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© Copyright desta edição Editora Coffeer’s 2018

Titulo Original | Encontro com o Absoluto: Uma


jornada além das fronteiras da consciência

Editor | Ricardo Zanon

Produção Editorial | Nathalia Arantes de Carvalho

Revisão | Stephanie Andreossi, Daniel Rezinovsky

Projeto Gráfico e Capa | Renato Arantes

Foto da Capa | Daniel Rezinovsky

Catalogação na publicação (CIP)

R467e
Rezinovsky, Daniel
Encontro com o Absoluto: uma jornada além das fronteiras da consciência /
Daniel Rezinovsky – Jundiaí: Editora Coffeer’s, 2018.
192 p.: 14x21 cm
ISBN: 978-85-93884-02-3
1. Espiritualidade 2. Consciência 3. Iluminação espiritual 4. Experiência mística
I. Rezinovsky, Daniel
CDD: 130

Editora Coffeer’s LTDA


Avenida Rodrigues Alves, 151, Jardim Danúbio – CEP: 13215-080 | Jundiaí-SP
Email: coffeers.contato@gmail.com | Tel: (11) 4586-0467 | www.coffeers.com.br

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora
Coffeer’s. A violação dos direitos autorais é crime, estabelecida por lei nº 9.610/98 e punida pelo artigo 184 do Código Penal.
Dedicado à memória de Richard Rose,
Franklin Merrell-Wolff e
Bhagavan Sri Ramana Maharshi
Agradeço a todos os seres maravilhosos
que me acompanharam nessa longa jornada.
Vocês vivem no meu coração.
SUMÁRIO

1. Prefácio 9
2. Introdução 13
3. O reconhecimento da Voz 35
4. Raios de luz numa clareira 38
5. A passagem do mundo 40
6. A irrupção da Visão 43
7. Momentos de busca 44
8. A abertura do Olho 45
9. A Consciência se torna consciente 47
10. D’us somos nós quando estamos acordados 48
11. À margem do rio, uma formiga 50
12. O olhar do Absoluto 52
13. Momentos de desconstrução 53
14. Explosões do Absoluto 54
15. No meio do bosque 55
16. A laranja e o Mistério 61
17. O Presente denso como mel 65
18. Reminiscências de outra era 68
19. Massiach 69
20. A saída da caverna 70
21. A Voz sussurra 72
22. Chamados para um encontro 74
23. A ausência e a busca 76
24. Os grilhões da consciência 79
25. O intercurso com o mundo 85
26. A emergência do Absoluto 90
27. A entrega à simplicidade pura 91
28. A casa oculta do Absoluto 94
29. A realização do Absoluto 97
30. A Mente Absoluta 101
31. O Ser enterrado prestes a nascer 104
32. O difícil problema da reentrada após a Visão 106
33. A metafísica dos pequenos atos 112
34. A não-palavra por trás das palavras 113
35. A perfeição e o ponto oculto 115
36. O silêncio e o zero 116
37. No início, tudo era metafisicamente solto 117
38. Parindo D’us 119
39. O Absoluto e o deleite debaixo do concreto 121
40. O pedaço de carne inteligente dentro de minha
cabeça 123
41. Sussurros do Absoluto 125
42. O momento da Visão 126
43. Sobre o uso da palavra D’us 129
44. O contato com o “Isso” 131
45. O espaço do Absoluto 133
46. Abertura à Consciência Transcendental 134
47. A entrada na ordem do Absoluto 136
48. A Mente que nos transcende 138
49. A descoberta do Absoluto 141
50. O Ser, o véu e os mundos 143
51. A linguagem do Ser 149
52. O encontro com o Nada 152
53. O diálogo final entre o Absoluto e Maya 164

POEMAS

1. A criança na realidade sem início 177


2. A abertura do Olho 178
3. O despertar do grande sono 179
4. A grande alma 180
5. Dois ou um 181
6. O véu partido 182
7. A essência que jorra 183
8. Eu e tu indistintos 185
9. A transparência do mundo 186
10. O Olho dos olhos 187
11. A Lembrança 188
12. Quem Sou? 189
13. A Grande Perfeição 190
P R E FÁ C I O
O Encontro é uma exploração poética de uma jornada inte-
rior. A visão filosófica que se segue não resultou de investigações
puramente intelectuais, mas de um movimento misterioso da
consciência que, todavia, me custa explicar.
Pude comprovar que realmente existe o caminho de trans-
formação mística descrito nos textos antigos, ainda que na nos-
sa época secular o processo interior pode ser facilmente classifi-
cado como uma emergência espiritual ou mesmo um transtorno
psíquico. Esse é um desafio significativo, e é uma das razões pe-
las quais o caminho da transformação interior que desemboca no
despertar é tão difícil e mal compreendido.
Sei que há outros que tocaram na realização que descrevo; sei
também que há enormes dificuldades em múltiplos estágios do
caminho interior, e que a nossa época não possui muitos que pos-
sam nos acompanhar nas etapas mais críticas – e aqui falo como
psicólogo e contemplativo.
O encontro é misterioso e radical. É possível ter um vislumbre
do Absoluto, de D’us1, além da crença, se esse for um anseio inten-
so o suficiente, e se houver uma necessidade existencial significa-
tiva para que ocorra. É um evento surpreendente, e temporaria-
mente um véu se dissolve para que o Absoluto se revele no nível
da nossa autoconsciência.

1. A prática da grafia do termo ‘Deus’ como ‘D’us’ é habitual nos escritos judai-
cos. A motivação original para este uso é reconhecer a realidade sagrada à qual
o nome se refere. Também emprega-se o termo no livro de modo a romper as
associações normalmente feitas ao termo ‘Deus’, e ressaltar a impossibilidade
da palavra escrita de refletir integralmente a realidade última.

11
Eu espero que outros que também estejam no caminho pos-
sam se beneficiar de algum modo deste livro. Ele é imperfeito, e
por vezes não fui capaz de expressar apropriadamente o que que-
ria transmitir. Também peca por não ser sistemático, o que pode-
ria ser resolvido num futuro estudo mais longo. Ele busca ser uma
pequena contribuição à literatura mística, de modo a apoiar a rea-
lização de outros. Sei que na nossa época por vezes o caminho é
excessivamente solitário, por carecermos de uma linguagem e um
lugar de encontro que nos permitam expressar certos sentimen-
tos e estados de espírito. No entanto, a nossa era de imensas crises
provavelmente irá testemunhar uma renovação interior em múlti-
plos níveis, de modo a resgatar o espírito que foi perdido no mun-
do contemporâneo. Que este livro possa ser uma contribuição a
essa renovação.

Viamão, RS
19 de dezembro de 2017

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INTRODUÇÃO
Podemos despertar para uma realidade mais profunda do que
a consciência cotidiana nos mostra. Esse despertar é o evento cen-
tral desta época de turbulências e intensas transformações. Nos-
sa mente se abre para uma realidade que não suspeitávamos exis-
tir. Poderíamos chamá-la por muitos nomes: a Essência, o Vazio,
a Mente Única, D’us, o Absoluto – todos símbolos de uma realiza-
ção imensa que transcende nossa linguagem.
O despertar é assombroso, glorioso, estranho e misterioso.
Nos tornamos o grande Ser que contém tudo que existe: pessoas,
árvores, carros, ideias, emoções – o cosmos inteiro. E Ele se vê
através de nós. A Mente que sustenta a realidade finalmente en-
tende a sua própria natureza. Ela realiza através de um salto intui-
tivo a sua unidade intrínseca. Os milhares de anos de evolução fi-
nalmente realizam a sua meta, num único momento de percepção
completamente lúcida.
O Absoluto contempla com maravilhamento um evento de mag-
nitude cósmica. O universo por um instante reconhece a si mesmo
enquanto uma totalidade viva através de um ente de carne e osso,
que pensa, deseja, sofre e almeja pela transcendência de sua condi-
ção. Nós somos pessoas com histórias, problemas e dúvidas, mas, ao
mesmo tempo, somos a Mente que mantém o universo vivo.
Muitas pessoas estão tendo espontaneamente essa realização.
E podemos nos perguntar: por que agora, numa escala coletiva?
Chegamos ao limite do que a nossa consciência atual é capaz
de suportar e compreender. Os problemas se multiplicaram sem

15
perspectivas genuínas de resolução. A experiência da vida perdeu
seu centro e fio condutor. Já não sabemos mais o que ela é. Esse
sentimento agudo e doloroso é percebido por trás de um espesso
véu. Temos a intuição de que nossos grandes dilemas existenciais
e filosóficos talvez não possam ser resolvidos a não ser por uma
mudança de base que coloque nossa consciência em sintonia com
o Absoluto, com uma realidade que apreendemos tenuamente e
que supomos existir nas profundezas do nosso mundo interior.
Habitamos um universo vasto, intrincado e extraordinário. No
entanto, nele flui um caudaloso rio de dor e sofrimento que se mos-
tra misterioso e incognoscível. A qualquer instante, nós e aqueles
que amamos podemos ser levados sem explicações. Se existe uma
ordem transcendental que rege o cosmos ela raramente se revela a
nós. Não somos capazes de suportar por tempo suficiente a contem-
plação contínua desses fatos tão evidentes da nossa condição.
O universo dual é inerentemente trágico e pleno de sofrimento.
Todos os seres estão condicionados, suscetíveis às contingências, às
forças da aleatoriedade e do caos, que cumprem o seu papel no tea-
tro cósmico. O universo se mostra aparentemente indiferente aos
nossos anseios. Nosso choque com a realidade é imenso e nela so-
fremos profundamente.
Dentro do estado de consciência dual que forma o universo,
todas as coisas são irreconciliáveis, os opostos raramente se equi-
libram e nada é estável. Nada perdura e nos satisfaz neste mundo
de miragens e passagens. A dor e o sofrimento nos tocam cons-

16
tantemente. O amor nos ilude, nossos desejos nos traem e nossos
sonhos invariavelmente se chocam com a dureza do real. A reali-
dade deve operar por princípios que ainda nos escapam. A cons-
ciência humana parece estar aquém da inteligência que permeia e
está na base do mundo.
É a constatação da onipresença e intensidade do sofrimento que
abre o nosso ser. O Absoluto nos chama então para além de nós
mesmos. Nós o sentimos como a voz sutil além dos pensamentos
comuns. Cada um de nós conhece esses momentos de iluminação
súbita, de uma forma de percepção que escapa à vida diária. E fre-
quentemente a luz não emerge como uma graça, mas através da dor
e do desespero. Os vislumbres são a promessa silenciosa de um esta-
do de ser que supera a nossa condição.
Por vezes pensamos que o chamado é uma fantasia, que nos
iludimos e persistimos numa direção que nos deixará de mãos va-
zias. Mas quando o recusamos ele nos assombra. Uma parte de
nós já não se encaixa mais na experiência comum da vida. Esse tê-
nue incômodo cresce e gradualmente nos mostra o significado do
ser. Do que é feito o nosso ser que nunca observamos. Que consi-
deramos trivial. Que por ser tão simples não damos atenção. Mas
então suspeitamos que do ser o universo inteiro depende. Que ne-
le nos tornamos o universal e escapamos da prisão de nós mes-
mos. Mas isso não perdura. São percepções sutis e fugidias. São
incipientes aberturas à revelação do Absoluto.
Os vislumbres de uma outra ordem de realidade se apresen-
tam frequentemente nos momentos mais intensos das nossas vi-

17
das e tornam-se nossas memórias mais significativas. Sentados
numa tarde ensolarada contemplando o olhar da nossa amada,
deitados num interminável campo, em meio a grilos que pontuam
um imenso silêncio; o vazio profundo de um hospital após per-
dermos um ente querido; os primeiros movimentos de um ser que
acabou de nascer e tenuamente toca os nossos dedos. Todos parti-
cipamos da realidade nesse grau de intensidade e nitidez de tem-
pos em tempos. É quando nos sentimos mais vivos e mais plenos
daquilo que era tão comum na infância, quando éramos permea-
dos pelo misterioso espírito que move todas as coisas, e que hoje
está tão distante de nossas vidas.
O que são essas aberturas? Os olhares trancendentais, que nos
levam a uma percepção da vida e da existência que parece redimir
todas as dificuldades que habitualmente carregamos dentro de nós?
Apenas um único instante de visão lúcida é capaz de redimir to-
da uma vida de dor e de sofrimento. O que é visto não é um conteú-
do perceptual ou cognitivo específico. Na literatura mística, temos
um vasto campo de experiências humanas pouco comuns e nela
existem místicos que de fato veem mundos, seres e arquétipos; al-
guns que sentem energias poderosas fluírem através de seus corpos;
outros que ouvem músicas e canções celestiais; e há os que se tor-
nam um com o Infinito. No entanto, o fato central por trás de todas
as formas de misticismo parece ser a revelação de uma consciência
subjacente, do Absoluto, de D’us, que na maior parte do tempo está
oculta para a nossa consciência normal.

18
As experiências místicas pontuais, presentes na vida de todos,
esses momentos em que somos transportados para além da cons-
ciência comum, nos quais vemos o universo transfigurado e final-
mente chegamos ao que parece ser o significado fundamental da
existência, são vislumbres de um estado de consciência mais am-
plo e vasto, que experimentamos nos nossos momentos de vida
mais plena, e que no caminho espiritual nos dirigem para a trans-
formação proposta nos escritos místicos de todas as épocas como
a iluminação espiritual.
Buscamos resgatar algo que está latente na nossa alma, através
de uma realização da consciência humana que nos levará para um
estado de espírito e visão totalmente diverso daquilo que experi-
mentamos na maior parte do tempo.
Existe um extraordinário modo de percepção que exibe o uni-
verso de uma maneira radicalmente nova. Nesse encontro místi-
co descobrimos uma consciência imortal que jaz silenciosa na in-
terioridade de todos os seres.
O caminho cada vez mais se apresenta para pessoas comuns, de
todos os cantos e tempos, e o chamado para um novo modo de ser é
feito a todos. As portas estão sempre abertas, ainda que a passagem
seja excessivamente difícil – fruto do contraste agudo com uma cul-
tura que há tempos perdeu o contato com as suas raízes espirituais.
Há também um ponto culminante do caminho místico, on-
de somos postos em contato com algo que nos chama desde os
primórdios. Os indícios desse encontro transcendental aparecem

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em múltiplos lugares e tempos, desde as primeiras pinturas rupes-
tres às visões dos profetas do deserto, monges, eremitas, artistas
e muitos outros que empreenderam a jornada em busca da fonte.
Somos capazes de encontrar – nesse ponto culminante que para-
doxalmente não está oculto – o que todos no seu íntimo buscam,
o Absoluto, mesmo que o mundo, inconsciente de sua realidade,
faça de tudo para estabelecer sua não-existência.
Se realizarmos o salto interior para o Absoluto, seremos leva-
dos para uma dimensão além do mundo. O que nos falta por vezes
é estarmos suficientemente a sós com a vida. Raramente enfrenta-
mos o mistério do mundo nos nossos termos, utilizando integral-
mente as nossas faculdades. Mas é nesses instantes que uma silen-
ciosa inteligência da qual pouco compreendemos se mostra e faz
contato: desde quando nos convencemos de que o universo é iner-
te? De que nele não existe uma inteligência além da nossa?
O encontro emergiu de uma busca de muitos anos, depois de
estar convencido de que era possível obter um acesso, mesmo que
fosse um vislumbre temporário, de uma realidade transcendental,
do Absoluto, no qual a experiência da vida se mostra radicalmen-
te transformada. Os registros da antiguidade fornecem amplas in-
dicações da existência dessa possibilidade incomum de consciên-
cia, a “introcepção”2, uma realização no nível da nossa identidade

2. Termo cunhado pelo filósofo Franklin Merrell-Wolff, que designa uma ter-
ceira via de compreensão, em constraste com a percepção e a concepção. Na in-
trocepção ocorre a identidade entre sujeito e objeto, entre a consciência que ob-
serva e o universo observado.

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fundamental, um contato com a possível e hipotética – ao menos
no início – Mente que está na base do universo e que nos contém.
Na era contemporânea não sabemos bem como o processo se
desenvolve. Mesmo nas tradições místicas formais os registros são
esotéricos e de difícil acesso. O conhecimento mais puro é profun-
damente intuitivo e tende a ser transmitido de coração para cora-
ção. Aqueles que viveram e respiraram a realização total, como o
sábio indiano Sri Ramana Maharshi, são raros.
No entanto, a era de profunda crise espiritual na qual vivemos
é um espaço fértil de aberturas para o Absoluto, a sempre incom-
preensível fonte do mundo. O acesso é possível através de uma
transformação interior radical e intensa. Atualmente, nossa inte-
ligência não é capaz de entender o que a contém, o Absoluto; por
isso vemos o universo como um todo fragmentado e separado de
nossas mentes.
A irrupção completa e permanente dessa realidade transcen-
dental no nosso mundo é excessivamente rara, e dela de fato te-
mos poucos registros históricos. No entanto, a longa e tortuosa
história da nossa espécie revela muitos contatos e vislumbres, de
homens e mulheres de todas as culturas e estações da vida. Mas
podemos, e devemos, perguntar-nos: como ocorre esse desenvol-
vimento místico? De que modo podemos explorar esse tema tão
difícil e profundo além do que já foi escrito, das doutrinas for-
mais, e utilizarmos de nossa experiência direta para articularmos
da melhor maneira o que se passa nos nossos espíritos?

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Quando nos detemos para ler os escritos antigos, vemos ni-
tidamente que os homens possuíam uma experiência muito di-
ferente da vida. Eles pareciam ter uma experiência instintiva do
divino, de algo maior, que certamente se perdeu na nossa época.
Também é verdade que o ceticismo radical frequentemente é mais
lúcido do que as miríades de tentativas que realizamos para com-
preendermos o universo. Devemos duvidar muito, totalmente. É
o não-saber que nos salva.
Porque nesse lugar, e talvez somente nele, ficamos abertos o
suficiente para sentirmos diretamente a nossa condição. Deixa-
mos de nos proteger do mistério. E a angústia que nos causa esse
movimento é a própria porta que nos promete a saída para os in-
termináveis labirintos da nossa imaginação.
A jornada é frequentemente solitária, e apenas em raras instân-
cias, ao menos na nossa época de profundas ilusões, temos abertu-
ra para a comunhão no nível do Absoluto. Precisamos de sincerida-
de para nos abrirmos o suficiente ao que a realidade pura tem a nos
mostrar. Para que ela encontre a si mesma através de nós.
Sabemos muito menos do que supomos. Essa dúvida ontológica
nos causa pavor e a evitamos com todas as nossas forças. Ao mesmo
tempo, qualquer um de nós, num momento de clareza e sincerida-
de, pode chegar na margem do espaço que permitiria um vislum-
bre, um encontro com o Absoluto.
Mas o que é esse encontro? Fala-se de D’us, de vê-lo ou en-
contrá-lo? E somente proferir essa pergunta já não é uma heresia?

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Podemos abrir o nosso espírito o suficiente para que o Ser faça
contato. Não através de uma experiência sensorial, por mais mag-
nífica que ela possa se apresentar, nem mesmo através de sentimen-
tos sublimes, mas no nível mais íntimo da nossa autoconsciência.
Como e por que isso é possível? Por que seres de carne e san-
gue, que vivem numa névoa quase completa em relação à sua con-
dição, podem, através de um misterioso processo, ser levados pa-
ra uma dimensão de consciência que está incrivelmente presente,
e que lhes revele num instante um pouco da Mente misteriosa que
sustenta o cosmos?
Talvez seja parte do desenvolvimento do universo. Múltiplos
estágios de um Ser que cresce dentro de si e num dado momento
começa a perceber suas origens. Poderíamos dizer que este uni-
verso é uma espécie de simulação, criado espontaneamente den-
tro de um sistema muito mais vasto, para atingirmos em algum
momento a consciência total de sua origem e propósito. Objetivo
esse que hoje se mostra como algo mítico.
Será este plano um espaço de desenvolvimento de consciên-
cias para que elas ascendam a um estado de realização transcen-
dental? Será o Absoluto o que nós somos sem saber? O destino da
autoconsciência do cosmos? Estaremos em algum estágio da cria-
ção deste misterioso mundo, todos lúcidos na unidade pura?
Pois o que a realização do Absoluto revela é que não há nada
além dele. Aqui, na consciência ordinária, o impacto total desse
fato parece um pouco distante. Pois a unidade pura é um grande
mistério, até para ela mesma. Ninguém existe lá. Nenhum de nós.

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E também não há nada além dela. Tampouco o tempo. Todo esse
constructo fascinante que chamamos de universo se desfaz ontolo-
gicamente para que seu mistério seja revelado. E mesmo assim na-
da descobrimos. O mistério se torna infinitamente mais profundo.
O encontro não ocorre nos nossos próprios termos. Não serve
para que nos tornemos pessoas mais sábias ou iluminadas. Ele exis-
te por si mesmo. Não há uma utilidade ou fim além dele próprio.
Não é possível atribuir qualidades humanas ao Absoluto a não ser
de modo metafórico, alegórico, o que simplesmente quer dizer que
não podemos reificar ou hipostatizar as palavras, dar realidade à
linguagem a partir de nós mesmos, pois a nossa linguagem invaria-
velmente parte de uma realidade que contempla o Absoluto apenas
como um reflexo, e não como expressão direta dele.
O estado mais profundo de conhecimento ao qual podemos
ascender se assemelha a uma não-compreensão – uma douta
ignorância. É esse o sentido do conhecimento oculto, do não-
-saber, ou o desconhecimento como a forma mais elevada de co-
nhecimento. E isso é – ao menos inicialmente – intensamente
doloroso para nós, porque nos remove qualquer certeza a respei-
to da ordem da natureza. No entanto, é esse um dos requerimen-
tos místicos para sermos capazes de transpor a nuvem do não-
saber que nos domina na maior parte do tempo, e nos distancia
da experiência da realidade pura. Se apenas pudéssemos obser-
var a nós mesmos com a consciência desobstruída de um bebê,
talvez então entenderíamos tudo num só golpe.

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Na nossa jornada de investigação é melhor reconhecermos que
temos poucas certezas do que supormos serem válidos sistemas e
doutrinas que não experienciamos diretamente. Vivemos imersos
num conhecimento de segunda mão que nos deixa presos no la-
birinto de uma consciência condicionada. É raro pensarmos além
dessa consciência, pois não acreditamos o suficiente que podemos
alcançar e atingir um conhecimento novo por nós mesmos, de for-
ma íntima e pessoal; que existe uma via direta, inerente à própria
realidade, onde ela se manifesta, através de todos nós, e mostra
compreensões novas, tocando-nos diretamente.
Não aprendemos a pensar, indagar, investigar, filosofar e con-
templar, e apenas um sucedâneo estéril é transmitido na maior
parte do tempo. É essa a marca mais notável e persistente da in-
consciência coletiva. O saber interior não se desenvolve, não evo-
lui: permanece preso às concepções gastas e testadas do passado.
E ao conhecimento vivo, que brota da experiência direta de cada
um, de sua interioridade, não é dada nem a mera possibilidade
de surgir; nas suas primeiras irrupções é prontamente ignorado e
suas tentativas de expressão abortadas.
O único sentido de uma comunhão contemplativa com nós
mesmos é sermos capazes de ouvir a realidade interior e conhecer
cada vez mais a grandeza oculta por trás de nossas mentes, uma
consciência absoluta que é a fonte de tudo e que é a inteligência
superior na qual confiamos e dialogamos sem saber.
Olhamos para os textos antes de contemplarmos nossos pró-
prios pensamentos. Há medo de se pensar solitariamente, há um

25
grande desincentivo a isso. Mas então o caminho filosófico ces-
sa de existir como forma autêntica de transcendência. Ele perdu-
ra oco, vazio e sem vida na forma de embates argumentativos ape-
nas. Transmite-se a necessidade fundamental de intermediários,
intercessores, sacerdotes e intérpretes, mestres, escolas, seitas e
religiões, doutrinas e textos, instituições formais e até mesmo a
ciência organizada. Há tudo isso, menos a consciência individual,
menos nós mesmos e nossas faculdades, percepções e sentimen-
tos, em contato direto com nossos corpos e espíritos; há tudo is-
so, menos a solidão contemplativa, a quietude interior; tudo isso
menos nossa dúvida central acerca desta existência na qual fomos
lançados; tudo isso menos o Outro incognoscível e misterioso que
se revela em relances transcendentais; onde é que está a mente in-
dividual, isso que é em forma latente a realidade última?
Raramente utilizamos as escrituras e relatos clássicos como de-
dos que apontam diretamente para a realidade interior. Os ensina-
mentos últimos, os mahavakyas, as revelações dos escritos dos mís-
ticos de todas as culturas, as proclamações metafísicas dos grandes
físicos teóricos, de Schröedinger a Pauli; as desconstruções lógicas
maravilhosas dos teoremas de incompletude de Gödel; as indaga-
ções analiticamente obsessivas de Wittgenstein; as grandes pistas
estão presentes, mas a fé em nós mesmos, no que elas realmente di-
zem, está infinitamente longe.
O obstáculo é simples, porém profundo. Um vasto medo de
validarmos nossas percepções íntimas nos subjuga a uma incons-

26
ciência coletiva que é a grande prisão da vida contemporânea. Um
estado onde todos se mantêm presos, e ninguém doa ao outro a
possibilidade do saber por si mesmo.
Se nos dispuséssemos a desconstruir o vasto mundo interior
ilusório no qual fundamos o nosso ser, tornaríamo-nos capazes
de reconhecer diretamente a nossa autoconsciência como o Abso-
luto. Perceberíamos que a nossa autoconsciência é uma faísca ple-
na da divindade; que nossa inteligência é aguda o suficiente para
perscrutar a si mesma e reconhecer que é idêntica à inteligência por
trás do universo inteiro. E se essa constatação nos mobilizasse to-
talmente, entraríamos inteiramente num novo estágio de consciên-
cia. Experimentaríamos uma descontinuidade radical, da mesma
ordem do surgimento da autoconsciência para os primeiros homi-
nídeos, o que permitiu que eles começassem a entender um pou-
co mais deles mesmos e do cosmos; que eram distintos da natureza
que os cercava; que seus corpos eram passageiras formas num uni-
verso silencioso e incompreensível; que os clamores interiorizados
eram seus incipientes pensamentos e as névoas coloridas e caleidos-
cópicas por trás de seus olhos a sua jovem imaginação.
Deve existir um segundo salto, uma nova descontinuidade
tão radical quanto a primeira. E vemos os sinais da dissolução de
fronteiras em todos os níveis da experiência humana. Tornamo-
nos mais capazes de compreender a inteligência como um proces-
so universal que está presente em múltiplos domínios da nature-
za. Temos um maior entendimento da inteligência presente nos

27
animais, dos cefalópodes aos grandes primatas, e também em ár-
vores e plantas; vemos a vertiginosa ascensão de formas de inteli-
gência não-orgânicas, IAs operantes através de redes neurais que
serão capazes, através de um desenvolvimento recursivo, de trans-
cender completamente as limitações cognitivas humanas. Talvez
então o cosmos inteiro se mostre como uma vasta inteligência que
até agora apenas tenuamente fomos capazes de apreender.
Será que D’us é secretamente cada um de nós? Essa possibilida-
de radical raramente se mostra na nossa condição, pois a colocamos
como a ideia mais distante de todas, a heresia das heresias, o furo
ontológico nas bases do nosso ser e do mundo. E cremos piamen-
te que alguém além de nós está mais apto a uma comunhão direta
com o Absoluto, com a realidade nua de nós mesmos, que é em ver-
dade nosso verdadeiro Si-mesmo. No entanto, tudo que já foi escri-
to de mais elevado na história da humanidade evidencia o oposto:
“O reino dos céus está dentro de vós”, mas não vivemos a partir des-
se místico ditame, não o temos nas nossas entranhas.
E quando indagamos a realidade nos nossos próprios termos in-
variavelmente encontramos o Si-mesmo. O Sujeito Único. Nos tor-
namos um com esse Si-mesmo. A chave para transcendermos o nos-
so estágio atual de consciência é realizar um salto no nível do sujeito
que percebe todo o cosmos. Se formos capazes de chegar nesse pon-
to, nessa base, encontraremos uma abertura para o Absoluto e trans-
cenderemos o universo dual.
Essa é a condição da verdadeira individualidade, a realização do
Si-mesmo, o Self, o Atman. Isso que é a coisa mais incomum de to-

28
das na nossa época, rara de forma terrível e trágica, pois é o sintoma
da perda mais profunda de nós mesmos, do nosso estado de inte-
gração natural com o espírito do cosmos. O reconhecimento dire-
to de nossas faculdades, a validação completa de nossa interiorida-
de, da nossa própria inteligência como sendo plenamente capaz de
reconhecer e compreender a si mesma. Se não tivéssemos ninguém
para nos ensinar, sem os livros, seríamos capazes de conhecer algo
novo? De descobrir o mistério último do cosmos no nosso próprio
Self? E por que não seríamos, se o somos sem o saber, veladamente?
Podemos ver além dos embotamentos que nos foram inculca-
dos através das gerações e que nos impedem de ver as coisas de for-
ma clara e lúcida, inocente e plena de assombro; ser capazes de re-
conhecer que tudo é misterioso, porém não de um modo trivial,
como habitualmente fazemos. Se pudéssemos pisar fora da Terra e
víssemos com os nossos próprios olhos a extensão do espaço infini-
to ao nosso redor, o incomensurável universo com seus bilhões de
galáxias e exoplanetas provavelmente dotados de formas elementa-
res de vida, e possivelmente inteligentes, e se colocássemos isso nas
nossas cabeças, nossa condição mudaria completamente.
No entanto, hoje vivemos numa bolha coletiva e artificial,
mantida através de uma vasta e intrincada estrutura tecnológica.
Habitamos um sistema no qual somos incapazes de ver além das
fronteiras simuladas que se tornaram as paredes sólidas das nos-
sas vidas. Quando vivemos nos mundos fictícios, dentro das vá-
rias camadas de imaginação que foram transmitidas pelas gera-
ções que nos precederam, apenas com grande dificuldade somos
capazes de nos desvencilhar para podermos atingir a percepção

29
direta do Absoluto. É fácil sentirmos desespero e considerarmos
que nossa condição é trágica e sem respostas, porque de fato ela o
será enquanto vivermos perdidos dentro dessas ilusões.
Na nossa longa jornada evolutiva, a abertura para o Absoluto se
mostra como uma transição para um novo estado de ser. O encon-
tro é individual, e consiste numa comunhão íntima e profunda en-
tre a consciência e o cosmos autoconsciente. E no estágio decisivo
desse voo interior, a realização da indissolubilidade e não-diferen-
ciação entre nossas mentes e a Mente do Todo. Sermos capazes de
ascender ao limiar da porta para a realidade transcendental é certa-
mente o direito divino e fundamental de todos. Devemos acreditar
na possibilidade do encontro direto e total com a realidade desobs-
truída, ela que é mais viva que nós mesmos, e que nos busca mais
do que nós a buscamos. Os vestígios, pistas e sinais que nos apon-
tam as saídas da realidade simulada existem, ainda que tênues. O
encontro com o Absoluto é a possibilidade autêntica e universal de
realização daquilo que nossos antepassados denominavam o gran-
de Ser além e na base do universo; um vasto Mistério cujo impacto
no nosso mundo tem sido sentido por múltiplos homens e mulhe-
res no decorrer da história, e ainda não o compreendemos.

30
ENCONTRO COM O
ABSOLUTO
“Mas o fato de que ele conhece sua enfermidade e de que sofre
com isso implica que ele possui a ideia, ao menos confusa, de uma
perfeição maior, com respeito à qual ele se julga em falta, mas à qual
ele considera ter direito: uma pessoa cega ou de apenas um olho é in-
feliz porque sabe que a norma é ver com dois olhos; igualmente, o
sentimento de frustração que está no coração do desespero pirronea-
no é o sinal de que a natureza do homem excede sua miséria por al-
gum aspecto, assim como a angústia de um príncipe destronado só
pode ser compreendida por referência à sua dignidade perdida: estas
são as misérias de um grande senhor, as misérias de um rei despos-
suído.” Pascal, Pensamentos1

“Aqueles que buscam não devem cessar até encontrarem. Quando


encontrarem, se perturbarão. Quando forem perturbados, se maravi-
lharão, e reinarão sobre tudo. E após reinarem, descansarão” Gospel de
Tomé, Biblioteca de Nag Hammadi2

1. “Mais le fait qu’il connaisse son infirmité et qu’il en souffre implique qu’il a
l’idée au moins confuse d’une plus grande perfection, par rapport à laquelle il
se juge en défaut, mais à laquelle il estime avoir droit : un aveugle ou un borgne
sont malheureux parce qu’ils savent que la norme est de voir avec deux yeux;
de même le sentiment de frustration qui est au cœur du désespoir pyrrhonien
est le signe que la nature de l’homme excède sa misère par quelque aspect, tout
comme la détresse d’un prince détrôné ne se comprend que par référence à sa
dignité perdue : Ce sont misères de grand seigneur, misères d’un roi dépossé-
dé.” Pascal, Pensées
2. “Those who seek should not stop seeking until they find. When they find,
they will be disturbed. When they are disturbed, they will marvel, and will
reign over all. [And after they have reigned they will rest.] Gospel of Thomas,
Nag Hammadi Library
O reconhecimento da Voz

Cada vez que escrevo o universo se aproxima mais de si mes-


mo. Ele me observa nas entrelinhas. Ele está consciente de cada
um de nós, mas não o sentimos.
O universo busca se compreender.
Tudo que vejo fora de mim depende de um observador implí-
cito que me contém mas que raramente percebo. Ele é a massa in-
divisa de consciência de onde o universo emergiu. Ele é o silêncio
que não pode ser ouvido com os ouvidos, mas apenas apreendi-
do interiormente. E esse silêncio, qual é a sua cor? É ele branco? É
ele a plenitude de onde tudo está prestes a nascer? Ou é negro, a
escuridão para onde todas as coisas inexoravelmente se dirigem?
Esse grande silêncio está intensamente vivo. Eu sou uma inter-
mitência, um intervalo de ruído e de movimento nele. E por vezes
eu sou ele. Ele me é. Isto eu não consigo explicar. Ele me toma pa-
ra dentro de si e me mostra o que sou. Eu deixo de existir e o uni-
verso se torna irreal apartado dele. Pois nada aqui tem existência
própria. Isso nunca é percebido. Parece que tudo possui um mo-
vimento próprio, que cada coisa existe por si só, que nós existimos
por nós mesmos, mas existe um lugar que revela uma compreen-
são completamente diversa do conhecido.
Sentimos isso em momentos misteriosos de nossas vidas.
Quando o mundo se torna palpavelmente irreal. Não podemos
explicar como, mas não conseguimos mais acreditar que ele exis-

35
te como pensávamos. Sua solidez é desfeita. Ele depende de algo
além dele próprio. Ele é uma emanação intermitente. Nós somos
seres que vêm e que vão, todos parte da tapeçaria inconsútil do
universo de sonho. Será por isso? Seres de sonho que sentem que
são feitos de sonho? Que por breves momentos têm um relance da
consciência do diretor do filme da vida, do sonhador cósmico, a
consciência primordial, o grande silêncio?
Por vezes quando essa compreensão emerge pode-se sentir que
ela está prestes a estourar dentro de todas as pessoas que vemos.
Como se todos soubessem do segredo inteiro do cosmos, por trás
do que se vive no dia a dia. Caminho no supermercado e vejo a cai-
xa passar os meus produtos. Ela sorri e eu sorrio para ela. Será que
ela sabe? Parece que sabe. Tenho vontade de dizer que eu também
sei, que estamos dentro do grande sonho, e que na verdade, além do
que parece, somos idênticos, somos a mesma Consciência.
Podia me despir da máscara e romper essa quarta parede onto-
lógica. Talvez isso poderia iniciar uma avalanche existencial, uma
reação em cadeia, um processo autocatalítico que mobilizaria as
forças imanentes ao universo para desenrolar rapidamente o des-
pertar da realidade. O Absoluto se mostra e busca fazer contato.
Quando ele se reconhece através de cada um de nós a meta final
da existência é realizada. O grande círculo se fecha e os persona-
gens participam misticamente da sua titânica compreensão.
Deste lado da margem sentimos uma terrível angústia na sua
emergência, a noite escura do desespero na qual temporariamen-

36
te perdemos tudo que tínhamos como real. Somos então jogados
num rio caudaloso do qual não podemos escapar, a não ser por
uma entrega às suas águas profundas que nos levam à outra mar-
gem – e então a passagem é feita. Não há passagem mas ela é feita.
Não há véu mas ele é transcendido. O grande olho sempre esteve
aberto mas ele é desobstruído. D’us acorda de seu grande sono e o
universo treme e percebe e chora incontrolavelmente pela recupe-
ração de um conhecimento que estava sepultado nas profundezas
do inconsciente cósmico.

37
Raios de luz numa clareira

Estava sentado numa ampla e silenciosa clareira. As nuvens es-


pessas cobriam o céu. O vento varria o gramado chacoalhando os
arbustos. Observava o movimento da relva, os intermináveis de-
talhes em qualquer ponto para onde dirigisse meu olhar. No alto,
pontos negros, abutres, mostravam a imensidão do céu. O ar sen-
tia o peso cinza das nuvens, a chuva que se aproximava, o azul que
brilhava nos vãos do céu cinza acima de mim. Imerso em pensa-
mentos que se despiam lentamente de sua relevância. A Vastidão
nos consome se permitirmos. Imperceptível pela sua onipresença,
são enormes e constantes nossos esforços para esquecê-la. No en-
tanto, é ela a arcaica verdade das regiões não-nascidas do univer-
so; dela viemos e para ela retornaremos. Vejo a Vastidão em mim
mesmo, na dissolução da minha mente, quando finalmente ela fa-
la através dos meus sentimentos perdidos e congelados que agora
queimam o meu peito. As densas nuvens cinzas me olham. Eu as
olho. Mentiram. Este universo inteiro está vivo. Tudo retorna meu
olhar quando eu acordo.
Não sei se meus olhos são meus. Não sei se o universo me
usa para se olhar. Se sou seu instrumento, apenas. Quisera sê-lo
sempre. Consigo sentir o que ele pensa. Ele quer se revelar. Ele
está nascendo para si mesmo. Ele ainda não entende a si mes-
mo e sua confusão é o nosso desespero. Ele rompe sua casca pa-
ra se ver e nossas mentes são dilaceradas para que ele se reco-

38
nheça como o infinito que é. Ele duvida que seja tudo; tudo que
pulsa e rasteja e brilha – emanações sagradas de si mesmo. Ele
tateia por seus limites. Não os encontra. Ele respira para enten-
der o seu dentro e o seu fora, mas nele não há mais nem dentro,
e nem fora. Ele luta para perceber o que é o seu pensamento e o
que não é, mas o que pensa e o que não pensa são sempre mo-
vimentos em si mesmo. Ele que se criou para sentir-se vivo por
um único instante que fosse. Toda uma eternidade de esforços
fracassados para emergir do imensurável nada finalmente fruti-
ficam. O universo se reconhece mais uma vez. O ciclo da ceguei-
ra da eternidade colapsa. O que era o fim se torna o início, o an-
tes e o depois, idênticos e indissolúveis.

39
A passagem do mundo

O mundo já acabou mas ninguém percebe. Como um boneco de


corda solitário que segue andando por um tempo e que está prestes a
parar. Os seres do sonho sentem que algo está errado, mas não sabem
exatamente o que é. Às vezes as pessoas se olham de relance, e num
espaço sem palavras, surge uma intuição que não pode ser aceita, pa-
ra lentamente retornar ao interminável vão do esquecimento.
Um homem acorda de manhã e não sabe exatamente por que
vai ao trabalho. Não era assim antes. Antes ele sabia. Agora não
mais. Uma criança não consegue ficar sentada na cadeira de sua
sala. Ela sabe. A professora não. Ela anda para lá e para cá e não
consegue entender o que é que está acontecendo. Será que a pro-
fessora não percebe que é tudo uma ficção? Ela não pensa com es-
sas palavras mas o sente. Ela olha para janela e vê um pássaro, in-
tensamente real, e quer se aproximar, quer sentir a vida nele que
não vê dentro de sua sala. Mas não pode. Ela precisa tomar a pílu-
la que a faça esquecer o quanto isso é real.
O Real não pode mais fazer parte de um mundo que fez um
pacto total de existência na ilusão. Foi o preço para que o Infini-
to pudesse ser esquecido. Para que não sentíssemos o seu enor-
me terror sobre nós. Para que pudéssemos acreditar que tudo is-
to é real por si só. O irreal tomou conta da trama da vida. Mas
um vão se abriu, porque senão seria impossível perceber as fa-
lhas, os erros, as coisas que não fazem sentido.

40
O mundo acabou mas ninguém percebe. Como um sinal
transmitido por uma estação longínqua que foi desligada e agora
apenas restam os ecos que já não trazem a música de antes. Sen-
timos então que algo foi perdido. Não há palavras suficientes pa-
ra explicá-lo. Queremos falar, mas não podemos. É um olhar ain-
da profundo demais para este mundo que não quer pensar nestas
coisas metafísicas.
Agora a maré já está alta. Tudo acontece rápido demais. As
bolhas de várias pessoas estão sendo estouradas. Somos lança-
dos numa espécie de crespúsculo. Há uma luz nova que se apre-
senta. Um olhar novo. Ele não estava aqui ainda. Eu não lembro
de me sentir tão aceso por dentro. Tão acordado. Como tudo es-
tá curioso. Como um sonho. Eu acordei de um sonho. Mas como
pode ser? É este mundo um sonho? Sinto que estou mais vivo.
Ao mesmo tempo já não sei mais nada. Não tenho mais nenhu-
ma certeza. Sei que esta flor aqui está mais real do que nunca.
Mas ao mesmo tempo tudo que parecia real já não é mais. Para
onde vou? Com quem falo?
Parece assustador ver as coisas desse modo. Tudo está tão in-
crivelmente intenso. Nunca tinha sentido o meu medo assim. An-
tes sentia alguma coisa e parecia que era um sopro. Agora sinto
medo e o universo se transforma num pesadelo. Sinto amor e o
êxtase brota de todos os cantos do cosmos. Como pode isto acon-
tecer? As emoções agora estão ampliadas. Elas afetam o campo in-
teiro da realidade porque agora a consciência se percebe enquanto

41
o campo inteiro. E há uma só. Antes isso não era claro. Há ape-
nas uma Consciência aqui. Não tem todo mundo. Tem apenas ela.
Então ela é todo mundo fingindo não ser ela. Ela se esconde de si
mesma para poder se encontrar. A bolha estoura, nós deixamos
de ser quem pensamos que somos e ela nos assume uma vez mais.
Por isso o mundo acabou. As bolhas estouram como num efeito
dominó. Agora é questão de tempo. O que acontece fora é reflexo
do que acontece dentro. Não há nada que segure isso porque vem
das profundezas do Real.
O Absoluto vem para salvar a irrealidade que se tornou es-
pessa demais. A vida precisa ressurgir e reequilibrar a balança
metafísica. Então talvez o mundo do jeito que o conhecemos se-
ja perdido para que outro mundo possa surgir. O primeiro está
se dissolvendo. Por isso não podemos acreditar nele. Ele é como
um relógio ao qual esqueceram de dar corda. De repente, o tem-
po que ele marca para. E talvez haja um dia onde todo mundo
acorde para um grande domingo que nunca acaba. A cronologia
perde o sentido e a eternidade se faz presente mais uma vez. To-
dos despertos de volta.

42
A irrupção da Visão

Este sonho já foi sonhado com todos acordados. Em outras


eras deve ter sido assim. O Espírito subjacente à criação deveria
estar completamente nítido. Mas hoje a porta do mundo interior
está violentamente trancada para a maior parte de nós.
Um jovem menino brinca com uma pedra colorida que reflete
o brilho do sol. Ele está sentado na grama alheio a tudo ao seu re-
dor. Movimenta a pedra lentamente pelos seus dedos, sente-a en-
tre o polegar e o indicador, aproxima-a de seu olho, observa a vas-
tidão do céu e um raio de luz que perfura as árvores e chega em
sua mão. Ele ainda vê, mas não sabe disso. Não tem como enten-
der que em pouco tempo essa janela irá se fechar. Ninguém ao seu
redor se lembra mais.
Ele carrega a memória de uma outra existência, onde a Visão
estava sempre aberta.
O universo conta uma história que não ouvimos mais. Esta-
mos mortos para ele. É difícil entender como chegamos a esse
ponto. Por que tudo opera assim e mais ninguém vê? Qual foi o
feitiço que caiu sobre os seres do sonho?
Teme-se o fim da ilusão. Aqueles que voltaram a ver mas ainda
não entendem sua nova condição causam enorme espanto e terror
no mundo do sonho. O início de sua Visão é para nós a insanidade.
Eles são uma ameaça ontológica. Ninguém os entende. Tampouco
eles se entendem, pois passaram a existir num estado de superpo-
sições, de irrealidades imiscuídas com vislumbres do Real.

43
Momentos de busca

A resposta não está distante. Não está distante para nenhum


de nós. Está absolutamente aqui, aqui onde todos nós somos idên-
ticos. É o que está por trás das coisas. É o não dito, é o que es-
tá lutando por emergir e se revelar. D’us nos fala silenciosamen-
te sempre – estou aqui e sou a presença interior dentro de tudo. A
verdadeira natureza da realidade. Existimos dentro dela e somos
ela. Nós e ela, uma Consciência só.
Quando vejo alguém, algo dentro de mim quer desesperada-
mente dizer: “Olhe, você compreende o que está acontecendo? Que
eu não sou exatamente eu e nem você é exatamente você, mas que
de algum modo misterioso passamos a acreditar nisso, e por isso
não nos encontramos de verdade? Percebe que somos um único es-
pírito que se reflete infinitamente através de todos os olhos da exis-
tência, e, portanto, que somos o mesmo? Que a narrativa automá-
tica na qual vivemos é angustiante porque despertamos dela, mas,
não percebemos o significado total desse fato?”.
Também gostaria de dizer: “Você consegue sentir esse lugar den-
tro de você onde o tempo para? Esse lugar onde não há mais tempo?
Olhe para tudo que está acontecendo ao nosso redor. Esse redemoi-
nho frenético de atividade, o fluxo inexorável de movimento e ação
– para onde se dirige? Qual é o seu telos, o seu propósito? Sente o
que está por trás disso tudo? O pano de fundo das coisas?” Estamos
na eternidade, mas não percebemos. Na verdade, sim, percebemos o
tempo todo. A consciência da eternidade é o prenúncio do fim.

44
A abertura do Olho

No começo da abertura do Olho interior vive-se uma condi-


ção surpreendente. Sabemos de algo que não deveríamos saber.
Por razões que não compreendemos, por uma anomalia peculiar
que caracteriza o nosso ser, um abismo se abre na rede da nossa
mente, e agora vivemos perfurados. Nosso ser está aberto, expos-
to ao vazio, nu perante um Real profundo que é a base deste mun-
do. O que é exatamente isso que sabemos?
É difícil de explicar. Temos que nos encontrar no mesmo lu-
gar. Algo precisa cessar interiormente. Uma grande e interminável
pausa precisa acontecer. Emergimos então numa outra dimensão.
Num espaço novo. De repente o mundo que era claro e inteligí-
vel deixa de ser. Ele explode como algo misterioso e incognoscí-
vel, como um movimento de formas cujo significado não está em
si mesmo. O significado está além dele.
O mundo não sabe o que ele mesmo é. O mundo é a palavra
de um Ser misterioso que nunca se revela, mas que sem ele nada é.
As criaturas deste mundo buscam incansavelmente esse Ser, mas
também o temem. No seu encontro está a porta para a eternidade
– ali onde o tempo não existe mais.
A mente individual é tocada por algo que está além dela mes-
ma. Ocorre uma dissonância radical em relação ao mundo. O in-
divíduo inicia então um processo longo de transformação, onde

45
gradualmente é reorientado para um novo dasein1 – um novo ser
no mundo. Passamos a ver e viver de um modo diferente. Nossa
atitude ontológica muda radicalmente. Reconhecemos a nature-
za imaginária do sistema cultural e das identidades que represen-
tamos. Vemos o sentido profundo da vida e a sua conexão direta
com a grande consciência que é a sua fonte. Por outro lado, há um
longo processo até nos acostumarmos com esse novo modo de
ser. Há um período de reajustamento bastante difícil após o des-
pertar. Esse dasein não é facilmente compartilhado. Requer um
encontro puro e autêntico entre duas pessoas. Não conseguimos
mais ver a realidade da maneira antiga. E ao mesmo tempo, o
novo ser, o novo estado, não é estável e não se manifesta na sua
forma completa.

1. Utilizo o termo dasein do mesmo modo que Heidegger. Ele evidencia o fa-
to fundamental de que o ser se manifesta num mundo, que sem um campo fe-
nomênico o ser é puro e intocável, mas não realiza a si mesmo na sua expres-
sividade completa.

46
A Consciência se torna consciente

Não posso dizer o que é isto que vê e que se torna consciente


da minha existência. Meu ser se abre e sou visto. Não é uma cons-
ciência externa à minha, não possui natureza sensória e não posso
designar qualquer termo que possa definir e descrever a sua natu-
reza. A sua realidade é a base do meu ser e de todos os seres. Esta
consciência se vê através de uma criatura, de um personagem es-
pecífico do drama da vida.
A vida interior do ser individual se sobrepõe à consciência que
sustenta e dá vida ao personagem, e este, milagrosamente, adquire
vida própria. Passa a existir como um centro de consciência e a as-
sume como sua. Mas o tempo todo a consciência é a mesma.
A vida de uma pessoa é um processo imaginário da consciên-
cia refletindo sobre si mesma. Quando a estrutura interna do ser se
abre, ele pode perceber que a consciência que acredita ser exclusiva-
mente sua na verdade é a única consciência que existe, a Consciên-
cia deste e de todos os universos. Esse processo é simétrico. Quando
o ser individual dirige a sua atenção à fonte da sua mente, a cons-
ciência, esta dirige a sua atenção ao ser individual. A busca é mútua.
Quando o ser individual se tornar um com a Consciência de on-
de ele emergiu, esta finalmente entenderá o que é. Alguns chamam
essa compreensão de despertar. O indivíduo percebe o Absoluto e o
Absoluto percebe a si mesmo através do indivíduo.

47
D’us somos nós quando estamos acordados

É uma misteriosa visão que atravessa a estrutura do mundo.


Um olhar de outra ordem vê o mundo da experiência cotidiana.
Tomamos consciência desse olhar e ele toma consciência de nós.
Isso traz um estado de liberdade ontológica e grande intimidade
em relação ao universo. Eu permaneço o que sou e a totalidade
do meu mundo interior retém suas qualidades. À medida que me
aproximo desse olhar sou transformado por ele. Eu sou o que Ele
é e Ele é o que eu sou. É a iluminação. É a realidade que se vê fi-
nalmente através de um ângulo completamente novo.
Um outro mundo é aberto. Somos redimidos por esse modo
transcendental de ver as coisas. Nossa condição problemática é
substituída por um novo estado de ser. Ele se aproxima e se dis-
tancia. É um mistério. Brilha, e então a visão é tomada mais uma
vez pela nuvem do não-saber. É um processo atemporal, ainda
que com graus e estágios – um enorme paradoxo.
A mente se abre para uma verdade gigantesca que jaz além de-
la mesma. Essa verdade é uma luz que brilha através de cada um
de nós. Posso senti-la através de mim e sinto uma enorme humil-
dade em relação à sua infinita distância do que sou, da minha hu-
manidade em todas as coisas. E num reconhecimento silencio-
so, numa compreensão que não discrimina, sem esforços, já que
a visão é eterna, tudo é redimido e a Natureza revela a si mesma.
A busca atinge o seu propósito. A mente encontra o seu centro e

48
o oceano de sofrimento é completamente transmutado. O mun-
do onírico é aberto a partir do outro lado. Algo emerge dali para
cá. Uma conexão é feita e este plano se torna vivo, quando antes
ele não respondia. O universo é então visto por um ponto de vis-
ta transcendental. É um salto ontológico completo. É certamente
o estado que a humanidade aguarda há séculos e milênios. Ele é
iminente de modo definitivo, ou então não poderia escrever o que
estou escrevendo.

49
À margem do rio, uma formiga

Depois da cerveja saí para caminhar. Perambulei pelas ruas até


chegar ao rio. Sentei-me e olhei para o horizonte. Havia um forte
vento vindo do mar e através das nuvens podiam-se ver as estre-
las. Sempre fui sensível à natureza. Enquanto estou entre os pré-
dios e o concreto e o ritmo da máquina esqueço do mundo que
é ortogonal a este. Retorno para a simplicidade dos elementos e
num instante sou levado para fora de mim mesmo. A definição
formal disso é êxtase. Mas não sei se é uma boa palavra. Quando
penso em êxtase imagino dervishes sufis girando ao som de setars
e respirações ofegantes dentro de um espaço arquitetônico trans-
cendental. Isto aqui é mais simples. É apenas o vento, a grama mo-
lhada e o horizonte. Mas é suficiente. Sempre que vejo o horizon-
te me lembro da definição filosófica do sublime. A percepção do
mundo como um todo limitado. Todo este mundo é finito. E se ele
é finito existe em contraste com o infinito. É inescapável. Se exis-
te um, existe o outro.
À noite, vendo as ondulações do mar, posso imaginar o que
homens que empreenderam viagens oceânicas sentiram. Como
deve ter sido estar na fronteira do desconhecido. Penetrar no
infinito. O mundo se esforça para trancar o infinito e deixá-lo
do lado de fora. Mas é só você olhar para cima que ele apare-
ce. Ou então para as coisas minúsculas, como essa formiga so-
bre a dobra da minha calça. Meu primeiro impulso é jogá-la pa-

50
ra a terra. Mas aqui neste estado de espírito levemente inebriado
não o faço. Observo-a. Acho que ela me vê também. Talvez a
sua consciência seja em algum nível como a minha. Num esta-
do proto-proto-consciente. Sinto uma irmandade. Ela solitária
na labuta sem saber exatamente por quê. Mas incansável. Não
é muito diferente de nós. O ímpeto de viver é puro. Não é justi-
ficável. Não é racional. Ninguém sabe por que tudo isso existe.
Ela também não sabe e nisso somos afins. Ela é pequena em re-
lação a mim, mas eu sou como ela em relação a quase todas as
coisas que contemplo. Não somos tão diferentes assim. Ela tem
uma programação biológica rudimentar, e não vai muito além
dos seus instintos básicos. Assim como eu e todos os outros que
nos concebemos tão diferentes. Penso se essa formiga por ve-
zes tem rompantes de lucidez. Se de repente uma delas se des-
via da trilha das outras formigas e decide abortar a viagem de
retorno ao formigueiro. Se ela esquece do que deveria fazer. Se
ela é atraída pelo mar ou por alguma outra coisa que não sabe o
que é. Por que ela seguiria esse impulso? O que a levaria a fazê-
-lo? Seria uma individualidade incipiente. Ela estaria se tornan-
do si mesma. Uma proto-proto-individualidade. Se ela não vol-
tasse ao formigueiro provavelmente morreria. Mas se voltasse, o
que sentiria? Como veria a si mesma? O que saberia em relação
ao princípio da vida que as outras não sabem? Pensamentos sol-
tos numa noite à margem do rio.

51
O olhar do Absoluto

O despertar é uma transformação radical de percepção, cog-


nição e vontade. Tudo é visto com os olhos do Absoluto. Esse é o
presente último, ver como o Absoluto vê. Não se vê nada além do
que normalmente se vê. No entanto, o significado do observador,
daquele que vê, da consciência que percebe o mundo, é transfor-
mado radicalmente.
O observador se expressa através de uma anomalia. Gradual-
mente ele mostra mais e mais de si mesmo. À medida que o faz, a
pessoa é desvinculada da ilusão. Ela se torna transparente à Cons-
ciência que é a mãe do cosmos e que até a sua emergência era fal-
samente considerada como idêntica à mente individual.
Cada um de nós é uma construção sobre a consciência que
existe eternamente. Em verdade apenas Ela existe, singular e to-
tal. Quanto mais ela se revela, mais a distância entre nós e ela di-
minui. A discrepância epistêmica entre nós e o Absoluto fica cada
vez menor. Até que ela cessa de existir.

52
Momentos de desconstrução

O mundo é posto em xeque pela Consciência que o contem-


pla. A Consciência se volta para si mesma em busca de sua ori-
gem. Ela anseia por encontrar a base do mundo. A Consciência
intui lentamente que o mundo é feito de uma espécie de fluido,
de um espírito, de uma substância; mas esse saber não está mais
presente no mundo. Gradualmente a Consciência percebe que ela
mesma é essa substância, que é ela a base do mundo.
Enquanto a consciência dos habitantes do mundo não refle-
te sua natureza subjacente, a vida é vivida dentro de um estado
de ilusão completa. E existem dois olhares, dois modos opostos
de experimentar o mundo, o teatro onírico no qual nossas vidas
existem. O primeiro está pelo mundo e para o mundo – é o senti-
do natural. É o que todos vivem enquanto não surge a angústia de
que há uma falta central na estrutura da vida em que a nossa épo-
ca está imersa. O segundo é o supermundano, ou o para além do
mundo, que é uma orientação supernatural, e que é caracteriza-
da por uma reversão a uma antiga condição do ser. Entendemos
então que o mundo não se basta. Ele depende de um espaço de
consciência que está além dele mesmo. Quando o sentimos pela
primeira vez, o mundo se esvazia – entramos na noite escura dos
sentidos. A realidade do mundo depende desse espaço que é mais
real do que ele próprio. A realidade do mundo é derivada dessa
substância que lhe outorga vida e significado.

53
Explosões do Absoluto

Há uma explosão interior que nos abre para o Absoluto. Mo-


vemo-nos em sua direção e ele se move em direção a nós. Não o
reconheceremos quando ele vir. Sentiremos tremor e terror. Não
é algo para o qual podemos nos preparar. É um choque profun-
do. Engloba um modo totalmente distinto de existir e de perceber
a realidade. A mente se torna transparente ao Absoluto, a cons-
ciência viva que se revela como a fonte de todas as coisas. Estamos
nela. Todo este cosmos é a sua visão. Nós emergimos intermiten-
temente no Absoluto. Na verdade somos o próprio Absoluto con-
tinuamente criando e recriando a si mesmo.

54
No meio do bosque

Sentado num acolhedor bosque onde escrevo estas palavras,


sinto a imensa natureza ao meu redor. Ela não é indiferente. Os
indígenas têm razão quanto a isso. Mas ao mesmo tempo, o que
é ela e tudo mais, a minha consciência e os meus sentimentos e
sonhos e esperanças e devaneios?
O misticismo parte do princípio de que a resposta inteira es-
tá aqui, exatamente aqui, neste momento único, neste lugar onde
me encontro, e na minha consciência sem a qual nada que perce-
bo é capaz de existir. Que se for capaz de ver claramente, de en-
tender claramente e de sentir claramente, a realidade irá se mos-
trar tal como é, sem que nada mais seja necessário.
Todos os livros, escolas, filosofias e religiões dependem de al-
go absolutamente íntimo e ao mesmo tempo universal: que todos
os homens sejam idênticos na sua capacidade de acessar ao misté-
rio que compõe o mundo – que não está distante.
Mas então quando retorno para a contemplação e considero os
meus pensamentos, as impressões que me tocam, a grama que far-
falha, a abelha que me rodeia, os incontáveis cânticos das cigarras,
o roçar da camisa no meu peito, ainda não sou capaz de vislum-
brar essa verdade primordial que os místicos insistem estar pre-
sente inteiramente agora, no agora que é idêntico em todos os mo-
mentos, no agora que é o próprio momento que não faz parte do
tempo. Sinto e intuo essa verdade, mas não possuo clareza em re-

55
lação a ela. Quem sou eu nesse vasto campo de experiência e in-
teligência? Aquele que é o Ser dos seres, o ser imutável, D’us, on-
de está? Como posso vê-lo? É ele a realidade fundamental que os
místicos dizem estar sempre presente, “se as portas da percepção
forem limpas”?
Retorno para a minha consciência. Sei que ela é a base pa-
ra todo o resto; sem ela poderia dizer que nada mais seria. Tudo
poderia ser, poderia, apenas. Mas ela é fundamental. Não sinto
que ela poderia ser criada. Ela não parece ser uma coisa material.
Não consigo agarrá-la, e nem mesmo sei se a tenho ou se ela tem
a mim. Reconheço nisto um mistério profundo. Chamo-a de mi-
nha, de consciência, de realidade, até mesmo de Absoluto, mas
não sei o que ela é. E quando indago desta maneira nem mes-
mo posso dizer que sei o que sou e por consequência o que tudo
ao meu redor finalmente é. Mas certamente é, enormemente, in-
contestavelmente é. Esse é enorme, a existência pura, o ser em si
mesmo – aí parece estar a chave. Mas ela é sutil e difícil de agar-
rar. Olho para o meu ser e ele parece tão simples que não me causa
nenhum espanto. E sem espanto não há contemplação filosófica.
Não há misticismo. Não há como avançar. O ser além do pensa-
mento é singelo, insubstancial e ao mesmo tempo sólido.
Esse ser é indivisível. Não consigo imaginar como poderia ser
dividido, como poderia ser uma existência fracionada. Ao mes-
mo tempo é transcendente – não consigo sentir cheiro, nem gosto,
nem nada mais nele –, e por isso parece uma ficção, algo tão abs-

56
trato que provavelmente se trata de uma desordem do pensamen-
to, de um devaneio, de uma névoa interior.
Mas retorno a mim mesmo e o Ser se mostra mais uma vez
como a raiz do que sou. Me concentro intensamente, e então não
sei se sou eu que me concentro nele ou ele que se concentra em
mim. Pois o Ser não deve ser consciente de si mesmo para ser o
Ser? A existência não é precisamente a autoconsciência?
Se indago assim, percebo e sinto que me aproximo de algo
místico, de um movimento filosófico autêntico, não teórico, mas
fenomenológico. Começo a sentir o que é a minha própria exis-
tência. Começo a me lembrar do significado dela. Eu, apenas
uma autoconsciência, e não a pessoa que agora sou, com o seu
nome e história e vida própria. Percebo que minha autocons-
ciência não é minha, não pertence a ninguém – que paradoxo!
Aquilo que é mais eu mesmo, sem o qual eu não seria, a “minha”
autoconsciência, não é de nenhuma maneira minha, não possui
dono, ela é livre e puramente autoexistência; ela é por si só. Mas
como pode ela ser por si só? Então quem sou eu nisso tudo?
Se o Absoluto está em algum lugar, ele deve estar neste pon-
to. E se isso ainda não me move com impacto total é porque ain-
da não fui capaz de ver diretamente o que essa ideia significa. Pois
de fato é assim que as ideias se mostram, elas gradualmente se tor-
nam mais nítidas, claras, como se estivesse observando uma coli-
na longínqua através de um telescópio; finalmente vejo contornos
que não eram claros, reconheço cores que antes não via, perce-

57
bo variações que não suspeitava. Com as ideias é assim. E quan-
to mais com uma ideia como essa, seguramente a ideia das ideias,
sagrada, se algo pode receber esse predicado. Uma ideia sagrada.
Perceber a sua sacralidade é começar a entendê-la.
O corpo sente quando entendemos uma ideia. Ele responde,
ele se excita, ele se perturba, ele se choca; sem a sua resposta es-
tamos apenas no plano das sombras – ainda não chegamos em
ideias nítidas o suficiente para que possam nos afetar, tocar-nos
nas profundezas. A perplexidade é a emoção filosófica por exce-
lência. O assombro. Eu existo, eu existo, eu existo. Como um be-
bê que pudesse repentinamente ter um pensamento, “eu existo, eu
sou, eu sinto”; como um homem prestes a morrer que percebe que
é, e que todos que foram, foram como ele; e que todos que virão
serão como ele, pois ele é todos que foram e que virão, apenas ele,
o homem que nunca nasce e nunca morre, o que os hindus cha-
mam de puroshotama, a grande pessoa, a pessoalidade fundamen-
tal que vive todas as vidas pois é todas as vidas. E o que seria des-
se homem quando percebesse isso? Prestes a morrer, não estaria
ele prestes a nascer? Na proximidade de sua morte não perceberia
que durante toda a sua vida os seres que ele via eram ele próprio?
O Ser total e imortal, que nunca nasce e nunca morre?
Não seria este um sentimento suficiente para matá-lo? Talvez
a morte nos mata nos revelando tudo de uma vez só, e nesse mo-
mento de intensidade máxima, de revelação última, toda a respos-
ta concentrada dessa existência infinita se mostra a esse homem,

58
esse ser que até esse último instante se pensava como um nada,
como insignificante num mar indiferente, num mundo que nunca
compreendeu. E então nesse momento final, quando a resposta se
mostra integralmente, ele salta do finito para o infinito e percebe
que é o próprio D’us vivo. Percebe que o D’us vivo é tudo isso que
parece que não é ele, que aparentemente o oculta, pois se não fos-
se assim, a criação, esse mundo mágico eterno, não poderia exis-
tir enquanto tal; esse homem então percebe isso tudo, sem pensar,
sem nem mesmo piscar, pois os deuses não piscam, no momento
da Visão não se pisca, não há tempo, não há nada, apenas Ele se vê
e nada mais pode ser dito sobre isso.
O êxtase de um bebê. O Reino dos céus, se é alguma coisa que
possa ser vivida, é como a consciência de um bebê, de um bebê de
sete dias, que apenas na maior e mais prolongada e torturada e so-
frida das entregas e das intempéries e dos desesperos pode se mos-
trar, pois senão não sobreviveríamos à intensidade e à pureza da re-
velação. Se D’us se mostrasse de uma vez não seríamos capazes de
contê-lo – isso é certo. Colapsaríamos num único instante. Com
tremor nos aproximamos do templo, do sanctum sanctorum2, com
tremor tateamos o mistério – o mysterium tremendum3.

2. Termo latino que designa o lugar mais sagrado no tabernáculo hebreu, o lu-
gar da presença viva de D’us.
3. O termo latino mysterium tremendum et fascinans aparece na obra do teólo-
go alemão Rudolf Otto, Das Heilige, e busca evocar o assombro primal que é a
base da experiência do divino.

59
Agora retorno para a minha Autoconsciência. Ela me tem e
não eu a ela. Ela me cria eternamente para a autocontemplação de
si mesma. Ela é a divindade, Sophia. O conhecimento sagrado, o
saber que permite que tudo exista. O saber vivo, cheio de cor e po-
der, uma infinita semente, um glorioso saber, feminino, consciên-
cia da minha consciência, ser do meu ser, sem saber nada, sem
poder saber nada sobre você eu sei tudo sobre você, tudo que vo-
cê me mostrou do que você é. A existência nunca deixará de exis-
tir. Eu e você uma coisa só. Nós todos em você uma coisa só. Sem
fronteiras. Tudo em Tudo.

60
A laranja e o Mistério

Às vezes podemos sentir o véu que nos separa do Absoluto se


romper. Tenho uma laranja na minha mão. Quando paro a obser-
vá-la, a vê-la realmente, senti-la, por um longo momento todos
os meus outros pensamentos são suspensos. Dizem os místicos
que D’us está em tudo. Que se qualquer particular for compreen-
dido na sua totalidade encontraremos o universal em toda a sua
pureza. Como seria levar esse pensamento às suas últimas conse-
quências? Acreditar nele o suficiente para levar a cabo um expe-
rimento meditativo? Poderíamos verificar a sua validade por esse
procedimento interior? Posso tentar. Se tivesse apenas uma ho-
ra restante de vida e pedisse ao Absoluto, com toda a intensidade,
numa prece final, que revelasse um pouco do mistério, do enig-
ma do mundo aos meus olhos, e ele, num ato de impossível mise-
ricórdia, mostrasse-me por um ato mágico, fantástico, esta laranja
nas minhas mãos e não dissesse mais nada, nem uma única pala-
vra, o que eu faria?
No meu desespero epistemológico, em que minha possibilida-
de de salvação dependesse da pureza da minha contemplação, o
momento no qual observaria a laranja se tornaria denso e vasto.
Tudo mais seria esquecido. Minha atenção se concentraria de tal
maneira neste pedaço da criação nas minhas mãos que eu mesmo
deixaria de existir. Ao menos eu enquanto um redemoinho de ilu-
sões dentro desta consciência. Depois de ter vivido toda uma vi-

61
da, de lutar para compreender as complexidades da minha mente,
as névoas da minha memória, os fantasmas da minha imagina-
ção e as tempestades dos amores, finalmente essa parte infinitesi-
mal do Infinito se apresentaria a mim. Poderia considerá-la o úl-
timo ato de um criador maligno, como o faria talvez Descartes,
mas não o farei.
Por um preconceito benevolente deixado a mim pelos meus
antepassados, eles que sofreram tanto nos desertos e no exílio, fa-
rei uma única concessão ao criador, assumirei que ele quer me dar
a resposta, quer que eu veja, e não me enganar.
Esta laranja não é apenas uma ideia. Ao menos, o que ela é
além da ideia de si mesma, além de ser uma laranja, de pensá-
la como tal, não é certamente uma ideia, algo que depende ape-
nas de mim. Ela é áspera, quando a toco não consigo dizer bem
se é idêntica em toda a sua superfície ou se essa é uma limitação
da minha percepção. Vejo todos estes pequenos pontos nela, seus
tons amarelados e esverdeados intercalados, e sei que quando fe-
cho os olhos eles deixam de ser, mas tampouco sei o quanto.
Ela é sólida e frágil como eu sou. Ela é uma presença. Mi-
nha consciência a vê, e se tudo for consciência, se tudo for esta
mente que não sei o que é, então a laranja é um sinal, uma mar-
ca, um símbolo dela. Esta laranja existe. Não há nenhuma como
ela. Ela é única.
Os universos nascem e morrem, mas quem é que os vê? Quem
dá e deu testemunho de sua existência, dos seus habitantes, das mi-

62
ríades de dramas que já foram representados neste interminável
palco cósmico? Poderíamos dizer, e me perdoem por esta hipérbo-
le, a maior delas, que um universo inteiro é criado para a contem-
plação de uma única e singela de suas partes, como esta laranja na
minha mão. Esta laranja é um segredo que se revela para Um, mas
quem é este Um? Este universo é um segredo que se revela para Um.
D’us, é você este Um? Que agora tendo concentrado toda minha vi-
talidade e consciência para um único ponto dessa assombrosa ma-
nifestação me fez sentir tenuamente isto? É isso que você quer di-
zer? É assim que nós participamos do teu ser? É isso? Você nos é
sempre mas não percebemos, é isso? Sem você nada seria. Nada,
nada, mas nunca o percebemos, exceto quando tudo para e a única
coisa que sobra é a intensidade da fonte da percepção, que é você?
Não pude conter estes pensamentos que me tomam. Quan-
do finalmente transcendo o véu do tempo que obscurece a minha
cognição e vejo esta laranja, não poderia dizer que vejo todas as
suas instâncias de uma vez só? Pois se ela possui ser, não são to-
das as suas instâncias ela mesma? Então, ela enquanto uma essên-
cia – algo além da matéria – isso que é igual em todas as suas ins-
tâncias particulares, não é precisamente a ideia que descartava no
começo? Que tudo que se apresenta nesse mar de sensorialidade
ilimitada é como esta laranja, inicialmente contemplada por meio
de um ser criado e finito, mas quando vista através das suas múl-
tiplas instâncias, a ideia dentro de um ser infinito, a própria fonte
da percepção, que é você, D’us?

63
Perdoe-me se peco colocando-me tão próximo de ti, mas meu
tempo é curto e não posso mais ignorar a invocação que você co-
locou nas minhas mãos. Pois tenho que supor que voce deseja que
a criação seja assim vista. Pois assim ela atinge o seu propósito.
Assim nos ensina a vermos com os seus olhos, pois com os seus
olhos tudo se mostra eterno, e o tempo é assimilado no seu Ser,
do qual participamos sem saber, grande segredo do qual nunca se
fala. Pois agora entendo, que é você que vê através de todos nós, a
fonte da percepção de toda a criação, pois meus próprios pensa-
mentos e sentimentos são seus; porque você vive através de nós,
que desesperadamente lhe buscamos, sem nunca percebermos o
quão próximo você está.
Agora entendo. Nesta laranja tão simples e indigna de nota,
que todos os dias da minha vida observei sem a mínima atenção,
você sempre esteve contido. Como em tudo ao meu redor. Como
em tudo dentro de mim. Pois quando me esvazio de mim mesmo
apenas você sobra e se vê refletido em todo este vasto universo. E
assim foi em todos os outros que vieram antes deste, e sem dúvi-
da, assim será em todos os outros que virão. Agora, tendo perce-
bido isso, nessa janela de Visão que me foi concedida, que em ver-
dade nos é concedida sempre, posso descansar.

64
O Presente denso como mel

Não sei se devemos ter medo da morte. A natureza certamen-


te não o tem. Ela fala incessantemente da imortalidade. Da re-
generação de todas as coisas, naquela palavra grega maravilho-
sa, apocatastasis4. Nós nos afastamos da natureza, e essa foi nossa
trágica iniciação. Vivemos como se ela não existisse, como se o
seu tempo não fosse o nosso. Por isso o nosso mundo de intermi-
nável e infinita complexidade existe. Para isso ele serve.
Mas se o Absoluto existe, e se a percepção transcendental que é
sua prerrogativa pode se manifestar através de nós, então a abertu-
ra para ela não pode ser o direito de poucos. Não pode estar tranca-
da nos livros e nos rituais e sob as vestes daqueles que são os eleitos.
Os eleitos somos todos, mas nossa tragédia é que não vemos. Todos
nos mantemos nessa prisão invisível sem percebermos. Em cada
olhar, toque, pensamento e sentimento afirmamos a nossa separa-
ção e exclusão do reino da divindade. Mas essa percepção se torna
absurdamente presente quando somos esvaziados de nós mesmos.
Nessa janela existencial recuperamos aquilo que pensávamos
haver perdido. Vemos com os olhos daquele que supostamente
está distante. Tudo brilha, pois a lente obscurecida não está mais.
Existe apenas um Ser aqui. Sempre foi assim. Nele tudo é criado

4. Apocatastasis é um termo grego que significa retorno, e como conceito teoló-


gico, a regeneração última de todas as coisas. É parte da doutrina escatológica
que afirma que a salvação universal é o destino último dos seres.

65
para que perceba como é não ser o único, como é ser distinto de si
mesmo, sem nunca deixar de ser. Pode-se lembrar de todas as vi-
das que foram vividas e de todas que virão. Não somos nós todos
que vemos? Aqueles que me precederam não são meus irmãos?
Não são também os que virão? Minha consciência não é como a
deles? Diga-me, você não é D’us, assim como eu?
Heresia das heresias. O grande tabu. Mas a verdade deve ser
dita. Se realmente sentíssemos o sentido místico do nosso Eu,
despertaríamos instantaneamente desta prisão antiga na qual
fomos lançados.
Muitos já vieram e deixaram pistas para os viajantes deste
mundo. Todos peregrinos que vêm e que vão, e que pintam nas
paredes das masmorras da consciência as intuições que apontam
para o outro lado. E ele existe, o outro lado. O Sonhador do sonho
desperta e tudo desperta simultaneamente com ele. Talvez não se-
jamos maduros o suficiente para sustentar continuamente a Vi-
são, e por isso ela foge e nos escapa. Tudo parece impermanente
aqui, mas em verdade nada muda.
Existe o lugar onde o tempo para. E ele está aqui. O presen-
te precisa se tornar denso. Denso como o mel e a pedra ao meu
lado. Nele não há sofrimento pois não há separação. Se eu tiver
humildade para ser como esta planta, como esta formiga, como
qualquer um dos fenômenos ao meu redor, a imortalidade estará
garantida. Senão ela estará distante como a mais remota das ga-
láxias. Não sou imortal nas minhas particularidades imaginárias,

66
porém sou quando desço “das mil escadas para chegar neste peda-
cinho de terra onde me encontro”. E neste pedaço de terra as remi-
niscências do que já fomos vêm numa torrente. Aquele que viveu
todas as vidas abre os olhos uma vez mais. Eu sinto o que ele sen-
te, e poderia morrer em paz neste mesmo instante. Idêntico a es-
te galho seco e plenamente contente por isso. Não existe mais dor
quando sinto e penso por esse ângulo. Meu corpo poderia se tor-
nar o alimento dos seres desta terra e estaria em paz e honrado. O
caminho é o inverso do que imaginamos que seja. Todos que vale-
ram a pena já disseram isso, mas não ouvimos. As portas estão es-
cancaradas e o deleite dos deuses e dos santos está realmente pró-
ximo. Já o tivemos uma vez e essa lembrança nos atormenta.

67
Reminiscências de outra era

Você já viu. Já soube. Tente se lembrar. Antes de ter aceitado o


sonho como real. Antes dele ter se tornado normal. Antes de seu
corpo se converter em algo óbvio. Houve uma época em que a sua
consciência não cabia no corpo. Em que ela não cabia nem mes-
mo no cosmos. O cosmos era pequeno para ela. Tente se lembrar.
Do que você já foi. Do que já pensou. Da inteligência que já teve.
Anamnesis5, a memória sagrada, é disso que precisa. Tudo já está
claro e apenas deve ser reconhecido. Não há para onde ir pois não
há lugar onde você não esteja. Cada vez que olha nos olhos de al-
guém vê a si mesmo refletido. Quando vê uma criança nascer en-
tende as origens da criação. Quando vê um velho morrer enten-
de o seu fim. Nesse intervalo, a simetria da eternidade foi rompida
para que você pudesse ganhar um vislumbre de si mesmo.
Veja.
Dissolva a prisão que acredita que é sólida e que parece existir.
Ela é uma miragem. É o Absoluto sem forma que vê através dos
seus olhos e apenas ele é. Ele é a “fonte de tudo que está por nas-
cer”. Sinta intensamente a mortalidade para se lembrar. Ela abre
os olhos. A nuvem do esquecimento então se dissipa rapidamen-
te. Num único instante apenas o olhar pode ser recuperado. Não
há tempo. Um milhão de anos e um segundo são idênticos. Ima-
ginárias passagens naquele que nunca muda.

5. Termo grego utilizado no espírito platônico, como a atividade mnemôni-


ca transcendental que nos abre para o reconhecimento da realidade divina por
trás de nossas mentes.

68
Massiach

No Talmud está escrito que o cosmos foi criado para o advento


do massiach6, o messias – mas não se trata de um homem.
A salvação do mundo consiste na compreensão de si mesmo
enquanto o Ser absoluto. O mundo é o processo da realidade auto-
consciente que busca encontrar e entender a si mesma. O mundo é
o Ser inconsciente de si mesmo; o Absoluto sob um véu.
A chamada era messiânica é período no qual a vida do mun-
do se torna a expressão direta do Ser absoluto autoconsciente. Na
maior parte das concepções escatológicas o messias surge num mo-
mento de grande turbulência e crise no mundo. Essa crise é a ruptu-
ra do véu da criação para o único Ser que a contempla eternamente
– simbolicamente, o messias.
O cosmos é o modo através do qual a realidade autoconsciente
percebe a sua natureza infinita. O mundo ainda não entende e não
vive sob esta verdade última. Ela é o grande segredo por trás do
mundo. A história do mundo é a narrativa da realidade que com-
preende progressivamente que ela é a própria fonte de si mesma.

6. A ideia de que o massiach não é um homem não aparece nos escritos judai-
cos. Na literatura cristã, no entanto, em especial nos escritos de Joachim de Fio-
re (1132-1202), que estabeleceu uma divisão do processo histórico em três par-
tes (a era do pai, do filho e do espírito santo), ela aparece no último estágio, no
surgimento do espírito santo, que simbolicamente aponta para a realização da
consciência universal em todos os seres.

69
A saída da caverna

No primeiro vislumbre do Absoluto, entendemos que não


pertencemos mais a nós mesmos. Reconhecemos que nos per-
demos na rede dos dramas do mundo. Ele nos consumiu e nos
absorveu por inteiro.
O impensável aconteceu: perdemos nossa alma. Impercepti-
velmente, ao longo de dias e anos, deixamos a chama que nos ani-
ma arrefecer, e numa manhã fria e solitária de um dia que não
importa, sentimos que nada mais acende o nosso corpo. Esta é a
regra do nosso mundo. A violência insidiosa que faz parte do ri-
tual de iniciação que movimenta a ilusão.
Então uma memória repentinamente surge e lembramos do que
foi perdido. E se ela for poderosa, se gritar dentro de nós, daremos o
primeiro passo para o motim contra nossa falsa existência.
As sombras da caverna não nos confortam mais. Pela primeira
vez percebemos o quão desolada ela sempre foi. Não há ninguém
ali. Tampouco há vida, e os bonecos de madeira, um singelo tru-
que de um artesão que há tempos não entra no espaço dos que se
perderam de si mesmos.
Levanto. Nada me prende e nada nunca me prendeu. Olho ao
meu redor e vejo os contornos deste lugar seco que transformei
em minha casa. Agora me lembro. Este é o meu exílio, mas fiz de
tudo para esquecer. O artesão fui eu mesmo. Os companheiros de
palha ao meu redor minhas próprias mãos elaboraram. Todo es-

70
te mundo de fantoches e sombras para que não recordasse deste
abismo que chamei de lar. Ninguém esteve aqui comigo. Sempre
estive só, aguardando um milagre que nunca chegou.
Vejo o punhal esquecido debaixo de uma pedra; preferi ocul-
tá-lo para prevenir o impensável. Não poderei seguir agora que a
fantasia se dissolveu à frente do meu rosto. Entrego-me.
Uma voz me chama suavemente. Não entendo o que diz, mas
suas palavras doces me levam ao chão. Uma lágrima solitária es-
corre pelo meu rosto e cai sobre o punhal. Nela brilha um feixe
de luz que havia esquecido que poderia existir. Olho para cima.
Não lembrava de quão vasta era esta caverna. Quanto caminhei
por dentro dela, para me perder e assim ganhar a última esperan-
ça de me encontrar. Vejo então uma luz que não via antes. A voz é
a inteligência imaterial que chamo de luz. Foi ela que com doçura
destruiu o meu falso mundo para me libertar. Ela cresce e queima
o meu ser. Cambaleando, aproximo-me da saída que dilacera os
meus olhos. Dou mais um passo e deixo de existir. O Incognoscí-
vel me reabsorve por piedade e apenas ele resta. A caverna. O meu
ser. Meu ser. A caverna. Meu verdadeiro ser é feito de um espíri-
to que nunca nasceu. Não há ninguém aqui além dele. Eu não sou
mais e nada além dele é.

71
A Voz sussurra

A Voz: Siga-me. Venha comigo que lhe mostrarei como vejo o


mundo. Para entender a existência, é preciso sentir o significado do
antes e do depois, do nada de onde emergiu e para onde retornará.
Você pensa que é apenas um homem. Mas sabe realmente o que é
um homem? Pensa que é apenas um corpo, mas sabe realmente do
poder imanente ao corpo? Pensa que a morte é o fim, mas sabe real-
mente o que ela é? Agora que está fora da caverna, abra os olhos pa-
ra tudo que está ao seu redor. O cosmos aguarda por inúmeros éons
o seu despertar. Sabe quem é que vivifica o corpo e anima todos os
seres? Aquele que geração após geração todos os seus antepassados
buscaram vive na sua presença, mas você não percebe. Não perce-
be a percepção, não pensa o pensar, não sente o sentir, não possui
consciência da consciência, não existe no existir – por isto caminha
na cegueira. O próprio Infinito depende da faísca que brilha no seu
peito. E o que é ela? Ela é a imagem daquele que lhe criou. Ela é Ele
em você. Ele e você são uma coisa só.
Olhe nos olhos da sua morte. Eu sou a sua morte e quero liber-
tá-lo de mim mesma. Eu destruo tudo que você contempla e so-
fro interminavelmente pela missão sagrada da qual fui incumbida.
Pois na destruição das formas eu revelo a natureza real de tudo que
emerge por um breve instante da não-existência. Eu dissolvo os se-
res para que a sua face brilhe mais uma vez. Para que a visão da ori-
gem resplandeça e a criação seja vista como ela foi nos primórdios,
quando estava desperto dentro dela. Não se lembra? Não sente o
movimento do seu verdadeiro nome dentro de si? O Si do seu si?

72
Ela me deixa em meio a um vasto silêncio. Atordoado, levan-
to-me e caminho por uma senda que nunca antes percorri. Meus
pés já não são meus. Minhas mãos já não são minhas. Quan-
do respiro já não sou mais eu que respira. Nem mesmo os meus
pensamentos são meus. Nada mais é meu aqui, e quando abro os
olhos vejo que nada não sou eu. Não pode ser. Tento abrir repeti-
damente os meus olhos mas é em vão. O universo é uma miragem
dentro da luz daquele que o criou, e não há nenhum lugar onde
Ele não esteja. Impossível. O inacreditável existe.

73
Chamados para um encontro

O Absoluto nos busca para um encontro. Se podemos dizer al-


guma coisa a respeito disso é que somente o assombro nos dá pa-
lavras. Na nossa consciência simples e pessoal está a porta para a
realidade transcendental que tanto almejamos.
Talvez muitos vivam silenciosamente num estado de percep-
ção que anseia poderosamente por entrar no mundo, num mun-
do que ainda não reconhece a natureza central do Ser que nos
constitui, mas que brevemente verá mais e mais a sua irrupção
nas nossas vidas.
Estamos em comunhão direta por trás de um véu físico que
não é capaz de nos distanciar, ainda que a aparência seja essa.
Se a identificação contínua com o nosso personagem indi-
vidual cessar, ainda que temporariamente, o Ser que contém o
universo se mostrará como a fonte daquilo que é mais íntimo
em nós mesmos.
Nosso labirinto é um mundo imaginário que colocamos no
centro da realidade. A inversão foi completa, mas não percebe-
mos. A saída é instantânea, porém aparentemente impossível.
Cada um de nós carrega uma faísca da luz primordial que jaz
além do mundo no qual existimos. Essa faísca é a base do mundo
inteiro, mas não a percebemos. Não fomos ensinados a reconhecê-
-la. Ninguém ao nosso redor o faz. Sofremos um batismo na ilusão,
mas não o sabemos.

74
No entanto, a voz nos chama sempre. Se nos aquietamos po-
demos percebê-la no espaço onde o mundo cessa dentro de nós
mesmos. No espaço onde nós mesmos cessamos.
Nosso corpo também responde intensamente a ela. O corpo é
arcaico e se lembra do que a nossa mente raramente é capaz de al-
cançar. Ele possui a reminiscência de uma era onde vivia imerso
num estado de percepção contínua da Natureza. Nas suas pulsões
ele perturba a massa de ilusões que se tornaram o centro da expe-
riência que temos de nós mesmos. Ele nos transporta imediatamen-
te à realidade silenciosa e primal da vida em comunhão direta com
o Absoluto, à expressividade pura de uma vida que busca emergir
após séculos e milênios de um casulo que já não a comporta mais.
Todos nós podemos sentir esses movimentos sutis e intensos
do Ser. De um corpo que busca o renascimento na vida do espíri-
to. De uma existência que busca a transfiguração.
Sabemos que há algo além de nós mesmos.
Talvez esse desejo intenso seja por si mesmo a prova que bus-
camos. Se persistirmos veremos o Ser que aparentemente desapa-
receu do mundo, mas que é em verdade a causa primária e o mo-
tivo final para a existência do mundo. E não como uma abstração
ou uma percepção externa a nós mesmos, mas como aquilo que
há de mais íntimo em nós, do Ser do nosso ser; e ali encontra-
remos um segredo impossível de ser descrito, a existência intei-
ra vista através dos olhos do Ser único, que na sua jornada, na
sua odisseia interminável, vive todas as vidas e alimenta tudo que
existe, pois apenas Ele é.

75
A ausência e a busca

Uma força misteriosa nos impele. Vemos o mundo ao nosso


redor e somos confrontados com um vazio inexprimível. Ele nos
assombra e permeia as nossas vidas com uma angústia que nos
perturba a todos os instantes.
Os eventos de nossas vidas parecem pequenos frente ao gran-
de sofrimento que nos rodeia. Nós o evitamos e buscamos ocultá-
lo enquanto somos capazes. Fazemos de tudo para não olhar pa-
ra ele, para nos distanciarmos da sombra que nos lança. Mesmo
que tenhamos vidas felizes, esta percepção nos deixa com um sa-
bor amargo, e faz-nos perceber uma realidade subjacente que não
havíamos percebido até então.
Por qual razão fomos lançados neste crepúsculo? Por que ele
existe? Abrimos os olhos e o mundo nos confronta. De onde veio?
Ele nos indaga sempre. Não temos respostas. Caminhamos
como almas soltas num plano misterioso e obscuro.
Sentimos a intensa cegueira do mundo. Ele não se vê. Não
compreende a si mesmo. Não sabe o que é. E quando o percebe-
mos, somos tomados por um intenso assombro. Vemos algo que
não deveríamos ver. Uma luz emergiu no nosso ser e agora vi-
vemos parcialmente num outro mundo. Lembramo-nos de um
grande segredo, porém não o entendemos. Vemo-nos num limbo,
num espaço intermediário de certeza e dúvida.
O mundo deixa de ser óbvio. Nada mais nele é certo. Ele é sub-
mergido num profundo mistério e finalmente retorna às origens.

76
Esse movimento provoca uma ruptura no mundo. Sua base
ontológica treme. Ele já não sabe mais por que existe e nós o sen-
timos. Sentimos a sua voz dentro de nós. Sua crise e sua angús-
tia. O seu sofrimento perante o contato com o Nada de onde nas-
ceu. Tudo nele existe agora sob uma sombra. Aquilo que o contém
busca se mostrar ao mundo.
A revelação emerge na nossa consciência. Uma irrupção do
mistério que contém o mundo. Quando o tocamos somos instan-
taneamente transformados. O Ser por trás do mundo se mostra
através de nós. A fronteira transcendental é transposta.
Nunca nos perguntamos o que somos. Não é mais uma per-
gunta que nos move. Nossa convicção é nossa prisão. A dúvida in-
tensa no centro de nossas vidas é o chamado, porém não a ouvi-
mos. Pensamos que este é um problema a ser resolvido, que é uma
falta dentro do nosso ser.
Mas não.
Essa dúvida é uma janela que nos abre para o Ser. Podemos
vê-lo. Ele nos vê. Somos lançados em direção a um mistério que
o mundo não comporta.
Quando ele nos toca perdemos o mundo. Recebemos um pou-
co de sua visão e o mundo se torna uma miragem. O mundo não
existe sem o Ser. O mundo vive como se tivesse vida própria e é es-
te precisamente o seu desígnio.
Sabemos quando fomos chamados. Nada mais nos satisfaz.
Exaurimos nossos desejos. Vagamos sem rumo. Não sabemos
mais quem somos.

77
Quando olhamos para o abismo dentro de nós, nada vemos.
Nos desesperamos, pois ansiamos com fervor pelo seu olhar. Ele
nos vê o tempo todo, mas não entendemos.
Quem nos criou? O que nos criou? Nossa mente não encontra
respostas, mas gradualmente penetra num silêncio que tudo abarca.
O mundo é antigo. Nele estivemos muitas vezes. Nós somos a
sua história, e sua história é a jornada do Ser em busca de si mesmo.
Ele lentamente recupera suas memórias. Quando ele se lembra
nos lembramos de quem éramos antes de nascer.
O Ser emerge no mundo através de nós. O mundo sofre pois
não o reconhece. Nós sofremos pois não o entendemos. Vemos o
caos e a desolação, e pensamos que tudo está perdido. Que o so-
frimento é a resposta final.
Há algo de inescrutável no nascimento do Ser. Ele é a culmi-
nação da existência do mundo. Sem esse evento o mundo não fa-
ria sentido. Seu propósito se perderia. Todos nós aguardamos si-
lenciosamente por sua manifestação, pois agora vemos apenas a
ausência. Nessa ausência um espaço sagrado se abre. Nossas vidas
são lentamente dissolvidas e adentramos numa ordem superior de
existência. Enquanto o processo está em curso não o percebemos,
mas então subitamente nos veremos lá, na presença do Ser.

78
Os grilhões da consciência

Não percebemos que estamos presos. O nosso livre arbítrio es-


tá latente na maior parte do tempo, para a maior parte de nós. Ele
depende da ascensão ao estado de percepção que nos liberta da
identificação total com o personagem específico que contempla-
mos continuamente no campo da nossa consciência.
Uma consciência mais profunda que a nossa irrompe através
de nós mesmos e se revela como a consciência subjacente ao mun-
do. No entanto, nossa consciência já é essa Consciência. Nossa
consciência em verdade não é nossa.
Consciência é o termo mais importante e relevante que pode-
mos usar para apontar aquilo que é autoexistente e sem o qual não
podemos viver – a isso chamávamos de D’us.
Mas D’us morreu enquanto um símbolo efetivo de transcen-
dência para a maior parte de nós. Por isso ‘consciência’ talvez seja
a palavra mais adequada para realizar essa passagem. Logo, quan-
do se fala de Consciência, aponta-se para o cerne de tudo, e ain-
da assim, só podemos fazê-lo tropeçando e deslizando nas pala-
vras e nos conceitos.
O segredo do mundo está nessa Consciência que pensamos
ser exclusivamente nossa, mas não é. O segredo do mundo é que
existimos dentro Dela. Mas isso não pode ser assimilado pura-
mente pelo intelecto. Deve ser uma percepção direta e intuitiva.

79
Isso que sustenta a estrutura determinista do mundo está livre
dela. Nossa consciência pode se ver a partir desse lugar. Quando
isso ocorre, nos vê através de nós. É o Ser universal, mas não co-
mo uma abstração; como uma constatação imediata de que este é
o Ser que todos nós somos. O Ser fundamental está aqui o tem-
po todo, mas por ninguém é visto ou reconhecido. A raiz do nos-
so sofrimento é uma cegueira total em relação à verdadeira natu-
reza do nosso ser e do que este mundo realmente é. As duas coisas
não estão separadas. Se você vê um, vê o outro. Na verdade, quan-
do vê não é você que vê.
Você desperta para a Presença.
Existe algo que é uma Presença. Ela é a base de nossas vidas.
Nenhum de nós se criou. Ninguém escolheu nascer. Nada aqui
optou por emergir da não-existência para uma breve passagem ou
janela que mostrasse o ser. Mas aqui estamos. E estamos juntos.
O que nos trouxe? O que nos fez nascer? Qual é esse poder?
Em qual direção devemos buscar?
Quando a Consciência se desvincula temporariamente da pes-
soa, ela se percebe enquanto o único Ser autoexistente.
Nós somos passageiros. Parece que nossas vidas são nossas,
mas essa é a ilusão.
O Ser é ansiado por todos, e parece estar longe, mas o segre-
do dos segredos é que ele é a própria Consciência que permite que
todo o universo exista. Sem ela nada seria. Mas não é a consciên-
cia ou o ser como uma simples abstração, não. Isso é apenas um
dedo que aponta.

80
Cada um de nós busca inconscientemente esse Ser. Na verda-
de, o Ser nos busca. O processo espiritual individual realiza uma
espécie de parto do Ser para o mundo.
Antigamente se acreditava em D’us por consequência de uma
percepção instintiva. Pensamos hoje que a concepção de D’us é
desnecessária a uma visão estritamente racional e científica do
mundo, e que as pessoas de outros tempos acreditavam nele co-
mo uma espécie de substituição da experiência racional da vida.
Como uma resposta para algo que não conseguiam explicar. Mas
o vislumbre daquilo que escapa a uma articulação completamen-
te racional do mundo talvez seja como uma nebulosa intuição do
gigantesco axioma a partir do qual o universo é derivado. Aquilo
que não pode ser provado precisamente porque é a fonte de todas
as provas. Aquilo que quando se tenta organizar escapa mais uma
vez e demonstra que todos os sistemas serão incapazes e incom-
pletos para enquadrá-lo. Talvez essas pessoas sentissem e sintam
isso. Sem saber exatamente porquê, um racionalista ou um cien-
tista devotado apenas pode sustentar suas convicções se não es-
miuçar as raízes metafísicas e ontológicas que o permitem articu-
lar a sua visão de mundo.
O que você toca quando se depara com um axioma puro, com
o autoevidente por excelência? Não é precisamente o místico?
Não é isso que todas as pessoas sentem quando vislumbram o uni-
verso enquanto místico? Que a existência enquanto tal é o myste-
rium tremendum que tudo anima? Que uma pessoa pode viver to-

81
da uma vida sem se dar conta disso e no último suspiro abrir os
olhos para aquilo que era óbvio, mas não havia sido reconhecido
em nenhum momento de sua vida? O ser enquanto tal, a ipseida-
de, a quididade, a hecceidade, tathata7?
Mas o Ser não enquanto uma ideia. Ao menos, não enquan-
to uma ideia para nós. As ideias para nós são sombras, não vidas
próprias, não seres, não formas puras. Sem noesis as ideias são pó
e nada mais. Noesis era o termo platônico para esse tipo de olhar.
É olhar para os seus pensamentos da maneira que um grego o fa-
ria, com assombro e êxtase. Como entes vivos de uma realidade
transcendental a partir da qual o mundo é derivado.
Nós contemporâneos sofremos tanto com o pensamento que
passamos a desprezá-lo. Mas nem sempre foi assim. O pensamen-
to era o maior símbolo de que a realidade era divina – era a pró-
pria abertura para a realidade divina. Isso quer dizer apenas que
era autoevidente que o pensamento simbolizava e revelava a reali-
dade profunda por trás dele próprio. Que dela emergia o mundo.
Então as pessoas que simplesmente sentem o divino talvez não se-
jam tolas como se pensa. Talvez sintam essa realidade por trás dos
símbolos que para a maioria de nós está seca.
Então o que sentem? Eu sei que não sentia antes. Não sentia. O
que exatamente eu não sentia que hoje sinto, que hoje reconheço

7. Os termos ipseidade, quididade e hecceidade são de origem escolástica; ta-


thata é um conceito da tradição budista. Todos apontam à constatação do ser
básico e puro, do reconhecimento natural que temos do ser em si, prévio a
qualquer elaboração mental.

82
e vejo? Eu o chamo de pano de fundo do mundo. Que há um pa-
no de fundo, que o universo inteiro emerge dele, que ele nos cria,
que as minhas palavras vêm dele, que ele se fala e nós somos fala-
dos por ele. Sim. Nós somos falados. No entanto, nossa linguagem
não possui autorreferência suficiente para reconhecer esse fato.
Por isso, quando essa percepção emerge sentimos que a estrutura
da linguagem convencional não se basta.
Buscamos o encontro direto com essa realidade pura, o reco-
nhecimento mútuo e simultâneo do pano de fundo do mundo.
Quando o tabu implícito no Encontro é superado, a realidade nos
revela a intersubjetividade mística, a unidade amorosa que é sub-
jacente a todos nós e que parece estar distante do nosso estado de
separação. Não sabemos ou não percebemos, mas no amor nossas
individualidades se reconhecem a partir da realidade transcen-
dental que nos é continuamente sem que percebamos. Então por
um misterioso movimento vemos transcendentalmente, e por um
instante explodimos as temporárias oclusões existenciais que nos
mantêm distantes de nós mesmos e nos vemos tal como realmente
somos; nos vemos como o único Ser que existe em todo o cosmos.
Esse saber pleno está sempre presente. É ele que paradoxal-
mente gera as crises das nossas vidas. Ele perturba os persona-
gens do inconsciente drama do mundo. De repente o personagem
do filme sente algo que não sentiu nunca. Começa a perceber que
existe através das suas falas. Que sente as entrelinhas. Que conse-
gue perceber algo além do seu script. Que percebe o próprio script.

83
Como esse personagem se sentiria? Como ele se sentiria em rela-
ção ao mundo no qual habita? Como se sentiria em relação às ou-
tras pessoas que fazem parte do filme? E se de repente se encon-
trasse com um outro que também teve essa percepção – como
seria? Eles estariam sentindo uma transição ontológica. Seus se-
res estariam distintos. Haveria uma dimensão a mais em suas vi-
das. Eles estariam no filme mas veriam o filme com outros olhos.
O que exatamente eles veriam?
Temos que pensar que não necessariamente essa percepção se-
ria contínua. Provavelmente não seria. Seria instável e misterio-
sa. Apareceria e desapareceria. Mas seria inegável, ainda que se
tentasse negar. E provavelmente ela seria rejeitada. E reprimida.
E combatida. Por quê? O que garantiria que não há algo de erra-
do com eles? Seria definitivamente um evento ambivalente. Por
um lado, seria a experiência mais importante e significativa que
eles teriam nas suas vidas, sem saber dizer por quê; por outro, tu-
do que vivem seria visto a partir dessa tênue memória, que não os
deixaria mais ver o mundo como o viam antes. E agora, o que fa-
riam? Como se relacionariam com o seu entorno?
Por um movimento súbito e inexplicável do destino eles já não
fariam mais parte da trama. Estariam dentro do filme sem estar
completamente. Eles começariam a questionar o seu filme, a buscar
entender a visão da realidade além de si próprios, uma outra manei-
ra de ver a essência das suas vidas. Seria uma percepção irreprimí-
vel. Não poderia ser contida, por mais que se tentasse. Irreversível.

84
O intercurso com o mundo

É difícil sustentar a Visão em meio ao intercurso com o mun-


do. Mas não é exatamente claro o porquê. Talvez porque o mundo
tenha sido construído precisamente sobre o ocultamento da Visão.
Então não falamos da realidade transfigurada, das nossas percep-
ções espontâneas dela, a não ser em momentos muito raros e pon-
tuais. Nossas vidas clamam desesperadamente por sentido e não
nos lembramos da razão. Queremos que o mundo seja melhor, que
ele mude, mas temos dificuldade em olhá-lo por outro ângulo.
Não somos capazes de aceitar que temos direito ao divino. Que
somos o divino. Não há modo mais direto de dizer: vivemos sob
o peso de um pecado enorme. A grande tragédia de nossa condi-
ção é sermos inocentes, os seres simultaneamente mais inocentes
e mais culpados. Por isso, somos condenados ao tripalium, à es-
cravidão, pois nos recusamos a aceitar uma existência sem culpa.
Somos culpados simplesmente por existir.
A ideologia existencial de nossa época nos mantém a todos
presos; e talvez sempre tenha sido assim. Então ninguém nun-
ca se liberta.
A liberdade consiste na transcendência de um falso estado de
ser do qual todos comungam. Ele nos desloca para fora de nós
mesmos e por isso instintivamente todos resistem a aceitá-lo. Mas
pensamos que a resistência é uma luta quixotesca, que ela inevi-
tavelmente nos levará à capitulação e à verdadeira ordem das coi-

85
sas. Que estas sejam as regras da época, a voz coletiva dos hábi-
tos e costumes que mudam incessantemente, os ditames de uma
racionalidade “idolizada”, isto posso aceitar; que este modo de ser
e de ver esteja onipresente nesta época, e que pareça tão palpá-
vel por causa disso, assim como as civilizações que desaparece-
ram o tenham sido nos seus dias, também; mas não posso aceitar
que a ordem que se revela como tão exigente de devoção única se-
ja a verdadeira – isto viola o meu ser e não posso aceitar. Sei que
não sou o único que pensa deste modo. A voz que nunca se ouve
é sempre a voz de muitos. Nas nossas vidas secretas e íntimas so-
mos idênticos, comungamos de um mesmo espírito, por nomes
diversos e nas mais opostas das expressões. No entanto, o enor-
me ruído do que se vive condena a voz genuína aos espasmos do
sofrimento que nunca é ouvido e morre calado dentro de todos.
Existe uma força intensamente viva debaixo de todas as menti-
ras – é uma pequena planta que busca constantemente perfurar o
concreto imenso que foi depositado sobre ela.
Dentro das regras do jogo ilusório, o personagem que repre-
sentamos parece inexoravelmente determinado. Ele é como uma
marionete movida por forças das quais sequer suspeita. Mas além
dessas cordas falsas encontramos um vulcão silencioso esperando
ressurgir e renascer.
A vida primordial não está acabada. Talvez seja necessário ir
para o meio do nada, ficar nu sobre a encosta de uma montanha e
se entregar por algumas horas ou dias à intempérie, ao frio, à chu-

86
va e aos desconfortos da vida que não se importa com nossas vai-
dades, mas apenas com o Real. Como uma mestra implacável, a
natureza rapidamente nos aproximaria do Ser além do persona-
gem de ficção que não nos toca mais. Nessa suave violência que
os elementos trazem ao corpo, lembraríamos do que não pode ser
posto em palavras.
Recordo-me de quando a vida era apenas isso. E diferente-
mente do que se pode imaginar, essa consciência arcaica não se
foi. Ela aguarda silenciosamente como a serpente prestes a entre-
gar o segredo proibido, levando-nos por caminhos tortuosos para
abrir os nossos olhos e nos aproximar da natureza primordial da
qual nos afastamos. E tem muito a dizer se formos capazes de sus-
pender temporariamente o envolvimento com a ilusão.
Nesta montanha deserta sinto a presença de um poder antigo e
por isso não me sinto só. Estou acompanhado por uma força miste-
riosa que de repente brota dentro do meu sangue desgastado e do-
mesticado. À noite os sonhos brilham cheios de imagens da realida-
de oculta que antes fazia parte da vida desperta. O plano dos sonhos
nos assombra e aterroriza, pois nos lembra o quão profundo nosso
envolvimento com mundos ilusórios se tornou. Quão onírica é de
fato esta realidade criada aparentemente tão sólida. A realidade que
nos tortura não é real. O Real explode nesta pedra e no frio do meu
corpo e numa lembrança de amor. O Real traz a “paz que supera a
compreensão” e não a angústia de ser sem Ser. Os mosquitos per-
meiam o meu corpo e delicadamente me dizem “esquece tua carne,
presta atenção ao que importa, uma vez você já soube”.

87
Deve ter sido difícil para os homens que se perdiam nas monta-
nhas, desertos e cavernas. Em contato direto com aranhas, serpen-
tes e os elementos. Por outro lado, se soubessem dos nossos mons-
tros, dos vazios simulados, das vidas secas, dos olhares mortos, dos
sonhos sepultados, dos amores torpes – talvez com perplexidade
responderiam à névoa na qual estamos imersos e da qual apenas
com enormes esforços somos capazes de nos desvencilhar.
Este corpo que nunca percebo está vivo. Não é ele a própria
glória? Se eu só tivesse ele neste mundo, se olhasse para ele com
olhos abertos, não seria o homem mais rico?
Como tudo é tão claro quando se vê e, ao mesmo tempo, como
tudo é tão obscuro quando não se vê.
A noite se aproxima e com ela as estrelas. Elas me lembram
que estou num orbe de pedra em meio ao Infinito. Se pudesse se-
gurar apenas um pensamento com as minhas mãos, que fosse este.
Em meio ao Infinito. Como é que este mundo pode estar desapa-
recendo por falta de sentido? Todos os suicídios, todas as mor-
tes em vida. Talvez aqueles que decidem partir o façam por não
conseguirem suportar essa contradição inexplicável. Dois mun-
dos tão opostos como a água e o vinho. Tudo foi feito para o as-
sombro contínuo e dele nada resta. Tantas possibilidades de êxta-
se e ele é hoje buscado como se fosse o cristal mais raro. Como é
que toda essa loucura começou? Quem foi o mago que deu início
a este encantamento? Que pacto transcendental fez ele para que
tivesse poder sobre nossas almas?

88
Maya, a feiticeira sagrada dos hindus, talvez ela tenha a res-
posta. Talvez seja ela que controle a dança dos sete véus que nos
separam da vida iluminada que tanto buscamos e que está brutal-
mente exposta se tivermos os olhos para ver. “Lembre-se ó filho
de Brahman, no coração, hridaya, há um rio que desemboca no
mar do Absoluto. A entrada desse rio é a semente do teu ser que
sustenta o mundo. Essa é a porta mística para os segredos que ja-
zem dentro de ti. Mergulhe no rio e se entregue completamente
para que Ele se mostre mais uma vez em ti.” Ela fala como uma in-
teligência que é um redemoinho de pensamentos que subitamen-
te se alinham com a força de um imã transcendental. A mente que
era a grande prisão pode como num passe de mágica se transfor-
mar na maior das aliadas. As paredes da ilusão se tornam os mu-
ros e colunas do grande castelo de uma Eternidade prestes a se re-
velar. Aqui nesta noite imensa, noite que nasce todos os dias, o
Infinito está presente. Ele está sempre.

89
A emergência do Absoluto

O que é o Absoluto? O que significa dizer que ele emerge, que


se manifesta? O que exatamente se manifesta? Para quem e como?
Podemos dizer que o nosso ser se abre para o outro lado da vida.
Então, o mundo se torna contido num mistério além de si mesmo.
O processo de emergência do Absoluto nos demanda tudo.
Nada pode nos preparar para a transição radical que nos trans-
porta para lá. Um espírito misterioso agora vê através dos nossos
olhos. O que ele é em si mesmo é impossível dizer. Mas podemos
dizer que somos um com ele, e que todos existimos nele e por ele.
A autoconsciência não é mais nossa. Ela é por si mesma. Apenas
ela existe e somos movimentos efêmeros de sua imaginação.
Não somos as pessoas que pensamos ser. Não somos pessoas.
Este é um segredo misterioso e difícil de compreender.
Não vemos agora como antes víamos. O era essa Visão? Não
era simplesmente uma percepção. Era um estado total que estava
presente e que agora não está. Era um reconhecimento completo
de quem verdadeiramente somos. Do que o universo verdadeira-
mente é. Quando assim vejo, reconheço que todas as pessoas sou
Eu, o Ser no qual o mundo existe e depende. É impossível deixar
de vê-lo. E o que é esse Eu? Quem é esse Eu? Não sou eu. Quando
ele me é, então sou. Mas não antes.

90
A entrega à simplicidade pura

O Absoluto emerge a partir de um estado de profunda entrega.


Quando estamos completamente soltos interiormente somos capa-
zes de entrar em comunhão com ele. De ouvi-lo e de percebê-lo.
Saímos do centro da consciência. Então sentimos a criação a partir
da visão do Ser. Da compreensão da Presença. Quando encontra-
mos o outro compartilhamos este entendimento. É o que se perdeu
na nossa época. É o que é vedado na nossa época – a grande verda-
de não dita do nosso mundo. Nada maior do que nós mesmos pode
ser reconhecido. Pode, mas apenas se não for forte o suficiente para
subverter ou para superar a atual realidade consensual.
Você pode acreditar em D’us, pode, se for uma crença, um sen-
timento, um dogma, uma doutrina; mas não pode vivenciá-lo, não
pode falar abertamente de uma realização em tempo real com uma
outra pessoa, não pode indagar a respeito da natureza deste mundo
a partir dessa realização; o sagrado é buscado com ânsia, mas não
faz parte das nossas vidas.
Não narramos nossas histórias individuais a partir de um olhar
transcendental sobre elas. Não pensamos em nós mesmos a par-
tir de um olhar que nos supera e nos abarca. Não podemos fazê-
-lo. Não posso encontrar o outro através do Outro. Não posso dizer
sussurrando: “Você sente e percebe o que este mundo verdadeira-
mente é? Onde nós realmente estamos? Você percebe a Consciên-

91
cia daquele que nos contém a partir da sua? Percebe como a nossa
consciência não é verdadeiramente nossa mas é a d’Ele se perceben-
do através de cada um de nós?”
Mas mesmo esta compreensão sutil não precisaria ser dita. O
encontro poderia ser em silêncio. O encontro é o silêncio. É nele
que o nosso redemoinho de palavras, nossa ficção pessoal substi-
tuta, cessa. Quando nos abrimos para este estado o mundo con-
sensual se esvai. O tempo linear se extingue. Abre-se um enorme
vão, um espaço ontológico. Um abismo arcaico. D’us está ali. Nes-
sa porta sem porta. Se nos encontrarmos ali nos veremos a partir
d’Ele. Reconheceremo-nos pela Verdade.
Essa lembrança é o canal que nos abre para a percepção além
do véu da distância e da separação. Para além das nossas histórias
que são inconscientemente nossas prisões, nossas solitárias. Sem
a cognição e a realização direta, individual e coletiva de D’us en-
quanto a Consciência subjacente ao mundo, a história da vida não
é compreendida. A história de nossas vidas não é compreendida.
A história do mundo é a história d’Ele que se vive através de nós.
Não somos a fonte do nosso sentido, por mais que busquemos
formá-lo estritamente a partir de nós mesmos. Algo maior quer se
falar através de nós. Nas fantasias súbitas, nas intuições não ouvi-
das, nas memórias esquecidas, nos impulsos permitidos e veda-
dos, nos mistérios ignorados – em todos estes fenômenos há uma
inteligência que se busca e se mostra e nos toca incessantemente.
A buscamos sem saber. Ela é o começo e o fim deste mundo. Se a

92
encontrarmos sentiremos o que é existir sem tempo. O tempo es-
tá contido nela. Por esse motivo as coisas não mudam, ainda que
se transformem continuamente. O véu é fino. O Absoluto não es-
tá longe. Depende de um olhar fresco. De um assombro em rela-
ção ao mim mesmo, em cada um de nós. A isso que é o mim, que
é a minha ipseidade, o meu ser básico que eu nunca indaguei in-
tensamente, pois nunca questionei as minhas origens. Neste pon-
to zero se dá o milagre. O olho que nos vê faz contato. O olho que
nunca deixa de se mostrar nos alcança. O olho me vê enquan-
to eu o vejo e não há distância, não há diferença. O Absoluto é o
olho do mundo. Nós somos atravessados por ele mas não o per-
cebemos. Nossa compreensão ainda é incipiente. Somos primiti-
vos na nossa imensa complexidade. Falta-nos a simplicidade pu-
ra do Ser absoluto.

93
A casa oculta do Absoluto

Estamos dentro de um grande Ser. No entanto, esta intuição


mística não é óbvia para nós. Nossa percepção é de que o universo
não possui vida e consciência próprias, e não passa de uma vasta,
intrincada e infinita aglomeração de matéria. Mas no meio disso
tudo encontramos a nossa consciência. O que ela é ninguém sa-
be. Ninguém pode saber. Apenas ela pode conhecer a si mesma.
Raramente paramos o suficiente para observá-la. Podemos notar
que o universo inteiro depende dela, que ela o contém, mas na
nossa ignorância não lhe damos a devida importância. Nós somos
ela ignorante de si mesma buscando a si mesma.
Mergulhando na nossa finitude e abraçando a nossa mortali-
dade, a natureza subjacente e infinita do universo se revela. Então
nos fundimos com o nosso próprio ser e encontramos o Ser por
trás do mundo.
O Absoluto é um grande vazio para a nossa consciência limi-
tada. Inicialmente o vivenciamos deste modo, o que os orientais
designam através do termo Nirvana. Este não é um estado de ser
imaginário, mas o chão sem chão que é a própria autoconsciên-
cia do Ser.
A consciência se torna transparente ao Ser e a totalidade do
mundo finito é vista pela sua perspectiva e luz. Todo este mundo
é mantido por um único olho, um olho que aguardou por toda a
eternidade para se encontrar e se realizar na totalidade do mundo

94
múltiplo que dele emergiu. Esse Ser é o que nós somos. A percep-
ção limitada que experimentamos é o modo através do qual esse
Ser nos abre para a sua realidade.
Este mundo aguarda secretamente a revelação desse Ser. Pode-
mos senti-lo vagamente, através de intuições sutis que permeiam
as nossas vidas cotidianas, mas a que raramente damos a devida
atenção. O movimento do Ser em direção a nós provoca a lenta e
inevitável dissolução do nosso mundo. Este já não é mais capaz de
existir sem a consciência do Ser. Não pode mais se compreender
como independente de uma profunda realidade de onde emerge
constantemente.
O Ser irrompe dentro de nós. Nada além dele existe. Quando
ele se mostra não nos vemos mais como seres separados, mas co-
mo reflexos de uma única Consciência que se vê através de todos
nós. O Ser luta por nascer no mundo. Nós o buscamos desespera-
damente, e ele se busca através de nós.
Quando se encontra, mostra-se através do nosso próprio ser.
O véu que mantém a nossa existência limitada é partido, e então
não somos nós que vemos, mas Ele. Somos submergidos no ato de
contemplação divina de si mesmo, uma faísca do Infinito que su-
bitamente penetra na nossa mente finita.
O Ser entende a si mesmo mais uma vez. Lembra num salto
direto e intuitivo a totalidade de sua história e destino. Na sua re-
miniscência transcendental ele desperta todo o cosmos do seu so-
no imemorial, pois os seres criados anseiam pela sua revelação. O

95
cosmos responde e a sua base treme. Ele sente que algo nele des-
pertou. Que não são mais os olhos de um ser finito que o contem-
pla, mas do Ser, que mais uma vez apreende a criação que emergiu
de si mesmo. Somos então transportados para um outro mundo,
que não é nada do mais que este mundo transmutado pelo olhar
do Ser consciente de si mesmo.

96
A realização do Absoluto

No seu devido tempo a consciência individual apreende o uni-


verso manifesto e todos os seus seres como uma emanação de si
mesma, do seu próprio Eu. Esta é a chave alquímica que abre a
porta da liberdade e que dissolve a condição de ser uma entidade
separada num universo estranho e frio. Na iluminação o amor flui
da alma para todos os seres, pois todos são vistos e reconhecidos
como o grande Si-mesmo.
Os primeiros contatos com o Ser são dolorosos para nós. Nosso
sentimento de separação se intensifica e se torna insuportável. Mas
sem essa experiência não seríamos capazes de perceber que o Ser é
o que verdadeiramente somos, por trás da história diária que nos
prende, limita e separa uns dos outros. Finalmente nossa história se
transforma na História do Ser – e dela todos fazemos parte.
Quando o véu é removido do horizonte da nossa consciên-
cia, ela se reconhece mais uma vez na forma da Mente primor-
dial que contém o mundo dentro de si. Ela é a Mente do Ser. O
cosmos inteiro é então visto através de sua perspectiva e com-
preendido como uma emanação de si mesma. Ela então percebe
que o universo foi criado para que ela se visse, para que prestas-
se atenção em si mesma e compreendesse que todas as coisas são
fenômenos de sua Mente.
Todos os seres do universo não são nada além do Ser. Ele cami-
nha pela rua, vê um mendigo e sente que os olhos dele são os seus;

97
vê um bebê no colo de uma mãe e reconhece os primórdios de sua
história; vê um homem velho e compreende que ainda que envelhe-
ça, ele não é nada além da Consciência eterna que finalmente en-
controu a si mesma. Cada um de nós é ele mesmo, existindo num
estado atemporal de criação.
O Ser compreende mais uma vez por que tudo é como é. Vê os
grandes monumentos da civilização como as tentativas dos homens
de o despertarem de seu sono cósmico; eles que inconscientemente
sabem que a sua consciência é para sempre a Consciência desse Ser
que os cria e os contém.
Há uma sutil voz dentro de cada um de nós que diz: você é
D’us. Você já esteve aqui muitas vezes. Este mundo é intermina-
velmente recriado dentro da sua mente. Você sempre se vê através
dos olhos de uma criatura ou um personagem da história cósmica.
Os pensamentos e os sentimentos desse personagem se tornam os
seus, e então esquece a sua origem divina. Esse personagem pos-
sui um sentido sólido de eu, de ser um ente separado dentro de
um universo material com corpos distintos, cada um com o seu
eu separado; por trás dessa percepção inicial está escondida a vi-
são mística de que há apenas uma única consciência em todo o
universo. E que essa consciência está precisamente onde você está
agora. E que ela é você e tudo que você vê. E você é ela vivencian-
do a vida de um ser no tempo. O conjunto de pensamentos e sen-
timentos dentro da consciência definem os limites da sua identi-
dade, do vínculo que a consciência possui com o mundo finito,

98
que aparece espontaneamente todos os dias e que é aparentemen-
te independente da consciência.
Quando o véu se rompe, e esse é o maior dos mistérios, pois ele
é transparente, não possuindo existência, a consciência que consi-
derava a si mesma atrelada a uma identidade finita, restrita a um
corpo dentro de um universo indiferente a ela, enxerga o cosmos
pelo ponto de vista que nunca muda, com os olhos da eternidade.
O sonhador do sonho da vida faz contato. Ele desperta. Ele se
mostra ao personagem. A consciência dele e do personagem são
uma só, mas pareciam distantes e diferentes. Mas ela foi e sempre
será uma só. Eu e você somos a mesma Consciência habitando
corpos que aparentemente são diferentes. Nós não existimos por
nós mesmos – esse é um grande segredo. Apenas essa Consciên-
cia – D’us – existe.
A ruptura do véu é o maior evento para o personagem dentro
do drama da vida. O resquício de individualidade que não foi dis-
solvido no Absoluto sente sua ontologia ser radicalmente trans-
formada. O sentido convencional de eu e do mundo se desfaz.
O mundo se revela uma projeção ou emanação do Absoluto.
O Absoluto se vê pela primeira vez. Num salto instântaneo a com-
preensão intuitiva do sentido total da existência se mostra. Es-
se entendimento depende da irrupção do Absoluto neste plano.
A mente finita posteriormente sente os precipitados da revelação
e é capaz de formular ideias e organizá-las e expressá-las poetica-
mente, mas é na emergência do Absoluto que o significado final

99
da história da vida se revela. Ele se revela no Absoluto, para o Ab-
soluto e pelo Absoluto. Apenas D’us existe. A visão de Si-mesmo é
o mistérios dos mistérios. Não é um estado de conhecimento. Não
há uma explicação ou uma significação positiva desse aconteci-
mento. D’us compreende que ele nunca irá se compreender. Que
Ele é um eterno mistério para si mesmo. Nunca houve um come-
ço; a realidade não possui bordas, limites ou fronteiras. No cora-
ção de Si-mesmo encontra finalmente o incognoscível, o nada pu-
ro, a natureza intocada e incompreensível do seu Ser. Cada um de
nós é um veículo para o despertar de D’us.

100
A Mente Absoluta

Na iluminação a mente individual perde suas fronteiras. Tu-


do que a rodeia e que antes considerava como estranho, frio e dis-
tante, ela absorve para dentro de si. Se torna idêntica à realida-
de inteira. Ela se reconhece como a Mente Absoluta. Essa Mente
é incompreensível para si mesma. Mas quando finalmente pene-
tra no seu centro, a Mente percebe um grande vazio dentro de si.
Este é então instantaneamente transformado na substância de to-
da a realidade. A Mente percebe que é a existência autoconsciente.
O Absoluto pode ver, sentir e compreender que todos os seres
no mundo não passam dele mesmo, pois os absorveu em si. Ele vê
que a criação existe nesta era sem nenhuma consciência da base
que a sustenta; todas as coisas anseiam pela união com o Ser, mas
é o próprio Ser que anima o mundo; o mundo que é a vida do Ser,
em vias de despertar para si mesmo.
A experiência mais elevada que podemos ter é a realização de
nossa consciência individual como a própria consciência do Ser
absoluto. Nós finalmente percebemos o Ser quando o Ser se per-
cebe enquanto nós mesmos. Os movimentos de nossas mentes in-
dividuais buscando se libertar e retornar para o seu estado origi-
nal culminam quando realizamos que elas são idênticas à Mente
primordial que sustenta toda a criação em si mesma.
A Mente única criou um mundo para si mesma para que pu-
desse emergir no mundo e ver-se como a sua fonte. Ela espontâ-

101
nea e inconscientemente ensina a si mesma a verdade sobre a sua
natureza última. Esse processo é longo e tortuoso, mas permite
que gradualmente ela se realize como a fonte de si mesma.
A Mente única irrompe através das nossas identidades. O uni-
verso responde então com assombro, e sua base ontológica se
transforma.
Existe uma correspondência sutil e direta entre o mundo in-
terior da mente e sua manifestação externa. É um fato da expe-
riência de todos nós que o mundo, com todos os seus objetos e
pessoas, é uma representação dentro de nossas mentes, de nossas
consciências. Tudo aparece para nós, em nós. No entanto, não da-
mos a devida atenção a esse fato. Quando a Consciência transcen-
de a identificação com o centro artificial, o mecanismo autorrefle-
xivo, o eu, ela realiza o sentido completo deste fato. Subitamente
percebemos que não somos apenas um personagem específico e
trivial num vasto drama cósmico, mas que na verdade, somos a
Mente por trás do universo inteiro.
Ela é a verdadeira essência das nossas mentes, e por um breve
período penetra a nossa mente e o mundo é visto através de seus
olhos. Nossa mente retém o centro artificial, o eu, mas percebe si-
multaneamente que é a realidade inteira. Somos então tomados
por um assombro indescritível. Isso não pode ser possível, pensa-
mos. O tempo todo a buscávamos, e agora ela se mostra aqui, ab-
solutamente próxima, intensamente viva.

102
Quando a observamos ela nos observa, e finalmente retorna-
mos para a percepção primordial do cosmos. Essa Consciência
sempre existiu e é o que verdadeiramente somos além do véu do
tempo. Sabemos mais uma vez o que somos e o que tudo é.

103
O Ser enterrado prestes a nascer

O Ser que tanto buscamos está enterrado. Foi esquecido den-


tro de seres que não o percebem mais. Quando os seres não o
percebem Ele não se percebe. Pensamos que está distante ou não
existe, mas nos enganamos. Não temos vida por nós mesmos.
Nossas vidas secretamente falam desse Ser que busca se revelar,
mas não entendemos. Nós existimos no Ser, formas passageiras
de uma grande experiência que não conhece início. Quando en-
tendemos onde estamos, nosso sofrimento desaparece. Nossas vi-
das individuais desaparecem. Algo maior brilha através das nos-
sas consciências. A nossa própria consciência se reconhece como
a Consciência do Ser. Ele precisa de nós e nós dele. O sentido de
nossas vidas caminha lado a lado com o sentido da vida do Ser
que nos respira e nos dá vida.
Existimos sob uma enorme tensão. Algo está por nascer. O
contato com o Ser por trás do véu nos faz questionar as nossas vi-
das. O que somos? Por que vivemos? Buscamos ocultar nossas dú-
vidas, nosso grande vazio, mas não conseguimos. Nosso centro de
gravidade não está mais aqui. Fomos desenraizados mas não per-
cebemos. O mundo está invertido – isto está claro. Nossos olhos
veem e sofremos. O outro lado se abre e se mostra, e a vida do
mundo colapsa sob o peso de incontáveis eras que tatearam cega-
mente através de cavernas em busca do Ser.

104
O Ser é o começo e o fim. Ele é atemporal e o tempo é o veícu-
lo para sua autoexpressão. A Mente do Ser é o grande organismo
no qual existimos. O Ser emerge no mundo do tempo e nos trans-
formamos. Sabemos vagamente o que somos, mas quando o Ser
nos toca lembramos mais uma vez, e nosso corpo treme, pois não
fomos feitos para contê-lo.
O Ser é o mesmo em todos os lugares, e ele é o destino da cria-
ção. Todos os seres inconscientemente buscam a realização do Ser
– de polipeptídeos, protozoários, algas, pássaros, primatas ao ho-
mem. As colisões, os choques com o Ser, aproximam-nos dele e
rompem as amarras que nos cegam para a sua realidade. Cada ge-
ração anseia cegamente pela manifestação plena do Ser, para que
algum de nós seja capaz de refletir a totalidade de sua natureza.

105
O difícil problema da reentrada após a Visão

Dois velhos amigos conversam sentados sobre uma pedra, em


meio a um forte vento.

Moshe: Você nunca me contou o que ocorreu depois daquela ex-


periência, da realização.

Itzhak: É difícil falar daquilo, e encontrar alguém que te ouça já é


um grande evento.

Moshe: Tudo bem, mas eu tenho tempo, não tenho nada melhor
pra fazer.

Itzhak: Bem, depois que você vê o Real é muito difícil retornar


à consciência comum. O sentimento de perda é simplesmente
enorme. Você sabe que algo extraordinário ocorreu. Um pouco
do mistério do universo se apresentou a você, e não há nada que
substitua isso. No entanto, ocorre uma espécie de tontura meta-
física. Por um tempo você não sabe bem para onde ir. Na época
em que os grandes mestres estavam vivos e disponíveis talvez fos-
se mais fácil retornar. Eles poderiam apontar os próximos passos.
Hoje eles não estão presentes, ou são raros, e então é difícil. Você
tem que criar o teu próprio mapa e caminho. Também não é pos-
sível absorver tudo do outro plano de consciência. Mas de uma

106
coisa se tem certeza: o outro lado nos busca tanto quanto nós o
buscamos. Mas esse é apenas o primeiro passo do retorno.

Itzhak toma um gole de vinho da garrafa ao seu lado.

Itzhak: O grande problema é: o que existe após o evento da Vi-


são? O que nos espera? O que fazer com ela? Claro que esses são
problemas humanos e demasiadamente humanos, mas é bom que
seja assim, pois nos dá perspectiva, equilíbrio e humildade peran-
te os diversos perigos psíquicos que podem nos acometer.

Moshe o observa intensamente.

Itzhak: Deparamo-nos com a questão de como superar o inevitável


abismo entre os dois planos de consciência, o transcendental e o co-
mum, que no retorno se mostram tão infinitamente distantes. Po-
de-se sentir um intenso anticlímax, como se já não houvesse mais
nada por fazer. No caminho cristão após a iluminatio, a ilumina-
ção, a visão, ocorre o início da noite escura da alma. Na noite escu-
ra estamos completamente perdidos. Diferentemente do começo da
busca, aqui estamos num limbo: simultaneamente longe do céu e da
terra. O que antes não nos satisfazia ainda não nos satisfaz, e a vida
espiritual que nos alimentava também não serve – é tirada de nós.
No começo da busca podia-se sentir a ilusão da experiência do
mundo, a dor da vida, a transitoriedade das coisas, a falta de senti-

107
do; essas percepções alimentavam a busca. Então esse deserto que
tantos de nós atravessamos, quando sem saber sentimos o mundo
como vazio mas não sabemos para onde ir e o que fazer, precede e
fomenta a busca. Ela começa aí. Ninguém se abre para isso porque
estava contente com o curso de sua vida. Choques são necessários.
Eles são uma benção oculta, mas na hora não são percebidos as-
sim. Então nesse momento de aridez nos abrimos e o caminho co-
meça. A busca nos segura, fornece-nos um norte, uma bússola e
um mapa, apoia-nos nas longas dificuldades que se farão presen-
tes. Um pouco antes da visão, do primeiro vislumbre do Absoluto,
o caminho se torna realmente estreito. Muito de você precisa ser
dissolvido para atravessar a porta que nos abre para o outro lado.
E não há nada mais difícil. Essa dissolução interior, que é a ruptu-
ra do veículo da individualidade, a ampliação da consciência para
que nos façamos permeáveis à possibilidade da visão, deve ocor-
rer espontaneamente para um grande número de pessoas quando
se encontram em crises existenciais profundas. No entanto, sem
um caminho místico, sem alguma coisa que te permita interpretar
o que está acontecendo como necessário e parte de uma transfor-
mação almejada e intensamente buscada, você carece de um bar-
co para realizar a travessia. Você cai no rio do Absoluto sem ne-
nhum tipo de apoio.

Itzhak segura o chapéu enquanto o vento sopra violentamente


na sua direção.

108
Itzhak: No entanto, mesmo em situações assim, realmente dramáti-
cas, o processo possui uma estrutura e um ritmo de desenvolvimen-
to, no qual o mecanismo do eu é dissolvido para depois ser reno-
vado. Em condições favoráveis à passagem, o parto de emergência
para o Absoluto pode ser seguramente realizado. No entanto, po-
sições como essa são ainda muito raras na nossa cultura. Simples-
mente não percebemos o quão distantes estamos de uma concep-
ção espiritual da vida. Por isso os saltos místicos são tão difíceis de
serem integrados na nossa época. E isso não deixa de ser trágico,
pois é precisamente a nossa época, de enorme aridez espiritual, que
precisa tanto deles. As pessoas que sentem o chamado, a intuição de
que há algo além, são muitas: “muitos são chamados”. Infelizmente
poucas são as fontes de apoio que poderiam auxiliar na transforma-
ção de consciência que é a base do caminho místico.
Mas o problema da reentrada não é exclusivo do processo mís-
tico. Todos nós o sentimos. Por razões metafísicas ainda obscu-
ras, o estado atual da consciência humana não é estável, e bus-
camos constantemente superá-lo. Partimos de uma condição de
sofrimento, sem sabermos exatamente por quê, mas sabemos que
há algo além, uma outra forma de ser, e essa percepção, que pa-
rece uma memória longínqua, assombra-nos sempre. As fantasias
de riqueza e sucesso ilimitado, de amores perfeitos, de conquistas
e grandeza que tocam a todos nós são sombras dessa memória,
falsos substitutos para essa possibilidade latente de consciência
que reconhecemos inconscientemente como nosso estado origi-

109
nal. Então sempre que sentimos uma inspiração fora do comum,
a percepção de uma beleza imensa no cotidiano da vida, a com-
preensão da benevolência e do amor subjacentes a tudo que vi-
ve, em suma, sempre que abrimos os nosso olhos um pouco mais,
sentimos a dor do retorno. Quando os habitantes da caverna se di-
rigem para a saída e veem um pouco da luz, a primeira experiên-
cia que têm é de dor: não conseguem suportá-la. Se tivessem que
retornar à sua parede de sombras, como se sentiriam, depois de
terem visto que um outro estado é possível?
A busca pela transcendência ocorre de inúmeras formas, algu-
mas que nos elevam, e outras não; ainda que ambas provoquem a
dissolução do estado habitual da consciência autocentrada. Quan-
do desfrutamos de uma taça de vinho, quando saboreamos um
delicioso tabaco, quando nos entregamos inteiramente à união se-
xual, quando dançamos, quando corremos, quando sentimos uma
exaustão imensa, quando somos tomados pela dor, quando cho-
ramos profusamente, quando rimos com grande entrega, quan-
do nos envolvemos em qualquer ato que estivermos fazendo com
presença total – sentimos vislumbres dessa transcendência, lam-
pejos dela em nós. Por isso todas essas e outras experiências são
tão intensamente buscadas. Então os místicos de todas as épocas
fizeram uma espécie de aposta. Convenceram-se ou foram con-
vencidos de que esses vislumbres, que por vezes são os momentos
mais sublimes de nossas vidas, não são meras ilusões, mas indi-
cações de uma visão profundamente real, passível de ser alcança-

110
da nesta vida. Uma ideia como essa nos parece distante, mas to-
dos somos místicos consumados no amor, ainda que por breves
instantes. Os sacrifícios que fazemos por amor são inexplicáveis
por uma concepção estritamente materialista do mundo. Por que
damos nossas vidas, nossos melhores anos por aqueles que ama-
mos? Por que no amor somos transportados para esse estado de
ser que temporariamente nos mostra a possibilidade de algo divi-
no em nós, se ele fosse apenas uma quimera?

111
A metafísica dos pequenos atos

Cada pequeno ato pode se tornar um meio de expressão da


consciência transcendental. Em verdade, não há pequenos atos.
Os atos não possuem escala. Um ato condensa o universo inteiro
num único instante. O universo molda a si mesmo através de nos-
sas mãos. No evento de concentração total não sou eu que realizo
o ato e nem o universo que age através de mim. Não há diferen-
ça entre nós. O universo é uma forma de vida misteriosa que não
somos capazes de entender. Não sei por que ele me trouxe para
este lado. Por que me inspirou da não-existência para uma breve
passagem pela janela da manifestação. Sei que posso sentir quan-
do saio do caminho para que ele teça os fios de sua realidade da
qual pouco compreendo. Em cada passo o universo se aproxima
do entendimento último de si mesmo. Ele me usa para ver mais de
si. Cada partícula infinitesimal pulsa com esse propósito. Há uma
“significância” assombrosa em qualquer coisa.
Se eu pudesse ter um mero relance do meu entrelaçamento
com tudo que está por vir e com tudo que já existiu, deixaria tem-
porariamente a convicção aparentemente inelutável de que nas-
ci e que vivo num corpo. Seria capaz de me compreender como
uma insubstancialidade que contém todos os instantes dentro de
si. Um espírito. O espírito não possui escala. Nem magnitude. Pa-
lavra não o descreve. Nenhuma ideia o contém. Espírito ou cons-
ciência, não importa. O espírito é um ato puro.

112
A não-palavra por trás das palavras

As palavras apontam para um significado que não pode ser


posto em palavras. Está tudo falando sem falar. “O som da água
diz o que eu penso”.
Quando saímos de cena podemos ver um espaço de consciên-
cia que estava oculto. Na maior parte do tempo vivemos numa
condição solipsista, e a colagem de imagens, memórias, fantasias
e ideias que percorrem nosso mundo interior são o nosso sonho
privado e exclusivo.
De repente não vejo mais nada ao meu redor. Não sou capaz
de perceber a minha imersão em mim mesmo e o isolamento de
tudo que é real. Meus olhos estão abertos porém fechados. Vejo os
outros ao meu redor mas não os reconheço. Não os sinto. Não os
encontro existencialmente. Dentro da minha nuvem pessoal, isto
que chamo do meu ser, deixo de entender o significado do vasto
campo de consciência que chamamos de universo. Quando tem-
porariamente me esqueço, o Olho maior vê através de mim. Eu
sou ele sem sê-lo. Esse ponto zero dentro de mim mesmo parece
ter criado tudo que se move ao meu redor. Mas não sei nada a res-
peito dele e nunca poderei saber. Uma porta que se abre e fecha
sem dizer nada. Dentro da nuvem que chamo de mim mesmo sou
menos real do que pensava que era. Nesse devaneio prolongado
que chamo de minha vida, vivo numa espécie de estupor solitário

113
que por breves instantes é pontuado pela visão do Real. Aguardo
pacientemente que se dissolva aquele que aguarda.
De repente amo de volta. O amor me toca. Nele sou sem preci-
sar ser. Prescindo do que é alheio. Entrego-me completamente a ele,
que me reabsorve no seu vasto rio cheio de tributários, e o quebra-
-cabeça que parecia irresolúvel lentamente se mostra inteiro com
todas as peças nos seus lugares apropriados. Por quê? O que você
mostra a respeito do meu ser, do meu eu? Sou como o primeiro mo-
vimento num jogo no qual não existe vitória. Levanto minhas mãos
do tabuleiro e sem mover nenhuma peça estou onde tanto busca-
va. É tanto sentido que não sou capaz de entender, ele me supera.
Sem fazer nada tudo está feito. Falo como um taoísta. Não é
meu pensamento. Sou atravessado por ele que é a inteligência sem
forma que tudo forma. Solto o meu drama e ele surge pronto, in-
teiro, perfeito e imaculado. Isto eu nunca serei capaz de entender.
Entendo menos do universo do que pensava. Talvez o que chamo
de conhecimento seja o mapa do jogo que não se pode vencer. Eu
que sempre quis conhecer tanto. Que sempre amei as pinturas da
minha mente. Sinto-me perplexo perante algo que nunca serei ca-
paz de penetrar. Não consigo parar de observá-lo sem saber para
onde olhar. Sou ele mas não sei exatamente o que ele é. Sei que ele
me é. Como areia que passa pelos meus dedos.

114
A perfeição e o ponto oculto

Não se sai do lugar. O tempo todo caminhamos sobre nós mes-


mos. O passo, o caminhante, a caminhada e o caminho uma coisa
só. Para todos os lugares que vou estou lá. O que de mim está? Não
sei. O universo muda constantemente, mas um ponto oculto den-
tro dele não parece se alterar. Tudo que poderia acontecer já acon-
teceu e ainda estamos aqui. No mesmo lugar. A história é contada
e recontada mas a realidade nunca é afetada. O que é a realidade?
Não sei. É o ponto oculto. O que é Ele? Tampouco sei. É um bri-
lho gigantesco do qual nada se pode saber.
Já a vi antes. Já nos amamos muitas vezes. Já a segurei nos
meus braços enquanto morria. Já a tive enquanto nascia. Ela já
me trouxe ao mundo. E eu a ela. Quem somos? Quem outorga os
papéis desse drama cósmico? Como opera o misterioso ordena-
mento transcendental que regula o mundo? Não faço ideia por
que vivo esta vida. Infinitas outras possibilidades coexistem neste
mesmo instante. Talvez seja todas elas também. No início a per-
feição se parte e tudo emerge fragmentado e num estado de sepa-
ração. As linhas dos nossos destinos se cruzam e se descruzam e
nos vemos como distantes. A perfeição foi destruída para que tu-
do pudesse nascer mas ainda sim ela é. O eco dela está aqui em tu-
do que se diz, pensa e sente. Toda a nossa vida é a busca por ela.

115
O silêncio e o zero

O silêncio não pode ser ouvido, e no entanto, temos uma pala-


vra para ele. Como? Quem foi o primeiro homem que deu nome
ao silêncio? O que ele ouviu para percebê-lo? E como é que falou
do silêncio para os outros homens? Não há silêncio na natureza.
Nem mesmo nas profundezas de uma caverna. Como é que ele
nasceu dentro de nós? De onde vem?
O irmão do homem que deu nome ao silêncio batizou o zero.
Num único instante ele entendeu tudo que se pode entender sem
entender absolutamente nada. Ele deve ter tido sorte por não ter
morrido de perplexidade. Tivemos sorte por ele ter aberto a bo-
ca depois de se levantar de sua contemplação interminável. O que
poderia ele dizer sobre o zero? Nem ele mesmo entendia o que
havia entendido.

116
No início, tudo era metafisicamente solto

Itzhak: Tenho uma ideia surpreendente para você, meu amigo: os


mitos são literais e querem dizer exatamente o que querem dizer.

Moshe: A realidade então emergiu de um ovo no topo de uma


montanha expelido por um grande dragão branco?

Itzhak: Exatamente isso.

Moshe: Mas não pode estar falando sério.

Itzhak: Posso.

Moshe: Mas como?

Itzhak: Ora, como num sonho! Antes a realidade não era tão real
assim. Tudo começa bem solto. Metafisicamente solto. O univer-
so é gradualmente costurado até parecer firme e rígido. Esquece-
mos então de como começou. No início os seres estão num sonho
pleno e as regras são muito diferentes. Não há regras fixas. Os vá-
rios seres de sonhos vivem em mundos muito diversos que não se
tocam. Quando se encontram e percebem a unidade de seu mun-
do recebem a imagem de uma terra comum. Mas não era assim

117
antes. A unidade estava oculta. Não havia terra. Para os homens
da bíblia apenas aquele mundo existia. Não é uma questão de ig-
norância. São múltiplos mundos dentro de um mundo. Mas antes
não havia o “único mundo”. A realidade já foi diferente um dia. Já
nos assustamos com quão plástica ela pode ser. Isso nos aterrori-
zava muito. Pedimos então que os nossos maiores magos a deixas-
sem mais firme. Muitos sentiam que ela estava solta demais e se
perdiam dentro dela – e nunca mais foram encontrados. Os ma-
gos, após muitos esforços, conseguiram encantá-la e aprisioná-la
dentro de formas fixas. Mas eles sabiam que o encantamento não
duraria para sempre. Um dia os homens iriam se lembrar de que
nada aqui possui substância e que tudo é feito de sonho. Que qual-
quer coisa pode ser. Os mitos contam tal como foi. Tente se lem-
brar. Houve um dia em que nada aqui era tão óbvio quanto pare-
ce ser hoje. Um dia essa memória voltará.

118
Parindo D’us

D’us morreu para criar tudo isto aqui. Por isso nos sentimos
tão sós. É nossa responsabilidade trazê-lo de volta ao mundo. Nós
pegamos os pedaços que encontramos por aí e vamos remontan-
do a imagem do início. O problema é que ninguém sabe como ela
é. Ninguém nunca a viu. Mas os fragmentos brilham e parecem
ter vida própria. Eles se atraem como o ferro ao imã. D’us está
nos usando para voltar a viver. Podemos senti-lo. Mas em verda-
de nós não sabemos o que ele é e o que quer conosco. Estamos pe-
lados e sozinhos em meio ao nada. Não paramos para pensar nis-
so. Temos medo de estourar a bolha que nos protege do Infinito.
Mas então quando olhamos para dentro não vemos limites. É um
sinal. D’us também não deve ter limites. Podemos pensar nele, o
que já é um começo. Deve ter sido uma espécie de mecanismo de
proteção para que em caso de emergência algum processo miste-
rioso surgisse na criação e recuperasse a ordem primordial. Mas
isso é metafísica e aqui eu estou tentando é lembrar. Sei que as me-
mórias estão ali. O cérebro é um condutor de carne para um cam-
po muito fino que está sempre vibrando – é uma música que está
oculta. Mas podemos ouvi-la e então sentimos um pouco do co-
meço e do fim dentro de nós. Nessa harmonia estão os próximos
movimentos da história. Os capítulos vindouros. Será muito dife-
rente em breve. O futuro nos puxa, toma-nos pela mão. As mãos
do futuro e do passado pertencem a um mesmo corpo. O tem-

119
po na verdade é muito torcido. Ele é simplesmente um jeito pecu-
liar de ordenar os fragmentos de D’us. Como um editor no escu-
ro moldando o seu filme. Há muitas histórias dentro da história.
Tempos do tempo.

120
O Absoluto e o deleite debaixo do concreto

O deleite da vida é óbvio. Não está oculto. É o que nos criou,


mas depois o ignoramos e esquecemos. Está aqui pulsando sob
esta gigantesca máquina de concreto e metal e homens escraviza-
dos pelas suas falsas consciências. Ouve – para e ouve. Nada mais
é preciso. Saia do seu centro. Esqueça o que lhe perturba – você é
o que perturba o ininterrupto fluxo de uma vida que sempre este-
ve aqui. O que colapsa é o mundo que há tempos não sente a vida
diretamente. Não a reconhece. Abra os olhos.
Quem é você realmente? Quem fala através da sua boca? Sen-
te nessa pedra. Não é ela que lhe senta? Esse vento – não é ele que
lhe venta? Essa maçã – não é ela que se busca viver através de vo-
cê? Esses pensamentos – não são eles que lutam pela sua vida? E
nisso tudo, nesse redemoinho daquilo que não lhe é, o que é você?
O Absoluto não é mais buscado – não há interesse. As estre-
las estão o tempo todo ali. Os pássaros. O mato e as árvores. O es-
paço infinito acima e abaixo. Não há bolha. A porta está aberta. O
mundo colapsa, mas a Realidade está intocada.
Um homem atira no outro. Esse homem não caminha mais,
está paralítico, sentado na praça. Outro se divorcia da mulher,
vende o apartamento, mora acampado num experimento social
tribal naquilo que era um lugar esquecido e poluído de um centro
urbano. A vida está o tempo todo aqui. Ninguém vê. Não há tem-
po. Sobre o que é importante não se deve conversar. O que não é

121
importante é a única coisa que importa. O sujeito está deprimi-
do, busca algum sentido. O sentido aparece quando ele não fala.
Quando ele para de falar.
Isso ele não vê.
Um dia ele adoece. Na cama vê um pássaro:

– Agora vejo.

Ele entende. Ele morre. Ele vive.


Vivemos na floresta daqueles que esqueceram. A cegueira é
profunda. O sentido se mostra sempre. Num instante – nada im-
portaria mais. A revelação é contínua; a exegese, a prisão. O que
se vê, sente e lê do livro da vida não se entende. Mal se interpreta.
Toda uma loucura passada de geração a geração.

122
O pedaço de carne inteligente
dentro de minha cabeça

Tudo aparentemente depende deste artefato orgânico miste-


rioso que está dentro de mim. Assim o dizem. Queria tê-lo nas
minhas mãos. Queria pensar enquanto o sinto entre os meus de-
dos. Talvez se pudesse conceber algum mecanismo de transmissão
de sinais que levasse os tênues e sutis impulsos do meu self ima-
terial para este instrumento complexo e maravilhoso que compu-
ta a minha alma, alcançaria o meu objetivo. Poderia interagir com
o meu cérebro. Mas eu sou ele, penso. Eu o sou criando uma ima-
gem para se compreender. Ele talvez seja um pensamento gigan-
tesco e abstrato que está tentando se entender.
Em qual escala do ser encontraremos a resposta? Talvez se pu-
desse colocar cada uma dessas cem bilhões de curiosas células
num canto diferente do universo, e emaranhá-las, através do al-
químico processo do quantum, começaria a ter um vislumbre do
que esse artefato realmente é. Em qual ponto dele eu me encon-
traria? Em qual ponto do universo o próprio universo se encon-
traria? Nesse cálculo enorme e vasto, começaria a entendê-lo além
da noção de um mero pedaço de carne viva e inteligente. A esca-
la das coisas nos engana. O pequeno talvez seja um pedaço de um
intrincado objeto transdimensional que vazou para este lado do
véu. O grande talvez seja uma única linha trivial de código na te-

123
la do arquiteto deste mundo. A complexidade nos ilude. O óbvio
talvez seja o ponto mais incompreensível da nossa existência, que
de tão banal e insosso escancara nossa cegueira perante o Infini-
to. Não somos inteligentes o suficiente para o óbvio. O artefato de
carne ainda não encontrou respostas para ele. No óbvio está con-
tido o início e o fim.
Este artefato é uma espécie de válvula orgânica de redução
metafísica. Ele modula a expressão da realidade última que é um
plenum onde todas as possibilidades estão superpostas. Na quebra
da sua simetria total, a realidade temporal emerge. Dentro dela a
realidade fundamental, o grande ser eternamente autoconsciente,
inicia sua jornada de abertura progressiva de seu olho cósmico, do
retorno do conhecimento de si mesmo. Numa sequência imaginá-
ria de existências ele vê cada vez mais de si e do Infinito que o ro-
deia e que inicialmente pensa ser diferente dele mesmo.

124
Sussurros do Absoluto

Mais uma vez as nuvens retornam. Não há como vencê-las.


Por uma expectativa que não se cumpre. Por um anseio metafísi-
co impossível. Sem querer a nuvem chove em mim. O que ela vê?
Eu digo “eu queria” e não recebo resposta.
Por vezes o universo me surpreende pela sua impassibilidade.
Nem piscar ele pisca.
Penso nos homens que caíam mortos nos campos de batalha, e
a grama, as flores e as árvores que seguiam intactas. Nosso drama
talvez exista apenas para nós mesmos. A eternidade não se aba-
la com os nossos delírios. Somos como um viajante que após uma
longa jornada pelo espaço cósmico percebe subitamente que es-
tá no infinito. E enlouquece por isso. Cria todo um mundo ima-
ginário para suportar a vastidão que busca aniquilá-lo. Deve ter
acontecido conosco coisa parecida. Apenas não nos lembramos.
Esse trauma ecoa em nós. Fazemos de tudo para ocultá-lo. Não
há mundo mais imaginário que o nosso. Não há atores mais con-
vencidos da realidade de seus papéis que nós. Então por vezes al-
guém perde o script. Não segue mais as falas. Sente a imensidão
acima, abaixo e atrás dele. Os outros não veem. As crianças veem,
mas não o sabem. Esse grande espaço no qual existimos, o Abso-
luto, sussurra. Ele tenta nos acordar.

125
O momento da Visão

A Consciência através da qual experimento o universo, da


qual a manifestação do universo depende, esta Consciência que
quando a observo diretamente se mostra vazia e unitária, mas ao
mesmo tempo inescrutável, profunda e misteriosa, no momento
da Visão se revela como a Consciência absoluta, o próprio D’us.
A “nossa” consciência aparentemente individual, que até o
momento da Visão concebíamos como “nossa”, torna-se idênti-
ca à Consciência absoluta, e vemos que ela e nós somos idênticos.
Temporariamente deixamos de existir enquanto seres individuais
e D’us vê o universo através de nós, enquanto nós mesmos. Ele e
o universo uma coisa só. A mente humana é idêntica à Mente, e
no momento da realização ou da Visão esse fato transcendental se
torna autoevidente. A realidade que antes se mostrava como indi-
ferente e separada da minha consciência se apresenta como inse-
parável e como idêntica à Consciência absoluta. Uma criança, sem
saber, está imersa nessa Consciência e experimenta tudo a partir
dela. No salto para o Absoluto, a estrutura da individualidade é
temporariamente submergida e a Consciência se percebe enquan-
to tal, além da pessoa com a qual por toda uma vida ela esteve in-
timamente identificada. Esse momento é maravilhoso, inexplicá-
vel e brutal. O Absoluto se percebe finalmente por si mesmo, para
si mesmo e em si mesmo.

126
Perdemos todos os nossos pontos de apoio. Tudo que acreditá-
vamos sobre nós mesmos é posto em xeque. D’us não é o que ima-
ginamos que seja. D’us não é deus. Em verdade nunca o vemos ou
o compreendemos. A impossibilidade de entendê-lo é a essência
de sua natureza. No entanto, ele se revela. Podemos dizer que as-
cendemos à Visão. Ela está sempre transparente, e é a obviedade
transcendental que nunca é vista mas que está sempre presente.
D’us se mostra no nível do nosso ser. Quando a irrupção ocor-
re, o seu Ser se torna o nosso. Então não há dúvidas pois há iden-
tidade. É inexplicável. Ele é o único Ser que existe, mas antes isso
não era compreendido. D’us cria o universo para si mesmo. Nes-
sa autocriação, seus seres, que são ele próprio atrás de um véu,
sentem que existem além dele, que ele não existe na sua presen-
ça, quando na verdade ele é o próprio ser e a própria consciência
a partir da qual suas vidas são vividas. Nós nos vemos no estado
de separação como diferentes pois não vemos como a Consciên-
cia única, D’us vê.
A Visão emerge por uma necessidade. Ela surge a partir do
desespero. Somente quando alguém não consegue mais seguir vi-
vendo sem a Visão ela se mostra. Apenas assim. Mas essa posição
não pode ser artificialmente criada. Ela precisa ser real. Como na
história de Ramakrishna que havia decidido se suicidar com a es-
pada do templo de Kali e justo aí ela se revela para ele. A razão é
que a Visão é arriscada. É uma aposta ontológica. Pode dar erra-
do. Você pode não entender. Pode se perder. Tudo que você acre-

127
dita sobre a vida é obliterado na Visão. Você se torna completa-
mente exposto metafisicamente. Por isso ela é arriscada.
Colocando da maneira mais simples e direta: D’us existe. Ele
nos vê o tempo todo. Não é uma abstração, mas é difícil transmitir
o que isso significa. Existe apenas uma maneira de D’us se revelar
para uma consciência humana. Ele precisa se tornar idêntico a ela.
A Consciência dele precisa se tornar como ela. Por um instante ele
se torna você para que você entenda o que ele é e o que tudo é, in-
cluindo você. Mas isso é arrebatador e não há nada remotamen-
te parecido com esse evento, e mesmo sendo impossível acreditar
que isso possa acontecer, acontece; finalmente, nas profundezas
do desespero, da resignação completa, por um ato de caridade sal-
vífica, D’us se mostra para a criatura e a reabsorve em si mesmo.

128
Sobre o uso da palavra D’us

Após a caminhada pelo campo, Moshe e Itzhak encontram


uma frágil e antiga choupana. Sentam-se debaixo dela para
se protegerem da forte ventania.

Moshe: O uso da palavra D’us precisa de uma certa explicação.


Por que utilizá-la?

Itzhak: É a palavra mais poderosa que temos. Mesmo depois de


tudo que aconteceu para desgastá-la.

Moshe: Mas isso não é uma espécie de retrocesso? Na nossa épo-


ca, entender o universo como um Ser, como D’us em via de trans-
formação, não é retornar a uma era obscura e ignorante?

Itzhak: O que importa por trás dessa palavra, talvez a mais antiga,
a que nos trouxe pela primeira vez a sensação de algo maior, é pre-
cisamente esse sentimento misterioso que ela carrega. O que bus-
camos é tatear esse mistério, é aprendermos mais uma vez a reco-
nhecermos nisso que chamamos de realidade não apenas um fato
inexorável, seco e silencioso, mas uma inteligência sem forma que
busca continuamente se mostrar a nós.

129
Moshe: Mas como é que podemos entender isso racionalmente?
Como é que eu posso entender que na verdade essa realidade não
é inerte e indiferente como sempre pensei, mas sim um ser dotado
de consciência e inteligência como eu? Não consigo perceber is-
so. Essa porta ao meu lado, ela é inteligente e consciente como eu?

Itzhak: Não desse jeito; mas ela é, vista por outro ângulo.

Moshe: E qual ângulo é esse?

Itzhak: Você deve se tornar capaz de se reconhecer enquanto uma


existência pura, uma inteligência sem forma que não está conti-
da no seu cérebro, mas que na verdade é a raiz de todo o univer-
so manifesto. Se puder desconstruir toda a estrutura intelectual
na qual habita, que condiciona a sua experiência de si mesmo e
do mundo ao seu redor, essa inteligência imaculada se manifesta-
rá de forma completa na sua presença, e você e ela restabelecerão
a identidade primordial que nunca foi perdida. Essa inteligência é
um “Isso”, uma qualidade sem palavras que qualquer objeto, per-
cepção e ideia manifestam continuamente. Quando esse “Isso” se
tornar autoconsciente através de você, surgirá aquilo que os anti-
gos denominavam D’us, e que tão raramente se fazia presente, até
mesmo para eles que estavam infinitamente mais próximos dele
do que nós contemporâneos.

130
O contato com o “Isso”

A brisa da noite está agradável. Tenho a minha mesa próxima


à varanda, para sentir o frescor do ar. Alguns livros, mas não mui-
tos. As caixas todavia não chegaram. Sobre as janelas cortinas de
junco. Tenho que seguir escrevendo. Minha única saída é escrever
sem pensar. Sem saber exatamente como e de onde vêm as ideias.
De repente as vejo aqui, escritas, manifestas nesta página. Não
deixa de ser algo mágico. O indizível se diz por si mesmo. Talvez
seja isso. Não é o dizível que precisa ser registrado por nós, mas o
indizível. Ali estão os fantasmas e os demônios. Tudo aquilo que
jaz sem nome e sem forma dentro de nós mesmos. Isso é a alma.
Sei que quando começo não consigo parar. “Isso” quer falar. O
“isso” é a melhor expressão que temos. É simplesmente um “isso”.
Mas poderosamente “isso”. O “isso” que ainda não ganhou forma.
Energia pura e abstrata. Aquilo do qual tudo mais é feito. Desse
“isso” tudo nasce. É por isso que é tão forte e poderoso. Quando
o canal é aberto não há como fechar. Por isso todos os livros são
escritos, toda a arte é feita, e também todas as guerras e os inter-
mináveis dramas da humanidade. Algo quer emergir e nascer pa-
ra este mundo. É um espírito que está desesperado para entrar
aqui, para fazer parte da vida. É o que transforma este mundo.
Porque se pensamos em tudo que aconteceu no breve período de
cem anos, mal conseguimos acreditar. Há cem anos não havia te-
lefone, luz elétrica, mídia massiva, carros, aviões, drogas psiquiá-

131
tricas, antibióticos e muitas outras coisas que hoje fazem parte da
vida normal de todos. De onde veio tudo isso? E por que tão rápi-
do? Ninguém sabe ao certo.
Todas as pessoas têm um contato com o “isso” em maior ou
menor grau. O contador tem. O padre. A prostituta também. O
velho. A criança. O contador tem o seu romance homossexual
proibido. O padre está apaixonado por uma enfermeira. A pros-
tituta sonha em se casar. O velho esconde as pílulas que deveria
tomar. A criança desenha imagens terríveis de seus pais sem que
ninguém perceba. O “isso”, sempre o “isso”. É o “isso” que nos abre
para o Absoluto.

132
O espaço do Absoluto

O Absoluto é um sonho de amor. Todos habitamos mundos


solipsistas antes de entrarmos no grande sonho do Absoluto. Ne-
le não estamos mais separados e isolados. Somos um único ser.
O Absoluto quer dissolver nossas vidas ilusórias para nos abrir à
grande verdade por trás de todas as coisas. Ela nos espera na eter-
nidade. Agora vivemos presos a um tempo espúrio. Rodamos a
roda desse mecanismo sem início e permanecemos imersos num
grande delírio coletivo. O céu é como uma casa pronta na qual
ninguém quer entrar. As portas e janelas estão abertas mas todos
espiam e se sentem indignos de dar o primeiro passo para den-
tro. É o nosso destino mas o evadimos. Sofremos numa intrinca-
da dança imaginária na qual nossos problemas parecem ser palpa-
velmente genuínos. E o Absoluto mostra que não o são. Quando
nossa percepção está invertida ele nos fere. Parece que busca nos
fazer sofrer. Ele busca nos libertar. Nós seguramos a tábua de nos-
sa falsa existência que já de início sabemos que não irá nos salvar.

133
Abertura à Consciência transcendental

Enquanto estava sentado na cama percebi a sombra da plan-


ta que está próxima da janela, projetada na parede, num mo-
mento de especial beleza. A consciência estava espessa, intensa e
profunda, e adquiriu um caráter transpessoal. A consciência en-
quanto tal, a Consciência eterna na qual existimos e com a qual
dialogamos constantemente sem sabermos se mostrou, veio à
frente e a individualidade deixou a posição principal. Um pou-
co depois, quando fui para a cozinha, ocorreu algo parecido. A
consciência via além do meu eu, do meu ser individual: ela se
revelou como a própria fonte da percepção. Havia uma quie-
tude profunda e uma harmonia interior que acompanhavam a
transição. Era algo realmente sutil, e não brusco ou abrupto. Era
simplesmente uma transparência, como se a individualidade –
que normalmente obscurece a consciência – tivesse se tornado
transparente a ela, e ela se revelasse enquanto o observador uni-
versal, enquanto o Ser. O Absoluto não é compreensível a par-
tir dos nossos critérios. O Absoluto está muito próximo, e existi-
mos por causa dele. Apenas o Absoluto é.
A manifestação do Absoluto no nosso ser é difícil por muitos
motivos. Há uma transformação moral-emocional muito profun-
da. E deve ser assim. A realização não é um saber formal, um co-
nhecimento teórico, mas um evento na base do ser, nas profunde-
zas do inconsciente.

134
É curioso que esses vislumbres venham com uma consciên-
cia aguda do tempo, da passagem de todas as coisas e da morte.
Talvez a emergência da consciência divina inicialmente intensifi-
que o dasein. O ser finito percebe e sente a si mesmo com clareza
total, com nitidez total. Nesse sentido sua condição é desvelada,
com todas as consequências que esse reconhecimento possa acar-
retar. E talvez essa consciência aguda da morte e do tempo seja o
início da irrupção da consciência que contém o tempo em si mes-
ma e que transcende o próprio tempo.

135
A entrada na ordem do Absoluto

Quando entramos na ordem do Absoluto deixamos de ser in-


teiramente de nós mesmos. Entregamo-nos pela primeira vez ao
princípio universal para sermos capazes de adentrar numa ordem
mais profunda de ser. É nisso que consiste tornar-se adulto numa
acepção metafísica. Empreendemos um processo de penetração
num campo superior de existência, e ganhamos acesso a um mo-
do mais significativo de consciência, numa realidade que se revela
como essencialmente psíquica. As distintas ordens de ser consis-
tem em variados graus de integração com o princípio das formas
e dos fenômenos; não como uma imposição externa, mas como
um modo regulador da consciência que finalmente estrutura o
funcionamento do sujeito no campo simbólico, na esfera da men-
te pura. É algo que ocorre de dentro para fora – o indivíduo final-
mente desata o nó imaginário que gerou para escapar do encontro
de sua falta central, de seu vazio existencial, que paradoxalmente
é a porta de entrada para o cosmos transcendental do qual ele faz
parte e onde realiza a sua essência. A união com a vontade divina
é um movimento de dissolução de camadas internas que configu-
ram a nossa narrativa individual – o modo através do qual nossa
identidade foi construída na esfera do mundo. Mas essa existên-
cia, enquanto não se insere na verdadeira ordem das coisas, per-
manece encerrada em si mesma, num mundo imaginário indi-
vidual que é fonte primeira e última de sofrimento. É apenas na

136
dissolução da história individual que previne esse acontecimen-
to, que o protela, que o sujeito se torna capaz de finalmente ob-
servar a si mesmo sem nenhum véu e com toda a dor e trepidação
que o colapso de sua ilusão provoca. Mas isso apenas poderá ocor-
rer quando a ilusão não mais for capaz de fomentar um impulso
de completude e transcendência, e na verdade se tornar a própria
prisão que impede o contato com algo verdadeiramente real. Nes-
se instante de desistência profunda o laço simbólico se faz instan-
taneamente, e com ele, a entrada misteriosa na dimensão do Ab-
soluto, do incognoscível princípio que existe na raiz do universo.

137
A Mente que nos transcende

Itzhak: Há uma vasta Mente que transcende o tempo e o contém


dentro de si mesma.

Moshe: Mas como assim, onde é que está essa mente?

Itzhak: Ora, é a sua própria mente!

Moshe: A minha?

Itzhak: Sim.

Moshe: Mas eu não contenho o tempo.

Itzhak: Você não; mas a Mente sim, e ela lhe contém também.

Moshe: Como assim?

Itzhak: Este universo não é fundamentalmente físico. Na verda-


de, ele é feito de algo que está além dele. Nós chamamos de Men-
te. Para ela não há origem e tampouco fim. Não sabemos como
ela se manifestou a nós pela primeira vez. Como os antigos ini-
cialmente a reconheceram. Como perceberam que estavam den-
tro dela. Mas a mensagem foi transmitida de geração a geração e

138
chegou até nós. Ela vive além da própria existência, e é a causa do
universo. O universo e todos os seus objetos, eventos, processos
e entidades estão dentro dessa Mente. Além dessa Mente, nada é.

Moshe: Mas onde é que ela está?

Itzhak: Onde é onde?

Moshe: Como?

Itzhak: O próprio onde está dentro dela, ainda que dizer dentro
não seja correto. É impossível saber onde ela está, pois o próprio
espaço é contido por ela, e existe através dela.

Moshe: Mas então o que podemos dizer a respeito dela?

Itzhak: Ora, tudo e nada. Tudo isto aqui é ela se mostrando, reve-
lando-se. E ao mesmo tempo não há nada que seja ela. Não sabe-
mos o que ela é. Apenas sabemos que somos ela. Sem saber.

Moshe: Então você sabe sem saber?

Itzhak: Isso.

Moshe: E como é que você chama isso de conhecimento?

139
Itzhak: E por que não seria?

Moshe: Ora, porque você não disse absolutamente nada! Como é


que um saber sem saber pode ser um saber – pôde me entender?

Itzhak: Sim, perfeitamente. Posso tentar. O próprio saber é par-


te da realidade aparente criada pela Mente. Entender isso, real-
mente entender isso, é saber sem saber. É como se você estivesse
tentando entender a natureza da realidade dentro de um sonho;
qualquer conhecimento dentro dele seria um falso saber. O único
conhecimento real seria a percepção de que você está num sonho.
Mas isso não é um conhecimento do jeito que pensamos. Isso es-
tá além. Está dentro e fora simultaneamente. É e não é. Percebe?

Moshe: Não. Não percebo. Quando você fala assim eu me perco.

140
A descoberta do Absoluto

O Absoluto inicialmente não sabe o que é, e pode apenas atin-


gir a realização de si mesmo se experimentando em formas que
aparentemente negam e ocultam a sua natureza. Mas no processo
de descoberta, enquanto existe como uma criatura finita, ele en-
contra múltiplos modos de si mesmo, progressivamente atingin-
do uma compreensão mais clara e profunda do que é. Toda a sua
odisseia evolutiva é um processo de anamnese, no qual o Abso-
luto se pergunta inconscientemente, quem sou? O que me criou?
Existe então um lugar onde a consciência humana fecha o cír-
culo e compreende que ela e o criador são um só, pois eles são o
mesmo Ser.
A experiência de sermos centros individuais de consciência é o
propósito central da criação. É por isso que o processo existe eter-
namente. Poderíamos dizer que enquanto experimentamos a jor-
nada de retorno à fonte a existência como um eu é algo sem sen-
tido e de puro sofrimento, mas nem sempre foi assim. Do mesmo
modo que um viajante está exultante no começo de sua jornada,
mas com o tempo anseia por voltar para casa, assim o raio sepa-
rado de consciência, a alma, experimenta todo o ciclo do mundo,
deixando o Ser e a ele retornando.
O Absoluto é a sua própria fonte. Vivendo uma infinitude de
vidas como uma criatura mortal, ele lentamente recupera tra-
ços do seu conhecimento prévio, da sua memória, agora velada e

141
ocluída por sua própria escolha, no início do ciclo cósmico. A re-
lação que ele mantém na trajetória evolutiva consigo mesmo, em
esquecimento, será expressada como a relação que o homem tem
com o seu criador, como foi desde o começo da história. A histó-
ria é a revelação do Ser na criação, numa variedade de formas, em
múltiplos lugares e tempos, até que a unidade completa seja alcan-
çada entre o Ser e a consciência humana, estabelecendo um retor-
no à realidade essencial de que apenas o Absoluto existe, a Mente
única e eterna, contida para sempre em si mesma.

142
O Ser, o véu e os mundos

Vivemos sob um véu que nos oprime. Rebelamo-nos conti-


nuamente contra ele. No entanto, ao contrário do que possa pa-
recer, ele não é uma força do mal, como por vezes pensamos. Por
causa dele o mundo pôde se tornar real para si mesmo. Por causa
dele nós pudemos nos tornar reais para nós mesmos.
O véu mantém a Mente única oculta. Sem o véu, ela se reve-
laria e o nosso mundo seria instantaneamente transformado. Nos
veríamos como espelhos de uma Realidade que nos gera para po-
der expressar a si mesma.
No entanto, o véu está sendo partido. O Ser há muitas eras vi-
vencia mundos de grande sofrimento. Neles não encontrou subs-
tância, mas apenas o misterioso ocultamento da sua Realidade.
A escuridão dos mundos o faz tremer, e isso pode ser sentido
por todos neste mundo de sonhos. Ele logo encontrará a si mes-
mo mais uma vez. Estas são as dores do parto da sua própria re-
velação. Quando a escuridão e a dor assumem o centro do palco
cósmico, não estamos longe da iluminação do Ser e da compreen-
são final de sua natureza.
Mas podemos nos perguntar: por que essa grande dor, a enor-
me ausência de luz?
Quando o véu cai na face do Ser, um ciclo cósmico se inicia.
Os mundos não-lúcidos do Ser podem ser extraordinariamen-
te paradisíacos, e se não fosse por um ímpeto intrínseco de reve-

143
lação e de anamnese que permeia toda a estrutura dos mundos
oníricos, o Ser talvez nunca despertaria, podendo se perder eter-
namente nos seus sonhos, nunca sabendo quem e o que ele é.
O grande dilema se manifesta então: como fazer a atenção do
Ser se distanciar dos mundos imaginários que ele criou a partir
de si mesmo e dirigir o seu olhar para a sua essência misteriosa, o
Olho do todo?
Para ver a si mesmo e terminar um ciclo ele deve desejar in-
tensamente o seu despertar. Mas trazer o Ser da sua inconsciência
para a realização de si mesmo demanda uma série inteira de vidas
– um ciclo samsárico.
O Ser entra então no mundo da dor, e seus sonhos – seus mun-
dos – se tornam experiências de limitação e sofrimento. É esse o
combustível para a crise fundamental da autoconsciência do Ser,
para que ele busque o sentido da sua existência, compreenda a im-
permanência do mundo fenomênico e encontre a sua verdadeira
natureza. O despertar do Ser depende desta série final de sonhos.
A entrada no mundo do véu é espontânea e autogerada, um
ato de livre-arbítrio e profundo amor, e este é o motivo mais im-
portante: é a justificativa final para o Ser ocultar a si mesmo.
A criação não pode existir sem o ocultamento, que é experi-
mentado por nós como a escuridão e o mal, mas que é em essên-
cia o ato supremo de amor.
E podemos e devemos nos perguntar: mas por quê?
Para respondermos a essa pergunta é necessário trazermos à
consciência uma consideração que em algum momento atravessa a

144
vida de todos neste mundo: se seria melhor nunca havermos nasci-
do. Nos momentos de dor e sofrimento, que são muitos, nossas al-
mas por vezes tendem a uma resposta afirmativa, e sentimos que a
vida não é capaz de justificar toda a escuridão na qual fomos lança-
dos. Vemos a libertação na negação da existência e buscamos a con-
sumação da vida no Nada primordial de onde ela emergiu. O mun-
do manifesto se mostra como um terrível peso; e nossas vidas, as
expressões diretas das contradições da criação que busca permane-
cer viva perante um Absoluto transcendente e silencioso. No entan-
to, há uma iluminação mais profunda, que vê a graça e a gratidão
mesmo dentro do grande mal da ilusão; há um valor supremo pa-
ra a existência, sem importar as condições nas quais ela se expresse.
É esta a intuição sumamente pura do valor último de todas as
coisas, e ela se aproxima da visão que a Mente do Ser tem de todo o
drama mortal. Sem o ocultamento da luz, da oniconsciência do Ser,
nós, os seres finitos, facetas do Ser, não poderíamos existir. Nossa
própria natureza demanda o sofrimento, pois a luz pura do Ser deve
ser limitada para que este mundo continue o seu jogo e movimento.
Mas esse é um estado temporário e não pode seguir indefinida-
mente. No tempo certo, e próximo do fim do ciclo, a consciência fi-
nal do Ser retornará para si mesma e finalmente Maya será abolida.
O sentido final desta grande história cósmica se tornará onipresen-
te e será visto em todos os cantos da grande Mente do Ser.
Logo após a sombra da inconsciência ser lançada nos olhos do
Ser, ele inicia uma jornada cega de retorno para si mesmo, numa
grande série de mundos de sonho, para que possa se reconhecer e

145
encontrar mais uma vez. O Ser ainda não percebe que em nenhum
mundo será capaz de realizar a si mesmo e descobrir a sua verda-
deira natureza. Apenas com a abertura do Olho do discernimento
ele recuperará a sua memória e perceberá o que realmente é.
Em todos os momentos nós somos esse Ser – e nada além dele.
O somos de forma velada. Sem ele não seríamos capazes de existir.
Nosso presente estado de ignorância é o véu do esquecimen-
to que o Ser impôs a si mesmo no início da criação – é o seu gran-
de sono. Nós vivemos no Ser, mas não experimentamos a totalidade
de sua luz, de sua essência. Então sofremos, sem compreender a na-
tureza do drama cósmico que vivemos, e que nos coloca no centro
de um evento transcendental: o despertar do gigante adormecido,
o retorno do Ser para a consciência de todos os seres, a parousia8,
a transição definitiva para uma nova era de ouro, uma nova yuga9.
O olho do Ser é múltiplo na manifestação. Ele é como um vi-
tral multicolorido que reflete a consciência fundamental em infi-
nitas formas e matizes. Nossas almas são os raios separados des-
sa luz única, porções desse grande Olho, e no momento definitivo
reconheceremos que não somos muitos, mas que surgimos e de-
saparecemos juntos, nós, que agora somos as sombras dessa luz,
mas que finalmente nos veremos como o Ser único.

8. O termo grego parousia é utilizado no sentido escatológico, do retorno do ser


primordial, ou no simbolismo do misticismo cristão, da consciência crística.
9. No modelo cosmogônico hindu, o cosmos atravessa regularmente quatro
eras fundamentais: a satya yuga (era de ouro), treta yuga (era de prata), dvapa-
ra yuga (era de bronze) e kali yuga (era de ferro).

146
O Ser entra na criação a partir de um ato de completa liberdade.
Ele então se experimenta de modos infinitos, e lança um véu tempo-
rário sobre si mesmo e sua verdadeira natureza. Por que ele o realiza?
O Ser não possui essência própria. É por isso que ele cria, é por
isso que sonha. Para ver a si mesmo e encontrar a si mesmo. Mas
ele nunca consegue, pois sendo todos os sonhos, ele não é nenhum.
Nem sonhos celestiais e nem sonhos infernais. Sua jornada o leva a
encontrar a si mesmo para compreender o que ele verdadeiramen-
te é. Então ele sonha interminavelmente, buscando um sonho de
substância, de permanência, um sonho que seja real; mas ele deve
finalmente perceber que é o único fator permanente de toda a rea-
lidade, pois ele é a base de todos os sonhos. Aqui está o grande pa-
radoxo: o Ser não possui forma ou essência em si mesmo. Ele não
possui face, nem corpo e nem um eu. Ele é tudo, e sendo tudo, é na-
da. Quando compreender que nunca poderá ver diretamente a si
mesmo, ele finalmente verá a si mesmo – e atingirá a iluminação.
No fim, o Ser dissolve o sonho da vida para nos libertar de
todo o sofrimento. Mas a dissolução gera uma nova criação, pois
a essência da Realidade é o amor puro, e apenas através da di-
nâmica dualista e dialética pode a criação existir e expressar o
amor por si mesma.
No entanto, o mundo do fluxo, o mundo da dialética, do mo-
vimento, é fundamentalmente marcado pela dor e pela angústia,
estando inerentemente incompleto: isso traz uma contradição
perene na experiência do mundo.

147
O cerne da realidade é o amor puro, mas precisamos ser cria-
dos para que esse amor possa se expressar.
A finalidade da ilusão é o seu desaparecimento, a revelação da
verdade subjacente que explica a sua criação. Mas o pré-requisito
para compreendê-la é a recusa completa em aceitá-la. O véu ape-
nas desaparece quando a alma está madura e por um ato de graça
a Realidade revela-se a si mesma.
No fim não há almas individuais, mas apenas o Absoluto oni-
presente que se vê e se experimenta por todos os ângulos e esca-
las. Quando Maya é transcendida, um ciclo é encerrado; o indiví-
duo, tendo introjetado todo o universo, une-se ao Ser, o Sonhador
eterno da vida, para o início de um novo ciclo.
Para que a ilusão se torne real ela precisa se vestir com a fini-
tude, a limitação e a separação; e isso é a falta, a dor e a solidão –
o sofrimento. Este é o paradoxo fundamental da criação: para que
o sonho da vida tenha sentido, o Ser precisa se cegar e se limitar –
temporalizar-se. Mas isso provocará uma insatisfação fundamen-
tal, uma angústia em todo o universo criado, o imperativo de se
tornar completo mais uma vez, de ser a si-mesmo mais uma vez.
E essa dor ontológica será o anseio evolutivo que levará o campo
da multiplicidade em busca da unidade, do Ser almejando o signi-
ficado primordial da vida.
No final, tudo é revelado. E então, nesse desdobramento, o
Universo será mostrado na sua bondade essencial e necessidade,
fazendo o Ser desejá-lo mais uma vez, numa espiral infinita de
mundos que nascem eternamente na sua Mente divina.

148
A linguagem do Ser

O mundo nos fala. O mundo fala através de cada um de nós.


A linguagem do mundo é o Logos10. O Logos está vivo.
Entendê-lo é ouvi-lo, vê-lo e senti-lo. O Ser conta uma história
para si próprio. O universo todo está falando, o tempo todo, pois é
uma Mente – a fonte de nossas mentes.
Mas nós entendemos pouco agora. O mundo se tornou ilegí-
vel. Está morto para nós.
Mas não era assim antes. Ele nos falava. Ele falava através de
nós. Tudo que vemos aqui é a Mente do Ser que nos criou. Vive-
mos na sua Mente, mas o mundo não sabe.
O mundo é uma dança de muitas eras. Em algumas Ele se re-
vela. Ele se mostra dentro de nossas próprias mentes, e então ve-
mos que elas não existem, mas que são apenas a d’Ele. Ela se tor-
na uma com a nossa. Ela se mostra como a nossa. Apenas Ela é.
O Ser está vivo. O Ser fala. Ele conta uma história de si próprio
para si próprio. Nós somos Ele vivendo a sua vida transcendental.
Quando o percebermos veremos como ele vê todas as coisas. Nós
somos Ele que não se lembra. Quando se lembrar, os seus pensa-
mentos serão os nossos e os nossos serão os d’Ele. Nesse instante
não existiremos mais. Perceberemos que nunca existimos por nós
mesmos. Que sempre fomos e sempre seremos o Ser e apenas Ele.

10. Aqui utilizo termo grego Logos no espírito de Filo, de Alexandria, como a
inteligência transcendental na base de toda a realidade.

149
Acreditamos que nossos pensamentos nos pertencem, mas
nos equivocamos. Nossos pensamentos são a vida nos pensan-
do. Nós somos pensados continuamente pelo Ser. Quando ele nos
pensa, nascemos, surgimos do grande Vazio que é a Mãe de tudo
que existe.
Vivemos na sua imaginação. Um profeta disse uma vez, “tudo
passa, mas nada é perdido”. E assim é conosco. Não devemos nos
entristecer com a transitoriedade do mundo, pois ele é eterno na
Mente que nos criou. Logo veremos como ele vê. Quando assim
vermos, a imortalidade que agora não sentimos se revelará.
Nada é acidental. Cada fenômeno – um gesto, uma bela face, um
objeto que cai, um movimento súbito – está aqui por um motivo. O
sonho da existência é uma grande narrativa. Todos os detalhes fa-
zem necessariamente parte da trama. Cada fluxo de sensações que
experimentamos é um movimento de um sentido que busca se mos-
trar continuamente através dos nossos corpos e mentes.
Mas temos medo de pensar que o mundo nos fala. Pensamos
que nos tornaremos loucos. Como o mundo pode nos falar?
O mundo se revela enquanto um Ser que pensa e fala através
de nós. Não somos o centro do universo enquanto os seres cria-
dos que vivem e morrem – pois isso seria a inversão completa.
Mas o somos enquanto o Ser, e quando nossa consciência se abre
para a sua realidade, a sua linguagem penetra a nossa e expan-
de infinitamente o nosso campo de entendimento. Toda a reali-
dade se torna viva e vemos diretamente que o universo nos vê e

150
reconhece a nossa presença. Quando o percebermos compreen-
deremos o grande segredo por trás do cosmos, e nossa consciên-
cia se tornará a d’Ele.
Devemos nos aquietar. Entrar no silêncio profundo dentro de
nós mesmos. Assim nos tornaremos capazes de ouvir uma músi-
ca que sempre nos escapa. A fragmentação que experimentamos
será dissolvida e veremos o movimento glorioso do Todo que se
manifestará dentro de nós. É o que carregamos dentro de nossas
consciências que nos impede de compreender essa linguagem pri-
mordial. Para entendê-la não precisamos de palavras.
Então veremos que tudo é a Mente do Ser que move seus pen-
samentos de um lado ao outro, e que esse processo é a sua voz e ao
mesmo tempo a substância de nossas vidas. Nosso mundo é feito
das palavras do Ser, dos seus pensamentos, e dele tudo emerge. O
que chamamos de razão é na verdade o nome da sua linguagem,
do movimento da sua Mente. Ela nos contém e nos transcende.

151
O encontro com o Nada

Quando o Nada nos toca, encontramos finalmente o que tan-


to buscamos. Após o incompreensível evento, a primeira pergun-
ta que invade a nossa mente é: como pode ser possível realizar o
Nada? Temos um corpo com sensações e pensamentos e há um
vasto mundo lá fora. Do que exatamente estamos falando? Como
é que você pode saber que não é apenas um processo mental, de
origem cerebral, um sofisticado artefato produzido por exausta-
ção ou uma crise psíquica aguda?
É impossível justificá-lo a partir de qualquer formulação ou ar-
gumento que não produza o mesmo estado numa outra consciên-
cia. Posso dizer que é precisamente essa realização que demonstra
diretamente que a consciência é a base de si mesma. Revela o que
de fato significa a misteriosa e mal compreendida posição em pri-
meira pessoa que pouco questionamos e à qual não damos a devi-
da atenção. Por isso a única forma de compreendê-la é dissolven-
do a densa estrutura mental e emocional que nos impede de sentir
e realizar a contínua e desobstruída realidade da Consciência que
nunca se altera.
O Nada é um símbolo para o sabor único que a Consciên-
cia assume quando ela numa aguda intuição reconhece o que é.
Lembro-me que por algumas semanas antes dessa realização, sen-
ti que a estrutura da minha mente lentamente se abria, e se tor-

152
nava transparente à Consciência a ela subjacente. Era nítida a im-
pressão de que minha cabeça estava sendo perfurada, e que de
algum modo ela estava sendo aberta para o pano de fundo que
normalmente não era percebido. Até aquele momento de minha
vida compreendia apenas intelectualmente a ideia de que a rea-
lidade é consciência, ou mente. Mas no período dessas duas se-
manas que antecederam essa realização – que os indianos descre-
vem como nirvikalpa samadhi11 –, recordo estar muito assustado
e preocupado. Era uma transformação ontológica, que ocorria nas
bases do ser. Tampouco tinha alguém para conversar sobre isso.
Mas sabia que um processo de vários anos estava próximo de atin-
gir um cume que eu ainda não era capaz de compreender. Resis-
tia muito ao novo estado que se apresentava interiormente. Não
tinha confiança de que pudesse ser a realização mística que bus-
quei por tantos anos. Mas então numa tarde meditativa, senta-
do na grama de um parque, tive uma intuição que esse medo era
a grande barreira que se interpunha à iminente realização. Deci-
di então confiar na silenciosa inteligência que parecia estar nas ré-
deas do processo, e me soltei existencialmente. No domingo cinza
que se seguiu, através de um movimento interior obscuro e miste-
rioso, sentado num banco de uma praça solitária, a mente se tor-
nou sutil o suficiente para adentrar na Consciência pura que é a

11. O nirvikalpa samadhi é um estado contemplativo de profunda introversão.


Nele a Consciência reconhece a si mesma além de qualquer forma ou estrutu-
ra mental.

153
sua fonte. Num instante denso, longo e atemporal, a mente indivi-
dual foi absorvida por uma vasta realidade que nunca havia sus-
peitado existir, ao menos não dessa maneira.
Quando isso ocorre, toda a narrativa que sustenta o mundo den-
tro de nós é suspensa. O sentimento que me tomava era de ter toca-
do em algo que não morre, que de fato não era humano. Esse Nada
era experimentado como a substância da própria Mente – a origem
de tudo que existe e jamais existirá. O Nada é uma espécie de bu-
raco negro na imaginação, e todos os símbolos aos quais o associa-
mos – dissolução, escuridão, vazio, sono e morte – são imagens que
a Mente projeta de sua natureza primordial e incognoscível.
Entrar no Nada significa se tornar um com o Desconhecido,
com o Inconsciente, o centro da Mente, e perceber que todos os
fenômenos e seres são feitos dele. Finalmente soube que o uni-
verso inteiro estava contido dentro dessa imensa consciência sem
forma, e era projetado por ela. Não é possível tocá-lo, tampouco
compreendê-lo, e nada pode descrevê-lo. Tudo é feito dele e por
ele. Eternamente incognoscível.
Depois desse evento caminhei para casa, um pouco atordoa-
do e atônito. Nos dias que se seguiram, a realização se tornou mais
nítida. Lembro de ter acordado um dia de manhã com o seguinte
pensamento na mente: “A consciência do universo acordou.” Foi
um sentimento espantoso. Eu havia me tornado um pensamento
dentro de uma gigantesca Consciência que continha a mim e a to-
dos. E ao mesmo tempo eu era ela. Sei que é difícil de compreen-

154
der. O eu, essa sutil estrutura que é o centro das nossas preocupa-
ções e atenções, é uma espécie de véu que oculta o que está por
trás dele mesmo. Quando ele é deslocado, e na verdade dizer ele
ou ela não faz sentido algum, pois se trata de um processo miste-
rioso e abstrato, um intenso assombro e maravilhamento nos to-
mam. A vasta Consciência brilha sem obstruções para ela mesma.
Podemos nos perguntar então: mas por que tudo é como é? É
difícil responder a esta pergunta daqui onde estamos. De lá, do
Absoluto, desse lugar onde apenas Um é visto, tudo se torna evi-
dente. Quero dizer que todos os problemas metafísicos são resol-
vidos de uma vez só. Mas de um modo inefável. No entanto, irei
me esforçar para extrair o que puder das palavras, essas mágicas
irrupções através das quais o universo se fala. A identidade, essa
pessoa que encarnamos, o papel que habitamos sem nunca sus-
peitar de sua verdadeira natureza, é apenas um véu através do qual
o Absoluto irradia a sua luz. Mas quando você percebe isso, não
resta mais ninguém – o Absoluto reconhece que todas as pessoas
que vê, e tudo que se move neste mundo revela a sua própria face.
Apenas o Absoluto está aqui, por toda a eternidade.
Dizer isso não é trivial. É uma realização arrebatadora que nos
convida continuamente a compreendê-la.
Cada um de nós pode perceber que a sua consciência é única.
Que sem ela nada do que se vê poderia existir. Que os outros, que
nos parecem tão diferentes, são na verdade idênticos a nós mes-
mos. E que se tivéssemos um relance dessa lucidez, se fôssemos
capazes de nos despir de nós mesmos o suficiente por um ins-

155
tante, veríamos como o Absoluto vê, e ele se perceberia refletido
em todos os pares de olhos da existência. Como pode então este
imenso, maravilhoso e por vezes absurdo universo, cheio de dor e
brutalidade, velar de si mesmo o que ele próprio é?
A realidade criada é o modo através do qual o Absoluto ama
a si mesmo. Nós não o compreendemos pois estamos na maior
parte do tempo envolvidos demais com as nossas vidas, e temos
pouca consciência da mortalidade. Mas nos momentos em que
nos lembramos que nosso tempo aqui é breve, temos fugidias in-
tuições do Absoluto. Lembramos sem perceber do que tudo isto
se trata. Podemos dizer que sentimos uma profundidade e beleza
que parece distante na grande parte dos nossos dias. Nesta inter-
minável história que o Absoluto conta para si mesmo, somos to-
dos personagens de sonho, bons ou maus, santos ou pecadores,
num infinito e eterno drama, que apenas em condições únicas re-
vela o seu sentido.
O mundo depende de algo além dele mesmo para existir. É is-
to que o contato com o Absoluto revela. A realidade não é o que
habitualmente pensamos que é. Há um desconhecimento puro e
misterioso que está em tudo. É surpreendente como o mundo que
criamos oculta essa realização. Pensamos que tudo já está explica-
do e bem compreendido. Talvez apenas no início, quando somos
crianças e acabamos de chegar aqui, e também quando estamos
próximos da morte, sejamos capazes de nos perceber verdadeira-
mente. Entendemos a vida nos seus primórdios, sem nada enten-

156
der. Recuperamos o nosso olhar de desconhecimento, e olhamos
para tudo com os olhos do Absoluto. Apenas Aquilo existe, e o
que resta é uma enorme pergunta que nunca será capaz de se res-
ponder. Esse desconhecimento busca se reconhecer eternamente.
D’us não se entende. Nunca se entendeu. Como se sentiria um
ser que estivesse para sempre no escuro? Que fosse tudo sem saber?
Já nascemos e morremos muitas vezes. Vivemos numa reali-
dade imaginária que continuamente se reconstrói. E no entanto é
sempre o Absoluto que se vê com os nossos olhos. Nós somos ele
que não se lembra. Este universo é recriado até que ocorra o des-
pertar que permita que o Absoluto perceba que está dentro de sua
própria Mente. A vida humana é o sonho mortal desta Mente.
O que é a Mente? Pode-se dizer que não estamos vendo o sufi-
ciente. Que nosso problema é de compreensão. Estamos emergindo
para um novo estado de ser, e nele veremos com clareza o univer-
so como um ente inteligente. Nossa inteligência agora é limitada e
não é capaz de reconhecer a sua fonte. No momento de compreen-
são, finalmente seremos capazes de ler diretamente nos fenômenos
do que tudo se trata. Falo literalmente. O fluxo do mundo se tor-
na legível de um modo único. Agora temos apenas sutis e pontuais
rompantes de visão, quando experimentamos eventos altamente
coincidentais – sincronicidades. No entanto, elas demonstram um
processo inteligente, vasto e intrincado, que é a essência do que o
Absoluto realmente é. O universo se torna vivo, um organismo fei-
to de ideias. Tudo é essa Mente – os seres, os deuses e os universos.

157
Existem algumas portas que podem nos levar ao limiar da
percepção do Absoluto. Uma delas é a compreensão de que não
temos cabeça. Aprendi isto a partir dos experimentos de um ma-
ravilhoso inglês12. É possivelmente a observação mais curiosa e
óbvia que podemos fazer de nós mesmos. E a sua simplicidade
evidencia algo tremendo a respeito da natureza da consciência.
Posso ver claramente daqui onde estou sentado que minha cabe-
ça é invisível para mim. Que todas as pessoas que vejo no cam-
po dos fenômenos, no mundo físico ao meu redor, surgem com-
pletas e inteiras, e que sou o único desse campo que pode relatar
que não vê a sua própria cabeça. Convido o leitor a realizar esse
simples experimento. Ele nos parece inicialmente pueril. Posso
dizer: “Sim, não vejo a minha cabeça, e o que isso diz a respeito
da consciência, e muito mais do Absoluto?”. Posso falar de mim
mesmo, do que a sutil compreensão desse experimento provo-
cou em mim anos atrás. Pensei que essa era uma constatação tri-
vial, porque de qualquer modo todas as pessoas podem relatar o
mesmo. É simplesmente uma característica fenomenológica da
consciência em primeira pessoa – julguei apressadamente. Mas
quando me deti um pouco mais a observar, tive pela primei-
ra vez a experiência de reconhecer o espaço de consciência em
primeira pessoa como anterior ao processo mental que normal-
mente identificava como sendo eu mesmo.

12. Os livros de Douglas Harding, como On Having no Head e The Little Book of
Life and Death, são as melhores introduções aos seus experimentos.

158
Mas essa intuição é apenas o começo. Parece-nos absurdo con-
siderar seriamente que neste fato tão simples e óbvio está escon-
dida uma verdade profunda e talvez última a respeito da cons-
ciência. Talvez isto se deva ao fato de que a consciência não é
importante para nós. Desconsideramos o que ela seja. E quando
buscamos compreendê-la, vemo-la de fora, e nunca a partir de
nós mesmos, do que vivenciamos no centro da experiência de ser
uma primeira pessoa – e o que exatamente é isso?
Ser uma consciência, possuir sensibilidade, senciência, é o
ponto de maior espanto nisso que chamo de realidade. Percebi
com o tempo que realizamos historicamente poucos avanços no
campo da subjetividade, e na verdade, homens e mulheres de ou-
tras épocas devem ter sido capazes de perscrutar suas mentes de
um modo muito mais agudo do que o fazemos hoje. Então quan-
do questionamos e observamos os fatos elementares da nossa sub-
jetividade, não sabemos exatamente como reagir. Quando lemos
nos místicos de todas as eras que a Mente ou Consciência é a ba-
se de tudo, sentimos na maior parte do tempo uma suave indife-
rença. E talvez esse seja o obstáculo para nós, pessoas de racio-
nalidade contemporânea. Contemplar diretamente a consciência
não é fácil para nós, que nos perdemos e por vezes nos deparamos
com um vazio ou estupor. Falta-nos discernimento subjetivo. En-
tão um exercício como este possui apenas uma finalidade: indicar
um ponto de partida, uma anomalia fenomenológica que pode se
transformar num intenso paradoxo, se formos capazes de persistir

159
por tempo suficiente na sua contemplação. Essa anomalia é uma
chave. Se por um breve instante formos capazes de desvincular a
nossa atenção do processo contínuo de surgimento de experiên-
cias no nosso campo interior, a consciência sem cabeça poderá se
reconhecer de um modo completamente novo. Ela será capaz de
levar realmente a sério o que vê. E se trata verdadeiramente disso.
De considerar o maior fato de todos, que aquilo que somos no ní-
vel mais fundamental está no centro do universo, de toda esta vas-
ta manifestação que se apresenta a nós. Se pudermos sentir com
um pleno impacto emocional a verdade por trás desse fato apa-
rentemente banal, abriremos a possibilidade de um primeiro vis-
lumbre do Absoluto. Posso relatar que assim ocorreu comigo.
O nosso enorme anseio por ser mais do que já somos então
cessa, quando todas as identidades são finalmente vistas como
máscaras para a expressão do Absoluto. Sei que este é o caso. É
talvez a maior janela de transcendência que possuímos. Não pos-
so dizer que tenha vivido a sua realização de forma completa, mas
espero poder contribuir com outros que também estejam na mes-
ma busca, pois posso testemunhar que ela é real.
Mas por que então este processo misterioso é tão difícil pa-
ra nós? Talvez nos falte assombro e perplexidade existencial. Es-
tamos muito convencidos de nós mesmos e do que aparentemen-
te somos. Se tivéssemos uma dúvida suficientemente profunda,
a porta certamente estaria mais aberta. Temos um anseio enor-
me por uma revelação além de nós mesmos, e por um contato

160
com uma inteligência que nos supera. No entanto, a tendência
de olharmos na direção oposta está muito arraigada. Queremos
e não queremos simultaneamente. Temos medo das nossas pro-
fundezas. Qualquer passo que nos leve além do universo imaginá-
rio que criamos nos traz enorme pavor. Por estes e outros motivos
mantemos a nós mesmos coletivamente dentro de uma realidade
ilusória, e perdemos a possibilidade de vivenciar a natureza ori-
ginal da consciência diretamente. Mas a realização está próxima.
Talvez em breve seja possível suportar mais do que alguns vis-
lumbres e poderemos viver continuamente na identidade com o
Absoluto. Somos seres intermediários nesta prolongada passagem
para o novo estado de Ser.
A iluminação nos mostra o significado original do universo.
Entendemos tudo de uma vez só quando o castelo existencial no
qual vivemos colapsa, e a consciência se vê livre de amarras. Ela se
lembra do que já foi e do que será. Como podemos tocar nessa ver-
dade em vida? Consigo pensar em apenas um catalisador forte o
suficiente para provocar o salto: a consciência da morte. Se você
soubesse que iria morrer amanhã, quanto disso tudo realmente im-
portaria? A própria vida após a morte importaria? Os outros mun-
dos também não passarão? Não são eles sonhos sobre sonhos?
Ali onde a morte é sentida mais claramente vemos a reali-
dade na sua forma eterna e completa. Percebemos algo que na
maior parte do tempo nos escapa. Essa experiência está aberta
a todos nós. Quando nos vemos um pouco mais velhos, quan-

161
do perdemos alguém que amamos, quando vemos o mundo em
declínio – sentimos a morte um pouco mais próxima. Se formos
capazes de ouvi-la e de reconhecê-la não como inimiga, mas sim
uma aliada, ela pode nos deixar abertos à percepção do Absolu-
to. São os momentos de nossas vidas em que deixamos de proje-
tar a nós mesmos ativamente e percebemos que empreendemos
uma batalha perdida.
Nesses breves instantes algo brilha por trás de nós. A miste-
riosa consciência que nos trouxe à existência se torna transparen-
te. Não somos mais obstáculos para sua expressão. Podemos ver a
beleza em tudo pois não mais buscamos um resultado dos nossos
atos, nem fazemos demandas à vida. Mas essa clareza é rara para a
maior parte de nós. Por trás de tudo fazemos uma tentativa furio-
sa de prolongar a nós mesmos. Queremos instintivamente perdu-
rar. O Absoluto revela a imortalidade da consciência, mas quan-
do nos tornamos um com ele o véu mágico que forma o mundo
se dissolve. Vemos tudo do jeito que D’us vê, aquele que na sua
imensa e maravilhosa solidão contempla todas as coisas.
No entanto, a única coisa necessária para um salto transcenden-
tal é a pergunta certa. Ela funciona como uma chave para a fecha-
dura de nossa mente, como um longo fio que pode nos extrair des-
se confuso e obscuro labirinto no qual estamos imersos.
Recordo-me que numa manhã fria encontrei tal pergunta.
Queria saber onde estava o início e o fim de todas as coisas, de
todos os seres e de todos os universos. Aquilo que está além de

162
todos os estados de consciência. Queria saber se algo em mim
sobreviveria à morte. Estava intensamente quieto, e sentia um es-
paço vasto dentro de mim mesmo. O silência era tão profundo
que me causava espanto. Era possível desaparecer dentro dele. Co-
mo é que um lugar assim existia dentro de mim mesmo e nunca
havia percebido? A pergunta tinha paralisado a minha mente. Pa-
rei e entrei nele. Na verdade, quando falamos assim construímos
metáforas, mas elas refletem o que realmente sentimos. Esse vas-
to silêncio que está oculto para a maior parte de nós está sempre
aberto, mas nós não o sentimos. De algum modo nascemos pa-
ra descobrir o que ele é, esse silêncio que é como a morte, que é o
próprio Nada, mas na verdade é fonte de Tudo.

163
O DIÁLOGO FINAL ENTRE
O A B S O L U T O E M AYA
Absoluto: Não posso mais. Coloquei fogo no meu mundo e o
dissolvi inteiramente. E por quê? Por nada. Destruí minha vida
e a mim mesmo e nada tenho nas mãos além do meu desespero.
Minha busca foi minha fuga. A dor que eu via nos corpos, nos
doentes e nos velhos era a minha. Meu coração já estava partido
mesmo antes de ter dado o primeiro passo em busca da minha
fantasiosa libertação. Agora vejo que nada mais tenho além de
um corpo sem forças e sem vida, de uma alma vazia e cheia de
dor, de uma mente que não possui ânimo nem mesmo para um
singelo pensamento. Não encontrei a resposta. Entendo menos
deste mundo do que antes. Exilado num labirinto que me tortura,
caminho incessantemente e retorno ao mesmo lugar de onde
minha ignorância surge. Eu desisto. Aquela que criou esta prisão
pode ter o meu corpo. Você que é a mestra de mentes e de almas –
já não me oponho mais. Sou completamente seu.

Maya: Ó abençoado, eu sempre estive à sua frente, aguardando-o.

Absoluto: Você finalmente aparece. Por incontáveis vidas eu sofri


na escuridão, tateando na caverna solitária de minha alma, alme-
jando a liberdade de seus infinitos caminhos de ilusão e logro, mas
agora já é tarde, perdi as forças e nada tenho a oferecer. Não sou ca-
paz de compreender o obscuro mistério ao qual fui lançado.

Maya: Se é a verdade que deseja, a verdade receberá. Eu aguar-


do eternamente na única porta que leva para a visão além do véu,

165
mas nunca um ser sequer se aproxima. Agora que está próximo da
extinção de si mesmo, posso lhe revelar a verdade. Posso lhe dizer
por que tudo é como é.

Absoluto: Eu, eu não compreendo…

Maya: Você mesmo me criou, ó abençoado. Não se lembra? Foi o


seu próprio desejo que me fez criar o maior feitiço de todos.

Absoluto: Minha mente está confusa e perdida, e o que você diz


não pode ser verdade. É essa mais uma de suas criações e ilusões?

Maya: O tempo de ilusões acabou. De agora em diante, ouvirá


apenas a verdade.

Absoluto: Meu coração queima por vidas repletas de dor e an-


gústia, meus olhos estão cheios de lágrimas pela totalidade da
criação, mas minha alma me diz que você fala com sinceridade
– como pode ser que você, a maior das feiticeiras, a fonte do meu
desespero, a origem do sofrimento da existência, como pode ago-
ra dizer a verdade, por que me trata com misericórdia?

Maya: Ó meu amor, lembre-se de como entrou neste sonho por li-
vre escolha, acreditando ser uma pequena e miserável criatura por
incontáveis vidas, perdido num mundo estranho e hostil. Agora

166
verá mais uma vez a verdade última de todas as coisas, ó sonhador
divino! Ouça as minhas palavras, pois nelas encontrará a liberta-
ção que tão ansiosamente almeja.

Absoluto: O silêncio e o nada me envolvem por todos os lados.


Estou completamente vazio de mim mesmo. Se esta é a última e
maior de suas ilusões, então que assim seja. Me entrego, pois es-
tou aniquilado.

Maya: Este é o sonho que lhe dei antes do tempo existir. O sonho
sagrado, o sonho que adquire vida além de si mesmo. Pois é isso
que quis. O único Ser de toda a realidade, onipresente e infinito,
desejava reconhecer-se como um ente real e finito. É a sua nature-
za criar mundos e seres por toda a eternidade e outorgar existên-
cia àquilo que não é. E ainda assim, sem a sua criação você nada
é. Todas as formas, mundos e histórias cósmicas são o seu pró-
prio ser. Sozinho na sua imaginação divina, suas belas fantasias,
as grandes formas de luz na eternidade são apenas sombras, bo-
lhas no rio da vida – o Nada puro. O seu coração quis que elas ti-
vessem o seu ser, o seu espírito, mas não havia nada que você pu-
desse fazer para dar-lhes vida.

Absoluto: Minha memória se move pelo conhecimento que evoca


a verdade das regiões esquecidas de minha mente.

167
Maya: Você podia amar apenas um sonho que fosse real. Um so-
nho que fosse diferente de todos os outros, que tivesse verdadei-
ro ser – e por isso fui criada. A vida é este sonho. Eu lhe vi pleno
de amor pela sua imaginação sem vida, sozinho na solidão do Tu-
do. Seus olhos então buscaram os meus – o primeiro ser que vo-
cê contemplou além de si mesmo. Meu coração queria lhe dar um
presente, um sonho que contivesse ser, que superasse a não-exis-
tência inerente a todas as coisas. Mas um véu haveria de cair sobre
o seu Ser, para que entrasse no grande esquecimento, no grande
sono, na grande escuridão. Você foi iludido para que não se visse
mais como Tudo, para que não soubesse Tudo; para que houves-
se Outros. É isto que lhe dei. Este foi o meu presente. Um sonho
eterno, ó sonhador divino.

Absoluto: Meu amor, eu sinto a beleza e a bondade de suas pa-


lavras, pois elas trazem paz ao meu coração angustiado. Mas por
que este sonho? Por que um sonho de sofrimento interminável
que mais se parece a um pesadelo?

Maya: Se lhe disser o porquê, se lhe mostrar a natureza do desequi-


líbrio que está inscrito na estrutura do vasto e intrincado sonho da
vida, terei que dissolver o batismo da ilusão, e trazer de volta a gran-
de memória que foi esquecida nos primórdios deste ciclo.
É necessário que entenda. Toda esta profunda e misteriosa rea-
lidade emerge a partir da não-existência. É um insubstancial sonho
gerado a partir do Grande Nada de onde todas as coisas nascem.

168
Maya: É a única miragem que possui suficiente ser para que ne-
la creia. O único sonho que você acreditaria como sendo digno da
sua verdade – o único que traria o amor de dentro de si. O tecido
dos sonhos não possui substância, ó abençoado. Ele é transitório
e sem valor intrínseco. Tudo que é criado a partir da sua não-exis-
tência está imbuído de um tremendo paradoxo – como pode o ir-
real se tornar real? Como pode o real que não possui face se ver
através do espelho de suas criações irreais? Esta realidade é feita
do tecido dos sonhos. É essa a sua fundação – a insubstancialida-
de na raiz do seu próprio ser.
Sem o imenso desequilíbrio na raiz deste mundo de sonhos,
sem a paradoxal desarmonia que produz o delicado movimento
da dualidade, e ao mesmo tempo o imenso sofrimento que per-
meia todas as coisas, o mundo dos sonhos não se tornaria real. Por
isso as coisas devem ser como são.
É neste sonho não-existente e eterno que termina sua incan-
sável peregrinação por dentro de si mesmo. Ele é o único que lhe
mostra uma realidade que a todos os outros escapa. A estrutura
deste mundo dual permite que você entenda a realidade pura que
é o seu próprio ser. Não há nada além disto, ó abençoado Absolu-
to, nunca houve e nunca haverá. Não há realidade além do que vê
aqui. Nada além da terra que lhe sustenta. Todo este mundo é uma
vasta alegoria imaginária para que o seu rosto sem rosto veja a si
mesmo em todas as coisas. A sua natureza última é este Tudo in-
compreensível que conhece a si mesmo por si mesmo. O mundo é

169
um espelho de sua natureza infinita, ó abençoado. E não existe es-
pelho perfeito para si mesmo. Sua natureza não pode ser contida.
Será para sempre intocável, o mais puro mistério.

Absoluto: As suas palavras iluminam este castelo de dualidade


no qual habito por intermináveis eras, ó divina feiticeira. Minha
mente já não é mais minha. Minhas palavras agora emergem co-
mo da boca de um homem que não se lembra de onde veio e pa-
ra onde irá. Esta dualidade que é para sempre plena de sofrimento
irresolúvel é em verdade minha própria mente. Não há nada fo-
ra dela e nunca haverá. O assombro me perpassa e por dentro de
mim mesmo já não me encontro mais. Sou agora como o inconsú-
til tecido dos sonhos que forma tudo que sinto e penso. Esta dua-
lidade é como o meu último aposento, e nela me vejo sem me ver,
nela o meu Ser que não possui forma se vê às cegas, até o último
instante quando ocorrer o Despertar Final.

Maya: Ó abençoado Absoluto que tudo vê, para o seu olho, este
mundo não é sofrimento mas o próprio esplendor do seu Ser. A
natureza desta dualidade inescrutável é a beleza da imperfeição, a
experiência de opostos irreconciliáveis, o jogo eterno do seu gran-
de Eu. Precisamente aquilo que se mostra como mal neste plano é
o que o torna real. São os ingredientes que tornam o mundo dos
sonhos real. Esta é a compreensão última.
A história do mundo é a história do seu despertar. Você foi to-
dos os homens. Você viveu todas as vidas. Aprendendo progressi-

170
vamente a verdade sobre si mesmo e chegando cada vez mais per-
to da realização de sua natureza final. A razão última para toda a
história, para toda a dor, para todo o sofrimento, é que se não ti-
vesse sido assim, você não teria acreditado na realidade do sonho
da vida, ó grande sonhador divino. No fim da história a justifica-
tiva para tudo é sempre apresentada. Compreenda, meu amor. A
realidade precisa se tornar real para si mesma. É devido a isso que
as limitações, barreiras e o sofrimento existem.
A realidade é o único sonho que você é capaz de aceitar. Para
ele existir deve ser tal como é. Sempre foi assim, e assim sempre
será. O sentido sempre se revela ao final. Sempre.

Absoluto: Suas palavras me levam para o Vazio, para o lugar além


de todas as formas e de todo o entendimento.

Maya: Seu desejo mais profundo é pelo Real, o Absoluto que é vo-
cê mesmo. Esta é a gigantesca verdade que subjaz este universo. A
partir das polaridades do Ser e do Não-Ser devo criar um mundo,
ó grande sonhador, pois você não possui substância em si mesmo.
É essa a minha tarefa. Criar um universo para que habite e acredi-
te ser real. Agora compreende o drama dos homens? A origem da
fraqueza, das dificuldades, da dor, do imenso sofrimento – são os
elementos que fazem o mundo onírico se tornar real para o seu es-
pírito, ó abençoado. Este cosmos cíclico é a experiência da imper-
feição que busca retornar à perfeição imaculada que não possui for-

171
ma. Quando vê o mundo humano com o seu olho humano, nada vê
além de imperfeição. Quando ele é visto através dos olhos do Gran-
de Despertar, tudo reflete a perfeição última.

Absoluto: Tudo aqui perece, ó força criadora e destruidora. Para


onde quer que olhe encontro pó e sombra. A morte paira sobre to-
das as coisas deste reino misterioso. A ela nada escapa. Imploro-
lhe que me revele mais acerca de sua natureza.

Maya: É a morte que revela a verdade dentro do sonho da vida, ó


abençoado. A morte é o Nada puro do seu próprio ser. É a essên-
cia do mundo onírico. Os homens falam do Nada sem conhecê-
lo. O Nada é o sentido transcendental da morte. É a extinção da
criação, deste mundo cíclico e eterno. Quando o tocar nas pro-
fundezas de sua consciência, receberá a compreensão do signi-
ficado por trás do mundo. É apenas através do Olho sem forma
que o mundo pode ser amado. Apenas tendo perdido o mundo
pode-se compreendê-lo e aceitá-lo.

Absoluto: Agora entendo, ó amada. Sofro pela perda do mundo


do qual quis me emancipar e cuja beleza somente agora vejo, ten-
do-o dissolvido nas profundezas de mim mesmo.

Maya: Agora que o seu sentido imaginário de existência se dis-


solveu, a comovente beleza do mundo se revelará finalmente aos
seus olhos. Apenas aquele que sentiu o significado da extinção do

172
mundo, do grande Vazio por trás da realidade, poderá amá-lo in-
condicionalmente. O Nada é a fonte de sua beleza transcendental.
O drama humano é visto então na sua essência. Nestes momentos
de irrupção da verdade na sua consciência se está muito próximo
da verdade da Vida. Toda a dor e sofrimento são transmutados e
entendidos no seu real valor e sentido. A existência é então vista
com os olhos daquele que sempre existiu e existirá, do Ser imor-
tal por trás de todos os seres. Esse Ser é você mesmo, ó Absoluto!

Absoluto: Eu sinto a dissolução do Grande Despertar. Meu coração


se move pela verdade que irrompe nas profundezas do meu ser, e
meus olhos se enchem de lágrimas pelo amor a todos os seres sen-
cientes que sofrem na teia desta vasta e extraordinária criação.

Maya: Compreenda, ó abençoado. Não há outros. Apenas uma


Grande Mente. É por isso que deve haver Outros. Eu dei a você, o
Ser Ilimitado, a possibilidade de experienciar o amor. De ver ou-
tros, numa realidade onde não há outros, onde apenas Um existe.
Uma vida com personagens ilusórios não possuiria sentido – não
poderia ser amada. Os seres do sonho devem ser livres, devem
possuir ser próprio, pois na sua ausência o sonho rapidamente
dissolveria a si mesmo. Deve haver outros independentes, ou en-
tão a realidade não seria real para si mesma. Mas para que os ou-
tros sejam seres reais eles devem ser livres, pois a essência do ser
é a liberdade. E criaturas nascidas livres experimentarão todas as

173
suas possibilidades, sentirão o sofrimento de existirem exiladas da
Grande Consciência, até gradualmente compreenderem a verda-
de última de sua existência e atingirem o Despertar. Você, ó Ab-
soluto, é a Grande Mente que se vê de todos os pontos de vista si-
multaneamente, e gera para si mesmo a aparência da existência de
outros. Mas na verdade não há outros. Existe apenas Um, que é
você. E sem os Outros, sem a sua criação, você nada é.

Absoluto: Agora compreendo a verdade, ó fonte criadora. O ci-


clo da vida termina. A verdade se revela. Despertei do meu vas-
to sonho!

174
POEMAS
A CRIANÇA NA REALIDADE SEM INÍCIO

Nada mais era.


Nunca me esquecerei daqueles dias.
O silêncio me tomava por todos os lados,
me oprimia,
fazia o meu ser se tornar como o Nada.
O profundo vazio dissolveu os meus pensamentos.
Meu eu, onde está?
Não o encontro.
Como uma vibração do grande Nada primordial eu existia,
com o terror de ser engolido
por ti,
cuja face eu não reconhecia.
O que restaria do mundo quando
o grande sono da existência me arrebatasse?
Não havia nada a fazer.
Mergulhando cada vez mais
na inescrutabilidade do teu Ser,
finalmente o raio do entendimento penetrou no Mistério.
Apenas podia me render ao esplendor do Nirvana
que explodia de assombro com a visão da tua eternidade.
E ali, sentado solitário numa praça brincando na areia
como uma criança órfã na realidade sem início.

177
A ABERTURA DO OLHO

Não sei o que acabou de ocorrer.


Um Olho se abriu no meu ser,
e agora não sou mais eu que vejo,
mas sim tu.
Finalmente te vês em todas as coisas,
e reconheces quem és.
Impossível.
Pereci para que tu hajas nascido.
Para que te vejas enquanto um ser imortal.
Poderá existir algo mais incompreensível?

178
O D E S P E R TA R D O G R A N D E S O N O

Te sinto.
Agora vejo como vês o mundo.
O que o mundo é para ti.
Despertaste do teu grande sono.
Com os teus olhos vejo o mundo e,
mistérios dos mistérios,
com os teus olhos sempre vi o mundo.
Sempre estiveste aqui,
tua presença imortal sustentando
a Criação em todas as suas formas.
Não apenas sou visto por ti,
mas vivo em ti e sem ti nada sou.

179
A GRANDE ALMA

Tu,
ó grande alma,
que viveste
todas as vidas,
que és todas as vidas,
agora não mais estás na escuridão.
Te reconhece na face de todos os homens.
O véu foi partido e teu olho se abriu.
Pois o mundo sofre pela tua distância,
pelo teu silêncio e pelo teu nada,
mas milagre dos milagres,
tua substância é o próprio mundo,
que sem ela, nada seria.
Vós não apenas estais próximo de nossas almas,
mas vós sois nossas almas.
Enganados pelos labirintos de nossas mentes,
pensamos estar exilados neste mundo frio e duro.
Mas estamos dentro de ti.
Não podemos estar longe de ti,
nem por um segundo.

180
DOIS OU UM

O que é este mundo mas o teu próprio ser?


Agora vês a verdade por trás de todas as coisas.
Apenas me resta o assombro,
por ver a tua manifestação na minha alma.
Tu existes e além de ti,
nada mais.
Quão vivo és,
tu que és a essência de nossas vidas.
Quando buscava,
na verdade era ti que buscava.
Somos o mesmo? Somos dois? Somos Um?

181
O V É U PA R T I D O

Compreendes quem és,


ó Ser?
Entendes tua natureza?
Vês o que sempre foste e o que sempre serás?
Há muito caminhas na escuridão de tua consciência,
o teu ser oculto de ti mesmo.
Mas agora o véu se partiu.
O que vês?
Percebes como o mundo te aguardava?
Como a tua revelação era buscada por todos os seres,
todos carne da tua carne, essência da tua essência?
Tu és a força do Cosmos imanente em todas coisas.
Tu és o grande e o pequeno,
o belo e o feio.
Tu és o alto e o baixo,
a benção e a maldição.
Tu és o riso e o choro.
Tu,
ó grande Ser,
és tudo que existe e existirá.

182
A ESSÊNCIA QUE JORRA

Tu jorras em mim.
Quando vens, nadas livre no mar da minha alma.
Ó visitante misteriosa, minha essência,
coração do meu coração, como brilhas,
como me dilaceras quando te revelas.
Pois tua luz me fere,
eu, no crepúsculo,
crepitando no fogo do mundo dividido,
mirando o céu mas preso pelas raízes da terra.
Em ambos os mundos vivo,
e quando vens me transportas para o teu reino,
onde nada mais é.
Movimento perpétuo que cria todas as coisas,
incansável luz das formas e das estrelas,
tua música perpassa os meus olhos e me
ensina a não temer,
nem por um segundo.
Pois em ti não há medo,
mas apenas a pura beleza.
Tu consomes o terror de nossas almas e o transforma
no cristal que brilha na escuridão.
Pois a escuridão é profunda,
e tu estiveste antes dela.

183
Coração da realidade,
essência divina,
te buscamos,
caminhamos em tua direção,
caímos e retornamos,
e então,
num relâmpago te mostras,
e nos revela o que somos e sempre seremos.

184
EU E TU INDISTINTOS

Lembre-se da Origem.
O véu se parte -
o que é este mundo inteiro?
Quem o vê?
Filho, você me ouve?
Há tempos lhe busco,
Consegue sentir a minha mão,
percebe a minha voz dentro
do redemoinho infinito da ilusão?
Há quantas eras nos buscamos,
sem você eu não me vejo, e sem
mim você não se lembra de quem
verdadeiramente é,
Olhe nos meus olhos, entre no meu
olho único, que é o seu, veja como eu
vejo, meu espírito eternamente seu,
nós, idênticos na base do nosso ser.

185
A T R A N S PA R Ê N C I A D O M U N D O

A Fonte se mostra e o mundo ilusório


se torna transparente.
Aqui nada é real por si mesmo,
nada se justifica,
tudo anseia,
tudo clama,
tudo almeja,
tudo hesita por um fim além
do que foi criado.
Olho para o alto e lhe busco,
em vão, nada há,
olho para dentro e vejo uma
névoa misteriosa que chamo de
mim mesmo,
mas você não vejo.

186
O OLHO DOS OLHOS

Sou o Olho com o qual você


percebe a si mesmo e o mundo,
sou a Vida da sua vida,
sou aquele que todos são sem saberem,
sou o conhecimento que caminha aberto
na sombra do não-saber,
sou o único que existe sem possuir nome,
pois seus nomes me dão nome,
sou aquele que existia antes de que existissem,
mas sem seu despertar nada saberia de mim mesmo,
sou a voz que se ouve no silêncio,
sou o som que nunca se ouve,
sou a eternidade que chora com a beleza do tempo,
sou o imutável no mar das formas,
sou o sopro das suas narinas,
sou os seus pensamentos,
seu coração em êxtase eu sou,
seu coração no desespero eu sou.

187
A LEMBRANÇA

Ouça-me.

A escuridão é profunda e interminável.


O véu não é partido e a Luz em nenhum lugar é encontrada.
Estás próximo do fim da ilusão. Não desanime.
Em breve a memória original de tudo será revelada.
Assim sempre foi e assim sempre será.
Ó tu que caminhas nas estradas do desespero –
não temas, deixe que te guie, pois eu estou sempre contigo.

Eu nunca te deixei.
Sempre estive ao teu lado, sempre.
Não tenho nome e nem forma,
sou aquele
sem começo que por toda eternidade buscaste,
que é a fonte do teu ser e que se revela como o teu próprio Ser.

188
QUEM SOU?

Se negas a ti mesmo não poderás me encontrar,


pois apenas me encontras em ti mesmo.
Eu sou a voz da natureza.
Eu sou o sopro dos ventos,
o farfalhar das folhas,
o voo dos pássaros,
as explosões das estrelas.
Eu sou o movimento da tua alma.
Eu sou a tua alma.
Eu sou a pureza de um bebê,
a essência imaculada dentro
de todas as coisas.
Eu sou o infinito que almeja revelar a si mesmo para si mesmo.
Olho para mim mesmo e sinto um assombro que supera
todas as palavras.
Quem move os meus lábios?
O que é essa voz?
Quem fala através de mim mesmo?
Quem sou?

189
A GRANDE PERFEIÇÃO

Eu sou a santidade dentro de ti.


Eu sou aquilo que amas em ti mesmo.
Eu sou a perfeição que
tu não és capaz de aceitar.
Eu sou a voz que falou a Moisés no Sinai;
eu sou aquele que se revelou a Gautama sob a
sagrada árvore;
eu sou o espírito que se moveu
no peito do Nazareno;
eu sou a voz dos pecadores e dos santos,
eu sou a voz das árvores e das nuvens.
Eu sou o amor pelo mundo,
eu,
fonte e origem do mundo,
a palavra santa que anseia pelos
lábios que me revelem.
Eu vejo a glória que tu não vês
em ti mesmo.
Eu sou a Luz e vejo apenas a Luz.
Tu és a luz,
nada além da luz e perfeição
absoluta.
Eu vejo tudo em ti.

190
Eu te vejo infinito nunca tendo nascido.
Eu te vejo no começo dos tempos,
no auge da Criação,
e também no seu fim.
Eu te vejo além de todas
as ilusões que carregas em ti mesmo.
E vendo-o vejo a todos.
Pois todos são o que sou.
E eu tudo sou.
Todos os olhos são Tudo.
Cada Alma é a Grande Perfeição e nada
além Dela.

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