Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Paula Siqueira
Paula Siqueira
Marcio Goldman
Orientador
Paula Siqueira
_________________________________
Marcio Goldman
(Doutor, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional - Universidade
Federal do Rio de Janeiro)
_________________________________
Ana Luiza Borralho Martins Costa
(Doutora, Programa de Estudos em Filosofia Antiga – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais -
Universidade Federal do Rio de Janeiro)
_________________________________
Eduardo Batalha Viveiros de Castro
(Doutor, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional - Universidade
Federal do Rio de Janeiro)
_________________________________
Miriam Rabelo
(Doutora, Departamento de Sociologia - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais -
Universidade Federal da Bahia)
_________________________________
Olívia Maria Gomes da Cunha
(Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional -
Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Siqueira, Paula
O sotaque dos santos. Movimentos de captura e composição no
candomblé do interior da Bahia / Paula Siqueira. Rio de Janeiro, 2012.
227f.
No início de 2008, cheguei ao interior da Bahia com a motivação, mas sem a certeza, de que
seria possível estudar os atos feiticeiros, sobretudo aqueles ligados ao candomblé. Logo
percebi, porém, que a vivência feiticeira na região estava profundamente vinculada à
relação íntima dos humanos com seus espíritos. Bruxaria e incorporação teriam portanto de
ser pensadas em conjunto, mas, como fazê-lo sem que uma se dissolvesse na outra? A
solução, intuitiva algum tempo atrás, e exaustivamente reelaborada ao longo da escrita, foi
chamar de captura por composição o ato de enviar um espírito para enfeitiçar uma pessoa –
adicionando assim um conceito meu aos conceitos nativos de feitiçaria – e tomar as duas
ações, captura e composição, como pontos de partida para outras combinações e
conjugações. Assim, o ato de captura provocado pela bruxaria não se encerrou em si
mesmo, inúmeras outras possibilidades de captura e composição se sucederam, e elas, por
sua vez, colocaram em andamento a beleza e a batalha desses difíceis, mas sem dúvida
atraentes, encontros entre humanos e espíritos. Ainda que estas ideias tenham se tornado os
fios condutores do presente trabalho, tomou-se imenso cuidado para não transformá-lo em
um texto meramente ilustrativo. Aliás, minha intenção não poderia ser mais diferente. Tais
conceitos prestaram-se mais propriamente à organização – e propulsão – do movimento
entre descrição e explanação. Ainda mais importante, os próprios conceitos aparecerão em
movimento, evidenciando o que chamei de densidade da vivência feiticeira – ou o efeito do
vivido em campo –, quando então, espero, haverá lugar para o riso e o medo, a dor e o
mistério, a música, o silêncio e o sotaque.
At the beginning of 2008, I arrived in the Bahian hinterlands with the suspicion, but not the
certainty, that it might be possible to study witchcraft there, and primarily in its connection
to candomblé. However, I soon discovered that witchcraft experience was profoundly
connected to the intimate relations between humans and their spirits. Witchcraft and
incorporation would thus have to be thought about in conjunction, but how to do this
without allowing one to dissolve the other? The solution, intuitive at first and then
exhaustively re-elaborated throughout the writing process, was to denominate the act of
sending a spirit to bewitch a person as capture by composition – thus adding a concept of my
own to the native concepts of witchcraft – and to take both of these actions, capture and
composition, as the starting points for other combinations and conjugations. In this way, the
act of capture that is provoked by witchcraft is not an end in itself, as numerous other
possibilities for capture and composition ensue, and in their turn engender the beauty and
battle of these difficult, but nonetheless attractive, meetings between humans and spirits.
Although these ideas became the conductive threads of this thesis, immense care has been
taken not to transform this into a purely illustrative text. In fact, this could not be further
from my objective. These concepts were of greater use for the organisation – and propulsion
– of the movement between description and explanation, so as to place them in movement
themselves, thus eliciting what I have called the density of witchcraft experience – or the
effect of this experience in the field – in which I hope to have given room for laughter and
fear, pain and mystery, music, silence and accent.
A T., por primeiro me ensinar a “lógica de exu” e, depois, a conviver com ela. Por
também me ensinar sobre a alegria, beleza e perigo de todos os santos. Não seria muito
falar que lhe devo quase tudo que sei sobre candomblé, mesmo que muitas vezes,
irritantemente, T. alegasse não poder me dizer mais nada. A você, minha sincera admiração
e amizade.
A C., por muito do que sei sobre a complexidade do candomblé. Não tenho como
agradecer sua amizade e consideração, além de tantos dias e noites junto ao seu “povo”,
todos carismáticos, sensíveis e especiais.
A N., pelo carinho maternal. Também por sua persistência em se manter à parte e ao
mesmo tempo inserida nos enredos do povo-de-santo da região (como consegue?). Também
pela sua incrível eficiência mágica, tão sem ostentação que seus trabalhos eram feitos
quando N. parecia apenas conversar. Agradeço também o carinho de todo o seu “povo”.
A A., V. e família. Tão interessantes, tão fortes no seu desamparo, tão belas em seus
traços, traços que me impressionaram.
A M. e L. e sua grande família, pelo carinho e alegria de fazer o mesmo, semana sim,
semana não. Também pela satisfação em me deixar contemplar a extrema delicadeza e
beleza de todos.
À C., D., L., L, vocês são demais! Se fosse perto, eu estaria sempre por aí!
A Marcio Goldman, pelo fôlego intelectual que tanto me inspirou ao longo de todos
esses anos. Não teria como agradecê-lo o suficiente por me levar à Bahia, lugar de onde
minha alma sempre adiará a partida.
À Ana Carneiro, por todas as sugestões e trocas de palavras já feitas e que ainda
estão por vir!
Aos membros da banca, Ana Luiza Martins Costa, Eduardo Viveiros de Castro,
Miriam Rabelo e Olívia Gomes da Cunha, cujos comentários e críticas certamente me farão
pensar em conexões e caminhos renovadores. E também à banca de qualificação, composta
por Carmem Opipari e Eduardo Viveiros de Castro, pela crítica e leitura paciente da
primeira versão deste texto que, naquele momento, mais se assemelhava a uma inflada
declaração de intenções.
Ela arrumava os cabelos, à maneira da terra dela. Duas tranças cobertas por
um lenço branco, tudo feito tão rapidamente que ali se percebia um gesto diário,
candomblé, sua voz saía em ritmo de ladainha. Depois, sua filha se aborreceu
quando fitou a mãe, triste, lembrando a história de seu irmão falecido. - “Por que
não falar dos caboclos dela?! Ela já livrou muita gente do perigo”. Prontamente
toques, caboclos e zuelas1. Mais tarde, porém, dona Dulce pediu que sua entrevista
não viesse a público. Eu poderia ouvi-la à noite, quando estivesse sozinha, quando
quisesse me lembrar; do contrário, dona Dulce me advertiu, ela poderia ir pra riba
respeitaria sua vontade, mas perguntei se podia contar algumas de suas histórias
sem mencionar seu nome. De início, ela concordou, mas logo depois voltou atrás,
uma hesitação que me soou bem mais próxima de uma negativa. Dona Dulce há
muito abandonara sua “vida no santo”, mas era um abandono de quem ainda
com ela.
Ela fora uma das primeiras pessoas com quem falei ao chegar à Bahia com a
motivação, mas sem a certeza, de que seria possível estudar os atos feiticeiros,
sobretudo aqueles ligados ao candomblé. Eu já sabia que o tema era delicado, mas
meu trabalho de campo desde o início se mostrou mais difícil do que imaginara.
1
Boa parte dos termos regionais e daqueles relativos ao candomblé serão esclarecidos, aos poucos,
até o final deste capítulo. Mas, se o leitor desejar saber seu significado no momento em que
aparecem, pode recorrer ao glossário no final desta tese. Visando a melhor compreensão etnográfica,
indico desde já que foram utilizadas as seguintes marcações: aspas duplas para a citação de diálogos e
termos nativos, ou para a citação de trechos extraídos da literatura antropológica, quando então
serão precedidos ou sucedidos por referência de sobrenome e data; aspas simples para indicar
discurso direto ou para atenuar a força, abrangência ou estranheza de um termo específico; por fim,
itálico para termos estrangeiros ou ênfase.
3
Poucos dias antes de encontrar dona Dulce, visitara pela primeira vez um pequeno
espectadora ou, ao menos, achar ali uma posição confortável. Já neste dia, minha
ali, minha família, minha então decisão de não beber. Lá havia exus, feiticeiros e
guerras declaradas – guerras em que eu era instada, mas resistia, a tomar um lado.
perturbava. Tão distinto do meu trabalho de campo anterior, feito para minha
garantidas. Então meu riso era fácil e eu já sabia como me comportar. Este, ao
dizer.
deixando pouco espaço para outras formas de ação feiticeira também presenciadas
Na segunda, porém, o excesso não torna mais fácil a minha tarefa. Como falar
daqueles que não só se admitem feiticeiros, como o fazem com bastante orgulho?
Eu sou um menino,
Pequeno tamanho,
O meu coração,
Ele é grande demais,
Meus pensamentos
Andam muito longe,
Na terra que eu ando,
Você nunca vai.
Era a cabocla Jurema que normalmente cantava essa zuela. Ela então se dizia
uma menina e versava sobre a separação entre o mundo dos humanos e dos
4
improvisado no início de 2009, Gilliard adaptou-a para atingir uma das pessoas
presentes. Ele era o único ogã tocando atabaque naquela festa, e como estava
brigado com sua namorada, aproveitou para lhe dar um “sotaque” em forma de
nunca lhe perguntei, já que soube do sotaque pelo próprio Gilliard –, mas ela pode
características do sotaque, cujo significado às vezes escapa até mesmo a quem eles
foram direcionados.
A onça pintada,
Da malha amarela.
O pai-de-santo avisava a Reinaldo que ele não deveria bulir com seus
caboclos, que deveria lhes “dar passagem”, pois, se não se deixasse manifestar,
seria alvo da mágoa daqueles seres tão perigosos quanto onça pintada. Mas
Reinaldo era “novo no santo”, apenas naquele momento começava a perceber que
as zuelas, no candomblé, são conversas. Ele ainda não entendia que, com elas,
desafiam-se e acalmam-se espíritos e humanos. Ele ainda não sabia que, com elas,
humanos saúdam os caboclos que, com elas, se despedem. Foi o ogã que, dias
depois, me chamou a atenção para o sotaque que de outro modo seria ‘apenas’ uma
zuela dentre as tantas outras ouvidas naquela noite de festa. Para o ogã, fora fácil
ouvi-lo. Ele não só era famoso por conhecer inúmeras zuelas, que usava com uma
disputas de sotaques; disputas que ele próprio começara ou, ao contrário, dera
outros sotaques de pais-de-santo cujos filhos teimavam em não se deixar tomar por
Silêncio e Sotaque
Sotaque é uma palavra-arma. Ele tem um alvo preciso, mas é jogado ao ar,
ouvido por alguns, já por outros não. É chamado também de “piada”, e não se
restringe ao candomblé.
Um dia, Nina me contou que sua mãe não parava de dar sotaque em sua
cunhada, uma mulher da cidade grande que fora morar junto à família do marido
ela apenas beliscava uma besteira aqui, outra acolá. A cunhada não almoçava e
por isso a sogra temia que seu filho ficasse também magro e fraco para a lida da
jogados ao ar, ela dizia: - “A mulher do filho de dona Vita está aqui há cinco
meses” – portanto há menos tempo que sua própria nora –, “mas já aprendeu a
aprender.
Era um sotaque que a nora poderia ou não tomar, mas para Nina, ao
contrário, aquilo era definitivamente um ataque. Para ela, a cunhada não era
“besta”, ela entendia todas as letras da animosidade que a sogra lhe dirigia, e por
isso Nina odiava os sotaques da mãe. Odiava ainda mais o ar que sua mãe
Pelo mesmo motivo, Joci também desgostava não da sogra, mas da cunhada,
6
uma garota em seus vinte e poucos anos que por tudo brigava.
ignorante! Um dia, ela tava no mercadinho e viu uma ex-namorada de meu irmão,
o marido dela. Ela saiu de onde ela tava, procurou o caminho da garota e disse alto,
sem olhar pra ela: - ‘O dia que eu tiver medo de alguém, eu tô morta!’ Pense aí?!
Ela foi dar piada à garota que tava quieta no canto dela e nem tem mais nada a ver
Nem todos são como Nina e Joci. No ouvido de outras pessoas, um sotaque
é literalmente uma piada, da qual se tira prazer. Ele gera riso e fofoca, um sotaque
está no âmbito do infinitesimal – ele abre prismas, mas admite pontos cegos. Como
diz Brazeal (2003: 663), “alguns [sotaques] são agulhadas sutis que uma pessoa
não-iniciada ou desatenta pode não perceber. Outros são desafios explícitos que
devem ser respondidos”. Outros, ainda, são “ofensivos em certos contextos”, mas
Caboclo zuela:
interior da Bahia. Não por acaso, ambos estão no mesmo campo de movimentação.
Eles conjugam conflitos parecidos (entre homens e mulheres, entre pais e filhos-de-
2
Todas as citações em língua estrangeira foram traduzidas para o português.
7
santo, entre caboclos e humanos, entre vizinhos). Eles são guerreiros, suas formas
princípio, não se aprecia a dança provocativa dos caboclos que se exibem durante o
próprio ato feiticeiro, e, nela, não se inclui a beleza atrativa de suas palavras,
quando dados ao bem falar. Tende-se portanto a restringir o seu universo; julga-se
por bem (ou seguro) definir seu âmbito de influência. Mas, veremos, ela também
que a bruxaria guarda com outras ações no candomblé. Bem ao contrário, tomarei
sotaque dos santos – que incluirá também o dos exus, orixás e caboclos, como
atração e o feitiço, que os tornam mais ou menos fortes junto aos humanos.
Cabocla zuela:
Eu vou-me embora,
Eu vou ver Cessi,
O caminho é por lá,
Mas eu vou por aqui.
Não vou negar, contudo, que a minha primeira iniciativa foi a de definir
3
Nesta tese, os três termos – feitiçaria, bruxaria e “macumba” –, além de outros como “porcaria”,
“fazer coisa” etc., são utilizados como sinônimos, já que não pude perceber na região diferenças
genéricas ou sutis no emprego cotidiano de cada um deles. Contudo, ressalte-se que o termo
‘macumba’ pode não significar feitiçaria quando utilizado para denotar um tipo específico ou o
conjunto de cultos afro-brasileiros.
8
feitiçaria em favor de uma clareza descritiva. Havia, como escrevia então, três
pois no candomblé a própria ação (seu efeito, sua força e sua forma) seria uma
e a captura que os santos, exus, caboclos, eguns e humanos promoveriam entre si.
de campo me distanciaram de uma escolha difícil como esta. Percebi então que não
poderia (e não queria) falar somente de feitiçaria. Mesmo que, na região, falar de
dia em terreiros mostrou que, se a vivência feiticeira era de fato presente, ela estava
caboclos. Foi por isso que, desde o primeiro mês de pesquisa, assumi que, se era
assim vivido, meu tema de pesquisa incorporaria também essa relação. E durante
muito tempo foi como eu abordei as pessoas e os caboclos, procurando saber como
se relacionavam entre si. Nunca deixei de fazer questões mais diretas sobre a
feitiçaria, porém, elas eram sempre permeadas por outras mais genéricas sobre os
4
Ver por exemplo Ochoa (2004: 19 e 25-71), quando propõe uma “proliferação de definições” em sua
etnografia sobre o Palo, um culto afro-cubano geralmente associado à bruxaria, associação esta que
os interlocutores de Ochoa não rejeitaram.
9
espírito para enfeitiçar uma pessoa – e assim adicionei um conceito meu aos
elas, por sua vez, conjugaram a relação íntima que um médium (ou carnal) trava
com seus espíritos. Gosto muito da ideia de que, nesta tese, as ações são os
Zuela-se:
parte de minhas dúvidas e ansiedade sobre como abordar um tema tão delicado.
feitiçaria. Aqueles que assumem sua proximidade com o culto têm igualmente sido
hostilizados, das mais variadas maneiras. Por isso, julguei muito importante pensar
exatamente no que poderia ser dito para não identificar as pessoas que aparecem
neste texto, sobretudo aquelas cujo reconhecimento se tornaria mais fácil, dada a
10
minha aproximação com elas durante a pesquisa. Essa preocupação acabou por
e vivo?
raízes, acho que até pela cor mesmo, é tudo da senzala mesmo, do candomblé
candomblé. Até minha mãe entrou na... Ninguém quer se aceitar, na verdade, aí
Estelinha: - “É.”
Estelinha: - “Faleceu com trinta anos de evangelho. Quando ela passou pra
Estelinha: - “Passei. Quando era adolescente, com doze anos, eu fui com ela.
Com treze anos, eu saí e não quis mais. E sempre eles falam que eu posso ir pra mil
igrejas que eu não fico, porque eles não se afastam de mim. Emerson [um pai-de-
santo] nunca falou, mas o caboclo de Clemilson, o boiadeiro de Clemilson, todo dia
e tudo na casa de candomblé. Nessa época, ela não me levava porque eu era
11
pequena, eu não frequentava porque eu tinha medo. Ela ia numa mulher que
faleceu, morava ali na Serra. Aí quando ela desistiu do candomblé, ela passou pra
igreja. Já meu pai era católico, não se envolvia com nada. Nunca lembro que meu
pai fosse numa casa de candomblé, ele mesmo tinha as orações dele (risos)”.
Lígia: - “As orações dele também já devem ter vindo da geração também de
candomblé”.
minha mãe, eu mesma não sei, porque eu nunca quis aprender. Minha mãe nunca
deixou a gente aprender, dizia que eram muito pesadas, as orações, e a gente era
criança. Depois quando ele separou da minha mãe, eu tava com sete anos.”
Estelinha: - “Vi, mas ele tinha outra família, a gente não tinha aproximação,
só: - ‘Oi, pai. Bença, pai’. E pra lá. Eu não ia na casa da mulher dele não. [silêncio]
Lígia: - “Não sei se é aqui, não sei se era só eu, às vezes as pessoas têm até
assumir.”
Lígia: - “Pensa logo que é macumba, essas coisas, eu acho mais ou menos
assim...”
Estelinha: - “Fala assim: - ‘É só satanás. Que Deus não deixou... Que ali
ninguém cura ninguém. Que o diabo não cura diabo’. Essa semana chegou uma
crente aqui. Eu faço uns serviços pra ela há mais de vinte anos...”
Lígia: - “... que aqui em Taquara a maioria é bem crente, não é, minha irmã?”
Estelinha: - “... aí, pronto, eu acho que Tamira não teve o que falar mais, tava
sentada bem aí, eu olhando pra ela, e ela falando que não tem santo, não tem
caboclo, que tudo é diabo, tudo é não sei o quê. Eu olhando pra ela, não tive
12
resposta.”
Lígia: - “Não é todo mundo que eu digo, que eu conto essas coisas. No meu
Estelinha: - “Já eu conto sim. Conto a Tamira sim, porque ela fica falando...”
Lígia: - “É, finada Lurdes do Remanso. Mas minha patroa não acredita
nessas coisas não. Eu evito, só comento na minha família e com algumas pessoas.
apeguei ao ex pra poder me ajudar e deixar meu namorado fora dessas coisas.”
Lígia: - “Não. Eu não queria envolver ele mesmo, acho que é de mim
mesmo, coisa minha, porque do preconceito que existe. Preconceito mesmo que
ainda existe!”
Estelinha: - “Às vezes a pessoa fala que candomblé é uma religião, mas nem
Lígia: - “Não tem gente que fala [mal] dos crente? Não tem gente que fala
[mal] dos católicos? Acho que mais gente fala [mal] do candomblé.”
Etnógrafa: - Sinto.
Etnógrafa: - E com ela, a senhora fala do candomblé, com essa sua cliente?
Estelinha: - “Falo.”
Lígia: - “Minha irmã é mais aberta porque ela veste saia. Minha irmã vai pro
saia. Eu vestia saia direto, em todas as festas. Ave Maria, numa época dessa, eu
tava aqui doida de tudo, passando cabelo, me arrumando, já tinha feito essa saia há
muito tempo.”
escondo mesmo. Vou fazer igual à minha outra irmã: - ‘Eu nego!’ (risos)
Como Lígia, inúmeras outras pessoas não queriam que sua presença no
frequentar a festa de dois a três dias de seu pai ou mãe-de-santo que morava numa
cidade vizinha. Mas como Estelinha, houve também quem assumisse sua prática e,
dentre estes, estão aqueles que expressaram o desejo de ver seus nomes em meu
candomblé. Com essa preocupação em mente, optei por modificar o nome de todos
nenhuma delas guardará qualquer similaridade com seu nome verdadeiro5. Fui
menos cuidadosa em assuntos que não trariam problemas aos envolvidos, mas em
O leitor perceberá que nem por isso este trabalho é menos descritivo. Isso foi
possível porque, salvo uma ou outra exceção, os casos de feitiçaria aqui em relevo
não foram contados publicamente (o que não os torna menos coletivos, como
veremos melhor no capítulo 2). Por isso, aqueles que não tiveram à época nenhuma
ideia de que, por exemplo, uma macumba fora feita por pessoas próximas a mim,
dificilmente terão certeza de que a história aqui contada se refere a tal ou tal
pessoa. Já para as poucas pessoas presentes nesta macumba (não tão) hipotética,
identidade dos envolvidos seria uma espécie de confissão que, se feita, mesmo
havendo como saber que o que se apresenta como a fortuna de duas, três ou quatro
pessoas é na verdade a de uma só. Além disso, acompanhei e descrevi vários casos
contadas, dificilmente lhes serão associadas. Por fim, para me assegurar de que
assim o seria, li alguns trechos para alguns dos mais diretamente envolvidos e,
juntos, tomamos ainda maior cuidado que a narração não lhes prejudicasse. Por
todo esse zelo, é bem provável que o leitor sinta falta de ‘personagens’ fixas e ache
a princípio confuso seguir o fio narrativo. Sei que isso pode tornar a leitura difícil
em certos momentos, mas não pude fazer de outro modo. Acredito que, uma vez
ciente de tal problema – e dos motivos que o suscitaram –, o leitor possa fixar sua
atenção nos momentos narrativos em que se busca a história de uma ação, sabendo
5
A título de curiosidade, um cálculo aproximado resultou na utilização de cerca de 190 nomes para
15
De certa maneira, foi isso o que fiz também com o lugar onde se deu a
Bahia’, e apenas às vezes o nome de alguns dos povoados, bairros ou cidades onde
se deu a pesquisa (Bom Jardim, Serra, Samburá, Taquara etc.) que, claro, são nomes
contudo, que este não será exatamente um segredo, pelo menos não no meio
principalmente porque eles não têm originalmente tal reputação. Penso que as
alusões regionais não se fizeram tão presentes também porque não me centrei em
descrever as práticas do ‘povo’ de uma região. Como disse, essa etnografia enfoca
campo serão fragmentadas, mas minha própria trajetória de pesquisa não poderá
quase 90 pessoas. Claro, uma pessoa pode ter recebido dez nomes e outra, apenas um.
16
ser apresentada em uma perspectiva linear do tempo. Para ser mais precisa, vez ou
outra vou me referir diretamente a ela ao longo do texto, e de certa forma minha
inserção estará evidente quando tomo a palavra nos diálogos expostos e, depois,
em minhas escolhas narrativas, contudo, estou ciente de que ela não será
2010, com breves interrupções. Durante esse tempo, visitei inúmeras casas de
trabalhos mais restritos e a observação de uma ou outra consulta que, sem minha
cidade. Passei então a ouvir e conviver com pessoas que não partilhavam
que eu era uma pesquisadora, mesmo entre aqueles em que isso era muito evidente
trabalho não esteve o tempo todo presente. Era constante o meu esforço em
anunciar que eu estava fazendo uma pesquisa, mas tenho para mim que a imersão
6
Várias das entrevistas foram gravadas no início do trabalho de campo, porém, ao final deste,
realizei uma série delas com um roteiro de perguntas ligeiramente mais formalizado. No total, foram
aproximadamente 26 horas gravadas em áudio (cerca de 17 entrevistas), 20 horas de gravações em
vídeo (cerca de 10 toques de candomblé, além de outros eventos), inúmeras fotografias e 670 páginas
de caderno de campo, escritas no computador ao longo dos dois anos de pesquisa de campo.
17
cujo mapeamento eu nunca consegui esmiuçar com precisão. E foi também assim
que, aos poucos, com os meses se passando, eu mesma deixei de apenas ouvir –
ação que no entanto nunca deixou de ser a tônica da minha participação em campo
algo como ‘eu também sinto que aqui o preconceito contra o candomblé é maior do
que são adições minhas aos conceitos nativos de feitiçaria e incorporação, tomei
e, depois, no capítulo 3, eles deixarão o primeiro plano para ter sua existência
animaram, mas os animando ao longo do próprio texto. Talvez por isso, ainda que
7
Latour (2003: 65; 67), em tom de provocação, observa que “para cada cem livros de comentários,
argumentos, glosas, há apenas um de descrição”. “Descrever”, continua o autor, “prestar atenção ao
estado concreto das coisas, achar a narrativa (...) adequada para uma situação dada – eu sempre
achei isso incrivelmente exigente”. Mas isso não leva à recusa de qualquer explanação, ao contrário,
se “sua explanação [for] relevante”, “você [estará] adicionando um novo agente à descrição”.
18
próprio trabalho de campo, mas ela foi de certa forma ‘amplificada’ por aquilo que
de início era uma restrição (isto é, a ‘perda’ narrativa provocada pelo cuidado em
não identificar as pessoas com quem tive maior contato). A fragmentação dos casos
vivido em campo, onde não se tinha como saber exatamente o que estava por vir
que um feitiço tem o poder de atingir seu alvo num período que varia de 3 a 15
uma entidade malévola, pedindo que ela faça mal àquele que se deseja vitimar’.
por exemplo, ‘Junior fez um feitiço: ele cortou um frango pedindo, em voz alta, que
seu Exu atingisse sua ex-namorada que recentemente o traíra’, ou então, ‘Junior
sabia que o feitiço de seu pai-de-santo era veloz, por isso esperava ver o resultado
almejado em não mais do que dois dias’. Não se trata aqui de uma suposta
8
Ao adicionar conceitos meus aos conceitos nativos de bruxaria, a intenção não foi despojar a
feitiçaria de suas características mais violentas ou ameaçadoras, ‘domesticando-a’. Objetivou-se, ao
contrário, ampliar a própria imaginação teórica à qual esta pesquisa desde o início se propôs.
Quando chamei a feitiçaria de ‘captura por composição’, por exemplo, quis me valer de uma noção
igualmente complexa e, portanto, nem mais nem menos palatável que a própria bruxaria. Tratar-se-
á, aqui, do que Viveiros de Castro (2002b: 119) chamou de “a comum alteração dos discursos em
jogo”, em busca não do “consenso”, mas do “conceito”.
19
mais uma vez, um efeito similar ao vivido durante o trabalho de campo, quando o
antropólogo lida mais profusamente com asserções e dúvidas do que com alusões a
asserções e dúvidas.
Ainda visando a criação de tal densidade, o texto foi pontuado com zuelas,
como já se pôde perceber três ou quatro vezes acima. Retirei-as de seu contexto
aqui elas embelezam. Sempre que aparecem, as zuelas evidenciam que meu
próprio texto é uma criação particular de conexões e, mais do que isso, ele tenta se
Também pelos mesmos motivos, o leitor notará que o formato diálogo será
amplamente utilizado. Neste caso, porém, não houve deliberação, pelo menos não
que o diálogo realça, ou ao menos visibiliza, o caráter ativo de quem olha ao falar.
translúcida de toda e qualquer experiência (sobre isso, ver Favret-Saada, 1977: 46-
47). Mesmo nos momentos em que não me vali de diálogos, procurei gerar
‘alguma’ oralidade. Digo ‘alguma’ porque não se buscou transcrições literais das
participar da fugacidade original que lhe deu existência. Buscou-se, em suma, uma
grande é...’, ‘feitiço, ao contrário, é...’), quis me deixar inspirar pelos modos nativos
onde fiz meu trabalho de campo também teve sua importância no modo como
minha escrita foi afetada. Não quero fazer disso uma regra, e de fato estou longe de
acreditar que uma etnografia deva ser escrita no ambiente em que foi
primeiramente gerada. Posso apenas afirmar que, em mim, isso provocou algo
bastante estimulante. Escrevendo ali, eu observava diariamente que meu texto não
das potências que as suscitaram. Isso ficou evidente quando, não sem nervosismo,
mostrei para dois de meus interlocutores passagens do presente texto em que eles
apareciam com proeminência. Ambos pediram que eu mesma lesse, em voz alta. A
apreensão inicial deu lugar a uma incrível fruição que nem em minhas estimativas
mais otimistas suspeitaria um dia acontecer. Um deles riu bastante e disse ter
adorado. Disse que “parecia história em quadrinho”, “com nome trocado, nem
parece que sou eu”, “tô gostando de lembrar disso, nem lembrava”. Perguntei se
deveria tirar uma expressão em específico que poderia denunciá-lo, mas disse que
não, que aquele detalhe dava “comoção à história”. Sobre as zuelas que
história. Mas uma história fugidia, que nos escapa, a mim e a ‘eles’. Pois, além de
fruto de uma relação específica, aquela iniciada pela pesquisa que finalmente as
21
colocou no papel, a escrita não cessou seu movimento. Por um lado, o riso de
possíveis aos casos de feitiçaria, como veremos abaixo, no capítulo 3. Por outro,
quando se estranhou a pessoa que hoje não se é mais, puxou-se novas palavras
é também ‘isca’ –, as zuelas, as fotos e as histórias, todas elas não são apenas
Claro, não sou ingênua a ponto de achar que estas boas reações seriam as
únicas imagináveis. É possível, aliás, que estas mesmas pessoas um dia mudem de
opinião, e passem a se ver mal ‘representadas’ neste texto. Mas, ainda assim, a
experiência inicial de leitura me fez sentir que, em meio a tanta exaltação das
pessoa nos atos de feitiçaria, não se preocupou aqui em confrontá-la com uma
‘eles’ move a presente etnografia, mas ele não se fará evidente. Não há outro
Infelizmente também pelo mesmo motivo, não pude apreciar com mais
e ali faça uma apreciação mais condensada de seu conteúdo. Quando finalmente
me resignei que não seria capaz de tratar a bibliografia como gostaria, elegi
Brasil, que não são muitos, e aqueles sobre candomblé versando mais diretamente
9
Dentre os trabalhos etnográficos sobre feitiçaria no Brasil, encontrei disponíveis os de Araújo (2007),
Bahia (2000), Barros (2000), Cardoso (2004), Hayes (2004), Leal (1992), Maggie (1992), Maluf (1993) e
Porto (2007). Note-se, porém, que somente quatro deles foram elaborados a partir de trabalho de
campo sobre religiões afro-brasileiras. E dentre as etnografias sobre religiões afro-brasileiras que
desenvolvem temas vinculados aos aqui abordados, destacam-se os de Birman (1995), Boyer-Araújo
(1993), Capone (2004), Carvalho (1990), Iriart (1998), Goldman (1984), Maggie (2001), Medeiros
(2006), Opipari (2004), Pacheco (2000), Segato (2000), Serra (1995) e Wafer (1991). Incluí nessa lista de
prioridades duas etnografias clássicas sobre feitiçaria fora do Brasil – a de Evans-Pritchard (1978) e
Favret-Saada (1977) –, que serão cuidadosamente analisadas no capítulo 3, e também a etnografia de
Ochoa (2004) sobre Palo Monte, um culto afro-cubano ligado das mais variadas maneiras à bruxaria,
à que me referirei várias vezes durante esta tese. Tal prioridade evidentemente não é uma norma,
portanto trabalhos igualmente inspiradores serão mencionados ao longo do texto.
10
Dentre os autores cujas obras influenciaram minhas escolhas narrativas, mas que em sua maioria
aparecerão apenas de forma implícita, gostaria de ressaltar, à maneira de agradecimento, Anjos
(2006), Bastide (1955, 1973), Cerqueira (2010), Clastres (1995), Coutinho (1999), Deleuze (1992), Fichte
(1987), Gell (1998), Hale (1997), Hermant (2004), Kundera (1986), Landes (2002), Latour (2002 e 2004),
Moraes (2002 e 2006), Nathan (2001), Serra (2001), Strathern (1990, 1999, 2006), Viveiros de Castro
(2002a e 2004) e Wagner (1967).
23
forma que um termo não seja reduzido ao outro11. Tal questão será trabalhada
ações. Ainda que bastante diferentes, cada um deles é uma variação de um tema
mais geral, o de como pessoas e espíritos se impõem uns aos outros; tema, aliás,
Radiação
- “Ele não anda sozinho” – disse Mauro sobre o rapaz que, se não fosse pela
asfalto já castigado pelo sol de verão baiano. Mauro se referia aos “diabos” que
lhe a força de sua inconstância, levando-o a rompantes cada vez mais fortes e
Valdir, mas uma pessoa desavisada não conseguiria percebê-lo. Eu mesma não
incorporava, poderia estar tão irradiado por seu Exu a ponto de suas ações serem
11
Esta foi uma das problemáticas importantes para as discussões do grupo Abaeté, um grupo
coordenado pelos professores Eduardo Viveiros de Castro e Marcio Goldman, do qual o presente
trabalho faz parte e pelo qual fui imensamente inspirada.
24
muito eles conheciam aquela forma de “influência”, e por isso o irmão de Valdir
me explicou: - “Não toma totalmente, mas radeia, alguém com o coração puro tenta
ajudar, ele traça toda a boniteza. Você pensa que é humano, porque ele responde
No caso de Valdir, não se aventou feitiço, pelo menos não naquele momento.
mas não era a sua Padilha12; aquela era uma exu despachada para virar a vida de
Jana pelo avesso, missão que até então a exu cumpria com sucesso. A mãe do seu
- “O pai dela é homem de duas mulheres. A outra fez coisa pra ela, bruxaria
bem feita. A mãe tá com uma pele de sapo; pra filha, tudo desanda. Jana foi em
Romualdo tem oito dias, se deu com os banhos e quer fazer a limpeza. Primeiro vai
ser na filha, depois na mãe. O Caboclo de Romualdo disse pra elas não contarem ao
Não era a primeira vez que mãe e filha procuravam a ajuda de uma casa de
candomblé, a sogra acrescentou, “a própria tia carnal levou Jana numa curadeira
que cobriu a garota de sangue. A mãe, pensando que era pra ajudar, não disse
nada. Mas logo depois do trabalho, tudo foi pra trás. Foi pra ajudar?! Hunf, era pra
acabar de atrapalhar!”
Porque a macumba fora bem feita, e porque ali se preparou uma padilha
especialmente perversa para fazer mal à moça, sua limpeza seria feita por Tranca-
12
Optou-se por usar a letra maiúscula (por exemplo, Padilha ou Sete-Flecha) para denotar que ali se
tratava do caboclo de alguém. A letra minúscula – padilha, sete-flecha – referiu-se no caso à padilhas
e sete-flechas em geral. O mesmo foi feito para ogum e Ogum, tranca-rua e Tranca-Rua, e assim
sucessivamente. Em alguns momentos, porém, tive de optar por uma ou outra grafia, já que os dois
significados se faziam presentes. Em outros, para evitar confusão, acabei escolhendo uma só
marcação ao longo de toda tese: esse foi o caso de Tempo, cuja grafia em minúsculo iria dificultar a
leitura, e seu Martim, que é considerado um espírito sempre individualizado. Note-se que quando
utilizei ‘o Caboclo’ ou ‘o Exu’, com a inicial em maiúsculo, foi porque não quis revelar os nomes
desses espíritos a fim de evitar a identificação de seus médiuns.
25
Rua. Ele era o indicado, anunciou Romualdo, para lidar com a padilha. A decisão
do pai-de-santo pareceu levar em conta também o humor do Exu naqueles dias. Ele
conversas particulares que ele fez um sinal para a equede iniciar o ritual.
“despachar a rua”. Depois, Jana foi convidada a pisar sobre um pano branco
ladeado por quase duas dezenas de pratos de legumes e grãos. O Exu então puxou
existência de um feitiço.
quiser acompanhar a menina, pode acompanhar! Mas do meu jeito, não do jeito
que veio! Quer comida? Vou te dar. Quer bebida? Vou te dar. Na minha aldeia,
dois exus são iguais! Na minha aldeia, dois exus são iguais!”
O trabalho de Jana não foi muito diferente dos outros tantos que eu já vira e
com farofa de dendê, feijão preto, charutos e cigarros. Depois, ofereceu-se a puba
para os eguns. Finalmente, proveu-se os caboclos e orixás de Jana com uma boa
quantidade de legumes e grãos (entre eles, cebola roxa, repolho, chuchu, tomates,
pimentão, pepino, cenoura com mel, arroz, milho branco, pipoca, acaçá, feijão-
pedindo paz e iluminação para os caminhos de Jana, para os seus dias e suas
noites. Rasgou panos vermelhos e pretos, e quebrou as velas que antes iluminavam
cada um dos pratos, pedindo que os inimigos de Jana se vissem com o mesmo
círculo de fogo em volta da garota, todos ali presentes já sabíamos que o trabalho
estava praticamente finalizado. Porém, a aflição de Jana parecia não querer deixá-
la; seu corpo inteiro tremia– sua boca, suas pernas, seus braços –, ela parecia ainda
mais abalada do que antes. Tranca-Rua lhe fez várias impostações de mão, sempre
Aparentemente, contudo, elas não tinham poder algum para mudar a disposição
da moça.
Aquela tremedeira podia ser o início do que seria a primeira vez que a
padilha a tomaria totalmente. Mas não, Jana não “virou” naquele dia nem nos
outros que se seguiram. Aquela tremedeira era sim a manifestação da padilha, mas
dançar, exaltado:
Bombogira jamukangê
Aiá ôrerê
Bombogira jamukongê
Aiá ôrerê
De pedrinha em pedrinha,
- “Ela parou de tremer” – gritou Tranca-Rua, feliz – “Tem gente que não
- “Mas ela vai se curar..., agora que se cuidou, vai se curar” – amenizou a
sogra de Jana, que acrescentou – “essa hora, a outra deve estar tremendo e não sabe
sorriso maroto.
ervas. Enquanto isso, a equede varria toda a profusão de legumes, velas e grãos
para o interior do pano branco, onde minutos antes Jana ainda estava de pé,
tremendo. Amarrando suas pontas, ela pediu a mim e a Clélio que despachássemos
o “ebó” em uma encruzilhada macho. - “Tranca-Rua disse que Clélio vai saber
palavras que não pude ouvir. Isso não demorou mais do que três minutos e, sem
olhar para trás, voltamos rapidamente ao terreiro. Para nos prevenir das más
influências que rondavam o ebó, a equede “despachou” nossas cabeças com água,
- “Despacha se não vai sonhar com diabo e dizer que foi Tranca-Rua que
mandou!”
§
28
resultado”, ele disse, feliz, “Jana parece outra pessoa”. Como fora Edmundo que
região atrás de pai-de-santo, mas eles fazem pra dois ou três trabalhos. A pessoa
tem que pagar três vezes!”, Edmundo fez um gesto com a mão indicando que estes
pais-de-santo queriam “comer o dinheiro” de seus clientes. “Só em Rio Bonito, ela
gastou três mil reais! E, nessas outras casas, eles não diziam quem era, só diziam
que era uma mulher, uma mulher que fez. Já em Romualdo, ele disse na hora: - ‘Foi
sua tia carnal’. E os outros pais-de-santo não queriam mandar de volta! Mas agora
ela vai ter o que mandou! Eu falei pra mãe dela: - ‘Vocês vão em alguém de
confiança, mas não quero que a senhora apenas confie em mim, vá lá e veja o
trabalho’. Antes, quando eu chegava perto de Jana, o hálito dela tremia. Eu dizia a
ela: - ‘Você não tem nada normal dentro de você’. Quer dizer, a coisa que tava
dentro dela não queria que eu chegasse perto. Eu disse a ela: - ‘Você não agia por
conta própria, mas por influência. Você conhecia uma pessoa, você dava toda
atenção, a forma como você respondia, você pegava amor pela pessoa e a pessoa só
queria conhecer seu corpo. Com poucos dias de trabalho, você já viu como as
tremer. É o que Romualdo disse: - ‘Da porta pra dentro, coisa ruim não passa’. E
Jana, durante o trabalho, tinha vontade de correr. Era também a coisa que tava
dentro dela, era a padilha que a tia mandou pra ela se prostituir não querendo ser
retirada. A própria tia carnal?! Foi por inveja, porque a tia tá lá abandonada pelo
marido e vê uma sobrinha professora, o sobrinho com faculdade. Quando Jana foi
em Rio Bonito, a mãe não sabia bem o que ela ia fazer, qual trabalho seria, mas
como era a tia que tava levando, autorizou. Até banho de sangue a tia deu na
sobrinha! Depois, ela se abalou de Rio Bonito pra cá pra fazer porcaria na casa da
irmã! Não passou muito tempo, Jana passou a desacatar os pais, tudo piorou. A
própria mãe-de-santo que a tia frequenta em Rio Bonito disse que a tia copia as
29
coisas sem autorização. Ela fez o patuá pra Jana, a gente levou em Romualdo, ele
quebrou e a gente viu que dentro dele tinha pemba! A tia carnal?!”
ter sido a responsável pelo feitiço. E eu, talvez por receio de minha própria
Caboclo zuela:
No pé do lírio,
A roseira brota,
Se me tratarem bem,
Nessa aldeia, ainda volto!
Romualdo, a padilha fora bem tratada. Ali lhe prometeram ainda mais comida e
regalos se ela agora se postasse ao lado de Jana. Tranca-Rua mesmo lhe dissera: se a
padilha quisesse “acompanhar a menina”, ela poderia, mas não do jeito que veio,
cheia de más intenções. Caso ela se deixasse persuadir, ali, no domínio do Exu, ela
teria seu poder reconhecido; ali, ela seria bem recompensada. Romualdo já
“Se um outro pai-de-santo me mandar um exu, eu cuido bem deles pra eles aqui
então se voltaria contra a feiticeira de Jana, aquela que pela primeira vez a atraíra.
bruxaria, o problema não era exatamente a convivência entre exus e humanos (e,
procedeu à retirada, mas uma retirada bem específica, que visava aumentar o
30
Depois do trabalho, a padilha comeria através dos ebós, e não mais “através de
haveria espaço para ela se tornar a Padilha de Jana, quando então ambas se veriam
que, por sua vez, aprenderia a receber a “a força de um caboclo no seu corpo”.
querer desviar sua força em benefício daquele que antes era sua vítima. Ali
13
Tomo emprestado a ideia de distância intervalar de Edgar Barbosa Neto (2009: 17), colega de
doutorado que pesquisa as “casas de religião” em Pelotas, Rio Grande do Sul. Enquanto em sua
experiência de campo “os espíritos que apresentam uma menor distância intervalar relativamente
aos humanos parecem ser os mais adequados à prática da feitiçaria”, na minha, a feitiçaria é a
31
enfeitiçar outra pessoa, desejei enfatizar exatamente tal irresolução. A captura não
termina em si mesma, ela compõe e, neste ato, há muito que escapa ao controle do
feiticeiro. Aliás, controle não é mesmo um bom termo para descrever essa forma
especial de captura. Quando um feiticeiro envia um espírito para fazer mal a seu
desafeto, ele faz uma aliança com um ser temperamental, cuja força é maior do que
enfeitiçado – ato que chamei de composição –, e, uma vez ali, nunca se sabe quais
Ori15, os Orixás, o Erê, o Egum, o Exu”. Mas, embora todo humano seja
estado, digamos, virtual, até o momento em que são ‘fixados’ pelos ritos de
iniciação e de confirmação”. Tal ‘afixação’ foi chamada por Opipari (2004: 328-329)
chamou de “dupla captura”, isto é, a aliança íntima entre um “adepto” e seu santo
que faz de ambos um “bloco de devir”, quando então um humano entra num devir
santo e o santo entra num “devir-outra coisa” (idem: 328)16. Nos terreiros onde
pesquisei, entretanto, além desses ‘elementos virtuais’, outros não antes presentes
podem também ser aos poucos ‘fixados’ – e a feitiçaria é normalmente uma das
ações mais comuns pelas quais novas camadas são adicionadas 17. Ainda que nem
Opipari nem Goldman tenham utilizado esses conceitos para descrever a feitiçaria
no candomblé, penso que eles seriam igualmente úteis para tanto. Pois, também na
bruxaria, trata-se de uma captura de mão dupla. Jana por exemplo se viu em um
devir exu, mas a padilha também se viu transformada pelo ser onde ela
Padilha de Jana18.
procurou-se uma separação, e não só dos espíritos enviados por bruxaria. Eles não
padilha feiticeira não foi a única bem tratada. Todo o “povo” de Jana se satisfez.
Exus e Orixás de Jana a se manterem próximos dela, mas não tão próximos a ponto
de a capturarem totalmente.
quanto a perturbação feiticeira causada pela padilha. Com efeito, um “santo pode
ser pior que feitiço perturbado”, foi o que advertiu a mãe-de-santo ao menino de
17
Diferentemente dos terreiros estudados por Goldman e Opipari, nos terreiros em que pesquisei, as
múltiplas camadas dos seres humanos são mais comumente ‘fixadas’ e transformadas pela
convivência diária entre humanos e espíritos do que por ritos iniciatórios.
18
Em sua pesquisa sobre uma associação de mulheres lésbicas, que eram também filhas-de-santo,
Medeiros (2006: 32) menciona um trecho em que uma Padilha descreve justamente a realização de tal
possibilidade: “Sabe, sa moça? Quando eu vim, não era pr’eu trabalhá com o meu cavalo não. Era
pra ser com a mãe dela, porque uma puta tinha me mandado pra ficá no caminho dela. Eu não fiz o
negócio. O meu cavalo era muito pequeno e eu fiquei esperando ela crescer pr’eu trabalhá com ela”.
33
dezoito anos que queria ver sua Oxum em terra, mas ainda especialmente dado às
santo iria desde um contratempo passageiro à própria morte de seu “cavalo”, disse
a mãe-de-santo.
guarda alguma semelhança com aquela realizada pelos outros seres que uma
pessoa já leva consigo, os seus próprios caboclos, exus e orixás – e é nisso que, a
meu ver, reside grande parte do que chamei acima de a batalha e a beleza no
potência, ou o desejo intermitente, de galgar mais espaço nos seres humanos à que
entidades é marcada também pela batalha. Por exemplo, há uma luta constante
para que a pomba-gira não deixe sua médium demasiadamente “danada”, para
que ela não beba enquanto estiver em seu corpo, para que a sereia não lhe roube o
desejo, para que os exus não levem seu cavalo para uma vida diária de orgia.
Quando o pai ou mãe-de-santo pede que o caboclo e o exu saiam do corpo de seu
carnal, é porque eles precisam aprender a se alimentar do ebó (e não através de seu
corpo); quando o pai-de-santo suspende o caboclo ou o santo novo que ainda não
dança direito é porque ele precisa aprender a vir à terra. Quando a mãe-de-santo
tira uma santa mulher “da frente” de um homem é porque deseja que ele se
fortaleça diante de sua mulher e da vida; quando ela tira um caboclo macho da
frente de uma mulher, é porque quer que eles deixem de atrapalhá-la a se fixar com
19
Halloy (2004: 614-16), estudando o xangô, um culto afro-brasileiro de Recife, também associa a
dinâmica das punições dos santos em seus cavalos (doenças, acidentes, mal-estar e até mesmo a
morte) com aquela da ação feiticeira.
34
Zuela-se:
“etologia”, isto é, o “estudo dos afetos de um corpo”, a descrição das “relações que
que pode um corpo?” – pergunta-se Espinosa e, com ele, Deleuze e Guattari (1997:
42).
não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode ele, isto
é, quais são seus afectos, como eles podem ou não compor-se com outros
afectos, com os afectos de um outro corpo, seja para destruí-lo ou ser
destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja
para compor com ele um corpo mais potente. (Deleuze & Guattari, 1997: 43).
exus, santos e caboclos – que já procedeu à etologia de seus encontros com os não-
humanos –, mesmo ele pode ser acometido pela ira das “influências” que o
compõem. O ser humano que é “radiado” no dia-a-dia por seus espíritos sabe bem
briga de Ronaldo é uma cisma vinda de seu Exu, que o mete em encrenca, mas o
35
afasta de situações ainda mais delicadas. O difícil trajeto para casa do beberrão
pelo mesmo seu Martim, o marinheiro bêbado que quis um dia ver seu cavalo na
“prosperidade”.
composições e decomposições.
Ritmos
Num dia de sexta-feira, depois que a maioria dos presentes já tinha deixado
semana.
- “Não, tenho que deixar eles chegarem! Se não, como vou saber quem eles
de morto (eguns). Mas sua metade esquerda estava pegando fogo, já a direita não,
estava mais fria. Possível então ser ogum xoroquê, ele especulou, um santo “metá-
metá” – metade santo, metade exu –, com o qual não tinha muita “experiência”. O
santo, se santo fosse, poderia sussurrar-lhe uma zuela que “viria na [sua] mente”.
Ou então ele poderia lhe dar gana de comer algo inusitado, aparecer em seus
gostava, saberia também por que ele estava ali. Seria ele um espírito das águas?
Das matas? Das estradas? Do tempo? Do cemitério? Seria mandado por feitiço?
36
uma imagem de um velho negro que levava na mão direita um cajado, na mão
dúvida se realmente era o velho obaluaê, tal como o senhor que lhe deu a imagem
aquele senhor deveria ser um exu. Bem, se não fosse exu, certamente era o preto-
velho obaluaê, que trabalha junto aos exus e espíritos de morto (os chamados
eguns). Sem sabê-lo ao certo, o pai lhe ofereceu um cigarro aceso, colocando-o em
seus pés. Conversou com a imagem e finalmente, dias mais tarde, quando lhe
A questão estava dirimida. O velho senhor negro era um exu, pois se fosse mesmo
coco seco.
conhecíamos a sua “linha”, o seu “ritmo” – aliás, eu mesma nunca o saberia, pois o
exu, depois de quebrado, não voltou a aparecer naquele terreiro. Seu sumiço não
Como este exu, conheci seres que tinham o mesmo nome, mas não eram do
mesmo tipo. Ogum, por exemplo, “desce caboclo” em alguns terreiros da região, já
que fiz no final da pesquisa de campo, depois de perguntar algumas vezes ‘qual é a
diferença entre candomblé e umbanda’, Jaime, que esteve presente em várias delas,
37
observou: - “Sua pergunta não faz nenhum sentido! Se você perguntar qual é a
diferença entre umbanda e ijexá, umbanda e queto, queto e angola, aí sim, tem
estaria excluída, mas, neste texto, segui o uso das pessoas com quem mais convivi,
todo o sentido, pois para ele, como ogã que é, a diferença entre umbanda e
candomblé era bem mais visível em seus toques e danças. A umbanda, ele dizia, é
também um modo de tocar cada um desses ritmos. Além disso, ele continuou:
orixá tem um toque, mas em cada casa é diferente, a casa que tem um Xangô de
frente vai tocar o toque de todos outros orixás de um jeito, outra com Iansã de
cada casa, isto é, segundo os tipos de seres que as habitam. E cada um destes
20
Ochoa (2004: 11) prefere chamar o conjunto de religiões afro-cubanas de práticas de “inspiração”
africana. O termo ‘inspiração’, diz o autor, evoca uma dobradiça entre passado e presente, pois, ao
mesmo tempo que reconhece suas dívidas, é logo “absorvido na corrente de suas criações pródigas e
inesperadas”. Goldman (2009), por sua vez, chama de religiões de matriz africana “um conjunto algo
heteróclito, mas certamente articulado, de práticas e concepções religiosas cujas bases foram trazidas
pelos escravos africanos e que, ao longo de sua história, incorporaram, em maior ou menor grau,
elementos das cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo popular e do espiritismo
de origem européia”. Claro, o autor complementa, “esses elementos transformam-se à medida que
são combinados, e vice-versa”, mas ali persistiu a afirmação de “uma subjectividade de resistência
por parte dos negros”, além de, é claro, a abertura de “linhas de potencialidades” que ultrapassam as
fronteiras de qualquer grupo ou etnia (Guattari apud Goldman, 2009). No presente trabalho, a ligação
com a África não apareceu em primeiro plano, mas o candomblé – o termo nativo mais usual da
região para se referir ao conjunto dessas práticas – é de modo geral ali considerado uma religião que
não só se originou do continente africano, mas que continua sendo majoritariamente frequentada por
negros, ainda que não exclusivamente. Teria sido bastante interessante trilhar, no dia a dia, as
sempre variadas ligações do candomblé com a ‘África’, assim como os mais sutis eventos
envolvendo o que se chamou na antropologia de “relações raciais”, mas infelizmente, ainda que este
assunto apareça aqui e ali, é algo a que não pude me dedicar neste texto.
38
modifica. Por isso, Milvan não se surpreendeu quando o Exu lhe pediu para tocar
particular, só seu, e ele o fez lindamente. Seus passos foram vigorosos, seus pulos
rápidos e marcados; sua dança, o Exu e o ogã comentaram, conjugou traços de suas
diferentes linhas, o que a tornou própria àquele Exu. Mas não se tratou exatamente
de uma mistura, pois no corpo do Exu os movimentos eram discerníveis, eles não
queto, ele tinha duas outras linhas, mas agora ele queria mais; faltavam-lhe apenas
três, o Exu dizia, para “ficar ainda mais assombrado”, mais perigoso. O Exu queria
ritmos não se restringiu aos espíritos, ela também foi parte da vivência das pessoas
próximas dos terreiros da região. E, claro, isso foi feito entre seres que inicialmente
não partilhavam um mesmo ritmo, como aconteceu com mãe Dita, quando um pai-
chamar:
- ‘Ó, meu filho, eu não posso. Apesar de que eu fiz aquela limpeza pra você,
tudo bem, mas jamais eu vou ir nas suas águas. Você tem que trabalhar pelo seu
ritmo, se você quiser acompanhar o meu ritmo, você tem que passar por todos os
trabalhos primeiro’.
diferentes’.
- ‘Vá fazendo...’ Eu fui vendo ele fazendo aquele pinguinho de farofa num
21Em outras regiões do Brasil, aos centros que “cruzam” mais de uma linha se dá o nome de “linha
cruzada” (ver Anjos, 2006: 18, sobre as religiões afro-brasileiras em Porto Alegre - RS) ou “trançada”
(ver Serra, 2001: 221-222, para os terreiros de umbanda e quimbanda, em Brasília – DF). É, entretanto,
39
Ele foi fazer o primeiro trabalho. Quando começou a tocar, o Boiadeiro dele
meu velho’. Tudo eu animo! Olha, essa menina, se ela manifestou aqui, eu animo!
Eu faço tudo, eu não bichinho não, tá entendendo? Eu digo: - ‘Baxeto, meu velho,
tende misericórdia’. E cada qual com seu cada qual, tudo bem, tudo em dia. Eu
Eu sempre observando. E ele tava indo muito bem. Mas ele queria catar!
Acontece que eu não sou boba, eu não dei caminho. Os contrário. Cada hora eu
pedia uma coisa diferente, eu digo: - ‘Eu é que vou catar um pouco dele’. “
Apesar de Mãe Dita não gostar do “ritmo” do pai-de-santo, mesmo assim ela
resolveu “catar” alguns de seus “preparos”, palavra que no candomblé indica duas
estranho, portanto, que este “meio [seja] de muita guerra, muito susto” e que as
convivência com os caboclos. Porém, ainda que as batalhas entre diferentes pais-
de-santo, ou entre estes e seus filhos, sejam parte importante do presente texto, as
rixas relacionadas mais estreitamente aos “ritmos” de cada casa de candomblé não
como desde o início ‘desenhei’ minha pesquisa. Já no projeto inicial, previa uma
dos caboclos com as pessoas ligadas das mais variadas formas ao candomblé, e
quando eu declarava estar mais interessada sobre suas relações particulares com os
região. Pois, se estas pessoas afirmavam pouco saber sobre o idioma ritual do
santo que, não obstante, muitas vezes se sentia à vontade para lidar com os seres de
seus filhos.
cujo terreiro foi etnografado por Binon-Cossard (1970: 60) –, era utilizado mel nos
ebós dedicados aos exus. Na região estudada, contudo, encontrei um exu que
detestava trabalhar com mel: ele só aceitava tocá-lo sob muita reclamação. Para ele,
tantas etnografias, que muitos exus gostam e trabalham com mel. Importa ao
contrário que, para aquele exu, enquanto ele não experenciar a força de um trabalho
termos “caboclo”, “santo”, “diabo”, “orixás”, “erês”. Cada uma dessas palavras
abrange uma infinidade de seres que, apesar de diferirem entre si, se distinguem
ainda mais dos outros que não partilham consigo o mesmo termo genérico de
me.
das-almas, aqueles que vivem perto do cemitério, que estão em paz com os eguns
orixás como ogum, a erês como Espadinha e a caboclos como sete-flecha. Enquanto
os exus são espíritos de pessoas que tiveram uma vida pouco regrada, ou então
velhos – raros na região estudada – são espíritos de negros escravos. Os erês são
espíritos de crianças. Para alguns, os orixás são espíritos de pessoas que viveram há
ainda muito mais tempo que os agora exus, caboclos e marujos. Eles são também
realizadas por inúmeros motivos. Alguns dos orixás – oxóssi e ossanha, por
moradores das águas, por sua vez, aproximam-se entre si – é o caso de seu Martim,
o marinheiro bêbado, e das orixás oxum e iansã. Outros orixás se juntam aos exus
podem ser aproximados entre si (na região, este é o caso de ogum xoroquê e
menina têm características parecidas com os erês, e os velhos orixás nanã e obaluaê,
por sua vez, são normalmente ligados aos pretos e preta-velhas. Há santos ou
dia foi “irradiado por seu Martim”, deixando-o bêbado. A influência de seu Martim
humano; sua presença não tomou totalmente o exu, mas uma pessoa versada soube
vê-la. Aliás, o próprio seu Martim é um ser especial, pois, apesar de egum, ele não é
próprio, seus gostos são conhecidos e, mais importante, cada seu Martim mantém
uma relação próxima com seu carnal. Além disso, estes marinheiros são
farras e desapego22.
22
Santos (1995: 126) cita algumas falas nativas sobre seu Martim, ‘recolhidas’ na Bahia, que
evidenciam o caráter ambíguo desses marujos: eles “têm três partes: responde Caboclo, exu, egum”
(...); “mas marujo não é caboclo, é uma pessoa que desencarnou e voltou para um certa missão” (...);
“ele diz que, quando quer, é caboclo. Ele pode ser exu quando ele quer ser. Vai até embaixo do mar,
bem mais do que Exu”. Apesar de Santos (1995: 126-131), Carneiro (1986: 75-76) e Iriart (1998: 233-
258) terem dedicado alguma atenção aos marinheiros bêbados, ainda está para ser feita uma
etnografia detalhada sobre essa interessante e bastante presente categoria de espíritos no candomblé
baiano.
43
Também um santo não anda sozinho. Ele tem um número sempre grande de exus,
caboclos e eguns, prontos para realizar suas vontades mais controversas. Pois, se na
região há quem diga – e há quem negue – que os santos não fariam feitiços nem
maldades, existe igualmente o entendimento de que eles têm à mão seu exército de
‘tocá-los’, modulando-os23.
certa forma, sem sentido uma tentativa de classificar em conjuntos bem definidos
suas radiações geram novas combinações, elas singularizam tudo o que ‘tocam’ –
melhor, é a própria ação de irradiar que, a meu ver, torna importante o fato de todos
esses diferentes espíritos serem, na região estudada, ora chamados de caboclos, ora
da tese, tal distinção mais ‘fina’ não será tão importante. Claro, quando for preciso,
ela será feita, todavia, creio que a tradução da experiência de campo em texto se
complexifica bem mais quando ela se deixa acompanhar de tais incertezas, motor
23
A seguinte citação de Santos (1995: 140-141), que estudou os caboclos no candomblé baiano, reforça
a ideia de que um santo ou caboclo é multiplamente composto: “Caboclo tem Exu. Se o caboclo não
tivesse Exu, ele não seria uma energia. A energia é o equilíbrio, é a direita, a esquerda, a frente, o
verso. Nem a própria energia é pura. Não existe pureza de religião, do cosmo, de energia, porque a
própria natureza não é pura. Aluviá é um Exu do Caboclo Apavenã. Os Exus de caboclo e de orixá
diferem, porque o caboclo é diferente do orixá. Em termos de energia é a mesma”.
44
modo que lhe é singular; ele o balança de um jeito específico. Ele passa a habitá-lo,
assim como os diabos habitam o domínio dos santos. Quando os exus e eguns os
modular seu domínio. Quem está na frente agora? Quem se fez passar naquele
momento? Essas perguntas, cujas respostas se dão a ver a olhos bem apurados,
Parafraseando Milvan – o ogã que versava acima sobre a diferença entre os ritmos
Trabalho e Paixão
que o via. Na primeira, chorou aos pés de Ogum, queria tirar sua própria vida. Na
terceira, encontrei sobre a mesa uma lista de ingredientes para sua obrigação:
1 galo e 1 galinha
2 champanhas
2 cervejas em garrafa
1 cachaça 61
2 pacotes de farinha
1 vidro de azeite
2 najés
377 reais
com ele. Ainda moram juntos, mas ela só lhe dirige a palavra pra brigar. Descuidou
dos filhos, é madrugadeira. Ele já pediu perdão a ela, mas a mulher não aceitou”.
Decerto a traiu, nós duas especulamos. - “Ele e Niel iam arriar a obrigação
na segunda, mas ele não mostrou os cornos!”, Juçara arrematou com uma risada,
Alguns dias mais tarde, porém, Éder voltou ao terreiro pedindo urgência a
46
Niel, o zelador que conhecera há apenas uma semana, e já chamava de pai. Os dois,
em boa hora. Ficaríamos esperando durante quatro horas, tempo em que se falou
muito, e não só sobre caboclos e feitiços e segredos, mas também palavra à toa,
expectativas; ali, Éder era encorajado, seu ânimo e seus caboclos invocados. Ali, ele
lutaria para lidar com a força daqueles que por ora o enfraqueciam. Era, de todo
modo, um tempo necessário: - “Não é bom o corpo estar quente” numa obrigação,
asseverou Niel.
Marujos zuelam:
dissimulada, Éder cumpria um conselho de seu pai, pois, por ele, demonstraria à
mulher todo o seu empenho em querê-la de volta, logo ela que, depois de onze
anos de um “bom casamento”, tornara-se uma esposa lacônica e uma mãe relapsa.
- “Isso tudo é anormal: hoje mesmo ela saiu atormentada, mal falou comigo
e foi ao encontro da amiga. Vivíamos bem, nós dois trabalhamos, ela era boa
mulher, boa mãe, conversávamos para tudo, nos conhecemos bem novos. Tudo foi
muito rápido: teve uma briga, ela comeu meu juízo, disse muita coisa que me
47
ofendeu. Toquei nela. Nunca tinha tocado nela nem em mulher alguma. Me
arrependi na mesma hora, implorei desculpas, mas desde esse dia tudo mudou. Foi
algo preparado. Já a briga foi devido à amizade de uma amiga que ela acompanha
e da casa de quem não sai. Aceita comida e roupas emprestadas, veja você! Saem
juntas atrás de um rapaz de quem a amiguinha gosta. Onze anos não são onze dias!
Gasto o que for preciso” – disse Éder, ouvindo uma música romântica no seu
O telefone havia custado seiscentos reais, valor mais alto que seu salário1.
Fora um presente para a esposa que ela lhe devolveu depois da briga, o que não
diminuía a satisfação de Éder em ter mostrado ali uma prova do quão fora um bom
marido.
- “Um dia não pude mais. Briguei com a amiga – essa amiguinha! – e fui
- “O trabalho é pra Padilha da sua mulher e pro seu Exu” – disse o pai.
Eu ia passando,
A cobra me mordeu,
Chamei por meu pai,
Ele me socorreu.
O ogã anunciou que não faria o trabalho de corpo aberto. - “Faça a flor-do-
velho, meu filho”, disse o pai. Fez-se então a pipoca enquanto o pai-de-santo se
vestia com as roupas de seu Tranca-Rua: bata vermelha, calça preta, chumbetá
1
465 reais era o valor do salário mínimo à época.
48
da galinha – tiveram seus pés lavados. Éder escreveu seu nome sete vezes em um
papel e, logo abaixo, o nome de sua esposa, também sete vezes. Em outro papel,
previamente preparada e ao azeite de dendê. Uma faca foi separada. Uma vela de
sete dias foi acesa na “creche”, a casa dos Exus, uma pequena casa de taipa atrás da
sede.
passamos a acender as velas. Éder estava especialmente tenso, mas não era só ele; o
próprio pai-de-santo pedia para que não nos demorássemos: - “Não pode dar mole
aqui!”.
do najé. - “Não deixe eles fazerem barulho” – pediu o pai (não só para não chamar
atenção, mas também porque o grito da ave pode vir a prejudicar os presentes,
depois eu saberia). Pedidos foram feitos: - “Laruê, Exu! Receba! Padilha, receba!
Para que a menina de Éder volte e para que desgrace a vida da mulher que está lhe
atrapalhando. Tire ela do caminho e traga Vânia de volta. Receba, Exu! Traga força
pro seu filho. Laruê, Exu”. As bebidas foram dispostas em torno da obrigação, com
exceção de duas. Uma delas, a champanha, depois de três vezes batida levemente
contra o chão, foi atirada na perna do ‘T’, e a outra, uma cerveja, em direção à sua
cabeça, ambas se estilhaçando no asfalto. Mais um najé, que eu não vira antes, com
uma ave já cortada em seu interior, foi rapidamente arriado do lado oposto ao do
misterioso, cuja cor do sangue indicava ter sido preparado dias antes.
- Que cara?
dizer que sem apreensão pensei no rapaz que eu suspeitava ser alvo dessa
macumba sigilosa). Quando chegamos, nossos corpos foram fechados com a flor-
Eles sorveriam “a luz das velas e o cheiro de sangue, cachaça, tabaco e dendê”,
complementou o pai-de-santo.
obrigação.
- “Agora você vai ter de esperar, é com eles. O que eu tinha de fazer, já fiz. E
- “Esse é bom para levar quando eu for matar alguém!” – brincou o pai,
- “Quanto seria?”
- “Não dou o preço. Não sou eu que faço a limpeza. Sempre começo e nunca
50
termino. Se for Tranca-Rua, a Gira ou Gentil, eles metem a faca: na base de 770
reais. Mas Boiadeiro, Ogum, pode ser 300, 200, 100, depende do que vai precisar.”
santo para resolver seus problemas, algo que a princípio me surpreendeu, pois
as mulheres que mais ocuparam a posição de feiticeira (23 vezes contra 12, em um
total de 39 casos)3.
2
Araújo (2007), Maluf (1993) e Leal (1992), todas elas antropólogas pesquisando no sul do Brasil, se
depararam com casos em que a acusação de bruxaria recai quase que exclusivamente sobre
mulheres, quando então a cura é também buscada entre mulheres benzedeiras e/ou mães-de-santo.
Hayes (2004: 356-364), ao tomar a feitiçaria como um de seus principais temas de pesquisa, estrutura
toda a sua tese em torno da biografia de uma mãe-de-santo. Porto (2007: 37) e Cardoso (2004: 140-
141) privilegiam o vínculo da feitiçaria com a socialidade negra, mas arriscaria afirmar que as
mulheres têm ali alguma proeminência. Apesar de Iriart (1998: 114) não tratar propriamente de
feitiçaria, a presença de mulheres no candomblé baiano é seu objeto de seu estudo, e tal presença se
estende também aos casos de bruxaria ali relatados. Maggie (2001) e Barros (2000) são exceções, pois
não há um corte tão claro entre a participação de homens e mulheres nos casos de macumba
apresentados. Note-se que tais observações não são fruto de nenhum estudo sistemático. De
qualquer maneira, não se almeja fundamentar a importância da discussão de gênero sobre uma
evidência estatística; bem ao contrário, objetiva-se movimentar-se por outras vias que não aquelas
que conferem relevância apenas aos temas tidos por majoritários, conforme veremos melhor adiante.
3
Ao contabilizar os casos de feitiçaria, foi-se fiel à palavra do narrador. Mesmo quando o feiticeiro
não foi consultado, ou até mesmo quando negou o feito, ainda assim o caso foi computado. O mesmo
se fez com enfeitiçados, isto é, quando feiticeiros reclamaram seu feitiço, e os enfeitiçados não foram
consultados, a palavra do narrador foi o que determinou essa contagem que, ressalte-se, não tem
51
marido. Até onde sei, Hayes (2004) foi a autora que mais recentemente se debruçou
sobre essa questão, ao pesquisar sobre a feitiçaria a partir da biografia de uma mãe-
de-santo em Acari - RJ. Seu método de análise é clássico. O contexto desde o início
adquire proeminência sobre os casos de feitiçaria que nunca perdem sua posição
contemporâneo. O contexto descrito por Hayes (2004: 29-30, 305, 339-344, 350-5,
relativa liberdade extra-conjugal; uma liberdade da qual ele parece desfrutar, mas
sexualidade das mulheres de sua casa. Tal controle estaria também disperso na
sociedade, seria mesmo uma norma moral: espera-se da mulher a fidelidade e todo
o cuidado com a lida dos filhos e da casa, de onde, aliás, ela deve pouco sair.
em agressão física.
pretensão alguma de fidedignidade estatística, nem tampouco de se tornar uma amostra sociológica.
4
“Majoritário é todo pensamento, toda posição que se estima ‘normal’ e que define qualquer
divergência como distanciamento da norma (...) O majoritário, aqui, não se refere (...)
[necessariamente] ao número. Um grupo pode ser minúsculo e majoritário, basta que os temas que
ele propõe sejam definidos como ‘de direito’ válidos para todos” (Stengers & Pignarre, 2005 : 145-6,
tomando emprestado os conceitos de majoritário e minoritário elaborados por Deleuze & Guattari).
52
Éder, um homem que faz um feitiço para ter de volta sua mulher, seriam exceção à
regra, uma exceção que até mesmo a confirmaria, pois o homem, mostrando
pra pegar mulher?”, riram). Em seu polo inverso, o adultério feminino, pois que
transgressão à norma, longe de ter direito a uma existência analítica própria, torna-
pertinência das normas e características da família patriarcal para “dar conta (...) do
(Marcelin, 1996: 28; 138-140) para caracterizar o que se chamou de parentesco das
pai, instabilidade conjugal, filhos ilegítimos, entre outros), por oposição ou adição
5
Ver também Medeiros (2006: 110-111) para uma crítica da “pretensão totalizante de determinados
modelos analíticos” sobre relações de gênero.
6
A família-de-santo também não escapou da afluência classificatória. Enquanto Ruth Landes (2002) e
53
das relações de gênero, justo elas que são profusa e complexificamente elaboradas
Levanta homem,
Levanta mulher,
Levanta todo mundo,
Pra fazer o candomblé.
expressivo da bruxaria – mas não o único, ressalte-se –, mesmo quando ali foram as
não foram poucos os homens que também os ocuparam. Não posso afirmar,
homens procuraram pais e mães-de-santo para ter seu cônjuge de volta, ou para se
vingar do amante de suas esposas, como foi bastante comum mulheres iniciarem
Leni Silverstein (1979: 145) viram na família-de-santo um verdadeiro espaço de poder e resistência
feminina em uma sociedade envolvente de tipo patriarcal, Patricia Birman (1995: 179-182) propõe
que, ali, os homens – os ogãs – e também os santos masculinos têm precedência sobre as mulheres – e
este também parece ser o argumento de Teixeira (1987 apud Iriart, 1998: 59), para quem a família-de-
santo reproduz as relações de gênero presentes na “sociedade machista brasileira”. Iriart (1998: 61),
por sua vez, não acha possível escolher entre uma proposição de resistência e outra, de
conformidade, pois o candomblé, afirma o autor, “reforça a ordem sociocultural ao mesmo tempo
que permite questioná-la”. Já Lima (2003b: 162-164) e Segato (2000: 54; 59) percebem, na família-de-
santo, tanto traços da família patriarcal como da matriarcal, sendo que, para além de uma
correspondência e classificação nítidas, Segato (2000: 78) argumenta que a construção de gênero
entre os membros do Xangô recifense articula, com complexidade, vários outros elementos.
7
Iriart (1998: 91) observa que o papel das mulheres não é oposto ao do homem. A mulher, diz o
autor, não é destituída de poder, mas seu poder é complementar e hierarquicamente inferior ao do
homem. De todo o modo, tanto para Iriart (1998: 86, nota 72; 98; 293-294) como para Hayes (2004: 113
e 342), a ascendência masculina, vislumbrada em seus trabalhos de pesquisa, é a mesma descrita pela
literatura antropológica sobre o poder do homem na família patriarcal – poder que, segundo os
autores, subsistiu os tempos coloniais. Medeiros (2006: 109-118), criticando abordagens semelhantes,
pergunta se “não se está tomando como certas/dadas (...) dicotomias que deveriam ser explicadas”,
pois, “qualquer estudo [que] sabe (...) de antemão que esta diferença é o ponto de chegada, a tese
será sempre a mesma, só variando o repertório cultural”.
54
mais importante, a feitiçaria nesta tese não será tida por uma ação indireta, ou uma
teria de deixar minha escrita ser capturada. Uma escrita prismática, contrapontista,
pensei, talvez fosse capaz de conectar os eventos vividos em campo sem colocá-los
pela primeira vez, me contou que seu enteado fora traído, ela me contou rindo. E
pediu que eu voltasse pra gente conversar e “dar risada”. Ela gosta de seu enteado,
não se trata de raiva ou sadismo maternos, mas de uma contemplação possível, sob
o prisma do riso, das relações entre homens e mulheres. Ao pensar sobre o estigma
das mulheres dadas a um caso aqui, outro acolá, ou sobre as histórias de traição
femininas, lembrei que mais de uma amiga me disse que as pessoas esquecem,
ainda que hostilizem por alguns dias aqueles e aquelas que julgam ter agido errado.
Ouvindo-as, pensei que seria interessante abordar tais relações também sob o
discordarem entre si: - “Rapaz, ela é vagabunda!” – “Não, véio, ela é direita!”,
pensei que tais relações são também percebidas sob o prisma da incerteza. Incerteza
esta que compõe e é efeito do prisma da fofoca, uma forma importante de vivenciar,
poderia dispor para descrever as relações de gênero com a feitiçaria. Certo dia,
uma senhora afirmou que, se seu filho tivesse tido a presença necessária para negar
a acusação, feita pelo marido de sua então amante, de que “ele ainda insistia na
55
mesma cor”, ele não teria se tornado presa fácil da feitiçaria do marido ofendido.
A forma ali vivida não era apenas a do modelo, a da norma moral – e achei
‘contexto’ e de qual relação ele terá com o ‘texto’. Por exemplo, casos como os de
Éder podem entrar na análise como uma exceção num contexto cuja ‘normalidade’
também – e é assim que aqui serão tomados – como um prisma através do qual
outras situações etnográficas serão descritas. Uma “perspectiva não linear”, uma
seja, melhor do que tomar os prismas como estratégias (= texto) para lidar com a
Justamente por buscar novas formas narrativas – que são menos novas do
prejulga a análise de como as pessoas se impõem umas às outras; isto porque ele
8
Para uma etnografia que acompanha os modos nativos de descrição, ver o excelente trabalho de
56
que, na feitiçaria, uma das formas, imagens ou teorias da ação (Strathern, 2006: xi-
provar que uma relação entre homem e mulher, uma vez submetida a um ataque
feiticeiro, seja também uma relação de captura por composição. Não se quer fixar
decomposição que, por sua vez, tornam visíveis outras formas de combinação e
ascendência entre humanos, e entre estes e os espíritos. Com isso, não se pretende
negar a dominação masculina (ou aquela dos papéis masculinos ocupados por
humanos (ver por exemplo Wafer, 1991; Ochoa, 2004; Nathan, 2001; Sansi-Roca,
2003 e 2005; Goldman, 2005 e Birman, 2005), penso que seria também proveitoso
perguntar também o que é a agência, isto é, quais são as imagens da ação nas
O Gênero da Possessão
- “Hoje é meu dia! – disse Tranca-Rua – “Só se eu der passagem a outros que
não vai ser. Quem manda aqui é macho. As fêmeas têm que ficar no meu pé” –
- “Tadinha das fêmeas” – disse o amigo do Exu – “A palavra já diz tudo: fê-
primeira, ele já desceu à terra com a firme vontade de passar à frente. Era então a
irreverente quanto o próprio Tranca-Rua. Seu Martim cobrava uma festa para si
havia muito tempo e, quando ela finalmente chegou, esperava-se que ele pudesse
gozá-la integralmente. Mas, com apenas duas horas da festa começada, a Padilha
uma competição de visibilidade entre os seus guias e os de seu pai, ela zuelou, com
É seu Tranca-Rua
grave e cavernosa aquele que agora era Tranca-Rua. Pediu seu chapéu, seu charuto,
seu uísque e, todo gaboso, soltou: - “Gosto que Padilha me domine na cama, aqui
uma norma (por exemplo, ‘no candomblé, afirma-se que os exus machos dominam
enunciados do exu eram mais armas, e menos preceitos. Tais enunciados faziam
parte de seu arsenal de guerra, mas, como em toda batalha, sua força, ainda que
gostaria. - “Ela”, dizia-se, “ele não consegue dominar”. Da mesma forma, Tranca-
Rua parecia calmo perto de Sete-Saia, uma das exu fêmeas do pai-de-santo cuja
58
exu ou uma exua, cada uma delas, fortalece homens e mulheres. O que se tornará
claro nesse item e no decorrer desse capítulo, espero, é que os domínios – humanos
força ou fraqueza9.
Alguém zuela:
E a Gira responde:
bêbado.
julgando pelos boatos que era dia de candomblé. O pai-de-santo, para não
Mas ele era diferente dos outros presentes; estes eram frequentadores assíduos de
outros candomblés da região, o bêbado, ao contrário, era “fraco de fé”. Quer fosse
Tranca-Rua, o Marujo ou o caboclo Gentileiro, para ele, quem lhe falava era sempre
Álvaro, o pai-de-santo que era também seu parente distante. Nem mesmo um
segundo bêbado, que chegou à “brincadeira” pedindo que o Exu interviesse em seu
casamento, conseguiu convencê-lo de que ali não era Álvaro, mas um espírito.
9
Há muito a teoria feminista observou que o feminino não diz respeito somente às mulheres e o
masculino, somente aos homens, algo que o candomblé torna manifesto (ver Strathern, 2006: 19-20,
Wafer, 1991: 17-18; Birman, 1995: 65-70, entre outros).
59
Conversaram, homem e exu, por meio de enigmas, dos quais em meio à escrita de
meu caderno de campo no dia seguinte não pude me lembrar nem ao menos de um
Impertinente, ele falava alto, interrompia as zuelas dos exus e queria impor suas
músicas, as músicas humanas que não eram zuelas e que, dependendo de seu teor,
poderiam soar como provocações, como de fato soaram quando ele se pôs a cantar
O Exu era policentenário, era tido portanto como o mais sabido e experiente
dentre os presentes, então como um humano poderia lhe desafiar cantando sua
naquele momento, o riso fora suspenso ou ao menos era um riso irritado. Depois
que o bêbado, querendo sambar, dirigiu-se ao ogã dizendo: - “Liga o som!”, o ogã,
Eu já mandei fazer,
Um sapato de ferro,
10
Não são todos os exus que declaram sua idade, mas este em particular já havia deixado a maioria
60
Mesmo levando esses sotaques, o bêbado não diminuiu sua ousadia. Certa
hora, tirou a camisa, algo que não se deve fazer numa festa de candomblé. Depois
de algumas trocas de desaforo, em que ele anunciava sua virilidade e as Giras, sua
impotência, Tranca-Rua deu passagem à Sete-Saia de seu carnal. Era a primeira vez
que eu a via. Gaiata, e sabidamente perversa, ela raramente vinha à terra. - “Ela só
Logo ao chegar, Sete-Saia pôs-se a rebolar com um pano branco que lhe
amarraram na cintura, à maneira de saia. Rindo alto, uma risada típica das giras,
zuelou:
tão diferentemente do que ele era no cotidiano que a cena não podia despertar
senão surpresa e atenção. Gostando dos olhares que a seguiam, Sete-Saia zuelava
sobre sua saudade e desejo por falos – zuelas que os ogãs se recusavam a repetir,
mostrando-se agora descontentes por ter de tocar para a fêmea, em um macho, que
sotaque:
sua vez, continuava alheio às zuelas que lhe eram dirigidas. Sete-Saia, ele
esfregar seu corpo no corpo do homem que, cansado de resistir à sua obstinação,
acabou por deixá-la se aproximar e, num átimo, quase viu se roçarem as duas
genitálias. Agora furioso, ele quis pegar a garrafa de uísque de Tranca-Rua, talvez
para quebrá-la em Sete-Saia que, de costas para ele, parecendo não compartilhar da
empurrou, direcionando-o para fora do barracão. O bêbado não mais resistiu. Ali
onde a Gira o deixou, ele permaneceu durante várias horas, junto à sua moto,
Sem sua presença, a festa seguiu animada. A Gira afastara aquele de quem
Aê cachaça,
Não me aborreça,
Desça pra barriga,
Não suba pra cabeça!
interlocutores.
- “É raro”, um deles me dizia, “um adé não receber e é raro alguém que não
é adé receber, tipo Álvaro, Martim, Evaristo, Mané Pedro... E também meu irmão!”
entidades, saltou aos nossos olhos – como aos de muitos outros pesquisadores 12 – a
possessão com o lugar ocupado pelas mulheres no plano sociológico. Para alguns,
ela seria a expressão ou ato análogo à subserviência feminina (Matory, 1988 apud
Wafer, 1991: 103 e Boyer-Araújo, 1993: 16-17). Para outros, inversamente, ela
relação aos homens, mas dos pobres aos ricos, dos negros aos brancos, dos jovens
(1995: 173) introduziu uma ideia nova ao debate. A própria possessão, diz a autora,
12
Entre os etnógrafos que estudaram a presença significativa de mulheres em religiões afro-
brasileiras, estão Boyer-Araújo (1993), Contins (1983), Hayes (2004), Iriart (1998), Landes (2002) e
Silverstein (1979). Por sua vez, Birman (1995), Fry (1977 e 1982), Landes (2002), Matory (1998), Segato
(2000), Teixeira (1986 e 2000) e Medeiros (2006) estudaram a igualmente significativa presença de
homens ou mulheres homossexuais em tais religiões. Ressalte-se que, durante meu trabalho de
pesquisa, havia terreiros em que se notava maior presença homossexual, sobretudo a masculina, e
ela era relativamente comum também em terreiros onde não era maioria. No entanto, essa questão
não foi a tônica de minha vivência de campo e, por isso, ainda que apareça ao longo deste trabalho,
não disponho de material suficiente para tratá-la mais detidamente.
13
Iriart (1998: 58-61; 66; 248), especialmente, e Hayes (2004: 356; 374-376), de forma indireta,
procedem à crítica do conceito estrutural-funcionalista de ritual de rebelião, pois, definido como uma
inversão temporária da ordem dominante, ele invisibilizaria a efetiva mudança social, ou pelo menos,
os mecanismos ali fornecidos para amenizar, lidar ou relativizar os poderes dominantes (no caso, os
masculinos). Ambos os autores, no entanto, não veem problema algum em tratar tal “ordem
dominante” – que prefiro chamar de ‘contexto’ de referência analítico – como absolutamente
“opressora”, ‘dada’ a “carência” econômica que assola a maioria dos adeptos dos terreiros por eles
estudados e ‘dado’ o poder masculino que aflige as mulheres em uma sociedade que eles veem de
forma algo etnocêntrica, pois que ambos a descrevem como “ainda” patriarcal/tradicional (cf. Iriart,
1998: 155, 157 e Hayes, 2004: 352).
63
diferentemente para cada um deles. Nos homens, ela introduz uma alteridade que
lhes retira a virilidade; nas mulheres, ela “remete-as para o campo do feminino
aqueles que não entram em transe (os ogãs e as equedes) seriam seu polo
masculino e aqueles que são possuídos (os filhos e filhas-de-santo) ocupariam seu
polo feminino.
gêneros” (idem: 51), em minha experiência de campo, porém, vários outros fatores
pareceram entrar em jogo para a construção de gênero. Tudo indica que ela esteja
mais próxima do que foi descrito por Wafer (1991: 17) e Segato (2000: 78) como um
alguém que tem uma anatomia masculina, que tem dois santos homens e
que só se relaciona como okó [marido] com seus parceiros sexuais estará
próximo do polo masculino, e alguém que tem uma anatomia feminina,
dois santos femininos e que só ‘gosta’ de homem, encontrar-se-á próximo
do polo feminino (2000: 78).
tudo. A maneira como se dá tal ‘genderização’ está longe de ser um ponto pacífico.
Para alguns, os santos viriam a descrever antes a personalidade de seu filho do que
sua orientação sexual (Segato, 2000: 53). Outros concordam que a orientação sexual
também não é dada pelo gênero do santo, todavia consideram que ela pode ser
já vem com a pessoa, não tem nada a ver com orixá. É verdade que podem fazer
64
isso, eu até sei o caminho”, me dizia Naomi, “e é por isso que não deito no quarto
de ninguém, depois fazem isso pra mim e eu me misturo com mulher. Muito não
me dou nem com homem, quanto mais com mulher”, ela completou.
carnal não é fixo, é possível manipulá-los. Todavia, outros discordam que seriam
- “A gente que tá nas águas, não é pra vomitar com o balanço do mar, eu
recebo Jurema – Jurema que me perdoe –, mas eu não gosto de guia fêmea, só de
E o mesmo vale para mulheres que culpam seus guias machos de fazê-las
desejar outras mulheres, ou mesmo de torná-las infelizes no amor (pois, das duas
uma, elas dizem: ou os guias machos afastam seus maridos porque não querem
outro macho por perto, ou os próprios maridos deixam-nas porque não se atraem o
Aparentemente, o que está em jogo é mesmo uma força diferencial. Como ela
14
Os caboclos são normalmente espíritos machos, e existem poucas caboclas fêmeas (quando
perguntei a um ogã se ele conhecia outras caboclas, ele me respondeu que, além de Jurema, tinha a
Velha Marota e Tombenci; esta última, no entanto, ele nunca vira). A pouca quantidade de caboclas –
e a relativa indistinção destas em relação aos caboclos – levou Iriart (1998: 239-240) a afirmar que,
incorporando caboclos, boiadeiros e marujos – todos eles majoritariamente homens e, no caso dos
dois últimos, paqueradores por excelência –, as mulheres estariam a comentar o mundo masculino,
zombando de seu comportamento e por isso relativizando suas normas, das quais de outro modo
seriam prisioneiras. Wafer (1991: 106), por sua vez, ao constatar a inexistência de caboclas em sua
vivência de campo, afirmou que o mundo dos caboclos, porque de um só gênero, é o da
indiferenciação: na floresta, a morada desses guerreiros, não há antíteses, argumenta o autor.
Contudo, nesta fala de Paru sobre a sua experiência com a cabocla Jurema, ele não parece aludir à
similaridade entre dois mundos: o mundo das caboclas-mulheres e o mundo das humanas-mulheres
(mundos que, se análogos, seriam então achatados, homogeneizados). Paru também não parece
compartilhar de uma indiferenciação primordial, e não só porque ele é um homem que fala de uma
guia fêmea, mas justamente porque ele se refere, me parece, a uma experiência íntima da diferença
em seu próprio corpo: diferença da qual, quando de gênero, ele desgosta, mas, quando espiritual – a
diferença provocada por um espírito em um corpo humano –, ele já gosta bastante.
65
será vivida? Como será elaborada? Como se conviverá com ela? Em minha
experiência de pesquisa, não houve uma resposta única. Quando Tranca-Rua deu
passagem à Sete-Saia, ela desceu para resolver um problema que as Giras das
Álvaro, o carnal da Sete-Saia que hoje em dia se diverte com as artimanhas de sua
Gira, já foi bem menos aberto à periculosidade diferencial que ela carrega, conforme
Composição e Decomposição
espírito de uma cigana, chamada Angélica, que descia vez ou outra em sua mãe-de-
santo. Angélica queria realizar um trabalho para que sua “metade limpa” não se
tornasse “suja” em definitivo. Ela já conhecia bem o “lado negativo”, então agora
queria “ficar toda pura” para louvar “o deus que não está na terra”. Feito o
trabalho, Angélica foi mais grata do que Álvaro gostaria, e passou a radiar sua
queixo. Muitos lhe diziam: - “Você está desmunhecando!” Álvaro nunca gostou de
guia fêmea; para ele, todo pai-de-santo que tinha cigana era gay, e nessa época ele
candomblé de uma cidade distante para retirar a cigana inconveniente. Foi em vão.
Quando Álvaro chamava pelos caboclos, era ela quem respondia. - “Foi então que o
irritação de Álvaro: - “Só querem saber da mulher!” Para acalmá-lo, a cigana lhe
deixava recados dizendo que quem mandava era Tranca-Rua, ele continuaria a ser
têm “a força para receber” – como ele costuma dizer – guias machos ou fêmeas. Sua
aceitação não se deveu portanto apenas à vantagem conferida pelo carisma de sua
cigana (aliás, uma análise que reduz a complexidade das relações sociais ao
humana). Penso que uma das razões mais fortes para sua aceitação foi o
aprofundamento da relação com Cleuza, a mulher que viria a ser sua esposa (aliás,
essa também é a opinião da própria Cigana). A relação entre os três era muito
interessante. Das entidades de Álvaro, era de Angélica que Cleuza gostava mais.
sandálias e tecidos. Era ela quem lhe fazia a barba, as unhas e a maquiagem; Cleuza
fazia dela “uma mulher e não um travesti”. Ao mesmo tempo, foram as duas que
“consertaram” Álvaro. Ele era “todo das matas”, elas me disseram, não comprava
roupas novas nem cuidava de sua aparência e, ainda pior, era muito mais
“cismado”.
Cleuza não se relacionava somente com Álvaro. Ela tinha uma relação de
humanos eram levadas a sério: por exemplo, Cleuza adora o Ogum de Álvaro, mas
não deixemos de ressaltar, tem seres masculinos em sua cabeça, a oposição está
parece ser interna a ambos15 e, mais do que isso, o movimento entre um e outro
15
Na literatura antropológica, é mencionada a recorrência, que é também uma preferência, em se ter
67
serem apenas movimentos harmônicos são, também, atos de guerra. Quem terá seu
lugar à frente?
entidade que ele “fez algo para ter” (diferentemente de todos os seus outros
caboclos, que já estavam no seu “sangue”, que são de “nascença”). Mas Angélica
também capturou Álvaro quando lutou para passar à frente de todos os seus outros
fixar em Álvaro. Ela fez uma captura por composição, e Álvaro procedeu à
uma operação de guerra”, os meios de “atuação sobre a pessoa” dos quais um pai
ou mãe-de-santo dispõe para cuidar de seu filho (por exemplo, “afastar” um santo,
atuarem sobre outras pessoas. Sete-Saia, quando tomou o lugar que lhe foi dado para
com que Álvaro, olhando os olhos de sua esposa, a enxergasse de outro modo,
ambas estavam em uma tática guerrilheira. Lutavam com suas armas próprias de
modulando-o.
outros humanos de um modo que ele nunca faria, caso não fosse multiplamente
composto. Veremos abaixo que o mesmo se passou com dona Heloísa, cujo Ogum,
entidades de ambos os gêneros. Isso mesmo quando uma delas não venha nunca a incorporar em
seus carnais. Sobre isso, ver Segato (2000: 50), Maggie (2001: 90) e Wafer (1991: 17).
16
Iriart (1998: 273), citando Lambek, observa que a interação entre espíritos e humanos adensa o
68
Marujo zuela:
Eu morro de trabalhar
Pra sustentar mulher.
E o carinho que ela me dá
É dizer que não me quer.
Ê, ê, ê! Ê, ê, á!
A semana tem seis dias,
Eu morro de trabalhar!
- “Comprei aquela casa, deixei tudo pra ela, casa e terreno. Deixei mais por
aquele negócio que ela tinha. Não vou querer mulher de dois governo! E ele tava
querendo me adominar.”
- “Esse negócio de candomblé. Não gosto. Não acredito. Não era crente na
época, era católico, mas já não acreditava. [silêncio] Não tenho medo! Aquele
- O Ogum?
Ele fez que sim e continuou: - “É muito abusado. Eu disse a ele: - ‘Sai dela,
- E ele pulou?!
- “Nada! [silêncio] Não tenho medo, só acredito em Deus, por isso a vitória
- “Tinha, mas não era descoberto. Quando o Ogum dela veio pela primeira
vez, eu já tava com ela. Eu não gosto dele e ele não gosta de mim.”
- “Diziam que eu tinha, mas não tenho nada! Tinha dia que ela ficava como
morta. Mortinha! Demorava pra levantar, isso depois de estar com ele. Ele era
- “Era dele! Ela é ótima. Uma menina muito boa, ela. É por causa dela que eu
tenho o que tenho. Senão, não vou mentir, não tinha o que vestir. Como não tinha
quando encontrei com ela e larguei minha primeira mulher, que faz 49 anos que a
gente se larguemos. Depois dela que eu comprei uma casa, um terreno, fiz minha
roça. Hoje eu tenho roupa, se eu quiser vestir uma roupa hoje, outra amanhã, eu
tenho. Hum!, fiquei cento e cinco dias no hospital, quando ela não ia, pagava
alguém pra ir. Deu toda assistência. Até hoje, quando ela precisa, eu siuvo ela, e ela
- “Hum!, batia no peito da desgrama, que nem Satanás. Falava com voz
grossa: - ‘Essa é minha menina’. Sozinho, ele tem vinte e um escravos. Vinte e um
- O senhor me contou que ele foi lá em cima atrás do senhor sem ela.
- “Foi. Eu tinha operado, ele apareceu: - ‘Vim te matar. Vou puxar sua
operação’. A gente se atracou no chão, foi uma luta braba. Quando eu vi que ele ia
ganhar, eu chamei quem eu devia, e ele pulou pro canto. Se chamar por Deus e
correr, pode saber que é satanás, porque só quem corre é ele. Se você sonhar com
algo que corre de Deus, não presta. Depois eu falei pra ela: - ‘Ele veio me atazanar,
o seu negócio.’ Ele se vira em tudo. Se vira em boi, em cobra. Se vira que eu mesmo
já vi. É demônio!”
- “Já vi virado. Se vira em tudo que não presta. Só reconhece porque ele tem
aquele olhar assim” [ele fez o gesto de um olhar bravo e fixo e mau].
- “Era que nem gente! Todo igual. Mas ele se vira em tudo. Em boi...”
- “Se o mar a areia fosse. Ah, se ela fosse um terço dessa aí. Mas não dá pra
mim. Tô com ela porque é o jeitcho, mas tô tomando as providências. Primeiro que
ela esculhamba muito os crentes, já não é pra mim. Ela é católica, não falo que o
santo dela é de pau, de barro, não desfaço nem obrigo ninguém. Pastor que é
pastor mesmo diz que não é para levar ninguém a pulso na igreja. Nem adulto nem
criança. Esses dias ela disse: - ‘A casa é minha’. Vou brigar porque de casa?
Comprei, mas tenho a minha na roça. Aquilo é telha... Não amo! Não amo nem a
mim próprio. Quem me amava, eu deixei há trinta e três anos. Nada por nada, foi
ela que me deu. Foi pelo diabo, ela amava o Ogum dela; eu não! Nunca gostei
desses troços, nunca gostei de candomblé. [silêncio] Vou pra Igreja, já são sete
- “Tem sopa.”
- “Pra quando eu voltar... Café eu não bebo, faz vinte anos já. Em casa
encontra o pó, não o café feito. Pras pessoas que gostam, eu deixo o pó. Hum!, o
café queria me dominar. O café e o fumo. Me dava uma dor de cabeça, não
trabalhava sem café. Antes da venda abrir já tava na porta, comprava café e ia
embora. Eu disse: - ‘Eu venço esse sujeito’. Também parei antes de virar crente,
quando virei, já fui limpo. Arriei tudo de vez. Arriei café, bebida e fumo. Médico
nenhum mandou eu parar, foi de repente. - ‘Em nome de Jesus’ – eu disse, mas
nem sabia de nada –, ‘nunca mais na minha vida eu bebo’. Foi de repente! Antes
bebia tudo misturado: pinga, ceuveja, botava debaixo do braço a garrafa. Gostava
de uma farra danada. Nunca caí, nunca fui levado pra casa, nunca fiquei pelas
ruas, bebia muito, mas nunca perdi um dia de trabalho porque de corpo quebrado.
Também foi depois que me aposentei: antes bebia o suor do meu trabalho, mas
71
depois, o governo paga a gente pra se manter, não pra beber. [silêncio] Amanhã
Ronda dos olhos bem verdes, de cor branca e cabelos amarelados. Ainda que
tivesse roupa de guerra, ele queria descer nu. Perigoso, ele não deixava que dona
Heloísa permanecesse com nenhum homem. - “Ele ficava fora do nível quando eu
tinha meu marido.” Firmino, seu segundo marido, não aceitou o desafio, viu-se.
de Deus. - “Foi matar ele sozinho, não foi comigo não. Foi uma luta triste lá em
cima na roça. Um barraco! Eu ri tanto: briga de gato com rato. É um espírito, não
vive, nunca morre, esses negócios nunca morrem. Era bom se morresse, mas não
morre.”
mesmo passando longe de ser uma novidade, ela exerce em mim um fascínio cuja
dimensão não consigo calcular exatamente. Mas, se eu vejo beleza, e dona Heloísa,
graça (“eu ri tanto”), Firmino, ao contrário, enxerga a força do Ogum que se virava
72
Quando da última luta entre Firmino e o Ogum, este não mais se compunha
com dona Heloísa, ou pelo menos não mais com a frequência anterior. Ogum
cessara de habitá-la desde que ela se convertera ao evangelho, mas não a ponto de
ela e seu Ogum fosse completa, e, em seu dia a dia de crente dedicada, tem tido
relativo sucesso. Às vezes o que fica é mesmo somente um rastro dessa dupla
captura, malmente um cheiro, e por isso dona Heloísa não gosta de falar sobre o
Já sobre Firmino, quando lhe perguntei por que os dois não voltavam a se
ver, ela, faceira, me respondeu: - “Você gosta dele, né?! Queria ver a gente junto!” –
e me deu um abraço. Sua filha, mesmo adorando o pai, interferiu: - “Painho fala
assim, mas não era bom pra ela; era namorador, sumia por vida! Passava três,
Enquanto ainda juntos, existiam ali evidentes no mínimo três forças: a força-
fraco e dominado da relação. É bem verdade que Ogum queria passar à frente de
Firmino, algo que ele conseguiu, pelo menos durante algum tempo. Mas o caboclo
não agia somente em favor de si próprio. Ele não escondia que queria a mulher só
para si, todavia, ele também dizia querer protegê-la da vida de farra e “namoros”
de Firmino. Dona Heloísa, por sua vez, deixou de teimar ‘contra’ Ogum quando
percebeu que seu marido, com suas outras composições, ameaçava a sua própria
força18. Ela então largou Firmino, e Ogum reinou ‘sozinho’ durante alguns anos.
17
Para um sentimento semelhante, ver Lima (2005: 68-69) sobre o “efeito poético” que lhe despertou
um mito Yudjá, a despeito de que para os próprios Yudjá, diz a autora, não poderia “haver beleza
quando não há alegria”.
18
É vendo esse força – uma força que no entanto não é estável – que Joana, uma amiga da família de
dona Heloísa, falou do marido “namorador” de uma de suas parentes: - “A mulher faz o homem. O
73
Porém, nem mesmo o caboclo conseguiria se manter nela por muito mais tempo.
Ele ainda tentou, vimos, voltar à superfície, mas outros tipos de seres já a
rondavam, e ele não mais conseguiu tomar à frente dos “espíritos dos crentes”, que
“ter força para receber seus santos”, também a força de dona Heloísa fica evidente
quanto chamava, lidava e negociava com seu Ogum, um ser perigoso de quem hoje
Encantamento e Luta
Boiadeiro zuela:
***
- “Estou feliz e não sei por que! Você sabia que quando a
pessoa olha assim é porque está interessado?”
***
Ê nego lindo,
Para de tá me olhando!
Se você não me conhece,
Pra que ficar me namorando?
***
***
***
***
Aê, pomba-gira,
Mulher de sete marido,
Dorme com sete na cama
75
Aê, pomba-gira,
Mulher de vinte e sete marido,
Dorme com vinte na cama,
E sete escondido.
***
espíritos, isto é, eu não poderia afirmar que os espíritos invertem, com irreverência,
uma mulher, mando pra ele [seu carnal] que eu pego junto.” Já os humanos, por
meio da ajuda dos espíritos, tentaram conseguir a pessoa que desejam, às vezes lhe
- “Lisa endoidou”, me contava sua amiga, “não queria mais sair de casa. Ia
76
pro trabalho, olhava pra toda aquela gente, achava todo mundo antipático, dava
vontade de ir embora, ela largava tudo e voltava pra casa. Chegando em casa, só se
vestia de vermelho e preto, se maquiava, botava brinco, ficava toda arrumada. Foi
uma padilha que ele mandou pra conseguir namorar com ela.”
- “Não! Eu já era endiabrada, mas Lisa não respondia! Ela diz que não
chegou a namorar com ele, e a gente perguntou a ela várias vezes. Só depois do
Já a Padilha de Carol, por quem um outro Exu declarava sua paixão, não
gostavam de ambos, do Exu e de seu carnal. Houve quem dissesse que a Gira fora
enviada, que não era uma das Giras de Carol, mas a Padilha, quando desceu, fez
Diferentemente do primeiro caso, em que se enviou uma padilha para seduzir Lisa,
que se viu perturbada por sua irradiação, a Padilha de Carol era mesmo dela e, se
havia sedução, esta era recíproca: ali habitavam dois Exus em dois humanos, os
quatro apaixonados.
variado. Com efeito, apesar de as zuelas das pomba-giras ecoarem seus inúmeros
maridos, “não são todas as giras que gostam de homem. Colodina, por exemplo,
não é muito de gostar de homem. Às vezes gosta de um homem e com ele fica. Tem
Sete-Saia de Taline, por exemplo, não gostava de Dandá, seu marido. Aos poucos, a
guia, que demorou para dizer seu nome em público, foi se afeiçoando ao marido de
sua carnal. Hoje, ela até mesmo ensaia alguns pés-de-dança, quando desce à noite
para fazer companhia ao casal que se julgava a sós. - “Fiz ele sonhar que a menina
tinha uma boceta enorme” – ela disse rindo uma risada discreta, pois, mesmo “do
divertir com Dandá, aproximando marido e mulher, ao mesmo tempo em que ela
antropólogos 19). Mas eles estão longe de serem incomuns, e tanto a sua recorrência
como a maneira como se dão indicam que haveria algo mais interessante a se dizer
do que simplesmente especular se são ou não motivados por interesses outros dos
apenas sugerida20. Uma sedução que, nos dois casos, pode se dar pela guerra, ou
19
Tomemos Hayes (2004: 286-292; 364-367), por exemplo. Por mais que se esforce para retirar os
espíritos do domínio das projeções psicológicas, e por mais que ela tente vislumbrar uma noção de
pessoa capaz de considerar, também na análise, a agência e a realidade dos espíritos, a autora
todavia não resiste a observar que o “idioma espiritual” – no caso, o casamento entre dois Exus (uma
Maria-Mulambo e um Tranca-Rua) – “pode ser empregado para expressar desejos que não poderiam
ser expressos sem sanção social” (idem: 424, grifo meu). Também Iriart (1998: 205-6, grifo meu),
apesar de fazer uma excelente etnografia da possessão feminina em Cachoeira-BA, traduz uma
acusação de feitiço (no caso, o envio de um Exu para que a enfeitiçada se visse desejando
sexualmente sua feiticeira) como a expressão, “através do idioma dos espíritos, do conflito que ela [a
enfeitiçada] vive em relação a seu desejo homossexual”. Este é um tipo de abordagem que afirma a
força humana apenas depois de uma dupla negação: vê-se, na ‘des-realização’ da força dos santos, a
condição do poder daqueles que de outra forma não o têm (porque se não fossem subjugadas pela
dominação masculina ou ‘societal’, as mulheres não precisariam do subterfúgio dos espíritos para
expressar seu querer). Nesta tese, espero já ter ficado claro, a abordagem é outra. Propôs-se desde o
início acompanhar os movimentos das forças humanas e espirituais que se disseminam ao longo dos
domínios onde passam a habitar, descrevendo as singularidades desses domínios, desses
movimentos e dessas forças. É por isso que, quando existirem suspeitas nativas de que uma pessoa
está fingindo o transe – as tão comuns acusações de “dar equê” –, tais suspeitas serão consideradas,
mas não se desprezará por isso que humanos – homens e mulheres – são “lugares” de um “encontro”
(Nathan, 2004: 51) com seres espirituais, que ora veem convergirem seus interesses, ora não. Aliás,
não seria preciso ressaltar que é justamente a força deste encontro que dá margem ao interesse de
falseá-lo.
20
Para situações mais evidentes de sedução entre espíritos e humanos, ver por exemplo a descrição
78
em meio à guerra; sendo então altiva, cheia de malícia, sagaz, feliz ou onerosa,
como vimos nos casos de Carol e Lisa. A palavra, nesse caso, é uma arma. Foi a ela
Primeiro, ela descobriu o nome da namorada do rapaz, depois, deu detalhes sobre
a vida da garota; por fim, o ameaçou: - “Você não largou dela, mas vou fazer pra
você largar”.
- “Não faça isso que eu te ponho de cabeça pra baixo num como com água
- “É ousado esse aí, sabe das coisas” – riu a Gira, com olhar safado, para
Esta mesma Gira um dia disse que sua palavra era um tiro. E foi justamente
este ogã, que, histrião, afirmou o mesmo: - “Levei fora ontem? Será? Deixa eu ver...
mulher, distraído em seus afazeres, sentindo o cheiro dela quando estão longe um
do outro, diz-se que ela lhe deu chá de calcinha e pode-se temer por seu juízo. Se
- “A mulher deu coisa pra ele, pro marido comer. Fundo de calcinha com
mulher.
de convites explícitos em Carvalho (1990: 20-21), ou beijo que Maria Padilha negou ao ogã (Cardoso,
2004: 133), e o beijo que Wafer (1991: 3-4) não negou à Pomba-Gira. E para a descrição de insinuações
e brincadeiras sexuais, ver Birman (1995: 103; 107-110) e Iriart (1998: 245; 255).
21
É interessante notar que a constelação de significados do verbo apaixonar inclui, na região,
também um sentido bastante diferente do usual. Às vezes ele é empregado para denotar uma tristeza
intensa – e não sexual –, como na frase: “quando meu filho morreu de um caroço maligno, a gente
ficou apaixonado...”.
79
- “Amarra! Lesa o juízo” – “seduz o anjo-de-guarda dele para ele ficar com
- “Meu avô tinha o livro de São... São Cipriano” – Roque me disse, sem
certeza.
- “Ele contou pra gente que uma mulher linda tinha esculhambado ele por
ele ser negro. Passou. Um dia ela chegou na sua porta dizendo que tava com corpo
ardendo, que era só com ele, coisa e tal. Isso porque ele rezou no livro. Ele
guardava o livro num baú, parece que não pode passar de geração em geração.
Logo depois que ele morreu, roubaram o livro junto com o três oitão. A gente acha
que, se não foi um tio nosso, foi um homem que ele criou.”
- “Meu avô não era feiticeiro” – refutou ele, ligeiramente encabulado – “ele
Quando se decide, em meio à guerra, lançar mão das armas da feitiçaria, tais
juntos, mas em alguns casos, como nos de feitiço por amarração, vêm a construir a
própria existência desse desejo. Tais armas fazem da ‘dominação’ um alvo a ser
enfraquecido pela ‘dominação’, ele é no entanto marcado por uma luta que, na
feitiçaria, se faz evidente. Ele é povoado por aquele que ele batalha para preencher,
Mano zuela:
Pé de lima, pé de limão,
O amor é meu,
Tá dizendo que não!
Tia: - “Se fosse pra eu dizer assim, ‘eu vou mudar de casa’, eu nunca mais
botava meus pés no candomblé. Não tenho mais vontade, não tinha mais vontade.
Assim, por visita, na casa de Inácio por exemplo, ele tocando, eu ir de visitante,
tudo bem. Sem compromisso. Mas aconteceu que eu surtei o dia inteiro aqui...
Quem sabe contar é ela. Eu deitei boa e no outro dia não fui eu que acordei. Passei
o dia inteiro aqui desacordada. O dia inteiro não, porque me levaram logo. Umas
nove horas, minha filha desconfiou, porque eu tava perguntando de quem era o
relógio...”
tava dormindo, a neta dela chamou por ela. Ela acordou assustada, ela não
acordou, entendeu? Ela surtou, quer dizer, ela foi por ir, mas não era ela.”
Sobrinha: - “Foi, foi lá, me pegou, me trouxe com as meninas pra cá, pra casa
Sobrinha: - “Não, não deu pra perceber, aquela bagaceira, não deu pra
81
perceber nada. Quando foi no outro dia, que minha tia teve lá em casa, umas nove
horas, minha tia entrou, olhou a bagaceira e falou: - ‘O que aconteceu?’ – eu olhei
pra cara da minha irmã, ela tava sentada: - ‘Minha tia, senhora veio aqui, me
pegou, eu e as meninas, e a senhora não lembra de nada?’ Ela disse: - ‘Não, pra
todo efeito – que hora é essa? –, eu acordei agora.’ Na hora que ela falou assim, me
deu um desespero, meu olho encheu de água. - ‘Meu Deus do céu, minha tia Lica
surtou, meu Jesus’. Minha tia de novo: - ‘Que hora é essa? Eu acordei agora. De
quem é esse relógio? Esse relógio não é meu.’ Ela tava com esse relógio aqui que tá
minha tia?’ - ‘Não, tomei café, acordei agora’. Ave Maria, Deus é mais, minha tia
não vai fazer mais nada dentro de casa, e eu vou me sentir culpada...”
Sobrinha: - “Ela não ia fazer nada dentro de casa porque ela ia dizer que
toda hora ela acordou. Pra ela, sempre era de manhã. Meu desespero era esse.”
Tia: - “Por alto, alguma coisa ficou, alguma passagem. Eu lembro na hora
que a gente chegou aqui, a menina dela mais nova deu uma crise, aí já não lembro
Sobrinha: - “Uma coisa assim estranha, que eu achei, mas na hora não caiu a
ficha, ela tava com um... A senhora subiu, a senhora botou alguma coisa na sua
Sobrinha: - (rindo) “E dentro da roupa! Quem lhe disse, minha tia, depois?”
Tia: - “Isadora.”
Sobrinha: - “Eu achei assim estranho, minha tia valente toda assim, esse lado
valentona, sabe? Mas a ficha não caiu que a senhora não tava na senhora. Botar um
facão desse tamanho por dentro de uma roupa e andar assim tão normal?”
Sobrinha: - “Acho que era uma saia mesmo, não lembro, eu só sei que a
Tia: - “Era de noite! Era umas duas horas da madrugada, não tinha ninguém
desconfiar. Mandaram chamar Dora, que é a outra irmã dela, Dora me levou pra
Sobrinha: - “Acho que ela acordava a cada dez minutos. Isso durou o dia
inteiro.”
chamaram o caboclo, não sei lá quem, que eu não sei quem é, e Josias disse que eu
Sobrinha: - “Ela pegava na minha mão: - ‘Eu tenho santo, fica assim não,
minha filha, pra todo efeito, eu acordei agora’. Repare: ela vivendo tudo e eu ter
que dizer: - ‘A senhora tava aqui, minha tia, e viu, minha tia!’”
Tia: - “E eu me gabando que eu tenho santo, uma coisa que eu nem gosto!”
Etnógrafa: - E lá em Josias, ele falou o que tinha acontecido com ela? Como é
que foi?
Sobrinha: - “Foi isso, a palavra que a gente dá: surtou. Ela tava dormindo e,
no susto, ela não acordou. Não sei explicar. O anjo-de-guarda deve ter se afastado,
Sobrinha: - “Ela falava que tinha santo, então era um santo que tava com ela,
mas o santo não se identificou. Ele podia falar assim: - ‘Eu sou [o Santo] que tô com
Sobrinha: - “Ah não, Josias deve saber, eu que não sei. Porque quem foi com
minha tia foi minha irmã. Lá, minha tia Lica fez um monte de coisa, deu uns pulo
lá, mas eu não fui, quem sabe é minha irmã, minha tia não sabe também. Essas
coisas de candomblé são complicadas. Complicado. [silêncio] Da minha tia Lica, foi
Sobrinha: - “Talvez se fosse minha tia mesmo, se não tivesse sido uma outra
pessoa, poderia ser até que acontecesse uma coisa pior, não sei, eu gostaria de
pergunto:
84
- Dona Lica, o que Josias passou pra senhora melhorar? Senhora melhorou
Tia: - “Se eu tomei banho, foi lá. Ele fez lá alguma coisa, ele chamou os meus
santos, diz que eles desceram. Aí ele deixou alguém deles cuidando de mim e falou
pra Dora que eu ia acordando aos poucos. De tarde, eu acordei, minha neta me
perguntei: - ‘Ê mãe, foi verdade?’ - ‘Foi, minha tia, não foi nada de sonho não. Foi
verdade, tudo aconteceu.’ Eu ainda não tinha certeza! Tomei café, tomei banho,
que eram as coisas que dizem que é santo, caboclo, sei lá o que é. Aí eu disse à
minha sobrinha que eu ia a Bom Jardim comprar roupa do santo, que é pra eles
deixarem de tá me atentando (eles não gostam que eu fale assim, mas eu falo).
Ainda chamei minha sobrinha, irmã dela: - ‘Bora lá comigo, que é pra eu não surtar
novamente em Bom Jardim sozinha’. Fui com ela, quando nós viemos de lá, eu
parei na casa de Josias e ele me disse que eu tinha que fazer um trabalho. Mas acho
que porque eu já tinha um trabalho [anterior], eu não tomei banho. Foi uma coisa
que me pegou de vez, então eu não tomei banho. Também ninguém me disse o que
foi, todo mundo sabia, mas ninguém me disse. Josias teve aqui no domingo e falou
pra minha menina, mas ninguém me falou o que era que eu tinha. Quando foi na
quarta-feira, eu acordei sabendo. Eu dormi, acordei e descobri que foi uma mulher
Sobrinha: - “Quando foi pro trabalho, a senhora falou assim: - ‘Você não
quer me dizer o que aconteceu comigo, mas eu já sei que foi Rosélia que tá fazendo
coisa pra mim.’ Porque aquela mulher tava fazendo coisa pra minha tia Lica surtar,
85
pra ficar louca. No caso, só aproximou..., ela já tava fazendo aos poucos, mas
Tia: - “Mas acho que como eu tenho alguma coisa [santo, caboclo], acho que
Sobrinha: - “Ela ficou estranha. Ela ficava tipo que tava viajando. Viajando é
mais na gíria. Ficava fora do ar, parada. E as mãos?! Não é, minha tia?”
Tia: - “Não sei, não lembro de nada do que aconteceu. Eu só sei que
aconteceu isso de sexta pra sábado, me levaram pra lá sábado; domingo, Josias veio
cá pra saber como foi que eu tava. Eu já tinha acordado, tava normal, fiquei
conversando com ele sem saber o porquê. Segunda fui pra Bom Jardim, terça-feira,
a minha menina perguntou assim: - ‘Tu dormiu bem, mãe?’ Eu falei: - ‘Não!’ Nessa
hora eu rejeitei, porque na verdade eu tinha sonhado com meus caboclos a noite
inteira. Eu sonhava com todos os caboclos. Sonhava com Sultão, que diz que é
meus caboclos. Sonhava com meu pai Ogum, que diz que eu sou de Ogum.
Sonhava com Erê, sonhava com tudo. As meninas falavam assim: - ‘Mas Josias
deixou eles pra cuidar de tu.’ Eu comecei a desconfiar: por que meus caboclos
Sobrinha: - “Os caboclos cuidando de minha tia pra minha tia não surtar.
Sempre tem alguma coisa, né, minha tia Lica? Sempre por trás tem alguém fazendo
alguma coisa. Nunca é à toa. Nunca você tá no caso assim por acaso.”
que foi que eu tive: foi a mulher de Rian que queria me matar, não foi?’ Josias: -
‘Não sei de nada!’ Ele nunca me disse! Josias: - ‘Vou fazer seu trabalho amanhã.’
Tia: - “Ahum.”
Etnógrafa: - De falar?
Tia: - “Eu não falo com ela porque ela sabe que... Ela... Ela engravidou do
meu ex quando eu tava com ele. Foi há sete anos atrás que ela veio com ele, daí ela
Tia: - “E ela não se conforma. Ela não se conforma que ele seja meu amigo,
que ele venha aqui, que a gente converse, que ele construísse a pousada. Diz que
Tia: - “Acho que ela lutou assim: - ‘Ele não termina a pousada e ela fica de
mal com ele...’ E como ela sabe que eu não fiquei, aí ela me preparou... E mandou.”
Sobrinha: - “A filha dela se revoltou com ele. Ele não termina a pousada,
então todos se revoltaram contra ele. O que minha tia Lica passou, tem passado –
né, minha tia? – com minha prima, filha de minha tia, revoltada.”
Tia: - “Porque... Sim, porque ela preparou assim..., a pousada, ele não fez
diretamente pra mim, a minha menina pagou pra ele consertar a pousada, que ele é
Sobrinha: - “Só que, no caso, fazendo a pousada, ele tá perto de minha tia.”
Tia: - “Ele vinha aqui todos os dias trabalhar, o dia inteiro aqui comigo. Ele
almoçava aqui. Chegava aqui na pousada às vezes dez, onze horas, porque ele
Tia: - “Mas ele não vem mais trabalhar, mas quando ele quer vir dormir, ele
vem. Aí pronto, ela viu que não tinha jeito, e com certeza ela lutou de um jeito, não
conseguiu tirar, aí ela quis me endoidar. Depois de tudo, quando eu descobri que
foi ela, num dia de terça-feira, não foi, mãe? Ou foi quarta? Foi terça. Aí liguei pra
Dora e disse: - ‘Ê Dora, vem cá que eu vou fazer minhas coisas hoje ou amanhã’.
Ainda disse assim: - ‘Vou fazer só na segunda que vem’. Aí o olho dela encheu de
Sobrinha: - “Surtar de vez, e aí pra pegar dá trabalho. Tinha que ser rápido,
mas ela não podia saber que tinha essa coisa tudo..., a gente não queria passar pra
Tia: - “Minha filha trabalha o dia inteiro e também a noite. Eu falei pra ela: -
‘Ê mãe, eu vou fazer meu trabalho porque você sai e eu fico com medo’. As vezes
que eu ficava aqui, eu só dormia depois que ela chegava, porque eu mesmo tinha
medo de mim. Antes não, eu dormia despreocupada. Depois que eu descobri que
era coisa que ela tava fazendo, eu fiquei com medo. E se eu surtar aqui com meus
netos pequenos, meus netos adolescentes, sozinha? Mas aí fiz o trabalho e, graças a
Tia: - “Tô, Paula, tô mais tranquila. Ele tá mais voltando pra mim. Ele tá até
ficaram separados?
Tia: - “A gente nunca separou. Pra falar a verdade, a gente nunca separou.
Tia: - “Paula, a gente nunca morou junto. Sempre assim, ele lá e eu aqui. Mas
Sobrinha: - “Lá e aqui não, porque ela morava perto dele. Só não morava
Tia: - “Éeee!”
Tia: - “Porque eu não tive boa experiência com marido, então quando eu
separei, eu disse que não queria mais homem dentro de casa. Aí fiquei com ele
Jacarezinho. Ela não é daqui, e eu aceitei porque ela não é daqui, ela não sabia de
nada. E minha sobrinha também, essa daqui, ela sabia de tudo, ela sempre me
dizia: - ‘Ah, minha tia, se ele não ficar com ela, ele vai pegar outra, que a senhora
sabe que ele não fica com uma mulher só. E ela, a senhora não conhece.’ E eu
concordei, Paula, porque, se ela não me conhecia, ele não ia dizer a ela que vivia
comigo, né? Então, pra todos os efeito, ela pegou solteiro. Mas ela é miseravona.”
Sobrinha: - “Depois que eu conheci a pessoa, tu não dá nada por ela, parece
uma songa (risos). Ela anda de cabeça baixa, toda assim. Que seria capaz de fazer
alguma coisa? Não, não é capaz de fazer. - ‘Não, minha tia, não foi ela não’. Minha
tia: - ‘Hum!’ Minha tia tem um santo forte, né, [por isso percebeu]. [Mas eu:]-
Tia: - “Ela trabalhou bonitinho. Agora ela deve tá injuriada porque ela não
Sobrinha: - “Ela fazendo a coisinha dela, e eu sempre achando que não. E ela
só tirando ele aos poucos, afastando, se afastando aos poucos, que a vida da minha
tia virou perturbada. Ave Maria, essa pousada, uma confusão danada com essa
pousada, minha prima revoltada porque ele não terminava a pousada, aquela
Tia: - “Depois que minha menina foi também pra casa de Josias, que
primeiro foi ela que foi, acho que – acho não – com certeza deram algum toque pra
ela e ela deixou de ficar contra mim e de xingar ele. Mas ele não entra mais pela
frente, ele só entra por aqui por trás, porque minha filha não fala com ele. E era
todo mundo amigo. Só minha outra filha, que mora fora, que não tem nada contra
ele.”
89
Tia: - “Eu posso sair do candomblé? Não posso, porque ela não mora longe.”
Sobrinha: - “E o homem, que minha tia ainda não largou! (risos). Então
minha tia tá em perigo constante. Eu digo assim, no caso, eu digo assim não, essa é
a realidade, ela vai lutar e minha tia Lica vai lutar. Quem tiver unha maior, vai
Tia: - “Eu só não quero é matar ela, fazer ela endoidar, como ela fez comigo.
Agora, em outro sentido, ela me vence ou eu venço ela. Ou ele fica comigo, ou com
ela.”
Sobrinha: - “Não, minha tia Lica não par... Ela vai entender que a senhora se
Tia: - “Só não quero ir pra dizer: - ‘Josias, eu quero que você faça isso e isso
pra ela’. Porque essa responsabilidade eu deixei pra meus caboclos mesmo fazer.”
Tia: - “Eu deixei pra eles fazer. E os de Josias! Não peço, não vou gastar
Tia: - “Não. Eu gastei pra minha saúde, agora pra fazer o mal a ela, não. Eu
deixo por conta deles – eu mesma não conheço, nunca vi! Eu peço a Deus que eu
quero vingança. Com eles. Agora, eu gastar? Nem tenho, Paula, dou um duro
Sobrinha: - “Aí quando alguma coisa tá errada na vida da gente, tipo esse
lado espir... Que esse lado, acho que é espiritual mesmo, né?”
Tia: - “É.”
Sobrinha: - “Tudo da tua vida anda errado. Tua vida sentimental, teu
trabalho, tava tudo... Não foi, minha tia Lica? Minha vida no meu trabalho tava um
inferno. Eu tenho quatorze anos de trabalho, quatorze anos não, doze. Eu tava à
beira do desemprego, minha tia Lica que sabe. Devido a isso tudo. Doente, no
trabalho.”
Etnógrafa: - Porque você, doente, não podia trabalhar direito? Nem podia ir?
Sobrinha: - “Não, minha filha! Confusão. Uma coisa tão... Não tem nem
como explicar. Eu te disse que, no meu caso, ela fez pra me matar, não foi? Mas não
endoidar. Ela pegou meu nome, alguma coisa minha e entregou ao Exu, entregou
Tia: - “Aí pronto, desandou a minha vida toda. Eu não recebo dinheiro, eu
tava quase louca, eu não acertava mais meu trabalho. Nunca, Paula, eu tenho mais
de 20 anos de trabalho, nunca botei nada a perder. Ah!, começou a não dar certo.”
Não bole só tua vida, quer dizer, no meu caso, que foi feito pra eu morrer, eu não
tava só doente e o resto tava tudo bem. Não! Era o caso até de ficar louca. Quando
você faz o trabalho, sua vida volta no eixo, tudo volta a se encaixar. Meu Deus do
Tia: - “Você procura fazer alguma coisa, você não recebe, você precisando de
dinheiro. ‘Eu vou vender esse copo’. Você vende, tem quem venha comprar, agora
pra pagar.”
Sobrinha: - “É pra você entender mais ou menos uma coisa, pra saber
separar quando é essa coisa espiritual do candomblé, que é feito, sua vida fica
assim. Se fosse coisa de médico, eu ia pro médico e me cuidava, e minha vida tava
toda normal, não tava desandada. Pra você ter mais ou menos uma noção.”
Tia: - “Quando eu tive minha doença [grave], que eu te falei, eu fiz minha
cirurgia, deu tudo certo. Ela não tinha metido o cabo no meu caminho ainda
(risos)”.
Mas não é. Lá no candomblé, ele fala: - ‘É pros homens dos anéis.’ O santo fala pra
você. Aí você já sabe que seu caso não é lá que vai resolver. É no médico.”
Gentil, guerreiro,
Vá buscar a sua flecha!
Eu não, que eu não vou lá,
Se eu for lá, Ogum me pega!
Procurei Lica para entrevistá-la sobre sua relação com o candomblé e foi por
isso que ela deu início à narração de sua história dizendo que, se pudesse, não
temas instigantes que, mesmo trágicos, despertaram não só o meu interesse, como
também o de sua sobrinha. Eu também, assim como ela, procurava saber mais
sobre candomblé.
Por isso, em vez de contar eu mesma o caso de Lica, julguei de interesse que
ele fosse apresentado através da interação entre nós três, optando então por manter
páginas necessárias para o desenrolar da história. Com isso, quis marcar o tempo
entrando quase como uma “camada” sobreposta à interação de Lica com seus
pois mostra as questões como questões, e não como afirmações já estáveis (“A
senhora botou alguma coisa na sua roupa, a senhora sabe disso?”; “Que esse lado,
coletivo (seja entre a família consanguínea, seja entre a família de santo, ou entre
amigos e vizinhos bem próximos)23. Não é apenas Lica que conta seu caso. É
verdade que ela se lembra de pouca coisa, daí a necessidade que outros estivessem
ocorridos no dia em que esteve desacordada, pois eles lhes foram contados e
recontados à exaustão, ela já os havia reconstituído. Mas Lica optou por chamar
sua sobrinha, uma amiga – que fala pouco neste trecho – e uma segunda sobrinha,
que finalmente não pôde ir, mas marcava sua presença por meio de telefonemas
22
“Focalizar [apenas] o conteúdo da história seria perder a força poética do próprio processo em que
tal história é tecida – uma experiência narrativa que é ela própria constitutiva do poder dos exus”
(Cardoso, 2004: 106). Isso, eu acrescentaria, tanto quando são os exus que narram suas histórias como
quando são os humanos.
23
Coletivo no sentido de envolver mais de uma pessoa (ou ser) e não, evidentemente, no sentido de
público.
24
Ver Douglas (1970: 25) para uma crítica da simplificação excessiva da ideia, presente nos estudos
etnográficos sobre bruxaria subsequentes àquele de Evans-Pritchard, de que as acusações de
feitiçaria resultariam em um equilíbrio comunitário.
93
indivíduo cujas fronteiras se encerram em seu próprio corpo. O alvo do feitiço não
daqueles que ela mais precisa, de quem mais gosta ou com quem mais convive. O
amante desaparece, a filha não lhe dirige a palavra, ou só o faz para brigar, seus
definitivo porque ela já era povoada (ou melhor, seus povoamentos, mesmo
Lica temia o afastamento definitivo de seus caboclos, quando então o espaço estaria
livre para o domínio dos exus enviados. Daí a urgência do trabalho de limpeza, que
Lica “viu o resultado” de sua “obrigação” que, junto com a passagem de seus
O surto de Lica abriu várias visões. Quem acordou? Penso que os caboclos
do candomblé (e eram eles que estranhavam o relógio, que não lhes pertencia). Mas
também acordou a própria Lica, quando dizia à sobrinha “eu tenho santo, não se
dias depois, acordou novamente, agora ciente de que se tratava de um feitiço e não
Marujo zuela:
25
Essa dinâmica entre acordar e dormir, entre enxergar e estar cega é também, me parece, a dinâmica
do conhecimento no candomblé, um tema que mereceria maior atenção, mas que infelizmente excede
o objetivo deste trabalho.
94
dela. Lica e Rian estavam juntos há algum tempo quando ele viajou para
namorada. Ela o julgava solteiro, então quando Rian contou a Lica sobre sua
namorada, Lica não dirigiu sua raiva à mulher, mas a Rian, pois era ele quem se
sabia compromissado. Como a mulher morava fora, Lica não deu grande
importância aos pulos do marido. Anos mais tarde, a moça engravidou, e Lica,
comovida pelo surgimento de uma criança, permitiu que Rian trouxesse ambos,
mãe e filho, para morar com ele. - “Aí foi todo seu erro” – o Exu a advertiu.
- “Mas como eu ia deixar o filho e a mãe sozinhos? Não tenho natureza pra
isso!” – replicou Lica, concordando porém que ela não deveria ter assentido.
Lica então não imaginava o quanto a mulher poderia ser má para ela.
falecer. O momento crítico, o momento que provocou o ataque segundo Lica e sua
sobrinha, foi a reforma da pousada. Ali, todos estavam juntos: Rian e Lica, com as
compunham. Com o trabalho de limpeza, ele volta à casa dela, mas não como
antes. Ele evita a filha, que não lhe dirige a palavra, e por isso Lica ainda se
perguntaria se desejava mesmo ficar com ele, pois sem todos juntos, sem todos se
povoando, já não era mais a mesma coisa. Contudo, antes de duvidar de seu desejo,
Durante muito tempo, pelo menos para Lica, existira lugar para as duas
mulheres, mas a esposa de Rian não mais aceitou – ou nunca antes aceitara, neste
95
caso, não houve como saber –, então Lica passou a alvejar o único lugar disponível.
Povoamento
Certo dia, Ângela me falou de José, o marido de Jandira, cujo Erê eu acabara
de ver em seu terreiro. Minutos depois, ainda me contando sobre José, disse que a
mulher dele nascera em Samburá. Como eu sabia que Jandira não era de Samburá,
Xodó, ela me disse, é um dos termos para amante na região. Tal como Lica é
xodó de Rian, Jandira também o é de José. Mas ambas são – ou podem também ser
“perigo constante”, como disse a sobrinha de Lica, pois que frequentemente alvo e
fonte de atos feiticeiros (algo que não se restringe ao interior da Bahia – ver por
das contradições e indefinições específicas de cada sistema social (e, nesta região da
se a feitiçaria em seu caráter direto, sendo ela própria uma ação, e mais
propriamente, uma entre outras ações possíveis. Como dizem os Leacock (1972:
tenta se vingar de uma injúria prévia”, mas isso não significa que a feitiçaria se
26
Sobre a abordagem da bruxaria como reflexo de estruturas, conflitos ou anomias sociais, ver
Douglas (1970: 25), Nadel (1952: 28 apud Middleton & Winter, 1963: 6), Trindade (1985: 90 apud
Cardoso, 2004: 147-9), Maggie (2001: 81), entre tantos outros. Para uma crítica a esta abordagem, ver
Favret-Saada (1977, 1989, 1990) que, ao estudar a feitiçaria no interior francês, se recusou em
participar de uma partilha cognitiva em que o parentesco forneceria a realidade de que os atos
mágicos careceriam.
96
comandada contra um cônjuge infiel, por exemplo, ou contra seu amante, é vista
trabalho. Aliás, eu nem mesmo poderia, pois não dirigi minha experiência de
campo em torno dessas questões. Mas, conquanto ele foi um tema importante para
torno do tema e, com isso, deixar evidente que a luta feiticeira é uma das ações
parentesco baiano.
Nesta tese, a intenção não poderia ser mais diferente. Quis que a própria tese
se deixasse afetar pelas cinéticas singulares dos atos feiticeiros e, para tanto, se
entanto abandonar seu sentido ótico, afinal, a ideia de que algo cá está também lá
atos. Tal conceito estará presente de forma indireta ao longo deste item, quando
Exus zuelam:
Juraram de me matar
na porta do cabaré.
Eu ando é de noite a dia,
não mata por que não quer.
E as pessoas respondem:
Aê Tranca-Rua,
marido de sete mulher.
candomblé, mas nunca tinha trocado senão um boa noite, dirigiu-me a palavra
- Quantas?
também tivera duas mulheres, aliás, quase todos os homens de sua família paterna
também, ele disse. Talvez porque, “no tempo dos antigos, a família não queria
deixar menina solteira dentro de casa. Hoje não, mulher tem mais governo”.
Damião ainda revelou que o pai de seu Manuel Vicente, o senhor que
acompanhava nossa conversa, também tinha duas mulheres. - “Mas as duas eram
brigadas, cada uma morava na sua casa, e elas não se falavam”, detalhou seu
Manuel.
- Hoje tem homem que tem duas, mas escondido – eu disse. Já vi um caso de
- “Você tem que ter porque, se não, você leva gaia”, argumentou Damião.
“Eu era da casa pro trabalho, do trabalho pra casa, vou dizer, não tenho vergonha:
tomei gaia.”
- “Os homens que não têm outra são corno: veja o irmão de Celeste, Charles,
a mulher dele é corneteira” – disse agora Timóteo, que concordaria com Damião se
conversasse com ele sobre a ‘necessidade’ de se ter uma amante. - “As mulheres
dão corno”, Timóteo prosseguiu, “mas pra elas, a feiura pega: - ‘Aquela mulher,
depois prosseguiu: - “Mas eu sei que um dia Lindalva [a amante] vai me trair. Olhe
a idade dela! Ela não vai ficar só comigo quando eu ficar velho.”
Amigo: - “Se Lindalva conheceu ele assim! Ele já era casado antes!”
Timóteo: - “Mas elas têm. Se sabe de alguma outra que não Ariane [a
esposa], fica enciumada... Ter duas mulheres é bom, quando uma se zanga, vou pra
- “Ela sabe. Sabe e faz de conta que não vê, que não sabe!”
Algumas semanas depois, eu brinquei dizendo a Timóteo que ele tinha duas
falavam todos os dias, ela lhe dava satisfação, ligando para contar o que estava
fazendo e o que ia fazer, e ele, por sua vez, lhe pagava despesas e lhe oferecia
mimos diversos. E isso já durava vários anos. Mas Timóteo negou: sua esposa era
homens que optam por ter mais de um relacionamento amoroso ao mesmo tempo.
27
Timóteo é chamado de “namorador” por aqueles que o conhecem e sabem de sua disposição para
ter mais de uma mulher ao mesmo tempo (assim como o são os outros tantos homens que, na região,
têm “namoros” fora do casamento).
99
Mas isso pode parecer apenas uma justificativa, ou seja, uma mentira para encobrir
o fato de que o fazem por gosto. E, de fato, às vezes esse enunciado nada mais é do
feminino: - “Olha como mulher é...”; ou então pela reflexão mais direta: - “Mulher é
muito traiçoeira, homem diz a que veio, ele sempre quer e diz que quer pegar, já
- “A mãe do meu primeiro homem não gostava de mim porque ele era
branco e eu, mulata”, me disse Mara. “A gente não ficou junto por isso. E depois,
eu casei com outro branco. Minha linha não se dá com moreno, só com branco, é
linha de santos. O primeiro era professor, me ensinou a ler, era uns dez anos mais
velho. Mas depois deu pra beber, quando chegava em casa, acabava com a casa,
com a esposa, com a mãe. A mulher dele fez coisa pra ficar com ele! Eu via que
tinha coisa errada, mas não ia dizer. Logo eu que já fui namorada dele, podiam
pensar que eu queria alguma coisa a mais. Um dia, bêbado, ele juntou as pessoas
do bar e disse: - ‘Essa aí é a mulher que eu amo, a que eu estou em casa, eu não
amo.’ Mas eu não ia ficar com ele. Ele casado no civil, eu ia ser amante dele? Fique
aí...”
Meiruza, por sua vez, acabou por aceitar ser a “segunda” daquele que um
dia foi a “primeira”. Ela nem sabe como chegou à casa de Nildo, seu então pai-de-
100
santo, no dia em que seu marido e ela terminaram o casamento de quase três
- “Você fica com ele ainda? Tem que se bater na cama, não fora!” – disse um
- “Fico com ele, gosto, foi meu primeiro namorado, meu primeiro marido, é
pai dos meus filhos. A gente se separou por causa daquela mulher que disse que
vai quebrar minha pata, mas ele me falou que passa mais tempo comigo do que
a.
- “Ele me perguntou: - ‘Você fez macumba pra mim?’ Não fiz! Quem faz
macumba veve cortado e eu não tenho nada. A mulher dele diz que eu faço
mandinga pra ela, que vai quebrar minha pata... Antes eu era a primeira, agora eu
sou a última.”
quintal dela.”
Meiruza: - “Eu não passo pela casa dela. Ela [a amiga] pode jogar?”
Ogã visitante: - “Isso tem lugar e hora certos pra fazer, você sabe, pode
voltar pra você. Então, vai fazer? Faça direito. Você sabe o que é azougue?”
Meiruza: - “É carne?”
Exu: - “É um negócio que vende de um. Faça [tal] hora e não faça em casa.
Ogã visitante: - “Mas o banheiro é sua casa, fica tudo pra você!”
Já Filó, como Meiruza, reclamava das amantes de Brás, seu marido, das quais sabia
- “A irmã de uma delas procurou por Brás aqui em casa: - ‘Cadê Brás,
marido de minha irmã?’ Veja o descaramento: ela veio cobrar o dinheiro que Brás
lhe devia na minha própria casa! Eu chamei Brás e fiz ela repetir na frente dele. Ele
desconversou, fingiu que não ouviu. Eu só observei. A outra ligava pra cá pedindo
merenda. Brás dizia: - ‘Você tá pedindo demais! Peça a sua mãe aí do lado.’”
Filó convivia com uma situação da qual estava longe de gostar e, como
família, seja a de seus filhos, a de seus pais ou a de seu marido. A filha de uma
- “A de Taquara era casada, contei pro marido dela, disse tudo a ele na cara
dela. Fui reclamar com meu pai, só eu falando, meus irmãos não disseram nada,
ficaram mudos. Quase rumei uma garrafa na cabeça dele, minha mãe que me
parou. Ele não é bom pra mãinha, de jeito nenhum, e eu não consigo aceitar.”
Anos mais tarde, ela própria foi traída. Sua avó a aconselhava: - “Lute por
ele”, mas ela também não aceitou. Deixou o marido, e até então não mais se
reconciliaram28.
28
Faz-se necessário dizer que eu não disponho de tantas elaborações nativas sobre a traição feminina,
pois, quando trai, uma mulher geralmente procura esconder com bastante cuidado seus namoros
fora do casamento. Porém, a traição feminina está longe de ser considerada inexistente ou mesmo
rara. Ao contrário, a assunção é de que a mulher também trai, ainda que o homem seja mais prolífico
nesse quesito.
102
O marido que trai muitas vezes fica até tarde da noite na casa da amante,
uma das principais desculpas dadas à esposa. A amante muitas vezes nega sua
relação amorosa, dizendo que ele é somente o pai de seus filhos, um primo de
vezes, porém, ela o chama de marido, seja porque ele vem de longe, e a distância
permite que ele se apresente solteiro aos olhos dos vizinhos, seja porque todos
sabem que ela é “esposa de um homem casado”. Ele frequentemente contribui para
as despesas de sua amante – que pode ou não ter filhos com ele –, e às vezes, mas
de sua esposa e filhos. A esposa, por sua vez, fiscaliza as ações do marido, muitas
temporariamente, mas às vezes não consegue nada além de brigas e mais brigas
dentro de casa.
A amante, um dia, pode arranjar outro homem, quando se torna a mulher de
um marido que agora mora com ela. Seu então marido pode vir a registrar o filho
que ele já encontrou quando chegou em sua casa. Seu antigo amante talvez suma,
ciúma dela, farejando uma traição. Por não ter mais sossego, ela, irritada, resolve se
separar. Seu ex-marido tenta durante algum tempo ter a companheira de volta, ou
então, apenas por “pirraça”, se esforça para lhe provocar ciúmes ou problemas
variados. Mas eis que seu antigo amante também está separado. Eles se encontram
marido e mulher.
A história acima não envolveu apenas três casais. Ela foi na verdade
103
composta por eventos vividos por muitos outros casais que, no entanto, foram
quis criar uma sensação de movimento que senti durante meu trabalho de campo,
masculina ser relativamente comum – arriscaria a dizer até mesmo natural –, não
estamos diante de mulheres que, uma vez traídas, têm na luta para manter ou
destes arranjos deve-se à falta de uma base familiar consistente (Frazier, 1942: 470-
478 apud Segato, 2000: 64), para outros, ela se originaria de dificuldades econômicas
(Smith, 1956 e Clarke, 1957 apud Segato, 2000[1986]: 64), históricas (King, 1945 apud
Segato, 2000: 64) ou demográficas (Otterbein, 1965 apud Segato, 2000: 64). E, numa
poligínica africana (Herskovits, 1966: 58, apud Segato, 2000: 64), ou então uma
posta na família nuclear, como ocorre nas classes médias, mas sim na solidariedade
entre mãe e filho” (Smith, 1970: 67 apud Segato, 2000: 65). Tal ênfase, a
Caribe, e de “família das classes populares”, nos estudos feitos no Brasil (Marcelin,
1996: 12-13 28). Dada sua variabilidade, os homens ocupariam uma zona instável
104
desse modelo familiar, cujo bloco sólido, menos volátil, se comporia da mãe e seus
filhos.
de suas áreas desfocadas seria empobrecedora, para dizer o mínimo. Nesta tese, ao
Por exemplo, se para a mãe de Karine, seu ex-marido não presta, para Karine, ao
contrário, ele é o pai com quem ela convive, com quem vai à igreja, com quem
conversa e a quem pede ajuda. O ex-marido da mãe de Karine, que a criou durante
alguns anos, e com quem Karine não partilha o sangue que lhe daria o parentesco
biológico, é no entanto “o mesmo que pai” para ela. Joelson, por sua vez, foi criado
pelo avô materno. É ao avô que ele e seus irmãos pedem a bênção, chamando-o de
“meu pai”. Mas Joelson também chama Vitão de pai, um vizinho de sua família
com quem sua mãe há muito namorou, sem ter se casado. Vitão é pai de muitos
filhos, mas criou poucos deles. Durante dois anos, nunca houve motivo para eu
achar que Joelson não era de fato filho de Vitão, pois que chamava de “minha
irmã” e “meu irmão” a todos os filhos conhecidos de seu pai. Mas, um dia,
conversando à toa, a mãe de Joelson me contou que o filho não conhecia o pai, ela
própria nunca mais o tinha visto. - “Foi gaiatice de Vitão que, depois de Joelson já
crescido, resolveu chamar Joelson de filho. Nunca ajudou com nada, só chama de
filho”, ela explicou. Há portanto três pais que rondam a consideração de Joelson: o
avô, o vizinho e o pai carnal, de quem ele nunca falara comigo (e de quem também
provavelmente terá mais de um pai. Quando o garoto nasceu, Joelson já não estava
mais com Crislaine, a mãe do garoto, mas assim que soube foi visitá-lo:
aqui?’ Nem dei ligança, fui logo entrando, Crislaine me xingando: - ‘Vagabundo,
Peguei no colo: - ‘Quando fizer dois anos, vou carregar!’ Crislaine gritou: - ‘Vai
um quilo e setecentos.”
- “O médico errou.”
- “O nariz parece, e o olho também. O cabelo não puxou por mim, que é
liso.”
- E a cor?
- “É moreno que nem o pai. Moreno bem moreno, que eu não gosto desse
negócio de branco!” – disse Joelson, como de costume fazendo troça da minha cor,
que seria resultado, segundo ele, de eu não usar corante (colorau ou urucum) em
minha comida.
A mãe de Joelson então gritou irritada, ao fundo: - “O pai biológico tem que
Meses mais tarde, Joelson não mais saberia se o moleque era seu filho ou do
pai que já o chamava de filho, pois a mãe oscilava entre as duas paternidades, a de
seu ex-namorado e a de seu atual marido. E ela não declarava a intenção, pelo
menos por enquanto, de requisitar o teste de DNA, algo cada vez mais recorrente
na região. Ao que tudo indica, ela optará que seu atual marido registre a criança,
algo não raro entre mulheres cuja gravidez se dá entre o fim de uma relação e o
início de outra.
106
Juliano, assim como Joelson, também possui três pais. O primeiro é ex-
marido de sua mãe, o pai que ele adora e que o adotou, preenchendo o espaço
antes vazio em sua certidão de nascimento. O segundo é seu pai carnal, que ele não
conhece, mas sabe quem é. E o terceiro é seu avô, na casa de quem Juliano mora e a
quem, desde que aprendeu a falar, chama de painho. A história da mãe de Juliano
também não é diferente: o avô de Juliano, seu painho querido, é pai de criação de
sua mãe. Só há pouco tempo, já depois de bem mais velha, ela se aproximou de seu
de sua mãe. Pai que ele relutou, durante algum tempo, em chamar de avô.
poderia supor, não é raro uma pessoa chamar a mais de uma mulher de mãe.
Jurema me contou que Boca um dia almoçou em sua casa. Outro dia jantou e no dia
seguinte dormiu. Até que, anos depois, ele foi tomado por ela como filho, sem que
houvesse uma conversa formal com a mãe biológica do garoto. Assim também
aconteceu com Aninha e Batão, hoje já criados, que tratam Jurema como mãe,
Com Gil se deu algo parecido. Depois de bastante tempo sem vê-lo, eu quase
o tomei por outro. Eu sabia que ele não era filho de Do Carmo, a quem, entretanto,
ele chamava de mãinha. Por isso julguei que ele não era ele. - “Mas ele foi criado
por ela”, me disse um amigo em comum, “no sentido de Do Carmo não lhe negar
combinações entre pais, mães e filhos, e nem tampouco as questões que, com
observe-se, que às vezes são e as vezes não são atualizadas. Joelson, por exemplo,
brigou com seu avô, o pai que o criou. Juliano, por sua vez, ainda é próximo de
seus dois pais (de seu pai de criação, que não é mais marido de sua mãe, e de seu
avô, que é pai de criação de sua mãe). Mas seu pai biológico, colocado em segundo
plano, não foi por isso anulado. Como aconteceu com sua mãe, Juliano parece
disposto a um dia se reaproximar do pai que hoje em dia ele mal reconhece. Claro,
essas reaproximações nem sempre são bem sucedidas. Foi o que aconteceu com
- “Minha mãe morava numa roça aqui perto. Passava sempre um moço
bonito, pra não dizer o contrário. Ela se apaixonou, e ele trouxe minha mãe pra
cidade. Um dia, ele endoidou, falou que ia matar as três. Minha mãe saiu na
carreira, uma filha ainda bebê no braço, a outra puxada pela asa. Meu pai deu três
talhos na porta, uma para cada uma de nós – até hoje estão lá –, depois evaporou e
virou breu. Ele era de Samburá [uma cidade vizinha]. Quando eu tava com quatro
anos, me disseram: - ‘Esse aí é seu pai!’ Eu fiquei doida atrás dele, mas ele disse: -
‘Você é muito preta!’ Eu puxei à minha mãe e minha irmã puxou a ele. Quando eu
já tava velha, uma tia minha ficou atrás de mim, ela era a cara da minha irmã, era
minha tia mesmo. Minha mãe não queria que eu encontrasse com ela porque minha
irmã caiu doente devido aos abraços dela, então ficou com medo que isso
acontecesse comigo também. Veio em casa procurando por mim, pela esposa de
Gilmar, que mora de junto do mercado velho, filha de Zé Maria. Eu passei a língua
das meninas pra dizer que eu não tava, mas ela conseguiu me ver e disse: - ‘Eu não
mordo! Seu pai não é puro, ele é remediado, procure por ele!’ Mas não me enche os
olhos. Se ele quiser me dar, se for da vontade dele, muito bem, mas pra eu ir atrás?
Não quero. Estou aqui, não morri, minha mãe e meu avô me criaram.”
§
108
qual os laços são possíveis somente, e somente se, eles transitam por um lugar
residência que reúne a família, cujo vínculo não é determinado nem pela aliança
nem pela filiação. Tal lugar é também a mãe. Sim, diz o autor, a mãe é ali
Penso, porém, que a interessante ideia de que a mãe é um lugar possa ser
estendida também às pessoas de modo geral, sejam mães, pais, filhos, filhas,
e exus de sua paixão, a fim de que, seduzidos, eles facilitem sua entrada no
território daquele que eles já habitam. Nos inúmeros casos em que um parente –
não um indivíduo cujas fronteiras se encerram em seu próprio corpo. Nos feitiços
com os quais sua vítima já contava30. Mesmo fraco e reduzido, o ser atingido pela
29
Além de Favret-Saada, citada acima, outros pesquisadores se depararam com a recorrência dessa
mesma possibilidade. Ver, por exemplo, Porto (2007: 177) e Mauss (2003: 101).
30
Maggie (2001: 46), estudando a criação e o fechamento de um terreiro umbandista em Andaraí, Rio
de Janeiro, descreve uma ação similar quando duas pessoas entram em uma “demanda”. Na
demanda, diz a autora, inicia-se uma “guerra de orixá”, e “o maior perigo era o de os orixás de uma
delas conseguirem prender as linhas de algum orixá da outra (...) Prendendo-se a linha de um orixá,
este não poderia mais trabalhar para proteger seu cavalo. O orixá em causa ficaria preso,
imobilizado, e não incorporaria mais em seu cavalo.” Quando a ex-mãe-de-santo do terreiro
conseguiu prender os guias de sua ex-filha, colocando “sete exus” em sua cabeça (idem: 50), a
médium passou a incorporar somente eles. Eram exus que ela nunca antes recebera e que impediam
109
região estudada. Tal território não só aumenta e diminui, como se abala com a
momento? Quais são suas combinações atuais? Quem faz parte de quem agora? –
modo geral, pode-se afirmar que quanto mais cheio de “presenças” e “parentes”,
mais alguém se verá forte (no capítulo 3, mais se falará sobre o notável movimento
Vê-se que não são somente espíritos que habitam uma pessoa. Ela também é
moradia de seus parentes, o ato de povoar é uma ação de ‘penetração’. Uma pessoa
povoada é transpassada por outrens que nutrem com ela relações variadas. E não
se trata aqui de internalização mística das relações sociais, como descreveu Bastide
(1971: 226-7 apud Goldman, 1984: 91), ao tratar das transformações das práticas
tanto pessoas como espíritos compartilham as ações de ‘ter’, ‘ser’ e ‘morar’ 32 que,
por sua vez, afetam a relação que ambos travam com seus pares e entre si.
próprio “povo”. Dentre os cerca de cem casos de bruxaria que pude acompanhar
pessoas que se povoam, não se deve deduzir, contudo, que as fronteiras desses
povoamentos, quando sob ataque feiticeiro, são o que interessa preservar. Mesmo
necessariamente, heteróclito.
dos quais ela também faz parte). Mas, como vimos no capítulo 1, as ações desses
espíritos não trazem consigo, afixado, um qualificativo moral. Ora elas fazem mal,
32
Note-se que a reflexão sobre a relação entre ‘ser’, ‘morar’ e ‘ter’ foi originalmente inspirada em
Tarde (2003: 46). Perguntando-se se não seria interessante conceber “mônadas abertas,
interpenetrando-se, em vez de exteriores umas às outras”, o autor chega à ideia de que “cada ponto é
centro”, pois “a posse recíproca” implica que “a verdadeira propriedade de um proprietário
qualquer é um conjunto de outros proprietários” (2003: 88; 93). Bergson (In Tarde, 2003: 108, grifo
meu), por sua vez, afirma que as mônadas tardianas são “elementos análogos, em certos aspectos, às
mônadas de Leibniz, mas, diferentemente das mônadas leibnizianas, capazes de se modificar umas
às outras. Diversas desde o início, elas acentuam incessantemente sua diversidade, graças à ação que
exercem sobre si mesmas. Elas compõem assim uma sociedade em que cada uma desenvolve sua
própria individualidade, e, por uma espécie de radiação, a individualidade dos outros”.
33
Com isso, não se quer afirmar a inexistência de tal possibilidade. Aliás, apesar de fruto de fofoca,
com fins claramente difamatórios, cuja veracidade portanto os autores questionaram, os Leacock
(1972: 229; 271-2) reportaram o caso em que uma mãe-de-santo, temerosa que sua filha e sua neta
ameaçassem sua liderança, foi acusada de matar a primeira e enlouquecer a segunda.
34
Ver Douglas (1970) para uma descrição das acusações de feitiçaria como remodeladores das
fronteiras internas ou externas dos grupos sociais.
111
mais ou menos harmoniosa com seus povoamentos anteriores. Isso tanto vale para
mulheres seria eclipsada, como também o seria a indefinição do modo como cada
um tentará se impor sobre o outro. O ser apaixonado, também dizíamos acima, o ser
‘dominação’, ele é no entanto marcado por uma luta que, na feitiçaria, se faz
evidente. Ele é povoado por aquele que ele batalha para preencher, visando então
Aliás, trata-se de uma batalha que também pode ser travada por um homem,
encruzilhada, a fim de trazer sua esposa de volta. Ali, Éder travou uma luta não só
a favor de sua esposa, mas também de certa forma contra ela, quando aprendeu a
passível de manipulação.
112
Desapego
“Não é bom se apegar a nada” – dizia o pai saudoso da filha que mora
longe, com a mãe. - “Sentir saudade, tudo bem, mas apego ou obsessão é diferente
de amor ou paixão”. Estes seriam eternos, aqueles, doença, ele completou. “Se
garoto que teve suas pernas temporariamente paralisadas quando viu o pai ser
preso. “Uma binga não se acha no lixo; uma boceta também não. Se ele te tratar
mal, trate-o também, se estiver distante, esteja também. Dê abandono” – disse uma
terceira, aconselhando a amiga. “Não gosto dessa fixação, não gosto de pensar nela
Isso é o que se diz deles. Isso é o que eles dizem de si próprios. Apesar de zuelas e
pessoas cantarem os casamentos entre exus fêmeas e machos, nenhum dos dois têm
reuniões estáveis. Eles se ligam a muitos de uma só vez, mas não amam ninguém
em particular, ou incondicionalmente.
- “E seu carnal? Quando ele for embora, você não vai mais vir à terra.”
- “Não amo. Quando ele morrer, procuro outra pessoa. Meu amor é comer,
beber e conversar.”
O exu que não ama ninguém a não ser a si próprio, o exu que “não tem nem
mãe nem pai”, o exu que “vive sempre sozinho”. Através dessa faculdade, a
faculdade de quem sabe andar sozinho – mas normalmente não anda, ressalte-se –,
Tranca-Rua resolveu o caso de Éder, o rapaz que, no início deste capítulo, queria
Pai: - “Já vi resultado em Éder, ele ligou ontem. Não teve coragem de jogar
‘amiga’. Disse que vai devolver. A mulher, depois de uma briga feia, foi pra casa
dos pais. - ’É assim mesmo’ – eu falei pra ele. - ‘Parece que piorou’ – ele falou. - ‘É
assim mesmo, meu filho. Depois melhora’ – eu respondi a ele. - ‘Vou desistir’, ele
falou. - ‘Ele já tá querendo desistir, bom sinal’”, o pai-de-santo voltou a nos falar.
Eu nada entendi. O pedido não era para que a mulher voltasse? – pensei
comigo. O ogã, ao contrário, sobressaltou-se. Sua feição era a de que tudo agora
fazia sentido: - “Bem que eu vi: usar dois frangos machos pra ela voltar?!”
galinha e o galo eram destinados somente a fortalecer Éder, deixando sua mulher
Eu amei alguém,
E esse alguém
Não ama ninguém.
Eu amei o sol,
Eu amei a lua,
Na encruzilhada,
Eu amei seu Tranca-Rua.
apaixonado, alimentando seus exus, santos e caboclos, a fim de que seu carnal não
“se invoque” tão profundamente com ninguém. Almeja-se vencer, mas nem
Este foi o caso de Éder, e também o de Rejane, que conheceu Júlia no dia em
114
que ela rezou com alho as dores em seu corpo. Dores que eram apenas um de seus
lamentos para os quais ela procurava solução. A mãe chamou-a até o quartinho,
Júlia: - “Não! Ele te pergunta e você responde. Fale a rua onde ele mora. E
- “Você não sabe o número da casa?! Pode ser que eu não consiga jogar. Ele é
- “Não!”
- “Eu peguei um maior do que você” – Júlia jogou mais uma vez os búzios. -
- “Aham.”
- “Tem sim.”
- “Faz sim!”
- “Ele é branco?”
- “É!”
segundo andar e, no debaixo, um casal ou dois homens. Olha, ele te ama, mas tem
esse outro caminho também. Se você bobear, ele vai noivar com essa daqui.”
- “Vejo que você tá invocadona com ele. Amarrar eu não gosto. Vai que você
tem um outro destino melhor na frente. Eu ganho dinheiro para amarrar, mas
desaconselho. Seu amor é maior que o dele. Por que você não faz um trabalho para
ele lhe ligar e você esquecer mais ele? Por que você não dá comida pra sua Gira e
para Tempo? Mas veja, vocês dois caem sempre juntos [no jogo de búzios]. Ele é
vigarista! Não vejo mulher com ele agora, mas ele pode amar duas pessoas. E ele
tem um amor esquecido. Isso é ruim. É coisa de gente que não confia nem em si
mesmo.”
novamente. Ficaram juntos alguns dias para logo em seguida o rapaz sumir. Rejane
Para Tempo
1 litro de vinho
1 galinha gelada
7 reais em moeda
Para Gira
1 champanha
Uva
116
Maçã
1 carteira de cigarro
1 caixa de fósforo
1 caixa de vela
7 reais
Pembas
Talco de Pomba-Gira
Pingo de Ouro
Noite de Natal
Banho de Iemanjá
esta água está correndo no meu corpo, assim Fulano vai correr atrás de mim, ou
Num papel, escreveu seu nome. Ao lado de seu nome, vencedora e, abaixo,
o nome do rapaz. Júlia pôs o papel no altar, debaixo de seus colares de conta, junto
ingredientes, Júlia observou que ela já tinha outra disposição. Aparentava ânimo: -
“Você tem que ser mais forte que você” – disse a mãe-de-santo. - “Vou arriar a
obrigação para Gira e para Tempo hoje mesmo à meia-noite. Dependendo do anjo
de guarda dele, com três ou quinze dias, ele vai lhe ligar. Ou você vai sentir uma
sensação. Pode deixar que, se não for ele, eu pedirei outro no lugar (mesmo que
você não tenha pedido). Fiquei feliz quando a cera da vela queimada não
Eu flechei, eu flechei,
Mas não vi cair.
117
Rejane optou por dar um empurrão no destino, caso sua sina fosse se casar
com o rapaz, mas, neste caso ou no caso de não ficarem juntos, queria que seu amor
se enfraquecesse. Já nos três dias que se seguiram, Rejane se dizia mais calma. Nas
semanas seguintes, o rapaz ligou para ela algumas vezes. Encontraram-se – bons
encontros –, e ela se dizia pronta a aceitá-lo de volta, caso ele quisesse. Júlia então
sugeriu que ela mesma desse, sem sua ajuda, comida à Padilha. - “Você não tem
medo! Junte rosa vermelha, abra uma latinha de cerveja e dê à sua Gira. Assim ela
Rejane fez o que a mãe-de-santo sugeriu, meio nervosa, ela me disse, mas fez
“tudo certinho”. Isso não impediu de, meses depois, o rapaz ligar avisando-a que
estava casado. Mas ali, algo já esfriara, já não doía mais, ou pelo menos não muito,
disse Rejane. Foi fortalecendo sua Gira, e alimentando Tempo, que Rejane pôde
A Dança do Exu
camisa brancas. Na sua cabeça, um torso azul; no ar, cheiro de alfazema. Seguimos
para o barracão, de onde vimos ele subir em direção à casa de Exu, já com uma bata
casa até o barracão, onde andou inúmeras vezes de uma ponta à outra, tenso, o
olhar ao alto, a boca torcida, a mão em seu tridente de ferro batendo no chão de
tensos. Quando o Exu finalmente se pôs a falar, tivemos a certeza de que havia algo
estranho:
da Bahia o calor sufoca. E o Exu não tinha pressa – teríamos ainda várias horas pela
frente –, por isso só voltou a nos dirigir a palavra uma dezena de minutos mais
- “Boa noite!”
– “que a encruza lhe cubra” – e me deu a mão – “que a desgraça lhe ajude”. Ainda
119
sem pressa, sentou-se no mesmo banco, fumou o mesmo charuto, bebeu da mesma
bebida. Nilza não demorou a acender uma vela vermelha na entrada do terreiro
para indicar a presença do Exu, presença que se somou às duas outras já acesas,
intenção de Tempo.
pensava não gostar de exu, disse baixinho: - “Eu quero sim”. O Exu não a ouviu –
silenciosa, com muita dor de cabeça. Um senhor, também de meia idade, também
E uma moça, também da roça, cujo corpo o pai-de-santo achou melhor fechar,
O trabalho das duas mulheres foi Boiadeiro quem fez. Primeiro, despachou-
barracão, onde nos esperavam os usuais pratos coloridos de legumes e grãos, todos
1
Quando a galinha está choca, ela deixa de botar ovos justamente para chocá-los, quando então fica
120
preparados pela equede. Atrás de cada prato, uma vela acesa. Na frente, um maço
recipientes com pólvora preta e branca. Boiadeiro passou o conteúdo dos pratos,
um a um, no corpo da senhora, cuja tensão pouco a pouco deu lugar à descontração
“sacudimento” que levava apenas comidas brancas, das quais não me lembro
exatamente, mas que incluíam arroz, acaçá, milho branco e pipoca. Durante ambas
Orixás e Exus das duas mulheres. Os dois trabalhos encerraram-se com banho de
Exu, que viera reclamar seu quinhão. Mais uma vez, ele estava elétrico. Logo pediu
para jogarem carvões em brasa no chão, sobre os quais sambou por duas vezes,
com os pés descalços. Engoliu um pedaço de brasa, que no dia seguinte deixou, de
deixar no corpo dele o sinal de sua presença diabólica, depois saberíamos). Com os
pés inteiramente pretos de brasa, o Exu passou ao corte do galo. Dessa vez, não lhe
(cabeça, asas e pés sobre um ‘corpo’ de farinha amarelada pelo azeite). Em vez
morta, retirou-lhe o coração para mais uma crua degustação e encheu-lhe o tórax
anotado em um papel. Finalmente, a ave foi para a najé repleta de sangue, que
deveria ser arriada vinte e quatro horas mais tarde, ordenou o Exu.
onde se puseram a observar. Uma delas, depois saberia, era filha de Wanda, uma
mal-humorada, estranha. É nesse período que seus excrementos e sua carne podem “lesar o juízo”.
121
Mas já era tarde, já eram onze e meia da noite, uma hora e meia a mais da
combinação entre o Exu e o ogã para o término das obrigações. O ogã, “compadre”
e “irmão de fé” do Exu, tinha pressa porque prometera a outro pai-de-santo que
disposto a ir ao toque do candomblé vizinho. - “Não gosto de festa. Não sei pra que
tanta festa” – ele reclamou. Ao que o ogã replicou, repetindo as palavras de uma
zuela: - “Folia não é candomblé; candomblé folia é”. Mas, ali, era o Exu que estava
à frente: um folião notório cujo vigor emitia uma intensidade ainda maior naquela
noite de fim de quaresma. O ogã não pôde fazer outra coisa a não ser se deixar
trato: iríamos à festa, o Exu dançaria somente duas zuelas, e então estaríamos
ameaçou o Exu.
- Ei?! Como assim? Eu tô te levando com o maior carinho – o Exu sorriu, feliz
com minha gentileza (e eu também sorri feliz, pois, ingênua, julguei que finalmente
Exu, é claro, já de início não se mostrou contente com a falta de “malafo”, uma de
suas companhias prediletas. Logo se seguiu uma zuela puxada por um Gentil que
me chamou a atenção, ela dizia algo cujas palavras exatas não me recordo, mas que
um sotaque em resposta:
Em cima do pau,
Eu sou gavião,
Na beira do rio,
Eu sou mergulhão,
Na minha aldeia,
Eu sou rei,
Serei eu não.
uma volta no barracão, dirigindo sua atenção para o lugar onde ficavam as
imagens dos santos, imediatamente vedadas com um lençol por um dos membros
tocar. O ogã, irritado por meia-noite já se passar longe, recusou o convite, mas
via uma revolta ser contida com pulso firme, finalmente se reuniu aos outros ogãs
do terreiro.
atabaques.
123
Agastado, o ogã foi cobrar o acordo com o Exu, que não o levou a sério,
zuelando não muito alto: - “Trato de exu não é de orixá!”. Em seguida, amansou-o
com brincadeiras e voz dócil, pedindo que ele tocasse mais duas zuelas, dessa vez
para ele dançar. Agora sem rebeldia, o ogã pediu em voz alta para zuelar para o
Exu. Um rapaz consultou a mãe-de-santo e informou que zuelas para exu seriam
gato, cinco zuelas inteiras, mas somente depois de fumar calmamente dois cigarros,
um em cada narina.
Quando não ouvíamos mais o ogã puxar zuelas para seu “compadre”, a
ogã calara-se – depois ele nos contou – porque respondia aos ogãs do terreiro, que
perguntaram se ele não sabia tocar à maneira deles. O que resultou, evidentemente,
em uma nova provocação, dessa vez do ogã: - “Rapaz, eu sei, mas não é o caboclo
sagacidade de suas zuelas, a beleza de sua voz e a agilidade precisa de seu toque,
vários cavalos do terreiro não puderam resistir. Uma moça bonita virou num Exu
macho; uma outra se manifestou de uma forma que, depois soube, era vexaminosa.
Como chorava e passava mal, foi levada até o corredor ao fundo do barracão, que
disse a equede.
dar passagem que ele não faz nada...” Fitando o Exu, perguntou: - “Sua matéria
vem aqui amanhã?” – e sem esperar resposta, ela o provocou mais uma vez: -
“Você não domina seu cavalo?” O Exu lhe respondeu que seu domínio era tão
grande que abarcava a vida e a morte; esta, aliás, da qual ele gostava
eu não gosto”.
chão. Relacionou seu quase tombo à conversa entre ele e a mãe-de-santo sobre
subir ou não ao céu, algo que a mulher lhe negava, e que o Exu afirmava elevar-se
até onde quisesse. O Exu concluiu, diante do estado de guerra que vivenciávamos,
que a mãe-de-santo o açulava, lhe jogando na cara que ele teria caído.
caboclo. Em todo caso, responderam o pai-de-santo e o ogã, nada lhes foi dito, o
O Dono da Cabeça
de ninguém” – alguém disse a Medeiros (2006: 19), que fez sua etnografia em meio
poucos os que diziam que o “escravo não passa à frente de caboclo”. Argumento
bênção é também uma ameaça? (“que a desgraça lhe ajude”; “que a encruza lhe
cubra” ou “que as estradas lhe iluminem, que nada de ruim lhe atinja, a não ser
mandado por mim, que por mim eu não vou mandar e, pelos outros, não vai
atingir”).
Como se poderia esperar, há quem aceite o risco. Mas, como se diz, é preciso
ter “couro grosso pra chamar um exu de compadre”, o que dirá de pai. Pedro tinha
couro grosso, aparentemente. Ele já fora a umas “dez casas de macumba, nenhuma
dava jeito”. Naquela onde encontrou alívio para seu problema, passou a chamar de
pai o Exu que o convencera a parar de ler o livro de São Cipriano, o famoso livro de
rezas e feitiços. Mas o próprio Exu não aceitava que Pedro lhe tomasse bênção.
“Bênção é pra santo” – o Exu desgostava, mas sem se incomodar que Pedro o
chamasse de pai.
um terreiro às vezes é tão grande que se pode querer o próprio terreiro em seu
nome (em minha experiência de pesquisa, isso apareceu como desejo, mas na de
Maggie [2001: 137, nota 16], o pai-de-santo colocou o nome de sua Pomba-Gira em
seu terreiro. Como ela era metade exu, metade cabocla, e seu nome levava a marca
umbandista que, segundo ele, não permite terreiros com o nome de exu). Nesses
casos especiais, argumenta-se que eles passam à frente dos santos, às vezes os
afastando, às vezes convivendo com eles sem grandes problemas. Todavia, mesmo
quando um exu é “só um escravo”, isto é, mesmo quando ele habita o domínio do
orixá ou caboclo a que está vinculado, alega-se que são eles que comem primeiro; é
para eles que primeiro se zuela (só “depois abre pra santo”); e são eles, e não os
caboclos ou santos, que descem “para tirar quizila de alguém radiado ou bêbado”.
126
Para outros, ele é “árvore seca”, o “último recurso”. Porém, para ambos, parece-me,
caberia dizer o mesmo que Ochoa (2005: 41-46) afirmou para a forma como os
mortos são tratados no Palo cubano. Os mortos – e os exus – são ubíquos, mas não
exatamente centrais: a água, diz Ochoa (idem: 43), não é central para o mar, ela é o
mar, e assim são os ou o muerto que, como os exus, são um e múltiplos (Goldman,
1984: 124). Um motor que não pode ser desligado – disse-me um deles quando os
necessariamente de tudo”, afirmou Elbein dos Santos (1975: 131 apud Iriart, 1998:
não implica em uma força absoluta sempre imensamente penetrante. Sua potência
não está sempre ativa; em alguns, ele vira árvore seca, seu estado é o da latência;
pessoas e vivem sozinhos; eles são “irmãos de fé”, “compadres”, mas “traidores” e
“não são amigos de ninguém”. “Na mesma hora que estão contigo, na mesma hora
não estão”. Sua bênção é ameaça sem deixar de ser uma bênção. Uma “lógica da
“proliferação de definições”, em que “uma coisa pode ser o mesmo e seu aparente
oposto sem contradição”. Uma lógica da afirmação até mesmo quando se nega, eu
afirmaria para o exu que não é pai, mas pode se torná-lo sem deixar de não ser3.
2
“Nada obriga o Deus a morar constantemente no ídolo; entra e sai dele, ou antes acha-se ali sempre
presente mas com maior ou menor intensidade”, uma citação de Nina Rodrigues (2006: 48, com
ortografia atualizada) que se pode estender também para seres humanos ou terreiros (e ficaríamos
com: ‘nada obriga o Deus a morar constantemente num terreiro ou num humano...’).
3
Em outras etnografias, a possibilidade ou impossibilidade de exu ser pai de seu carnal apareceu de
127
Pomba-Gira zuela:
Chegou o dia de lhes dar comida. - “Finalmente”, todos diziam. Mifael até
- “Vim porque ele vai dar comida pros negoço dele que eu não sei o que é.
Eu nunca gostei de ir pra candomblé, a gente vai porque precisa, mas não tenho
começou a comprar o material pra fazer a obrigação dela. Ela vai fazer com Urcão,
meu compadre. Agora quem tem é Mifael, mas vai tudo pra cima de mim. Essa
semana foi triste; ele só não me bate porque eu não sou fraca, não me abaixo: uma
unha desse tamanho pra cima de mim. Uma agrestia! Ele é o único lá de casa que
dá esse problema. Não arruma emprego, não tem nada, vive largado. Desse lado,
ele é muito errado, mas de outro, não me dá preocupação. Não tem polícia batendo
em minha porta, nunca, nunca, a não ser uma vez, por uma coisa que ele não fez.
Fui umas dez vezes na delegacia, pesquisei tudo e não foi ele mesmo.”
Exu: - “Você disse que não teria ninguém aqui nessa cidade pra fazer seu
forma mais nítida do que na minha própria. Goldman (1984: 149), por exemplo, observa que, no
terreiro de Niterói (RJ) onde pesquisou, um adepto pode ser filho de um exu que, nesse caso, é um
orixá e se difere daqueles outros exus “escravos de santo”, espíritos de mortos (conforme veremos
melhor abaixo). Já Iriart (1998: 132) afirma que, nos terreiros de Cachoeira (BA), “se pressupõe que
um exu não tenha filhos dos quais ele seria o ‘dono da cabeça’”. Em minha experiência de campo, ao
contrário, percebi uma tendência de coexistirem com o dono da cabeça – normalmente um santo ou
caboclo –, tantos outros donos quanto forem “os tipos de seres” existentes. Por isso, é comum se
dizer ou se especular quem, dentre os exus de alguém, é ou será o dono de sua cabeça. Isso não
necessariamente torna este Exu ‘mais dono’ do que o caboclo ou orixá, mas deixa considerável
margem para que ele possa assim ser considerado.
4
Na região, Lucifer é um oxítono, daí a rima. Quando perguntei o que significava essa zuela,
Tassiana disse: “Exu tem duas cabeças: faz o bem e faz o mal, assim como Mano de mãinha, que seis
meses é escravo, seis meses é santo. Seis meses ele fica na encruzilhada que não aparece no terreiro!”.
Há uma versão dessa zuela (Maggie, 2001: 83) que diz: “Exu que tem duas cabeças. / Ah! ele olha sua
128
trabalho. Eu vou fazer! Você não pode andar na casa dos outros de corpo aberto!”
bom: até pra cima de mim, que sou mãe, ele foi!”
Exu: - “Esse menino é bom de tudo, mas tomou um gole de cachaça, pronto,
estraga.”
O menino, nos dias anteriores, dizia não querer “mais meia com exu”,
tencionando segundo entendi não mais desafiá-los e fazer o que mandavam. Até
então, ele havia se recusado a se vincular mais profundamente a qualquer casa que
andava triste, desconfiado de feitiço e de que o preparo, porque bem feito, pudesse
ser letal, ele acabou cedendo aos conselhos de seus amigos e parentes, que
insistiam para alguma coisa ser feita em seu benefício. Quando perguntei detalhes
sobre o que sentia, ele respondeu: - “Não sinto vontade de ficar alegre. Mas eu
venço, já tive pior.” E foi com a vitória em mente que o material para o corte, o
do rabo do frango. Postou seus membros dentro do prato, olhou pra mim e
gente da casa nos trabalhos”. O Exu queria, com essa cutucada, ‘estimular’ que eu
me tornasse filha do terreiro, mas enquanto isso não acontecia não fui colocada
alfinetou mais uma vez: - “Não gosto de trabalhar com moça fraca...”
Os exus são famosos por suas repreensões (“para eles, nunca nada tá bom,
só tá bom quando alguém morre”). Certo dia, chateada pela indelicadeza de outro
Exu, fui aconselhada por um amigo: - “Você tá sendo racional. Exu não tem pai
nem mãe, ele vive só, sempre só. E aquele é um dos piores exus.” Eles
109) sobre a macumba carioca, ela também alvo de uma reprimenda de uma
dos exus eram-no o suficiente a ponto de se tornarem amigos. Para o Exu que
conviver diariamente com eles já há algum tempo. A minha força deveria estar,
mas ainda não estava, moldada, ativada pela feitura de um trabalho, à maneira que
Vertendo mel nas mãos de Mifael, pediu que ele repetisse suas palavras (que
diziam algo como adoçar seu caminho). Depois, salpicou champanhe e cigarros
vai ganhar mais mulher, eu ou você? Se a brasa cair pro meu lado, sou eu; pro seu,
das aves para dourá-los no azeite de dendê; dourava também pedaços da carne de
totalmente fritas, era preciso deixá-las cruas para que os exus as apreciassem.
Depois de muito tempo, e muita conversa, o Exu disse que os dois pratos se
destinavam aos “exus negativos” que ajudavam Mifael; agora seria a vez de
alimentar os “exus de luz, os donos de sua cabeça”. - “Ogum era seu orixá, seus
caboclos são os de frente” – o Exu acrescentou. E o rapaz teria de cuidar deles sem
130
- “Não é nada! Quem manda aqui, além de mim, é senhor Ogum” – o Exu se
referia ao orixá de frente de seu carnal – “Já te deram caboclo antes, minha
criança?”
Concentrando-se nos pratos dos “exus de luz”, o Exu fez a farinha de azeite
peitos dos frangos. Dividiu o prato em duas metades e, em cada uma, afixou um
- “Você não quer ser filho-de-santo de ninguém, mas vai ser meu!” – o Exu
desafiou mais uma vez Mifael e acendeu velas vermelhas, pretas e brancas,
iniciando um novo duelo, dessa vez entre os dois exus: Tibiriri e Lucifer. Quem
se confirmara, era mesmo Tibiriri. O Exu já havia previsto, mas agora não era ele
- “Ninguém fez nada pra você, é briga de exu pela sua cabeça” – ele o
acalmou, mas não sem plantar uma ponta de agonia: - “Lucifer”, disse ele, “vai
fazer tudo para ir à forra, ele é dono das armas e das facas e tá enraivado porque
pozinhos e ervas (entre eles, coarana, dandá, cheiro do mundo), “para nunca mais
você ir pra outra casa de corpo aberto” – disse o Exu que, experiente o suficiente
para saber que naquele momento de nada adiantaria tentar fixar o rapaz em sua
131
desembaraço.
Antes de cortar para seus Exus, o garoto sonhou que seu anjo-de-guarda, um
“semblante” em tudo parecido com o seu próprio, saía da casa onde ele morava
Quando Mifael acordou, ele foi até o quintal e, “mais uma vez”, não viu nada além
- “Até hoje Wanderleia procura o gato achando que levaram” – diz ele, rindo
trabalho de limpeza que alimentaria seus santos. Como não incorporava, ele temia
que durante o ritual lhe botassem “um santo para [ele] virar”, conferindo ao pai-
de-santo maior poder de ingerir em sua vida. Abraçou com mais facilidade a
“em [seu] corpo”, o que lhe dava a experiência necessária para saber que aquela
filiação, por sua natureza insinuada, fortalecia o ritmo de seu relacionamento com
declaradamente não queria fazer nada que o vinculasse mais estreitamente àquele
O pai-de-santo zuela:
O filho-de-santo zuela:
Meu caboclo,
Eu moro nas matarriá5,
Eu sou filho de Oxóssi,
Minha mãe é Iemanjá.
- “Os filhos-de-santo de Jair comentaram que têm medo que ele mate porque
Vinícius: - “Maria José também não raspa ninguém. E mata mesmo, fica o
Gazo: - “Eu é que não quero raspar, se eu raspar, vou trabalhar com um exu
Meu Exu ali seria um desprezado, um desgraçado. Eu não ia ser o Gazo que vocês
conhecem, ia mudar minha fisionomia, meu jeito de ser, ia ser muito mais agreste
com os filhos-de-santo.”
feiticeiro porque tem o poder de “virar”. - “Você fez Joana voltar da casa dela pra
casa de Mirno de erê e não é feiticeiro? Claro que é...” – dizia uma amiga de Joana a
5
Matarriá, me disse Nilton, quer dizer casa de caboclo. - “É pra dar ficção à zuela, que o caboclo não
vai explicar tim-tim por tim-tim que ele mora em sua casa, que é a mata”. Note-se que no meio desta
zuela, e também no meio de tantas outras, há uma mudança de ponto de vista. De início, quem fala é
o filho-de-santo, lamentando o desprezo de seu pai. Depois, o caboclo toma a palavra para declarar
sua filiação à Iemanjá e a Oxóssi. Claro, esta mudança é também um convite à duplicidade: o filho-
de-santo, pegando carona na fala do Caboclo, declara que tem outros pais além do pai-de-santo que
133
futuro próximo.
Como se poderia esperar, tal potência pode ser trabalhada de modo a fazer
tanto o bem como o mal. - “Júlio prepara os caboclos pra gente ir se afundando. É
pela dor, ele é vingativo. Fui perdendo meu trabalho, minha saúde. Isso pr’eu
correr lá pedindo ajuda. Vinícius não! Vinícius prepara os caboclos pra gente ir
gostando, pra gente ficar com vontade de ir pra lá. É pelo amor. Como ele fez com
Jia, quando ela deu por si, já tava lá na casa dele. É melhor assim.”
ou mãe-de-santo não torna difícil a compreensão de por que, quando um filho, por
afastar do terreiro, ele possa temer a reação de seu pai ou mãe-de-santo. Kenia foi
uma demanda pra ela”, me contou Reinaldo, em tom de confissão. “Isso porque os
filhos-de-santo de Davi, Kenia inclusive, falavam muito mal dele. Quando ela
chegou na casa de Davi sem dinheiro pro trabalho, Davi comprou tudo do seu
- E Davi contou à Kenia que ele mandou uma demanda pra ela?
- (sorriso) E Davi te falou antes ou depois que tinha feito algo pra ela?
feiticeira os atrai e protege, e por isso se diz que eles lhes “põem a mão” –, fez-se
evidente que eles também brigam com seus filhos, algo de fato bastante frequente
o desprezou.
134
os quais, Maggie (2001: 47; 80) e Wafer (1991: 164-165). Wafer, por exemplo, relata
que, durante seu trabalho de campo, suspeitava-se de uma iaô, que teria namorado
pai-de-santo, mas em algo ainda mais grave: uma quebra de resguardo, perigosa
tanto para ela como para o próprio zelador. Tudo piorou quando, ainda sob os
Este não fora apenas um ato dramático. O pai-de-santo mexia ali com a
pessoa de sua filha-de-santo, seu ato foi também um feitiço. Ele apresentava ainda
mais perigo do que as pedras chamadas “otá”, “as cabeças dos orixás”,
despachadas pelo pai-de-santo na casa de Tempo, que deveriam estar num lugar
mais apropriado. Tais pedras pertenciam a membros que, como a iaô fujona,
que saberia lidar com eles. Aliás, o pai, cuja casa de Tempo abrigava a sorte de seus
traidores, não tivera uma melhor sorte com o seu próprio pai-de-santo. Eles se
contra seus filhos. Ainda que não tenham sido poucos os relatos, dos quais nunca
mais comum tais surras serem dadas por caboclos, escravos ou orixás, agindo sob
as ordens dos pais ou mães-de-santo, como foi o caso de Neide, descrito abaixo.
- “Aqui tinha uma manata que tava traçando meu marido. O Caboclo dela
não me dizia nada. Erê chegava, e também não me dizia nada. O Caboclo falava: -
135
‘A minha manata tava traçando o marido de Fulana’. Ele dizia o dos outros lá, mas
a mim, o Caboclo não dizia que a manata dele tava andando com Adriano, meu
marido.”
- “Uma pessoa” – Neide respondeu – “Me chamou atenção foi quando, num
Já começou a despeita, meu sofrimento começou com isso. Eu digo: - ‘Não veio
porque realmente ele vai sair cedo amanhã’. Ele ia perder o dia de trabalho se
estrovasse noite. O Caboclo disse: - ‘É assim mesmo! Quando é pra tá igual chuva
atrás da minha menina, ele não perde o horário do trabalho’. Eu na mente: - ‘Por
que ele disse isso?’ Mas aí eu já sabia o babado qual era. Eu disse: - ‘Ô meu velho,
isso aí, eu não tenho nada a ver; isso aí é um problema da médium e dele’. Eu falei
mal? Foi dois tempos! Quando eu levantei... Até hoje! Olha pr’aqui! [ela mostra
uma série de cicatrizes nas pernas] Eu fui me esbarrar no fundo da casa de Josefina
ali.”
- Como?! – perguntei.
problema é intestinal. Se fizer uma garapa de açúcar ligeiro pra eu beber, eu vou ao
banheiro e aí não caio. Começa aquela agonia que eu peço: - ‘Me dê uma garapa de
açúcar ligeiro! Faça ligeiro, Juquinha, pelo amor de Deus, ligeiro!’ Mas ali eu já tava
- “Quando dei por conta” – Neide continuou –, “eram cinco horas da manhã,
eu toda acabada. Ele ainda me botou pra sambar no Caboclo o restante da noite. Eu
tava grávida de três meses, e não sabia. Pegou infecção, e eu não sabia que era
infecção. É vai dor, é vai dor, é vai dor. Me levaram pro hospital, essa boca minha
entortava, essa mão não conseguia pegar nada, que até hoje é assim, tremosa. É vai,
é vai, me levaram pra Bom Jardim. Quando chegou lá, doutora Fernanda pegava
um martelo, batia e a perna pulava. Eu não sentia que a perna pulava, ela pulava
136
sozinha! Foi um escândalo. Eu queria ficar sozinha pra saber o que era, eu toda
ralada, procurava saber. Mas ela o tempo todo encostada, não queria deixar eu
saber. Foi uma briga braba. Também não contei nada a ninguém, se não ela ia pra
dona!’ A mulher do hospital disse: - ‘Como é que a pessoa fica num estado desse?
- Mas aí foi como? – eu voltei a perguntar, sem ainda entender direito o que
tinha se passado.
daquele jeito. Quando a gente voltou, ela disse que gastou mundos e fundos. Mas
ainda me alembro até hoje. Eu tinha dois porcos grandes, ela vendeu os dois porcos
dizendo que era pra comprar os medicamentos (e na época, diazepam era barato,
eu me alembro bem). Pense! A minha mãe-de-santo! Meu marido foi pra fazenda e
deu seiscentos reais pra comprar todo o material porque ela dizia que era problema
do santo, que era pra eu deitar e receber a feitura, o decá. Mas eu tava doente, ela
batia o adjá na minha cabeça, chamava meu orixá, ele não descia. Eu não tinha
Muitos pais e mães-de-santo passarão toda a sua vida sem infligir qualquer
malefício contra os seus ou os filhos de outros pais-de-santo, ainda que não lhes
que não lhes recaia uma ou outra acusação durante seu “tempo no santo”. Em meu
na bruxaria de outro curador o problema de seu filho ou cliente. Claro, isso se deve
do exu’, e também em narrações de bichos que vêm e vão entre os terreiros, sendo a
delas ia dar candomblé. De noite, durante o toque, cantando pra santo, uma hora
pegou ela, mandou matar aquele bicho e aprontar ligeiro. Depois de pronto, ela
virou os filhos virantes no caboclo e todos comeram aquele teiú. Daí ela pegou um
tatu, botou os ossos do teiú em cima do tatu e mandou levar pra quem levou pra
ela. Quando foi no outro dia de tarde, a mãe-de-santo que recebeu o tatu morreu.
Passaram sete dias, a mãe-de-santo que mandou o tatu também morreu, porque lá
tinha um pai-de-santo por nome Zé de Ogum, que era pai-de-santo dessa mãe-de-
santo que a mãe-de-santo matou. Ele fez um feitiço e mandou ela pro inferno
também”.
- “Oxe, oxe, oxe, oxe, oxe... Não carece dizer mandou pro inferno!” – reagiu
forte, mais “grosso” – conclui-se usualmente depois dessas narrações, que não são
justamente este o enredo de Graça, que se viu entre dois pais, um deles, nem tanto
assim.
Graça: - “Não, eu só tenho meu pai. Meu pai é Oxóssi. Ele é meu pai porque
fez meu trabalho, mas eu não recebo igual dona Felizmina. Eu só tenho ele como
meu pai porque ele me disse que tava sempre perto de mim pra me proteger, que
138
Graça: - “Aham. Então ele me disse que me protegia o tempo todo. Isso que
aconteceu comigo, uma cirurgia que eu fiz e depois sangrei, ele disse que foi pra
me matar. Mas só que ele disse que tava comigo o tempo todo. Ele e Iansã, que são
Etnógrafa: - E quem que falou pra você que é mandado? O próprio Oxóssi?
Graça: - “Foi.”
Graça: - “Conheço.”
Etnógrafa: - É mesmo?
Graça: - “Uhum.”
Graça: - “Não, nunca falei. Ela ficou com raiva porque ela acha que eu queria
tomar o marido dela, quer dizer, o ex-marido meu que foi morar com ela. Ela
achava que ele gostava de mim, daí ela queria me tirar de circulação pra ficar pra
ela só. Só que eu não tinha mais nada com ele, só amizade mesmo, porque eu tenho
um filho com ele. [Ela queria] fazer o mal mesmo, sabe. E ele acabou sempre
separando dela. Quando ela fez isso, ela já tava na verdade separada dele; ela tava
com muita raiva de mim, achando que porque de mim que tinha acontecido a
separação.”
candomblé da minha família, que minha família tem uma influência grande com
candomblé, ou talvez por meu pai Oxóssi, que sempre tá do meu lado, eu tinha
sonhos. Sonhava as coisas. Quando ela tava fazendo as coisas pra mim, quando ela
começou a andar nessas casas fazendo, eu comecei a sonhar com caranguejo, que é
ruim, né. Essas coisas assim, me indicando pra ir num lugar, que tinha alguém
139
fazendo alguma coisa pra mim. Só que eu pensei que era só sonho. Aí começou o
emagrecendo, que eu nunca fui gorda, mas emagrecendo muito. Eu disse: - ‘Tem
alguma coisa errada comigo’. Eu fui numa casa, a de Sonilton, essa que eu te falei lá
Etnógrafa: - Reais?!
Graça: - “Pode acreditar em Deus. Paguei e perguntei: - ‘Eu não vou vir fazer
o trabalho não?’ - ‘Não. Você não vai precisar vir fazer o trabalho não. Você fica na
sua casa que eu faço o trabalho daqui mesmo’. Eu pensei: - ‘Esse negócio tá errado’.
mais? Tão caro’ – eu pensando comigo. Mas mesmo assim, é minha vida. Aí o santo
de Sonilton falou – que eu não sei, Deus me perdoe, mas eu não sei mesmo se era o
próprio Sonilton fingindo –, ele contou um monte de coisa pra mim: que se eu não
minha cirurgia. Muito antes. E eu achando que eu tinha pago esse dinheiro, esses
novecentos, eu achando que já tava feito. Fiz minha cirurgia. Acho que pouca gente
sangra nesse tipo de cirurgia, mas em mim, depois de uns treze dias, começou o
‘Meu Deus do céu, eu vim aqui pra ele olhar, eu vou dizer que tô sangrando, mas
ele vai dizer que eu não tô porque não tá mesmo’. E foi isso. Me deitei tudo
direitinho, ele olhou: - ‘Não tem nada’. - ‘Não, doutor, eu tô sangrando, começou
depois de uns treze dias, eu tô sangrando’. - ‘Graça, você tá ótima, não tem nada, tá
tudo sarado aqui’. É brincadeira?! Dentro de mim, aquele desespero que bate na
porque se ele fosse me abrir de novo, pra ver o que tava acontecendo, eu sabia que
pensando –, ‘já ouvi que tudo isso ia acontecer comigo, e isso tudo acontecendo!’
Pense! Eu fui lá em Amado, meu pai Oxóssi disse que Sonilton não tinha feito
nada. Aí realmente, como eu tô dizendo, eu menti quando disse que foi Sonilton e
140
não o santo dele que disse. Foi mesmo o santo de Sonilton que disse, só que a
pessoa dele não fez nada por mim, porque Sonilton era justamente quem a mulher
procurou pra fazer porcaria. Eu tinha ido por coincidência na mesma casa...
Coincidências da vida.”
Graça: - “Não, nunca mais. A verdade foi essa: ele não me matou porque não
quis, porque depois que ele me conheceu – eu vejo assim –, ele teve pena de mim.
O último dia que ele veio pegar o dinheiro, eu tava sangrando e operada,
parecendo uma morta-viva. Pálida! Ele olhou pra mim e fez: - ‘Rapaz, como você
emagreceu!’ Sonilton falou assim: - ‘Você sumiu.’ Eu senti pena nos olhos dele,
pena de mim.”
Graça: - “... Não fez nada nem pra me ajudar nem pra me matar. Que ele
poderia ter me matado. Se ele já tava com meu nome todo na mão dele, já tava com
minha pessoa! Ele poderia me matar. E ele me matava. Ela pagou mil e setecentos
pra ele me matar, e ele me cobrou novecentos que, na verdade, se ele não tivesse
ido com minha cara, ele me matava mesmo, porque eu já tava na mão dele, o
trabalho dela seria bem mais fácil. Porque se ele já tava com minha pessoa? Era só
Etnógrafa: - E logo depois que você foi pra Amado já começou a engordar?
Graça: - “Não, aí foi um processo. Fiz meu trabalho, tomando banho e tudo,
Graça: - “Não, lá de meu pai Oxóssi foi banho, muito chá que eu tomei. Um
bezetacil de infusão pra eu tomar de manhã cedo. Botava sete folhas, um copo com
água, tampava, quando era de manhã eu bebia em jejum e, graças a Deus, sarou
tudo. Só nos banhos e nos chás. E na reza! Amado dizia: - ‘Você vai ficar boa; agora
você tem que ter fé’. Na hora de rezar, a confusão na minha cabeça – ‘Ô, meu Deus,
morrer. Ô meu Deus, me ajude. Meu pai, ô meu pai Oxóssi, me ajude que eu fique
mesmo assim um vazio – ‘Ô meu Deus, não tô com fé o suficiente pra ficar boa, eu
acho que eu vou morrer’. Desespero é isso... Eu tava na agonia: tava passando e
vendo o que eu tava passando ali. Minha família também rezou, fez promessa.
Minha irmã fez promessa, não foi, minha irmã? Que era tudo meio estranho.
quaresma, diz que os diabo ficam tudo solto. Quando eu fiz esse sacudimento –
que era um outro trabalho, só que menor –, o sangramento desapareceu. Mas aí fica
Irmã: - “Não pode ir não! Quando a pessoa sai dali, daquela bagaceira, nem
De um modo que lhe foi específico – pois não há dois casos iguais –, Graça
campo. Primeira: a batalha entre dois pais ou mães-de-santo sobre quem será o
mais forte, sobre quem conseguirá assegurar a saúde do seu “povo”. Segunda: o
enfrentamento entre um pai ou mãe e um(a) filho(a), seja por abandono ou luta.
da região, “tem que saber com quem tá lidando, tem que saber com quem
conversa. Tem que saber como conversar, tem que saber quem a gente bota dentro
de nossa casa pra nos ajudar. Que nem todo mundo pode participar de tudo. Nem
tudo a pessoa pode ver, porque tem coisas que às vezes podem até me prejudicar.
meio de muita guerra” e “que tem que saber quem a gente bota dentro de nossa
casa para nos ajudar”. Mas Graça diria isso não de seus filhos, mas daquele que ela
não deveria ter confiado o “cargo” de pai. Amado e seu “povo” desvendaram todo
o enredo: ela fora vítima de uma traição e de uma lealdade. Graça fora traída
(Goldman, 1984 : 175) do pai ou mãe que foi visto ou de quem se suspeitou
enfeitiçar um de seus filhos. Tal dimensão, diz-se, faria do médium uma pessoa
Você vê que tem dia que eu brinco, tem dia que eu tô arretado. Se você chegar lá,
ele tiver brincalhão, ele tá de erê; se ele estiver metade aberto, metade fechado, tá
de santo; se tiver mais pra fechado, tá de caboclo; e se tiver fechado, com conversa
Como disseram a Pacheco (2000: 30), em sua pesquisa sobre o povo de rua
forte termina por infiltrar-se no seu cotidiano, igual aos Orixás”, uma afirmação
parte dos humanos, e se eles gostam de “trabalhos pesados”, não seria de todo
estranho esperar que os humanos, principalmente aqueles dos quais os exus estão
mais próximos, sejam propensos a atos feiticeiros, mesmo quando o alvo de seu
feitiço recaia sobre seu próprio filho. Ora, os exus são famosos por rirem da
coração”, por que então alguém que convive intimamente com um exu, cujo
cotidiano está saturado por sua presença, não se veria praticando seus atos mais
queridos?6
uma prática cuja beleza está no entendimento de que o bem e o mal precisam ser
6
Estudando o Palo cubano, Ochoa (2004: 137) transcreve um belo enunciado versando sobre algo
semelhante: “Se tem algo que me desvia do meu trabalho e responsabilidades é meu Lucero Mundo.
Palo é complicado. Você não recebe uma prenda [o Lucero] assim, sem sofrimento. É uma mentira.
Palo te muda. A mudança dói. Você começa a agir como sua prenda. É por isso que é tão importante
ter uma boa prenda. Entre os mortos, até os bons podem ter más qualidades e, no meu caso, meu
Lucero é selvagem”.
144
trabalhados (Ochoa, 2004: 22; 96; 111; 130)7. Mas isso não implica necessariamente
que o mal, mantido próximo, governe as ações dos pais e mães-de-santo, com seus
azeite”, aos exus, ao mal. Todavia, dos que dizem trabalhar ao mesmo tempo com
mal e o bem. Uma senhora que afirma nunca ter preparado nada para ninguém me
dizia sobre o quanto o bem não tem força sem a parte “abólica” (que ela usa como
estes dois serem associados, respectivamente, aos deuses e aos diabos – não a
Negras (CEN), lançaram uma campanha para combater a violência que as igrejas
axé diz que é”8) e divulgar melhor as qualidades do “orixá exu”, enfatizando seu
válida para lutar contra o preconceito. Depois, porém, achei que seria melhor tratar
7
Não é apenas uma aceitação do mal, assim “como se aceita o bem”. Não é apenas o consentimento
de que “há sempre bruxaria por aí, e não é provável que se possa erradicá-la da vida”, como observa
Evans-Pritchard (1978: 74) sobre os Azande. Trata-se, na realidade, da concepção de que ambos os
lados – o esquerdo e o direito, o mal e o bem – devem ser preparados, manipulados.
8
Uma ação semelhante àquela do movimento gay, anos atrás, a fim de justificadamente lutar contra
o preconceito que desrespeitava e desencorajava a orientação homossexual.
9 Segundo reportagem da revista Carta Capital, na matéria “Exu contra-ataca”, de junho de 2009,
Meliciano [um pai-de-santo] dizendo isso numa palestra que ele fez no colégio. Ele
dizia que o candomblé e feitiçaria não têm nada a ver e que exu não é diabo, mas
alguém, ele nunca vai me acusar, vai acusar o cara que mora lá adiante. Agora, ele
é pai-de-santo, não sabe mexer o vatapá? E como uma pessoa vai fazer feitiço sem
fundamento? Como fora da doutrina? Você acha que ele ganha dinheiro mexendo
do prestígio através da negação de uma prática que, no entanto, não torna menor o
contrário, nesse caso a negação faz parte do próprio jogo feiticeiro, conforme
veremos melhor abaixo. Claro, seria interessante retomar essa questão comparando
Cabe por ora tentar descrever que, ao “mexer com diabo”, um pai ou mãe-de-santo
conjuga a irradiação dele em seu próprio corpo com uma negociação – uma luta
mesmo – em que se aprende a seduzir os seres cuja força de outro modo se tornaria
insuportavelmente imoderada.
10
Quando, nessa mesma conversa, perguntei o que era doutrina, obtive a seguinte resposta: “É por
exemplo, comida de santo (cada um tem uma); rezar pro santo (cada santo tem uma reza); saber
sobre os guias; qual salva vai tirar pro santo, se o santo vai salvar ou se é a pessoa; cortar pra exu tem
dia certo, não é todo dia.”
146
Caboclo zuela:
Eu vou avoando,
Que nem um passarinho,
Desmanchando ovo,
Quebrando ninho.
Tô sim!”
Alguém: - “Você, quando ganhou, com nada deu dois, três frangos a ele?
Espera-se que um pai ou mãe-de-santo cuide bem de seus exus e santos. Mas
não tão bem a ponto de os deixarem inteiramente satisfeitos. “Se ele tiver comendo
toda hora, ele vai sair dali pra dar dinheiro ao pai-de-santo? Melhor dizer: tá aqui
sua comida, vou te dar mais quando você me der mais”, me disse um ogã afeito à
podem, ou querem, dar” – isso é o que diz Ochoa (2004: 275-276) para as prendas
cubanas – objetos rituais que são também seres –, mas facilmente estendido
Porém, um exu que perturba não faz nada mais do que dele se espera e por
isso é melhor ter um exu conhecido por sua força e “arrogância” do que por sua
ambos os casos, se correrá o risco de ver um exu contrariado atacar pessoas que
habitam o seu próprio domínio e, por isso, é frequente dizer que o pai-de-santo,
147
cujos filhos-de-santo são vistos enfraquecidos, não cuida bem de seus exus11.
Exu já comeu,
Exu já bebeu,
Faça o que eu mando,
Olha lá quem sou eu!
Dona Érica: - “Eles obedecem Zezinho. Eles obedeciam Gilson, o outro [pai-
de-santo]. Eles só faziam o que Gilson queria, e ele não dava permissão. Pra eu
fazer consulta, eu vou ter que raspar, receber não sei lá o quê, um fundamento
os pratinhos?
Dona Érica: - “É. Aí tem outro fundamento. O meu é batizado aqui na casa
de Gilson, agora na de Zezinho é que vai batizar de novo. Já que eu parei na de lá,
Etnógrafa: - Eles são filhos, mas pra resolver essa questão da senhora, é
Zezinho que vai pedindo a eles que, junto com os caboclos do próprio Zezinho...
11
Essa passagem lança dúvida sobre afirmação recorrente de que, na magia, a “noção de
responsabilidade moral (...) está ausente” (ver, por exemplo, Montero, 1994: 78). Ora, é bem verdade
que o pai-de-santo não é diretamente responsável pelos atos de seu Exu, mas ele o é indiretamente,
quando se demonstra incapaz de bem alimentar ou de negociar as vontades de seus entes espirituais
que, ressalte-se, são seus. A esta suposta amoralidade, Evans-Pritchard (1978: 65-66) já objetara que,
em casos de crime ou outras situações graves, a bruxaria era então considerada irrelevante, ou então
não era tida como a causa principal. Ademais, disse o autor, mesmo em situações ordinárias, não se
formava um consenso definitivo sobre sua atuação.
148
Etnógrafa: - Sei lá, às vezes eles têm uma presença, não sei.
minha prima pedir alguma coisa com fé, você vê. Ela vê o resultado. Se pedir com
fé mesmo...”
Dona Érica: - “Enraivada, assim com toda raiva, eu disse: - ‘Se eu tiver
caboclo, santo, diabo, eu vou ver o resultado!’ Aí eles me provam que eu tenho. Aí
eu vejo...”
Prima: - (risos)
Pacheco (2000: 34) também concorda que a raiva surte um efeito especial em
seres semelhantes à sua Padilha. Se um cavalo lhes dirigir pedidos aos prantos, elas
se revoltam, diz a autora, “agora se você falar com firmeza, com orgulho e desafio,
elas acordam e vão correr caminho para lhe trazer o que deseja”. Trata-se como
bem descreveu Ochoa (2004: 273) de uma reverência em forma de luta (“struggle is
Cardoso (2004: 143-144) também chamou a atenção de que “nas estórias dos
uma luta interminável entre dar e tomar”. Porém, a autora se questiona se luta é a
12
Pelo interesse comparativo, transcrevo dois trechos em que tais lutas estão evidentes. No primeiro,
ouve-se um palero cubano (mal)tratando sua prenda (Lydia Cabrera apud Ochoa, 2004: 363). No
segundo, ouve-se uma médium invocando sua Padilha (Pacheco, 2000: 34).
“Sua filha da puta, você faça o que eu digo. Você não é mais forte do que eu! Foda-se!”
“Quero saber, mulher quem você é. É tão boa quanto diz, Sinhá Puta? Quer menga (sangue), quer
festas, roupas, bebidas e comidas? O que quiser eu te dou, mas corra estrada e consiga este homem
para ser meu marido e seu amante, debaixo do meu pé esquerdo e preso na sua panela de cobre”.
149
melhor palavra para caracterizar uma tensão que não é só negativa, pois
palavra. Talvez seja muito para uma só palavra condensar essa relação tão especial,
santo tem um sentido bem diferente do usual. Ela não leva à propriedade, pois não
propriedade. Nem humanos nem espíritos são proprietários uns dos outros
vimos no capítulo 1 que tal bloco de devir não implica em harmonia. Ao contrário,
uma relação de batalha está embutida na própria ideia de que há uma obrigação de
alimentar e não alimentar essas entidades é uma das reações possíveis. Também o é
a recusa em lhes dar passagem. Circulam-se, com esse objetivo, várias técnicas de
botar carvão ou alho macho na mão e fechar, o exu vai embora”; “um pano branco
manejar de ombros).
Um governo muito especial, este13. Certo dia, ouvi um ogã dizer que ele
pede bênção ao caboclo de sua mãe-de-santo que, por sua vez, também lhe pede
13
Eis dois outros belos trechos em que Pacheco (2000: 33) descreve sua experiência com sua Padilha,
trechos que fortalecem a conexão que tento delinear: “Eu povoada e governada. De quem sou? Onde
começo eu, onde termina ela? Em que gestos meus ela se revela? Quem ri, quem fala? Quando eu e
quando ela, Dona Maria Padilha das Sete Encruzilhadas dos Sete cemitérios? As pessoas pensam que
o transe é só naquele instante. Que começa e termina. Não é assim. Continuamos juntas todos os dias
e todas as longas noites. Às vezes eu a odeio por rebeldia, por sufoco (...) Pareço ser às vezes seu
objeto, e para me vingar, aprendi a controlar mais ou menos a sua incorporação, não lhe ‘dando
passagem’ quando esta começa a emanar seus sinais e recusando-me por longas datas a provê-la de
suas oferendas habituais, como cidra, vinho, uísque, cigarros da marca ‘Charme’”.
150
bênção. “Eu sou pai dele, ele é meu pai” – ele completou. Brincando, eu disse: -
- “Ele manda mais em mim do que eu nele. Eu mando nele quando mando
tudo se complica –, não é pelo afastamento que se ganha a batalha, que aliás não
justamente para que tais “influências” sejam persuadidas a oferecer sua forma
benéfica.
dirigidas aos caboclos, santos e exus, mas também pela perplexidade, fruto desse
mundo demasiadamente reversível, em gostar daqueles que podem ser “piores que
feitiço perturbado”. Como não os desafiar, por exemplo, adorando ir aos toques,
mas não os alimentando com a frequência requerida? Não seria essa atenção
identificação harmoniosa entre adepto e orixá (conforme Lépine, 1978 apud Halloy,
2004: 377). Também não se trata de uma ideia oposta de relação: aquela baseada no
conflito, dominação e ameaça entre o filho e seu “duplo” (conforme Augras, 1983
apud Halloy, 2004: 377). Trata-se mais propriamente de uma ideia de relação que
14
A vontade de sair do candomblé é tão comum quanto a saudação da beleza e força de sua
presença. Já sabendo disso, Juca me dizia: - “Terminando suas aulas de atabaque, vou fazer do
candomblé um mito”. - Como assim? – eu perguntei. - “Vou excluir” – ele afirmou para em seguida
151
negada pelo apaixonado, receoso do sentimento que o invade contra sua vontade15.
Sem dúvida, essa paixão também é uma captura. Não se trata de identificação nem
conflito. Não são duas tendências opostas, mas uma só: participar se afastando. Uma
Num caso de feitiço, viu-se, tais ações são ainda mais exponenciais. O
enfeitiçado, por meio de um trabalho, dá comida ao exu que fora enviado para lhe
fazer o mal. Ao alimentar seu próprio feiticeiro, ele talvez o convença a se afastar,
talvez a se tornar seu cúmplice, talvez mais provavelmente a se manter entre uma e
outra alternativa.
Passagens
- “Só vai todo mundo viajar, minha velha, quando eu levantar tudo dali,
certo? Você me desculpa, você é a mãe-de-santo, mas todo mundo vai ter de me
esperar fazer o trabalho direito, porque se não fizer direito, e não ver o resultado,
mim...”
Pomba-Gira: - “Então bora fazer devagar, porque eles vieram sabendo que
ouvindo, não é não, minha velha? Se dê a bença..., tem de ter paciência, que se fizer
as coisas dos orixás na carreira... Quanto mais Obaluaê, que é tão devagarzinho,
velhinho.”
- “Você não vai ficar curado só porque de Deus e Jesus não! Vai ficar porque
Mãe-de-Santo: “E o resguardo?”
Pomba-Gira: “Não vou escrever resguardo. Não vou perder meu tempo. O
povo faz...” – mas, mudando de ideia, a Gira prescreve – “Nhanhar, cachaça, azeite,
pimenta: deixe tudo pra mim. Se tiver vontade, compre e traga pra mim!”
(Riso geral)
sobre sua família (ver por exemplo Lima, 2003b: 163). Viu-se, no segundo capítulo,
separando os bons dos maus, os feiticeiros dos enfeitiçados, os pais dos filhos-de-
santo (Barros, 2000: 112). Tal classificação, ainda que não-estática (Maggie, 1992:
235), implica pensar cada evento em uma sequência de tempo linear – com início,
15
Essa conexão foi inspirada nos romances de Milan Kundera (1985, 1986 e 1990).
153
meio e fim –, o vencedor, é claro, estando entre aqueles que impõem seu prestígio
candomblé está permeada por exemplos de decisões que um zelador tomou hoje no
dia seguinte serem anuladas para acatar o desejo de um santo ou exu, que desceu à
terra justamente para expressar seu desagrado16. Vimos também que espíritos,
entidades. Um santo passa à frente de um exu. Um exu passa à frente desse santo17
e também invade a festa preparada especialmente para seu Martim, para depois
ver um erê se interpor em seu caminho (estes erês, aliás, por serem crianças,
“porque ninguém manda neles”, “não levam nada a sério”, são “perversos”, e por
família-de-santo como uma família de tantos pais quanto existirem filhos. Pois os
“devir”-pai, isto é, uma possibilidade que, em sua própria virtualidade, faz com
que ‘ser pai’ vire outra coisa. Veremos, a seguir, como a história de Juliana,
16
Ver por exemplo Medeiros (2006: 43), entre tantos outros.
17
Um dos Exus com quem convivi, um dia disse: - “As pessoas rezam pro santo e esquecem de
chamar por mim, logo eu que sou dono das estradas, se o santo não pedir, eu não abro o caminho...”
154
antigos” do seu amigo, os seus agora orixás, exus e caboclos. – “O corpo dos
foram gente faz muito tempo, os santos faz mais tempo ainda”.
admira com o tanto de história que já viveu em seus apenas vinte e poucos anos.
Suas histórias são também as dos seres que a acompanham, grande parte deles
herdados de sua avó, mãe-de-santo há muito falecida. A garota, com eles, vê-se
Desde seis anos, Juliana frequenta o terreiro de candomblé de que hoje uma
filha-de-santo de sua avó toma conta. Ela e Jenifer – sua amiga, vizinha e irmã-de-
maioria seus parentes. Quando crescesse, Jenifer queria ser ogã, e Juliana, mãe-de-
santo.
Ainda pequena, Juliana acordava à noite, aos prantos, mas não sabia o
porquê. Saía à rua, a mãe aflita, e a menina não tinha um motivo. - “Era minha
- “Sonho com ela me entregando presente. É muita, muita história, você não
queria fazer uma entrevista? Eu tenho que passar por equede para ser mãe-de-
santo. É meu sonho, e eu vou ser, com fé em Deus. Não posso virar nas festas,
porque, se eu virar, não aprendo. Só quando eles querem mesmo descer, porque
não é bom não deixar passar. Daí alguém conversa com eles e pede que eles entrem
18
A palavra descendência, no interior da Bahia, normalmente é sinônimo de ascendência (no sentido
155
no zambi, que saiam do aparelho. Já dei obrigação, trabalho de limpeza, mas ainda
não entrei no roncó. Até o final do ano vou ser filha-de-santo de Angelita, com fé
no senhor. Tenho o Obaluaê de minha vó – peguei seu carma. Eu não queria ter
isso tudo, é muita história... Recebo também um santo guerreiro, Tumbajuçara, que
era da minha avó e é herança de Angelita, mas agora também chega perto de mim.
Recebo um orixá surdo e mudo, também era de minha vó. Não sei o nome dele, ele
família tem uma aproximação com o candomblé, mas ele tem “a nação em [seu]
igualmente disposto, é provável que Jaco, enquanto viver, seja o único herdeiro das
“descendências” de sua família, fato que não é considerado exatamente ruim, pois
Jaco – seus parentes há muito mortos – e os caboclos da avó de Juliana, que agora
são seus, não perfazem dois conjuntos diferenciados. Entre as pessoas com quem
de caboclos herdados de algum parente morto não há muito tempo 20. E foi
que pude ver lançada uma fagulha de luz à zuela acima ("vós é minha neta e eu sou
sua filha"), zuela que durante muito tempo pareceu a mim e a alguns amigos
mas penso poder ouvi-la – entre as inúmeras notas possíveis – como uma das
inversões que o candomblé transporta. Pois, se tudo correr como Juliana deseja,
aqueles caboclos, que um dia foram de sua avó, se tornarão filhos de Angelita que,
lembremos, era filha não só da avó de Juliana como também desses caboclos que
agora são de Juliana21. Eles, que um dia foram pais, hoje serão filhos. - “Eu sou sua
filha e vós é minha neta” – a cabocla de Juliana bem poderia zuelar para Angelita.
capturar pela condição de filhos, tornando-se um deles (“eu sou sua filha...”). Mas
estes mesmos caboclos se tornam filhos sem deixarem de ser pais de seus carnais; e,
mais importante, seus carnais são por eles transformados: os caboclos saturam seus
filhos com sua própria paternidade, transformando-os também em pais (“... e vós é
outra coisa. Todavia, há aqui uma adição. Ao ser preenchido com a paternidade de
ideia nativa de que, ainda que negociada, é a vontade da divindade que terá
proeminência. É por isso que mesmo alguém cuja ascendência junto a orixás,
caboclos e exus se faz evidente somente poderá dizer que “quase” está protegido
21
Claro, isso só é possível quando se abre a paternidade a mais de um caboclo, santo, orixá ou exu,
como foi sugerido ao longo desse capítulo. Mas, mesmo em terreiros onde um filho-de-santo tem
apenas um pai ou uma mãe, este ou esta normalmente vem acompanhado de um segundo e, às
vezes, terceiro orixá, com os quais ele também vira (daí as composições: ‘eu sou de Oxóssi com
Iemanjá’, ou ‘de Oxum com Ogum’ etc.).
22
Não acho muito, pela vivacidade, citar mais um trecho de Pacheco (2000: 33-4) sobre sua relação
com Maria Padilha: “Ela é Senhora. É sua senhora e você sua escrava. Até que você se impregne de
sua altivez e se torna rainha também, seu corpo glorificado com o remelexo de suas ancas, aí que está
a sedução e a loucura”.
157
Se, no restante desse capítulo, grande ênfase será dada à consideração destas
e de outras transformações, não se quer por isso advogar pela identificação de pais
com filhos-de-santo, feiticeiros com enfeitiçados, espíritos com humanos. São várias
- “Se a senhora pegar uma galinha preta, um pombo, pegar azeite, farinha,
branca, como seja lá de acordo com o que o pai-de-santo entenda qual é o anjo-de-
guarda [contra quem] ele vai fazer o feitiço), o pai-de-santo pode arriar no chão
com sete pratos, ou quatorze, ou vinte e um, e depois fazer aquela reza em intenção
do anjo-de-guarda daquela pessoa que ele tá enviando aquele feitiço. Agora, vamos
mim, pode ter a plena tenha certeza que o torpedo vai pra senhora mesmo, porque
argumento que a matizasse. Miquelme acha “chiada essa coisa de que mandar o
mal pra alguém que tenha o mesmo anjo-de-guarda é dar um tiro no próprio pé: -
‘Quero ver se eu fizer um feitiço pra alguém de Oxóssi, se vai pegar em mim?’”
vítima, quando faz mal a alguém com o mesmo santo que o seu.
23
Essa ideia ressoa a observação de Nina Rodrigues, citada acima, em que há maior ou menor
158
Para seu Joir, é através dos orixás que os humanos se dão bem ou mal, “a
gente vai se comunicando não dentro da gente, é dentro do santo. Porque o santo
puxa a gente pro caminho junto com outra pessoa”. Se duas pessoas têm o mesmo
santo – ou exu, ou anjo-de-guarda, “como seja”, diz seu Joir –, elas estarão mais
por pessoas diferentes não é exatamente nova, a formulação de seu Joir é uma das
abaixo:
- “Eu estudei assim” – replicou Nêgo – “Uma mãe-de-santo tem mil filhos-
de-santo. Cinquenta deles têm Tranca-Rua, todos eles vão ser comandados pelo
seu Martim que é diferente: tem vários porque ele é um espírito de morto” 24.
A meu ver, Adenilton e Nêgo divergem menos do que a princípio Nêgo quis
seu Joir, mas enquanto este a estendeu para qualquer pessoa com quem se divida o
espírito geral e compartilhado também está presente, quando ele diz que “a cabocla
Jurema comanda as várias caboclas diferentes de cada pessoa”. Quando seu Joir
intensidade da presença dos ‘deuses’ no que ele chama de ídolos, mas que aqui estendo a humanos.
24
Essa mesma ideia foi verbalizada, com nuances, por Margarida, uma das filhas-de-santo de
Severino: “Por exemplo, o meu Tranca-Rua e o Tranca-Rua de minha irmã, na casa de Severino, vão
gostar das mesmas coisas que o Tranca-Rua de Severino, mas se eu for de casa diferente, o meu
Tranca-Rua vai gostar do que o Tranca-Rua do meu outro pai-de-santo gostar”.
159
gerou uma semelhança ‘radical’ entre humanos que possuem os mesmo seres, ele
deixou de lado a ideia de que cada cabocla Jurema, à medida que se aproxima e se
relaciona com um humano, aos poucos vai se diferenciando das outras caboclas
Jurema, quando adquire características únicas (uma ideia em parte verbalizada por
São inúmeros os exemplos de uma pessoa que passa a sentir aquilo que
sente uma segunda pessoa, ambas “fazendo parte” do mesmo orixá, caboclo ou
exu. Às vezes sentem aquilo que o próprio ser de quem fazem parte sentiu. Dona
Marilena, por exemplo, teve “um troço” quando se deparou, na casa de seu pai-de-
santo, com uma cobra dentro da panela. “A jiboia tava cozida, mas minha pressão
não aguentou; eu faço parte de uma cobra, na minha linha tem uma cobra, foi por
algo que ouvi em campo, quando também ouvi que a bebida em excesso de um
Dizia acima que os caboclos e seus filhos se capturam, que um “faz parte”
do outro. Ora, o mesmo pode ser dito para pais e filhos-de-santo. A força que une
25
Essa questão remete a inúmeras outras, mas, infelizmente, não será possível demorar-me nela.
Remeto o leitor ao trabalho de Goldman (1984: 123-124; 2009: 120) para uma discussão mais
aprofundada sobre o tema (ainda que, ali, Goldman se refira especificamente a santos, que são feitos
por humanos, e orixás, que se encontram no mundo sem a intervenção humana, acredito que
também aqui, ao tratar de espíritos cuja feitura não está sob ênfase, ideias análogas de diferenciação
e semelhança estão presentes. Uma elaboração que contemplasse como essa analogia se difere ‘ali’ e
‘aqui’ seria bastante interessante, mas excede o objetivo deste trabalho).
26
Medeiros (2006: 43) também observa um relato semelhante, quando uma mãe-pequena diz à sua
filha: - “Onde quer que você esteja, vai estar acontecendo comigo também”, e quando a filha diz de
sua mãe: - “Ela é mãe-pequena, então sente as coisas dos filhos”.
160
faz de cada um deles, pai (e, claro, de cada pai, filho). Talvez seja por isso que,
numa batalha feiticeira, dificilmente se tem como certo que o pai-de-santo triunfará
sobre seu filho, algo aliás pouco comum durante meu campo, como também no de
outros pesquisadores27.
Reversibilidade
em um dos temas suscitado por tal relação, tema que foi bastante trabalhado pela
27
Maggie (2001: 47; 80), em Guerra de Orixá, deparou-se com “demandas” entre filhos e pais-de-santo
que, em sua maioria, não foram vencidas pelos últimos. Todavia, neste trabalho, não se deseja
deduzir que, se os pais não ganharam, seus filhos venceram. A meu ver, o que parece estar em vigor
é um estado permanente de luta, cujo resultado momentâneo de suas batalhas não teria o poder de
encerrar. Por isso, parece-me, a força sempre aparece em estado de propagação.
161
em sua escrita, que eu não pude fazer outra coisa a não ser me debruçar sobre seus
detalhes.
lança, que a bruxaria é a segunda lança, e que, juntas, elas o mataram”. (Evans-
Pritchard, 1978: 58-64). Evidentemente, dizem os Azande, a viga mestra caiu pelas
térmitas que a corroeram, ou por estar velha demais, mas a bruxaria fez com que o
Claro, ‘meu’ pé foi ferido pelo toco que estava na trilha, mas, como estava atento a
todos os tocos, se “não tivesse sido embruxado, o teria visto” (idem: 58). “A crença
causa e efeito” (idem: 63-4); ademais, em “noventa por cento dos casos” em que
sociais e econômicos mais sérios” (idem: 74). Já no Bocage francês, diz Favret-Saada
contratempo, uma doença, a perda de um animal, uma morte não suscitam outros
comentários além dos “ele bebe muito”, “ela tinha um câncer de rim”, “minha vaca
estava muito velha”. Mas num dia, o leite talha; na semana seguinte, a patroa
adoece; depois, é uma vaca que aborta, um trator que quebra. É com a repetição
28Enviar uma asa de galinha a quem se acusa de bruxaria é o processo costumeiro. Nas ocasiões em
que não há morte, mas sim a bruxaria no seu início, “você não deve insult[ar] [o bruxo] ou fazer-lhe
mal” (1978: 74), você deve, ao contrário, fazer um pedido cortês indireto para que ele pare de te
importunar. Ao receber tal pedido – isto é, as asas de galinha depositadas à sua frente, no chão de
sua casa –, o bruxo deve reagir com serenidade. Deve soprá-las com água e pedir que sua bruxaria –
se existente – torne-se fria. Se o acusado perder a cabeça e não realizar o que manda o figurino, a
culpa lhe será mais facilmente atribuída, pois a raiva denunciaria a gravidade de sua
responsabilidade que, de outro modo, seria inconsciente (1978: 46; 81-82; 100-102).
162
feitiçaria (sorcery) não são a mesma coisa. A primeira é fruto de uma qualidade
(o bruxo tanto pode ter sua substância bruxaria ativa sem sabê-lo como pode atacar
bruxaria Zande traz consequências à sua vítima de forma lenta, ela tem força para
matar, mas pode ser interrompida. A feitiçaria mata de forma fulminante, é fatal
(1978: 51).
alguém invejoso, muito mau, que tem ódio; ele deseja o que é alheio (Evans-
Pritchard, 1978: 85; Favret-Saada, 1977: 21; 188; 194-195; 204; 343). Mas, enquanto
para os Azande, ele normalmente está entre aqueles que têm ou um dia tiveram
atitudes hostis ou ambíguas com sua suposta vítima (1978: 85; 100), no Bocage, um
consciente de sua maldade. Ele enfeitiça por meio do contato ordinário: o olhar, a
palavra, o toque em suas vítimas – e por isso, em tempo de guerra, diz a autora,
nada se assemelha mais às armas feiticeiras do que um ‘oi tudo bem’, seguido de
pertencem a uma linhagem feiticeira (1977: 219-222); então, “mesmo se o filho não
demonstra nenhuma cumplicidade mágica com seu pai, ele é mesmo assim
portador da feitiçaria”, e pode por isso praticar o mal sem querê-lo ou sabê-lo. Da
mesma forma, a ideia de que a força de um feiticeiro é tão grande que passa a
possuí-lo modula a magia bocagiana com atributos menos volitivos (1977: 131).
aqueles que receberam asas de galinha mais de duas ou três vezes –, mas em geral
163
desse ponto de vista” (1978: 97), diz que não sabe se é bruxo, mas se o for, agiu
inconscientemente. Conforme manda o figurino, ele pede que sua bruxaria se torne
fria (inativa), pois deseja o melhor à pessoa que o acusa, todavia, no âmbito
privado, ele não admite que é bruxo, alegando que não tem a substância bruxaria
dentro de sua barriga (1978: 101-2). Mas ele não pode sabê-lo com certeza, por isso,
102, grifo meu) foi convencido de que “alguns pensam – por algum tempo, ao
menos – que afinal são mesmo bruxos”. Mas essa dúvida, o suposto bruxo guarda
para si, por isso Evans-Pritchard diz não ter encontrado ninguém que “admitisse
sua bruxaria”.
(os filhos de um bruxo são bruxos e as filhas de uma bruxa também) não é operante
parentes autopsiados ao falecer pode estar inativa no corpo daquele que hoje é
acusado (1978: 39; 41; 88-90; 105). Mas nem por isso se está imune a uma acusação –
e normalmente uma pessoa é acusada pelo menos uma vez durante a sua vida
receber asas de galinha vivem exatamente como seus vizinhos (1978: 89; 95).
contato com ele deve ser interrompido, ou, se impossível, ao menos evitado (1977:
43; 146; 200). Mas, ali também, a situação de quem fala – se a pessoa é a acusada ou
que não acredita em feitiçaria, pois isso é coisa de “gente atrasada”, dos “antigos”
Igreja e da Medicina, que ele conhece perfeitamente. Além disso, mesmo alguém
que tenha sido, ou que ainda esteja, enfeitiçado pode não querer ser identificado
quando ele se põe a falar (o que ele fará apenas com os diretamente envolvidos30),
ele comenta seu estado sob um discurso ambíguo; suas frases secretam vários
significados, elas se remetem e não remetem a feitiços 31. Talvez por isso o termo
feiticeiro (sorcier), ou qualquer outro que denote explicitamente essa condição, seja
Segundo Favret-Saada (1977: 33-34; 43), o Bocage não pode ser visto como
teriam jamais penetrado. Para a autora, um Zande somente pode escolher entre
Saada tenha exagerado – um Zande sabe que existem explicações de outra ordem e
entra em detalhes sobre o problema que o aflige com os seus parentes e amigos
muito próximos (além dos especialistas), mas há ali alguns espaços cotidianos de
asa de galinha). Eles exprimem seu desapontamento pela acusação ao léu de que se
trata de bruxaria (1978: 51; 56-57). Eles não têm certeza plena se são ou não bruxos.
29 Não é, evidentemente, o que fazem todos os acusados. Favret-Saada (1977: 318-320) elabora a
complexidade criada depois que alguém é ‘forçado’ a ver o mundo do ponto de vista do bruxo,
mesmo quando se trata exatamente de negá-lo.
30
Os diretamente envolvidos são o ‘anunciador’ e o ‘desenfeitiçador’. O anunciador é aquele que
lança a dúvida: “por acaso não haveria alguém que lhe queira mal?” e o desenfeitiçador é a pessoa
procurada para desfazer este mal (Favret-Saada, 1977: 24; 281).
31 Por exemplo, faire des tours significa ao mesmo tempo enfeitiçar e jogar uma rodada, o que no
último caso não tem nada a ver com a feitiçaria. É o contexto que faz com que os envolvidos decidam
do que se trata (1977: 123).
165
Eles podem ver a bruxaria (1978: 48). E, por fim, eles consideram que a grande
maioria das mortes se deve à bruxaria (witchcraft), e por isso as vingam com uma
ação feiticeira (sorcery), isto é, uma outra morte (1978: 42-43; 74)
43), só é mantido porque não se sabe que os parentes do morto por bruxaria
(witchcraft) enfeitiçam (sorcery) um sujeito que, uma vez morto, será vingado por
(sorcery). Isso porque, apesar de a bruxaria Zande contar com um alto grau de
grupo de parentesco”, nos diz o autor (1978: 254), “age sem ter conhecimento da
ação dos demais; para uma família, a morte é o ponto de partida da vingança” –
isto é, o morto teria sido assassinado por um bruxo –, “enquanto para outra, essa
mesma morte é a conclusão da vingança”, isto é, esse mesmo morto seria um bruxo
bruxaria que envolvam homicídio” (1978: 47), denunciaria que aquele determinado
sujeito morrera “em expiação de um crime e que sua morte não podia, portanto, ser
observações”, continua o autor (1978: 208), perceberiam como nós o fazemos que
sua fé não tem fundamento”, pois sempre haverá uma “crença” que justifique
loucos” (Geertz, 1989: 80) –, sua teoria etnográfica32 não pôde dar conta de os
Azande considerarem verdade o que diz o oráculo (Holbraad, 2002: 3). Ela não
formou com a teoria nativa um compasso não dissonante, pois somente dizer – e
até mesmo insistir – que cada situação é importante para compreender o sistema de
bruxaria Zande não equivale a utilizá-las como método para conhecer esse sistema.
tencionava atacar esse tipo de pressuposto. Para ela, nos textos antropológicos
sobre feitiçaria de então não havia “nada que não [fosse] mais incerto que o status
no Bocage, diz a autora (1977: 35), “é preciso ser pego [pris] para acreditar” e
“aqueles que não estão envolvidos [pris], não podem falar sobre [feitiçaria]”. No
início de sua pesquisa, Favret-Saada não ouvia outra coisa senão o quão idiota era a
vítima, de como era charlatão o desenfeitiçador atacado pela mídia, ou de como era
noções de causa e efeito. Foi somente no momento em que ela pôde ser tomada por
considerações que ela chama de “puramente lógicas”. É provável, diz a autora, que
levarmos em conta que os céticos não mantêm sua certeza se o infortúnio se repete,
32
Teoria etnográfica é uma ‘técnica’ proposta por Malinowski, que foi retomada por Goldman em
seu trabalho. “Uma teoria etnográfica não se confunde nem com uma teoria nativa (...) nem com uma
teoria científica” (...), ela “procede um pouco à moda do pensamento selvagem: emprega os
elementos muito concretos coletados no trabalho de campo – e por outros meios – a fim de articulá-
los em proposições um pouco mais abstratas”, afirma Goldman (2006: 170), que sugere também que
o antropólogo, ao elaborar a sua teoria etnográfica, não deve opor práticas nativas às teorias nativas,
mas articulá-las (2000: 314).
167
(1977: 230) da culpa dos feiticeiros: a autora fica com a “impressão”, de acordo com
raros”
Porto (2007: 28-29) ataca veementemente tal impressão. Ela também teve
no Vale do Jequitinhonha - MG, região onde sua etnografia foi feita. Mas os
indícios, ela argumenta, seriam suficientes para levar a sério a possibilidade de que
feitiços são feitos, mesmo que “talvez não na proporção em que as acusações
ilusória, mesmo que esta não tenha sido a intenção inicial da autora.
não é exatamente pelos mesmos motivos que levaram Porto a criticá-la. A meu ver,
durante seu trabalho de campo. Não lhe sendo possível conversar com um
feiticeiro – e, por isso, seu trabalho é escrito do ponto de vista da vítima (1977: 214;
atribui serem olhares ‘de lá’ e ‘de cá’. Mas, se considerarmos que ao longo da maior
parte de seu trabalho, a existência de feiticeiros não é questionada, penso que nas
poucas páginas em que ela sugeriu sua inocência, Favret-Saada caiu numa
formular.
De início, Favret-Saada (1977: 226) afirmou estar tão “envolvida (prise) pelo
discurso dos enfeitiçados, tomando-os por realidade a ponto de nem mesmo [se]
168
isso, ela tenta se deixar afetar pelo discurso dos feiticeiros que, lembremos, uma
vez acusados, diziam não acreditar em bruxaria, ou que eram alvo de um erro de
lhe feito mal33. “Não é preciso concluir”, diz a autora (1977: 329), “que esse discurso
seja mais falso ou ilusório do que qualquer outro; mas antes que, como todo
discurso, ele tem sua condição e ao mesmo tempo o limite de sua eficácia na
que as pessoas envolvidas num caso de feitiçaria colocam em jogo. E foi o que
discurso de outros que, assim como ela, se encontravam enfeitiçados. Mas, incapaz
de levar a cabo o ritual que levaria à agressão de seu suposto feiticeiro, ela ali
parou: “eu percebi que, tão fascinante que seja a feitiçaria, eu nunca poderia me
acostumar”, pois “a moral da história é que ninguém escapa dessa violência: quem
não é agressor se torna automaticamente vítima; quem não mata, morre” (Favret-
quando não quis reverter ‘tudo’ sobre seu feiticeiro34, mas também quando
afirmou, com os feiticeiros, que estes seriam inocentes. Penso que sua afirmação foi
33
Em uma nota de pé de página, a autora (1977: 230) observa que só pôde ter acesso a três casos em
que julgou provável que um ritual de enfeitiçamento fora praticado: “curiosamente, se trata em todos
eles de um desenfeitiçador excêntrico em começo de carreira, que divulga sua prática – “eu vou te
enfeitiçar” etc. – para aterrorizar seus próximos”.
34
À diferença de Favret-Saada, dois outros etnógrafos, até onde sei, não se opuseram a ocupar o
lugar de feiticeiro (ver Ochoa, 2004: 367; 387-388 e Stoller, 1987: 109-113).
169
excessiva porque fruto justamente desse lugar que ela se recusou a ocupar. Mas,
dispositivo que os camponeses do Bocage colocam em jogo: ‘Eu, a etnógrafa, sei bem
enfeitiçados...’ Esse mesmo assim, diz a autora (1977: 95) – utilizado também em
frases como “Eu sei bem que o câncer é fatal... Mas mesmo assim, se o benzedor
por Eu sei bem que... 35 Por meio desse dispositivo, uma pessoa pode negar ataques e
Marujo zuela:
Elisa, já é meia-noite,
O meu violão vai tocar,
Elisa, se seu pai perguntar,
Ô, de quem foi aquela linda voz,
Fale a verdade, não minta, Elisa,
Foi um Marujo feroz.
35
Favret-Saada (1977: 215-217) elaborou de forma diferente a sua própria participação nesse
dispositivo.
36
Em umas das conversas com uma mulher supostamente enfeitiçada, Favret-Saada (1977: 152, grifos
meus) saiu com a seguinte impressão: “é e não é possível que Chicot seja a feiticeira dos Régnier [os
Régnier são a família da mulher com quem a Favret-Saada conversara]; é e não é possível que Chicot
fora morta devido ao ritual de desenfeitiçamento que os Régnier encomendaram; então os Régnier
podem e não podem me falar de feitiço”.
170
feiticeiros.
nega. Judite, por exemplo, mandou recado a Lito, um pai-de-santo, dizendo que
um outro pai-de-santo, de uma cidade baiana famosa por seus feiticeiros, dissera
que Lito era o culpado pelos males de Moisés. Judite, preocupada, mandou avisá-lo
a fim de que Lito se protegesse a tempo. Mas Lito tinha motivos para achar que a
- Por que eles iriam procurar um pai-de-santo de fora?!” Para Lito, Judite
quem afirmasse “na lata” seu feitiço ao enfeitiçado – uma minoria, em minha
experiência, é preciso ressaltar. Milhoró fazia parte dessa minoria, ele mesmo
declarou. De início, sua valentia parecia hipotética, ele disse apenas que, se
estivesse “virado na porra”, anunciaria à vítima o seu feito. - E a pessoa, o que ela
faria? – eu perguntei.
- “Já”.
(silêncio)
- “Falei pra ela: - ‘Você tá vendo sombra o tempo todo e sonhando com o
diabo?’ - ‘Tô!’ - ‘Apois! Fui eu que mandei. Coloquei seu nome no pé do Exu e
cortei um galo em cima dele. Se eu quisesse matar, punha, além do galo em cima
dele, uma maçã cortada com mel, uma franga em cima da maçã, o seu nome escrito
sete vezes debaixo da maçã e em cima do galo’. Luísa foi em Jojó e Jojó disse que
não ia fazer nada [pra desfazer o feitiço], pois não ia pegar. E também disse que se
Luísa viesse com palmito, eu já lhe voltava fatiado. Depois eu desfiz, fiquei com
171
não dar o menor indício de seu feito. Com João foi assim. Não querendo atrair
desconfiança, ele esperou o tempo passar para se vingar do pai de sua namorada,
que impedia o namoro dos dois. Alguns meses depois, o pai da garota quis se
feiticeiro.
O enfeitiçado também não tem uma atitude padrão. São possíveis desde o
rompimento total da relação com seu feiticeiro até o reforço dessa relação, de modo
a não encorajar uma nova ação feiticeira37. Ou, com a mesma intenção, aconselha-se
evitar encontrar o feiticeiro, mas se não houver saída, “que o trate bem, mas no seu
coração, você vai pensando, firmando...”. Há aqueles que preferem manter uma
relação com seu desafeto não exatamente para se proteger, mas para facilitar uma
vingança.
- “Eu perguntei! Ele disse que era Marinalvo quem estava fazendo feitiço pra
mim”
- “Aquele fez!”
No sábado seguinte, Riel não só foi em uma festa com Marinalvo como de lá
37
Sobre ‘técnica’ semelhante, ver Evans-Pritchard (1978: 96).
172
- “Não disse nada sobre isso não. Eu é que sei que, amigo, posso jogar
pemba corredeira na casa dele. Só não joguei ontem porque acordei tarde e esqueci.
No chão puro, nada é nada; só quebra com duas pedras: uma embaixo, outra em
cima. Mas Marinalvo é esperto. De longe sente, que nem eu, o cheiro de pemba”39.
Já ficou claro que não foi muito difícil nessa região encontrar feiticeiros.
povoados, não era tarefa impossível – eu pensava. Mas logo me vinha à lembrança
38
Aqui Riel usou uma variação do provérbio: “Eu sou eu e nicuri é um coco”.
39
Medeiros (2006: 26) descreve uma situação similar: uma enfeitiçada tomando cerveja com seu
feiticeiro.
40
Dentre as etnografias feitas no Brasil sobre feitiçaria e temas similares a que tive acesso (excetue-se
aqui os trabalhos antropológicos realizados em sociedades indígenas), apenas uma (Barros, 2000: 7;
11; 98-99) mencionou a facilidade em encontrar feiticeiros declarados. Outras tantas observaram
justamente o contrário (Leal, 1992: 8-9; Maluf, 1993: 74-75 e 119; Bahia, 2000: 265; Serra, 2001: 222;
Maggie: 2001: 123; Hayes, 2004: 377; Cardoso, 2007: 332; Porto, 2007: 38-40 e 29; Araújo, 2007: 11,
entre outros). Note-se, porém, que os feiticeiros declarados formaram uma minoria em minha
experiência de campo e também na de Barros (2000: 66, 81).
173
afluência de pessoas que não moram no mesmo lugar. Apenas conhecer todos os
envolvidos em um mesmo caso já não era fácil, quanto mais sabê-los todos
Não foi preciso, porém. Pude acompanhar, não tão de perto quanto gostaria,
um caso em que conhecia o feiticeiro, vi seu feitiço ser feito e o enfeitiçado me disse
que se considerava enfeitiçado. Infelizmente não poderei dar mais detalhes sobre
este caso, pois a identificação dos envolvidos seria bastante problemática, mas por
ora basta dizer que, uma vez satisfeito meu desejo, essa procura pela completude
resolvi alterá-lo ligeiramente de forma que ele não lograsse uma ‘equação’, mas
mantivesse uma operação, no caso, aditiva. Ora, pensei, todo caso é completo, pois
toda vez que um enfeitiçado se julga como tal, há um feiticeiro presumido. Mas, ao
mesmo tempo, todo caso é incompleto: potencialmente sempre haverá alguém que
mas também o próprio enfeitiçado, como veremos). A dinâmica feiticeira não gera
‘fatos’; por isso, mesmo quando uma etnógrafa vê uma bruxaria, sua visão entra,
especula que o próprio feitiço tem “uma parte de ilusão”, o que a princípio soa
- “Tô encasquetado. Coisa minha! Isso não sai da minha cabeça, depois te
conto. Tenho que ir em Luiz, deixa eu ir em Luiz que eu te conto... Já fui em Joelma,
174
que eu não ia em Luiz pro Exu descer só pra falar comigo. Joelma não podia jogar,
Pá, os búzios. Caíram todos retos: os santos não responderam. É por isso que
eu digo, santo não é comigo. Já no tarô, Joelma confirmou: - ‘O que você sonhou tá
correto’. Rapaz, nos búzios eu vejo e sei, agora no tarô, não vejo nada, Jânio não me
Pancada Rasa – não é bem da Pancada Rasa, é perto – tava fazendo porcaria pra
mim. Ele, com medo de me afrontar cara a cara, foi procurar uma casa. Eu não fico
com dor forte no olho dois dias seguidos, e veja isso agora! Mas antes de eu morrer,
eu ponho Nemo em cima da cama. Também disse a todo mundo lá em casa: - ‘Se eu
morrer, foi Nemo que me matou’. Disse à Betinha, a Jamaica, disse à mãe. Também
não disse o porquê. Advinha quem foi o único lá em casa que descobriu? Foi mãe
sim. Mãe é toda cismada. Eu nunca acordo murambando, sempre acordo já com
presepagem: acordo Betinha, acordo Jamaica, acordo mãe, mas nesse dia fui pro
quintal. - ‘Não vai beber cachaça?’ – mãe estranhou. Nesse dia nem bebi, acendi
uma vela no quintal, fiquei olhando, quieto. Também veio na minha mente tudo
que eu tinha que fazer. Tenho que comprar um coração de boi e 27... Não, 34
agulhas. Rapaz, eu posso ter inimigo, mas também tenho amigo, meus diabos
primeiro, que meus santos, eu não sei. Não sei! Meus santos nunca me avisaram
nada. Meu diabo tem uma forma doida, é uma sombra. O diabo não devia aparecer
na frente da gente?
Nemo, depois que eu sonhei, eu encontrei com ele. Ele me olhou e abriu a
queima! É..., tenho que ir sábado em Luiz. Vou perguntar se ele topa fazer”.
175
satisfação a Nemo, mas Nemo não confirmou a ameaça. Pra não ficar de mentiroso,
fulanos perigosos, na beira de quem desfilava, pra lá e pra cá, mirando a casa de
seu rival. Com medo de o pior acontecer, Sandro pensou em se esconder no mato
incentivaram: - ‘Mata esse cara, deixa o corpo e some durante uns três dias’. Foi à
delegacia civil, disseram o mesmo. Só não fez por sua mãe, e por não querer perder
as coisas que construiu, ele me disse: - “Melhor matar na macumba porque daí não
assunto não mais despertar o interesse de Sandro. Quando eu já tinha certeza que
era mais um caso de feitiçaria que se evaporava tão rápido quanto se solidificara,
eis que, duas semanas depois, Sandro viu o resultado de uma ação que ele não
- “Nemo tá se acabando sozinho. Voltou a beber. Não fiz nada nem vou
176
fazer, ele que vai se acabar. Ele dorme no chão em frente ao bar de René, e René
quis matar ele. Falei pro Exu de Luiz: - ‘Se você fizer ele se acabar sozinho, eu te
dou um frango’.”
outros momentos, Sandro não nega sê-lo – ele até mesmo se vangloria disso –, mas
nesse caso, ele se aliou a um outro, o Exu de seu amigo pai-de-santo que
provavelmente fez o ‘trabalho’ que ele não fez. Trabalho cuja eficácia foi reconhecida
mais tarde, pediu desculpas a Sandro, dizendo não ter “botado fé” na sua fama de
macumbeiro.
quais alianças se ativarão quando mais se precisa delas. Ainda que Sandro tenha
mesmo invocado a aliança com o Exu de Luiz, ele não poderia saber de antemão se
o Exu cumpriria a encomenda. Mesmo assim, e embora Sandro de fato não tenha
feito uma macumba para Nemo, ele acionou uma relação-bruxa. Relação que, se
não transforma Sandro em bruxo, não deixa de lhe emanar radiações feiticeiras.
Não faço macumba. Quando eu quero, peço a meu Exu e ele faz. Depois eu corto e
dou o que ele quer. Às vezes nem peço.” Mas isso o torna menos feiticeiro? Talvez
um pouco menos, acho. Mas não totalmente. Quando um outro enfeitiça, a pedido
ou por conta própria, ele bruxifica o humano de quem ele faz parte, e com a
etnógrafa não seria diferente. Uma das pessoas que me ajudou na arquitetura de
minha pesquisa me contou ter sonhado com uma cigana advertindo-lhe que eu a
177
fundamentos; e, mais, achava que justamente assim eu era percebida: uma pessoa
fraca, desse ponto de vista. Mas não. A potência bruxa está também disponível aos
inicialmente fracos, aprendi: - “Pergunte ao Exu se você não tem uma coisa dentro
de você que, se você pedir, você não faz mal aos outros?”
pode ser bruxo. Porém, também na Bahia, não é só a potência que está dispersa, a
“ilusão” também está. Mas ilusão, como se poderia esperar, não carrega
afirmam que “macumba é coisa da mente”? Vejamos abaixo o que argumenta seu
Vicente, depois que lhe perguntei como funcionavam os ebós (os trabalhos de
limpeza feitos no candomblé para tirar feitiço, “radiação de morto”, entre tantas
outras coisas).
- “Eu vou fazer o gesto direitinho. Por exemplo, eu arrio aquele ebó, depois
venho com essas folhas (talvez sejam outras, eu tô fazendo um exemplo), passo um
milho... Aquelas folhas, eu vou procurar a folha do seu anjo-de-guarda (ou dele, ou
dele, de qualquer um), porque na hora que a gente tá passando a folha, tá pedindo
‘Humm, ela tá com dinheiro na mão’. Às vezes você passa bem vestida, bem
trajada: - ‘Que gatona arretada, rapaz’. É esse que é o feitiço. Aí você passa
maltrapilha: - ‘Ói que mulher escrota da porra, velho!’ Será que existe isso?! Às
vezes você vai tendo uma boa carreira, mas desde quando eu lhe olhei – ‘Olha,
rapaz, que gatona da porra ali!’ –, já vou comentar com meus colegas. Quando
chega lá na frente, você vê aquelas pancadas, uma no seu coração, uma na sua
cabeça, ou umas dores no corpo. - ‘Ih, eu tava tão bem, saí de dentro de casa tão
bem, e agora eu tô dessa maneira?! Vou no hospital, ou vou numa clínica, ou num
posto, ou qualquer coisa’. É isso que é o feitiço. O feitiço é eu olhando pra você e
você olhando pra mim. Porque não existe feitiço não! Existe perturbação e
invocação, porque se eu chegar aqui, enrolar uma folha e dois pedaço de pau, se
você acreditar nessas quatro folhas, não é um feitiço? Mas se você tiver fé viva em
nosso pai eterno: - ‘Vicente me deu aquela folha e não vale pra nada, rapaz’. E joga
- “O feitiço é a fé, tanto faz pra você fazer o mal como pra você fazer o bem.
Se eu disser: - ‘Ói, Paula, leve essa folha aqui, enrole num papel, escreva o nome da
pessoa e jogue dentro do rio que a água nunca suba, que ela só faça descer’. Por
incrível que pareça, você faz aquele negócio, escreve o nome do cara em cima do
papel – aqui nesse bolo de folha –, quando pensa que não, com três, quatro, cinco,
oito ou dez dias, o cara bate a caçoleta. - ‘Eita, rapaz, Vicente é gente boa, Vicente
sabe trabalhar’. Mas foi a sua fé. Porque como é que você vai pegar um pedaço de
papel, enrolar, escrever o nome, vamos supor, o meu nome mesmo, jogar dentro do
rio, com três, ou quatro, ou cinco, oito, ou dez dias, eu bato a caçoleta? Você vai
acreditar que foi um feitiço que eu fiz dentro dessa folha? Vai! O que acontece é
isso.”
- “É. Porque antes de você pegar um copo de água pra beber, bateu na
cabeça: eu vou pegar um copo de água pra beber. Se você vai sair na rua, antes de
179
você sair, você já pensou: eu vou na rua fazer isso, isso e isso. Não tem uma coisa
mais veloz no mundo do que o pensamento, porque pra você fazer com as mãos,
- Eu acho que sim, seu Vicente, o senhor tá me dizendo, eu acho que sim.
pra tomar um cafezinho ou chupar uma laranja, primeiro não passou pelo
pensamento?”
É verdade, diz Boiadeiro, que “às vezes as pessoas falam que tem macumba
em cima dela, mas não tem nada; é imaginativo, coisa da mente”. Porém, seu
Vicente não estava falando de fantasia. Ele falava do poder de a mente relacionar
eventos cuja influência se ativa através dessa própria associação. É verdade que seu
Vicente tem para si que os objetos feiticeiros não são eficazes, mas, mesmo
concorda com o dizer “um dos piores feitiços é olho”, pois, para ele, o olho que
olha age ao olhar; ele não apenas é um ‘comentador’. Porém, enquanto para alguns
o perigo está no ‘olho-comelão’, o olho que deseja, derrubando quem ele “usura”
ou admira, para seu Vicente, o olho que age é na verdade o olho daqueles que se
julgam olhados. Para ele, o enfeitiçado, cujo olhar é suscetível ao olhar dos outros,
protegida, isto é, forte o suficiente (sobre isso, ver também Favret-Saada, 1977: 40-
Outros, menos ‘radicais’ que seu Vicente – pois creditam aos rituais e aos
objetos uma parte importante da eficácia feiticeira –, mesmo assim advogam que a
‘negócio’ –, somado à “cisma” que ele deixou de ter, fizeram seu problema passar.
180
por santos, exus, marujos e caboclos. Parece mesmo haver uma composição entre o
que se faz com a mente e com os espíritos. Foi o que Tomás tentou me explicar,
de-santo, quer dizer, o Exu do pai-de-santo. Foi sete mil reais! Ela só pagou metade;
a outra metade, ela vai pagar depois de ver o resultado. Foi pro ex-marido, ele
abandonou ela por outra, tomou a casa, fez miséria com ela. E a gente mandou ele
caixão. A gente chorou na sentinela! Ave Maria, aí é que vai dar resultado!”
- “Tava! Quer dizer, ela tava lá no terreiro, mas ver mesmo, não viu nada.
Ela entrou na casa de Exu somente pra deixar o sangue dela no trabalho. Depois o
Talvez por tentar não demonstrar perturbação – mas pela própria pergunta
macumba no homem?
- “A gente cortou na intenção dele, com a mente entertida nele; é assim que
funciona. Chamando o diabo pra levar ele pro inferno, que ele já ia.”
O homem que segundo Tomás merece a macumba, se for atingido, ele o será
por um misto da força do exu com aquela provocada pela mente “fixada” na
pessoa a ser atingida. O próprio seu Vicente, que acima ‘decompôs’ a existência do
momento da entrevista, disse que uma pemba tem “validade” desde quando a
força do pensamento daquele que a enviou, somada ao vigor de seu Orixá e ao voo
Não se tenciona afirmar que orixá e mente são a mesma coisa, um a tradução
do outro. Como disse, penso antes em composição, que aliás gera belas fórmulas
(“Desrespeitei lei maior do que a minha cabeça”, me disse Caíque, sobre a quebra
meus diabos”, me dizia Júnior, ainda em dúvida sobre qual decisão tomar). É
comum santos, exus e caboclos deixarem na mente de seus médiuns avisos, pistas e
orientações. Mileno contava com isso quando precisou fazer um trabalho para
Dariana ou Marcos, dois “curadores” dos quais gostava bastante. Um sonho, que
- “Eu sonhei que perguntava à mãinha: - ‘Quanto é dois mais um?’ E depois
via Dariana fazendo um ebó na cozinha da casa dela. Tinha um balde de feijão-
macáço, que não é roxo, mas no sonho tava com a água da cor de sangue. Eu ia
‘Não vou fazer meu trabalho com Dariana! Ainda mais que três é o número do
diabo!’”
Etnógrafa: - Mas será que ela faria alguma coisa contra você, logo você de
quem ela gosta tanto? E logo ela, que todo mundo diz que não faz nada dessas
coisas?
Mileno: - “É por isso que eu penso: será que não foi o Exu de Marcos que
botou esse sonho na minha mente? Será que é pra eu não ir? Ou será que ele botou
pra me avisar?”
Os dias se passaram e Mileno concluiu que Dariana não lhe queria mal; o
sonho era tão somente uma indicação para que ele fizesse o trabalho em Marcos.
candomblé”, um termo usado vez ou outra pelas pessoas que conheci para indicar
o conhecimento dos mistérios que a vida no santo proporciona. Foi o que disse a
esposa do irmão Mileno, ao observar que o marido ficara bêbado, ingerindo cerveja
sem álcool.
sorrir: - “Quem bebeu foi Tibiriri!” – ela se referiu ao Exu de seu marido – “É isso! E
de Mileno.
- “... Muito difícil, e não é todo mundo consegue... Nem todo mundo
consegue ligar uma coisa com outra” – ela falou essa última frase gesticulando com
Tais associações são por vezes caracterizadas por “cisma”, um termo que
Juraci, por exemplo, é considerado um sujeito cismado: “ele ouve risada e pensa
que é dele; escuta conversa e pensa ser o assunto; alguém xinga, pronto, é pra ele”.
Mário também o é, mas ele próprio assim se considera. Quando ele encontrou
pimenta machucada junto a um pozinho em frente à sua casa, sua mãe disse não
ser nada, mas ele anunciou: - “De hoje a oito, eu vou descobrir”. Decorrido o prazo,
“veio na minha mente: - ‘Saia na janela’ (que eu tenho uma média vidente muito
forte: quando ando de bicicleta, não olho só pra dois, olho pros quatro lados). Mas
ao mesmo tempo me veio: - ‘Não saia’. Porque você já sabe o que eu ia fazer com a
elementa se eu topasse com ela, né? E a justiça não acredita! Saí a tempo de ver
uma mulher. Ela me viu, pá, olhou pra trás. Daí eu vi uma outra criatura dar um
passo maior que a perna. Fui conferir, e lá estava: pimenta e pó. Caboclo disse que
foi uma vizinha da gente que fez pra gente brigar dentro de casa.
trabalho. Eles dizem: - ‘Sua vida é só trabalhando’. Com minha vida ninguém tem
nada com isso! Bebo minha cervejinha, trabalhando... Depois a gente achou três
cigarros na escada. Já era pra minha irmã. Quem deixou é vizinha também. E foi
também por inveja, porque na gestão anterior ela tinha emprego e, hoje, minha
irmã é quem tem41. Outro dia, já mais recente, topo com cinco laranjas em fileira, da
menor para a maior, no muro do colégio. - ‘Eu é que não vou pegar’, pensei. -
- ‘Venha cá, faz favor! Você não pegou sua laranja que tava no muro?’
- ‘Eu ia pegar a laranja que era sua, rapaz?’ – eu disse a ele. Aí foi lasqueira,
ele começou a gaguejar, a se embananar. Na certa foi a mulher, a minha ex, que se
41
Como se sabe, a inveja é normalmente ligada à feitiçaria, mas nem sempre por vias muito claras.
Em meu campo, às vezes ela foi tida por ‘prima’ do feitiço; às vezes se preferiu ver a feitiçaria e a
inveja em dois conjuntos distintos. Às vezes, inveja – o olho grosso – foi inconsciente; às vezes, ao
contrário, foi fruto de uma maldade proposital. O invejoso – ou o feiticeiro – normalmente foi tido
por alguém que deseja o que não possui; ou, ao contrário, aquele que se tornou rico justamente
porque não divide, empresta ou oferece o que tem. Em ambos os casos, o problema maior foi a
“usura”, isto é, a ambição, a inveja. Apesar de este ter sido um tema importante em minha
experiência de campo (e também na de inúmeros outros pesquisadores que se debruçaram sobre a
feitiçaria), ele foi tratado neste trabalho apenas de forma tangencial. Isto se deve a um motivo
simples e, de certa forma, óbvio. Penso que, ao enfocar menos a fala sobre o feiticeiro e mais a fala do
feiticeiro (discurso, este, que pouco aparece em outras pesquisas sobre o tema), a inveja não apareceu
com tanto destaque porque este não seria uma razão da qual um feiticeiro desejaria se valer (em sua
fala, o que normalmente aparece é a vingança). Ainda assim, a ausência de uma reflexão mais
aprofundada sobre o tema só é justificável pela falta de tempo disponível para contemplar com mais
profundidade os dois tipos de enunciados (a fala sobre e a fala do feiticeiro). É, portanto, algo a que
pretendo voltar em outra ocasião, pois ainda que muito se tenha dito sobre o vínculo entre feitiçaria
e inveja parece-me que as abordagens anteriores giraram em torno de visões patologizantes sobre o
tema. Nelas, ora se afirma que a feitiçaria partilha da mesma lógica do capitalismo (ela seria parceira
da ‘mercadoria’ enquanto a religião, do ‘dom’), ora, ao contrário, argumenta-se que ela é o inverso
do capitalismo, pois oriunda de mundos marcados pela finitude de recursos (e aqui se inclui a
famosa ideia de ‘soma zero’: se alguém tem mais, é porque outro tem menos). Em ambos os casos, é
uma acusação que está em jogo. Se, por um lado, teria sido ideal enfrentar tais dificuldades analíticas
já neste trabalho, penso que, por outro, ao me debruçar na fala do feiticeiro, pude tornar visível que
tais modelos pecam, no mínimo, pela simplificação excessiva das inúmeras outras dimensões que um
caso de feitiçaria envolve.
184
ofereceu pra ele, e ele deixou a pedido dela. Caboclo, quando perguntei, disse que a
mulher ainda tava me perseguindo, mas que eu já tava avisado, não ia cair mais na
dela.”
Como tantas outras pessoas que encontrei na região, Mário não nega sua
cisma. “Eu sou cismado(a)” – ele e outros afirmam e repetem, com valentia. É
através dessa cisma – uma cisma que vem também de sua médium vidente – que
Mário se considera precavido. A força dos espíritos, a força da fé, a força da mente,
todas elas são forças diferentes que no entanto deslizam umas sobre as outras.
Aqueles que as têm são contrapostos aos “fracos de fé” – àqueles cuja “intuição dos
orixás” não vem lhes valer, aqueles cujas companhias não foram acionadas. É a
“força da fé” que faz com que as pessoas não se sintam “vazias”, como se sentiu
Graça, que queria se “apegar”, mas achava que sua fé não era grande o suficiente e,
muitas coisas que “influem” nos quatro cantos do mundo. Ele agora sabe vê-las,
porque “forte de fé”, porque tem seu “povo” que o avisa dos perigos potenciais. É
verdade que Mário “cisma por qualquer coisa”, mas era justamente sua
42
Ver, por exemplo, Montero (1994: 78) e Porto (2007: 241-247). Para uma crítica e uma alternativa à
abordagem de Porto (2007), ver a etnografia de Benites (2010: 256-259), que trata o vínculo dos
“fenômenos político-eleitorais” com os “sistemas mágicos de influência”, também no interior de
185
com quem se vivencia não só o temor, mas também a sua superação. Pois, além de
de os dotar de uma agudeza ímpar de sentidos, este mundo da feitiçaria, com sua
propensão para guerra, envolve uma quantidade imensa de seres, cuja proliferação
exemplo, teve sua suspeita confirmada por Boiadeiro: ele realmente estava sob a
mira de um feiticeiro. Mas o Exu do carnal desse mesmo Boiadeiro, dias depois, lhe
disse que não havia macumba alguma. Seu problema era o resultado de uma
guerra de orixás pela sua cabeça. - “Mas o Exu é treteiro, o Exu quando quer,
mente, e mente muito”, afirmou Railton, sorrindo. Somente com o tempo Railton
descobriria se o Exu falara ou não a verdade, enquanto isso, a dúvida atenuou sua
suspeita44. O Exu então conseguira o mesmo resultado que certa vez uma outra
mãe-de-santo almejou, quando omitiu por medo da “natureza” de seu cliente que
ele estava sob alvo de feitiço. Ao cliente, ela confirmou uma perturbação por
espírito de morto, mas se calou quanto à feitiçaria que, no entanto, “tinha uma
parte” em seu problema. Ela a combateria sem que o cliente soubesse, pois queria
tirar “da mente” do sujeito uma preocupação que só fazia piorar sua situação.
Minas Gerais.
43
Aqui caberia estender à feitiçaria o que Clastres (2004: 265) afirmou da guerra para os povos
indígenas: “O estado de [feitiçaria] é permanente, mas nem por isso os [feiticeiros] estão o tempo
todo [enfeitiçando]”.
44
Sobre exus e a mentira, ver Pacheco (2000: 50) e Wafer (1991: 4). No trecho a seguir, Nathan (2004:
80) desenvolve uma interessante reflexão sobre os demônios e a mentira, um assunto que mereceria,
aliás, um estudo mais aprofundado: “...Como se comportar diante de alguém cujas palavras, cada
uma delas é mentira, cada proposição, artimanha, cada sentimento, armadilha, cada ação pode ter
efeito inverso daquele que imaginávamos”. Mas, diz o autor, ao se relacionar com seres sabendo que
tudo é mentira, eles nos fazem ver “um lado escondido da vida social: a obrigação de mentir para
dinamizar os laços, para que o comércio tenha lugar, para que os bens, as pessoas e as palavras
circulem”.
186
dois feiticeiros diferentes. Com efeito, muitos dos casos que acompanhei
apontavam para uma segunda camada de causas possíveis, mas nem sempre era
um outro feitiço. Um dia, pela manhã, eu soubera que uma mulher sofria com a
recentemente, que teria vindo cobrá-la a vingança que ela lhe jurou cumprir. Mas
logo depois soube também, pela mesma pessoa, que o marido fizera um feitiço
Mesmo um ritual público pode contar com sua camada feiticeira. Fui
pai-de-santo, é um exu que “tem parte com obaluaê, vive no cemitério e, por isso,
- “Vou dar comida a Tata Caveira para que ele não venha comer a gente.
Que, Deus é mais, nem gosto de dizer isso, mas ele come carne e rói osso! É uma
feitiçaria, um ajebô. Ajebô e feitiçaria é tudo o que vem na mente: - ‘Faça isso, faça
aquilo’. O corte para Tata Caveira já é uma tradição no terreiro, mas também é
grau mínimo de alteridade em relação àquele que ela influi. É algo que vem à
mente, mas não se sabe muito bem de onde se origina. Especula-se que sua
irrupção venha de uma entidade que, apesar de fazer parte daquele que ela influi,
guarda para com ele alguma alteridade. A “matança” do leitão era uma feitiçaria-
ajebô porque foi algo que “veio na mente”, mas ela foi também, depois soube, um
outro tipo de feitiçaria, pois que um trabalho encomendado por uma enfeitiçada
que queria “virar” o feitiço para sua feiticeira. - “Problemas de vendas, de negócios:
como se diz, eu tenho inveja de você, você tem inveja de mim, então vamos ver
quem tem a unha maior”, disse o pai-de-santo. Aquele fora um ritual público, com
187
a presença de cerca de quinze a vinte pessoas, mas quase nenhum dos presentes
Ao vivenciar tais situações, não era raro eu querer eleger uma causa
principal, colocando todas as outras de lado: ‘o caso de Fulana parece mais espírito
de morto’, ‘aquele outro, mais feitiçaria’. Tudo era muito confuso, e eu queria ter
algo mais sólido sobre o que escrever. Depois, percebi que eu poderia deixar a
própria concepção de minha etnografia ser influenciada pela existência das várias
velas acesas, acionando presenças sobre as quais eu jamais saberia detalhes além de
um nome vago; ou então dos vários papeizinhos, adicionados na última hora aos
conformar que, numa simples visita a um terreiro, subsistiriam uma mão cheia de
escapariam.
pessoas com perguntas que, além de inconvenientes, muitas vezes não traziam
consigo uma senha capaz de levar à resposta. Claro, nem todas as minhas
quando uma ou outra resposta interessante (no entanto, em alguns momentos, tive a
45
Tal duplicidade também foi encontrada por Iriart (1998: 172-173), em Cachoeira – Recôncavo
Baiano. Uma de suas interlocutoras dizia que sua Pomba-Gira era uma “divindade da família de seu
pai que, depois da morte dele, a teria escolhido como herdeira”, mas ela especulava também que essa
188
parecia aumentado). Em todo caso, enquanto não aprendi (ou enquanto resisti) a
Percebi, então, que não bastaria perguntar de quem era aquele exu que o
pai-de-santo falou mal? Ou para quem era aquela macumba? Para estas perguntas,
as respostas eram frustrantes: - “Do homem ali” ou “Pra mulher que veio aqui”.
Nos casos mais secretos ou violentos, para gerar um diálogo, a pergunta teria de
‘Aquele exu era o de Ciclano?’; ou se ‘Aquela obrigação era para atrasar a vida do
participar da geração do que seria dito. Se minha pergunta anunciava em bom tom
que eu não demonstrava objeção que aquele Fulano do Chã-da-Serra fosse alvo de
elas não se encerravam em si mesmas. Não foi porque passei a afirmar que se
Caboclo zuela:
necessariamente aumente ou diminua seu poder. Ela certamente faz parte de seu
horizonte, desde as maneiras já esperadas até as menos usuais, pois que afirmações
que ferem e matam, e “em última instância o produtor de sua eficácia” (Stewart &
mas também sua complexa produção de irrealidade, que não se encontra fora, ao
contrário, está mesmo no interior dos eventos que ela coloca em relação. A
Contudo, não é porque reversível, provisória, ambígua e volátil que ela se torna
Ao Lado do Avesso
47
Na Ilha da Pintada – RS, por exemplo, as bruxas podem ser identificadas justamente por chegar ao
ritual de “benzeção” negando a existência da bruxaria (Araújo, 2007: 44), e, no sertão mineiro, o
“próprio contador do causo, ao se assumir acusador do feitiço, ver-se-á envolto em [uma relação de]
ruindade” e, por isso, antes de negar sua existência, evita-se a própria verbalização (Cerqueira, 2010:
286-287).
48
Se por um lado Stewart & Strathern (2004: 23) afirmam que a feitiçaria aparece tanto em
circunstâncias sociais relativamente estáticas quando naquelas sob rápida mudança, por outro, eles
acabam por vincular seu florescimento a contextos “incertos” e “fluidos” (idem: 192), ou àqueles
marcados por determinadas características (“baixos níveis de alfabetização e dependência da
transmissão oral, criação de solidariedade através da passagem interessada de informação, o caráter
anônimo da informação passada de boca a boca e a ambiguidade, a incerteza e o alarme que
emergem dessas circunstâncias de produção”) (idem: 113).
190
nada agradável de seu temperamento, quando ele quase quebrou minha câmera
fotográfica, cuja presença até então todos os outros espíritos não só não se
- Eu nem sabia que São Cipriano era exu, pra mim era livro.
- “São Cipriano é raro, ele não é de muita conversa. São Cipriano consulta é,
trabalho é. Você acha que ele dança depois do trabalho como Tranca-Rua? Dança
nada! Ele chega na casa meia-noite e vai embora meia-noite e um. Uma pessoa tá
ali prosando com outro exu, prosando, prosando e, quando pensa que não, chega
São Cipriano. Ele não diz nada, olha pra pessoa, ela também nada fala. Depois
da encomenda”.
- Você já viu?
- “Não, não, mas sim... A gente pode ir. O toque é quarta-feira, mas pense
- “Suas macumbas são muito doidas”, continuou Fafáu, “ele não é de dar
191
porque já sabem como ele é. O Ogum e o Oxóssi dele são gente boa, mas o Erê dele
não. Muito perverso. Já deixou Sinho noventa dias deitado numa tábua, quase não
conseguia comer. Sinho não tinha feito nada, bestagem. A mulher dele recebeu
Ogum, que ensinou o remédio, mas era fazer e a panela com água secar, até que
mas ainda não tivera a oportunidade. Depois de ouvir atentamente Dibu descrever
o batismo e o ritual que lhe fecharam o corpo por sete anos, Fafáu praticamente
repetiu as palavras que meses antes haviam me impressionado. Sinho era, ele
acrescentou, muito mais magia negra do que branca, inclusive ele já vira a bandeira
Dibu discordava totalmente. Sinho, ele disse, nem incorporava com diabo; se
pedissem para ele fazer porcaria, ele não fazia; o santo de frente dele era Oxóssi, e
não o Erê; Corre-Mundo era seu caboclo de frente49; em todos os trabalhos ele
colocava o nome de Deus primeiro; e com diabo, ele só mexia pra trancar. - “Aqui
retorquiu.
49
O fato de Corre-Mundo “descer Exu” em outro pai-de-santo da região não ajudou Dibu em sua
192
- “Verdade!” – Fafáu concordou – “Mas Sinho, no dia a dia dele, você vê ele
- “Mas ele não faz nada não. Eu até pedi pra ele me ensinar, mas ele disse
que não, que isso era muito atrapalhado”, Dibu contestou para, pouco tempo
A entrevista com Sinho, por motivos outros, acabou não acontecendo. Muito
tempo depois, cerca de um ano, acabei topando com Sinho por acaso, quando me
pediram para levar um bode para o trabalho que Mariluz faria em sua casa, um
trabalho semelhante ao de Dibu mas, no caso dela, uma renovação: ela fecharia seu
corpo contra malefícios por mais sete anos. Assisti os preparos, visitei-a nos dias
poderia ter sido mais gentil do que Sinho. Mais tempo se passou, conheci mais
experiência, provavelmente Dibu tinha razão: se Sinho trabalha com exus, não é
Mas Fafáu não estava de todo errado. Ele, parece-me, cumpria um raciocínio
entanto, ouvia desde criança. Ele sempre soube que Sinho era do tipo que xingava à
toa, e que seus xingamentos invocavam perigosamente o “que não presta”. Ora, se
Sinho era pai-de-santo e se, por pouca coisa, lançava-se em evocações perigosas,
seria provável que seus trabalhos fossem semelhantes: eles também atraindo exus,
argumentação.
193
Exu zuela:
de-santo mais “assombrado” – se não for Sinho, com certeza será Zacaria. Um
espírito mais perverso – se não for Tranca-Rua, forçoso ser São Cipriano. Um ser
alegria. Alegria porque ele ia fazer mais morto do que vivo” – disse um pai-de-
importância, mas elas talvez não transportem a melhor ideia para narrar estas
50
Àqueles que perguntei, eles também não sabiam o significado de ‘rei’.
51
Ver também Meyer (1993: 75); Maggie (1986); Lapassade & Luz (1972).
52
De certa forma, isso é também o que diz Corin (1998: 95) para culto Zebola no Zaire. Para a autora,
não é que a iniciação feminina se desenvolva até atingir uma maior coerência ou uma narrativa
estereotipada. Ao contrário, a iniciação parece liberar vários canais diferentes de associações.
194
transformações aditivas (sobre isso, ver Carvalho, 1990: 26). Reversibilidade é uma
palavra que sugere mais os termos em relação do que a própria relação, enquanto
se tornar feiticeiro parece ter mais propriamente algo de contágio, algo tão vibrante
quando se vira feiticeiro, feiticeiro já é outra coisa. Ele se torna outra coisa porque
subtrai do ‘mal’ seu caráter absoluto, tornando o mal ruim. Ruim para quem? – há
ruim, se é ruim pra mim, já é bom pra outra pessoa; se fez mal pra mim, fez bem
“Macumba dos outros, eu como com farinha!” O medo que se eclipsa evidencia
uma coragem pela qual o feitiço se torna “coisa fácil”, como vimos acima com seu
Vicente.
que diminui sua intensidade letal ao longo do tempo para, menos forte e mais
53
Os conceitos de devir, proliferação e contágio utilizados aqui são modificações daqueles
originalmente formulados por Deleuze & Guattari (1997), cujas ideias, juntamente com as de
Goldman (2005, 2009) e Carvalho (1990), serviram de inspiração para a elaboração deste item.
54
Que a feitiçaria seja violenta, isso não é novidade nem para antropólogos nem para nativos. Mas
que sua agressividade resulte em assassinatos em massa, isso acontece, argumentam Stewart &
Strathern (2004: 90-91,16-17), quando ela está associada a contextos de violência massiva (guerra
civil, tribunais inquisitoriais etc.). Para outros contextos, os autores tendem a concordar em parte
com o que Evans-Pritchard (1978: 95) já afirmava para os Azande muitos anos antes: “se ficarmos
atentos ao significado dinâmico da bruxaria, reconhecendo portanto sua universalidade,
entenderemos melhor por que os bruxos não são perseguidos nem sofrem ostracismo: pois o que é
195
nenhum caso que resultasse no pior (mas soube de 6 num universo de 96). Aliás, de
para o mal. Isso, obviamente, porque eles são mais secretos – e pouco se está
disposto a mostrá-los a uma etnógrafa curiosa. Todavia, não se minimize o fato que
eles são também muito mais perigosos55 – e seu perigo resvala –, por isso
normalmente não fazem parte do cotidiano até mesmo daqueles mais propensos
aos trabalhos de feitiçaria danosa (o que pode não ser exatamente uma alegria,
como ouvi um dia Arthur se lamentar: “eu sei mais macumba pro bem” – ele disse
orgulhoso, mas fez uma pausa – “eu queria saber mais pro mal”).
O pêndulo para o bem não torna a dinâmica feiticeira menos cruel, ressalte-
se. O Exu por querer se mostrar um ser apaziguado, pouco disposto ao mal,
perguntou:
O Exu que pulveriza seu poder de fogo não deixa de provocar “atrasos” na
vida de seus desafetos. Povoando aqueles que ataca, ele potencialmente suscita
novos feiticeiros, por contágio. Talvez por isso seja possível dizer que o suposto
uma função de estados passageiros e é comum a muitos não pode ser tratado com severidade. A
posição de um bruxo nada tem de análogo à do criminoso em nossa sociedade; ele certamente não é
um pária atingido pela desgraça e evitado pelos vizinhos”.
55
Note-se que o segredo e o mistério, tão presentes no candomblé, são também formas de proteção e
não só meios de retenção de prestígio e autoridade. Sobre isso, ver Cossard, 1970: 226-227 apud
Goldman, 2005.
196
entanto, de uma força – um monismo, afirmou Goldman (2005) –, mas uma força
Por isso, viu-se, é difícil se contentar com uma sequência postulando uma
que, por sua vez, traria a paranoia). Bem ao contrário, o medo pode levar – e é até
mesmo comum que ele leve – à luta. Quando eu mesma supus, espantada, que
seria intenso o estado de aflição de uma moça sob ataque feiticeiro há mais de um
Deus e no que ela tem. Ela tem vários por ela: Juvenal [seu pai-de-santo] e os guias
- “Ê meu pai, você que me ensinou tanto, se um dia fizer um preparo pra
mim, você acha que eu vou estar de corpo aberto esperando?” – dizia Dilmário a
seu pai-de-santo e potencial feiticeiro, não sem antes sorrir “um sorriso cínico”, ele
me diria depois57.
56
Para uma ciência social cujo conceito de base seria “um tipo de contaminação que se move
constantemente de ponto em ponto, de indivíduo em indivíduo, mas sem nunca se fixar em algum
ponto específico”, ver Latour & Lépinay (2009: 9).
57
Evans-Pritchard (1978: 57) também sublinhou que, menos pavor e mais aborrecimento e raiva,
acompanhavam um Zande ofendido por bruxaria. Além disso, o autor continua (1978: 108, grifo
meu), “longe de serem melancólicos” – e eu acrescentaria, paranoicos –, “todos os observadores
descreveram os Azande como um povo alegre, sempre rindo e brincando. Pois os Azande não
precisam viver no temor constante da bruxaria, já que podem entrar em contato com ela e controlá-la
por meio de oráculos e da magia”. Sobre isso, ver também Maluf (1993: 163).
Tempo Gira
inverso secretava a guerra, já sabíamos. Ele queria o sangue de seu desafeto, lhe
queria o pior, por isso descreveu uma circunferência em torno do tridente com jatos
de sua bebida predileta e, durante os dez minutos seguintes, refez inúmeras vezes a
borda, que teimava em se evaporar. Sem pressa alguma, o Exu ainda giraria seu
tridente para a esquerda e para a direita, repetindo esse gesto um sem número de
- “Não preciso cortar pra mandar nada a ninguém. Mato até com uma
Dias depois, tentei esmiuçar o que o Exu quis dizer por ‘roda Tempo’, mas
Tempo estar imensamente presente em meu trabalho de campo, apesar de ele ser
de vê-lo manifesto num ser humano. Perguntei então a Múcio: - Você já viu alguém
de Tempo?
- “Já! Liminha”.
- “Mas roda com Tempo também. Afe Maria, é bonito demais quando ele
- “Nunca vi. É raro. É como... É como dar uma maleta de dinheiro a pobre” –
- “É uma bacia cheia de prato em volta” – ele respondeu, dessa vez sem
Eu já sabia que Tempo era um orixá, mas um orixá diferente dos outros.
“Tempo se embriaga” – diz a zuela –, quando então “não conhece mais ninguém”.
trabalhos que inicialmente não lhe eram dirigidos, fosse uma maneira de refrescar a
possível impulsionar o seu xará, o tempo, a duração com a qual o orixá guarda
uma relação próxima e, não seria demais ressaltar, bastante bela. Pois, como se diz
e se repete, “tudo, com Tempo, tem tempo”, ou seria “tudo, com tempo, tem
Tempo?” Em todo caso, o nome do orixá resvala o do tempo ordinário, o passar das
– na verdade, eles ainda vivem –, por isso levam consigo o “carrego do tempo”,
uma profundidade temporal cuja intensidade penetra o corpo humano 2. Mas eles
1
Wafer (1991: 165-166) afirma que “embora o termo [Tempo] possa ter sua etimologia ligada à
divindade bantu Zaratempo (Castro 1971:112), este vínculo tem sido obscurecido pela multiplicidade
de associações que a segunda parte do termo banto adquire em português. Tempo significa não só o
‘tempo’, mas também ‘clima’ (weather) e, por extensão, ‘exterior’. Existem”, continua o autor, “muitas
expressões proverbiais frequentemente ouvidas, como por exemplo: Tudo com tempo tem tempo.
Dar tempo ao tempo. Entregar ao tempo, às águas e a Deus. Todos esses provérbios têm o significado
de deixar as coisas tomarem seu curso, de confiar que o desdobramento do destino vai trazer sua
resolução”. Na passagem acima, contudo, ressaltou-se que, além das observações de Wafer, essas
expressões guardam uma segunda camada de significados, quando então a divindade Tempo é
chamada a intervir em favor do tempo que se deseja ou se quer antecipar.
2
Tais reflexões foram inspiradas em Anjos (2006: 20-23). O autor formulou várias frases para
caracterizar o que ele chamou de “cosmopolítica afro-brasileira” (por exemplo, “a intensidade
histórica que se faz corpo” ou “o passado falando em nós, o passado coexistindo, sobrepondo-se ao
meu presente”). Cardoso (2004: 110), por sua vez, afirma algo parecido sobre o cruzamento de
tempos diferentes na macumba carioca, tema de sua etnografia. Através dos espíritos de exus e
pombas-gira, diz a autora, “tempos e lugares se cruzam, passado e presente, eventos próximos e
distantes, pessoas aqui e ali, todos eles são colocados juntos na narrativa desenvolvida pelos espíritos
e por sua audiência”. Também Rabelo (2008: 94), num artigo em que a possessão no candomblé é
abordada como prática, propõe a substituição da “noção linear de tempo enquanto mera sucessão
por outra que enfatiza as relações de implicação ou elaboração recíproca entre passado e futuro na
dinâmica da experiência” (...) Então, continua a autora, “já não cabe dizer que um comportamento é
simples efeito ou expressão do que já estava delineado em seu passado, porque o passado efetivo,
que conta na experiência, não é um dado distante no tempo, mas aquilo que ainda vigora no
199
querem mais, eles desejam se expandir. Eles pedem por mais tempo do que os
humanos normalmente estão dispostos a lhes dar. É uma demanda insaciável, por
vezes monótona, como o foram muitas das tantas horas passadas junto a exus e
caboclos que não queriam deixar a terra. O Exu de Tácio, por exemplo, um dia
oscilações da chama em seu oráculo. Para direita ou para a esquerda, para frente ou
para trás, subindo fino ou grosso, com fumaça ou sem fumaça: a cada movimento,
mas quase todos tinham sono. Aquilo já durava várias horas, e eu não pude deixar
de pensar que o Exu estava em um diálogo com o tempo, quando então insistia em
estendê-lo.
A maior parte dos caboclos é assim, eles teimam em ficar em terra, eles não
querem deixar o “tempo virar”. Mas o “tempo vira”, ele se movimenta. Numa festa
normal de candomblé da região, por exemplo, o “tempo vira” umas cinco ou seis
vezes.
tempo”, disse Miguel. - “Fecha pra exu e abre pra santo. Depois, quebra pra
caboclo, quebra pra marujo, quebra pra erê e tem uns que quebram para exu de
novo.”
virou”, quando então se sabe que já é hora de chamar um novo tipo de ser. Ou
terra:
presente do sujeito: é um passado reapropriado e aplicado a novas situações e, neste sentido, não só
200
Esta delicadeza vem em boa hora, pois o perigo espreita quando o tempo
vira. O Exu que pedia para o Tempo rodar na abertura deste item sabia bem disso.
Ele sabia que o Tempo roda e que em suas andanças muito acontece. Penso que,
quando ele emanou radiações feiticeiras para sua vítima, ele chamou Tempo para
fácil para suas radiações malévolas. O Exu queria criar ou acelerar desgraças que
engenho feiticeiro. Tomás, por exemplo, quando ele me contou seu feitiço (no
capítulo 2), ele disse que, depois de cortar os animais, enterrar um deles, ele e o pai-
antecipando o velório que tencionavam causar. Cauê, por sua vez, achava um
“atraso” todas as bruxarias que Tomás declarava saber. Para Cauê, um feitiço
deturpa a ordem normal do tempo, ele não só gera perigo para as vítimas em
potencial, mas também para aqueles que decidem levá-lo a cabo. Na verdade, para
Cauê, somente o conhecimento dessas bruxarias era o suficiente para atrasar a vida
de Tomás. Já com dona Lica (capítulo 1) foi diferente, ela se viu presa no
movimento de acordar a todo instante. Para ela, o tempo foi suspenso quando seus
caboclos iam e vinham, deixando-a confinada naquela manhã da qual ela não se
recorda de quase nada. Para ela, o tempo parou, ele foi suspenso para protegê-la,
pois enquanto seus caboclos tentavam se manter junto dela – ação que a deixou
tornaram mais palpável, uma sensação que eu quis passar também na escrita.
poucas páginas –, seria lhes retirar a força, por isso optei que elas permanecessem
coladas aos eventos que as inspiraram. Gostaria de ressaltar, no entanto, que minha
intenção foi realizar uma etnografia em que não se tentou apenas aludir à
enfeitiçados virarem feiticeiros que, no entanto, não o eram totalmente ou, pelo
habitantes modularam o seu domínio. Viu-se caboclos saturarem seus filhos com
AGRESTE, AGRESTIA. Grosseiro, grosseria, violência. “Essa semana foi triste; ele só
não me bate porque eu não sou fraca, não me abaixo: uma unha desse
tamanho pra cima de mim. Uma agrestia!”
AGÔ. Desculpa, licença, por favor. “Mas a Padilha, quando desceu, fez com que as
suspeitas se esmorecessem, instando os presentes a lhe pedir agô”.
AJEBÔ. “Vou dar comida a Tata Caveira para que ele não venha a comer a gente.
Que, Deus é mais, nem gosto de dizer isso, mas ele come carne e rói osso!
Isso é uma feitiçaria, um ajebô. Ajebô e feitiçaria é tudo o que vem na mente:
- ‘Faça isso, faça aquilo’. O corte para Tata Caveira já é uma tradição no
terreiro, mas também é ajebô e feitiçaria, algo que vem na mente”. Em
Cacciatore (1988: 44), ajebó é uma comida feita de quiabo e mel, oferecida a
Iroko e Oxalufã, e também para todos os orixás, quando se quer pedir
misericórdia.
BOIADEIRO. Um tipo de caboclo. Suas zuelas indicam que ele vem do sertão,
alguns deles de Minas Gerais, onde lidam com gado.
CATAR. Quando alguém cata de outra pessoa, ela está capturando seu
conhecimento através da observação ou participação das práticas diárias do
candomblé.
CARMA. Uma entidade espiritual (caboclo, orixá, exu etc.): “Tenho o Obaluaê de
minha vó – peguei seu carma”. Pode significar também uma “carga”
espiritual.
DOUTRINA. “É por exemplo comida de santo (cada um tem uma); rezar ori pro
santo (cada santo tem uma reza); saber sobre os guias; qual salva vai tirar pro
santo, se o santo vai salvar ou se é a pessoa; cortar pra exu tem dia certo, não
é todo dia.”
EBÓ. Uma oferenda ou trabalho que pode ter várias funções, mas usualmente em
minha experiência de campo o termo se referia a um trabalho de limpeza. É
também sinônimo de feitiço.
EXU E EXUA. Os exus são espíritos de pessoas que tiveram uma vida pouco
regrada, ou então uma morte violenta. São normalmente bastante temidos e
cheios de artimanhas, porém não são exclusivamente maus, eles “ajudam” e
“atrapalham”, diz-se. Podem ser machos ou fêmeas (ouvi uma só pessoa
chamar as pomba-giras de exuas). Em geral, se usa o termo ‘exu’ para a
categoria mais genérica de exus machos e ‘pomba-gira’ para as fêmeas. Para
mais sobre como a diferença entre os vários tipos de seres (exus, caboclos,
orixás etc.) foi elaborada nesta tese, ver as páginas 40 a 43 do capítulo 1.
FIQUE AÍ (ATRÁS). É uma expressão muito utilizada e indica algo como ‘até
parece’, ou então, ‘fique pensando que eu sou besta, mas não sou’. Por
exemplo: “Mas eu não ia ficar com ele. Ele casado no civil, eu ia ser sua
amante? Fique aí...”.
INTACTO(A). Uma pessoa que está incorporada não está mais “intacta”.
210
MANATA. Pessoa.
MANIFESTAR, MANIFESTADO(A). Ver incorporar.
MANO. Ver seu Martim.
MARINHEIRO. Ver seu Martin.
MARROMBAXETO. Saudação para os caboclos. Não tenho certeza da grafia.
MARTIM. Ver seu Martim
MÉDIUM. Ver carnal.
MENTE. Usam-se os termos “mente”, “juízo”, “sentido” e “cabeça” de forma
parecida, talvez com ligeiras nuances. Todos os termos significam
pensamento (poder-se-ia usar qualquer um deles para dizer ‘isso não sai da
minha cabeça’), mas tenho a impressão que eles significam não apenas o
caráter abstrato do pensamento, mas incorporam também seu substrato
físico. Há também, creio eu, um deslizamento entre a “mente” – lugar onde
se botam sugestões, impressões, desconfianças e ideias – e a “cabeça” – lugar
povoado por santos, exus, marujos e caboclos (ver capítulo 3).
NAJÉ. Prato de cerâmica em que são feitos vários trabalhos, obrigações, cortes etc.
NEGÓCIO, NEGOÇO. Pode ser utilizado para se referir aos espíritos de alguém ou
aos do próprio locutor. Usado normalmente quando se está com raiva,
quando se deseja atingi-los ou quando se quer marcar o distanciamento e o
desconhecimento para com estes seres.
OGÃ. Homens, normalmente não-virantes, que têm uma relação bastante próxima
com seus orixás, caboclos e exus. Um ogã pode exercer uma ou várias das
seguintes funções: ele toca atabaque, puxa os salvos para os santos, realiza os
cortes para o terreiro, prepara banhos, trabalhos, garrafadas, pembas,
despacha ebós, ajuda nas consultas e auxilia em inúmeras outras atividades.
Os filhos e filhas-de-santo virantes geralmente lhe pedem bênção.
ORIXÁ. Para alguns, os orixás são espíritos de seres humanos que viveram há ainda
muito mais tempo do que as pessoas que, depois de mortas, se
transformaram em exus, caboclos e marujos. Eles são também negros, ainda
que possam “descer” brancos e alourados em suas singularizações junto aos
humanos. Alguns dos orixás – oxóssi e ossanha, por exemplo – se
aproximam dos caboclos por morarem no mesmo lugar, a floresta. Outros
orixás se juntam aos exus por afinidades de comportamento ou
temperamento. Outros se associam pela classe etária: ogum-menino e iansã-
212
PANO TNT. Um pano mais barato. Aparentemente, TNT significa ‘tecido não
tecido’.
PEMBA. São pós comprados ou preparados que podem tanto fazer o bem
(normalmente “pembas brancas” ou de prosperidade, semelhantes a um giz)
como o mal (“pembas corredeiras”, normalmente marrons). Há no entanto
inúmeras outras pembas (rosas, azuis, vermelhas, amarelas), e cada uma
delas pode fazer o mal ou o bem. Sua receita é secreta e tende a ser feita de
acordo com o que há disponível, ou com o que se sonhou ou se intuiu ser
correto para aquela ocasião. As pembas para o mal normalmente são feitas
com animais peçonhentos torrados e reduzidos a pó, além de um sem
número de folhas, raízes, cascas e sementes. Elas podem ter um efeito por si
própria – por exemplo, quando uma pemba faz com que a pele de alguém se
encha de pequenas pústulas – ou pode atrair exus que fazem mal à vítima.
Nos dois casos, tende-se a considerá-la um feitiço, mas algumas pessoas
assim a consideram apenas no segundo caso.
PEGAR, SER PEGO. Refere-se tanto a um feitiço, que pode pegar ou não no seu
destinatário, como a um santo, caboclo ou exu que incorporou em alguém..
POMBA-GIRA. É tanto uma exu fêmea em particular como uma categoria de exus
fêmeas diferentes entre si. Também chamada de Gira ou Bombogira. Para
mais sobre como a diferença entre os vários tipos de seres (exus, caboclos,
orixás etc.) foi elaborada nesta tese, ver as páginas 40 a 43 do capítulo 1.
forte o suficiente para proteger seu filho de qualquer influência mágica, ele
“põe a mão em seu filho(a)”. Inclui-se neste ato a própria filiação que tal
trabalho pode ter deslanchado.
QUENDAR. Pedir, normalmente com cuidado e respeito, mas às vezes com firmeza
e autoridade, para que o orixá, caboclo ou exu se retire da pessoa em que se
manifestou. Significa também o ato do próprio espírito, quando ele se retira
da pessoa em que estava incorporado. Nesse caso, é sinônimo de subir.
quando eu lhe olhei – ‘Olha, rapaz, que gatona da porra ali!’ –, já vou
comentar com meus colegas. Quando chega lá na frente, você vê aquelas
pancadas, uma no seu coração, uma na sua cabeça, ou umas dores no corpo.
- ‘Ih, eu tava tão bem, saí de dentro de casa tão bem, e agora eu tô dessa
maneira?! Vou no hospital, ou vou numa clínica, ou num posto, ou qualquer
coisa’. É isso que é o feitiço. O feitiço é eu olhando pra você e você olhando
pra mim”. Note-se que “quizila” é mais frequentemente encontrado na
literatura antropológica no sentido de “repugnância pessoal a comer, beber,
ou fazer determinadas coisas” ou “proibição ritual, determinada pelo orixá,
no seu culto, impondo interdições, temporárias ou definitivas, a seus filhos”
(Cacciatore, 1988: 219)
ZUELA. São as músicas dos caboclos, orixás, exus e marujos. O substantivo abarca
o conjunto dos ritmos de atabaque e letras cantadas, mas o verbo
normalmente tem seu significado restrito ao canto. Cacciatore (1988: 58)
registra outros significados para a palavra. Em kimbundo, diz a autora,
significa falar, conversar e “azuela” é um “termo usado nos candomblés
angola, significando uma “ordem para bater palmas e animar a festa”.
Segundo Garcia (2006), em seu trabalho sobre a música de caboclo nos
candomblés baianos, diz-se “azuelado” para o nome gritado publicamente
pelo santo da iaô na cerimônia de sua iniciação.
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