net/publication/277093593
CITATIONS READS
7 515
1 author:
Mauro Betti
São Paulo State University
60 PUBLICATIONS 295 CITATIONS
SEE PROFILE
Some of the authors of this publication are also working on these related projects:
Os saberes da Educação Física nas perspectivas dos alunos do ensino fundamental (2o ciclo) e médio View project
All content following this page was uploaded by Mauro Betti on 05 August 2015.
Mauro Betti∗
RESUMO
Este ensaio teórico considera a hipótese de que a Semiótica de C. S. Peirce pode apontar os limites da abordagem
culturalista da Educação Física e indicar uma agenda de desafios que deverão ser enfrentados pela Teoria (Pedagógica) da
Educação Física. Para tal, após apontar contribuições e limites da fenomenologia de M. Merleau-Ponty, explicita alguns
fundamentos conceituais da Semiótica peirceana (signo, semiose e experiência) e conclui sugerindo uma perspectiva
fenomenológico-semiótica para a Educação Física, que, ao considerar alunos e professores como produtores de signos e
relações interpretantes, apresente alternativas aos impasses da “resposta culturalista”.
Palavras-chave: Educação Física. Fenomenologia. Semiótica.
∗
Professor Adjunto do Departamento de Educação Física da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista –
campus de Bauru.
é um gesto especial, porque permite retomar, - Não se pode falar sobre o movimento próprio
de modo econômico, significações por meio do próprio movimento, mas apenas
disponíveis; é a única operação expressiva por meio da linguagem das ciências ou da
capaz de sedimentar-se e de constituir um filosofia, o que será sempre uma expressão
saber intersubjetivo (cultura). segunda, uma representação intelectual,
- Há distinção entre gesto movimentado e o necessária, embora, para que se estabeleçam
gesto movimentante; como este último existe significações culturais sobre o movimento
primeiramente “para nós mesmos assim como (quer dizer, para constituir um saber
para outrem”, em geral nos recordamos intersubjetivo), as quais, por sua vez, também
facilmente dos jogos da nossa infância e contribuem para constituir e renovar a
adolescência, porque nos recordamos “de seu “cultura corporal de movimento”.
aspecto precioso [...] como uma paisagem Também na esteira da fenomenologia
desconhecida, quando as estávamos merleau-pontyana e de outros autores que nela
adquirindo e quando elas ainda exerciam a se fundamentaram, Kunz (1991, 2001) critica a
função primordial da expressão” visão que concebe o movimento humano apenas
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 521). como fenômeno físico, que pode ser
- Há um caráter ambíguo na aprendizagem dos reconhecido e esclarecido de forma simples e
gestos esportivos, pois se estamos condenados objetiva, independentemente do próprio ser
a ser inéditos no plano da percepção, o humano que o realiza. Em contraposição,
mesmo se dá, necessariamente, no plano da considera que nenhum movimento pode ser
cultura, no qual podemos nos repetir (o “gesto estudado isoladamente dos objetos ou do ser que
movimentado”). Para quem aprende pela se movimenta, em determinada situação e sob
primeira vez uma modalidade esportiva, os determinadas condições. O movimento, assim
gestos que realiza são inéditos, mas não o são entendido é então uma “ação em que o sujeito,
para a cultura esportiva. pelo seu se-movimentar, introduz-se no Mundo
- Depois, os gestos adquirem “criam seu de forma dinâmica e através desta ação percebe
próprio objeto, e, a partir do momento em que e realiza os sentidos/significados em e para o
são suficientemente conscientes de si o seu meio” (TREBELS, 1983 apud KUNZ, 1991,
bastante, encerram-se deliberadamente no p. 163). De acordo com Tamboer (1985 apud
mundo cultural” (MERLEAU-PONTY, 1999, KUNZ, 2001), o movimento humano implica
p. 523); quer dizer, arremessar a bola na cesta sempre uma “compreensão-de-mundo-pela-
torna-se um esporte: “um sistema de gestos ação”, nosso mundo é sempre um mundo vivido,
técnicos que podem ser transmitidos como e o movimento é sempre uma conduta para algo,
‘verdade’ (cultura), e adquirem, então, um e passa a ser visto como um diálogo entre
certo distanciamento da sua origem; Homem e Mundo. Como em Merleau-Ponty, os
sujeitos do movimento e o mundo dos
- O dilema “sobre” versus “com” a cultura
movimentos se envolvem de tal forma que o
corporal de movimento não pode ser resolvido
mundo e os objetos se tornam um “para algo”,
pela via fenomenológica, pois se trata de uma ou seja, “para a realização de algo” (correr,
ambigüidade inerente à Educação Física como nadar, jogar etc.).
disciplina escolar, mas que pode ser mais bem Todavia, não é pacífico o entendimento de
compreendida pela diferenciação entre que o método fenomenológico possa ser
significação existencial (que se refere aos transportado da Filosofia para a pesquisa
vividos intuitivos, pré-reflexivos, nos quais, o empírica, de modo a levar em conta as "coisas
sentido equivale à existência) e significação mesmas", dando destaque às experiências
conceitual (que agrega outros sentidos, na vividas pelos sujeitos, as suas vivências, que
medida em que é um saber intersubjetivo), lhes são significativas. De qualquer modo, a
pois é a esta última que se refere a abordagem fundamentação fenomenológica finda por
culturalista da Educação Física, quando indicar a necessidade de investigar tais
pretende a “apropriação crítica da cultura vivências, em termos de descrições. O risco que
corporal de movimento” (BETTI, 2005a). se corre é interpretar a descrição das vivências
experiência de mediar entre duas coisas (semioses) pode se dar hibridamente, quer dizer,
traduz-se numa experiência de síntese, numa associando/encadeando signos de diversos tipos.
consciência sintetizadora” (IBRI, 1992, p. Um signo inicial, que pode ser um sentimento,
13). Guarda relação com a experiência lógica: um som, uma imagem, uma palavra etc., permite
os códigos culturais, as teorizações sobre os ao sujeitos, a partir de seus repertórios
jogos, esportes, exercício físico etc. construírem inúmeras relações interpretantes,
geradoras de um novo signo, traduzido, por
Essas três categorias se sobrepõem e
exemplo, em um gesto. Por repertório entende-
imbricam num processo mútuo e ininterrupto no
se toda experiência/memória informacional de
fluxo da experiência.
um indivíduo, desde sua concepção (DNA) até a
Já a mediação é conceituada por Peirce
vida atual.
(1990, p. 61) como representação, não
entendida esta como reprodução fiel ou Implicações para a Educação Física
imitação, mas como “estar em lugar de, isto é,
estar numa tal relação com um outro que, para Parece a Gomes-da-Silva, Sant’Agostino e
certos propósitos, é considerado por alguma Betti (2005) que os estudos na Educação Física
mente como se fosse o outro”. Nesse sentido, efetuados na abordagem “culturalista” se têm
qualquer coisa pode vir a ser um signo, desde debruçado sobre os códigos (o esporte, a dança,
que se estabeleça a relação entre três elementos: as lutas etc.), quer dizer, signos que foram
o Representante (um sentimento, uma sensação, institucionalizados, e às vezes se tornaram
certo som, certo gesto, etc.), o Objeto (aquilo hegemônicos no âmbito da cultura (caso do
que o signo re-presenta) e o Interpretante (a esporte). Para aqueles autores, a perspectiva
relação de “equivalência” criada entre os dois semiótica poderia levar a outras questões: Como
elementos anteriores por uma mente surgem signos novos? - Como se dá o processo
interpretadora). É importante esclarecer que o de institucionalização de signos/criação dos
interpretante não se refere a uma pessoa ou ser códigos? Por que, por exemplo, alguns signos se
(que seria o intérprete), mas ao tornaram / tornam hegemônicos e outros
signo/pensamento interpretante. “desapareceram” / ”desaparecem”?
O estabelecimento dessa relação de A hipótese que Gomes-da-Silva,
representação entre o signo e seu objeto, por Sant’Agostino e Betti (2005) consideram é a de
intermédio do interpretante caracteriza a que qualquer gesto é um “quase-signo”, quer
semiose, o processo de produção do “signo” dizer, possui potencial para ser signo, para um
propriamente dito. dado indivíduo, para um dado grupo social ou
Ou seja, a categoria da relação interpretante para uma dada cultura; e como a relação
possibilita a mediação entre o real e a interpretante não esgota todos os aspectos do
consciência, pois a representação “é o processo objeto, temos que Peirce identificou mais de 80
cognoscente pelo qual o sujeito possui e produz tipos de signos (SANTAELLA, 1995), e,
signos, sua única possibilidade de mediação com obviamente, nem todos estão necessariamente
a realidade, a única maneira que possui de vinculados aos códigos envolvidos em jogos,
conhecer os fatos concretos, a realidade material danças, esportes ou ginásticas específicos.
e de conviver com ela” (FERRARA, 1981, p. Apenas a título de ilustração: o qualissigno
57). (quali, de “qualidade”) é o signo típico da
Para Peirce, a produção do conhecimento é primeiridade, o sinsigno (sin, de “singular”) da
sempre uma produção de signos – o pensamento secundidade, e o legsigno ( leg, de “lei”) da
é signo - e o significado de um signo é sempre terceiridade.
um outro signo, pois o interpretante, ele mesmo, Já Betti (1994, p. 33) havia estabelecido
é um novo signo, de tal forma que o fluxo de relações iniciais entre a semiótica peirceana e o
pensamento dá-se em um fluxo incessante de ensino da Educação Física, sugerindo a
signos, já que a mente humana trabalha com necessidade de investigar os signos presentes no
associações ininterruptas, ad infinitum. ensino desta disciplina que possibilitam ao
Como lembram Gomes-da-Silva, professor ensinar algo ao aluno
Sant’Agostino e Betti (2005), o fluxo de signos “independentemente de qualquer teorização ou
formulação científica que anteceda seus mas sim, uma ação pedagógica com ela, nos
procedimentos”. Neste caso, certas palavras que termos da semiótica peirceana: tal proposição
o professor dirige aos alunos consistiriam signos implica que o alvo da prática pedagógica na
abertos ou quase-signos: Educação Física não deve limitar-se a alcançar e
estagnar-se na terceiridade (generalização,
[...] palavras como “explosão”, norma, lei), mas constituir-se em um permanente
“suavidade” podem exercer uma função trânsito entre a primeiridade (potencialidade,
sígnica no processo ensino e qualidade, sentimento), a secundidade
aprendizagem, auxiliar mais ao aluno
(dualidade, eventos singulares, únicos) e a
que está aprendendo do que todas as
leis determinada pela aprendizagem
terceiridade (abstração, conceito, lei).
motora. Veja-se, por exemplo, a Em palavras mais simples: jogar basquete,
sugestão de Hinks (1977): “Faça suas assistir basquete na TV, falar ou escrever sobre
pernas falarem”. (BETTI, 1994, p. 34). ele, constituem uma só experiência no fluxo e
hibridação de signos. Ou seja, nós, como
Betti (1994, p. 34) encontra respaldo, nessa educadores, deveríamos atentar para a
sugestão, no conceito de signo de Peirce, para integridade da experiência. Daí o equívoco na
quem o signo evoca apenas parte do objeto real, separação das “dimensões do conteúdo”
“e portanto o sujeito pode evocar outros (conceitual, procedimental e atitudinal), não
sentidos, referidos às suas experiências de vida, para “efeito didático”, de entendimento, como
imaginação etc.”. muitas vezes se justifica, mas para planejar,
Então, o foco da dinâmica de ensino e desenvolver e avaliar separadamente
aprendizagem na Educação Física deverá dirigir- fatos/conceitos, procedimentos e
se,para os sujeitos-que-se-movimentam (o aluno atitudes/valores.
na escola, o cliente na Academia, o atleta no O processo contínuo de associações sígnicas
Clube...), e valorizá-los como produtores de (semioses), que constitui o trânsito entre as três
significações e conhecimentos. categorias da experiência, não se exaure quando
Ao estender o conceito de signo para o se-movimentar do sujeito alcança as formas
qualquer fenômeno dotado de institucionais/codificadas do basquete, ou
sentido/significação, por entender o processo de quando elabora ou lhe são transmitidas
produção de signos (linguagem) como a raiz da conceituações/teorizações. Por isso, como
produção do conhecimento, a semiótica de apontam Gomes-da-Silva, Sant’Agostino e Betti
Peirce qualifica-se como instrumento (2005), sempre poderá surgir um modo singular
privilegiado para "ler"/interpretar signos imprevisto de executar, por exemplo, um
inusitados, novos e imprevistos, além dos já arremesso no basquetebol, em decorrência de
institucionalizados e/ou codificados na novas associações, o que, no limite, pode levar à
Educação Física. Ora, se tudo é signo, abole-se a transformação do próprio código.
hierarquia entre “verbal” e “não-verbal”, Então, parece-nos que a “apropriação
“intelectual” e “corporal”, o que se reveste de crítica” da cultura corporal de movimento, a que
evidente importância para a Educação Física. É se refere Betti (2005a), ou o “saber sobre” a que
de Pignatari (1979, p. 12) a afirmação de que a se refere Bracht (1999), é a terceiridade
semiótica de Peirce “acaba de uma vez por todas (generalidade, hábito, lei), que, todavia, na
com a idéia de que as coisas só adquirem Educação Física não pode ser ponto de partida
significado quando traduzidas sob a forma de ou fim em si mesma, mas ponto de chegada, já
palavras.” Isto porque o processo de semiose e que, como experiência cognitiva, relaciona-se à
hibridação entre linguagens (que aprendizagem e à conduta futura, conforme Ibri
associa/encadeia signos de diversos tipos) (1992, p. 9): aprendizagem” é “processo de
produz conhecimento. aquisição de conceitos e de modificação de
Gomes-da-Silva, Sant’Agostino e Betti condutas”.
(2005) traduzem a conclusão de Betti (1994), de O ponto de partida da Educação Física é a
que a Educação Física não deve tornar-se um secundidade (singularidade, choque, ação e
discurso sobre a cultura corporal de movimento, reação). Há uma supervalorização das
ABSTRACT
This theoretical essay supports the hypothesis that the Semiotics of C. S. Peirce might indicate the limits of Physical
Education culturalist approach, and point challenges that may be met by Physical Education Theory (Pedagogic). Aiming this
purpose, after showing contributions and limits of M. Merleau-Ponty phenomenology, the present essay evinces some
peirceana semiotics conceptual basis (sign, semiosis and experience), and concludes suggesting a phenomenological-
semiotics perspective to the Physical Education which, through considering students and teachers as signs and interpreting
relations producers, may present alternatives to the “culturalist answer”.
Key words: Physical Education. Phenomenology. Semiotics.
KUNZ, E. Educação física: ensino & mudanças. Ijuí: Ed. SANTAELLA, L. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense,
Unijuí, 1991. 1983.
KUNZ, E. Transformação didático-pedagógica do esporte. 4. SANTAELLA, L. Teoria geral dos signos: semiose e
ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2001. autogeração. São Paulo: Ática, 1995.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social
Paulo: Martins Fontes, 1999 crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis:
MERLEAU-PONTY, M. O homem e a comunicação: a prosa Vozes, 1995.
do mundo. São Paulo: Cosac e Naify, 2002.
PEIRCE, C.S. Escritos coligidos. São Paulo: Abril Cultural,
1974. Recebido em 16/05/07
PEIRCE, C.S. Semiótica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1990. Revisado em 24/09/07
PIGNATARI, D. Semiótica e literatura: icônico e verbal, Aceito em 10/10/07
oriente e ocidente. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
Agradecimentos
Agradeço aos professores doutores Pierre Normando Gomes da Silva e Lúcia Helena Ferraz
Sant´Agostino, que me propiciaram o debate que fez surgir algumas das idéias aqui propostas.
Endereço para correspondência: Mauro Betti. Unesp, Departamento de Educação Física. Av. Eng. Luiz E. C. Coube, 14-01,
Vargem Limpa, CEP 17017-336, Bauru-SP, Brasil. E-mail: mbetti@fc.unesp.br