disponí-
Reflexões acerca da Metamorphosen de Strauss vel. A perda de um dos pais, principalmente se for na
juventude, é uma experiência que muda o mundo ao
Em um significativo ensaio intitulado «Luto e me- redor, e os órfãos ficam marcados por essa experiên-
lancolia», Freud escreve sobre o «trabalho de luto», ou cia para toda a vida. A perda de um cônjuge pode ser
seja, o processo psicótico pelo qual um objeto amado tão traumática quanto, assim como a de um filho, pois
finalmente descansa em paz, como se fosse enterrado ele leva para o túmulo os sentimentos mais tenros dos
no inconsciente, liberando o ego de sua pressão. Até pais. Perdas assim fazem com que nos sintamos impo-
que o trabalho de luto tenha sido realizado, Freud de- tentes, e mesmo que consigamos curar as feridas que
fende que uma nova vida, novos amores e novos enga- provocam, haverá cicatrizes.
jamentos com o mundo não são difíceis, mas sim im- As religiões, as leis e os costumes se preocupam
possíveis. Essa é a explicação, para ele, para o estado de com o ritual de luto para com as pessoas amadas que
espírito que se convencionava chamar de «melancolia» se foram. Porém, não há um precedente claro para o
— um tipo de desamparo autoimposto no qual o mun- trabalho quando se está de luto por uma nação, uma
do é visto como algo estranho e impossível de lidar. civilização ou um lugar. Se for verdade que, quando
Não sou, no geral, muito afeito à psicologia freu- criou sua obra Metamorphosen, Strauss estava de luto
diana. Entretanto, no que diz respeito a esse tema, pela Alemanha destruída na Segunda Guerra Mun-
parece-me que Freud acertou plenamente. Perdemos dial, então há um problema a mais com que ele certa-
várias coisas ao longo da vida, e algumas dessas perdas mente deparou: a dificuldade que todos nós temos de
são existenciais. Elas tiram uma parte do que somos. chorar por aquilo que condenamos. O luto, da forma
Depois disso, sentimo-nos em um mundo novo e pou- como Freud o concebia, é um processo de redenção,

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em que o falecido é abençoado na memória daque- exato momento com o Tibete. Mas não foi nada disso.
le que fica para trás. Todos os ritos funerários, bem Os nazistas se proclamaram herdeiros da civilização
como todas as elegias, são designados para realçar as alemã. Hitler não era só um louco: era um intelectual e
virtudes e minimizar os defeitos do defunto. O luto é um artista, como Stálin e Mao. Ele enfatizava em todos
um processo de reconciliação, um trabalho de perdão, os seus discursos a história e as realizações do povo
no qual é concedido ao morto retrospectivamente o alemão; invocava a arte, a música e filosofia como
direito de morrer. Mas e quando essa pessoa não pode justificativas e como objetos de orgulho nacional. E
ser perdoada? E se seus defeitos tiverem sido tão gran- os alemães o seguiram nesse caminho de conquista,
des que impedem a concessão de qualquer perdão? compartilhando seus triunfos e, no final das contas,
Nesse caso, o luto é impossível. também sua derrocada. Apesar de a música alemã não
Os alemães sentiram exatamente isso após o fim ter sido destruída pela guerra, suas cidades — as maio-
da guerra. O país que conhecíamos na arte, na música res da Europa — foram reduzidas a pó, sua população
e na literatura — a Alemanha das catedrais góticas, de civil foi exposta aos horrores dos bombardeios aéreos
Dürer e de Grünewald, da Bíblia de Lutero, de Goe- e à rapinagem do Exército soviético, e os sobreviventes
the, de Schiller, Kant e Hegel, a Alemanha dos poe- tiveram que se dar conta da triste realidade do Holo-
tas românticos e da maior tradição musical de todo causto. O país estava destruído, e era impossível ficar
o mundo — fora manchado na mente coletiva pelos de luto por ele.
atos de Hitler. Teria sido mais fácil lidar com os anos Dois psicanalistas, o casal Margarete Nielsen e
do Führer no poder se ele tivesse sido imposto ao país Alexander Mitscherlich, refletiram sobre essa situação
por um poder estrangeiro que visasse sobrepujar a em um livro publicado em 1967 — Die Unfähigkeit zu
nação, como os mongóis fizeram com o centro da ci- trauern [A impossibilidade do luto]. Os alemães não
vilização em Bagdá ou como os chineses fazem neste puderam lamentar seus mortos ao mesmo tempo que

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aceitavam a culpa que eles carregavam. Até mesmo o Mesmo com toda essa especulação, acredito que
autossacrífico heroico do Exército na frente russa não deveríamos retroceder alguns passos em relação à
era tido como prova de virtude. Tudo era culpa — não biografia de Strauss e para nos perguntar que tipo de
somente pela destruição insana de seu país, mas tam- significado podemos atribuir a tamanha obra-prima.
bém devido aos crimes contra a humanidade e a civi- Nielson e Mitscherlich estavam fundamentalmente
lização perpetrados pelos nazistas. O mundo insistia corretos no que diz respeito à dificuldade dos alemães
para que os alemães assumissem sua culpa. Com isso, modernos de chorar seus mortos. Entretanto, a músi-
negou seu direito de ficar de luto. Seus mortos perma- ca de Strauss nos convida a um luto mais geral, do qual
neceram insepultos em suas consciências, como Po- podemos todos compartilhar. Ela é contemporânea
linices fora das muralhas de Tebas. Da mesma forma a outra obra de um artista alemão, o extraordinário
que em Antígona, de Sófocles, a piedade clamava por romance Dr. Fausto, de Thomas Mann. A música é o
luto ao passo que a política o proibia. tema do romance de Mann, que pinta o quadro arre-
Quais eram exatamente os sentimentos de piante de um compositor moderno que vive sob um
Strauss quanto ao tema eu não sei. A versão mais acei- pacto faustiano com o diabo, cuja missão é retomar
ta é de que a Metamorphosen foi composta quando ele a Nona sinfonia. A obra de Mann também foi escri-
soube do bombardeio do Hoftheater de Munique, lo- ta em resposta à destruição das cidades alemãs. É um
cal onde viveu suas maiores glórias. As palavras «em trabalho de desespero. Contudo, da mesma maneira
memória» aparecem nos escritos finais, quando ele que Strauss, ele acreditava que, mesmo no desespero, a
cita uma parte da marcha fúnebre da Sinfonia heroica arte pode trazer uma mensagem de reconciliação. Ao
de Beethoven, algo que muita gente interpretou como mostrar a verdade espiritual de nossa época, ela a redi-
uma indicação de que a obra era uma homenagem ao me, incorporando-a na corrente que não para de fluir
compositor. da consciência. Podemos perder tudo, mas, se ainda

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estivermos conscientes dessa perda e do que ela signi- Em seus últimos trabalhos ele nos diz que os rumo-
fica, então há algo que não perdemos. Nem tudo está res da morte da tonalidade são exagerados. Podemos
perdido se ainda existe arte para mostrar tudo o que lamentar nossa civilização perdida com sua própria
perdemos. Essa é a mensagem de Dr. Fausto, e, para linguagem musical.
as pessoas da minha geração, foi tão marcante quanto Metamorphosen é um tributo aos instrumentos
«A terra inútil» de Eliot. Essas grandes obras de arte de corda que emanciparam a música ocidental da voz
eram convites para se aceitar que, apesar de vivermos humana. Violinos, violas e violoncelos possuem as in-
no final das coisas, ainda assim podemos achar motivo flexões da voz humana sem a poluição da fala. Eles são
para celebrar o fato de que sabemos disso, bem como o a própria voz, desencarnada, transferida para o espaço
fato de que sabemos o que isso significa. imaginário da música e nela dotada de uma alma. É
A obra de Strauss é musical, mas também é o aspecto melódico das cordas, não o percussivo, que
«sobre» música, da mesma forma que o romance de Strauss explora: nenhum dos instrumentos toca pizi-
Mann o é. O herói do livro, Adrien Leverkühn, tenta cato durante toda a peça. Posteriormente, Strauss a
refazer a música alemã desafiando a si mesmo: suas remodelou para 23 instrumentos solo, realçando seu
teorias (frouxamente baseada nas de Schoenberg) caráter contrapontístico.
envolve uma rejeição de tonalidade. O idioma da Essa organização nos diz alguma coisa não só so-
harmonia e do contraponto, baseado na tríade e na bre a música, mas sobre a natureza da civilização em
escala, é, para Adrien Leverkühn, um idioma exaus- geral, bem como da contribuição alemã em particular.
to, incapaz de capturar a negação mefistofélica que se Sem querer soar pomposo , a civilização ocidental é
assentou no coração da civilização. A tonalidade tem por si só uma realização contrapontística. Ela surgiu
de ser desafiada, caso a música ainda queira signifi- através de lutas e conciliações de inúmeras vozes, que
car alguma coisa. Strauss, porém, desafia o desafio. se moviam de forma livre e independente, mas tam-

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bém harmônicas, através da lei e dos costumes, sem a Deus. Não que ele fosse um crente: só compreendia a
necessidade de nenhuma unidade forçada ou controle necessidade religiosa dos seres humanos e respondia a
maior. Esse fato foi notado pelos filósofos do Iluminis- ela com música.
mo e em particular por Adam Smith na Escócia e por A referência ao tema de fechamento em movi-
Schiller na Alemanha. Nossa ordem surgiu da liberda- mento lento da Heroica não é a única alusão contida
de, sendo uma forma de ajuste coletivo e conciliação. nessa peça. Há também o desgosto do rei Marke, em
E foi justamente isso que ficou comprometido pelas Tristão e Isolda, em relação à falta de fé do protago-
ditaduras fascistas e comunistas do século xx, as quais nista. Pode-se ler muita coisa nisso. Tristão e Isolda
tentaram impor uma nova e conscrita unidade de pes- foram transportados para muito além da luz do dia
soas, organizada por um único partido sob um único do mundo da ordem social, para uma escuridão da
comando. Assim como a arregimentação havia des- qual eventualmente não há retorno. Marke chora
truído o processo de civilização da Alemanha, tam- não somente a perda de seu amigo e de sua espo-
bém havia destruído a música alemã, impondo uma sa, mas a destruição de tudo, perpetrado por uma
ordem artificial de serialismo no lugar do que deveria força que irrompe descontroladamente nas relações
ser a espontaneidade da voz humana cantando. Na humanas vinda de outra região, onde a morte e o
Metamorphosen, Strauss estava celebrando uma forma sacrifício são os únicos princípios governantes. Não
perdida de ordem social, com uma textura contrapon- obstante, a principal causa de seu choro é de uma
tística que lembra o Spem in alium em quarenta par- ternura supremamente humana — ela contém uma
tes de Thomas Tallis. A polifonia dessa complexidade oferta de perdão, do tipo que somente um pai pode
sempre remete o ouvinte a uma direção religiosa, e o oferecer, e ao mesmo tempo um reconhecimento de
trabalho de Strauss não é exceção. Ao chorar por nos- que os dois amantes se encontram para além do al-
sa civilização, ele nos diz, também nos voltamos para cance do perdão, em um mundo em que a voz do

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dever é silenciada, e a morte reina soberana. Era tivemos nossas perdas, ainda que de um tipo diferen-
exatamente essa a situação da Alemanha no final da te, na Primeira Guerra Mundial, que levaram consigo
Segunda Guerra Mundial. a ordem social, a forma de vida pastoral e as nobres
Vale a pena notar esses pontos, uma vez que ser- aspirações dos ingleses, arremessando-nos inesperada
vem para enfatizar o caráter metafísico do lamento e brutalmente no mundo moderno. Muita de nossa
de Strauss. Assim como Thomas Mann, ele está bus- música moderna é uma invocação das coisas que nos
cando por um luto absoluto, que supere a dor por este foram tiradas. Obras como o concerto de violoncelo
ou aquele objeto, para abarcar a perda de tudo aquilo de Elgar, a Quinta sinfonia de Vaughan Williams e o
que significa alguma coisa, inclusive a própria perda concerto para a orquestra de duas cordas de Tippet
de significado, ou podemos dizer, a perda da perda. invocam nossa pátria pastoral perdida em um espíri-
Somente isso pode abarcar a enormidade do que os to de tenro arrependimento. Elas nos oferecem uma
alemães tiveram que passar, bem como a enormidade tristeza modelável, o que não deixa de ser um enco-
de seu próprio crime de ter arrastado o resto da Euro- rajamento. Alguma coisa de tudo isso que ainda se
pa com eles para o abismo. mantém, dizem, algo para se viver de acordo, um ma-
Tendo tudo isso em mente, é impossível entender terial para se reforjar e lançar na tentativa renovada
a obra meramente como uma elegia, maneira de acei- de viver corretamente. Ouço isso nos últimos traba-
tar a perda de algo precioso. Ela se regozija no fato de lhos de Vaughan Williams, principalmente no Pigrim’s
que a coisa preciosa foi dada. É triste, ainda que uma Progress. Ao lamentar aquilo que perdemos, acabamos
aceitação. Uma elegia diz: isso nos foi dado e agora recuperando-o, ao menos de forma transmutada. Pelo
se foi. Mas devemos ser gratos por ela e tentar viver menos é o que nos diz a elegia.
respeitando sua memória. Nós da Inglaterra estamos Certa feita escrevi um livro chamado England:
bem familiarizados com a música elegíaca. Também An Elegy. Eu sabia que estava enfatizando o bem, não

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o mal, que meu país representava. Só que me senti
tentado a agir dessa maneira, não porque o bem, ao
meu ver, supera o mal, mas também porque eu estava
embarcando em uma legítima jornada de luto, assim
como Elgar havia embarcado para realizar seu concer-
to de violoncelo. Elegias são tentativas de reconcilia-
ção e redenção, trabalho de luto no sentido que pre-
gava Freud. A Metamorphosen de Strauss não é uma
elegia nesse sentido. É um trabalho de profundis, que
olha de volta para o que foi perdido, como um viajante
que retorna para sua cidade e vê seus restos após os
bombardeios sem encontrar ninguém à sua volta. É
um trabalho sem esperança e sem nenhuma promessa
para o futuro. Ainda assim, ele segue sendo uma gran-
de obra de arte, e uma que ainda nos diz muita coisa.

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Capítulo 9 um exemplo de um fenômeno muito mais amplo.11 As
ROTULANDO A GARRAFA imagens se alojam na mente e por lá ficam, influen-
ciando nossos pensamentos e ações, ditando nossos
gostos e adquirindo hábitos, além de resgatar para seu
A palavra de origem grega «ícone» (eikon, ou uso próprio emoções profundas e bem escondidas. Te-
«imagem») parece agora denotar qualquer coisa, pes- mos, por exemplo, a famosa imagem de Che Guevara,
soa ou ideia que seja, por qualquer razão, um centro de adaptada de uma fotografia fugaz tirada por Alberto
atenção e que adquiriu uma significância que se ergue Korda e usada para emprestar sex appeal à postura
acima do fluxo dos eventos comuns. Talvez seja difí- dos revolucionários burgueses. Nela se vê a cruz que
cil colocar essa significância em palavras, mas o ponto simbolizou a vitória do imperador Constantino, que
crucial a ser dito é que um ícone é uma propriedade em é usada como signo de obediência pelos cristãos em
comum. Tanto eu como você nos referimos a ele e sa- toda a parte, e que agora é marca de perseguição nas
bemos instintivamente o que significa, mesmo quando cortes europeias. Temos o coração, o símbolo univer-
não encontramos outro jeito de dizer o que queremos. sal do amor, adotado pela cidade de Nova York como
Assim é, paradigmaticamente, com o pantocrator da sua marca pessoal. Temos uma garrafa da Coca-Cola,
Igreja Ortodoxa Oriental, cuja inesquecível imagem, facilmente reconhecível, uma marca poderosa, sem-
exibida em centenas de absides, habita nas mentes dos pre à frente da Pepsi, apesar desses dois produtos de-
crentes comuns e, de alguma forma, empresta uma sagradáveis se diferenciarem somente no rótulo. Suas
realidade adicional ao Salvador, para cujo amor rezam garrafas agora são feitas de plástico e, portanto, ambas
e cujos comandos se esforçam para obedecer.
Em um livro recente, o historiador da arte Martin
Kemp descreve o ícone religioso como sendo somente 11  Martin Kemp, Christ to Coke: How Image becomes Icon,
Oxford, OUP, 2001.

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se tornaram inimigas da raça humana. Kemp estende gens de bombas, a fotografia de Nick Ut das crian-
sua discussão à hélice dupla da molécula de dna e até ças vietnamitas queimadas por napalm, descobertas
mesmo a uma ideia abstrata, a equação E = mc2, a qual científicas como a estrutura do dna e a arte de Andy
considera que pode ter uma comparação significativa, Warhol com suas telas de Marilyn Monroe, ele levanta
dada sua ubiquidade e fácil associação, com os talismãs a questão sobre o que tudo isso tem em comum. Sua
que espalham sua aura pela vida das pessoas religiosas. resposta decepcionante é «nada». Ele chama a catego-
Cada um dos exemplos de Kemp está no centro ria do ícone de «obscura» e usa a ideia (mais ou me-
de uma história, e muito de seu livro consiste em con- nos como a da «semelhança familiar» de Wittgenstein)
tá-las. Algumas são interessantes, como a das estrelas para justificar uma discussão que coloca anedotas no
e das listras da bandeira norte-americana ou a do lon- lugar de definições.
go alcance do leão como representante universal da Não obstante, Kemp reconhece que imagens que
valentia. Kemp testa a paciência de seus leitores, no devem seu impacto ao pensamento de que «era assim
entanto, ao dedicar 22 páginas à descoberta e à paten- que as coisas funcionavam», como as fotos de Nick Ut
te da garrafa da Coca-Cola, contando-nos mais uma ou mesmo a escultura inspirada nas fotos de Felix de
vez as anedotas sobre o cérebro de Einstein e o velho Weldon dos soldados americanos alçando a bandei-
e cansativo relato de Watson, sobre Crick e a hélice ra em Iwo Jima, possuem uma significância comple-
dupla. Kemp é um renomado historiador da arte, e os tamente diferente dos trabalhos da arte imaginativa.
melhores capítulos são aqueles dedicados justamente É verdade que uma obra de arte também pode nos
a ela — em especial à discussão acerca da Mona Lisa, mostrar também «como as coisas funcionavam» —
assunto pelo qual tem sua expertise reconhecida mun- Leonardo da Vinci retrata a verdadeira Lisa Gherar-
dialmente. Contudo, ao estender o conceito de ícone dini, tal e qual. Mas esse não é motivo pelo qual nós
para incluir objetos do dia a dia, como garrafas, ima- olhamos o seu retrato. A significância do retrato de

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Da Vinci não é específica, mas geral. Lisa aparece nos do não tempo com o tempo». O mesmo não se pode
quadros como o ideal dela mesma. É tanto presença dizer de uma garrafa da Coca-Cola.
quanto ausência; seu sorriso enigmático não é especí- As descrições emocionantes de Kemp a respeito
fico dela para nós. Ele transmite a mais alta gentileza do quadro, invocando o bonito símile do olho e da
à qual um ser humano pode almejar, quase divina. A boca de Dante como uma «bacia das almas», mostra
Mona Lisa olha para o coração do observador mais ou que ele entende tudo isso. Entretanto, quando isso
menos como o pantocrator olha para a alma daquele acontece, necessariamente também se reconhece que
que o venera. A imagem nos fascina porque ela sai do há muito mais em jogo do que quadros de uso fami-
mundo, diferentemente de uma garrafa da Coca-Cola, liar. Algo profundo opera na emergência do ícone ge-
que se recusa a perder sua aura de realidade. nuíno, e é isso que está faltando, em uma teoria que
Pode-se ver a diferença quando se reconhece que vê a garrafa da Coca-Cola e a hélice dupla como es-
a Mona Lisa, diferentemente da garrafa de Coca-Cola, tando no mesmo patamar da Mona Lisa ou da cabeça
pode ser dessacralizada — como foi por Marcel Du- de Cristo de Van Eyck. Imagens podem ser familiares,
champ, que a pintou com barba e bigode. Só o que é mas também podem ter poder. Algumas vezes ele é de
sagrado pode ser dessacralizado. Ainda que a Mona ordem espiritual, enquanto em outras é perigoso. Por
Lisa nunca tenha sido usada como objeto litúrgico, isso, ícones se situam no limiar das coisas proibidas.
ela é considerada sagrada por nossos sentimentos. O segundo mandamento proíbe imagens escul-
Sua imagem se encontra em um patamar mais eleva- pidas, mas a ofensa seria a imagem ou a escultura?
do, onde nossas aspirações encontram sua realização. Kemp enxerga a importância dessa questão e chama
Mesmo que o quadro fosse destruído, a imagem segui- atenção para a tradição do sudário de Santa Verônica,
ria nesse patamar, junto com a Vênus de Botticelli e o aplicado ao rosto suado de Cristo. Ele tem sido con-
Davi de Michelangelo, como um «ponto de interseção siderado um objeto de legítima veneração, diz Kemp,

190 191
porque é acheiropoeiton, não feito pela mão, e por- eucaristia cristã, que se tornou um veículo de contro-
tanto, uma «imagem verdadeira», uma manifestação vérsia na Reforma justamente por essa razão. Tanto
direta da divindade e de sua presença entre nós. O protestantes quanto católicos acreditam na «presença
sudário de Turim é outra dessas presenças entre nós, real» de Cristo na Comunhão. Contudo, a doutrina
assim como os majestosos ícones que podem ser vistos católica da «transubstanciação» foi condenada pelas
em abundância no interior da Grécia. Ainda que um seitas protestantes como sendo superstição e idolatria.
pintor tenha um dia colocado suas mãos neles, foram Os protestantes concordavam que Deus pode entrar
em seguida ungidos pelo santo ou pela divindade, tor- na alma dos crentes no momento em que ingerem o
nando-se não somente símbolos, mas manifestações pão e o vinho, mas não poderia se tornar pão e vinho,
de uma presença real. assim como a Virgem Maria não poderia ser idêntica
Essa presença real, ou shekhanah, é central na à sua pintura.
história da Torá, em que Deus só existe entre o povo Isso levanta novamente a questão da proibição
escolhido porque também está escondido deles, ocul- do ícone. O segundo mandamento não apenas proí-
tado no Santíssimo Lugar, nem nominado nem re- be «imagens esculpidas» que dizem representar Deus.
tratado. (Mas sabemos como ele é, visto que a Torá Ele proíbe qualquer «semelhança com os céus, aqui-
nos diz que fomos feitos à sua imagem e semelhan- lo que está abaixo da terra ou debaixo da água abaixo
ça). Essa «revelação através da ocultação» é o misté- da terra». Uma hadith de Maomé proíbe quadros em
rio central das religiões sacramentais. O pantocrator, casa, alegando que qualquer um que os faça não será
cujos olhos nos seguem pela igreja, é tanto presença punido no Último Dia, mas será forçada a dar vida ao
quanto ausência, olhando-nos nesse mundo de um lu- que criou.12
gar que está além, onde se mantém escondido de tudo
menos dos olhos da fé. O mesmo mistério se vê na
12  Sahih Buhari, v. 4, livro 54, n. 447.

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Essas estranhas interdições seguem a todo vapor, deados e distraídos por imagens em todos os cantos
como estamos cientes, não somente nas recentes con- e momentos de nosso dia. A bem da verdade, muito
trovérsias acerca das charges do Profeta, mas também daquilo que desconcerta as pessoas em nossas cultura
no que diz respeito a toda a arte islâmica, incluindo supersaturada é o que desconcertava os teólogos do
aí a confecção de tapetes, em que os artistas evitam islã: no caso, a «imagem esculpida», que começa como
retratar elementos figurativos por medo de serem pri- representação e em seguida vira substituto. E substitu-
vados de suas nafs, ou almas. Imagens também sempre tos corrompem os sentimentos que buscam suscitar,
foram fontes de desavenças no cristianismo, em que da mesma forma que os ídolos corrompem a adoração
espasmos de iconoclastia se alternaram com períodos e a pornografia corrompe o desejo. Os substitutos con-
de um devoto imaginário religioso, como na antiga vidam a respostas fáceis e mecânicas. Eles provocam
Bizâncio e na Europa pós-Reforma. A consagração de um curto-circuito no laborioso processo através do
imagens em todo o canto parece levar as pessoas à sua qual construímos relações reais, e colocam nos seus
dessacralização, seja no espírito jocoso de Duchamp lugares reflexos viciados e mecânicos. O ídolo não re-
ou no da maliciosa autointoxicação que tomou conta presenta Deus: ele O deforma, assim como a porno-
dos puritanos do século xvii, que destruíram a arte re- grafia deforma a o amor.
ligiosa inglesa. Sendo assim, não é de surpreender a raiva com
Em um estudo de ampla cobertura (L’image in- que os movimentos iconoclastas se impõem. Seu pen-
terdite, de 2000), o filósofo francês Alain Besançon samento central é de que a imagem captura a alma da-
defendeu que o medo e a suspeita em relação às ima- quele que a adora. O idolatra se atou a um enfeite, e, ao
gens influenciaram o desenvolvimento da religião e fazê-lo, falou o nome de Deus em vão, poluindo a ado-
da filosofia ao longo de toda a história, e que eles não ração que Ele merece. Kemp não se detém muito no
desapareceram meramente porque estamos agora ro- tema da iconoclastia, mesmo que tenha sido um mo-

194 195
vimento constante dentro das igrejas cristãs do Orien- A teoria está longe de ser algo claro; não obstante,
te e do Ocidente. Tampouco menciona o fato que os ela se espalha fácil. Acha-se versões dela nos escritores
«ícones» contemporâneos, a garrafa da Coca-Cola in- neomarxistas da Europa Central do século xx: Lukács,
clusive, foram objeto de condenação parecida. O cres- Benjamin, Adorno, Horkheimer e Marcuse. Com uma
cimento da indústria da propaganda e das imagens visão poderosa (The Hidden Persuaders, de 1957) —
dignas de marketing foi recebido já bem no começo Vance Packard levantou um ponto contra a imagem de
com protestos dos formadores de opiniões, todos com propaganda que não perdeu nada de sua força, a des-
medo daquilo que Marx chamava de «fetichismo da peito inclusive da eventual invenção da televisão. De
mercadoria», em outras palavras, a distração de nossas acordo com Packard (cujo argumento foi endossado
energias daquelas atividades que são «fins em si mes- por Galbraith), a propaganda visa a inventar os desejos
mos» para aquelas do mundo dos desejos viciantes. que se oferece a saciar e dessa forma inunda o merca-
Marx pegou a ideia de fetichismo de Feuerbach, que do de ilusões, pelo qual vamos sendo escravizados aos
acreditava que toda a religião levava a essa disposição poucos. A reclamação foi estendida ao logo comercial
mental de preencher o mundo com nossas próprias por Naomi Klein em No Logo (2000), e mesmo que
emoções, colocando nossas vidas «fora» de nós mes- você pense que os iconoclastas estão perdendo a guer-
mos e com isso nos tornando escravos das marionetes ra seria bom prestar atenção nas escaramuças locais,
da nossa imaginação. De modo similar, Marx acredi- tais como a que se deu na cidade de Salzburg, banindo
tava, o mundo das mercadorias capitalistas nos insti- faixas e logos pelas ruas, para a alegria dos moradores,
ga a «preenchê-lo», de forma que atribuímos nossos ou a que está sendo perpetrada pelo movimento da
desejos à fictícia esfera das mercadorias, que ganham slow-food na Itália, que começou como um protesto
poder sobre nós na mesma proporção em que perde- contra uma propaganda do McDonald’s na Piazza di
mos esse controle. Spagna. Ou talvez você devesse se ater ao ultraje que

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acontece em Bucareste, lugar que deixou de ser um ha- Tais reflexões, mais notáveis por suas exuberân-
bitat humano para se tornar uma infinita exibição de cias do que por suas razoabilidades, se dissociam con-
imagens, muitas delas animadas, sendo que a pior de- sideravelmente daquela de Kemp, ainda que ele não
las envolve a Coca-Cola, símbolo que inspira em mim, deixe passar em branco a observação feita por Walter
bem como na maioria das pessoas que conheço, uma Benjamin, de que na era da «reprodução mecânica»
efervescente raiva iconoclasta contra a dessacralização. as imagens estão perdendo sua «aura» — em outras
Tais controvérsias nos dizem algo acerca do palavras, estão deixando de exaltar as coisas que re-
abismo que separa o ícone sagrado e a marca secular. tratam e começando a vulgarizá-las. Quem duvida de
Ícones são um convite à dessacralização, uma vez que que isso se deu com o sexo, que teve a alma subtraída
demandam uma veneração que podemos não querer pelas imagens fotográficas? E quem duvida que essas
ou conseguir dar. Marcas atraem raiva porque são por imagens são viciantes, exercendo seu poder corrosi-
si só dessacralizações — seja do lugar ao qual são fi- vo por toda a sociedade, profanando a forma huma-
xadas, como os painéis eletrônicos de Bucareste, ou na e mudando a maneira como o sexo é vivido? Não
da própria vida humana, contra que Marx, Adorno, se pode culpar a Coca-Cola pela pornografia, mas se
Packard e Klein, cada um a seu modo, se insurgem. pode culpar o vício pelas imagens, que cresceu em
De acordo com seus opositores, a imagem da marca é grande parte devido ao hábito das grandes marcas e à
uma invasão psíquica, que usa todo o aparelho dispo- maneira com que emporcalhamos livremente o mun-
nível para se fixar em nossa consciência e assim criar e do com imagens cativantes da forma humana.
capturar nossos desejos. Ela é parte de todo o sistema Kemp fala da ideia de «presença real» só uma vez
de escravização à nossa volta, que é ativado a partir no curso de sua descrição da reação dos americanos
do momento que deixamos que imagens encubram a comuns à dessacralização da bandeira nacional. «Por
realidade e a tentação apague a necessidade. trás das regras» que governam o tratado sobre as ban-

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deiras, ele escreve, «há um sistema de crença poderoso, como o sacrifício de gerações de soldados, marinhei-
que chamo de ‘metafísica da bandeira’. Ele decreta que a ros e pilotos sobre a bandeira americana. Coisas sagra-
bandeira não é meramente um pedaço de pano simbó- das nos convidam ao sacrifício, como a bandeira em
lico que sinaliza uma identidade, mas de alguma forma tempos de guerra. Elas criam pontes entre gerações:
encarna uma ‘presença real’ — um tipo de essência es- lembrando-nos de que os mortos e aqueles que estão
piritual dos Estados Unidos como sendo uma entidade por nascer estão entre nós, que suas «presenças reais»
criada por Deus». Colocando de maneira mais simples, estão em cada um de nós, assim como também esta-
o americano comum enxerga sua bandeira como algo mos neles. O declínio da religião não nos privou dessa
sagrado e, portanto, como passível de ser profanada. necessidade. Nem do senso agudo de dessacralização
Alguém que profana o que julgo ser sagrado me ataca que sentimos quando imagens ridículas invadem lu-
em meu íntimo. Tudo o que me é sagrado representa, gares que outrora eram ocupados por representantes
em sua forma mais elevada, a identidade e as obriga- de um mundo transcendental.
ções que definem meu lugar na Terra. Como ponderou Bandeiras representam reivindicações e lealda-
Durkheim, as coisas sagradas são «separadas e proibi- des, possuindo poder graças ao que significam, não a
das». Só os iniciados podem fazer uso total delas, e ele como parecem. É por isso que a bandeira americana
é cuidadosamente garantido pelos tabus. As coisas sa- é bonita, ainda que não tanto quanto, ao meu ver, a
gradas definem quem somos, e expô-las à profanação bandeira britânica. Só que essa não é a explicação de
é trazê-las de sua transcendência para uma esfera em- seu apelo. A bandeira americana não nos mostra rea-
pírica, privá-las de sua permanência e de sua «aura», e lidades específicas, e nisso ela é totalmente diferente
portanto expor tanto elas quanto nós à destruição. das fotografias do Vietnã ou dos monumentos a Iwo
As coisas se tornam sagradas quando sacrifícios Jima. Ela é uma imagem que tem poder graças ao seu
em nome da comunidade são destilados sobre elas, uso; e isso é algo que compartilha com os ícones de

200 201
santos da Igreja Oriental, bem como com as naves que
embelezam todo altar. Ademais, mesmo que Benjamin
estivesse certo quanto às fotografias no sentido de que
elas não possuem a «aura» que se anexava às imagens
nas tradições antigas perpetradas pela pintura, com
certeza estava errado ao dizer que a reprodução me-
cânica é em todo lugar o inimigo da aura. A bandeira
americana mantém sua aura, inclusive agora que é al-
çada em milhões de varandas suburbanas. E é por isso
que as pessoas a estão sempre queimando.

202
Capítulo 10 forma como era, e não como é. Isso não significa, no
MORRENDO NA HORA CERTA entanto, que não temos nenhum guia moral. A cons-
ciência está sempre vigilante e se recusa a fechar os
olhos em situações novas. Ela quer uma resposta e al-
O velho juramento de Hipócrates, que concla- meja conciliá-la com as intuições acerca da vida e da
ma o médico a visar somente à preservação da vida, morte de onde começa nossa moralidade. A pergunta
pertencia a uma época em que as pessoas morriam é quão longe e dispondo de quais meios, essas intui-
jovens, infecções e feridas eram a principal causa de ções têm que ser revistas no processo.
morte e o declínio lento e irreversível que todos sofre- Por exemplo, temos intuições a respeito da jus-
remos eventualmente raras vezes era vivido e até por tiça, bem como a respeito da relação entre ela, que
isso mesmo era muito bem aceito. Porém, cada vez é um direito, e a caridade, que é um privilégio. Essas
mais médicos e enfermeiros se encontram sob pressão intuições estão sempre sendo desafiadas, não somen-
para agir de forma a encurtar a vida de seus pacien- te pela medicina moderna, mas também pela quase
tes, vinda tanto do paciente quanto de seus familiares universal tomada de provisões médicas pelo Estado.
(sem mencionar daqueles que lucram com a morte). Talvez antigamente fosse o caso dos médicos e hos-
Pode ser verdade (e acho que é mesmo) que nossa pitais vendessem seus serviços para aqueles que po-
compreensão moral está arraigada em condições que diam pagar e os oferecessem de graça àqueles que
não abrem facilmente espaço para tais dilemas. Mui- não podiam pagar. Médicos nessa época eram ligados
tos dos mais complicados problemas de «acabar com a por um dever de justiça àqueles que os contratavam
vida» resultam de avanços médicos que remodelaram e de caridade por aqueles que não o faziam, mas não
a condição humana, ao passo que apelar para consi- tinham a quem recorrer. A situação era pródiga em
derações morais é apelar para a condição humana da dilemas e em conflitos insolúveis, mas não há dúvi-

204 205
das de que os dilemas foram alterados radicalmente ção à morte. A medicina moderna prolongou o tempo
pela emergência do Estado de bem-estar social, que de vida médio para muito além do que poderia ter sido
garante a cobertura médica como um direito civil e antecipado há um século — e, naturalmente, é aí que
não distingue entre os que podem pagar e os que não surge o pensamento de que poderia, em princípio, pro-
podem. De uma só vez problemas relacionados com longá-la para sempre, oferecendo a cada um de nós uma
caridade e discrição se converteram em problemas de vitória médica sobre a própria morte. Quanto a essa se-
justiça e direito. Como os recursos são escassos, ha- gunda possibilidade, tenho uma única coisa a dizer: na
verá inevitavelmente questões a respeito de sua justa vida prolongada pelo elixir da imortalidade, as coisas
alocação. Os mais velhos podem se ver, portanto, em a que damos mais valor — amor, aventura, novidade,
uma situação complicada, até porque sua sobrevida coragem, benevolência, compaixão — se esvairiam
até a velhice é por si só resultado de uma cobertura inexoravelmente. Se você não acredita nisso, deve ler a
médica universal. A questão surge inevitavelmente: o peça The Makropulos Case, de Karel Capek ou (ainda
Estado deveria dedicar seus escassos recursos na ma- melhor) ouvir a ópera que Janácek fez sobre ela.13
nutenção de um velho frágil vivendo precariamente Além disso, que direito temos de entulhar o pla-
ou tratar doenças e feridas que afetam as vidas dos neta com nossa presença permanente, sem deixar lu-
mais jovens? Esse é um dos muitos dilemas que, com gar para a próxima geração? Se é nessa direção que a
as mudanças das práticas médicas e a disponibilidade medicina está seguindo, temos a obrigação moral de
e efetividade da cobertura do atendimento, não são dar um basta nisso.
fáceis de resolver.
Em vez de refletir acerca de questões de justiça, eu
gostaria de considerar as mudanças que foram esculpi- 13  Ver o clássico artigo de Bernard William, «The Makropulos
das pela medicina moderna em nossa atitude em rela- Case: Reflections on the Tedium of Immortality», em Problems
of the Self, Cambridge, CUP, 1973.

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Em contraposição à fantasia da vida eterna na O ponto é que não há vista retrospectiva da mi-
Terra, sugiro que temos importantes e úteis intuições nha morte que me seja disponível: ela pode ser conhe-
no que concerne a hora certa de morrer. Nietzsche fez cida e pensada somente no tempo futuro.14 Portanto,
dessa ideia parte fundamental de sua moralidade. Sua não há como organizar as coisas em meu pensamento
própria morte foi precedida por dez anos de vacância de modo a ver minha morte como no momento certo.
mental, bem distante do que se pode imaginar ser a Ela ocorre para mim sempre no futuro, o horizonte da
hora certa de morrer. Contudo, sua intenção era nos minha tomada de decisão. Mas o julgamento do mo-
lembrar de que o que mais amamos em vida pode ser mento certo pode ser feito somente de um ponto além
danificado pela longevidade, e as realizações e os afetos do horizonte, o qual não consigo alcançar.
que dão propósito ao nosso ser podem ser retrospecti- Entretanto, não vemos nem podemos ver as coi-
vamente erodidos por nosso futuro declínio. Isso pode sas somente de nosso ponto de vista. Acredito que
parecer estranho quando consideramos o problema possamos fazer algum progresso se o colocarmos de
do nosso ponto de vista. Um pedaço extra de vida, lado e adotarmos a perspectiva de um terceiro. Assim,
mesmo que atrapalhado por dores e arrependimentos, veremos a vida humana em termos de valores e proje-
é ainda assim um bônus. Aguentar é certamente me- tos que são independentes de nossa urgência de sobre-
lhor que cair, ou seja, desistir. Sendo assim, é normal viver. E, quando consideramos as coisas seriamente,
pensar que, como é dito em Medida por medida: deparamos com outro conceito de vida humana do
que é familiar a um biólogo. Encontramos o concei-
A mais desgastada e mais odiada vida terrena to moral da vida humana. Do ponto de vista moral,
Que a idade, a dor, a penúria e a prisão ela não é um caso especial de categoria biológica do
Pode deitar sobre a natureza é um paraíso
Em comparação com o medo que temos da morte.
14  Ver Vladimir Jankélévitch, La mort, Paris, Grasset, 1966.

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que entendemos por vida em outros organismos. Não desenrolar súbito — como quando uma mulher sabe
compreendemos a vida humana simplesmente como da infidelidade do marido e enxerga seu próprio amor,
o processo pelo qual um homem aguenta desde o nas- no qual depositou sua confiança e felicidade, como
cimento até a morte. Nós a compreendemos como um um desperdício, ou como quando um político famoso,
drama contínuo e em desenvolvimento, com um sig- cuja corrupção foi exposta, percebe somente desdém
nificado que reside no todo e que não é reduzível à nos rostos que antes o encaravam com admiração.
significância sentida de suas partes. Sendo assim, estados de ser que pareciam à época
Uma vida é um objeto de julgamento, assim como inquestionavelmente bons podem ser retroativamen-
uma obra de arte, e julgar significa vê-la de fora, como te envenenados, perder seu aspecto positivo e chegar
a vida de outro. Isso, ao meu ver, é a definição real a ser provas de fraqueza. Viver até o ponto onde isso
de ponto de vista moral. É o ponto de vista do outro, acontece é certamente viver muito, pois é entrar em
que vê o eu também como outro. E o conceito de vida uma época de arrependimentos, como o homem que
habita o ponto de vista moral. É por isso que os sá- perde uma fortuna do dia pra noite, não tendo usado
bios gregos nos disseram para não julgar um homem um tostão para sua diversão pessoal. É importante,
feliz até que ele tenha morrido. Eles queriam dizer portanto, saber quais os traços da condição humana
que o valor de uma vida é uma propriedade de toda podem proporcionar essa mudança repentina. A sa-
uma vida, e que a morte e o morrer fazem parte dessa bedoria dos antigos nos diz que a reversão de nossa
vida tanto quanto as experiências que os precederam. felicidade vem com vergonha e humilhação — julga-
Todo mundo que já viveu uma grande aflição, perda mento adverso aos olhos dos outros. Para colocar o
ou humilhação sabe que nada do nosso passado está ponto em formas mais modernas: a reversão ocorre
realmente seguro. O maior amor, a maior realização, o quando nossa vida perde seu apoio objetivo na rela-
maior reconhecimento pode ser envenenado por um ção «eu/vocês» que até então nos definia. Assim como

210 211
«ter uma vida» é uma ideia moral, «perder uma vida» ternas, mais vívidas aos olhos de quem julga, do que
também o é. E o segredo da felicidade é morrer antes as de hoje. Porém, elas nos fazem enxergar que não há
que isso ocorra. nada de incoerente em acreditar que uma vida pode
Era, portanto, perfeitamente coerente para os ser confortável, saudável e até mesmo impulsionada
gregos antigos, japoneses, romanos, anglo-saxões e por afetos, ainda que tenha ido longe demais — para
outros guerreiros do tipo acreditar que a morte era além do ponto no qual teria sido a hora certa de mor-
preferível à sobrevivência vergonhosa — de modo rer. (A título de exemplo, as palavras de Brutus ao ti-
que, a título de exemplo, a guerra pode se apresentar rar a própria vida e as do serviçal Charmion diante
como uma situação onde a hora de morrer é certa. do suicídio de Cleópatra, como relatado por Plutarco).
Plutarco, Tito Lívio e outros estão cheios de histórias Se ainda consideramos pensamentos similares hoje, é
morais que desaguam para a decisão do herói de pôr raramente pelas razões ensaiadas por Plutarco e ou-
um fim à própria vida no presente em vez de prolon- tros — raramente porque julgamos a vida continua-
gá-la. E, mesmo quando o sujeito não é ele mesmo o da como vergonhosa ou sem valor para a pessoa em
agente de sua morte, sendo privado de sua vida por questão. Não obstante, compartilhamos com os heróis
um acidente ou contra sua vontade, torna-se perfeita- de Plutarco a visão de que a morte não é a pior coisa
mente coerente pensar que ele pode, nessa ou naquela que pode nos acontecer.
circunstância, ter morrido na hora certa (antes que Nossa maneira de pensar, assim como a dos he-
alguma vergonha ou desgraça pudesse desabar sobre róis de Plutarco, é imbuída de ideias morais. Uma pes-
sua cabeça, por exemplo). soa vive demasiado quando sua sobrevivência se tor-
Essas formas antigas de pensar refletem circuns- na uma ofensa moral. Isso pode se dar devido a algo
tâncias que em larga medida já não existem — vidas que ela fez: mesmo aqueles que não creem na pena de
que eram mais precárias, mais expostas a ameaças ex- morte admitirão que alguém pode comprometer tanto

212 213
seu privilégio de viver que sua sobrevivência é um in- derna. Ela é mais autodirecionada do que direcionada
sulto às suas vítimas. Independente do que ele pense, para fora, possuindo aspectos positivos e negativos. O
a verdade é que o resto de nós pensa que está vivendo aspecto positivo é a ideia de uma satisfação perfeita no
mais do que deveria. É perfeitamente coerente tam- momento, sendo que o tempo além desse presente se-
bém que as pessoas acreditem que seja errado viver ao ria uma vida de decadência. O pensamento é expresso
ponto que a vida de alguém se torne um fardo, quan- por Keats em sua Ode ao rouxinol:
do não se pode realizar projetos pessoais ou desfrutar
do amor de outros. Esse pensamento surge de outra Agora mais do que nunca parece valer a tran-
perspectiva moral diferente da que motivava Brutus e quila morte
Cleópatra. Não é o medo da vergonha e da humilha- Cessar sobre a meia-noite sem nenhuma dor
ção que está em jogo, e sim o sentido de que o valor
de uma vida se encontra em larga medida no amor Essas linhas, escritas por um poeta condenado,
daqueles que desfrutam dela. Perder a possibilidade falam direto a todos nós. Não vemos a vida somente
desse amor é perder o que faz a vida valer a pena. Para como um todo, passível de ser entendida como uma
os cristãos, claro, nunca se pode perder a possibilidade afirmação completa, com um começo e um fim. Nós a
do amor de outro. O amor de Deus flui perpetuamente vemos como uma sucessão de momentos, e em alguns
sobre todos nós, e nosso trabalho se restringe a abrir poucos e preciosos deles encontramos uma concen-
o coração para recebê-lo. Contudo, é justamente o de- tração do todo das coisas, como o céu contido em uma
clínio desse pensamento que fez com que a questão da gota de orvalho. Porque o momento se acaba, senti-
longevidade se tornasse tão importante hoje. mo-nos mal por sobreviver a ele, já que, nesse instan-
Há uma ideia mais autocentrada de uma hora te, nos é dada uma visão que só podemos perder ou
certa de morrer que abastece nossa sensibilidade mo- poluir, atulhando-a com experiências futuras.

214 215
Mas esse aspecto positivo da ideia sensual é con- que a vida está contida, uma luz que brilha ao longo
trabalanceado por um mais negativo e assustador, que do caminho que leva a ela. Ou ao menos é assim que
é o sofrimento que precede a morte e que faz com que gostaríamos que fosse e que foi para Brutus e Cleópa-
ela seja bem-vinda como única saída. Aqueles que co- tra. Contudo, quando uma pessoa perde sua persona-
metem suicídio no intuito de evitar a dor agem sob lidade antes de morrer, é como se o envelope de sua
uma motivação totalmente distinta daqueles que o co- vida fosse rasgado. Sua vida escorre desordenadamen-
metem para evitar a vergonha. Os que se matam por te para fora de seu frasco, e o que teria sido valoroso e
vergonha estão tentando resgatar suas vidas, removen- completo se torna cada vez mais desordenado e espa-
do o olhar aniquilador do outro. Aqueles que buscam lhado à medida que os anos se passam.
fugir da dor só querem mesmo terminá-las. Não estão É claro que há vários tipos de caso a se conside-
atrás de triunfo em face da derrota; não estão com- rar aqui. Mas o que estou imaginando é um que em
pletando um drama que requer só isso no final. Estão que a vítima perde sua capacidade de se relacionar
simplesmente evitando a dor. com os outros, passando a ser um objeto de amor
Vergonha e dor são ambos convites para colocar somente porque é lembrado como tal, não porque
um fim à vida. Entretanto, há outra maneira de viver tem a habilidade de dar ou receber amor no presen-
além da vida, que é a da debilitação e do declínio. A te. Ela se tornou um fardo para seus parentes e para
pessoa cuja mente se perdeu, que não pode tomar de- si mesma. Não obstante, sua dor não chega a ser tão
cisões por si própria ou que de alguma forma não con- extrema que a morte lhe caia como um ato de pieda-
segue mais se relacionar com outros seres humanos de. Tampouco está sofrendo algum tipo de vergonha
também está vivendo mais do que deveria, por assim ou humilhação que faça com que seus pensamentos a
dizer. A morte de uma pessoa não é, como a morte de levem nessa direção — a bem da verdade, nada altera
um animal, mero término da vida. É o envelope em seus pensamentos.

216 217
A vida que vale a pena não é algo que compreen- necessários, uma vez que verão o amor se tornar to-
demos ou percebemos sozinhos. Ela se torna valiosa lerância, a tolerância, irritação, e a irritação, raiva ou
através das relações com os outros, nas quais os afetos desespero. Sendo assim, de forma crescente, a resposta
mútuos e a estima erguem nossas ações do domínio a esse tipo de declínio irreversível é colocar a vítima
do apetite e as enchem de significância — para os ou- em um casa de repouso, onde será cuidada por pro-
tros que as observam e as reconhecem como valiosas, fessionais confiáveis, justos e indiferentes. Esse uso de
e para nós mesmos justamente por essa razão. A pleni- recursos e de capital humano preciosos é difícil de ser
tude e a completude de nossas vidas não são reveladas justificado em termos utilitários — o que tomo como
apenas para nós e não podem ser atingidas sem ajuda: sendo uma crítica ao utilitarismo, e não à instituição
ambas possuem suas origens no julgamento e no afeto médica. E isso levanta de forma aguda a questão de se
daqueles que encontramos. Viver para além do ponto deveríamos ou não fazer mais do que estamos fazen-
em que sua aprovação e seu amor já não podem mais do, tanto coletivamente quanto individualmente, para
ser correspondidos é viver em uma selva moral, um definir qual é a hora certa de morrer. Talvez devêsse-
lugar de sombras e negações, comparado até mesmo mos estar mais preparados do que estamos para tomar
com o Hades dos antigos, assim como descrito pelo as rédeas da morte, e não deixá-la ser decidida por um
fantasma de Aquiles na Odisseia. E essa selva se en- destino incompreensível.
contra diante de todos nós, basta vivermos para além Hoje, a medicina moderna e o sistema de saúde
da compreensão, da vontade e das relações interpes- fizeram com que se tornasse normal vivermos para
soais que ditam nossa conduta. além de nossa capacidade mental e de nosso vigor fí-
Muitos cuidarão de um parente que chegou a tal sico. Por mais que temamos tal destino, não deixamos
estado, amando sua memória e à pessoa por conta de ir toda hora ao médico e de tomar remédios. O
dela. Outros acharão impossível fazer os sacrifícios medo é racional, mas o medicamento nem tanto. De-

218 219
paramos com uma escolha contínua — exaurir nossos nho amniótico do sistema de bem-estar, que passam a
corpos enquanto ainda os habitamos e em seguida ele- vida evitando o perigo e querem alargar seus momen-
ger a melhor saída que pudermos ou seguir adiando tos de prazer pelo tempo que for? Quando deveríamos
o momento da verdade até chegar no ponto em que tomar tais decisões, como e por quê? E o que os outros
não somos mais capazes de fazer nada em nossa ajuda. deveriam fazer para nos ajudar?
A pessoa que fez tanto para impedir a morte, comba- Acho que devemos fazer uma clara distinção aqui
tendo-a a um ponto que já não consegue fazer nada a entre a morte concebida como uma fuga da dor e a
respeito, não é alguém a quem devemos nenhuma aju- morte concebida como uma proteção contra o declí-
da no que diz respeito a decidir o que tem de ser feito. nio mental. A primeira pode ser entendida e perpetra-
O que me preocupa, portanto, é como podemos da em nome de outro, mas a segunda só pode ser en-
vislumbrar um momento certo para a morte e o que tendida e perpetrada em nome de si mesmo. Dito isso,
seria correto ou errado para se fazer na busca por tal todos os que se importam com o doente terminal, seja
objetivo. Não consigo encontrar nada para desaprovar profissionalmente ou por amor e apego, querem ali-
os suicídios de Brutus e Cleópatra, ao menos da for- viar seu sofrimento. E, se o meio de fazê-lo é encurtar
ma como Plutarco e (em seguida a ele) Shakespeare os a vida do paciente, isso passa a ser uma preocupação
descrevem. Seria impertinente, parece-me, dizer que secundária. Refiro-me a drogas como morfina e codeí-
esses grandes seres humanos não tinham o direito de na, que enfraquecem de maneira indolor os sistemas
fazer o que fizeram. Eles encararam tais ações como vitais, permitindo assim a «tranquila morte» que Keats
sua responsabilidade e, ao fazê-lo, as tornaram lindas e invoca. Claro que haverá aqueles tipos furiosos, como
generosas, um reconhecimento do mundo mais amplo Dylan Thomas, que imploram para seus dependentes
e de seus deveres para com ele. O que dizer, porém, de moribundos: «Não vás tão docilmente nessa noite lin-
mim e de você, criaturas que são mantidas em um ba- da», e «Clame, clame contra o apagar da luz que finda»

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Porém, aqueles que esquecem seus próprios dramas ver acabar com uma vida peremptoriamente. O crime
e se fazem presentes no amor que realmente importa aqui é comparável ao infanticídio. A piedade exige que
certamente concordarão que a descoberta de tais dro- respeitemos o que um dia foi a vida de uma pessoa,
gas e seu uso por profissionais sob supervisão e con- assim como respeitemos a vida de alguém que um dia
trole adequado contribuirá para justificar todos aque- será uma pessoa.
les outros avanços médicos mais questionáveis que nos Então a pergunta é: há algo que seja permissível
deixaram cara a cara com doenças horríveis da velhice. para eu fazer agora, de modo a colocar em funciona-
Se tais drogas existem, então não seria homicídio pe- mento a execução de uma morte em seu tempo cor-
di-las ou administrá-las, desde que o diagnóstico da reto que vai me poupar de destino tão sofrível? De-
doença terminal fosse determinado corretamente. veria eu, por exemplo, começar a me engajar em um
O caso mais complicado é o do declínio mental. esporte perigoso que vai me garantir que, a partir do
O que deveríamos fazer — se é que podemos fazer algo momento que algum sinal de debilidade se manifeste,
— para escapar de um futuro sem aqueles atributos eu acabe cometendo um erro fatal que vai me levar à
distinguíveis que nos fazem pessoas entre nós e para morte? Mas e se o erro não for fatal e me deixar em
nós mesmos: compreensão, autoconsciência, emoções uma cadeira de rodas? E como alguém pode planejar a
interpessoais e a habilidade de lidar uns com os outros morte antes da debilitação, quando é somente no mo-
de «eu» para «eu»? Tais capacidades são fundamentais mento em que todos os planos deram errado que o
para a personalidade, e perdê-las é cessar de existir na plano se justifica?
condição de pessoa, até mesmo quando continuamos Desde os tempos antigos, é papel do filósofo nos
a existir como seres humanos. É claro que esse cessar mostrar como deveríamos pensar a morte, de modo a
de existir como pessoa não cancela o direito de vida ou superar o medo dela. Epicuro, e em seguida Lucrécio,
faz com que não seja crime a decisão de alguém resol- argumentou que não há nada a temer na morte, uma

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vez que ela é o nada: não sobrevivo a ela, portanto não que teria me completado. Quanto a Heidegger, ser
há nada para mim do outro lado. Em um sentido im- para a morte soa bacana e inspirador para uma postu-
portante, a morte não acontece a mim: quando estou ra existencial, mas ser para a senilidade já não possui
morto, ela não é nada; quando há morte, eu não estou. o mesmo apelo.
É só um exemplo de tentativa de neutralizar o medo da A questão é: como eu deveria viver agora e quais
morte através do pensamento. Filósofos mais recentes preparações eu deveria fazer, tendo em vista essa
tomaram a linha de que o que conta de verdade não é ameaça de viver além de minha própria identidade, na
o que pensamos, mas o que fazemos. Assim, Heidegger condição de uma criatura que age, sabe e ama? Acredi-
nos diz que superamos nossa ansiedade adotando outra to que deveríamos buscar inspiração em Aristóteles e
postura existencial no lugar da instrumentalidade do mudar o foco da questão. A grosso modo, eis o quadro
dia a dia. Ele chama essa postura de «ser para a morte», que Aristóteles pinta da vida moral. Não posso saber
e conta que, ao adotar tal mentalidade, a incorporamos agora minhas circunstâncias futuras ou meus dese-
a nossas vidas, superando seu aspecto amedrontador e jos. Tudo o que posso saber são verdade gerais acer-
atingindo uma espécie de serenidade na ação que se faz ca da condição humana e das disposições de caráter
totalmente consciente de nossa mortalidade. que capacitam as pessoas a lidar com sucesso com as
O que quer que pensemos de tais argumentos, contingências da vida. Sucesso significa agir de forma
eles não nos ajudam com o problema da senilidade. que os outros me admirem e apoiem minhas ações. A
Talvez eu não sobreviva à sua chegada, mas o bastante felicidade advém quando vemos nossa própria condi-
de mim sobrevive para me dizer que é verdade que a ção assim como outros a veem, e que o que somos é
senilidade é algo que vai acontecer com o passar dos algo bom. Sendo assim, tudo o que posso fazer agora
anos e então vai me tomar algo de supremo valor, no para confrontar as vicissitudes de uma vida futura que
caso o envelope de minha vida, a morte apropriada não posso prever é adquirir as disposições que admiro

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em outra pessoa — disposições essas que entendemos quer dizer falar das disposições que encontramos em
como sendo virtudes. Para Aristóteles, assim como outra pessoa que captem nossa admiração, que mos-
para vários outros pensadores antigos, elas orbitam trariam a essa mesma pessoa que ela está no caminho
ao redor de um centro — as quatro virtudes cardiais vitorioso para o confronto, como Brutus, que extraiu
da prudência, da coragem, da justiça e da temperança, a vitória da derrota quando caiu sobre sua espada. A
que garantem nossa robustez moral e nossa aceitabi- covardia sempre gera uma resposta negativa no ob-
lidade aos olhos dos outros. Tudo o que posso fazer servador. Gente que não consegue suportar o pensa-
agora para garantir minha felicidade futura é exercê- mento da morte, que nunca faz nada para entendê-la
-las de forma que se tornem parte de meu caráter, e de ou para aceitá-la, que foge dela ou que se engana pen-
forma que, quando a hora chegar, eu faça o que valha sando que pode ser adiada indefinidamente, causa um
a pena, seja honrável e com isso ganhe a aprovação pensamento nos outros do tipo «Deus me livre de ser
daqueles a cujas boas opiniões me inclino. Eviden- como essa pessoa». E aqueles que evitam o medo da
temente, a pessoa virtuosa pode sofrer algo que seja morte congelando seus corpos para ser ressuscitados
poupado ao seu antípoda. Na guerra, por exemplo, é quando a ciência tiver achado a cura não somente nos
normalmente o corajoso que morre e o covarde que enoja com sua covardia, mas também dá mostras de
sobrevive — mas com que propósito sobrevive? No dia um egoísmo monstruoso, recusando terminantemen-
a dia o covarde se abate com o menor sopro de ad- te abandonar o planeta e abrir espaço para seus su-
versidade contrário, sempre se perdendo no caminho cessores, preferindo assim entulhar a Terra com sua
para a felicidade que tanto persegue. presença indesejada para todo o sempre. São essas
Do mesmo modo, se vamos confrontar a ameaça pessoas repugnantes que levam a medicina para a di-
da senilidade, deveríamos primeiro abordar a questão reção defendida por Aubrey Grey e os transumanistas:
das virtudes que nos capacitam a lidar com ela. E isso a da imortalidade.

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Portanto, a coragem — de enfrentar a verdade e para melhorar sua dieta, para fazer exercícios físicos
de viver plenamente face a ela — é condição sine qua regulares, para beber mais água e menos vinho. Se de-
non de qualquer tentativa de lidar com a ameaça da cidir por uma vida de tomada de riscos e resistência,
senilidade. Com coragem, uma pessoa pode tratar de o patrulhamento filosófico perseguirá você, e seu esti-
viver de outra forma, a qual maximizará suas chance lo de vida será motivo de chacota e desdém. E nem é
de morrer ainda com suas faculdades mentais intactas. que essa gente queira que você viva além de seu tem-
Essa não é a forma da cultura do bem-estar em que po. Para usar uma famosa imagem de Adam Smith, o
estamos imersos. Ela não envolve a busca constante gulag dos velhos surge através de uma mão invisível
por confortos ou a obsessão pela saúde. Ao contrário, proveniente de uma falsa concepção da vida humana,
é uma forma de descuido benigno e autonegligência, que não vê a morte como parte da vida, mas a morte
de deleites arriscados e aventuras intrépidas. Ela en- na hora certa como fruto dela.
volve exercícios constantes, mas não do corpo, e sim Cada um de nós deve decidir por si próprio em
da pessoa, através de relacionamentos com outros, sa- que consiste uma vida de descuido benigno. Claro que
crifícios, busca por oportunidades de se envolver e se hábitos perigosos como caçar e escalar montanhas
expor. Ao menos essa é minha visão. A vida de descui- também têm sua vez. Outra coisa que não pode ficar
do benigno não é de excessos. É lógico que você pode de fora é expressar sua opinião, de modo a ganhar
beber, fumar e comer coisas gordurosas, mas não ao bons amigos e colecionar inimigos implacáveis, um
ponto da gula. A proposta é enfraquecer o corpo en- processo que estimula tanto as consolações da vida so-
quanto se fortalece a mente. Os riscos que você toma cial quanto as tensões do dia a dia. Não sei se poderia
não deveriam afetar suas motivações ou seus relacio- viver como minha amiga, a escritora e militante Ayaan
namentos, somente suas chances de sobreviver. Médi- Hirsi Ali, mas há uma adorável imprudência em sua
cos autoritários e fascistas da saúde atacarão, dizendo maneira autêntica de viver que faz com que cada mo-

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mento seja memorável. Sair e ajudar os outros, de ma-
neiras que envolvem perigo e risco de contaminação, é
também uma forma útil de exposição. O ponto princi-
pal, parece-me, é manter uma vida de risco ativo e de
afetos, ao mesmo tempo que se ajuda o corpo em seu
processo de decaimento, lembrando-se sempre de que
o valor da vida não consiste em sua duração, mas em
sua profundidade.

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Capítulo 11 comitês intensos, seu odium theologicum e seus diá-
CONSERVANDO A NATUREZA rios panfletários. Ambientalistas que fogem da linha,
como Bjorn Lomborg, autor de O ambientalista cético,
são denunciados nessas importantes reuniões, somen-
O ambientalismo possui todas as marcas de cau- te para em seguida serem demonizados como hereges.
sa da esquerda: uma classe de vítimas (as futuras ge- Em resumo, parece uma religião secular, como o so-
rações), uma vanguarda iluminada que luta por elas cialismo, o comunismo e o anarquismo, que viraram
(os ecoguerreiros), filisteus poderosos e exploradores o mundo de cabeça para baixo no século xx. Por causa
(os capitalistas) e as inúmeras oportunidades para ex- disso os conservadores se opõe a esse movimento de
pressar ressentimento contra o Ocidente, os bem-su- forma instintiva, procurando por fatos e teorias de sua
cedidos e os ricos. Seu estilo também é de esquerda: própria autoria, no intuito de fortalecer sua convicção
o ambientalista é jovem, desgrenhado, de reputação de que o aquecimento global, a redução da biodiversi-
discutível e tem a mente sempre focada em algo mais dade, o aumento do nível dos mares, os níveis de po-
elevado; o oponente é monótono, de meia-idade, bem luição alarmantes ou o que quer seja são simplesmente
vestido e normalmente americano. A causa é designa- mitos da esquerda, comparáveis à «crise do capitalis-
da para recrutar intelectuais, com fatos e teorias jo- mo» profetizada pelos socialistas do século xix.
gados ao ar de qualquer jeito, e o ativismo sempre é No entanto, a causa do meio ambiente não é,
encorajado. O ambientalismo é algo a que uma pessoa por si só, de forma alguma da esquerda. Não se tra-
se agrega, e para muitos jovens possui o caráter de re- ta de «libertar» ou empoderar a vítima, e sim de sal-
denção e de benção identitária típico das revoluções vaguardar recursos. Não se trata de «progresso» ou
do século xx. Ele tem sua ala militar, no Greenpea- «igualdade», mas de conservação e equilíbrio. Seus
ce e em outras organizações ativistas, e também seus seguidores podem ser jovens e desgrenhados, mas

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isso se dá porque as pessoas de terno ainda não perce- Mas como os conservadores moldam suas políti-
beram onde se encontram seus verdadeiros interesses cas ambientais? Que leis deveriam propor e que recur-
e valores. Os ambientalistas podem parecer contrá- sos deveriam proteger? A tentação é se agarrar a um
rios ao capitalismo, porém, se entendessem as coisas plano abrangente, como o de Roosevelt para os par-
corretamente, seriam mais contra o socialismo, com ques nacionais — proteger uma parte do meio ambien-
seus projetos gigantescos, incorrigíveis e controlados te de modo perpétuo e controlar o uso do restante por
pelo Estado, do que contra o éthos da empresa livre. meio da leia. Contudo, tais soluções estatais vão con-
Decerto, o ambientalismo é a quintessência da cau- tra a essência dos conservadores — elas representam
sa conservadora, o exemplo mais vívido no mundo uma ameaça não somente à liberdade individual, mas
como o conhecemos da parceria entre os mortos, os também ao processo (do qual o livre mercado é pa-
vivos e os que estão por nascer, que Burke defendia radigma) pelo qual as soluções consensuais emergem.
como sendo o arquétipo do conservador. Seu objetivo Soluções estatais são impostas de cima, costumam ser
fundamental não é proporcionar um reordenamento desprovidas de aparatos corrigíveis e não podem ser
radical da sociedade ou a abolição dos direitos e dos facilmente revertidas caso se constate uma falha. Sua
privilégios herdados. Ele não está, em si, interessado inflexibilidade anda junto com sua natureza planejada
em igualdade, exceto entre as gerações, e sua atitude e orientada para objetivos. Quando fracassam, os es-
em relação à propriedade privada é, ou deveria ser, forços do Estado são direcionados não para mudá-las,
positiva, pois é só a propriedade privada que confere mas para mudar a crença de que elas fracassaram. O
responsabilidade pelo meio ambiente, em oposição ao prejuízo às paisagens costeiras da Holanda e da Dina-
direito absoluto de explorá-lo, cujo efeito vimos nas marca levado a cabo por horrorosas turbinas eólicas é
paisagens em ruínas e nos rios envenenados do antigo um caso a ser considerado. Esses espantalhos moder-
império soviético. nos surgem no horizonte por toda parte, flanando seus

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braços brancos como se fossem fantasmas desconsola- res argumentam que isso é resultado da liberdade e
dos, arruinando a paisagem com suas aparições maca- do mercado. As pessoas se assentam fora dos centros
bras, como que anunciando o Juízo Final. As pessoas porque querem, em busca de verde, jardins com árvo-
aguentam tudo isso porque foram convencidas de que res, tranquilidade — resumindo, elas querem seu pró-
esses monstrengos são a solução para os escassos re- prio pedaço de natureza. Mas não é bem assim. Elas se
cursos energéticos. O problema, todavia, é que têm mudam atrás de um ambiente suburbano, e o fazem
uma capacidade reduzida e nunca poderão substituir porque ele é fortemente subsidiado pelo Estado. As
as estações movidas a carvão e prover a maior parte da estradas, a infraestrutura e as escolas são fruto de in-
eletricidade de que o país necessita, além de apresenta- vestimentos do Estado, o que desequilibra totalmente
rem vários tipos de problemas para o meio ambiente, a economia natural da cidade, fazendo com que fique
sem contar o desastre que causam entre as populações mais fácil, mais seguro e mais barato viver em suas
de pássaros migratórios. Não obstante, governos rara- franjas, que ficam cada vez mais longe do centro. O
mente admitem seus erros; e a propaganda oficial con- mecanismo aqui não é bem o do livre mercado. Muita
tinua a falar como se os campos eólicos fossem a prova da expansão dos subúrbios procede pelo exercício do
duradoura da retidão socialista. «domínio eminente», a provisão na lei americana que
Outro e mais sério exemplo pode ser visto nos passa para o aparato oficial poderes de expropriação
Estados Unidos. O maior problema ambiental gerado iguais aos poderes exercidos pelos governos socialistas
pelo homem nesse país são os subúrbios. A suburba- da Europa, algumas vezes até os excedendo. As estra-
nização leva a um crescente aumento do uso de au- das são um dos exemplos óbvios disso, e a mania de
tomóveis e à dispersão da população, gerando um construí-las para manter o trânsito em um nível ar-
crescimento exponencial do consumo de energia e do bitrariamente imposto pelo aparato oficial é a causa
uso de materiais não biodegradáveis. Os conservado- mais importante da mobilidade descuidada da socie-

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dade americana. A verdadeira solução de mercado ao xas de homicídios próximas das cidades americanas?
problema do trânsito — que seria andar a pé — não E por que será que todo mundo quer viver no centro
está disponível nos Estados Unidos, uma vez que não de Paris, e não em seus arredores?
é possível caminhar até seu destino final. A suburba- Menciono esses exemplos não somente porque
nização tornou impossível para um pedestre ir a uma ilustram quão longe chega a devastação ambiental e
loja, à igreja, à escola ou mesmo à casa de um amigo. quão difícil será consertá-la, mas também porque des-
Só que não se pode mais viver no centro das cida- taca dois pontos ainda mais importantes baseados em
des, com a reclamação geral de falta de segurança. O visões equivocadas: primeiro, a de que é o mercado,
centro é lugar de negros e latinos, de párias e vagabun- e não o Estado, que criou o problema; segundo, a de
dos; as escolas são terríveis, as taxas de homicídios não que o meio ambiente pode ser discutido sem levantar
param de subir e as esquinas se encontram empesta- questões de estética. Para mim, os problemas surgem
das de drogas, álcool e prostituição. Bem, a verdade é precisamente quando interrompemos o caminho na-
que é isso mesmo que acontece quando o Estado sub- tural de resolver os problemas por meio da interação.
sidia os subúrbios, impõe leis de zoneamento que pre- Em outras palavras, os problemas surgem a partir do
vinem a utilização mista apropriada nas cidades e se momento que expropriamos os caminhos que levam
engaja em seus projetos gigantescos que empurram a ao consenso racional — como quando são expropria-
classe média para fora do centro. Tudo isso ocorre em dos pelo Estado sempre que este usa seus poderes de
resistência à solução de mercado e, como Jane Jacobs domínio eminente. As soluções aparecem quando
apontou em Morte e vida de grandes cidades, acaba por permitimos que o senso estético se sobreponha, visan-
privar o espaço de seus olhos e ouvidos, de suas comu- do ao que parece correto, o que se sente correto, àquilo
nidades mais unidas e da proximidade natural de seus que podemos reivindicar com os olhos e os corações
cidadãos. Por acaso as cidades italianas apresentam ta- de nossos vizinhos. As cidades americanas estão em

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decadência porque enormes recursos financiados por os habitantes livres para construir como bem enten-
impostos estiveram sempre disponíveis para a cons- dessem, respeitando somente a condição de que suas
trução de estradas e projetos de habitação, para a casas se encaixassem com as de seus vizinhos, utilizan-
compra e demolição do que pode se chamar de favelas do materiais e detalhes que estivessem dentro de certa
habitáveis, para a horizontalização da infraestrutura, conformidade com a estética publicamente aceita, e
para a imposição das mais malucas leis de zoneamento definindo espaços públicos e ruas que são endossadas
que fazem com que não se possa comprar uma coisa, pela população como seus espaços e ruas. O resulto é
usá-la e morar no mesmo lugar. As soluções desses uma estética bem-sucedida que, justamente por isso,
problemas emergem quando as pessoas, constrangidas também se mostrou um sucesso ambiental, um espaço
pelas limitações naturais impostas pela necessidade de compacto, econômico em termos de espaço, com es-
se chegar a soluções consensuais e sem os esquemas tradas que são estreitas mas não ficam congestionadas,
gigantescos montados pelo aparato oficial, tratam de uma vez que não é preciso carro para se chegar aos
construir uma vizinhança que pareça boa para quem lugares, sejam lojas, pubs, escolas ou casas de amigos.
vive nela, aberta para aqueles que compram, vendem O consumo de energia por pessoa é apenas uma fra-
e trabalham. ção daquele dos subúrbios americanos, e o crime não
Como discuti em «Construindo para durar», isso existe nas ruas autopoliciadas.
é algo que Leon Krier ilustrou em seus desenhos para É desnecessário dizer que a esquerda odeia Pou-
Poundbury em Dorset. Na condição de arquiteto prin- ndbury: é muito cheia, muito certinha, uma marca
cipal, ele não impôs um plano abrangente, zoneamen- clara da pompa aristocrática e da propriedade bur-
to ou prédios públicos, somente ruas exigidas pelas guesa. Sua própria natureza de resolver os problemas
próprias casas. Krier não impôs nenhum limite para de urbanização através de um consenso, bem como a
a altura, somente para o número de andares, e deixou ausência de um conselho socialista formado por ci-

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dadãos, munido de vastas somas de dinheiro prontas das coisas, ou, não logrando esse objetivo, destruí-las
para ser empregadas em projetos de infraestrutura, ca- por inteiro.
sas populares e na ajuda aos criminosos, fez desse tipo Contudo, olhe para as soluções que a esquerda,
de cidade um símbolo do pecado ambiental. Mesmo a ao longo dos anos, admirou e você verá certamente a
relativa ausência de carros não a salvou de condena- inconsistência de seu julgamento. Os grandes projetos
ção. O carro, um objeto de desdém aos olhos da es- residenciais, inspirados pela retórica socialista de gen-
querda e inclusive de hostilidade quando dirigido por te como Gropius e Meyer, de fascistas do porte de Le
funcionários de bancos, acaba sendo um símbolo da Corbusier, invariavelmente envolviam a abertura de
emancipação e da igualdade quando conduzido pela vastas áreas e tiveram que ser demolidos após vinte
classe trabalhadora. A ausência de automóveis das anos. Que tipo de solução ambiental amigável é essa?
ruas de Poundbury é, portanto, vista como uma au- A ideia maluca de que as usinas de energia e outras
sência de proletários: tudo não passa de uma fantasia instalações deveriam ser vistas como «bens públicos»,
típica de cartão de Natal da classe média aposentada, a ser segurados pelo Estado, em termos ditados por
uma fantasia que passa por cima e ofusca a necessida- este — não seria essa ideia fundamentalmente de es-
de de soluções reais e «sustentáveis» para os proble- querda a raiz de todos os nossos problemas ambien-
mas de habitação modernos. É, no fim, exatamente o tais? A abordagem de «bem público» para a energia e
respeito depositado nos valores estéticos que incomo- para a infraestrutura catalisou a dispersão insustentá-
da a esquerda: somente a antiestética dos modernistas vel das populações. Ela removeu das mãos das pessoas
e dos futuristas tem apelo na sua mente, uma vez que comuns a obrigação de se debruçar sobre seus pro-
só tal estética pode ser conciliada com o ardente dese- blemas energéticos, de fazer com seus vizinhos o tipo
jo dos movimentos de esquerda de todas as idades e de acordo que produziria soluções sustentáveis para
temperamentos, que no caso consiste em se desfazer os problemas reais. Tornou a energia um problema

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coletivo enorme justamente por destruir o sentido de Como os conservadores deveriam se posicionar
que ela é, para cada um de nós, uma escolha individual quanto a isso? Separar um pedaço da natureza e atri-
real e desafiadora. buí-la o status de parque nacional ajuda um pouco,
Aqui vai outro exemplo do ponto a que quero mas não passa de uma solução temporária e passível
chegar: a poluição luminosa. Certo, ela não pode ser de todos aqueles defeitos engendrados pelo Estado
considerada um desastre ambiental, ao menos não que já mencionei. O ponto que deve se ter em mente
por agora. Tudo o que faz é consumir um monte de é que a espoliação ocorre por uma razão sobretudo:
energia inútil, estragar o céu noturno, atrapalhar os que os seres humanos lutam para externar o custo de
padrões de migrações de pássaros e o ciclo de vida dos tudo o que fazem. Quando não podem repassá-lo a
insetos, facilitar a vida dos ladrões na hora de escolher seus vizinhos, passam para a geração seguinte. E o
seus alvos e nos priva do mais belo espetáculo natural instrumento mais eficiente inventado para externar o
e fonte de fascinação e tranquilidade, sem o qual é me- custo das ações individuais é o Estado. Sua natureza
nos provável que encontremos o sentido de estarmos impessoal, administrativa e autojustificável faz dele
vivos. Pequenas perdas talvez. Mas elas teriam ocor- um veículo perfeito para absorver os custos de minha
rido se a provisão de energia, de estradas, de serviços ação agora e depositá-los sobre os desconhecidos que
e de utilidades tivesse sido responsabilidade de cada um dia terão que lidar com meus detritos. Quanto
pioneiro, e não do governo? A partir do momento mais o Estado se mete em nossas transações, mais fácil
que essas coisas estão disponíveis por toda parte, a luz é escapar do custo delas, e assim fica cada vez mais
elétrica é acesa o tempo todo, despejada cruelmente difícil consertar o estrago no meio ambiente no lon-
e sem moderação nos olhos de Deus, somente para go prazo. Há exceções a essa regra, mas elas não de-
fazer valer sua própria contribuição para os desequilí- veriam nos distrair da verdade geral nem da verdade
brios biológicos com que deparamos. complementar de que o jeito mais eficiente de garantir

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que as pessoas internalizem seus custos é assegurar e o amor ao lar. De Burke e de Maistre a Oakshott e
que encontrem, tanto de fato quanto em sentimento, Kirk, os principais pensadores conservadores dedica-
aqueles sobre quem suas ações recaem. Negociações ram muitos de seu trabalho ao problema da estética,
em pequena escala entre vizinhos são autocorrigíveis, sabendo que a busca por beleza não é somente uma
onde os relapsos raramente conseguem sair ilesos de questão de capricho, sem preocupações duradouras,
suas ações. Se as pessoas de uma vila são encarregadas mas, ao contrário, uma forma pela qual lutamos para
de jogar fora seu próprio lixo, você pode ter certeza moldar o mundo às nossas necessidades e nossas ne-
que elas vão fazê-lo da forma mais ecológica possível. cessidades ao mundo.
Se um caminhão de lixo do Estado passa toda semana Talvez o erro mais persistente na estética é o
para coletá-lo, essa mesma gente vai se mostrar indife- contido na senteça latina que diz de gustibus non est
rente ao fato de que esse lixo pode estar sendo despe- disputandum, ou seja, gosto não se discute. Pelo con-
jado de modo a poluir um rio ou uma nascente. trário, gosto é o que mais se discute, justamente por-
Se quisermos encontrar soluções de longo prazo, que é uma área da vida humana em que a disputa é
precisamos achar as razões que fazem com que as pes- tudo o que importa. Como defendeu Kant, nas ques-
soas vivam relações recíprocas, seja aqui e agora ou tões de julgamento estético somos «perseguidores de
em diferentes gerações. Essas razões sempre foram acordos» com nossos companheiros; estamos sempre
centrais para o pensamento conservador, da mesma convidando o outro a partilhar de nossas preferências,
maneira que estiveram ausentes do pensamento da ao mesmo tempo que nos expomos a todo tipo de crí-
esquerda. Eles abrangem as duas disposições men- tica. E quando debatemos o ponto não somente fin-
tais a partir das quais o conservadorismo surgiu no camos nosso julgamento com mero «gosto disso» ou
século xviii, que o distinguem de todas as suas cópias «parece legal»; vamos atrás de nossos horizontes mo-
farsescas libertárias e cosmopolitas: o amor à beleza rais para expor as considerações que podem servir de

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ajuda para a exposição de nosso julgamento. Quando cigarro cubano ou dominicano. Discutimos a transfor-
Le Corbusier apresentou sua solução para o problema mação visual do interior, a disrupção, da forma como
de Paris, que era demolir a cidade e substituí-la por vejo, de uma experiência de lar há muito estabelecida,
um parque todo cheio de torres de vidro espalhadas o significado disso na vida do fazendeiro, bem como a
e passarelas flutuantes, com o proletariado ilhado em presença, da maneira como meus amigos de esquerda
seus compartimentos, encorajados a vez ou outra dar veem, dos verdadeiros símbolos da vida moderna, que
uma descida e desfrutar de caminhadas revigorantes, agora se erguem no horizonte do mundo dele, acor-
ele estava expressando um julgamento de gosto. Mas dando-o para a realidade que vinha evitando há muito
não dizia apenas «gosto disso». Dizia que era daquele tempo. Ao discuter gostos dessa maneira, não estamos
jeito que as coisas deveriam ser, passando uma visão somente brigando por um acordo. Estamos trabalhan-
da vida humana e de sua plenitude, propondo formas do com vistas a uma solução consensual de problemas
que irradiavam a melhor e mais lúcida expressão dis- de assentamento no longo prazo, estamos descobrindo
so. E foi porque o conselho municipal de Paris correta- os termos através dos quais podemos viver lado a lado
mente se rebelou contra essa visão, por motivos tanto em um ambiente compartilhado, e como esse ambien-
morais quanto espiritual e puramente formais, que a te deveria parecer para que pudéssemos fincar raízes
estética de Le Corbusier foi rejeitada e a cidade, salva. nele. Concebido dessa forma, o julgamento estético
Da mesma forma, quando discuto com meus ami- é a maneira primária de racionalizar o ambiente, e a
gos de esquerda sobre geradores eólicos holandeses e maneira como os seres humanos incorporam em suas
dinamarqueses — cujas faces vazias e espectrais come- decisões presentes o impacto ambiental no longo pra-
çam a me encarar através das florestas e dos campos zo daquilo que eles fazem.
ingleses —, não trocamos somente gostos e aversões, Sempre foi normal para os seres humanos, ao
como se estivéssemos a debater sobre os méritos de um longo da história, achar a visão de uma pilha de res-

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tos ao lado de uma rua repugnante, por isso a aborda- clássica da arquitetura, chamando-a de «pastiche», e
gem-padrão sempre foi de enterrar o lixo longe — um contra o Novo Urbanismo de gente como Krier. Vê os
exemplo perfeito de uma solução estética consensual movimentos conservadores do campo como uma obra
que acaba protegendo o meio ambiente. O mesmo de gente privilegiada tentando monopolizar as visões
ocorre com o nojo em relação à sujeira espalhada e é de suas janelas. Algumas vezes seus argumentos não
a motivação que fará com que uma solução consen- estão errados, mas sua hostilidade ao julgamento es-
sual contra as embalagens não biodegradáveis emer- tético vai além de argumentos que ocasionalmente ro-
ja — pois já incorpora uma visão no longo prazo da çam a verdade. Soluções consensuais, como a dos ve-
inconveniência moral e espiritual colada a esse tipo de lhos livros de referência da arquitetura vernacular, que
desperdício. E o desastre ecológico das cidades ame- possibilitaram que as pessoas acomodassem suas casas
ricanas origina-se inteiramente do fato de que — em em ruas comunitárias, bem como construíssem lado
certa medida — os princípios estéticos foram aban- a lado sem ofender o vizinho, tipificam a abordagem
donados, bairros foram demolidos e reconstruídos conservadora em relação à sociedade. Tais soluções
por pessoas que nem viviam neles nem sabiam como consensuais tomam a forma de tradições, convenções,
eram, e certos tipos de construções foram adotados formas tranquilas de se aceitar a propriedade dos ou-
por motivos que nunca foram submetidos ao agrado tros e erigir causas comuns com os vizinhos. Elas não
estético. O negócio da construção da cidade ficou livre são ameaçadoras já em seu fundamento e não contêm
dos constrangimentos do julgamento estético e rendi- admoestações puritanas que agradam à esquerda, cujo
do à loucura utilitarista dos burocratas. desejo básico é chacoalhar as pessoas, solapar a com-
A esquerda é, no geral, hostil às soluções estéti- placência, surgir nas janelas tranquilas como se fosse a
cas, desmerecendo-as como cômodas, confortáveis ou visão do apocalipse. A razão pela qual os movimentos
mesmo cafonas. Faz campanha contra a revitalização ambientalistas foram capturados pela esquerda é que

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eles se prestam a essa ambição. Ela proporciona cená- ajam da forma horrenda que a esquerda tanto desa-
rios tão aterradores que parecem justificar por com- prova. É graças ao amor pelo lar que as pessoas de-
pleto a derrubada da ordem vigente, ao mesmo tempo fendem o país contra os inimigos internos (o macar-
que encoraja o tipo de controle do alto, que coloca in- thismo), que fazem campanha contra os imigrantes
variavelmente uma pessoa de esquerda iluminada no ilegais (xenofobia), que resistem ao multiculturalismo
comando da classe média alienada. Mas pode ser que a (racismo) e insistem em educar seus filhos dentro de
classe média, com sua penosa aderência às normas es- sua fé ancestral (fundamentalismo cristão). Todos os
téticas, sempre haja tido a solução para o problema do hábitos lamentáveis dos Estados Unidos podem ser
meio ambiente, tendo sido na verdade o crescimento vistos como expressão desse único instinto e estão sob
do Estado moderno, com seus esquemas arrogantes e ataque justamente por esse motivo.
sua falta de habilidade para responder às suas próprias Contudo, é o amor ao lar que proporciona o moti-
falhas grotescas, o real culpado do risco que nosso fu- vo mais forte em que o movimento ambientalista pode
turo corre. se apoiar — mais forte ainda do que o de julgamento
Isso me traz à segunda razão para o surgimento estético. Penso que os esquerdistas, ao longo dos anos,
do conservadorismo, que é o amor pelo lar, também se tornaram conscientes da maior das fraquezas de sua
anátema para a esquerda. Todas as tentativas de se filosofia: a de que o cidadão comum não tem a menor
associar o amor ao lar dentro de um tipo de ordem motivação para segui-la. Ele pode até ter raiva da pes-
política ferem o desapego cosmopolita do intelectual soa que roubou seu emprego, mas isso não faz dele
de esquerda. E o que é pior: eles alegam que elas não um ativista da «justiça social»; pode até ter interesse
passam de nacionalismo, xenofobia, distinções funda- em contribuir com as instalações esportivas da escola
mentais entre «nós» e «eles», que são o efeito natural local, mas isso não quer dizer que queira que o Estado
do assentamento e fazem com que pessoas pensem e doutrine as crianças. No geral, suas motivações são as

252 253
que o conservadorismo supõe que sejam: o amor pela lidade é uma forma de apego territorial, mas também
família e pelo lar, e um desejo de ser dar bem com o é um arranjo protolegislativo. É desenvolvendo essa
vizinho. Esse amor pelo lar se espalha, abarcando seu ideia de um sentimento territorial que se extrai as se-
país, seus costumes e sua bandeira; é essa ramificação mentes da soberania em si mesmas, e é aí que os con-
do instinto de lar que vai fazê-lo despertar, quando servadores podem realizar sua contribuição distintiva
acionado, para a causa ambientalista. Justamente por- para o pensamento ecológico.
que o conservadorismo é, em sua forma política, uma Mais do que retificar os problemas sociais e am-
defesa sistemática da nação e de seu futuro, o ambien- bientais em escala global, os conservadores buscam
talismo é uma causa conservadora. controles locais, bem como uma reafirmação da sobe-
Muitos ambientalistas reconhecerão que as rania local sobre ambientes conhecidos. Isso significa
lealdades locais, bem como as preocupações locais, afirmar o direito das nações de se autogovernar, assim
merecem um lugar apropriado em nossa tomada de como de adotar as políticas que vão coadunar com
decisões se realmente estamos querendo enfrentar as lealdades e os sentimentos de orgulho nacional. O
os efeitos adversos da economia global. No entanto, apego ao território e o desejo de protegê-lo da erosão
tenderão a relutar com a sugestão de que a lealdade e do desperdício se mantêm como motivações pode-
local deveria ser vista em termos nacionais em vez de rosas, e uma motivação que engendra supostamente
comunitários. Entretanto, há uma ótima razão para diversos sacrifícios alardeados com boca cheia por to-
enfatizar a nacionalidade. Isso porque as nações nada dos os políticos. Essa motivação é simples, não sendo
mais são que comunidades com um formato político. nada mais nada menos que o amor que sentimos por
Elas tem uma predisposição a afirmar sua soberania, nosso lar.
traduzindo o sentimento comum de pertencimento Pegue o Reino Unido. Nosso meio ambiente vem
em decisões coletivas e leis autoimpostas. A naciona- sendo motivo de preocupação política há um bom

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tempo. Paisagem, agricultura e clima se tornaram que as instituições políticas globais tenham feito algu-
ícones em nossa arte e literatura e fundamentais para ma coisa de bom para limitar a entropia global — mui-
nosso sentimento de identidade nacional. As leis de to pelo contrário, pois, ao encorajar a comunicação ao
planejamento, imigração e transportes refletiam tudo redor do mundo, ao erodir a soberania nacional e as
isso até recentemente. No entanto, também estamos a barreiras legislativas, elas acabaram por alimentar essa
par do fato de que nosso país está superpovoado, seu entropia global e enfraquecer a única fonte verdadeira
meio ambiente está sendo erodido por uma urbaniza- de resistência. Conheço muitos ambientalistas que pa-
ção crescente, pelo intenso tráfego de pessoas e pelo recem concordar comigo que a Organização Mundial
desperdício não biodegradável que sua agricultura do Comércio é agora uma ameaça ao meio ambiente,
está sob ameaçada por conta dos decretos da União não somente por solapar as economias camponesas
Europeia, e que — muito devido à recente emergência autossustentáveis e autorreprodutivas, mas também
da imigração — nossa população está crescendo para por erodir a soberania nacional sempre que propor-
além de sua capacidade de absorver custos ambientais. ciona um obstáculo no caminho do investimento das
Sentimentos de lealdade nacional podem ser concla- multinacionais. Muitos parecem concordar comigo
mados para se ganhar apoio para políticas que visem que as comunidades tradicionais merecem proteção
controlar esses efeitos entrópicos, as quais poderiam contra a mudança repentina e engendrada no exterior,
refletir o velho objetivo conservador de uma unidade não somente em virtude de suas economias sustentá-
autorreprodutiva e autônoma. No nível nacional, po- veis, mas também por causa de seus valores e das leal-
líticas ambientais coerentes e políticas conservadoras dades que constituem a soma de seu capital social. O
coerentes parecem estar em consonância. estranho é que poucos ambientalistas seguem a lógica
É somente nesse nível que acredito que seja realis- desse argumento até sua conclusão, reconhecendo que
ta ter esperança de melhora, pois não há evidência de nós também merecemos proteção contra a entropia

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global, que também temos que manter nossa sobera- o Amtrak ou a reviver a maravilhosa malha ferroviá-
nia nacional como nosso maior ativo político em face ria, subsidia estradas e companhias aéreas. Em vez de
de tudo isso, que também temos que manter o que pu- se pôr contra a indústria da energia e seus grandes
dermos das lealdades que nos conectam ao nosso ter- projetos de suburbanização do continente, endossa o
ritório para fazer dele nosso lar. Não obstante, até hoje abuso cada vez mais crescente do direito do domínio
as tentativas bem-sucedidas de reverter essa maré de eminente de enviar linhas elétricas, estradas e pontes
destruição ecológica que vimos vieram de esquemas para todo lugar que ainda não foi atropelado por essa
nacionais ou locais, no intuito de proteger um terri- loucura. Nunca respondeu aos argumentos de Jane Ja-
tório reconhecido como sendo «nosso» e definido, em cobs em Morte e vida de grandes cidades, ou aos de Ja-
outras palavras, através de um título herdado. mes Kunstler em The Geography of Nowhere; nunca fez
Que esperança temos de que os políticos conser- nada para endossar a genuína estética americana que
vadores ouçam esse argumento e tomem para si a cau- daria apoio ao Novo Urbanismo e seus simpatizantes.
sa do ambientalismo, deixando de enxergá-la como de Sua resposta ao crescente problema das embalagens
seus oponentes? Entre as expressões frágeis e tímidas não degradáveis é o silencio absoluto, e seus líderes
de opinião política que definem o Partido Conser- parecem estar bem felizes com uma economia que im-
vador britânico, alguns comentários vagos e apolo- porta milhões de toneladas de plástico toda semana da
géticos feitos, se interpretados gentilmente, podem China em troca do único produto degradável genui-
ser vistos como endossamento provisório da agenda namente americano, que é o dólar.
ambientalista. Nos Estados Unidos, porém, o Partido Quem devemos culpar por tudo isso? Alguns
Republicano segue com sua retórica inflamada em de- apontam para os filósofos do mercado livre, dizendo
fesa da construção de estradas, do consumo de óleo e que sua filosofia protege as grandes empresas, não im-
de projetos grandiosos. Enquanto se recusa a subsidiar porta de que área. Isso, ao meu ver, é um erro. O livre

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mercado, como defendido por Mises e Hayek, é sim-
plesmente uma instância do tipo de solução de proble-
mas consensual que venho defendendo nesse artigo. O
argumento burkeano em prol de uma parceria entre
gerações vai na mesma linha, pedindo para reconhe-
cermos que as soluções consensuais podem exigir por
vezes que consultemos os interesses daqueles que es-
tão por nascer e daqueles que já morreram. O que deu
errado, parece-me, não é o apego dos conservadores
pelo mercado, mas sua falha em não ver o que uma
solução de mercado real requer, ou seja, a retirada do
Estado e de seus projetos de cada decisão em que ob-
jetivos locais e lealdades estão em jogo. É certamente
tempo de os políticos conservadores reconhecerem
que a melhor maneira de abordar assuntos grandiosos
é pensar pequeno.

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Capítulo 12 te antagonistas com a ordem política ao redor. E, tanto
DEFENDENDO O OCIDENTE nos Estados Unidos quanto na Europa, vem surgindo
um crescente desejo por apaziguamento: um hábito
de contrição pública, uma aceitação, ainda que com
Não acho que vamos entender o confronto en- o coração pesado, dos éditos reprovadores dos mulás
tre o Ocidente e o islã radical se não reconhecermos e uma escalada no repúdio oficial de nossa herança
a enorme mudança cultural que ocorreu na Europa e cultural e religiosa. Há vinte anos teria sido inconce-
nos Estados Unidos desde o fim da guerra do Vietnã. bível que o arcebispo da Cantuária desse uma palestra
Os cidadãos dos Estados ocidentais perderam o apeti- advogando a favor da incorporação da shari’ah no sis-
te por guerras estrangeiras; perderam a esperança de tema legal inglês. Hoje muita gente considera isso um
triunfar de uma maneira que não seja somente tempo- ponto discutível, e talvez o próximo passo em direção
rária; perderam a confiança em seu estilo de vida e, a a um compromisso de paz.
bem da verdade, nem sabem mais o que um estilo de Tudo isso me sugere que nós no Ocidente pas-
vida requer. saremos por um período perigoso de apaziguamento,
Ao mesmo tempo, seu povo vem confrontando em que as reivindicações legítimas de nossa própria
um novo oponente, que acredita que o estilo de vida cultura e herança serão ignoradas ou minimizadas, na
do Ocidente é profundamente errado, sendo inclusive tentativa de provar nossas intenções pacíficas. Demo-
uma ofensa a Deus. Em um «momento de abstinência rará um tempo para que a verdade possa desempenhar
mental», as sociedades do Ocidente permitiram que seu importante papel de retificar nossos erros atuais e
esse oponente se misturasse em seu meio, algumas ve- preparar o caminho para os próximos. Isso significa
zes, como na França, no Reino Unido e na Holanda, que é mais que necessário para nós ensaiar a verdade,
em guetos que sustentam relações tênues e amplamen- de forma a chegar a um entendimento claro e obje-

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tivo do que está em jogo. É nisso que alguns traços de «cidadania», e a distinção entre as comunidades
críticos da herança do Ocidente virão à baila, os quais políticas e religiosas pode ser resumida na visão de
deveriam ser utilizados e defendidos nesse confronto que as comunidades políticas são compostas por ci-
atual. Cada um deles marca um ponto de contraste e dadãos, e as religiosas, por sujeitos — aqueles que se
possivelmente de conflito com a tradicional visão is- submeteram (que é o significado primário da palavra
lâmica de sociedade. E cada um deles desempenhou islām). Se quisermos uma simples definição do Oci-
um papel vital na criação do mundo moderno. A be- dente como é hoje, seria razoável pegar o conceito de
ligerância islâmica vem de um profundo sentimento cidadania como ponto inicial. É isso que milhões de
de não encontrar um lugar seguro no mundo, e assim imigrantes que erram pelo mundo estão em busca:
ela se vira para preceitos e valores que não condizem uma ordem que confira segurança e liberdade em tro-
com o estilo de vida do Ocidente. Isso não significa ca de consentimento.
que deveríamos renunciar ou repudiar os traços dis- As sociedades tradicionais islâmicas veem a lei
tintivos de nossa civilização, como muitos gostariam como um sistema de comando e recomendações dita-
que fizéssemos. Significa que deveríamos estar alertas dos por Deus. Tais éditos não são passíveis de emen-
para sua defesa. das, ainda que sua aplicação em casos particulares
O primeiro dos traços que tenho em mente é o possa envolver argumento jurisprudencial. A lei, da
status de cidadão. O consenso entre os ocidentais é de forma como o islã a enxerga, é uma demanda por nos-
que a lei se faz legítima pelo consentimento daqueles sa obediência, e seu autor é Deus. Em certa medida, é
que devem obedecê-la. Esse consentimento é atingi- o oposto da concepção de lei que herdamos da ideia
do por um processo político através do qual cada um de cidadania. A lei para nós é a garantia de nossas li-
participa da elaboração e da implementação da lei. O berdades. Ela não é feita por Deus, mas pelo homem,
direito e o dever da participação é o que chamamos seguindo o instinto de justiça inerente à condição hu-

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mana. Não é um sistema de comandos divinos, mas impostas pelas autoridades religiosas, em obediência
um resíduo de acordos humanos. à vontade revelada do Criador. Em alguma medida, a
Isso se faz mais evidente em particular nos ci- severidade disso é mitigada pela tradição que permite
dadãos britânicos e americanos, que desfrutaram do recomendações, bem como obrigações, como regras
inestimável benefício da common law — um sistema das Lei Divina. Entretanto, não há ainda um escopo
que não foi imposto por um poder soberano, tendo na shari’ah que contemple a privatização da moral,
sido construído pelas cortes na tentativa de fazer jus- menos ainda da religião, nos aspectos da vida.
tiça nos conflitos individuais. Nossa lei vem de baixo Claro, muitos muçulmanos não vivem sob a lei da
para cima, num sistema que trata a soberania no mes- shari’ah — isso só acontece em alguns lugares, como
mo tom que usa para os cidadãos — insistindo que na Arábia Saudita e no Afeganistão. Em outros se veri-
a justiça, não o poder, prevalecerá. Por isso tem sido fica a adoção de códigos de lei civil e criminal ociden-
evidente, desde a Idade Média, que a lei, ainda que tais, seguindo uma tradição que começou no século
dependa do soberano para ser imposta, pode depô-lo xix com os otomanos. Contudo, esse reconhecimento

caso tente desafiá-la. de alguns Estados islâmicos das tradições ocidentais


À medida que nossa justiça foi se desenvolvendo, tem seus perigos: ele inevitavelmente faz pensar que
ela permitiu a privatização da religião, bem como de a lei das forças seculares não é uma lei de verdade,
várias áreas da moralidade. Para nós, não é somente uma autoridade de verdade, e é até mesmo um caso de
um absurdo, mas também algo opressivo, que haja blasfêmia, como defendeu Sayyid Qutb, antigo líder
uma lei que puna o adultério. Desaprovamos o adulté- da Irmandade Muçulmana em seu trabalho seminal
rio, mas acreditamos que não cabe à lei punir alguém Milestones. A rebelião contra as forças seculares é fá-
por pecar. Na shari’ah, contudo, não há distinção en- cil de ser justificada, uma vez que suas leis são vistas
tre moralidade e lei: ambas vêm de Deus e devem ser como usurpadoras da autoridade soberana de Deus.

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Desde suas origens, o islã vem encontrando difi- fala sobre esse ponto, em 3,64, dirigindo-se a judeus
culdades em aceitar que queremos para nós qualquer e cristãos com o comando de não aceitar nenhuma
lei, ou qualquer outra soberania, desde que seja aquela divindade além do Deus único e nenhum senhor ārb-
revelada no Alcorão; por isso o grande cisma entre os ābān) entre si.
xiitas e os sunitas a respeito do caso da sucessão legí- Cidadania e lei secular andam juntas. Somos to-
tima. Do ponto de vista do governo secular, questões dos participantes no processo de elaboração da lei. Por
acerca da legitimidade da sucessão são resolvidas pela isso podemos nos ver como cidadãos livres, cujos di-
mesma constituição que governa as operações diárias reitos devem ser respeitados e cuja vida privada é as-
da lei: em última instância, elas são um assunto de sunto de cada um. E foi o que fez com que fosse possí-
acordo humano. Porém, uma comunidade que acredi- vel a privatização da religião nas sociedades ocidentais
ta ser governada por Deus, em termos veiculados por e o desenvolvimento de ordens políticas nas quais os
seu mensageiro, tem um grande problema sobre o qual deveres dos cidadãos precedem os escrúpulos religio-
se debruçar quando esse mensageiro morre: quem as- sos. Como isso é possível é uma questão profunda e
sume, e como? O fato de que os governantes nas co- difícil, pertinente ao campo da teoria política; que isso
munidades islâmicas possuem uma tendência maior seja possível é um fato de que a civilização ocidental é
que a média de ser assassinados não está desconectado testemunha incontroversa.
dessa questão. Os sultões de Istambul se cercavam de O que me traz ao segundo traço que identifico
guardas da casa dos janízaros, escolhidos entre seus como central para a civilização europeia: a naciona-
subalternos cristãos, justamente porque eles não po- lidade. Nenhuma ordem política pode atingir a es-
diam confiar em nenhum muçulmano, com medo de tabilidade se ela não consegue invocar uma lealdade
que se sentissem compelidos a consertar um erro de compartilhada, uma «primeira pessoa do plural» que
sucessão matando o governante. O próprio Alcorão distingue aqueles que compartilham os benefícios e os

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fardos da cidadania dos que estão fora da equação. Em «Estado falido», uma vez que não possui um gover-
tempos de guerra, a necessidade disso é autoevidente, no central capaz de tomar decisões em nome do povo
mas ela também se faz necessária em tempos de paz, como um todo, ou de impor qualquer tipo de ordem
se as pessoas realmente querem tratar sua cidadania legal. Entretanto, o verdadeiro problema é que se trata
como definidora de suas obrigações públicas. A leal- de uma nação falida. Ela nunca desenvolveu o tipo de
dade nacional marginaliza lealdades de família, tribo lealdade secular, territorial e voltada para a lei que faz
e fé, colocando perante os olhos do cidadão, como o com que seja possível se moldar como Estado-Nação,
foco de seu sentimento patriótico, não uma pessoa ou em contraposição a um agregado de tribos ou famílias
grupo, mas um país. Esse país é definido por um terri- competindo entre si.
tório e pela história, cultura e lei que fizeram com que O mesmo vale para muitos outros lugares onde os
essa área fosse nossa. A nacionalidade é composta pela islâmicos se assentaram: mesmo que funcionem como
terra e pela narrativa de sua posse. Estados, como o Paquistão, são em sua maioria falidos
É essa forma de lealdade territorial que capacitou como nação. Não conseguiram gerar o tipo de lealda-
as pessoas nas democracias ocidentais a existir lado a de territorial que faz com que povos de diferentes fés,
lado, respeitando os direitos de cidadão uns dos ou- afinidades e tribos convivam em paz, bem como de
tros a despeito de diferenças radicais de fé, sem ne- lutar lado a lado em nome de uma pátria comum. E
nhuma ligação familiar, de afinidade ou costume local sua história recente pode nos levar a nos perguntar se
no longo prazo para sustentar a solidariedade. Leal- não há, no fim das contas, um profundo conflito entre
dade nacional não é vista do mesmo modo em todo as concepções muçulmanas de comunidade e as con-
lugar do mundo. E não é conhecida em nenhum lugar cepções que alimentam nossa ideia de governo nacio-
onde os islâmicos se enraizaram. Considere a Somá- nal. Talvez o Estado-Nação não seja uma ideia que se
lia. As pessoas por vezes se referem a ela como um encaixe no islã.

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Essa observação é pertinente ao Oriente Médio Nem todos os Estados-Nações erigidos após a
hoje, região onde encontramos resquícios de um gran- dissolução do Império Otomano são arbitrários como
de Império islâmico divido em Estados-Nações. Com o Iraque. A Turquia, que herdou o grosso do Império,
algumas exceções, essa divisão é fruto de fronteiras foi bem-sucedida em se reconstruir como um genuí-
traçadas no mapa pelas potências ocidentais, em espe- no Estado-Nação — ainda que não tenham faltado
cial pelo Reino Unido e pela França, como resultado expulsões e massacres no arsenal usado contra as mi-
do acordo Sykes-Picot, de 1917. Não é de estranhar norias não turcas. O Líbano e o Egito desfrutavam de
que o Iraque, por exemplo, haja tido uma história tão um tipo de identidade quase nacional sob a proteção
conturbada como Estado-Nação, visto que foi somen- do Ocidente desde o século xix. E, evidentemente, Is-
te de forma esporádica um Estado, e nunca uma na- rael estabeleceu uma forma de governo nacional bem
ção. Pode até ser que um dia curdos, árabes sunitas e voltada aos moldes do Ocidente, em um território em
xiitas se vejam como iraquianos. Mas essa identidade disputa justamente por essa razão. Porém, esses exem-
será frágil e fragmentária, e em qualquer conflito os plos não servem para afastar a suspeita de que o islã
três grupos vão se identificar em oposição uns com não vê com bons olhos a ideia de lealdades nacionais,
os outros. De fato, parece que somente os curdos têm muito menos a de que, em tempos de crise, a fidelida-
uma identidade nacional desenvolvida, e oposta àque- de em última instância deve ser direcionada ao Esta-
la do Estado no qual estão inseridos. Quanto aos xii- do, e não à religião.
tas, sua primeira lealdade é religiosa. Eles enxergam o Considere a Turquia. Atatürk criou o Estado tur-
Irã, pátria do xiismo, como o modelo a ser seguido em co impondo uma constituição secular, adotando um
tempos turbulentos. No conflito atual com o Estado sistema legal secular baseado nos modelos belgas e
Islâmico, são os xiitas iraquianos e seus correligioná- franceses, proibindo vestimentas islâmicas, expulsan-
rios iranianos e libaneses que estão na linha de frente. do os ‘ulema’ do serviço público, proibindo a poliga-

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mia, retirando palavras árabes do turco e adotando condenado por seus vizinhos a viver em um estado de
o alfabeto latino, de modo a separar a língua de suas sítio permanente.
origens culturais. O conflito entre o Estado secular e o Isso me traz ao terceiro traço da civilização oci-
Islã foi, portanto, varrido para debaixo do tapete , e du- dental: o cristianismo. Não tenho a menor dúvida de
rante um bom tempo parecia que um compromisso es- que foi o domínio cristão da Europa que possibilitou
tável havia sido atingido. Agora, no entanto, o conflito o surgimento de uma lealdade nacional, acima da fé e
está em erupção novamente. Houve uma tentativa dos da família, sobre a qual uma jurisdição secular e uma
secularistas de proibir o governo do Partido Islâmico, ordem de cidadania pode ser encontrada. Pode soar
e uma tentativa do governo de acusar os líderes secu- paradoxal identificar uma religião como a força prin-
laristas em um tribunal terrorista de legalidade dúbia. cipal por trás do desenvolvimento do Estado secular.
O Líbano deve muito de seu status excepcional à Porém, devemos lembrar as circunstâncias peculiares
sua outrora majoritária população cristã, bem como nas quais o cristianismo emergiu. Os judeus eram uma
à aliança de longa data dos maronitas e dos drusos comunidade fechada, ligada por uma estreita rede de
contra o sultão otomano; sua fragilidade atual se deve legalismos religiosos, mas governados por uma lei ro-
muito ao Hezbollah, que se aliou com o Irã e com a Sí- mana que não fazia nenhuma referência a nenhum
ria e não aceita render sua lealdade ao Estado libanês. Deus e que oferecia um ideal de cidadania ao qual
O Egito sobreviveu como um Estado-Nação somente todo sujeito do Império podia aspirar.
através de medidas radicais tomadas contra a Irman- Jesus Cristo se viu em conflito com o legalismo
dade Muçulmana, além de ter se apoiado em uma he- de seus companheiros judeus, e em ampla simpatia
rança legal e política que seria provavelmente rejeita- com a ideia de um governo secular — por isso sua fa-
da pela população muçulmana (ainda que não pelos mosa frase da parábola do dinheiro dos tributos: «Dai
coptas) em qualquer eleição livre. Já Israel vem sendo a César o que é de César e a Deus o que é de Deus».

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A fé cristã foi moldada por são Paulo para o uso de portanto seria incapaz de desenvolver qualquer coisa
comunidades dentro do Império Romano, as quais remotamente classificável como nacional em oposição
queriam somente espaço para celebrar seus rituais e a uma forma de lealdade religiosa. O mais importante
não tinham qualquer intenção de desafiar os pode- defensor do nacionalismo árabe em tempos recentes,
res seculares. Essa ideia de lealdade dual continuou Michel Aflaq, não era um muçulmano, mas um grego
até Constantino, sendo endossada pelo papa Gelásio i ortodoxo, nascido na Síria, educado na França e mor-
no século vi, em sua doutrina das duas espadas dadas to no Iraque, desiludido com o partido Ba’ath que ele
à humanidade para seu governo: uma que guarda o havia ajudado a fundar. Se lealdade nacionais emergi-
corpo político e outra que protege a alma individual. ram nos últimos tempos, isso se deu a despeito do islã,
É esse profundo endosso da lei secular pela Igreja em não por causa dele. E elas parecem particularmente
seus primórdios que foi responsável pelos desenvolvi- frágeis e fragmentárias, como vimos no caso da Pales-
mentos subsequentes na Europa — desde a Reforma e tina em sua tentativa de costurar uma coesão nacional,
o Iluminismo até o advento da lei puramente territo- bem como na história conturbada do Paquistão.
rial que prevalece no Ocidente hoje. O cristianismo é algumas vezes descrito como
Durante os primeiros séculos do islã, os filósofos uma síntese da metafísica judaica com as ideias gre-
tentaram desenvolver uma teoria de um Estado perfei- gas de liberdade política. Não há dúvidas quanto a isso
to. Contudo, a religião estava sempre no centro; Al-Fa- — o que não é de surpreender, dado o contexto histó-
rabi inclusive tentou adaptar o argumento de Platão rico de sua gestação. Talvez seja a contribuição grega
em A república, no caso com o Profeta como sendo o a responsável pelo quarto traço que acredito ser dig-
rei-filósofo. Quando por fim a discussão terminou, já no de ênfase, na medida em que é em conflito direto
na época de Ibn Taymiyya, no século xiv, estava claro com o islã, que é a ironia. Já havia uma tendência ao
que o islã havia voltado as costas ao governo secular e desenvolvimento da ironia na Bíblia judaica, ecoada

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pelo Talmude. No entanto, há um novo tipo de ironia De fato, não há exemplo mais claro disso do que
nos julgamentos de Jesus e em suas parábolas, que visa a questão que exigiu o julgamento irônico de Cristo
o leque de desvarios humanos e mostra, de maneira mencionado anteriormente. Não somente apedrejar
algo irônica, como viver em meio deles. Um exemplo até a morte é oficialmente permitido em muitas par-
marcante disso é o veredito no caso da mulher acusa- tes do mundo islâmico como forma de punição por
da de adultério: «Aquele que nunca pecou que atire a adultério; em muitas comunidades islâmicas mulhe-
primeira pedra». Em outras palavras: «Esqueça. Você res são tratadas como prostitutas tão logo elas saem
também não queria ter feito o que ela fez? E será que da linha desenhada para elas pelos homens. O sexo,
já não o fez bem lá no fundo de seu coração?». Foi su- que não pode ser normalmente discutido sem cer-
gerido que essa história é uma inserção a posteriori — ta pitada de ironia, se tornou, portanto, um assunto
uma das muitas selecionadas pelos primeiros cristãos, delicado entre os muçulmanos, sempre que con-
provenientes do repertório da sabedoria herdada e frontados, como inevitavelmente são, pelas frouxi-
atribuída ao Redentor após sua morte. Mesmo que isso dões morais e confusões libidinosas do Ocidente. Os
seja verdade, só confirma a visão de que a religião cris- mulás são incapazes de pensar nas mulheres como
tã fez da ironia um ponto fulcral de sua mensagem. Tal seres sexuais e incapazes de pensar por muito tempo
ironia também é compartilhada pelos grandes poetas acerca de qualquer coisa. Consequentemente, uma
sufis, especialmente por Rumi e Hafiz. Infelizmente, enorme tensão se desenvolveu nas comunidades
parece ser amplamente desconhecida pelas versões do muçulmanas das cidades ocidentais, onde os jovens
islã que moldam as almas dos islâmicos: sua religião se acabam desfrutando da liberdade que os circunda,
recusa a se ver de fora e, por isso, não suporta a crítica e ao passo que as jovens se escondem, sendo muitas
muito menos aceita ser motivo de riso — algo que tes- vezes aterrorizadas quando ousam aproveitar o mí-
temunhamos de forma abundante em tempos recentes. nimo dessa liberdade.

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A ironia foi vista por Richard Rorty, já no oca- o outro ao qual volto meu olhar quanto eu mesmo,
so de sua vida, como um estado mental intimamente aquele que está a olhar. A ironia não está livre de jul-
conectado com a visão de mundo pós-modernista — gamento: ela simplesmente reconhece que aquele que
uma suspensão de julgamento que, não obstante, al- julga também é julgado, e por ele mesmo.
meja certo tipo de consenso, um acordo compartilha- E isso me traz ao quinto traço da civilização oci-
do de não julgar.15 Parece-me, entretanto, que a ironia, dental que está em jogo no confronto atual: a auto-
apesar de infectar nosso estado mental, é mais bem crítica. É próprio da nossa natureza permitir a voz do
compreendida como uma virtude — uma disposição oponente sempre que afirmamos algo. O método ad-
direcionada a um tipo de plenitude prática e de su- versário da deliberação é endossado por nossa lei, por
cesso moral. Se eu tivesse que arriscar uma definição nossa educação e pelos sistemas políticos que cons-
de tal virtude, ia descrevê-la como um hábito de reco- truímos, de modo a garantir nossos interesses e resol-
nhecer a alteridade em tudo, incluindo em si mesmo. ver os conflitos. Pense naqueles críticos renhidos da ci-
Não interessa o quanto está convencido da perfeição vilização ocidental, como Edward Saïd e o onipresente
de suas ações e da verdade de suas opiniões — é pre- Noam Chomsky. Saïd vociferou em termos intransi-
ciso olhar para elas como se fossem ações e verdades gentes e por vezes venenosos em nome do mundo is-
de outro, e reformulá-las de consequência. Por defini- lâmico contra o panorama residual do imperialismo
ção, ironia é bem diferente de sarcasmo: é um modo ocidental. O que aconteceu com ele? Assumiu uma
de aceitação, mais que de rejeição. E ela aponta para cadeira de prestígio em uma universidade importan-
os dois lados: através da ironia aprendo a aceitar tanto te e teve inúmeras oportunidades de falar em público
nos Estados Unidos e pelo mundo ocidental, assim
como Chomsky. Esse hábito de recompensar nossos
15  Richard Rorty, Contingência, ironia, solidariedade, São Paulo, críticos é, penso eu, único da civilização ocidental, e
Martins Fontes, 2007.

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o único porém é que, nas universidades americanas, exercitando o hábito de indicar representantes. Suas
as coisas foram tão longe que não há recompensa para decisões são tomadas como vinculativas para todos
mais ninguém. Os prêmios são distribuídos para a es- os membros, não podendo ser rejeitadas sem que se
querda, pois isso alimenta a ilusão reinante de que a abandone o clube. Dessa forma, um único indivíduo
autocrítica vai nos trazer segurança e de que todas as fala em nome de um grupo, e, ao fazê-lo, obriga todos
ameaças são fruto de nosso apego pelo que temos. a aceitar as decisões que venha a tomar em seu nome.
Há outro traço da civilização ocidental que sur- Não tem nada de estranho nisso para nós, e assim se
ge do hábito da autocrítica: a representação. Nós do deu em nossas instituições políticas, educacionais,
Ocidente, e isso fica ainda mais evidente nos países econômicas e de entretenimento, ou seja, de tantas
de língua inglesa, somos herdeiros do hábito de longa formas distintas que seria bobagem elucidar todas. As-
data da associação livre, que consiste em nos juntar sim também se deu nas instituições religiosas, tanto de
em clubes, negócios, grupos de pressão e fundações cunho católico quanto protestante. De fato, foi entre os
educacionais. Essa veia associativa foi reverenciada teólogos protestantes do século xix que a teoria da cor-
particularmente por Tocqueville em suas jornadas poração como sendo uma ideia moral foi desenvolvida
pelos Estados Unidos, e é facilitada pela common law de maneira integral pela primeira vez. Sabemos que a
inglesa — igualdade e o contrato de fidúcia —, que hierarquia da nossa Igreja, seja ela batista, episcopal ou
possibilita que as pessoas montem fundos em comum católica, é dotada de poder decisório para deliberar em
e os administrem sem pedir permissão a nenhuma au- nosso nome e pode dialogar com instituições em ou-
toridade maior. tras partes do mundo no intuito de garantir um espaço
Esse hábito associativo anda junto com a tradi- importante para a prática de nossa fé.
ção de representação. Quando formamos um clube ou As associações tomam uma forma bem diferente
uma sociedade que tenha um perfil público, estamos nas sociedades islâmicas tradicionais. Clubes e socie-

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dades compostos por gente que nunca se viu é coisa mília é que as comunidades islâmicas não possuem o
rara, sendo que a unidade social primária não é a asso- conceito de porta-voz.17 Quando há conflitos sérios
ciação, mas a família. As empresas nunca desfrutaram entre as minorias muçulmanas e a sociedade na qual
de um aparato legal sob a lei islâmica, e, de acordo com se econtram, torna-se difícil, para não dizer impossí-
Malise Ruthven e outros, o conceito de pessoa jurídica vel, encontrar alguém para negociar com vistas a um
não possui nenhum equivalente em suas leis.16 Institui- apaziguamento, uma vez que não há ninguém que
ções de caridade são organizadas de maneira totalmen- assuma responsabilidade por impor alguma decisão.
te distinta — não propriamente sob a confiança de um Se, por um motivo qualquer, alguém se apresenta, os
beneficiário, mas como uma propriedade que foi «blo- outros membros da comunidade islâmica se sentem
queada»; e todas as entidades públicas, como as escolas livres para aceitar ou rejeitar suas decisões por mera
e os hospitais, são vistas como auxiliares da mesquita vontade pessoal. O mesmo problema ocorre no Afega-
e administradas de acordo com princípios religiosos. nistão, no Paquistão e em outros lugares com popula-
Nisso temos também que a própria mesquita não é ções muçulmanas radicais. Quando alguém de fato se
uma pessoa jurídica, nem há uma entidade que pode- apresenta para falar em nome de um grupo dissiden-
mos chamar de Mesquita, como a Igreja — uma enti- te, frequentemente isso se dá como fruto de iniciativa
dade cujas decisões são atreladas a seus membros, que própria e, portanto, sem que nenhum procedimento
podem negociar em nome dos fiéis, que por sua vez valide seu ofício. E, por incrível que pareça, caso con-
podem ser responsabilizados por seus crimes e abusos. corde com alguma solução, acaba sendo assassinado
A consequência dessa tradição tão longeva de
associação apenas sob a égide da mesquita ou da fa-
17  Há uma importante exceção a essa regra na comunidade
mundial dos ismaelitas, que encontrou seu representante e
16  Malise Ruthven, Islam in the World. porta-voz no Aga Khan.

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ou no mínimo renegado pelos membros radicais do Contudo, quanto mais o apego se dá na base do
grupo que alega representar. calor e da intimidade, menor se torna seu alcance.
Isso me leva a refletir novamente acerca da ideia Uma irmandade é seletiva e exclusiva; ela não pode
de cidadania. Uma importante razão para a estabilidade ser espalhada para muito longe sem se expor a uma
e a tranquilidade de sociedades baseadas nela é que os recusa repentina e violenta. Daí vem o provérbio
indivíduos vivem ciosos da garantia de seus direitos — árabe: eu e meu irmão contra meu primo, eu e meu
separados de seus vizinhos por suas esferas de soberania primo contra o mundo. A associação entre irmãos
particular, onde tomam suas decisões por conta própria. não é uma entidade nova, uma corporação, que pode
Isso faz com que uma sociedade de cidadãos estabele- negociar por seus membros. Ela se mantém essen-
ça boas relações e uma aliança compartilhada entre es- cialmente plural — e inclusive ikhwān nada mais é
tranhos. Não é preciso conhecer seu colega para fazer que o plural de akh, irmão, usado para denotar uma
valer seus direitos ou para se responsabilizar por seus assembleia de pessoas que pensam igualmente, reu-
deveres em relação a ele. O outro cidadão ser um estra- nidas em nome de um interesse comum, em vez de
nho não altera em nada o fato de que cada um de vocês uma instituição que pode alegar soberania sobre eles.
está preparado para morrer pelo território onde podem Isso gera repercussões políticas significativas. Quan-
desfrutar de uma lei. Esse traço notável de Estados em do o sucessor de Nasser na presidência do Egito,
que impera a cidadania é sustentado por aquilo que ci- Anwar Sadat, destinou assentos no Parlamento para
tei: autocrítica, representação e vida corporativa, fatores a Irmandade Muçulmana, estes foram imediatamen-
que não estão presentes no mundo islâmico. O que os te ocupados por aqueles considerados adequados
movimentos islâmicos prometem a seus aderentes não é por ele e renegados pela verdadeira irmandade, que
cidadania, mas irmandade (ikhwān), algo mais caloroso, prosseguiu com suas atividades violentas até conse-
mais íntimo e mais satisfatório metafisicamente. guir assassiná-lo. Irmãos não aceitam ordens: eles

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agem de forma conjunta como uma família, até que que proíbe aqui embaixo, é o lubrificante necessário
briguem e se matem. do dínamo do Ocidente. Isso pode ser visto claramen-
O último contraste entre o Ocidente e as comuni- te nos Estados Unidos, onde os coquetéis quebram o
dades muçulmanas me traz para a divergência final e gelo imediatamente entre estranhos, colocando todos
mais crítica. Vivemos em uma sociedade de estranhos, em sintonia e estimulando um desejo coletivo de acor-
que se associam rapidamente e toleram suas diferen- do entre pessoas que minutos antes mal se conheciam.
ças. A nossa sociedade não é uma sociedade de con- Essa forma de se chegar ao ponto rapidamente depen-
formidade vigilante; ela faz poucas exigências públicas de de vários aspectos de nossa cultura, mas a bebida é
que não estão contidas na lei secular e permite que um aspecto fundamental, e aqueles que se debruçaram
pessoas se movam com rapidez de um grupo a outro, sobre o fenômeno estão quase convictos de que, a des-
de um relacionamento a outro, de um negócio, uma peito de todo o preço que a civilização já pagou por
religião ou um estilo de vida a outro. Ela é infinita- conta do alcoolismo, acidentes e lares desfeitos, é gra-
mente criativa em achar instituições e associações que ças à bebida que conseguimos ser tão bem-sucedidos
farão com que seja possível cada pessoa viver a vida no longo prazo. Claro, sociedades islâmicas possuem
e se manter em termos pacíficos com as outras ape- suas próprias maneiras de criar associações fugazes —
sar das diferenças, sem a necessidade de intimidade, o narguilé, as casas de café e os tradicionais banhos
irmandade ou lealdade tribal. Não estou a dizer que árabes, reverenciadas por Lady Mary Wortley Mon-
isso é bom, só que as coisas funcionam dessa manei- tague como capazes de estabelecer uma solidarieda-
ra, e que é um produto natural da cidadania da forma de entre as mulheres de uma forma que não existe no
como descrevi. Sendo assim, o que torna possível vi- Ocidente. Porém, essas formas de associação também
ver desse jeito? A resposta é simples, e tem a ver com a acabam sendo formas de retração, uma acomodação
bebida. Aquilo que o Alcorão promete no Paraíso, mas em uma postura pacífica no intuito de evitar tomar

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parte das decisões governamentais. A bebida possui o defendendo nossa riqueza e nosso território, que não
efeito oposto — ela aproxima estranhos num estado estão em jogo. Estamos defendendo nossa herança po-
de agressão controlada, de forma que se sintam capa- lítica e cultural, encarnada nesses sete traços que evi-
zes e à vontade para se engajar em negócios que aca- denciei. Em segundo lugar, é preciso ter claro que não
bam surgindo justamente dessa conversa. superamos o ressentimento nos sentindo culpados ou
Os traços aos quais me referi não explicam me- admitindo nosso erro. A fraqueza só atiça ainda mais
ramente a singularidade da civilização ocidental: eles a outra parte, uma vez que alerta o inimigo para a pos-
também servem para explicar o sucesso com que se sibilidade de destruir você. Deveríamos estar prepara-
deram as enormes negociações ocorridas relacionadas dos para afirmar aquilo que temos e expressar nossa
aos avanços científicos e tecnológicos, assim como ex- determinação de nos agarrar a nossos valores. Dito
plicam a estabilidade política e o éthos democrático isso, temos que reconhecer que não é inveja, mas res-
das nações que a compõem. Tais traços também ser- sentimento, que move o terrorista. Inveja é o desejo de
vem para distinguir a civilização ocidental das comu- possuir o que é do outro, enquanto ressentimento é o
nidades islâmicas em que terroristas florescem. Eles desejo de destruir isso. Como se lida com o ressenti-
explicam seu grande e insuperável ressentimento do mento? Essa é a grande questão que tão poucos líderes
ponto de vista de seus próprios recursos morais e re- da humanidade conseguiram responder. Entretanto,
ligiosos, e a competição contra seus rivais americanos os cristãos têm sorte de ser herdeiros de uma grande
e europeus. tentativa de responder a tamanho desafio, perpetra-
Já que isso é verdade, como podemos defender da por Jesus Cristo, sob influência da antiga tradição
o Ocidente do terrorismo islâmico? Vou sugerir uma judaica que vem desde a Torá e que foi expressa em
breve resposta a essa questão. Primeiro, temos que ter termos similares por um contemporâneo seu, Rabbi
claro aquilo que estamos defendendo. Não estamos Hillel. Jesus defende que o ressentimento pode ser su-

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perado com o perdão. Estender a mão não tem nada a que exigem tais mudanças e levá-los para viver onde
ver com se acusar; envolve se doar ao outro. E é em re- esse tipo de sociedade já foi instaurada. E devemos
lação a isso, parece-me, que tomamos a direção errada responder à sua violência com a força necessária para
nas décadas recentes. A ilusão de que somos culpados, contê-la, se pudermos.
de que devemos confessar nossos pecados e nos juntar Na esfera privada, todavia, os cristãos devem se-
à causa do inimigo, expõe-nos a um ódio ainda mais guir o caminho de Jesus Cristo, e isso significa olhar
determinado. A verdade é que não somos culpados, sobriamente e com um espírito de misericórdia para
que o ódio do inimigo é totalmente injustificável, que as feridas que recebemos, mostrando, através do
sua inimizade implacável não pode ser defletida atra- exemplo, que elas não servem para nada a não ser
vés de um mea culpa. Essa verdade pode dar a impres- desacreditar aqueles que as infligiram. Essa é a parte
são de que não temos para onde correr. difícil da tarefa — difícil de realizar, de endossar e de
No entanto, temos sim um caminho a seguir. Há recomendar aos outros.
dois recursos que podemos usar em nossa defesa, um
público e um privado. Na esfera pública, podemos
tratar de proteger as coisas boas que herdamos. Isso
implica não fazer nenhuma concessão àqueles que
desejam que troquemos cidadania por submissão, na-
cionalidade por conformismo religioso, lei secular por
shari’ah, herança judaico-cristã por islã, ironia por so-
lenidade, autocrítica por dogmatismo, representação
por submissão, alegre ebriedae por abstinência cen-
surada. Temos que tratar com escárnio todos aqueles

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BIBLIOTECA antagon sta 2

13. LEOPARDI | Pensamentos

14. MARINA TSVETÁEVA | O poeta e o Tempo

15. PROUST | Contra Sainte-Beuve

16. GEORGE STEINER | Aqueles que queimam livros

17. HOFMANNSTHAL | As palavras não são deste mundo

18. JOSEPH ROTH | Viagem na Rússia

19. ELSA MORANTE | Pró ou contra a boma atômica

20. STIG DAGERMAN | A política do impossível

21. MASSIMO CACCIARI - PAOLO PRODI | Ocidente sem utopias

22. ROGER SCRUTON | Confissões de um herético

23.DAVID VAN REYBROUCK | Contra as eleições

24. V.S. NAIPAUL | Ler e escrever


ISBN 000-00-00000-00-0

FONTES: Calibri, Adobe Hebrew


PAPEL: Arcoprint 90 gr. 1:5

IMPRESSÃO: Grafiche Veneziane


PRODUÇÃO: Zuanne Fabris editor

1a edição novembro 2017


© 2017 EDITORA ÂYINÉ

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