A Amazônia na visão dos viajantes: Séculos XVI e XVII
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A Amazônia na visão dos viajantes - Auricléa Oliveira Neves
• APRESENTAÇÃO DA 2.ª EDIÇÃO •
A segunda edição desta obra, revista pela autora, chega para atender à necessidade de estudantes, professores e interessados em conhecer com maior profundidade a Amazônia. A Literatura é a condutora, que nos leva até o período em que a região das Amazonas foi introduzida na História, que tem o europeu ocidental como referência. Esta obra tem como fontes principais de pesquisa: Descobrimento do rio Orellana, de frei Gaspar de Carvajal (séc. XVI), e Novo descobrimento do grande rio das Amazonas, do padre Cristóbal de Acuña (século XVII), que são narrativas de grandes viagens pioneiras feitas à região amazônica.
Além da análise que situa no tempo e no espaço as obras, no período de produção de cada uma, são feitas análises da inclusão delas no grupo de textos fundamentais da literatura de expressão amazônica e, também, no gênero Literatura de Viagem. Neste gênero, a ficção imiscui-se nos fatos narrados, criando uma narrativa na qual o imaginário se apresenta como um companheiro fiel. Neste, não é possível fincar barreiras intransponíveis entre os fatos e a ficção, o que lhe permite uma grandiosidade, verdade
e beleza singulares.
Esta é uma obra que, pela qualidade e rigor da pesquisa, pelas obras consultadas, pela fluidez da narrativa, merece constar nas bibliotecas dos interessados em literatura, história da Amazônia e pela inserção de povos tradicionais
na História.
Neiza Teixeira
é filósofa e autora de Para aquém
ou para além de nós
• INTRODUÇÃO •
ROTAS E TRILHAS
Os séculos podem variar e os cronistas serem originários das mais diferentes nacionalidades, no entanto, diante do rio e da mata amazônicos, quase genericamente, nenhum se isentou de externalizar sentimentos que variavam do primitivismo pré-edênico ao infernismo primordial. Ainda que familiarizados com a região ou mantendo o tom frio e distanciado de pesquisador, esse objeto móvel, essa natureza grandiosamente avassaladora, em algum momento fez com que esses homens parassem e a escutassem, e a sentissem, muitas vezes deixando para trás olhares já estruturados, visões já vividas, para pousarem os olhos renascidos na contemplação extasiada da grandiloquência natural.¹
Sob o título de A Amazônia na visão dos viajantes dos séculos XVI e XVII: percurso e discurso, apresentamos esta pesquisa com o propósito de refletir sobre a literatura de viagem e a Amazônia a partir de dois textos principais: Descobrimento do rio de Orellana, escrito por frei Gaspar de Carvajal (séc. XVI), que relata a viagem comandada pelo capitão Francisco de Orellana, e Novo descobrimento do grande rio das Amazonas, redigido pelo padre Cristóbal de Acuña (séc. XVII), que descreve a viagem chefiada pelo capitão Pedro Teixeira.
Para melhor compreensão dessas obras, buscamos contextualizá-las no tempo e no espaço de sua produção, investigar as circunstâncias históricas para sua elaboração e acrescentar um estudo analítico sobre aspectos do discurso de seus autores, além de incluí-las no grupo de textos fundadores da literatura de expressão amazônica, bem como entre a literatura de viagem, gênero textual híbrido que transita entre a literatura e outros campos do saber.
Pretendemos comentar sobre as expedições comandadas por Francisco de Orellana e por Pedro Teixeira, que percorreram o rio Amazonas, a partir da análise dos relatos elaborados pelos religiosos Carvajal e Acuña, respectivamente, observando alguns temas tratados em seus escritos. Do mesmo modo, serão verificados alguns aspectos que sirvam de referências para demonstrar convergências e divergências entre os dois discursos, além da contraposição de temas abordados nas obras de Carvajal e de Acuña, com textos de autores que trataram de objetos semelhantes.
Desta forma, as rotas, ora apresentadas, serão percorridas neste livro em três caminhos: Navegando pela teoria; A viagem de Carvajal e o século XVI; O século XVII e o Novo descobrimento do grande rio das Amazonas.
Na primeira trilha, a ser percorrida no I capítulo – Navegando pela teoria
–, abordaremos a literatura de viagem, à luz da crítica literária luso-espanhola. Além disso, serão analisadas duas historiografias literárias brasileiras, num corpus cronológico referente aos séculos XVI e XVII, período de florescimento da literatura de viagem sobre o Brasil.
Na segunda trilha, expressa no II capítulo – A viagem de Carvajal e o século XVI
– focalizaremos os escritos de frei Gaspar de Carvajal (1541/42) em função de alguns temas presentes no texto, sendo os principais a recorrência temporal, a nomeação de espaços e o mito das amazonas, além do estudo sobre a expedição de Francisco de Orellana, inserida no conjunto das viagens ultramarinas da Espanha.
Na terceira trilha, registrada no III capítulo – "O século XVII e o Novo descobrimento do rio das Amazonas" –, objetivamos discorrer sobre os escritos de padre Cristóbal de Acuña (1639), confrontar seu texto com o de Carvajal em razão de ter feito o mesmo trajeto deste, quase um século depois. Neste capítulo abordaremos, ainda, a expedição de Pedro Teixeira à região amazônica, como representante de Portugal, e a presença de Acuña, como cronista da Espanha, cujos objetos de estudo nesta crônica serão os aspectos gerais da terra e do homem, com seus desdobramentos.
Ressaltamos que o trabalho não pretende ser uma análise histórica da Amazônia, mas o estudo dos textos produzidos no início da ocupação do território pelo europeu. Datas, passagens, contextualizações dessa natureza servirão como referencial para discutir a literatura de viagem e Amazônia, haja vista que Amazônia e viagens são dois assuntos bastante discutidos e emergem como centro de interesse pelas razões constantes nesta introdução e ao longo do corpo dissertativo.
As viagens têm um profundo significado na história da humanidade, pois se realizaram até para a preservação da raça humana. Inicialmente, no período da coleta, as migrações foram feitas pela necessidade de buscar alimentos; posteriormente, elas foram realizadas à procura de locais apropriados ao bem-estar da comunidade. Outros objetivos também suscitaram o deslocamento do homem: a conquista de espaços territoriais, a exploração de riquezas, o conhecimento de novas terras, o estudo de áreas territoriais específicas, ou simplesmente a viagem como forma de lazer.
Outro exemplo significativo está registrado nas fontes documentais religiosas demonstradas nas páginas da obra mais lida do mundo, a Bíblia, cujo segundo livro, o Êxodo, narra a viagem do povo hebreu do Egito à Palestina, durante quarenta anos. Histórica e literariamente o Êxodo é o livro mais importante do Antigo Testamento por conter os elementos constitutivos do povo de Deus e da Antiga Aliança. Muitos temas, ali abordados, atravessam o Antigo Testamento e se plenificam no Novo Testamento, com a expansão do Cristianismo, através das viagens do apóstolo Paulo ao mundo pagão, cuja doutrina se difundiu por meio da epistolografia que manteve com os povos por ele visitados.
A historiografia literária revela que, no plano ficcional, vários autores no Ocidente, a partir de Homero, com a Odisseia, se dedicaram a usar as viagens como tema: Marco Pólo, As viagens – "Il milione"; Júlio Verne, A volta ao mundo em 80 dias; Viagem ao centro da terra; A jangada; Oitocentas léguas pelo rio Amazonas; Conan Doyle, O mundo perdido; Daniel Defoe, As aventuras de Robson Crusoé; Jonathan Swiff, As viagens de Gulliver; Lewis Carol, Alice no país das maravilhas. Na literatura de expressão amazônica, algumas obras exemplificam o assunto: Amazônia misteriosa, de Gastão Cruls; A selva, de Ferreira de Castro; Inferno verde, de Alberto Rangel, Chuva branca, de Paulo Jacob.
A obra de maior expressão poética em língua portuguesa – Os Lusíadas, de Luís Camões – é também tributária das viagens, haja vista que o desenvolvimento dessa epopeia tem como pano de fundo a viagem de Vasco da Gama à Índia.
Quanto a relatos de viagens no plano real, inúmeras obras foram publicadas ao longo do tempo e, apesar de algumas já serem bastante antigas, ainda continuam a despertar o interesse do leitor atual. Tal fato se comprova pelas reedições de obras de testemunho como: Diários da Descoberta da América, de Cristóvão Colombo; Os Conquistadores, de Júlio Verne; O Turista Aprendiz, de Mário de Andrade. Sobre as viagens à Amazônia, tem havido um crescente interesse do mercado editorial brasileiro contemporâneo, refletido nas recentes edições de clássicos dessa literatura, escritos entre os séculos XVIII e XIX: Viagem filosófica, de Alexandre Rodrigues Ferreira; Tesouro descoberto no rio Amazonas, de padre João Daniel e a A viagem pelo rio Amazonas, de Paul Marcoy.
Como podemos perceber, a produção literária se beneficiou desse assunto, sendo encontrada ampla bibliografia, em diferentes idiomas, sob formas de cartas, diários, relatórios, crônicas, dentre outros. Apesar do grande número de livros de viagens, a historiografia literária brasileira ressente-se, ainda, da falta de um conjunto de estudos crítico-teóricos sobre esse tema, que é tão recorrente nos cinco séculos da construção histórica e literária do Brasil.
Quanto à Amazônia, justifica-se a elaboração de estudos que aumentem o volume de textos acadêmicos sobre essa região do território nacional. Muitas questões sobre ela, inclusive sua história e literatura, são pouco discutidas, motivos que nos estimularam também a desenvolver esta pesquisa, pois é senso comum imaginar a Amazônia de forma pouco realística, permeada do exótico, ou simplesmente um gigantesco espaço desabitado, onde a vida em estágio primitivo pode ser observada.
Considera-se a Amazônia um complexo de identidade geológica, hidrográfica, climática, vegetal e animal. Esse conjunto natural pertence a alguns países da América do Sul, cabendo sessenta por cento ao território nacional brasileiro. Segundo dados internacionais, a Amazônia possui o maior banco genético mundial, um quinto da água doce do planeta e um terço das florestas do mundo. A Amazônia brasileira é formada, em sua maior parte, pelos Estados da Região Norte: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima, sendo o Estado do Amazonas o de maior extensão física, com 1.556.988 km², representando um quinto do território nacional.
O Estado do Amazonas, por onde corre a maior extensão do rio Amazonas, que é o objeto das viagens estudadas, tem grande parte de seu território coberto por florestas, com a concentração de mais de cinquenta por cento das reservas brasileiras. Sua fauna contém muitas espécies de peixes, milhares de aves e um grande número de mamíferos; a flora é exuberante e diversificada, estima-se que centenas de drogas medicinais ainda possam estar escondidas em suas plantas. Dada a extensão e ao volume de água do rio Amazonas, o Estado abriga os dois maiores arquipélagos fluviais do mundo – Mariuá e Anavilhanas. Essa riqueza natural atraiu o interesse internacional desde o século XVI, quando os europeus disputavam o domínio dos oceanos.
Diante desse cenário grandioso, vive o homem da Amazônia, na sua maioria caboclo. No entanto, convém explicitar a diferença entre o nativo da capital e do interior. O primeiro, não tem a mesma identidade com as matas, rios, lagos igapós, tal como o caboclo do interior que vive nas margens dos rios. O ribeirinho tem com o rio e a floresta uma atitude simbiótica, em razão dos dois elementos lhe oferecer o sustento material. É também da contemplação da natureza que o interiorano constrói seu mundo mental e mantém o equilíbrio emocional. Por tudo isso a literatura amazônica traduz o espírito desse homem tão imbricado ao mundo natural; desta forma, muitos textos poéticos são telúricos e percebemos o privilégio da descrição dos espaços geográficos, em detrimento de outros elementos da narrativa, na prosa.
Se refletirmos sobre as questões apontadas, sentimos a necessidade de preservação das riquezas naturais amazônicas, bem como de seus bens culturais, pois estudar a Amazônia é buscar a essência primitiva do homem brasileiro, é ter contato com a sabedoria indígena, é conhecer a peregrinação de homens impetuosos, que gastaram suas vidas à procura de lugares utópicos, onde a riqueza apagaria quaisquer marcas de fome, frio, perigo pelos quais passaram.
Estudar a Amazônia significa também trazer para as discussões acadêmicas a herança mitológica greco-latina mesclada com a indígena, que permeiam a história e a cultura de seu povo, constantemente desafiado a dividir o ceticismo da ciência, com os mitos das águas e das matas presentes no imaginário de cada um deles, como as lendas da Iara, da Boiúna, do Boto, o mito do Jurupari, dentre outros. Neste contexto, os relatos do século XVI, de frei Gaspar de Carvajal, e do século XVII, do padre Cristóbal de Acuña, se apresentam como textos fundadores da literatura sobre a região, cujos registros serviram de modelos para escritos posteriores.
Se muitos veem os relatos de Carvajal e Acuña como textos fantasiosos, contaminados pelo imaginário da época, não se pode desconhecer o seu mérito documental. E, diante da importância dessas obras como literatura de expressão amazônica, justifica-se a elaboração de trabalhos que propiciem o melhor conhecimento da vertente literária regional, em âmbito nacional.
Por outro lado, direcionar o estudo para a literatura de viagem é resgatar as raízes literárias do nosso