ARISTÓTELES E A POLÍTICA
FRANCIS WOLFF
tradução de
Thereza Christina Ferreira Stummer
e Lygia Araujo Watanabe
CONSULADO GERAL
DAFRANÇA/SP
MINISTÉRIO
DA CULTURA
!r 1
discurso editorial
Copyrigh t© hy Prcsscs Univcrsit aircs de Fram:c, 1991
Título original cm francês: Ari.1·tote et la polirique .
hl
discurso editorial
Av. Prof. Luciano Gualocno , 315 ("ala l033)
A intenção dos capítulos 10-11, 129
Aristóteles e a democracia, 131
A defesa da soberania popula r no Capítulo 11, 13 5
05508-90 0 - Sâ\, Paul11 - SP Os capítulos 12-13, 143
TcJ./Fax: (Oxxl 1) 814-5383
discursn@ l org. usp. br
A realeza (caps. 14-17) , 148
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153 Refer!n cias bibliog rdficas
Este pequeno livro não tem outra pretensã o além de preparar
ou acompan har a leitura da Política de Aristótel es. O Capítulo 1 é
uma apresenta ção geral desta obra, a partir da história - ou antes, da
pré-histó ria - do pensame nto político grego, seguida de um resumo
Da política até
analítico destinad o a facilitar seu acesso. O Capítulo 2 propõe um
comentá rio dos dois primeiro s capítulos da Política, ressaltan do seus
a Política de Aristóteles
objetivos próprios e ressituan do-os no quadro mais geral da filosofia
de Aristótel es; segue-se um breve apêndice sobre a teoria da escravi-
dão, exposta nos capítulos 4 a 7 do mesmo livro. O Capítulo 3 é con-
sagrado à análise do Livro III: é o livro fundame ntal, do ponto de Já se conseg uiu dizer que a filosofi a fala grego. É·
vista político, porque ali Aristótel es classifica e compara os diferente s possíve l. Em todo caso, é certo que a política , sim, fala
regimes. Veremos que daí se depreend e, em particula r, uma defesa sin- grego. Não se pode, com efeito, falar acerca de política
gular do regime "democr ático". sem a língua grega: "tirania '', "monar quia", "oligarq uia"·,
A escolha das passagen s em que nos concentr amos evidente - "anstocr
. " ", "pl utocrac 1a
ac1a .,,,(d
, .,, ... to do o nos-
emocra c1a
mente não esgota o interesse da Política: o sociólogo ou o historiad or,
so vocabu lário político saiu dela. E, em primeir o lugar, a
até mesmo o "politólo go", teriam sem dúvida privilegi ado o urros li-
vros. Escolhem os abordar a Política de Aristótel es por onde ela mais própria palavra política . A palavra tanto quanto a coisa.
marcou a história da filosofia política e por onde ela pode continua r a A política , de fato, a própria idéia de política , é o produ-
alimentá -la. to de um momen to singula r em que se cruzara m, em nossa
Depreen de-se uma cerra lição geral: a de que só há política história , dois frutos da história grega: um novo modo de
determin ada por aqueles aos quais ela é destinada . pensar surgido · por volra do século VI antes de Cristo,
As referências à Política são dadas, conform e o uso, da seguinte fundad o no livre exame e na interrog ação sobre o funda-
maneira. O número em algarism os romanos indica o livro; é seguido mento de todas as coisas, encontr ou um modo livre e novo
de um número em algarism os arábicos, indicand o o capítulo, e de-
de viver juntos, surgido no século VIII antes de Cristo,
pois do número da página da edição Bekker (a edição moderna do
texto de Aristótel es a cuja paginaçã o se referem todas as edições e
chamad o polis. Produto desse cruzam ento, a política é a
traduçõe s disponív eis), em seguida, da letra (a ou b), indicand o a prática da polis que se tornou conscie nte de si própria ,
coluna, e, finalmen te, da linha, dessa mesma edição. A tradução que ou, inversa mente, a investig ação sistemá tica aplicad a à
utilizamo s é a de P. Pellegrin, Aristote, Les Politique s, Coleção GF, polis. É, numa palavra , o livre pensam ento de uma vids-
Flammar ion, Paris, 1990. As referênci as aos outros textos de Aristó- livre. "Polític à' é, com efeito, uma dessas palavra s curio-
teles são dadas segundo essa mesma convençã o, utilizand o-se as se-
sas (como a palavra "histór ià') que designa m ao mesmo
guintes abreviações: Fís. para Física (edição francesa: Physique, trad.
de H. Carteron , ed. Les Belles Lettres); Met., para a Metafisica; Et. tempo uma "ciênci à' e o seu objeto: entende -se efetiva-
Nic., para a Etica a Nicôrnaco (Métaphy sique e Ethique à Nicomaq ue, mente por ela um conjun to de práticas às quais os ho-
ambas na edição francesa traduzida s por J. Tricor, Vrin). mens se dedicam para coexisti r, e também o estudo obje-
tivo dessas mesmas práticas . (Da mesma forma, a história
,---- --------
8 FRANCIS WOLFF
Da política até a Política de Aristóteles 9
Mac edôn ia, e as cida des terão perd ido sua auto
nom ia, os
é, que não deve m ser o privi légio exclu sivo de ning
greg os, num certo sent ido, já não "farã o" mais
polít ica. uém " 1,
Em todo caso , as gran des obra s do pens ame nto "tod as as ativi dade s relat ivas a um mun do com
polít ico um" , por
greg o (entr e as quai s, a de Aris tótel es) são aind opos ição àquelas "que conc erne m a· man uten çao - d a v1.da"2 .
a cont em- Assi m, "faze r políc icà', isto é, parti cipa r da vida
porâ neas da polis, a desp eito de certo s desc omp com um,
assa s cro-
noló gico s aos quai s volta remo s adia nte. não é, na époc a clássica, uma ativi dade entre
outr as pos-
Mas a polít ica não é apen as uma reflexão sobr e síveis: é a ativi dade nobr e por exce lênci a, a únic
uma a que vale
form a histo ricam ente data da ou uma sing ulari o sacri fício de sua vida . (Des prez a-se o nego cian
dade etno - te, o ho-
gráfi ca, a cida de: ela tem um esco po univ ersal mem que "faz negó cios" , isto é, negó cios priva
ou, ao me- dos. ) O
nos, gera l. E os "neg ócio s da cida de", para além dest ino de um jove m aten iens e só pode ria ser
das part i- a "carr eira"
cula ridad es da polis, têm uma exte nsão bem maio polít ica - que justa men te nada cem de uma carre
r do que ira. Po.r
para nós, mod erno s. Com efeit o, dize r "polí cicà' que uma cal valo rizaç ão? Há crês tipos de razão
, para nós, para isso ..
é asso ciar algu mas imag ens (cam panh as eleit Aco ntec e, em prim eiro luga r, que a idéia de
orais , lucas "su-
parti dária s, amb içõe s pesso ais) e algu ns aspe ctos cesso priva do" seria uma cont radiç ão num a civil
bem de- izaçã o que
finid os da vida socia l: há "hom ens polít icos" iden tific a o suce sso com os seus signo s: o hom
(pro fissi o- em supe ri-
nais) e outr os que não o são, assim com o há or é aque le reco nhec ido com o tal. A língu a greg
cléri gos e a desi gna
leigos; mom ento s polít icos e outr os que o são men com uma únic a pala vra os valo res reconhecidos,
os; even - justa men -
tos polít icos e outr os que abso lutam ente não te enqu anto eles se ofere cem ao reco nhec imen
o são, etc. to: kaios (=
Para os greg os, toda a esfer a da vida públ ica é, belo ) é dito de uma coisa , de uma ação ou de um
num certo hom em
sent ido, polít ica, e a esfer a priv ada é mui to mais que seja obje to de adm iraçã o, seja no plan o "mo
estre ita ral", seja
do que para nós: nem a "mo ral", nem a relig no "esté tico" . Civi lizaç ão da visib ilida de: a estat
ião, nem a uária gre-
educ ação das crian ças, por exem plo, estão fora ga leva ao seu apog eu a arte de ofere cer aos olha res de
do cam po to-
da polít ica. Não que "tud o seja polít ico" , isco dos uma form a adm iráve l que seja seu cent ro.
equi vale ria Na mes ma
a dize r que "nad a é polít ico", isto é, seria nega da époc a, os greg os inve ntam o teatr o ( tragé dia,
sua espe - com~d_ia),
cific idad e: o "eco nôm ico" , por exem plo, que que perm anec e o arqu étipo do espe tácul o: nele
para nós é tudo e visco
altam ente polít ico, perte nce para eles à esfer por todo s os lado s, tudo está man ifest o, e reves
a priv ada e te-se dos
conc erne à gestã o do patr imôn io (a pala vra vem sinai s exte riore s da visib ilida de; nele, o "pen same
de oikos, nto" está
que sign ifica "casa", prop rieda de). O terre no polít
ico per-
tenc e, para os greg os, ao koinon, o com um, e
"aba rca to-
1 J.-P. Vern ant, L'individu,
la mort, l'amour. Paris, Gal1imard, l 98~,
das as ativi dade s e práti cas que deve m ser parti p. 218,
lhad as, isto
2 H. Arendt. La condi tion de f½om me moder ne, p.
66.
12 FRANCIS WOLFF
Da política até a Política de Aristóteles 13
pete, fazen do eco: o dom ínio polít ico recob re "as mais
im- ouro da polis é o sécul o V; a da filoso fia, é o sécul
porta ntes e as melh ores coisa s hum anas " (451 d), o IV A
e não polít ica, no senti do de vida sob o teto da polis, porta
há bem maio r para o hom em do que conv ence r os nto,
outro s não coinc ide exata ment e com a polít ica, no senti
em qual quer reun ião de cidad ãos (452 d). Num a civili do de
za- refle xão sobre a polis: a filoso fia polít ica é a cons
ção do prest ígio, roda qual idad e (indi vidu al) é tradu ciênc ia
zida de uma form a que se acha no crepú sculo , como Hege
em supe riori dade (sobr e os outro s), e num a socie dade l já
sem indic ava. Em Aten as, no sécul o V, desco nfia- se das
mon arca (a polis), toda supe riori dade recon hecid a deve espe-
ser culaç ões teóri cas dos "filós ofos" sobre a Natu reza
tradu zida em pode r. É preci so inver ter a idéia mod e sobre
erna o Ser, e o prim eiro filóso fo da cidad e, Sócr ates, foi
segu ndo a qual o públ ico é o priva do posto em com con-
um, den~ do por ela à mort e. Tudo se passa como se, na
ou a polít ica do singu lar quan do coloc ado no plura idade
l. A cláss ica da cidad e, as exigê ncias da polít ica se opus
cidad e não é uma soma de indiv íduo s, é antes o essem
indiv í- às da filoso fia. A prese rvaçã o da cidad e não requ er
duo priva do que a prior i é pens ado como "redo bram outra
ento espe culaç ão além dos velho s princ ípios de uma
sobre si mesm o" do públ ico. A polít ica não passa da mora l
reali- prag máti ca, e, por cons eguin te, proíb e a do "livr e-pen
zação de si, uma vez que o "si" é relaç ão com o outro sa-
. dor" , o filóso fo: pens ar dema is, os deuse s da cidad e
A polít ica, cruz amen to do "pen same nto racio nal" o pro-
íbem ; pens ar bem dema is, é uma amea ça para o
e da polis, tem final ment e um terre no tão ampl o, que equil í-
seus brio entre cidad ãos (veja-se a instit uição do "ostr acism
limit es conf unde m-se com os limit es do hum ano, o");
e um pens ar difer ente dema is, é uma amea ça para a harm
valor tão emin ente, que de certo mod o engl oba todo onia
s os da cidad e (veja m-se os nume rosos proce ssos "anti intel
outro s valor es. Pode ríam os esper ar então que, do ec-
enco n- mais " do sécul o V). Os pouc os pens ador es polít icos
tro da form a mais livre do pens amen to, a filoso fia do
(que sécul o, como Protá goras , são "estr ange iros" em Aren
não tem de dar satisf ações a nenh um mest re, a não as,
ser a si onde são perse guido s e indic iados por "imp iedad e";
mesm a), com a form a mais livre da vida com um, como
a polis tamb ém o são algun s filóso fos da natur eza, que, a
(que por sua vez tamb ém não dá. satisf ações a nenh exem -
um plo de Anax ágora s, tenta m fazer carre ira em Aten as.
mest re, a não ser a si mesm a), nasc eu a filosofia polít Com
ica, Sócr ates, num certo senti do, tudo mud a, e, num
que teria sido afina l a realiz ação idílic a de uma e da outro
outra senti do, a contr adiçã o filos ofia- polít ica torna -se extre
em sua união . ma.
Tudo mud a, porq ue ele é, ao mesm o temp o, cidad
Não foi bem assim . De fato, entre filoso fia e polí- ão ate-
niens e e filóso fo, e mesm o filóso fo por excel ência ,
tica, tudo se passo u, ao contr ário, como se tives se havid e, por
o, excel ência , o filóso fo da cidad e. Mas o divór cio filóso
desd e o início , um imen so mal- enten dido . O desco fo-
mpas so cidad e ating e seu pont o máxi mo: não some nte pela
das datas de seus apog eus respe ctivo s o atest a: a idad con-
e do dena ção de Sócr ates à mort e, mas por sua vida, cuja
no-
16 FRANCIS WOLFF
Da política até a Política de Aristóteles 17
Des se mo do, os oito livr os apa rec em Vê- se ent ão que a Política é um con
em qua tro qua dro s jun to de estu -
situ ado s em dua s linh as: dos var iado s nos qua is os gên ero s
se mis tura m, em que
• O con jun to dos livr os rea gru pad mu itas disc ipli nas (filo sofi a ou "ciê
os na linh a sup erio r ncia s pol ític as", soc io-
con stit ui um a teo ria dos fun dam ent log ia ou hist ória , eco nom ia ou ant
os da polí cica . rop olo gia soc ial) po-
•A lin ha infe rior rea gru pa os livr os dem enc ont rar sua s orig ens , e nas
que con stit uem o que qua is pod erã o mu ito
se den om ina ger alm ent e com o "bl bem ter- se insp irad o Mo nte squ ieu
oco real ista ''. ou Rou ssea u, Ma rx ou
• O qua dro nor oes te cor resp ond e Ma qui ave l, M. We ber ou H. Are ndt
aos livr os de "fil oso fia . Os hist oria dor es do
pol ític a" no sen tido estr ito do term pen sam ent o gre go pro cur ara m com
o. Con stit uem a me - freq üên cia dar con ta
lho r intr odu ção à pol ícic a aris toté lica des sa div ersi dad e pelo esti lo das obr
e, até mai s gen e- as de Ari stót eles que
rica men te, aos pro ble mas da filo sofi che gar am até nós (sab e-se que não
a pol ític a. Um de- são trat ado s des tina -
les (o Liv ro I) trat a dos dife ren tes tipo dos à pub lica ção , mas nor as de aula
s de vid a soc ial, o s, mai s ou me nos
out ro (Liv ro III) trat a dos dife ren red igid as e sem fÍÚvida reto mad as em
tes tipo s de reg ime s mo me nto s dife ren -
polí cico s. É prin cip alm ent e ao con tes do ens ina me nto de Ari stót eles
teú do des ses livr os no Lic eu) e por um a
que con sag rare mo s o rest ant e des tas evo luçã o do pró prio pen sam ent o de
pág inas . Ari stót eles : é um a das
• No qua dro sud oes te, no cru zam ten dên cias dom ina nte s da crít ica do
ent o de um dire cio na- séc ulo XX , apó s os
me nto des crit ivo e de um mé tod o infl uen tes trab alh os de W. Jaeger. A
pos itiv o, ach a-se .o reu niã o des ses livr os,
Liv ro IV, que rea gru pa estu dos que na ord em que con hec emo s hoj e, dar
cha mar íam os, em a pro vav elm ent e da
term os mo der nos , de soc ioló gico s. edi ção tard ia do Cor pus aris toté lico
três séc ulo s apó s sua
mo rte, e com isso era ten tad or par
a os eru dito s pro por
26 FRANCIS WOLFF
Da política até a Política de Aristóteles 27
Qua lque r que seja a dara de sua com pos Livro II Estudo crítico das melhores constitu
ição , este ições
livr o, situ ado em prim eiro luga r em noss
as ediç ões, está Este livro som ente se liga ao prec ede nte
no seu dev ido luga r, pois disc erne o fun por algu -
dam ento e a es- mas linh as fina is do Livr o I (126 0 b 20-4
sênc ia de toda vida polí tica , reco loca ndo ), que talv ez te-
-a no inte rior de nha m sido acre scen tada s pelo s edit ores
outr as form as, mai s elem enta res, de vida anti gos, preo cu-
soci al. Os dois pad os em dar a imp ress ão de con tinu idad
prim eiro s capí tulo s, que são esse ncia is, e entr e dois livros
serã o anal isad os tão opo stos em espí rito com o em con teúd
em noss o próx imo capí tulo . Ent reta nto, o. Des ta vez,
estu dos part icu- Aris r6re les con cen tra suas anál ises na mel
hor man eira de
vive r poli tica men te, isto é, sobr e a mel hor
politeia, a me
lhor "con stitu ição ". Nes te livr o, con tent
7 Prop omo s estes títul os de capítulos e de
a-se com uma
livros para facilitar sua anál ise críti ca de con stitu içõe s exis tent es,
leitu ra. Evid ente men te, não são de Aris aqu elas que exis-
tótel es. tem em teor ia nos proj etos dos gran des
refo rma dore s po-
28 FRANCIS WOLFF
Da política até a Política de Aristóteles 29