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Bailarino - Pesquisador - Intérprete

©1997 Copyright by Graziela Rodrigues

A pesquisa deste livro contou com o apoio da Bolsa Vitae de Artes


Impresso no Brasil! Printed in Brazil

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional


ISBN 85-85781-46-6

Todos os direitos reservados


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Ci/berto Vi/ar

Coordenacáo de Edicóes
Ana Fanfa

Divisáo de Texto
lven Junqueira

Producáo Editorial
José Carlos Martins

Assistente Editorial
Marí/ia Comes

Edicáo de Texto.
Frederico Comes

Revisáo Técnica
Edmi/son de A/meida Pereirá
Mariada Consolecéo G. Cunha F.Tavares

Projeto Gráfico
Va/éria Pergentino

Capa e Desenho
Enéas Cuerra

Fotografia da Capa
Larissa Turte/li e Oanie/a Ku/m
Espetácu/o Oiante dos O/hos - 7996
Catalogacáo-na-fonte
Foto Oanie/a Pamp/ona Funarte - Departamento de Pesquisa e Documentacáo

Rodrigues, Graziela Estela Fonseca


Bailarino - pesquisador - intérprete: processo de
forrnacáo / Graziela Rodrigues. - Rio de Janeiro:
Funarte,1997.
179 p. : lot

Bibliogralia.
ISBN 85-85781-41-6

1.Danca - Brasil. 2Danc;:a ritual. 3Danc;:a - Metodologia


1. Título

CDD·792.80981
A vida e a danc;a .
Séo dádivas de Oeus
Cabe a cada um
Saber conduzi-Ias
Maria Padilha

-_o

e¿'~~---:::-~ __ -=----=-;;=

o paradoxo nessa história de descobertes, e também de


ocultementos, diz respeito a alguém teimosamente nao
descoberto: o brasileiro que nem eu ...
Marlise Meyer
.,
SUMARIO

APRESENT A<::AO 11
INTRODU<::AO
l. ALGUMAS QUESTOES FUNDAMENTAIS 23
2. DE QUE CORPO BRASILEIRO SE FALA:
A FONTE, A ESCOLA, O REFERENClAL 27
3. ESTRUTURA FíSICA 43
Anatomia simbólica 43
O movimento das partes 46
Partes inferiores - As raízes do mastro 46
Os pés 47
Os joelhos 48
A pelve 49
Partes superiores - O movimento do estandarte 51
A coluna 51
O tronco 53
Os membros 54
4. AS PASSAGENS DO SENSíVEL - O MOVIMENTO INTERIOR 63
5. CARACTERíSTICAS DA LlNGUAGEM 75
Fatores essenciais da linguagem 75
Os sentidos no corpo 75
O pulso 76
Atos de impelir, pontuar e fluir 77
Dinámicas específicas 78
Ginga 78
IncorporajDesincorpora 81
6. ELEMENTOS CONFLUENTES 89
Tocar-cantar: pronúncias do corpo 89
O ato de investir-se 92
As construcóes do espac;o-tempo 95
Paisagens e cenários 96
Desdobramentos coreo gráficos 100
7. OLHANDO POR UMA FRESTA 125
O corpo trabalhado 125
O "diabo" e o santo 128
Na Gira da Pomba Gira, a danca de Maria Padilha 131
8. O PROCESSO DE CONSTRU<::AO DO
BAILARINO-PESQUISADOR-INTÉRPRETE 147
CONCLUSAO 153
ANEXO 181
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS 182
INTRODU(AO
-

A construcáo do bailarino-pesquisador-intérprete foi organizada a partir de duas


fases inter-relacionadas. Na primeira fase, vivenciei a crise em relacáo ao meu
conhecimento sobre danca, que incluía o tránsito nas áreas de danca c1ássica, moderna,
a
contemporánea, de técnicas ligadas dinámica corporal e de técnicas de interpretacáo
teatral.

Essa relacáo de crise nao significou a rejeicáo dos conhecimentos anteriores, mas
a sua reinterpretacáo a partir da interacáo com minhas descobertas pessoais e com os
conhecimentos adquiridos nas pesquisas de campo sobre manifestacóes culturais
brasileiras. Da pesquisa de campo com as mulheres candangas' de Brasília - após a
interacáo entre minhas descobertas pessoais com o universo da realidade investigada
- desencadeei a forrnulacáo da linguagem do corpo do bailarino-pesquisador-intérprete.
O resultado final desta fase foi a montagem de vários espetáculos, entre os quais,
Crece Bailarina de jesus, Coreciio Vermelho le 11.
Na segunda fase do Processo de construciio do bailarino-pesquisador-intérprete,
desenvolvi o seguinte roteiro (ver capítulo 8):
- autoquestionamento do bailarino sobre a sua relacáo com o corpo e com a
própria danca:
- realizacáo de experiencias iniciais com manifestacóes culturais brasileiras em
laboratório;

- contato direto do bailarino com as fontes em pesquisa de campo;


- retorno ao laboratório para articulacáo do trabalho criativo.

É bom observar que as etapas acima podem ser entremeadas por outras decorrentes
das exigencias de cada bailarina. O Processo está sujeito ao acréscimo de outras
etapas após a elaboracáo do trabalho criativo, isto na medida em que se encaminhe
para a constituicáo de um corpo vivo, flexível, individualizado e aberto as diferentes
realizacóes da danca.

As referencias que farei quanto a trajetória pessoal, deve-se ao fato de o Processo


do bailarino-pesquisador-intérprete ter sido instaurado em meu próprio corpo.
A minha forrnacáo na área da danca foi marcada pelo rigor da disciplina. Enquanto
externamente seguia todos os passos da formalidade da danca (iniciados em 1967),
interiormente meu corpo era uma tormenta, pois os questionamentos galopavam além
do que o físico poderia saltar, girar, expressar. Uma grande porcáo de sensacóes e
sentimentos nao cabiam naquele carpa que eu construía. Afinal, o que era o meu
carpa? O que era o corpo do outro instituído para ser o meu modelo?
.A busca foi sem fronteiras: na danca, no teatro e nas minhas atuacóes como bailarina
e coreógrafa, querendo eu crer que as res postas poderiam estar nas técnicas e
linguagens. As perguntas nao respondidas se agruparam em uma só: Sou ou nao uma
intérprete?' A rota indicava uma procura no interior da bailarina.

As experiencias profissionais vividas na Europa (1977/1978) indicaram urna questáo


fundamental sobre a relacáo da cultura de um país com a própria criacáo artistíca. Em

17
Israel a danca exercia um forte papel aglutinador de identidades. Na Espanha, període
em que convergiam artistas de nacionalidades variadas, eram evidentes as diferenciacóes
culturais em meio a um anseio de unificacáo dentro da arte. A minha própria adesáo
a estes movimentos e os convites recebidos para a permanencia de trabalho nestes
países inquietaram-me ainda mais quanto a uma res posta a pergunta sobre a rninha
própria identidade cultural.

Diante de realidades internas - que cada vez mais impulsionavam o meu corpe
para a construcáo de um caminho próprio - retornei ao Brasil, especificamente Bra-
sília, com o objetivo inicial de implantar um projeto compartilhado com outros
profissionais.' Findo o projeto coletivo, cuja maior importancia foi a troca de experiencias
num nível de igualdade de relacóes, via-me num estado que exigia novas resolucóes
individuais.

Os sentidos acusavam nitidamente que um processo se desenvolvia. Encontra a-


me sob forte pressurizacáo do que até entáo havia vivenciado. Uma necessidade, qUE
poderia dizer vital, impelia-me a colocar a prova minha efetiva resposta como intérprete..
O que este corpo - (o meu) depois de tantas voltas e reviravoltas, possuidor de
habilidades técnicas e expressivas - teria a deflagrar com organicidade na criacáo
artística? Neste momento eu abria rnáo de tudo o que já havia construído para
obter a resposta. A busca de uma personagem apresentava-se como um carninho
porém, a procura através de textos foi em váo, pois tudo se apresentava muito
distante da minha própria realidade, de minha necessidade de me localizar. Esta
conjuntura trouxe a conviccáo de que a personagem estava viva nas ruas, incitando 2
pesquisa da mulher candanga.

A torea do momento e a conviccáo intuitiva indicavam a imediata realizacáo da


pesquisa, nao fazia sentido a sistematizacáo de um projeto e nem tampouco havia
tempo para a busca de financiamento. O momento exigia uma entrega por inteirc
para viver a experiencia, com liberdade de acáo. Mostrava-se coerente o seguinte
procedimento: A bailarina "construída" se "desconstruiria" na medida em que fos e
interagindo com o universo, da pesquisa. Para tal, era necessário uma acuidade na
observacáo dos fatos sern nenhum tipo de interpretacáo. A vivencia de campo e a
escrita de diários consistiram nas únicas atividades a serem desempenhadas sem, a pti-
ori, determinar por quanto tempo. A proximidade geográfica foi o que determinou a
escolha da mulher candanga, uma vez que a necessidade era colocar meus pés ne
encalco de uma personagem em "carne e osso".

A pesquisa de campo: nas viagens de ónibus urbanos que partem darodoviária do


'Plano Piloto (Brasília) para as cidades Satélites encontro um grande número de mulheres
trafegando. No meio delas perrnaneco observando, sem nenhurna crítica o
interpretacáo, com todos os sentidos abertos e um referencial interno de neutralidade
e concentracáo absoluta. Durante as inúmeras viagens de ónibus, identifiquei que as
mulheres eram, quase que na sua totalidade, empregadas domésticas. Segui uma delas
no Plano Piloto, que acabo u sedirigindo a uma agencia de empregos doméstico.
Passei a freqüentar a agencia, procurando permanecer a mais incógnita possível.

Nunca me perguntaram quem eu era, também nao havia perguntas de minha parte
e isto foi gerando uma cumplicidade. 6..intimidade foi levando-me a aprender o corpo-
sentido destas mulheres, que eu ~9m~<,:ava \I~ga~osa:rné[lte a:¡:eceher-oo-Dleu-CO.L o.
Os pés sujos de barro que el as teimavam em esconder, tamanho era o gesto de encobrir
que ressaltava as vistas. Elas percebem e sáo tomadas de tanta vergonha que se revoltarr
contra a miséria. Por isso, Diante da vida do pavo soirido, a gente nao fala, s6 sabe
calar; esquece as ideías do pavo sabido e fica humilde, comece a pensar ...

18
Um mundo de dor, de lutas, de desencantos ao lado de uma torea de vida e de uma
forte crenca mística ia sendo revelado nesta experiencia de campo. Uma história de
grande desilusáo era concluída com frases como: Mas eu tenho a toree da Pomba-Cira,
ou a noitinha minha sereia penetra a fresta de meu barraco, cheia de luz trazendo
um recado.
Abria-se um "novo espaco" : os terreiros de umbanda e vários outros espacos
freqüentados por essas mulheres. Passei a co-habitar com a fonte, como nos faz pensar
Carlos Mesters em A parabóla da porta:

Entrando pela porta da frente, olhava a riqueza e a beleza da casa de um angulo


novo que ainda nao conhecia ... A casa revelava coisas lindas que os livros nao
ensinavam e as máquinas nao descobriam ... Passava a ser conhecido e acolhido pelo
POyO que nao distingue as pessoas que nele se tnisturem?

Foram tres meses de intensa convivencia diária, até odia em que na agencia de
empregos uma madame, como quem escolhe uma roupa, revistou a fileira de mulheres
a
dos pés cabeca e me apontou: "Escolho essa". Finalizava a principal etapa da pesquisa
de campo.

De volta ao espaco da sala de danca. antes táo familiar, a sensacáo que me vinha
era de um enorme vazio. Os laboratórios, conduzidos pelo ditetor", tiveram como
referencia os diários de campo. Pouco conversávamos e com um mínimo de palavras,
ele propunha acóes e situacóes em cena.

No início o corpo nao respondia, mas aos ROUCOS foram emergindo registros
emocio .ais.,.-SDmá1óLi~do...universo vivenciado na esquisa de campo corn a minha
ró ria memória afetiva. O corpo foi assumindo várias sensacóes e configuracóes
decorrentes das imagens de lugares vividos em campo e das imagens "desconhecidas"
situadas em mim mesma. Estas imagens conjugadas apresentavam uma nova
configuracáo de paisagem - espaco onde se desenvolvem experiencias de vida, que
se instaurava no corpo.

Esta fase continuou até odia em que me foi perguntado sobre a revelacao do
nome da personagem. Ou seja,ela cornecava a nascer, síntes~de tod.as as mulheres
da pesq,uisa.~Os dados da personagem que vinhamem laboratório apresentavam uma
coeréncia considerável em relacáo ao universo em questáo, Graca, foi o no me escolhido
para a personagem, fato que marcou a inauguracao de sua existencia no espaco do
corpo que deveria dancar a realidade das mulheres candangas. Esta Graca, em meio a
tantos sonhos, carregava o sonho de bailar.

O resultado, síntese de um fértil processo, foi apresentado na forma de espetáculo:


"Graca Bailarina delesus ou Sete Linhas de Umbanda, Salvem o Brasil".' O seu prin-
cipal significado está na diferenciacáo da maneira em que atua o bailarino-intérprete:
há uma dádiva do sujeito, ele está inteiro em cada fragmento da cena, o conteúdo do
es etáculo a p rte de e. No entrela amento su·eito-l2ersona em.ahailariu r.la~
preta, mas vive no_seu corpo a vida dimensionada pelo espetáculo, sern es! i~6es.

De toda a experiencia do espetáculo "Graca Bailarina de Jesus", onde se somaram


várias pesquisas complementares, trabalhos técnicos e outras etapas até a sua síntese
final, ressaltaria como fase principal a lncotporecéo da personagem. A personagem é
fruto da pesquisa de campo, do co-habitar com a fonte e do que esta vivencia despertou
no próprio intérprete. No trabalho de laboratório, o corpo do bailarino-intémrete_pBssa
a assumir um corpo imag·nário "como se nao íos e_o dele';,_gerand,9 uma liberdade
e expressáo e uma permissividade na da !;.a_d~l2erimentar a íala e...Q.Santü2rna
preocu a ao ae resQon.der a padróes conveocionadcs.>-

19
A danca passa a se organizar a partir de uma história que vem da personagem . ..9
corpo está a servic;o de uma idéia onde o bailarino-intér[2rete ens:o tra-se-sem-o-
tolhimento de ser aguele momento o ue realmente é. Tornam-se cristalinas as suas
necessidades, passando a ter um referencial de continuidade de trabalho quanto a
arnpliacáo de seus recursos técnicos de uma forma mais sensivel.
A saída do espaco e do tempo (delimitados principalmente pelo universo da danca)
para entrar numa realidade circundante, passando a ver de dentro de uma cultura a
margem da sociedade brasileira, significou um eixo de contato para que o meu corpo
sofresse interacóes. Aí se encontram as bases que propiciaram desenvolver uma linha
de trabalho do intérprete na danca.
De início eu via o trabalho de Brasilia como uma experiencia iso lada. As experiencias
profissionais que se seguiram foram de questionar o próprio trabalho e verificar, na
prática, certas maneiras de chegar ao processo do intérprete. Duraram pouco estas
experiencias. O processo estava instaurado organicamente, querendo-o eu ou nao.
Logo eu estava de volta as pesquisas de campo, que foram ininterruptas. As dancas
ritualísticas exigiam uma investigacáo mais profunda do movimento, conduzindo-me
ao estudo das artes orientais chinesas no sentido de compreender vivencialmente a
utilizacáo do movimento interno dos circuitos de energia.
O rigor da técnica passou a ocupar o es paco da intencionalidade, por estar
intimamente ligado a elaboracáo cada vez mais exigente da performance e a uma
superacáo dos próprios limites do bailarino-intérprete. Os treinamentos técnicos
cotidianos tornaram-se mais instigantes, pois havia ocorrido uma rnudanca.di foco. A
téCñT"ca qüI'ilii"
uro:caráter de pesguisa,_possibilitando o refletir-m~ e o ter. em vários
momentos, insights do desenvolvimento do Processo.
O aperfeico arnento pessoal como intérprete levaram-me a um constante
aprofundamento nao apenas das técnicas do corpo, como também da voz e da
interpretacáo aliadas as pesquisas de linguagens cénicas.
A criacáo de espetáculos, junto a minha atuacáo como intérprete, sempre significou
a integracáo de vivencias. Vivi na própria pele umas tantas "mulheres obscuras", bem
ditas por Cora Coralina, provindas de universos urbanos, suburbanos e rurais do Brasil.
Elas me ensinaram a rebojar. O rebajo é a parte do rio ande as águas se agitam,
rodando, pela presence de uma parte funda e afunilada de pedras. O perigo denunciado
é

pela efervescéncia das águas, cuja egitecéo atinge a superficie. Quando algum objeto
ou pessoa cai no rebajo, vem él tona, rodando, antes de desaparecer. Rebajar é
exatamente sair do fundo do rebajo até a veia d'água. (Núbia Comes)."
Por volta de 1986 percebi a importancia deste trabalho na área da danca. Decidi
abrir rnáo da minha carreira enquanto intérprete, para perseguir e desenvolver esta
idéia de um Processo onde o bailarino nao se encontra na condicáo de objeto, mas na
condicáo de sujeito. Realizei uma ampla reflexáo das minhas vivencias como bailarina-
pesquisadora-intérprete, elaborando as principais sínteses. Estruturei os princípios fundamen-
tais provindos das rnanifestacóes populares brasileiras, até entáo pesquisadas, vindo a
criar um instrumental técnico de danca para o trabalho de sala de aula baseado na
decodificacáo dos elementos essenciais que estruturavam este corpo. Sáo também
considerados os aspectos simbólicos contidos nas dancas de rituais brasileiros e a
importancia de se fazer o resgate da história pessoal. Para a aplicacáo prática foram
criadas dinámicas diversificadas, incluindo-se a quebra dos espacos convencionais da
danca, direcionando o trabalho para a pesquisa de campo e laboratórios.
Os projetos que decorreram a partir desta fase, visaram a arnpliacáo das pesquisas
de campo das manifestacóes populares brasileiras, tendo o objetivo de decodificar
este universo a partir da visáo do intérprete."

20
--~-

A experiencia que tenho vivido desde 1987, enquanto professora da Unicamp,


no Departamento de Artes Corporais, tem trazido gratificacóes incalculáveis, advindas
do contato com os "novos" bailarinos. A abertura do Processo, fundamentalmente,
proporcionou a estes alunos olharem em nova dirnensáo sua danca enquanto a
intérprete-sujeito. É através deles que a cada dia de trabalho o Processo vai sendo
desenvolvido e sedimentado. Os resultados térn sido demonstrados em diversas
sínteses de pesquisas na forma de espetáculos como: Bailarinas de Terreiro, Interiores,
Diante dos olhos, entre outros. A satisfacáo reside nao propriamente nos bons
resultados destes espetáculos, mas no que estes vérn possibilitando enquanto
exercício para os seus intérpretes, pois eles estáo germinando.

A questáo do bailarino-intérprete continua sendo o principal eixo de meu trabalho.


Sao atributos do bailarino-intérQrete a condicáo de estar l,ib€JrtQde-estilo e.tácnicas,
porém sem destituí-los •. A instrumentalizacáo do corpo deve cr~ndi!.;6es para
ue o bailarino sejj! um "n¡:gar:üs¡:¡;¡o vivo"-;:prüñto a respouder..ao conteúdos
emergentes da realidade l2essoal e da realidade que o cerca ..

Considero as manifestacóes populares brasileiras, que contenham o sentido de


resistencia cultural, a moldura onde irá ocorrer o desenvolvimento do bailarino-
intérprete que se encontra na contingencia inerente de também ser pesquisador.
Como afirma Harvey Cox: "Nao podemos enxergar realmente uma coisa quando ela
preenche totalmente nosso horizonte visual. Precisamos dum anti-horizonte contra o
que projetar o seu perfil. O fundo ou campo visual representa um elemento essencial
na percepcáo. Necessitamos de uma moldura"." Fez-se necessario penetrar esta
moldura, isto é, co-habitar com estas fontes de nossa cultura, quebrando preconceitos,
abrindo-me interiormente para relacionar-me com um mundo onde a devocáo vivida
e expressa pelo corpo é uma habilidade de sobreviver como ser humano.

No meu caminho como intérprete houve uma ruptura em funcáo dessa nova
idéia que surgiu de minha própria vivencia nesta caminhada. Por alguma coisa que
se deve resgatar, abro-me para novas rupturas, pois o caminho do intérprete assim
me tem ensinado. Nao se trata de uma pesquisa com princípio, meio e fim, pois nao
foi premeditada, nao foi planejada neste sentido. Ela foi feita dentro de uma história
de vida, onde a Danca está inserida.

Sit!:1ado o_Qgilarino em seu~cootex.to-yivencial €l-R(;Qr.¡tra-se a.passagern que


conduz ao seu dese voJ",im_eoto~oOJo_intéLp.ret,e. A evolu<;ao dé! Qan<;a de ende
de seu wcesso.

NOTAS

1. Os candangos, assim sJo chamados, vieram desbravar acompanhou todo o processo, tendo sido o diretor do
. uma nova terre, sem heroísmo, e ainda hoje lutam nessa espetáculo Graca Bailarina de jesus .
paisagem de concreto e beleza futurista. Dentro dessa
massa de sub-empregedos, as domésticas (mulheres 7. Apresentar;:i5es realizadas:
candangas) constituem um dos segmentos mais Tenda Santo Antonio - Salvador, 7980
numerosos e problemáticos. Teatro Xango Ayra do Ceboclo Itajaci (Casa de
Candomblé) Brasília, 7980.
2. Saliento a importancia dos trabalhos desenvolvidos no Teatro Dulcina - Rio de jsneiro, 7980
Ballet Stagium pelo diretor teatral Ademar Guerra, no Teatro Dulcina - Brasília, 7980
ano de 1975, dos quais participei como aluna, pois Teatro Goiénis - Goiénis, 7980
levantaram questi5es profundas sobre a funr;:Jo do Teatro Ruth Escobar - SJo Paulo, 1980
intérprete na dence.
8. Edmilson Pereira - Rebojo, 7995.
3. O ensaio teatro danr;:a - Escola Núcleo de Pesquisa e
Producoes Artísticas. 9. O projeto 'Trilhes e Veredas da Danr;:aBresileire" (7 987)
ineugurou esta fase, contando com o imprescindível apoio
4 e 5. Carlos Mesters - "A Parábola da Porta" - Por trás do lAMA (Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, 5.P.).
das Palavras, 7984
7O. Harvey Cox-é. Festa dos Folióes - um ensaio teológico
6. O diretor teatral joJo Antonio de Lima Esteves sobre festividade e fantasía, 7974.

21
1. ALGUMAS QUESTOES FUNDAM~NTAIS

A fragrnentacáo do corpo freqüentemente é apresentada no bailarino como uma


conseqüéncia de sua própria forrnacáo. A aquisicáo de habilidades físicas está cen-
trada no seu anseio em dar uma resposta ao modelo que Ihe é proposto. Uma auto-
imagem é construída pelo bailarino a partir da modelagem física - que é externa a sua
própria pessoa - e a cada dia ele a assume como sendo sua, sem questioná-la. O
bailarino rejeita o próprio corpo para dar espaco ao que é idealizado. Ainsatisfacáo e
o vazio, decorrentes de tal empreendimento, sáo compensados pela 'seguranca que
este caminho oferece, pois a medida que o bailarino obedece as instrucóes de
comando, direcionados pelo modelo, ele alcanca a esperada res posta que é aceita
socialmente.

Neste contexto, o bailarino chama a si próprio de Instrumento e situa a Danca num


espaco onírico e distante dele próprio. Na afinacáo do Corpo-Instrumento, onde a
Danca irá se realizar, a história e os sentidos mais profundos da pessoa do bailarino
devem estar ausentes porque interferem no equilíbrio das formas perfeitas. Esta pro posta
de fragmentacáo do corpo remonta aos tempos de Platáo:

Durante todo o tempo em que tivermos o corpo e nossa alma estiver misturada
com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! ...
O corpo de tal modo nos inunda de amores, peixoes, temores, imegineciio de toda
sorte, enfim, uma in fin ida de de bagatelas, que por seu intermédio ( sim verdadeiro
é o que diz) nao recebemos na verdade nenhum pensemento sensato, nao, nem
uma vez sequer?
A tradicáo dualista de Platáo, carpo e alma, reverbera na Danca.

A questáo nao é refutar as técnicas e as linguagens oficializadas, mas reavaliar sua


imperativa utilizacáo em detrimento dos demais aspectos do corpo. O presente trabalho
tem como questáo fundamental a nao fragrnentacáo do carpo dobailarin...o. -
- -- - - - -

Situamos a danca como atividade em que vários carpos se integram para gerar
conhecimentos no ámbito do sensivel, do perceptível e das relacóes humanas a partir
de um contato direto com a realidade circundante. O distanciamento e a fuga de si
mesmo empreendidos pelo bailarino sáo substituidos pelo conflito - o ato de o bailarino
encarnar-se a si própio.

Uma vez que o físico, o vital, o indivíduo psíquico se distinguem apenas como diferentes
graus de integrecéo, na medida em que nao deixa mais operar nele sistemas de condutas
iso lada s, sua alma e seu corpo nao se distinguem meis?
A liberdade de acao, "sem projeto", sem "academicismo", configurou um aspecto
essencial para a construcáo do Processo de forrnacáo do bailarino-pesquisador-
intérprete. Como se ele fosse adquirindo vida própria, aguardou-se a maturacáo de
suas sínteses, pois, imprimir-Ihe uma diretriz, impondo-Ihe interpretacóes, resultaria
um outro trabalho que nao este. Ao "abrir rnáo" do caminho oferecido pela forrnacáo
adquirida, houve uma inversáo na própria conduta do bailarino-pesquisador-intérprete,
pois tais conhecimentos sofreram transmutacóes decorrentes do que as fontes
ensinavam. -Portanto, nao•.......•.••...
houve perdas
----. e sim arnpliacáo de recursos.

23
As pesquisas de campo situam-se como fontes, onde o corpo retrata a sua
história, entrelacando festividade e cotidiano, numa integridade de ser de cada
um. Ao cohabitar com a destituicáo de máscaras, as relacóes de identidade do
corpo tornam-se inevitáveis.

Ao falarmos de uma anatomia simbólica utilizamos o mastro votivo por sintetizar a


unidade deste corpo, presente no cotidiano e constantemente firmado nas celebracóes.
O corpo torna-se mastro, quando concretiza as suas relacóes de ser humano e ser
divino, inteirando-se de que ele ocupa um espaco, ao mesmo tempo em que está
muito além do que sua própria forma reproduz.

As referencias do inconsciente coletivo trafegam pelos espacos festivos das


manifestacóes populares brasileiras, tendo um exemplo bem fundamentado na
Umbanda. Daí a sua importancia na pesquisa. Dentre os arquétipos, enunciados pelas
suas entidades, escolhemos dois para cobrir e descobrir aspectos fundamentais: Exu
por situar-nos no que seja a exeléncia do movimento e Pomba Gira por identificarmos
em seu arquétipo o nosso bailarino-pesquisador-intérprete.
('- ab.Qrdagg,Dl...Q.uefazemos do cor o brasileiro, retirada das fontes d€-f.>@&EftH-5-a,
resulta numa técnica integr,a.da..aes-sentiEies. Esta constitui a base de desenvolvimento
do Processo, prepara o corpo do bailarino, ou melhor, os seus corpos e também
favorece o seu "olhar" em interacáo com a pesquisa de campo. Na continuidade do
Processo dá-se a etapa do cohabitar com a fonte, que é seguida do processo criativo
em laboratório onde as Manifesta<;6es Populares Brasileiras sáo o foco, e o enfoque é
a própria pessoa do bailarino.
Prosseguindo na construcáo do bailarino-pesquisador-intérprete, a etapa
lncorporacáo da personagem representa a sua principal chave. A per~o~age~ a
provedora dos as ectos enc ottad~m sua realidade. S us gestosSofrem.elabora<;6es
para ue re u te numa resposta poética em movimento. Na etapa de apresentacáo
pública dos resultados, o espetácu o, tanto o potencial como os limites do bailarino-
pesquisador-intérprete estáo evidenciados. Quanto ao público, cada pessoa vivencia
o trabalho no nível em que está preparado para rece be-lo.

Os resultados obtidos, relacionados aos bailarinos que vivenciaram o Processo,


deram-se principalmente quanto él descoberta de seu potencial e de uma autonomia
quanto a sua conducáo. A consciencia de seus preconceitos, o questionamento de
valores, a aceitacáo de seus conflitos e a identificacáo de que o modelo encontra-se
dentro deles, produziram um sentimento por eles traduzido como de~r co o
corpo vivo". O "olhar" e <LQrganicidade do movimento passaram a s~r um referencia]

-
incor orado iJ:1Cle~eL1Lnte do cami ha g,l.le viessema seguir.

Até o último instante do fechamento das sínteses as fontes de pesquisa apresentaram


novas circuntáncias, ora reforcando, ora ampliando o que já havia sido apreendido
pelo bailarino-pesquisador-intérprete. As pesquisas realizadas sobre o Congado e a
Umbanda, dentre outras manifestacóes, estenderam-se a muitos grupos e lugares. Os
principais focos de convívio e aprendizado foram a Comunidade dos Arturos (M.G.),
desde 1987, e o Terreiro de Umbanda Pai Joaquim de Aruanda e Boiadeiro de Minas
(DF), desde 1980. Nas últimas visitas a estes núcleos, imprimiu-se uma sintonia em
nossas relacóes com os pesquisados, como se juntos estivéssemos escrevendo algumas
páginas deste livro.

Nao alimentamos a ilusáo quanto él posse total destas fontes, nem da linha de
pesquisa. Isto significaria cristalizar-nos, perdendo o fluxo que possibilita ir adiante.
Vislumbramos rupturas - resguardando as esséncias - e transtormacoes que no
momento devido a vida irá impulsionar. Isto porque "O mundo nao é aquilo que eu

24
penso, mas aquilo que eu vivo, comunico-me com ele, mas nao o possuo, ele é
inesgotável. Há um mundo, ou antes, Há o mundo"?

Anunciamos a nossa impotencia quanto a um relato nao fragmentado do trabalho,


pois no momento de uso da palavra, muitas coisas ficam por serem ditas, e outras sáo
impossíveis de dizer, poi s residem no silencio dos sentidos.

NOTAS

7. Platao - Os pensadores, 1972. 2 e 3. Maurice Merleau Ponty - Fenomenologia da


percepcáo, 7994.

25
2. DE QUE (ORPO SE FALA:
A FO N TE, A ES( O LA, O RE FER EN'( IA L

Falamos de um corpo que se encontra amargem da sociedade brasileira, porém, é


este mesmo corpo um receptáculo do inconsciente coletivo. Dentre as tantas ex-
press5es este corpo capta o sagrado, que faz-se presente em meio as contigéncias do
profano. A sua manifestacáo, fruto de integracóes, aprofunda o significado do que seja
A Danca.

Na procura da trilha de uma danca com identidade, enveredamos por um Brasil


onde semelhanc;as espantosas de menitestecoes culturais tecem sua rede por toda a
extenséo do país. Aquilo que ulteriormente se confundia com folclore, e, mais ainda, se
identificará como cultura populer' Perfurando a muralha da cultura oficial, encontramos
uma escola de raros aprendizados.

No percurso de busca deste corpo brasileiro foi impossível nao considerá-Io no


momento em que canta, fala, manipula os objetos (incorporando seu s significados),
percorrendo caminhos, refazendo e recontando uma história em intíma relacáo com a
identidade pessoal e coletiva. A integracáo de todos os aspectos mencionados, resulta
numa unidade de todo o corpo e o movimento apresenta qualidade altamente
expressiva. As fontes de estudo foram os indivíduos e comunidades onde aportavam
estes sentidos, frutos de uma resistencia cultural. Houve grupos em que restavam apenas
resquícios de uma determinada rnanifestacáo e a resistencia cultural era apenas
lernbranca. O movimento apresentava-se difuso e pouco delineado, exigindo um esforco
maior e mais detalhado em sua observacáo. Estas fontes auxiliaram na cornprovacáo
de dados levantados nas outras localidades, onde havia a integridade da manifestacáo.

Ousamos falar deste corpo a partir dos aprendizados vividos nas pesquisas de
campo. É importante salientar que cada manifestacáo apresenta especificidades, em
cada regiáo ela é peculiar e cada grupo é único na sua expressáo. Apresentamos,
portanto, uma síntese, pontuando aspectos fundamentais, que foram comuns e
marcantes. Cada referencia enunciada contém desdobramentos que seria impossível
expor neste primeiro relato.

No conjunto de pesquisas realizadas constam a Umbanda, o Candomblé, a Capoeira,


o Congado, o Maracatu, a Folia de Reis, do Divino e outras Folias, o Batuque e várias
dancas regionais. Ressaltamos também os ciclos do Divino, havendo em algums deles
as Cavalhadas e os ritos agrários, como a Festa do loáo do Mato ou Festa de Capina.
Das comunidades pesquisadas, tivemos poucos contatos com a comunidade indígena
Xavante e um largo tempo de convívio com a comunidade negra dos Arturos. Dos
universos femininos consideramos, principalmente, as bóias-frias e as benzedeiras. As
pesquisas estiveram centradas no Distrito Federal, em Sáo Paulo, em Minas Gerais,
seguindo-se Goiás e Mato Grosso. Ocorreram também contatos relevantes na Bahia,
Pernambuco e Rio Grande do Su!' Houve manifestacóes de outras regi5es do país que
foram contatadas através de Mestres Populares, fora de suas localidades.

As pesquisas apresentam vários conteúdos (culturas negras, européias, indígenas)


irmanadas pela discrirninacáo. Nas senzalas, nos terreiros, nos campos descobertos e
encobertos ocorreu uma mescla cultural. Foram afinidades e necessidades que

27
proprciararn a corpos distintos encontrarem urna manifestacáó em comum. Portanto,
em solo brasileiro germinou uma diversidade cultural, fruto da condicáo de oprimido,
elaborada e criada nas infinitas redes das relacóes humanas. Ressaltamos a nossa heranca
negra pela sua influencia como forca de resistencia e também como doadora e receptora
de diversas formas de expressáo.

O Congado está presente em várias regióes brasileiras, sendo o estado de Minas


Gerais onde o encontramos com maior abrangéncia. Em torno do culto a Nossa Senhora
do Rosário, e dos vários santos de cor como Sáo Benedito e Sta. Efigénia, o Congado
se desenvolveu. Sua prinéipal dinámica diz respeito a
presenca de grupos distintos'
chamados de guardas, juntamente com os reis e rainhas, que representam a encarnacáo
das toreas divinas. O Candombe (palavra que significa danca sagrada), antecede na
hierarquia a todas as guardas, sendo considerado o grupo mais antigo do Congado.
As guardas de Congo e de Mo<;ambique destacam-se nas rnanifestacóes do Congado
em Minas, fudamentados no seguinte mito:

Nossa Sénhora veio do mar nas ondas, indo e voltando. O pavo branco e poderoso fez
rico altar e armou andar para levar a miie de Deus él casa dos homens. Mas a imagem
se afastava, mar adentro, recusando a oferenda dos fortes. Em vño 05 brancos usaram
recursos para conduzir a santa él Terra: enquanto se aproximavam e tanto mais o faziam,
mais ela se distancia va. Os escravos pediram licerice para cantar él beira do oceeno,
batendo seus tambores para a' Senhora. A ingenuidade do pedido provocou nos
fazendeiros tanto a zombaria quando a irriteciio: que traga m a imagem, se ousam crer-
se capazes de mové-Ia. Ou que sejam castigados pelo nao reconhecimento de sua
insignificancia.
O primeiro grupo que se aproximo u da beira-mar foi o congo, com seu canto ligeiro e
forte. Ouvindo-os, a imagem encaminhou-se em sua direciio, num pequeno movimento
de eproximeciio. O congo fez Nossa Senhora mover-se mas, após o deslocamento iniciar
a imagem se deteve. Foi entiio a vez do lamento do Mocembique, que chamou a miie
do céu lenta e pausadamente, pedindo-Ihe para se aproximar pela voz dos instrumentos
e pelo ritmo suplicante do canto. E essim, como o movimento dos negros
mocembiqueiros, a Virgem vinha virido, vindo e vindo até chegar él areia da praia. Mas
ali a imagem foi recolhida pelos Senhores broncos e levada él sua igreja, ande foi adorada
e louvada até a noite.

SÓ até a noite: pela manha, o oratório denunciava o desgasto da santa pela morada. E
novamente o canto do Mocembique foi buscá-Ia para, entiio desta vez ~ transformá-Ia
na Mae Santa dos Negros. No altar ande colocaram, a imagem permaneceu e permanece,
aguardando a religiosidade dos seus filhos primeirose puros, que sabem amá-Ia com o
carpa que dence e com a alma que cbore?
Ao Congo e ao Mo<;ambique uniram-se outros irrnáos, as chamadas guardas de
Marujos, Caboclinhos, Cavaleiros, Catopés e Viláo,

Focalizando a Comunidade Negra dos Arturos.' presenciamos o Congado como a


forca aglutinadora dos seus membros. A raíz do Congado déles foi o pai Artur quem
deixou. Para os Arturos o Congado tem o sentido de compromisso sagrado com os
ancestrais, com o "tronco véio" que veio da África através de escravos. O Moc;ambique
e o Congo dos Arturos enunciam pelo canto Nossa Senhora, Sáo Jorge Guerreiro,
Xangó, Sereia do Mar, Marinheiro e tantas outras entidades e santos.

No território dos Arturos, durante as festas do Congado, várias guardas sáo recebidas,
vindas de diversas regióes de Minas. A irmandade é uma combineciio bonita por causa'
da festa, fala-nos José Artur. A festividad e reúne todas as diferencas, sem distincóes.
No espaco descoberto, ao mesmo tempo, dezenas de grupos expressam suas devocóes,

28
entrecruzando sonoridades, cánticos e instrumentos os mais diversos. Marujos falam
com o corpo que danca o desequilíbrio em alto-mar; os Congos através do fluxo livre
de seu s dancantes abrem e dinamizam o espaco: a centracáo e a firmeza dos corpos
dos caboclos tracarn no espaco, através do movimento, suas insígnias; a densidade e
o clamor dos corpos dos moc;ambiqueiros traduzem pelo movimento, em consonancia
com o canto, o lamento. Num único contexto desenvolvem-se linguagens distintas e
cada movimento provém de uma funcáo. A reuniáo de todos os grupos é o que
caracteriza a Festa do Congado. .

Encontramos alguns terreiros de Umbanda que consideram a época do Congado a


festa dos Pretos-Velhos. No Terreiro de Dona Efigénia, em Belo Horizonte, neste período,
além dos médiuns que incorporam as entidades de Pretos-Velhos, estáo presentes os
grupos de Candombe, de Congo e de Moc;ambique. Além destes, presenciamos em
uma de suas festas, outros grupos, como a representacáo de uma comunidade indígena
Guarani através de um Xarná e um grupo de capoeiristas. Em torno dos mesmos mastros
votivos de Santa Efigénia, de Sáo Benedito e da escrava Anastácia desenvolviam-se
diferentes vozes e movimentos num ato único - o de reverenciar. A memória africana
no Brasil é evidente nas tantas rnanifestacóes onde se inter-relacionam diferentes
raízes culturais.

A Umbanda, nitidamente brasileira, é portadora de uma complexidade e riqueza


simbólica em constante elaboracáo. Em cada lugarejo do território brasileiro o terreiro
de Umbanda ocupa um espaco, segundo uma identidade própria. As pesquisas nos
levaram a considerá-Ia, como um importante referencial para a cornpreensáo do corpo
expressivo das Manifestac;6es Populares Brasileiras. Comumente é caracterizada como
movimento umbandista, cuja origem remonta aos processos religiosos das quatro etnias
(vermelha, negra, amarela e branca).
A Umbanda nos revela urn grande contingente de entidades, as que provérn do
panteáo africano (os orixás), as da Europa, do Oriente até chegar aos originários de
terras brasileiras, camo os Boiadeiros, Caboclos, Marinheiros e Baianos. Agrupados na
banda da direita ou da esquerda, demonstram significativamente os dois lados de uma
mesma face, pois é característica da Umbanda o médium ou o cavalo receber tanto
entidades de uma "banda" quanto de outra. Sáo polaridades cantidas em um única
carpo, o que irá denotar plasticidade no desempenho das acóes corporais.

Através de uma única entidade podemos observar as misturas culturais que se


entrelacarn e que em seguida sáo transformadas para adquirir nova roupagem no
carpo.

Acompanhamos a trajetória da Pomba Gira Maceió, num terreiro do Centro-Oeste,"


cujas atuacóes e histórias muito condizem com a seguinte referencia:

Exu mensageira, ponte entre Europa e Recife, com desvio por Angola. Pomba-Cira, filha
da feiticeira ibérica tradicional, revista pelo Portugal escravista e confirmada pela Colonia,
onde tornou a cruzar mandingueiros e cigenos?

A evolucáo da Pomba Gira Maceió culminou com a sua passagem para uma outra
linha, a dos Caboclos. Vejamos um momento de sua identidade como Pomba Gira:
portando sete saias, que váo da chita a
seda, calcando saltos altos e usando muitos
adornos no corpo Maceió realiza os movimentos de Ijexá (proveniente do Candomblé),
dedilhando suas castanholas ao som do atabaque. Também se desfaz de suas saias, de
seus adornos, descalca os pés e realiza movimentos despojados. A representacáo da
Pomba Gira é exatamente esta construcáo e desconstrucáo, sem nenhuma censura
estética, onde todos os elementos sáo possíveis nas diferentes linguagens em que se
t;)' nt
Rompendo os limites espaciais do terreiro de Umbanda, os arquétipos enunciados
pelas entidades umbandistas habitam outros territórios de manifestacóes. No Maracatu
Rural de Pernambuco, os Caboclos de Lanca nos dizem de uma protecáo feminina,
entidade que pelas suas descricóes muito se assemelha a Pomba-Gira. Encontramos
muitos elementos referentes a Umbanda, seja a representacáo de alguns de seu s
arquétipos ou de algum conteúdo principalmente enunciado através de seus pontos
(cánticos) nos Congados, nos Bois, nas Folias e em outros folguedos. O inverso também
ocorre, ou seja, algumas representacóes específicas, relacionadas as dancas e as músicas
de várias rnanifestacóes, presentificam-se dentro da Umbanda.

Os espacos das manifestacóes possuem fronteiras flexíveis. Os Candomblés e outros


'1
ritos afro-brasileiros recebem em suas casas os diversos folguedos, antes destes irem
para as ruas, como sáo os Bois em diversas regióes, Outro aspecto diz respeito ao
próprio indivíduo. A necessidade de se inserir dentro de um ciclo festivo faz com que
a pessoa ou grupo participem de distintas manifestacóes no percurso do ano. Desta
forma, dá-se uma cornposicáo de linguagens corporais que sáo enriquecidas pela
integracáo dos diferentes elementos. Porém, há a predomináncia de uma das linguagens,
que estará mais fortemente impressa no corpo do indivíduo, independente da
manifestacáo de que esteja no momento participando. O que irá particularizar esta
evidencia no corpo é muito mais uma escolha de alma do que uma estética escolhida
para o corpo.

No dia em que eu motré, eu fa/ei com a minha família, pelo amor de Deus, eu quero
Conga do. As caxas bateno e me puxano, e me levano, e me entregano lá no cemitério.
Dexa a matéria lá, mas a minha alma, essa vai ficá dentro do Conga do.

Este depoimento de Joaquim (Capitáo de Mo<;ambique, do Congado dos Arturos)


condiz com o que expressava o seu corpo. Em meio a diversidade de linguagens que
seu corpo dominava era o Mo<;ambique a sua expressáo maior. No ritual agrário, festa
do loáo do Mato, o Capitáo Joaquim substituía o bastáo pela enxada, porém, por
detrás do Ioáo do Mato atuava o corpo rnocarnbiqueiro.
A manutencáo desta cultura, bojo de rnanifestacóes, envolve comprometimento.
Os mantenedores sáo personificados como pai, rnáe, avó, avó, padrinho, madrinha,
mestre ou capitáo. Estes condutores repassarn para aqueles que se fizerem escolhidos
os segredos e a história contidos na manifestacáo. A repassagem exige o compromisso
sagrado com a continuidade.

Ao pé do cruzeiro o Capitáo de Mo<;ambique relembra o antigo Capitáo que já se


foi. Ao pé do berimbau o capoerista torna presente a memória dos antigos mestres. O
Boi Janeiro de Rubim (Vale do Jequitinhonha) entra no cemitério saudando os mestres
do Boi, companheiros folióes que ainda sáo. Os corpos se movem por uma forte
lernbranca ancestral. A cada momento do presente o passado é resgatado e ao futuro
interliga-se, resistindo as dificuldades quando o corpo junto com O "outro" - o da
memória afetiva - realiza o movimento que se duplica pela forca da rnanuntencáo.

O compromisso com o sagrado situa-se pela necessidade de pertencer a um mundo


maior do que o aparente, de conviver com o cosmo, com a grande roda do mundo.
Impelido pela devocáo ao santo, entidade ou orixá o corpo realiza a memória afetiva,
elaborando representacóes simbólicas e a danca é a síntese deste percurso interior.

A danca exerce a funcáo de revivificar a memória, construindo-se a partir dos próprios


sentidos da festividade. Isto porque A festividade é um período reservado para a
expressiio plena dos sentimentos, admitindo inclusive o elemento trágico. Uma afirmac;ao
da vida e a alegria a despeito dos fatos de fracasso e morte. Reconhecimento e superecio
de realidades negativas"

30
Para adentrarmos neste Corpo Festivo é necessário considerarmos as épocas de
preparativos que antecedem as festividades e também o cotidiano das pessoas envol-
vidas nas celebracóes. No período que circunda os dias especiais, o corpo encontra-
se num estado de prontidáo, portanto, perspicaz e alerta. Ocorrem pequenos movimen-
tos, sutis, que estáo ligados as funcóes e a linguagerri da festividade ou ritual a qual
pertence o indivíduo. José Artur carreia o gado e carreia a bandeira do Congo, a
devocáo que seu corpo expressa é construída nos dois espacos temporais, o do
cotidiano e o da festividade:

Odia em que eu nao sinto o cheira do gado eu edoeco. Denco na guia cetreendo a
bandeira do Congo.
Dentro de um contexto e de um lugar, o ritual é realizado com o sentido de que o
corpo se torne disponível ao recebimento de toreas. que estáo dentro do próprio
indivíduo e além dele próprio.

A extensáo emocional que o corpo expressa é ampla. De um profundo recolhimento,


percorre várias gradacóes emocionais até a catarse. Nesta gradacáo emocional, de
variadas matizes, sáo contundentes os momentos em que o próprio corpo se une a
outros corpos: Quando denco o outra em mim dence. Há o instante único em que
este encontro ocorre, enunciado pelo momentum do movimento forte, preciso e com
alto grau de energia. O indivíduo está sob intenso registro emocional. Outra referencia
é a perda momentánea do próprio corpo para o recebimento de outro corpo, o da
entidade. Na passagem do perder e do ganhar, o corpo apresenta uma cornocáo e em
seguida se reorganiza, se reequilibra para transformar-se em nova configuracáo - o da
entidade que recebeu.

Uma única manifestacáo contém várias categorias de dancas e cada uma delas
apresenta uma linguagem específica de movimentos, que é comum a todos os
dancantes. Porém, a forca que o movimento coletivo apresenta nao está na uniformidade
e sim na individualidade através da qual cada dancante rece be o movimento em seu
corpo. Podemos dizer que a linguagem coletiva é uma matriz que se mantém viva
devido as peculiariedades e aos significados que cada pessoa imprime ao movimento.

Em relacáo a estas matrizes que comp6em as dancas nao há como precisar suas
origens a partir de referencias culturais transplantadas. A exemplo do Batuque, as pesquisas
de campo realizadas em diversas regi6es nos forneceram uma grande variedade de
dancas que eram consideradas pelos seus "intérpretes" como sendo o Batuque. Em
alguns lugares o Batuque tinha um caráter profano, chamado de Bizarrias; em outros, de
Batuque Sagrado. Alguns Batuques chegam a aproximar-se da danca flamenca em muitos
aspectos, principalmente pela sernelhanca em alguns sapateios. As características comuns
encontradas nos Batuques de Bizarrias foram: a predornináncia da forrnacáo de roda e
de pares, uso do sapateio e das palmas, e a mencáo da umbigada. Antigas batuqueiras
revelaram que a umbigada se perdeu nos tempos. Os sentidos de sensualidade e
sexualidade estavam presentes todo o tempo, porém de forma dissimulada. A presenca
de jogos amorosos, conquista e desafio induziam a várias características na composicáo
dos movimentos na danca. Os Batuques Sagrados foram realizados diante do Altar ou
do Congá, já interligados com outros ritos.

Cada batuqueira que encontramos apresentou um fragmento do Batuque em seus


corpos e muitas histórias provindas da lernbranca. Porém, nem todos os dados conduzi-
am a uma única trilha, ficou a impressáo de que em algum momento o Batuque tenha
se constituído de uma rnanifestacáo completa em contexto amplo. Há hipóteses de
que sé origine dos ritos de fecundidade e, desta forma, o Batuque nos remete a génese
da danca.'

31
A referencia de antigüidade foi incisiva em todo o percurso das pesquisas de campo.
Um foliáo da Bandeira do Divino Espírito Santo, em Turmalina (M.G.L quando
questionado sobre a origem de sua folia, respondeu: Ah dona, isso vem do comeco
do mundo.
Os interiores brasileiros ainda redescobrem em suas festas os cenários antigos e
medievais, onde o homem mergulha nos mistérios de suas raízes essenciais. Nas
Cavalhadas de Pirenópolis (Goiás) identificamos o arquétipo Cavaleiro como sendo o
"engrazamento:" do cavaleiro Mouro com o cavaleiro Cristáo. No jogo das argolinhas,
quando a prenda foi conquistada, um cavaleiro Mouro abriu os bracos e estendeu-se
horizontalmente 50b o cavalo, com o olhar e projecáo de todo o corpo abertos para
o céu. Ao mesmo tempo o cavaleiro Cristáo, após a sua conquista, desceu do cavalo,
fez a genuflexáo, benzeu-se e em recolhimento dirigiu o olhar e todo o corpo para a
terra. Observamos que cada rnanifestacáo nos ensina uma especificidade de dinámica.
O exemplo das cavalhadas - cujo desfecho conduz ao congracarnento entre Mouros
e Cristáos - nos demonstra a uniáo de polaridades através de dois corpos.

A concretude deste corpo, porque matéria e alma, nos ensina que a danca é
conseqüéncia de umas tantas interacóes cuja chave é a memória do afeto. Assim,
penetrar nos simbolismos do Boi, significa morrer e renascer, devolvendo ao corpo
vitalidade. A capoeiragem, que sofre o corpo, significa que o movimento terá torea de
acáo estratégica.

Para que o movimento se desenvolva, a todo momento se interpóe a oposicáo as


resistencias. As rnudancas de valores, refletidas principalmente nos jovens, cada vez
mais intercepta a repassagem de conhecimento dos antigos mestres. Como nos diz
Antonio, o Capitáo de Candombe: Prá comandar o Candombe tem que ter intui~ao e
esta intuicéo está acabando. Porém, o antigo Mestre de Maracatu, Salustiano, apesar
de cansado de sua solidáo no comando, resiste: " Dá vontade de parar mas dá vontade
de teimar". É, portanto, esta nossa cultura caracterizada pela tensáo das oposicóes,
configurando o seu próprio sentido de existir.

NOTAS

7. Marlyse Meyer-Caminhos do Imaginário no Brasil, presentes nos vários outros terreiros, porém, de
1993. forma fragmentária. Outra característica foi o
dinamismo de trsnsiormecéo presenciado neste
2. Núbia Comes e Edimilson Pereira - Negras raízes terreiro, havendo continuamente novas entidades e
mineiras: Os Arturos, 7988. conseqüentemente navas ritos. 05 rituais e
3. Comunidades dos Arturos - Contagem (MC) entidades foram evoluindo conjuntamente para uma
As pesquisas realizadas nesta comunidade foram nos "performance" cada vez mais elaborada. A
anos de 7987, 7988, 7995 e 7996. Fizeram parte do continuecéo da pesquisa neste terreiro ocorreu nos
Projeto Trilhas e Veredas da Oanr;a Brasileira, cons-tando anos de 7982, 7985, 7988 e 7995. No ano de 7988
de uma ampla documentecéo, estudo e análise. Senda houve o ritual de passagem (ou despedida) da
esta cqmunidade portadora de diversas manifestar;i5es e entidade Pomba-Cira Maceió. No mesmo ritual, após
possuidora de um caráter de resistencia cultural, a desincorporecéo de Maceió, o médium recebeu
represento u um dos mais importantes núcleos de uma nava entidade Pomba-Cira, uma determinada
aprendizado. Maria Padilha. Seguiram-se novos desenvolvimentos,
cujas sínteses fecharam-se no ano de 7995.
4. Terreiro de Umbanda Pai joaquim de Aruanda e
Boiadeiro de Minas - Brasília (OF). 5. Marlyse Meyer - Maria Padilha e toda a sua quadrilha:
As pesquisas neste terreiro iniciara m-se no ano de de amante de um rei de Castela a Pomba-Gira de
7980, tendo como principal fonte o pai de santo Carlos Umbanda, 7993.
Alberto da Costa. Entre as várias entidades que ele
6. Harvey Cox - A Festa dos Foli6es - um ensaio
incorpora va, a Pomba-Cira Maceió foi rigorosamente
teológico sobre festividade e fantasia, 7974.
estudada, servindo esta pesquisa, junto a outrss, como
base para a crieciio do espetáculo Crar;a Bailarina de 7. Núbia Comes e Edimilson Pereira - Negras raízes
jesus. mineiras: os Arturos, 7988.
Nos anos que se seguiram, a presenr;a da
Umbanda nas pesquisas foi incisiva e marcante. Os 8. Nas Cevetbedss de Pirenópolis a palavra
diversos terreiros pesquisa dos apresentaram muitos engrazamento é freqüentemente utilizada para
aspectos que referendavam o terreiro de Carlos, significar os vários momentos coreográficos em que
evidenciando sua clareza, diversidade de entidades há o encadeamento das filadeiras formadas pelos
e de linguagens corporais. Estes aspectos estavam cavaleiros.

32
3. A ESTRUTURA FíSICA

Consideramos como estrutura física a forma pela qual o corpo se organiza para
realizar diversas categorias de linguagens de movimento.

A análise e decodificacáo da estrutura física e dos movimentos das partes do corpo


ocorreram dentro de algumas manitestacóes populares brasileiras. Além dos fragmentos
de dinámica, comumente considerados "os momentos da danca", consideramos as
acóes que permeiam os rituais.

Os procedimentos de estudo foram:

1 - observacáo e aprendizado dos movimentos junto aos mestres populares durante


a pesquisa de campo;

2 - análise a partir dos registros emvídeo realizado em campo;

3 - aprendizado a partir da atuacáo de personagens provindas das pesquisas.

A experiencia do olhar associada ao fazer (vivencia no próprio corpo) representou


uma constante. Realizou-se os desdobramentos de cada movimento, considerando-se
as partes do corpo envolvidas, as quantidades de esforcos empregados, a qualidade
do fluxo gerado e outras análises do corpo na acáo e na inacáo. Tudo isso teve como
objetivo apreender as configuracóes e significados do corpo. Relacionando-se as
linguagens de movimentos das diversas manifestacóes foi sendo possível identificar
uma única estrutura física.

O critério de observacáo, em cada pesquisa, desenvolveu-se com o sentido do


"olhar novo", procurando-se nao cristalizar as referencias provindas das análises e
decodificacóes de pesquisas anteriores. Assim sendo, a leitura do corpo ocorreu a cada
momento da pesquisa. As conclusóes que apresentamos sáo decorrentes de dados que
persistiram ao longo das pesquisas e foram evidenciados na prática do movimento.

Refor!;.amos a ic:J~de gue esta_estrutura..estará mai~Rlicitada na medida em que


k¡ manifestacóes rituais. Os sentidos através dos quais a
o indivíduo estiver integrado __
E§ssoa interliga-s~agr,adüra ·mQulsjonam l2i':.a reagir sim -:DlIcame te. Perce6eñl"os
que a qualidade da estrutura física possibilita o recebimento do campo simbóliCO,
bem como_a_sensJ Uidade na_qpleenSao dos-símbolos faz corn que.o corpo chegue a
ganhar esta estrutura.

A danca na cultura popular está inserida num amplo contexto, indo além do que
consideramos o enquadramento coreográfico. As linguagens se distingueQ1 porém, a
maneira coJJJ.oo corpo se dis ~se estrutu@ dentro as manifestac;oes populares
brasileiras muito seassemelham.

Anatomia simbólica
A partir de uma intensa relacáo com a terra o corpo se organiza para a danca.
A capacidade de penetracáo dos pés em relacáo ao solo, num profundo contato,
permite que toda a estrutura física se edifique a partir de sua base. A imagem que
temos do alinhamento é de que a estrutura possui raízes.

43
Através da posicáo paralela dos pés, segue-se o alinhamento de toda a estrutura
óssea e a musculatura é trabalhada acompanhando o seu próprio desenho, em es-
piral. No alinhamento, pretendemos respeitar o espaco articular e a ampla mobilidade
de cada uma das articulacóes.

A estrutura absorve osimbolismo do mastro votivo, enunciada pelo estandarte que


representa os santos de devocáo. A parte inferior do mastro liga-se a
terra e a parte
superior interliga-se com o céu. O corpo representa o próprio mastro festivo, em torno
do qual ocorre o circuito energético. Com esse simbolismo o corpo assume a
configuracáo de sua forca psíquica.'

Na parte inferior do corpo-mastro, além do intenso contato dos pés na relacáo com
o solo, a regiáo do sacro exerce a sua forca em favor da' gravidade através do cóccix.
Como se se prolongasse até os pés, localizado no meio deles, o cóccix possibilita
uma terceira base. Em decorrencia destas irnagens a acáo recorrente deste fincar mastro
é representada pela conseqüente elevacao das cristas illacas.

As articulacóes coxo-femurais apresentam-se desprovidas de tensáo e a pelve,


"apoiada pelos ísquios", encontra o seu lugar no ponto intermediário da estrutura
física. Através da imagem do cóccix a pelve participa do alinhamento do eixo-mastro.
Os joelhos e os tornozelos - ao mesmo tempo em que favorecem a descida para a
terra, com algum nível de flexáo - apresentam-se sustentados. Como uma árvore - no
duplo sentido do mastro que une o alto e o baixo - penetrando a terra, o corpo
possibilita que a seiva percorra pelo seu tronco.

A parte superior corpo-mastro está simbolizada pelo estandarte, mobilizando o


etéreo espaco a
sua volta e para além dele próprio. A partir da coluna o externo
centraliza o estandarte. Como um tecido que se abre e fecha, a regiáo do externo
mobiliza o espaco do emocional. Os bracos e as rnáos interagem na construcáo do
mastro e da bandeira dinamizando as energias que estáo acima. O ventre centraliza o
encontro das toreas, funcionando como a parte da rnanutencáo. A coluna vertebral,
que na sua parte inferior firmou o mastro na terra, na parte superior galga os céus
impulsionando-se para o cume do mastro.

As energias do solo e as energias do alto percorrem o corpo-mastro. O circuito


energético canaliza a forca para partes específicas do corpo, quando estas se tornam
evidentes na condueño do movimento.

O cruzamento de energia - relacáo do lado direito superior com o lado esquerdo


inferior e vice-versa - fortalece o centro do corpo, promovendo um alto grau de
equilíbrio e um sentido de unidade (participacáo global do corpo no movimento).

A estrutura quando se mantém numa aparente inacáo revela o momento em


que o movimento interno mais fortemente se processa. Observa-se pulsacóes,
pequenas mudancas expressivas e no momento seguinte deflagra-se a explosáo
do movimento.

O corpo-mastro é firme e flexível, articula-se em todas as direcóes, integra o dentro


e o fora, em cima e em baixo, a frente e atrás. Recebe e elabora os símbolos. Das
partes para o todo estabelece-se a unidade corpórea.

e trutura física encontra-se em harmonia com a própria natureza do homem, ou


- "2 a bu ea de uperar os limites de seu próprio corpo físico.
o movimento das partes
Apresentamos uma visáo das fontes vivenciadas na forma em que vérn sendo
praticadas em nossas aulas com o direcionamento para o desenvolvimento do bailarino-
pesquisador-intérprete. Os dados sáo cheios de sutilezas e é preciso ter cuidado quanto
a sua interpretacáo e prática. Observamos também que estudos cinesiológicos
pertinentes devem ser desenvolvidos, o que certamente muito contribuirá para o
aperfeic;;:oamento e maior cornpreensáo deste trabalho. Apresentaremos o movimento
das partes como ponto de partida para este e outros estudos.

Partes inferiores - As raízes do mastro


Os pés apresentam uma íntima relacáo com o solo. Penetram a terra como se
adquirissem raízes, sugam-na como se recolhessem a seiva; amassam o barro; levantam
a poeira; mastigam, devolvem e revolvem aterra através de seus múltiplos apoios.

Consideramos apoios as partes dos pés que atuam no movimento, estabelecendo


diferentes tipos de contato com o solo e imprimindo uma determinada forca acompa-
nhada de flexáo, extensáo e rotacóes em diferentes graus. A linguagem dos pés
desenvolvida através dos seus apoios envolvem principalmente as articulacóes tíbio-
társicas e coxo-femurais.

Como apoios citamos: dedos, metatarso, calcáneo, dorso do pé, lateral e medial
(as bordas dos pés). Através da intencáo durante o movimento, a abóboda plantar
busca também o contato. A dinámica dos pés é caracterizada por diferentes
cornbinacóes de apoios e de seus esforcos variados.
Os esforcos empregados pelos pés na relacáo com o solo sáo:
Mínimo - contato de superfície, sutilizacáo dos apoios.
Médio - cantato além da superfície, raizes soltas.
Máximo - penetracáo, enraizamento.
Entre estes esforcos existem outras gradacóes que partrcrpam da dinámica do
movimento. A predornináncia de um dos esforcos representa uma característica
importante na linguagem da danca. Portanto, a quantidade de esforco utilizado no
movimento dos pés está diretamente relacionada a determinados significados, sendo
estes distintos ern cada modalidade de danca.

A qualidade da utilizacáo dos pés apresenta ressonáncias, poi s el es assumem a


condueño e tracarn caminhos para serem percorridos integralmente pelo corpo.

Dentre as várias funcóes exercidas pelos pés, salientamos algumas encontradas nas
giras da Umbanda e também nos ritos .de Candomblé. No início dos rituais e durante
o seu desenvolvimento os pés exercem a funcáo de sintonizar cada indivíduo consigo
próprio e de estabelecer a relacao com o espaco ritual. Destacamos os seguintes
movimentos que sáo realizados na locornocáo circular da gira:'
- Mantendo o contato de toda a planta dos pés, o movimento desenvolve-se
pelo reforce (impressao no solo) e, ao mesmo tempo, pela mobilidade dos apoios
dos metatarsos e calcáneos. Alternam-se os pés, dirigindo-se para fora (relacionando-
se com o centro do círculo) e no seu retorno se definem em relacáo ao centro do
corpo.
- Duas acóes ocorrem simultaneamente: enquanto um dos pés recolhe energia do
solo, o outro libera energia para o solo. Na acáo de recolher, os pés sugam o solo
(ventosa) acentuando o contato do metatarso e calcáneo e o conseqüente aumento

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do arco do pé. Na acáo de liberar os pés se expandem no solo, ampliando, progressiva-
mente, sua área de contato. O movimento desenvolve-se pela alternancia dos pés nas
respectivas acóes,

Nos dois movimentos descritos ocorrem o descarrego de energia acumulada no


corpo e a absorcáo de uma nova energia para o corpo.

Nas distintas linguagens das dancas de cada orixá e entidade, pelos pés
enunciam-se su as configuracóes, associadas a seus respectivos significados. A
maneira como é utilizada a cornbinacáo dos apoios e a quantidade de esforcos
empregados, encontra-se muitas vezes associada a uma acáo específica. Cada
dinámica de movimento apresenta uma cornposicáo rítmica que é auxiliada pelo
toque do atabaque.

Apresentamos algumas freqüéncias de caracterizacóes dos pés, ressaltando-se a


existencia de muitas variáveis. Sáo muitos os Exus, os Caboclos, as lemanjás ... Além
de que, no corpo de cada cavalo", o orixá ou entidade assume uma identidade própria.
Algumas sínteses deste desdobramento nos levam a considerar várias configuracóes e
significados.

Nos Exus predominam os pés entranhados na terra, com esforco máximo, sendo
constante na sua dinámica de movimentos a utilizacáo dos apoios das bordas internas.
Os pés muitas vezes se fazem garras revolvendo a terra. Nos Caboclos os pés
apresentarn como principais características a agilidade e a deterrninacáo, predominando
o esforco médio. Freqüentemente estes pés sáo caracterizados pelo apoio do metatarso
no pé direito e toda a planta do pé esquerdo. Os pés de Obaluaé apresentam
densidade, a saída do solo é mínima como se os pés tivessem fios que continuassem
interligados ao solo durante o movimento. A forca de tracáo é máxima. Em oposicáo,
os pés das Oxuns apresentam uma sutilizacáo dos contatos: perpassando pelos mi-
cro-apoios de todo o pé, o movimento caracteriza-se pela suspensáo, pois o solo é
trabalhado pelos pés em pequenas porcóes como se estes o estivessem acariciando.
Seus pés denotam muita sensualidade. A acáo dos pés de lemanjá procura ampliar o
espaco e trazer o mar. Espalmados, esses projetam-se para fora e recolhem-se ao
centro do corpo com a acentuacáo dos calcanhares. Com esforco médio os pés alter-
nam-se para dentro e para fora. Sáo atributos destes pés o domínio e a seguranca. A
impulsividade dos pés de lansá faz com que os apoios, metatarso e dedos empurrem
o solo e os calcáneos trabalhem em contraponto no eixo dos pés. Estes projetam-se
nas laterais do corpo num ágil deslocamento pelo espaco, envolvendo a suspensáo
dos calcanhares. As Pomba-Giras, pesquisadas principalmente na Umbanda, utilizam
e percorrem todos os apoios, incluindo-se o colo dos pés e as pontas dos pés. Gostam
de portar-se sob os metatarsos (meia-ponta), atributos de sua vaidade. Sáo possuidoras
de grande elasticidade e seus pés nao apresentam limites de elaboracáo no movimento.
Dentro das manifetacóes do Congado em Minas Gerais, destaca-se a linguagem
dos pés dos mocarnbiqueiros. No corpo destes devotos os pés passam a assumir
outros sentidos e funcoes,
Os antigos grilhóes - instrumentos de aprisionamento dos escravos - sáo
transformados em instrumento de danca: sáo as gungas, (Iatinhas com chumbo por
dentro, sustentadas por correias de couro, que abracarn os tornozelos). Os pés
investidos pelas gungas ajudam no transporte para um outro mundo, onde o passado,
o presente e o futuro fazem parte de uma mesma caminhada. Durante o percurso das
guardas, o mocarnbiqueiro levanta a poeira, estremece a terra e arranca de seu inte-
rior a torea. 05 pés entram no solo empregando um esforco máximo, numa entrega
absoluta de que todo o corpo participa. A imagem é de que a terra se move em

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resposta a este chamada, impulsionando os pés de volta. Em certos momentos, quando
este cantata atinge o auge, tem-se a irnpressáo de que o carpa é transportado. No
decorrer do tempo, o diálogo pés-terra toma canta do carpa, ocasionando uma
suspensáo do tronco e os pés quase flutuam.

Os cánticos anunciam os sentidos dos movimentos dos pés:

Chora gunga de vovó, chora gunga, o gente ...


Minha pavo eu peco licence prá minha gunga reiná ...3
O pé direito transporta o maior número de gungas e o som é mais grave, a saída da
energia é através dele; representa o tempo forte, é ele que "chama". A res posta vem
pelo repique - que é uma variacáo de terceira ou tercina (como é chamada pelos
rnocarnbiqueiros) - iniciado pelo pé esquerdo, o que recebe a energia da terra. Desse
chamar e responder surgem múltiplas variacóes com o uso de todo o pé combinado
aos seus apoios: metatarso, dedos, ponta e calcanhar sáo utilizados, empregando-se
as variadas qualidades de esforcos,

Os pés dos rnocarnbiqueiros avancarn, recuam, sustentam-se no lugar como que


enraizados e projetam-se fora do solo. As distintas intencñes ocasionam diversidades
de "passos" que irao influenciar a totalidade da danca do rnocarnbiqueiro.

Diferencas e sernelhancas
A semelhanca entre alguns movimentos pode ser apenas aparente. Nos Batuques
e nos Mo<;ambiques os pés sapateiam, porém sáo movimentos completamente distin-
tos, poi s apresentam funcóes e intencóes diferentes. No Mo<;ambique os pés penetram
a terra e em seguida sáo impulsionados para cima; no Batuque, durante o sapateio
nao ocorre a impulsáo, os pés deixam no solo a torea concentrada. Este fato foi
comprovado com um mesmo grupo de pessoas durante suas atuacóes no Mo<;ambique
e no Batuque.

No Batuque, a sensualidade e a conquista sáo bem definidas e expressas pelos pés


em suas polaridades feminino e masculino: enquanto os pés das mulheres ciscam (=
escovilha, movimento da danca flamenca) contidos e com uma sutilizacáo de cantata
em relacáo ao solo, os pés dos homens ora deslizam, ora executam um insistente
sapateio de maneira expansiva e direcionado para a acáo com o solo. Encontramos
estes mesmos movimentos, seguindo-se as mesmas descricóes, entre os Xavantes na
danca do Tisipá (ligada aos rituais de casamento).

Os exemplos citados anteriormente mostram que os pés transpóern as fronteiras e


nos revelam a sua capacidade de articular significados e de se interligarem
emocional mente aterra.

Os joelhos

A predornináncia de sua flexáo, nas distintas linguagens de movimento, possibilita


aos pés desempenharem uma gama de movimentos altamente articulados, ao mesmo
tempo em que a sustentacáo e a ampliacáo do espacodos joelhos estáo relacionadas
a qualidade do trabalho dos apoios dos pés. '

Os joelhos ainda influenciam significativamente o posicionamento da bacia no


alinhamento de toda a estrutura física.

Em alguns movimentos do carpa evidencia-se a projecáo dos joelhos a frente


(exigindo maior atuacáo das musculaturas internas das pernas), alterando a posicáo
do eixo do carpa.

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Quando os joelhos sáo os protagonistas do movimento, atingem todas as
possibilidades de flexáo. De forma gradativa ou por impulso, sáo demonstrados em
todos os rituais pela sua acáo expressiva e diferenciada durante as saudacóes a
bandeira,
ao altar, ao congá etc.
A "dobradura" dos joelhos por impulso é bastante significativa na linguagem do
movirnento, quando ocorrem as incorporacóes (Umbanda, Candomblé). O movimento
de "quebra de joelho" ( rápida flexáo por impulso) é decorrente do deslocamento da
regiáo sacra, porém sáo os joelhos que nestes momentos anunciam a entrada de
novos sentidos no corpo.
Nos Cabodos de l.anca do Maracatu Rural de Pernambuco os joelhos sáo as partes
do corpo mais evidentes em toda a linguagem de sua danca. Dentro de várias di-
nárnicas eles direcionam a acáo de todo o corpo; impulsionam-se para recolherem-se
ao solo, para pontuar o espaco ou para estabelecer o contato entre duas pessoas.
Na Capoeira, durante a ginga, os joelhos favorecem a centralizacáo da bacia em
a
reiacao aos pés, auxiliando o deslocamento do peso frente. A pontuacáo irá ocorrer
em alguns golpes como a "joelhada".

Em várias dancas a extensáo dos joelhos dá-se apenas nos momentos de passagem
ou de acentuacáo, durante uma seqüéncia de movimentos, antecedendo-a uma
profunda flexáo.
O "rnolejo" dos joelhos, existente nos vários rituais, é marcante no início dos rituais
do Congado, vindo a favorecer a soltura das articulacóes de todo o corpo.
Os pagamentos de promessa estáo contidos nas várias manifestacóes, onde o pór-
se de joelhos exprime o ato de contricáo a que o corpo é levado.
Na relacáo simbólica e na concretude da acáo física através dos joelhos o
homem redime-se das irnperfeicóes e invoca a presenca do que é perfeito no
recebimento do sagrado.

A pelve

A pelve apresenta-se na estrutura física exercendo oposicoes. Através do


direcionamento do cóccix para o solo conseqüentemente as cristas ilíacas se elevam. A
torea de tracáo, naregiáo do sacro, materializa-se no imaginário pelo sentido físico da
apropriacáo de um "rabo". Portanto, a relacáo do coccíx-rabo com o solo é uma constante
na linguagem de movimento da bacia. A intencáo desta torea de tracáo apresenta variantes
e quanto maior for esta intencáo mais evidencia a verticalidade do tronco.

O movimento da bacia desenhando o infinito


A pelve através do coccíx desenha na horizontal o infinito. Produzindo a forma
arredondada nas laterais e passando pelo eixo, a bacia continuamente assimila o
desenho. O espaco interno da bacia expande-se. Na reducao e na arnpliacáo do
desenho, a bacia continua em sustentacáo que é proporcionada pela própria dinárni-
ca do movimento. Decorrem também o aumento dos espacos das articulacóes coxo-
femurais e o alongamento do soalho pélvico. O movimento do "rabo" ou da bacia
provoca um sentido atuante do tronco, mesmo que nao seja táo evidente a sua
expressáo quanto ao tamanho do movimento.
Quando esta matriz de movimento é realizada com uma grande torea de tracáo
[relacáo do peso no rabo) o movimento denota densidade e volume. Havendo
diminuicáo da forca de tracáo. o movimento adquire velocidade e agilidade, porém
a intencáo do "rabo" para o solo é contínua.

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Independente de serem homens ou mulheres, quando a entidade feminina é
recebida, esta configuracáo da bacia é o movimento mais significativo de todo o
corpo. Portanto, o movimento do infinito na bacia apresenta-se integrado as linguagens
das dancas, sem haver distincáo de sexo, como sáo encontradas, por exemplo, no Boi
do Maranhao e no Congo de Minas Gerais. Nos Batuques, que possuem polaridades
feminina e masculina bem acentuadas, a configuracáo da bacia em infinito estará
presente apenas na linguagem de movimentos das mulheres.

Nas dancas de rituais, esta matriz de movimento, com suas variantes de peso e
grau de grandeza (amplo ou restrito), é fartamente enunciada.
As pesquisas apresentaram um dado bastante significativo: nas mesmas categorias
de dancas - principalmente as dancas de orixás realizadas por pessoas integradas aos
sentidos da rnanifestacáo e situadas no contexto ritual - o movimento da bacia no
infinito a partir do cóccix era evidente. Porém, quando as dancas eram realizadas por
pessoas distantes dos significados e fora de um contexto, o movimento da bacia ocorria
a partir das cristas ilíacas, com a perda do "rabo", o distanciamento do eixo e o desenho
do movimento nao apresentando nitidez.
Os requebros e os movimentos das ancas táo inflacionados nas descricóes das dancas
brasileiras, provavelmente se originam da matriz da pelve imbuída de significados, Porém,
muitos movimentos se difundiram numa forma desprovida de conteúdo, ou seja, com a
perda da estrutura física original. Outros movimentos da bacia como os que se utilizam
das laterais (pendular) e das torcóes obedecem ao mesmo princípio do cóccix-rabo.

O santo penetra pelo sacro


Alguns país-de-santo revelaram que o sacro é a porta de entrada dos orixás (energia
pura, divina) que, em cantata com as energias da pessoa através dos orifícios do sacro,
propiciam a incorporacáo. O mestre de artes marciais chinesas, mestre Líu Pai Lin, refere-
se a regiáo do sacro: "Oito Santos mergulham no fundo do mar" (oito energias distintas
relacionadas aos oito orifícios do sacro, penetram o interior do ventre). Esta descricáo diz
respeito ao treinamento do movimento interior, localizado nesta área do carpa.
É enfatizada a atuacao. o olhar focalizando o interior do baixo-ventre, promovendo a
expansáo e o recolhimento - pulsacáo interior, raíz de todos os movimentos do tai-chi-
chuan. A associacáo deste treinamento com as dancas dos orixás foi o que possibilitou
realmente compreender, porque vivenciado e estudado no carpa, o importante procedí-
mento da bacia no campo sutil do movimento interior: nela está a geracáo, a
concentracáo e a fluicáo de energia.

Durante as giras, a regiáo do sacro é ativada através da báscula da bacia, para frente
e para trás. No momento da incorporacáo ocorre um forte movimento de impulso na
regiáo do sacro que repercute em todo o carpa. Em seguida o carpa é "tomado",
ocorrendo uma mudanca em toda a estrutura física, que adquire a plasticidade do
conteúdo recebido - a entidade. O campo sutil do movimento é expresso no sacro
através de pulsacóes, incluindo a pequena báscula da bacia e outras acóes que fazem
transparecer a regiáo atuante, porque sentida.
Estes movimentos mais sutis intermeiam os momentos de transformacáo do carpa
no ritual, ganhando maior expressividade quando o indivíduo está incorporado pelo
santo ou orixá.

A bacia representa um vaso que recebe e nutre, interligando-se ao aspecto da


vitalidade, senda um gerador de energia para todo o carpa. Observamos a sensua-
lidade e a sexualidade conjungando com o sentido mais genuino de sacralidade
implantada na bacia.

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Partes superiores - O movimento do estandarte

A firme base estruturada nas raíz es do mastro possibilita que as partes superiores
da coluna, tronco e membros gerem uma oposicáo quanto a
direcáo de sua expansáo
e integrem as distintas partes do corpo, evidenciando o corpo-mastro com a bandeira.

A coluna vertebral alonga-se em toda a sua extensáo, com flexibilidade, acolhendo


sobre si distintas posturas.

A verticalidade é a prima postura, aquela que assume o comando do circuito


energético, possibilitando a abertura dos chakras (centro de energia vital). Esta postura,
eixo motriz da linguagem do carpo no ritual, permite que o campo de forca do indivíduo
se faca presente e interaja com os significados de cada momento.

A verticalidade é trabalhada através de alguns movimentos que denotam a acáo de


fincar o mastro por um longo tempo, bem como sáo realizados movimentos mais sutis
que provérn de sensacóes físicas, sentidas em toda a extensáo da coluna. Em ambos
os casos há o bombeamento da energia da base da coluna até a cabeca: a energia
seguindo o caminho interno desce pela frente do tronco. Esta energia, buscando
o que está atrás, conseqüentemente abarca a parte anterior. Portanto, o tronco
enuncia-se pelas costas.' No início dos rituais a verticalidade é a postura de
preparacáo e durante o seu desenvolvimento, com a energia buscando espaco,
faz-se incisivo o trabalho do eixo para equilibrar a farta linguagem de movimen.tos
desequilibrantes. Quando o pai-de-santo solicita ao filho-de-santo que firme a
cabeca. ele está conduzindo o fortalecimento do eixovertical. O mesrno se dá quando
o Capitáo de Moc;ambique investido do seu bastáo realiza as saudacóes com cada
rnocarnbiqueiro.

A postura perpendicular, inclinacáo do mastro-coluna a frente, torna-se presente


para uma maior agilidade dos rnovimentos com tempos rápidos; neste caso a inclinacáo
é pequena, favorecendo o dinamismo da linguagem corporal. Quando a
perpendicularidade é acentuada, Ó tronco encontra-se numa relacáo com o solo -
indicada inclusive pelo olhar - o que o predispóe para o diálogo mais direto cam a
terra. Esta postura revela que o tronco se nutre da torea da terra, ao mesmo tempo em
que também indica a reverencia ao sagrado.

A postura abaulada, acentuada curvatura anterior do eixo-coluna, é assumida quando


se faz presente a ancestralidade. Os movimentos nesta postura sáo pausados e lentos,
o tronco apresenta densidade; porém nao é para denotar desgaste no corpo físico.
mas para representar o arquétipo do Preto-Velho que traz em si a sabedoria pelo
muito que viveu.

A postura horizontal, tronco posicionado paralelamente ao solo, é encontrada nos


folguedos do Boi - no indivíduo que carrega a carcaca representando o próprio Boi -
e também em outros folguedos onde existem personagens de animais. Em alguns
terreiros de Umbanda, algumas entidades como os negros africanos de Cambinda e
Massapés apresentam-se na postura horizontal. Nas suas dancas, cuja principal funcáo
é realizar a limpeza energética do espaco, a permanencia nesta postura ocorre durante
todo o ternpo.

Na interacáo dos diversos fatores com o movimento, que resulta na danca, haverá
sempre uma postura predominante. Porém, há o dinamismo postural, envolvendo as
passagens de uma postura para outra. Há um sentido e um significado que sáo
fortemente marcados através de uma postura e nas dinámicas das passagens posturais
sáo articulados outros significados que cornpóern o todo da linguagem da danca.

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o mocarnbiqueiro assume a verticalidade decorrente de uma contínua interacáo
com o mastro festivo, passando pela 'postura perpendicular nas dinámicas de movimen-
tos mais acelerados; e a postura abaulada ocorre quando se faz forte a presenca dos
ancestrais. Os Pretos-Velhos caracterizam-se pelo abaulamento e na dinámica da
linguagem da danca passam pela perpendicularidade.

No Boi Janeiro, da cidade de Rubim (M.G.), o Boi era caracterizado pelo movimento
contínuo da passagem da postura horizontal para a vertical; nesta última o indivíduo
ficava emoldurado pela carcaca e o Boi, desta forma, humanizava-se. Era contundente
neste folguedo específico o significado de Boi-homem.

Na Umbanda encontramos algumas referencias nas quais as posturas estáo


relacionadas a uma tenue ligacáo que as entidades promovem através dos chakras:
excitando estes centros energéticos no corpo astral do médium para r¡¡.uepossam tomá-
lo de forma satisfatória, as entidades controlam toda a parte psicomotora. Certas
características assumidas por entidades, refletem no corpo do médium na forma de
posturas corporais, devido ao uso dos chakras correspondentés e mais afiniza dos com
a iinhe' em questéo" . .
Uma das explicacóes sobre a postura abaulada dos Pretos-Velhos é que certas
entidades utilizam com maior treqiiéncie o chakra genésico ou sacro também chamado
de chakra básico, é por isso que o médium se curva quando atuam estas entidades em
seus corpos. Por utilizarem este chakra básico, é como se os outros perdessem a tunciio,
ficando qua se sem atividade, utilizados apenas para tuncoes secundárias, como no
caso das intermediecoes'.
Esta correspondencia dos chakras com a postura encontramos também no Congado:
durante os cumprimentos o movimento das rnáos é direcionadoespecificamente para
as partes do corpo relacionadas aos chakras cardíaco, servical e frontal, quando entáo
a postura vertical fica bem enunciada.

Concluímos que o indivíduo incorpora a postura a partir dos atributos e funcóes


seja da entidade ou da personagem que se manifesta em seu corpo. Pelo modo como
a postura é adquirida nao há tensionamento e todo o corpo trabalha dentro de um
alinhamento proposto. .

O tronco
Estamos diante de uma maquinária de forcas na qual as pulsóes cedem lugar a
movimentos, quea primeira vista podem parecer caóticos. Ao agucarrnos o olhar,
percebemos uma sofisticada elaboracáo que nos leva a considerar que sáo muitos os
fato res envolvidos em cada "momento" do tronco. A imagem que temos de sua mobili-
dade ora é de uma torea queprovém das vísceras, ora de uma suavidade que brota da
superfície da pele.

O jogo da Capoeira coloca-nos diante de um tronco ágil e elástico na presteza da


acáo, conseqüéncia da heranca instintiva de sobreviver. Os rápidos reflexos envolvem
uma engrenagem de pequenas pontuacóes, como se o tronco estivesse carregado de
eletricidade, responsivo ao menor estímulo. Os movimentosdo tronco percorrem
uma escala de amplitude, que passa pelos movimentos de maior contensáo - como as
vibracóes e pulsacóes em determinadas partes correspondentes aos chamados centros
vitais -ampliando-se com os movimentos de maior projecáo - como os arcos e pontes
em todas as direcóes do tronco no espaco.

Relacionando as mais distintas acóes corporais das várias manifestacóes brasileiras,


observamos que a regiáo das omoplatas move-se, freqüentemente, alternando-se,

52
proporcionando a soltura dos ombros. Esta regiáo também participa incisivamente das
torcóes. Tomando como referencia uma das omoplatas, vemos que ela estará em
oposicáo as suas partes inferiores, ou seja, estabelece a relacáo com o seu lado contrário,
sendo comum a sua ligacáo com os pés ou com os joelhos. As freqüentes torcóes
acentuam a torea de tracáo para o centro do corpo, pois este movimento faz com que
o tronco serpenteie O eixo de equilíbrio.

Os ombros ganham contorno e lugar, sendo caracterizados pelos seguintes


movimentos: alternando-se, com suspensáo e queda, com pequena rotacao contínua,
com sacudimentos e vibracóes,

Na regiáo da cintura escapular, a partir do osso do externo que é o centro do
estandarte, os bracos se estendem até a extremidade dos dedos das máos. É uma área
de farta mobilidade articular, onde os movimentos de maior expressáo dos bracos
estáo relacionados as acóes que as máos desempenham. Os cotovelos funcionam,
em muitos momentos, como um leme do tronco, sendo freqüente a sua angulacáo,
destacando-se os movimentos de pontuacóes nas várias direcóes espaciáis. Um dos
movimentos significativos dos bracos é decorrente da acáo dos cotovelos que levados
para trás, em flexáo, abrem a parte anterior do tronco, e retornando pontuam para
frente, possibilitando uma atitude dos bracos de guardar o corpo. O tronco nao se
fecha, se recolhe em prol da manutencáo do eixo, para logo em seguida se projetar.

Maos
Assim cornoos pés, os movimentos das rnáos utilizam a gama de possibilidades
que esta parte do corpo possui. A sua funcáo essencial (a apreensáo) encontra-se
presente numa ampla linguagem gestual como, por exemplo, nas dancas de Xangó.
em que as rnáos materializando o imaginário, através do movimento,retiram granitos
do corpo, lancando-os no espaco.

O Caboclo estala os dedos na regiáo do monte de venus; segundo a Umbanda,


este gesto tem a funcao de fazer o ajustamento da entidade no corpo do médium.

Nossas miios possuem uma quantidade enorme de terminais nervosos, que se


comunicam com cada um dos chakras de nosso corpo: 1.Polegar: chakra espléoico;
2./ndicador: chakra cardíaco; 3.Anular: chakra genésico; 4.Médio: chakra coronal;
S.Mínimo: chakra laríngeo; 6.Mais ou menos uma po lega da abaixo do médio, no
centro da palma: chakra solar, 7.Logo abaixo do solar, um pouco antes do pulso,
chakra frontal. 10

Observamos que estes pontos das rnáos - atuantes na forma em movimento da pessoa
que incorpora a entidade - estáo relacionados aos plexos que aferem a qualidade
determinante da entidade. No Caboclo as máos tomam as formas da flecha e do arco,
representadas pela abertura e alongamento dos dedos polegar e indicador associados
aos chakras esplénico e cardíaco (que estáo relacionados a esta entidade). Durante
este movimento os demais dedos permanecem recolhidos.

As máos, sensíveis receptoras que sáo, adquirem a forma em movimento que


caracteriza um arquétipo. Esta forma é o resultado da unificacáo dos pontos enérgicos
na estrutura física relacionados as incorporacóes dos orixás. Vejamos um dos arquétipos.

Ogum, cujas máos e bracos se transformam ern espadas "que cortam demandas e
abrem caminhos", no movimento do corte tem a lateral da máo direita contactada
com a palma da máo esquerda, exatamente em direcáo ao ponto que corresponde ao
chakra solar, referente a atuacáo desteorixá. Outra correspondencia é que na danca
guerreira de Ogum o movimento das máos como espada, antes de projetar-se para o

53
espaco. desenvolve-se em direcáo aos demais plexos situados no tronco e relacionados
a postura de Ogum.
Os movimentos expressivos das máos sáo determinados por acóes que caracterizam
o orixá. lansá, com o objetivo de expulsar os egúns (almas errantes), desenvolve a acáo
de empurrar, continuadamente. Suas rnáos alternam-se a frente, onde o empurrar obedece
a um ritmo e a uma dinámica que se unem as suas caraterísticas: vento e tempestade.

A plasticidade da linguagem manual apresenta-se também vinculada a um elemento


da natureza: as máos de lemanjá estáo submersas no oceano, seu habitat; as rnáos
espalmadas abrem as águas para o corpo passar como também desenham a amplitute
do mar. Oxum, orixádos rios e cachoeiras, desenvolve movimentos suaves com as
rnáos, trabalhando nas águas doces; há o recolhimento dos dedos e acentuada
concavidade das palmas. O elemento terra, comumente associado a Exu, é modificado
por ele,.já que suas rnáos se transformam em garras e realizam o movimento de cavar,
revolver aterra.

O sentido da polaridade terra e céu - como também a integracáo destes opostos


- é colocado concretamente pelas rnáos no espaco circular dos rituais. Quando uma
das rnáos aponta para a terra, a outra no sentido inverso, aponta para o chao; alternam-
se com dinamismo e o movimento iniciado nas máos vai interagindo, em espiral, com
os bracos até alcancar todo o corpo.

Nos territórios da Umbanda e do Candornblé a linguagem das máos é mais


pronunciada; porém, muitas das expressóes manuais se fazern presentes nas demais
manifestacóes. Sáo categorias de formas, integradoras do movimento na unidade
corpórea, que interferem visivelmente no tónus muscular.

Na acáo correlata aos pés, as rnáos recolhem o que está no espaco a sua volta e
expressarno que no corpo está armazenado.

Na manipulacáo mágica dos objetos as rnáos apropriam-se dos símbolos: sáo as


lancas do Maracatu, os bastóes do Congado, os estandartes das Folias, entre outros.
As rnáos passarn a ter um prolongamento, tal é o domínio do movimento com o
objeto investido.
Nas saudacóes, de maneiras codificadas ou espontáneas, as rnáos apresentam
um contato acentuado na regiáo do coracáo, seguindo-se de projecóes para o alto,
para baixo e para os pontos de forca simbólica, doando e recebendo distintos
significados. Delimitando o cume do mastro, as máos tocam a cabeca, simultanea-
mente a testa e a nuca.

Cabeca
O Santo reside na cabeca, assim nos dizem os devotos e filhos-de-santo. Pertencendo
a uma coroa energética dos chakras coronal, frontal e cervical, a cabeca é freqüente-
mente relacionada a ligacóes maiores. Esta área do corpo, como portadora de toreas
mentais, promove uma gama de sensacóes físicas que se refletem nos movimentos,
cujas proporcóes sáo variáveis, dependendo da intensidade do intercambio entre o
que está dentro e o que está fora.
O gesto de "bater a cabeca", mais do que um cumprimento, uma saudacáo,
significa entregar-se as forcas divinas e assim estabelecer a uniáo do interior com o
exterior. No início dos rituais, este gesto é representado pelo contato da cabeca
com os espacos e objetos simbólicos, agregado res da torea divina. O movimento se
processa de forma contida, mas também chega a tomar uma amplitude que envolve
a irnpulsáo de todo o corpo.A pessoa atira-se ao chao e, diante do simbolizado,

54
faz o contato primeiro da cabeca com o solo levando todo o corpo a realizar o gesto.
As relacóes que o olhar estabelece sáo determinantes na postura da cabeca:
O mocembiqueiro dence olhando pro chao, de csbece baixa, porque o poder do
tnocembiqueiro é a humildede."
Porém, quando os mocambiqueiros e os demais folióes do Divino percorrem os caminhos,
o olhar estende-se para o horizonte e a cabeca se centra no cume do mastro.
Nos momentos em que o olhar está introjetado, os movimentos da cabeca sáo
conseqüéncias dos impulsos das várias partes do corpo. Nas incorporacóes e
desincorporacóes o olhar está para dentro e a cabeca entrega-se dinámica da a
linguagem de movimentos.
O significado e a direcáo do movimento da cabeca-mastro estabelecem a integracáo
com o seu prórpio cume, ocasionando combinacóes de movimentos: a cabeca estende-
se ao alto em pequenos círculos, pende para as laterais e para as diagonais sem que
haja tensionamento das vértebras cervicais.
A cabeca, portando-se com altivez quando direcionada para o alto, ou com
humildade quando inclinada para baixo, póe-se em movimentos entre estas polaridades,
através de rotacóes e pontuacóes.

A partir da cabeca, assentamento do sagrado, retornamos unidade deste corpo: a


a energia psíquica expande-se pelo tronco, segmenta-se no ventre para depositar-se
no solo a partir de representacóes que os pés imprimem.

NOTAS

7. Nos referimos a intensidade emocional no com o mestre Liu Pai Lin e Lucia Lee (7987) foram
momento em que a pessoa integra em si mesma os ferramentas importantes para a percepciio dos circuitos
significados do mestro. como centro energético da da energia em relecéo ¿ qualidade do movimento.
(esta.
7. Linha: faixa energética ande se manifesta determinada
2. Cavalo = médium. entidade.
3. Dentre os vários grupos de Mor;:ambique 8. Umbanda: Uma religiáo brasileira / Revista - 5Jo
pesquisa dos, este aspecto foi fortemente evidenciado Paulo: Escala, ano 1,n. 3.
entre os Arturos.
9. Umbanda: Uma religiio brasileira / Revista - 5Jo
4. "Dobredure" - termo utilizado nas aulas práticas, Paulo: Escala, ano 1,n. 3.
referindo-se a flexJo dos joelhos.
7O. Umbanda: Uma religiJo brasileira / Revista - 5Jo
5. "Molejo" - pequenas flexoes dos joelbos, realizadas de Paulo: Escala, ano 1,n. 3.
forma contínua.
7 7. 5ebastiana, capitJ de Mocembique, Bom Despacho
6. 05 treinamentos do movimento interior aprendidos (Me),7987

55

-- -----~~
4. AS PASSAGENS DO SENSíVEL-
O MOVIMENTO INTERIOR

o movimento interior foi um dos aspectos mais instigantes observados em nossas


pesquisas, esclarecendo-nos muito sobre os significados dos movimentos dos dan-
cantes, Na Comunidade dos Arturos percebemos em seu Congado que 'era evidente
o quanto el es dancavam por dentro. A conversa com os capitáes dos Arturos revela a
ligacáo entre a vida e o carpo que danca:
Um pouquinho que eu sofri ... a gente vai sentindo ... I
As pausas sáo cheias de iernbrancas do tempo da escravidáo. Neste momento,
Antonio curva os olhos para o chao. Em seguida, seus olhos se erguem e ganham
horizontes:
Alembrei do tempo véio
Esse tempo já se foi
Essa gunga num minhaé

Essa inguma de vovó


é

É inguma do Rosara
Foi vovó que me ensino
Todo mundo chora gunga
Eu também quero chorá
Essa gunga vem de longe
Ela vem de bera-mar
Aí meu Deus, to no meio do mar marinhera,
O que será de mim, oh meu Deus'

No percurso das lernbrancas que afloram nas imagens dos cánticos o corpo do
congadeiro é transportado para sentir junto com o outro, aquele que representa o an-
cestral escravizado. Uma argamassa de dor, saudade, melancolia e revolta é a heranca
recebida, mas o devoto a depura e a transmuta em forca para superar o próprio legado.
No Congado, a Senhora do Rosário centraliza a fé possibilitando que cada indivíduo,
com a forca do grupo (vivos e mortos), faca o seu resgate de pertencimento a um
espaco, na grande gira do mundo simbolizada pelo rosário de Maria:
Nossa Senhore me chama ... No Rosero de Maria, ora vamo velejé." "O maió gosto
da minha vida isso ei, eu va morré no tambo do Rosário de Maria, se Oeus quisé.
é

Tudo é firmado para N. Sra. do Rosário, Preto Velho, Maria Conga, Mae Maria, Pai
Joaquim. .. nós combina com essa turma toda aí... Nossa influencia maió Nossa Senhore
é

do Rosário. A gente fica ali... com a memorie"


As pesquisas insistentemente nos conduziram a um imenso coracáo que interliga
as mais variadas manifestacoes. agregadoras de uma resistencia cultural. Em cada
urna delas há uma história, que situa e caracteriza a festividade em questáo.

Maracatu é uma história do campo, criada na senzele de engenho, pelo POyO do


campo, cortado de cana, tirado de quadra, cambiteiro, cerreiro, mestre de ecúce, ciscedo
de baga <;0. É uma energia que a gente tem naquele campo ... O Maracatu nasceu da
bagaceira da cene?

63
A bagaceira é resíduo, esséncia donde se extrai um corpo. No maracatuzeiro os sentidos
agressivos e sexuais se misturam, os estados de torpor e prontidáo se alternam. O
pacato homem, quando deste corpo se investe, transforma-se num esfuziante guerreiro.

Seja no Congado, no Maracatu, nas giras de Umbanda, o corpo sofre uma modelagem
proveniente de um percurso interior situado nos desdobramentos que cada festividade
apresenta. O guerreiro desponta em todas as celebracóes, pois as histórias notadamente
marcadas pela opressáo impulsionaram e geraram festividades. Observando-se a
religiosidade dos pobres e dos negros na América, fica evidente que a habilidade de
celebrar descontraidamente mais encontredice entre as pooulecocs a quem nao
é é

estranho o sofrimento nem a opressño. Tudo isto nos sugere que a verdadeira celebreceo
nao foge diante da realidade, da injustice e do mal, mas se realiza da maneira mais
euténtice. onde se reconhecem e supera m essas realidades negativas e nao onde séo
evitedes'' Os espacos das festas sáo os campos de batalha onde a vitória deve ser
conquistada. Portanto, a guerra vira festa que é a própria guerra.

O período que antecede o dia da fe sta é marcado por preparacóes e rituais com
uma largueza na duracao do tempo para que se possa instaurar os fundamentos e
firmá-Ios. Os fundamentos sáo os preceitos, ou seja, tudo aquilo que produz o
conhecimento da origem e dos motivos de existencia e permanencia de cada
manifestacáo. Dentro de um contexto, independente da manifestacáo, trata-se do
período em que se prepara o corpo e o espaco para sua firmeza. As acóes denotam
movimentos expressivos, sem que haja em nenhuma delas o intuito de
dernonstracáo. Os gestos sáo carregados de intensidade, pois é quando a pessoa
absorve , através de várias dinámicas de trabalho, os fundamentos. A acáo e o
gesto sao para realizar a firmeza, que significa receber gradualmente os
fundamentos no corpo. Para a danca chegar no dia da festa, o movimento é
preparado a partir do contato com um mundo originário, adquirindo uma linguagem
cifrada e, entáo, se expóe num mundo presente, cujo cotidiano é cheio de arneacas.
Nestes gestos rituais, antecedentes da festa, observamos que há uma forca aliada a
delicadeza, provinda de um elaborado percurso interior: Nós nao temo Macumba, o
que nós temo é Adorecño.'
~
Penetrando a festividade, nos deparamos com uma danca interior que os olhos nao
véern. a nao ser através do que é indentificado como uma coisa mágica. Junto a seus
intérpretes, dessa danca. fomos verificando que há um processo e, por que nao dizer,
um método que resulta nesta magia. Observa-se tres aspectos que interagem no
percurso interno: 1 - as lernbrancas, com os seus campos de imagens; 2 - os
deslocamentos das ernocóes e dos afetos; e 3 - as sensacóes. Depois de feito este I
percurso de dentro para fora, ocorre também o circuito inverso, ou seja: os movimentos I
gerados, os cantos e as músicas pronunciados, os objetos investidos e o caminho
percorrido no tempo e no espaco presente retornam ao interior das pessoas como j
uma realizac;ao que motiva e confirma o senti~ de estarem vivas. __

Voltando ao momento em que cada pessoa se situa na festividade, observamos


que suas acóes iniciais estáo voltadas para a ruptura de um mundo cotidiano, pois sáo
acóes-rituais com o intuito de alcancarern um estado de esvaziamento, neutralidade e
concentracáo. O momento é individual izado, mesmo que a pessoa esteja numa
acáo grupal. Na arrurnacáo do espaco. na afinacáo dos instrumentos ou mesmo na inacáo
- quando a pessoa permanece recolhida a um canto em silencio - há uma rnudanca
interna que se processa. Na Umbanda e no Candomblé, várias dessas acóes sáo bem
definidas, porque explícitamente fazem parte dos fundamentos. Um dos exemplos é
o banho de ervas que a pessoa toma para limpar o corpo das impurezas, com o
intuito de abrir os chakras, sendo uma forma de fortalecimento da matéria e um ato
que envolve a percepcáo do próprio corpo. Esta e outras preparacóes sáo considerada
essenciais para o recebimento do orixá.

As invocacóes sáo demarcadas pelas acóes internas de entregar-se, movidas pela


fé e pelo afeto. Este momento é prenunciado pelo canto, pela música e pelo mo-
vimento, de acordo com a linguagem de cada rnanifestacáo.

As iembrancas pontuam todos os pass os decorrentes que sáo de uma memória


coletiva, cujos valores fundamentam cada festividade. As histórias estáo sempre li-
gadas as relacóes de parentesco como se fossem interrnediacóes para se alcancar o
Divino. Muitas vezes, estas histórias trafegarn o espaco do tempo das origens.

O oríxá sería, em príncípío um ancestral dívínízado, que em vída, estabelecera vínculos


que Ihe garantíam um controle sobre certas torees da natureza, como o troviio, o
venta ... A passagem da vída terrestre él condiciio de oríxá desses seres excepcionaís,
possuídores de um asé poderoso, produz-se em geral em um momento de peixiio,
eujas lendas eonservaram aslembranc;as ... Esses antepassados dívínízados nao morreríam
de morte natural .. Sofreríam uma metamorfose nesses momentos de críse emociona"
provocada pela cólera e outros sentímentos víolentos. O que rieles era materíal
desaparecía queímado por essa peixiio, e deles restava somente o asé, poder em estado
de energía pure?
Quando um orixá está em terra, incorporado em um de seus filhos-de-santo,
presenciamos esta forca no corpo. Porém, qualquer descricáo pormenorizada do
movimento nao revelaria a dirnensáo de que o corpo é tomado. O corpo sua, bufa,
aumenta de volume e de largura. Expande-se. Há pulsacóes. dínamos, contensóes e
impulsos. Todo um corpo-ernocáo faz com que, ao olharmos, fiquemos antes de
qualquer entendimento, arrepiados.
Através dos mestres, zeladores de santo e capitáes obtivemos relatos de imagens,
as vezes com descricóes 'porrnenorizadas de cenas, que habitam seus sonhos e po-
dem ser fortemente vividas durante a festividade. Essas imagens internas acionam o
emocional e a sua liberacáo provoca sensacoes físicas. O corpo passa a vibrar todo
um processo interior. Aí nos deparamos com o campo sutil do movimento relacionado
as energías. ou seja, uma linguagem de sensacóes pronuncia-se antes das represen-
tacóes das formas. Silo enfatizadas as sensacóes de calafrio, quentura, agulhada,
formigamento, dentre outras, em todo o corpo ou em partes específicas. Nas festividades
em que há incorporacóes essas sensacóes sáo atribuídas a proximidade das entidades
que a pessoa recebe em seu corpo:
Cada entídade que eu recebo, eu tenho as vibrecoes dos meus chakras. Entéo eu
sínto qual a entídade que írá vír. Por exemplo, o cabloco que é a espínha dorsal da
mínha casa, eu sínto no orí (cabec;a) e Exu, nos celcenheres?

Nas manifestacóes em que nao há incorporacóes as sensacóes sáo comumente


relacionadas a um contato da pessoa com as forcas provindas dos antepassados e dos
santos de devocáo.

As sensacóes físicas nem sempre sáo consideradas agradavéis. Quando sáo


represadas, as pessoas se queixam de dor na cabeca, nas costas ou em todo o corpo,
o que torna mais satisfatório a opcáo de vivenciá-Ias. Dando-se a passagem dessas
energias, quando a pessoa nao as reprime, ao final do percurso é conquistada uma
sensacáo de bem-estar.

No extravasamento de ernocóes como a agressividade, o medo e a revolta nem


sempre vemos as suas expressóes com total transparencia, pois ocorrem dentro de

65
uma dinámica em que elas logo se modificam. O sentimento de devocáo (= dedicar-
se a alguém ou a entidade) torna-se complexo nesta parte do percurso interno. A
devocáo aqui apresenta-se como um elemento de grande torea, poi s permite ao devoto
ultrapassar os limites do espaco opressivo e construir outro espaco onde sáo conquista-
dos os sentimentos de liberdade e igualdade.

Salve o Cruzeiro do Sul


Aonde 05 anjos tem que rezá
Onde os filho chora de tristeza
E as alma vem nos consolá
Levanteí coro e, levantei coroá
Vamo pelo ar, vamo pelo ar...lO
Observa-se um longo período para a concretizacáo da festividade. Todos os
momentos e suas localizacóes sáo importantes porque fazem parte de um percurso,
durante o qual as pessoas encarnam as raízes da festividade. As raízes das festividades
encontram-se nos deslocamentos das ernocóes e dos afetos, sendo a esperance o
núcleo que propicia as transformacóes da morte para a vida.
As promessas, geralmente relacionadas a
cura de doencas, ocorrem dentro de
várias festividades. A pessoa promete "brincar" num determinado folguedo ou cum-
prir a obrigacáo através de um ritual. Tirar um Boi de promessa (relacionado a Sáo
Ioáo) ou ser um rei no Congado ( vinculado a Nossa Senhora do Rosário) sáo alguns
exemplos. No dia da festa, os promesseiros - seja no momento do pedido ou do
pagamento da graca recebida - assimilam as toreas regentes da festividade auxiliados
pelos folióes ou filhos-de-santo que intercedem junto ao Divino.
No dia consagrado afesta está a resultante e a conclusáo de todos os trabalhos
feitos anteriormente. Nao se trata, portanto, de uma mera apresentacáo pública, mas
de um ato significativo: é o compartilhamento, com todos os presentes, da torea e do
axé. As dancas, as músicas e os cantos sáo as ernanacóes destas toreas.

No final da festividade (muitas delas duram dias), as pessoas apresentam-se muito


mais energizadas do que cansadas, estáo revigoradas:

O significado do Ioiio do Mato é trebelho. é uniiio. A lembranc;a ... o coteciio ... bate
mais forte. Aí parece existir uma toree grande e o trabalho nao cansa nede"
Os antigos mestres fazem referencias a perda progressiva dos fundamentos. Isto é
demonstrado pela ausencia das preparacóes e a conseqüente fragmentacáo da
festividade. Quanto a qualidade do movimento, observamos uma perda substancial
que atribuímos ao fato do corpo nao ter mais uma resposta advinda de seu percurso
interior. A danca deixa de ser compartilhada para ser apresentada. Nestes casos o
fator externo passa a ser mais importante, a festividade sai de seu contexto e de seu
lugar, torna-se uma "dernonstracáo folclórica". Vimos vários grupos com o figurino
impecável, a coreografia certinha, e todos sabedores da história de sua origem e
desenvolvimento. Porém seus corpos nao tinham nada a dizer, só a representar, como
se as imagens e as lernbrancas nao mais circulassem pelo corpo.

Um recorte significativo

No Vale do Jequitinhonha (MG) fomos ao encontro de um Boi Ianeiro que teimava


em sobreviver. No quintal da casa, a boneca Maria Tereza e as estruturas do Boi
jaziam próximos ao monturo, vestidos de mulambos de chita e enfeitados com papéis
velhos. Alfredo, o dono do Boi, nos dizia nao saber nada sobre o seu Boi, apenas que
era uma rnissáo: Recebi este Boi de meu pei, como heranc;a. Meu avó já fazia. É minha

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brigeciio con tin uá. o
cenário era de muita pobreza e as pessoas pareciam apáticas.
Num tempo lento e concentrado cada um foi tomando o seu lugar: o de Boi, o de
Maria Tereza e cada qual tomando seu instrumento. As caixas cornecararn a bater, o
movimento foi sacudindo a poeira e a vida foi brotando. O Boi saiu para as ruas,
como sempre ocorreu no antigamente, mas no hoje nao foi recebido nas casas e nem
os moradores do lugar quiseram compartilhar sua celebracáo. Nao havia grandes
atrativos visuais, a música e os movimentos eram simples. Porém, naqueles corpos
um pulso se mantinha, junto a uma forca surpreendente: eram corpos ainda ligados a
uma heranca que agucava-lhes os sentidos. Havia uma qualidade nos movimentos,
poi s uma história em meio aos destroces e as indiferencas ainda percorria o corpo de
cada foliáo.

Observamos que na passagem do sensível há vários níveis dimensionados entre a


inconsciencia e a consciencia. Em todos eles há uma disponibilidade interior atrelada
ao compromisso da pessoa em realizar um trabalho. Este é marcado pela integridade
da pessoa, porque ela p6e a mostra a sua prórpia realidade interior, independente de
sua aceitacáo pelo meio externo. Os movimentos extraídos deste corpo apresentam
riquezas minuciosas.

Os fundamentos imbuídos de segredos sáo repassados para aquelas pessoas que


apresentam condicóes tanto de guardá-Ios como de levá-Ios adiante. Trata-se de um
aprendizado que possibilita a pessoa que o recebeu abrir o seu percurso interior.
Desta forma, ocorre um elaborado processo a partir do qual imagens que percorrem
a mente ganham representacóes no carpo, delineando as vibracóes, as sensacóes e
os sentimentos.

Quanto aos segredos, cabe a nós pesquisadores deduzir seus significados quando
mergulhamos na fala do corpo. Um corpo que nos induz a encontrar as passagens
secretas de um movimento nascido da memória.

NOTAS

7. Cepitiio Antonio (Conga do dos Arturos), 7987. 7. Divina, candombeira de Jaboticatuba (MC), 7988. A
referencia ao termo Macumba é usado no sentido
2. Canto de Moc;ambique pejorativo ou de magia negra.
3. Canto de Moc;ambique
/¿. Pierre Fatumbi Vergel' - Orixás: Deuses lorubás na
4. Depoimento de José Francisco Lourenco, Africa e no Novo Mundo, 7987.
candombeiro de Fidalgo (M.C.), 7987.
9. Depoimento de Carlos Alberto da Costa (Umbanda -
5. Depoimento de Mestre Salustiano (Maracatú Rural D.F.), 7995.
Piaba de Duro, Tabajara,PE), 7992.
7 O. Cantos de Conga da - Arturos
6. Harvey Cox - A festa dos folióes - um ensaio
teológico sobre festividade e fantasia, 7974. 77. Depoimento de ¡oao Batista da Luz - Arturos, 7987.

67
5 - CARACTERíSTICAS DA LINGUAGEM

As manifestacóes culturais brasileiras apresentam distintas linguagens com sotaques


regionais. As investigacóes e vivencias de várias delas, compartilhadas com o nosso
corpo na danca, nos levaram a inferir suas principais características. Apontamos algumas
por representarem importantes instrumentos para a prática da danca e para o olhar
em contínua descoberta.

Fatores essenciais da linguagem


Sáo as condicóes que o corpo adquire no seu amplo contexto de linguagem. Os
sentidos no corpo, o pulso, os atos de impulsionar e pontuar até a aquisicáo do dínamo,
caracterizam uma abordagem presente em distintas maniíestacóes da cultura popular.

Observamos na prática a necessidade de um trabalho sistemático quanto a estes


fatores, para que haja o desenvolvimento da linguagem deste corpo brasileiro.

Os sentidos no carpa

Diante de um festejo geralmente nos deparamos com um colorido e uma massa


sonora estimulantes, em meio a isto os corpos extravasam seu contentamento neste
dia especial. Ao contrário do que imaginam os olhares superficiais, nao se trata de um
corpo folgazáo, espontáneo e solto no espaco. Em nenhuma realidade deste corpo
encontramos um tónus que demonstrasse volatibilidade no sentido estrito da palavra,
ou seja, como uma qualidade do que pode voar.

As pesquisas acentuaram a importancia dos graus de tensáo da musculatura, que


apresenta-se como um fator indivisível da linguagem do movimento. Movimento este
em que a relacáo do corpo com o meio traduz umahistória de vida.

Em toda a rede de rnanifestacóes da cultura popular (focos da pesquisa) seus


intérpretes trazem uma história de vida que revela a necessidade de resistir- a muitos
embates. Antes de tudo sáo corpos guerreiros. Vivenciando-os como personagens,
percebemos que o corpo só se ajusta na linguagem quando adquire densidade - um
tónus elevado que apresenta elasticidade. Os significados vida-festividade se articulam
através do movimento, fazendo o corpo soltar-se, entregar-se, tendo como premissa o
"tónus de Resistencia" que se mobiliza com o "tónus de Apoio".'
Em cada festividade observamos que há um grupo de pessoas que sustenta os
fundamentos - como se os retivessem em seus corpos - e um grupo que os dinarniza
articulando os significados através de seu s corpos que realizam movimentos de maior
extroversao. Na dinámica de suas dancas presenciamos o diálogo do reter com o
articular. Vemos que estes aspectos materializam a festividade, bem como através do
tónus cada pessoa os corporifica e materializa. O concretizar tónus, portanto, é a
acáo de corporificar os sentidos.
No corpo do rnocambiqueiro predomina o "tónus de Resistencia'e no corpo do
dancante de Congo "o tónus de Apoio", poi s encontram-se imbuídos das funcóes de

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suas respectivas guardas. A guarda de Congo tem a funcáo de abrir o caminho, de
prepará-Io e dinamizá-Io. O Congo puxa o Mocambique, que é a guarda que traz a
coroa, a santa, enfim, os fundamentos dos devotos do rosário.

A bandeireira da Folia de Reis retém no seu corpo a bandeira e os tres Reis Magos,
que disíarcados em palhacos, dinamizam o espaco a frente com suas acrobacias. Em
alguns momentos, a bandeireira solta o seu movimento e faz evolucóes com a bandeira
em que atua o "tónus de Apoio". Enquanto isso, os palhacos ficam de forma concentrada,
sustentando os fundamentos em pontos específicos de seu corpo - resistindo.

As características e a natureza de cada representacáo de orixá deixam evidentes o


quanto o tónus atua na sua identificacáo. Percebemos, entre outros aspectos, que o
"tónus de Resistencia" se instaura no corpo que rece be Xangó (aquele que traz a
justica), e que o "tónus de Apoio" se implanta no corpo que recebe Oxóssi (aquele
que traz o equilíbrio entre o homem e a natureza).

Nas histórias que esse corpo conta há uma evidente carga de dramaticidade,
conferindo uma imediata resposta de intensidade muscular. Esta aos poucos se reduz,
modulando as expressóes que o movimento desenha no corpo sem nunca perder o
seu caráter essencial, o de resistir. Nos momentos de baixo tónus o corpo está em
prontidáo, o que denota a presenca da resistencia mesmo quando o corpo possa
parecer, pela sua atitude, entregue, absorto.

o pulso
O corpo palpita, lateja, pressente
Soam os primeiros toques dos tambores, dos pandeiróes, das caixas e de tantos
outros instrumentos com os seus timbres, ritmos e construcóes musicais, fazendo
vibrar no espaco-ternpo da festividad e a caminhada do Congado, a saída do Boi, a
roda da ciranda, a onda do frevo ... A entrada do instrumento pede ao corpo que
pegue o pulso.

O pulso sáo as vibracóes da música captadas pelo corpo na regiáo das vísceras e
do diafragma e que váo se irradiando para o plexo solar até tomar todo o corpo.
Inicialmente·há um preerichimento de ar, como se o tronco abrisse os seus espacos
para o recebimento do pulso. Há uma expansáo e uma contensáo na regiáo do
diafragma que figuram num desenho específico de palpitar.

Este movimento inicial, que charnarnos de pulso, possibilita o aquecimento das


articulacóes e fortalece a centracáo do corpo. O pulso o coracáo do movimento,
é

instaurador da dinámica de cada danca e que permanece durante todo o seu tempo.

Os instrumentos, quando entram em acáo, unifica dancantes e músicos através do


pulso que funciona como um gerador interno propiciando o vigor.

As variedades de pulsos estáo relacionadas as direcóes (de dentro para fora) do


corpo ern relacáo ao espaco. Portanto, o pulso estabelece o movimento do eixo de
equilíbrio do corpo.

Atribuímos significados aos pulsos nas seguintes formas:

- Pulso na vertical
(acentuacáo do eíxo-mastro)
Ex.: .Mo<;ambique (MG), Ciranda (PE)

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- Pulso na horizontal
(muitas vezes está associado a algumas dancas de orixás femininos, nas quais
ocorre o movimento da bacia em infinito) Ex.: O Candombe (MG)
- Pulso pendular, nas laterais
(sustenta o centro do corpo de tal forma que possibilita o movimento das pernas
nas laterais sem que haja a transferencia de peso). Ex.: Caboclinhos (PE)
- Pulso pendular, frente e atrás
(as partes anterior e posterior do tronco sáo igualmente acentuadas durante o
movimento). Ex.: rnovimento dos caboclos no Boi de Matraca (MA)

Quando o pulso está bem instaurado (há rituais onde o pulso é trabalhado por um
longo tempo) evidencia-se uma forte presenca de todo o corpo, como se o pulso o
deixasse pronto para a entrada e saída dos impulsos.fluxos e pontuacóes.

Atas de pantuar, impelir e fluir


O desempenho do corpo nas suas relacóes com o movimento caracteriza-se por
pontuacñes, impulsos e por uma fluicáo que é conseqüéncia de todas as suas acóes
integradoras a que denominamos dínamo.
Pontuar é quando determinada parte do corpo marca o espaco, envolvendo um
sair e um voltar ao eixo de equilíbrio. As relacóes de contato dos pés com o solo
estimulam as acentuacóes das várias partes do corpo no desenvolvimento da linguagem
corporal. Muitas vezes o pontuar vincula-se ao ritmo que as partes marcam, dese-
nhando no espaco as pausas que modulam o percurso coreográfico.
O impulso é a liberacáo de uma forca acumulada que necessita sair de dentro do
corpo. O movimento é dirigido a um ponto específico do espaco com a participacáo
de todo o corpo, sendo que determinadas partes desenham a acáo que fecha o
processo.
Vemos no Candombe que o impulso faz parte de sua estrutura, portanto, é previsivel.
O capitáo do Candombe quando entra na roda para cantar o ponto tem o seu
movimento caracterizado por um único ato, o de impelir-se. O ato de silenciar os
tambores também necessita do impulso no corpo do capitáo que está no comando.
O capitáo se impulsiona em direcáo aos tambores, o ato termina quando o cotovelo,
o ombro ou a rnáo cessam um dos tambores. O corpo modela o instrumento e uma
das partes mencionadas se apóia sobre ele. Portanto, o ciclo de iniciar e fechar o
ponto, repetido durante todo o tempo do Candombe, é caracterizado pelo corpo
através de seus impulsos.

Nas sambadas do Maracatu Rural o impulso, como um elemento estrutural da


linguagem, é semelhante. Quando o toque da orquestra é interrompido os caboclos
tomam o impulso para saltar e realizar a queda, permanecendo no chao. Segué-se a
loa, canto de desafio do Mestre. Na finalizacáo os caboclos tomam o impulso para a
saída do solo, executam um salto ou um giro e tornam a ficar de pé.

Enquanto no Candombe é o corpo do capitáo que determina o ato de abrir e


fechar um ciclo, no Maracatu é a música que fixa este tempo. Porém, o impulso é
uma marca que caracteriza tanto a linguagem de uma manifestacáo quanto da outra.

Um impulso imprevisível
A bandeira do Divino chegou na casa de uma mulher que nao tinha pés, apenas dois
cotós, nos quais ela se apoiava para caminhar com dificuldade. A uma certa distancia da

77
bandeira, ela parou. Todo o seu corpo vibrava, emocionado pelo encontro com o sagrado.
A um só tempo ela impulsionou-se e se quedou ajoelhada segurando a bandeira.

Observamos que o impulso origina-se no "miolo" do corpo. A pessoa para


impulsionar-se necessita atingir este centro e entáo conduzir-se num único ato para
fora, quando uma parte específica do corpo se evidencia.

o dínamo
Há momentos em que o corpo penetra num fluxo contínuo de movimentos cheios
de impulsos e pontuacóes, A pulsacáo é mantida como se auxiliasse a respiracáo para
regular a quantidade de energia liberada em cada movimento. O sentido que encontramos
para localizar este processo assemelha-se a uma conversáoda energia mecánica em energia
elétrica, poi s o corpo potencial iza-se. Sucessivamente um movimento gera o seguinte. A
rapidez deste processo, em que há o entrelacamento do movimento interno e externo,
ocorre num corpo super estimulado, pois o dínamo instaura-se no indivíduo quando ele
atinge o ápice de sua integracáo com todos os elementos da festividade, encontrando-se
também harmonizado com o grupo participante. Geralmente, este processo de fluicáo se
desenvolve nos dias em que corre o giro da bandeira, no meio de uma gira de Umbanda,
no meio-dia quente da onda do frevo, ou seja, no instante em que é necessário a
superacáo de limites. O corpo do foliáo ou do devoto, com o dínamo, tem fólego para
mover-se com gosto até o fim de cada jornada.

Dinámicas específicas
Consideramos dinámicas específicas o desdobramento de certas características de
uma linguagem e que sáo incisivas em uma manifestacáo. Sáo características que
abrem um processo com um teor que extrapola a sua própria especificidade, quando
algo de sua essencia passa a fazer parte da natureza do corpo, frutificando-se em
outras linguagens.

Atentamos para a importáncia do reconhecimento em cada manifestacáo de sua


principal dinámica já que esta significa o eixo de desenvolvimento da linguagem do
movimento.

Observamos que a ginga e a dinámica IncorporajDesincorpora imprimem uma


peculiar capacidade ao corpo quanto a sua plasticidade.

Ginga
Compreendemos a ginga como uma situacáo do corpo de refletir-se em interacáo
com o espaco. estando pronto a dar respostas imediatas e convenientes as circunstán-
cias em que se encontra. A ginga é uma matriz de movimento que contém todos os
pulsos, todas as direcóes e pontuacóes advindas de muitos estados que o corpo acorda.

Quanto a estrutura da ginga podemos assim descrevé-la: o indivíduo tem


inicialmente as pernas afastadas em paralelo, estas alternam-se, indo uma perna atrás
enquanto a outra se mantém a frente. Nao há o cruzamento das pernas, conservando-
se sempre a figura de um quadrado. O joelho da perna que se encontra a frente
apresenta-se em maior flexáo. A base é firmemente construída, no sentido de que os
pés estáo sempre buscando o solo. Alternando-se, também trabalham os bracos: o
que está él frente do tronco é sempre contrário a perna que está atrás. No abrir e no

78
aparar (defesa) há uma constante mobilidade dos bracos, repetindo-se as passagens
em que o tronco se mostra e se resguarda. Na medida em que a base vai adquirindo
raíz es há um maior equilíbrio, favorecendo a flexibilidade e agilidade do tronco. Na
alternancia contínua dos bracos e pernas no alinhamento do corpo em X, a estrutura
do movimento que está dentro de um quadrado adquire uma forma arredondada.
A dinámica da ginga trabalha com a arnpliacáo e a reducáo de seu movimento. A
atencáo do olhar é um fator importante, pois interage com o eixo e a unidade do
corpo.

A capoeira e o capoeirista nao existiriam se nao houvesse a ginga:


A ginga é que diferencia a capoeira das outras mobilidades de luta e tem como
finalidade o estudo do adversário e do "logo". Serve para preparar e desferir os golpes
de ataque e defesa, é responsável pelas esquivas e molejo, ajudando de forma decisiva
no reflexo, justamente por estar o capoeirista em constante movimento. Um bom
capoerista é reconhecido pelo seu estilo de gingar, isto é, se ele apresenta grande
desetnbereco. ritmo, descontrecño. amplitude de movimento e melicie?
A ginga sintetiza uma situacáo de tensáo que foi estabelecida em terras brasileiras:

Nasceu pois a capoeiragem de uma necessidade imperiosa de defesa humana


contra o ataque desumano. Eram os exercícios de agilidade dos perseguidos que faziam
a
frente fúria Canibalesca dos impiedosos escravocatas, que tentavam rehaver os pobres
pretos para submeté-los ao império de sua vontede?

Há um conteúdo implícito na ginga determinado pela dissirnulacao. Através dela


um jogo de relacóes deve ser elaborado de tal forma que o outro nao perceba o
movimento que irá aflorar. Portanto, o sujeito nao deixa transparecer a intencáo que
já está em seu próprio corpo. Ao mesmo tempo, existe uma sagacidade para desvendar
uma passágern no movimento do adversário, o que cria condicoes para penetrá-Io.

No vai e vem da ginga, os que jogam procuram mais que induzir o adversário a um
erro, ficam essim como certa vez falou Mestre JoJo Grande, esperando um buraco
para entrar dentro do cemerede" ..

A ginga quando está no corpo do sujerto, leva outras pessoas a chamá-Io de


Mandingueiro, pois o corpo manobrado com argúcia e inteligencia.
é A esperteza de
sua encenacáo pode ser traduzida pela artimanha. Apesar da ginga ocupar todo o
corpo e o espaco asua volta, o tronco e os membros superiores é que váo floreando,
isto é, criando desenhos no movimento com o sentido ocultado, querendo assim
hipnotizar o corpo do outro para dominá-Io.

Quando se fala que a ginga é urn jeito brasileiro de mover-se vemos que é preciso
aferir seus fundamentos, isto é, o que propiciou a geracáo desta matriz de movi-
mento. As atribuicóes de seus disfarces sáo rerninicéncias de um tempo em que era necessário
encobrir um corpo que lutava. Hoje esta memória continua impressa em alguns corpos.
O que eu gosto de lembrar que a capoeira apareceu no Bresil, como luta contra a
é

escravidJo (Mestre Pestintis)". Quando a pessoa se apropria da ginga sem cultivar a sua
principal característica, ou seja, a unicidade que cada pessoa é quando ginga, a memória
nao se instaura em seu corpo.

É preciso gingar muito, gingar sempre - este é o conselho que todo Mestrede
Capoeira repete cotidianamente - na vida. -

A ginga funciona como a grande síntese do jogo da Capoeira; os mestres enunciam os


seus princípios básicos da seguinte maneira:

79
~
Sempre com um pé atrás ... manter-se sempre em equilíbrio, permanecendo o maior
tempo possível em contato com o chao ... Ter paciencia para estudar bem o jogo do
adversário e poder agir no momento oportuno"

Este legado da Capoeira correu céus, correu mares, correu terra desembocando
nas entidades de Caboclos, Marinheiros e Baianos nos terreiros de Umbanda. A ginga
também está no capitáo Zé Bengala que puxa o Congo dos Arturos, mas nos outros
capitáes nao, eles nao trazem a ginga no corpo. Percebemos neste campo da
pesquisa que nao se trata de uma ginga montada, coreografada. Ela brota no corpo,
no ato da incorporacáo das entidades como também neste capitáo no seu ato de
puxar o Congo para fazer a caminhada.

Há um outro tipo de situacáo em que a ginga está incorporada as manifestacóes


populares através do contato direto com os capoeiristas. Em tudo era notada a pre-
sence do Capoeira, mui especialmente nas festas populares, onde até hoje comparecem,
embora totalmente diferentes de outrora. Em toda festa de Largo, profana, religiosa ou
profano-religiosa, o capoeira estava sempre dando ar de sua grece?

Nos Maracatus Rurais de Pernambuco, os Caboclos de l.anca durante as sambadas


desenvolvem a linguagem de movimento a partir da ginga. Encontramos também nas
sambadas alguns movimentos similares ao da Capoeira. Porém, a música nao tinha
nenhuma relacao com a mesma e nenhum dos Caboclos contactados na pesquisa de
campo se dizia capoeirista.

Quanto ao passo do frevo pernambucano, encontramos a seguinte citacáo a respeito


da incorporacáo da ginga como possível matriz de onde tenha se originado esta danca:

A ginga dos Passistas é um trampolim para as suas arremetidas ... Da capoeira foi
tudo o que o passista do Recife guardou, do ponto de vista dinámico. Há de haver
quem por aí estranhe a afirmativa, depois de se ter dito que o passo vem da Capoeira.
A verdade, porém, é que nao encontro em fotos, desenhos, descricoes pormenorizadas
da capoeira, nenhum golpe, nenhuma atitude que me permita estabelecer releciio de
semelhence com 05 passos do passista do frevo. Encontro, todavia, mais do que tudo
isso poderia representar como herence natural, encontro o espiríto da capoeira ....8

Concluimos que esta matriz de movimento, provinda de tantos significados e


intencóes, produz uma dinámica que fecunda linguagens diversas do movimento. Muito
mais do que parte de um repertório coreo gráfico, a ginga é a possibilidade de construir
relacóes criativas de um corpo com o outro através de uma percepcáo aguda e refinada.
Para apreender a ginga nao basta praticá-Ia, é preciso vivenciá-Ia.

Alguns anos atrás, em Sáo Paulo, no cruzamento da avenida Estados Unidos com
a avenida Nove de Iulho, observei uns meninos de rua que vendiam balas. Entrela-
cande os seus corpos por entre os carros, seduziam os fregueses para a compra, ao
mesmo tempo em que o olhar percorria o sinal e cuidava dos irrnáos menores. O
tronco pontuava, torcia e retorcia. Na defesa e no ataque, um dinheiro na máo e
muitas ofertas na outra os meninos faziam um jogo de sobreviver: A vivacidade do
olhar, pelo exercício da visáo periférica, interferia em todo corpo como se estivesse
todo ele antenado. Com matreirice os meninos conduziam o movimento dos olhares
apressados. Com precisáo rítmica, todo o carpo das criancas se articulava e no tempo
ex ato recuava para a calcada, até o próximo sinal abrir-se. Foi essa a ginga mais perfeita
que já presenciei.

80
Incorpora/Desincorpora
A dinámica de lncorporacáo e Desincorporacáo, pesquisadas nos rituais brasileiros,
leva-nos a considerá-Ia como um fator que nos traz dados fundamentais para
compreendermos o processo da linguagem de um corpo pleno.

Nao resta a menor dúvida quanto a delicadeza do assunto, mesmo que a abordagem
nao resida no desvendamento de crencas e nem tampouco das religióes, Todavia,
verifico u-se a importancia de investigar o corpo em transe, na entrada e na saída deste
movimento, principalmente quando um determinado dado cornecou a insistir no
percurso dessa leitura. Trata-se, por exemplo, das revelacóes de alguns pais-de-santo
do Candomblé quando dizem que o orixá ou santo reside dentro da pessoa, mesmo
havendo a crenca de uma forca sobrenatural atuante.

Essa idéia é reforcada na Umbanda como consta no seguinte depoimento: Noventa


por cento da doutrina da Entidade depende da doutrina e da evolucéo que o médium
tem. Ou seja, a entidade se evo/ui conforme a evoluciio tanto dos fundamentos, como
da cultura, do conhecimento de si, da /abuta da vide?
A veracidade quanto ao corpo estar recebendo ou nao um Espírito nao foi em
nenhum momento um dado (fornecido pelos iniciados) relevante para a pesquisa. O
que nos interessou foi verificar se no corpo da pessoa ocorria uma mudanca significativa,
crível pela sua atuacáo quanto ao desenvolvimento singular de uma linguagem, quando
uma entidade "montava" no seu corpo. Portanto, nao estivemos pesquisando Espíritos,
mas a pessoa encarnada.

A abordagem de Incorporar e Desincorporar refere-se a um corpo que se predispóe


a materializar uma gama de conteúdos e sentidos vivenciando uma saída de seu pró-
prio eixo. Na lncorporacáo a uniáo de várias imagens corporais firma-se em um só
corpo. No reverso deste ato há o desdobramento, poi s coexistem o "ganhar corpo" e
o "perder corpo". Observa-se metamorfoses, nas quais a plasticidade é um argumento
irrefutável - nossos olhos veem e par isso cremos que "uma entidade está chegando a
terra."

O fato é que essa dinámica nos aponta o quanto da natureza do corpo e de seus
recursos ainda desconhecemos. Quando um pai-de-santo diz que o artista é um
11

médium em potencial" (Raul de Xangó), percebernos nesta afirmativa que há uma


sensibilidade comum a ambos que desemboca, necessariamente, em correntezas
distintas.
Em relacáo ao corpo ligado aos Espíritos observamos a existencia de um enorme
preconceito e receio diante de sua sensibilidade expressa. Nos parece que muitas das
reacóes, gestos e movimentos que possam emergir de nosso corpo ainda nao foram
perscrutados, muito provavelmente devido ao medo de descobrirmos que dentro de
cada um de nós existe um transe aprisionado. Um desconhecido que nao queremos
tornar conhecido. Portanto, levantamos esta questáo carecen do ainda de muito estudo
e investigacáo na área da danca para apontar que o mundo inconsciente, residente no
corpo encarnado, pouco nos autoriza a conhecé-lo. Essa barreira talvez seja decarrente
do maiar de nossos medos, isto é das conseqüéncias da forca que o corpo mantém
represa da. O receio de incómodo de um movimento "desorganizado" nos leva a optar
por uma certa forma padronizada ou fixa justamente por se encontrar dentro de um
enquadramento previsível.

Precisamos notar que anterior ao momentum da incorporacáo a pessoa já sofreu


uma série de preparativos. Ao longo desse tempo, ela foi tomando contato com os
arquétipos enunciados pelas entidades, pois o "cavalo" ainda nao tem a revelacáo da

81
peculiar característica de sua entidade, mesmo que já a tenha visto em sonhos e em
imagens mentais no estado de vigília. Enfim, os aspectos físicos da entidade, as paisagens
em que habita e até mesmo os seus dados emocionáis sáo mistérios. A entidade só se
tornará conhecida, a partir do momento em que for incorporada. A concretude da
história personificada na entidade será relatada a partir deste momento, quando sentidos
e ernocóes tomam corpo. O desenvolvimento da entidade irá ocorrer na medida em
que houverem sucessivos Incorpora e Desincorpora, o que quer dizer, por a entidade
em uniáo com o seu "cava lo" para trabalhar.

o prelúdio das incorporacóes há uma danca "exterior" que se conecta com o


ambiente e preenche o espaco. Pouco a pouco percebemos que o olhar do "cava lo"
se volta para dentro, dando lugar a uma profunda interiorizacáo, reduzindo a acáo
externa.

O instante preciso da lncorporacáo o momentum em que "se perde o próprio


é

corpo" para em seguida adquirir "um novo corpo". Isto demosntra que se desenvolve
uma soma do corpo da entidade com o do médium que a recebe. Neste estágio há O
perder, o ganhar e o somar. No corpo do médium há uma entrada e uma saída de
conteúdos que se misturam, gerando impulsos, fluxos e pontuacóes.

A mecánica de incotporecño requer que a Entidade ou o Espírito comunicante


envolva o corpo astral do médium, atuando em tres partes que siio: na iuncéo psíquica,
na tunceo sensorial e na func¡;aomotora. Essas séo as tres condicoes necessárias, para se
processar a mecánica de lncorporecéo. 10
fa integracáo destes campos, segundo a mecánica de lncorporacáo, as pessoas
nos descrevem distintas sensacóes, dependendo da entidade e também do "cavalo".

As vezes é um empurréo, assim pela frente ... um choque, eu me sinto assim como
se fosse um choque, cada um sente de um jeito"

as pemas eu sinto uma bambeza, dá uma eensecso de que eu vou ceit; nos pés eu
já sinto um calor muito grande e os pés cotnecem a suar. Na espinha dorsal eu sinto
uma dotméncie. Na cebece eu sinto um formigamento. Séo sensacóes diferentes para
cada Falange. As sensecoes também séo direcionadas exatamente nos pontos onde
estéo localizados os chakras. É como se toda a sua energia viesse para aqueles pontos
de vibrecio (relacionados a cada entidade). É como se vocé tivesse sentido uma mutecso
em cima destes chakras, é como se tivesse levando uma agulhada na espinha dorsal. A
partir da i dá-se a incotporecño."
Em movimento o chamado denso corpo físico se extrapola, deixando evidente que
está sendo tomado. O "eixo-mastro" inclina-se, gira, tomba. O sujeito vive o movimento
da perda da centracáo, pois preciso sair de um eixo para adquirir outro. A "parte
é

sagrada" do corpo oscila, ondula e impulsiona-se. A Incorporacáo sempre vem pela


regiáo do sacro.
Exatamente por isso é que somos chamados de ca va lo, porque se diz que a Entidade
monta na gente. Este é o ponto de maior vibreciio, esta parte da espinha dorsal é

fundamental para a incorporecño porque a partir da coluna, a Entidade se iirme."


Antes da entidade se firmar conjuga-se no corpo o saculejar, o tremer, o vibrar e o
despojar. Nesses movimentos váo pontuando testa, ombros, cotovelos, joelhos,
omoplatas, costelas e outras partes do corpo, de acordo com cada entidade e seu
cavalo. Ambos realizam o sentido de entrar e sair num fluxo cheio de pontuacóes.

05 movimentos do sacro sáo rápidos e fartes, envolvendo flex6es e extens6es do


quadril, desenhos de espirais e de rotacóes, As gradacóes dos impulsos variam

82
enormemente. As impuls6es chegam as vezes a estender o sacro sobre os calcanhares.
Em outras atuacóes, o movimento sutil, ficando bem delimitada a área receptora e
é

geradora da transforrnacáo. A atuacáo do sacro, sempre envolvendo "a bacia", comoé

uma descarga elétrica que repercute em todo o corpo.

Numa aparente forma desorganizada e em desequilíbrio - que traduzimos como


uma circunstancia que o corpo passa para que ocorra mudancas - todo o corpo age
incisivamente sem a perda de sua unidade. Quando a entidade se ajusta ao corpo do
"cavalo" quase sempre o dorso das rnáos se apóia no sacro, ocorrem brados e outras
acñes vindas de um único centro, reforcando o "eixo-mastro" para que fique bem
fincado na terra. Instaurado o processo da lncorporacáo, o corpo do "cavalo" está
modelado com todos os contornos da identidade assumida, isto é, a entidad e está
recebida.

A linguagem do corpo no ato de Desincorporar é semelhante ao ato de Incorporar


com umadiferenc;a: há uma acáo de retirar algo do corpo. Os pés penetram o chao, as
rnáos impulsionam-se chegando a tocar o solo, como se algo escorresse por entre os
dedos, a cabeca gira e se joga para o alto. As impuls6es levam o corpo a transportar-
se através de pequenos saltos.

Quando cessa o movimento, com freqüéncia a pessoa mais próxima do "cavalo" o


auxilia a retornar do estado de lncorporacáo, chamando-o pelo nome e proferindo a
seguinte frase: (Nome) seu anjo da guarda Ihe chama. Investigando sobre este terceiro
elemento, o anjo da guarda, participante desta dinámica, obtivemos o seguinte relato:
É uma invocecéo do Espírito da pessoa para dentro dela, porque o outro (a Entidade)
está saindo. Porque há uma troca. Porém o espírito (da pessoa) permanece durante
todo o tempo, pois fica ligado pelo umbigo, como se ela (a pessoa) ficasse fora mas
presa a seu umbilical (referindo-se ao corpo da pessoa). Basicamente é isto: seu espírito
dá lugar a um outro espírito porém continua ligado a seu umbiticei"
O toque das máos e a inducáo de determinados movimentos sáo utilizados pelas
pessoas que auxiliam no processo individual izado do "cavalo", tanto na lncorporacáo
quanto na Desincorporacáo. Observamos diferencas de atuacáo quando a entidade é
recebida pela primeira vez e quando já ocorreram inúmeras incorporacóes no mesmo
"cavalo".
Quando vocé comece a Incorporar, as Entidades vem de forma bem brusca,
sacudindo vocé, jogando vocé no chao. As pessoas tem que ficar te amparando, te
segurando. Na medida em que vocé vai nesta coisa de Incorpora e Desincorpora, voce
vai fortalecendo 05 seus chakras, voce vai fortalecendo as tuas energias e as tuas Entidades
comecem a se adaptar ao seu estado físico do dia-a-dia. Comece a teruma liga<;aocom
a sua maneira de ser normalmente. O Espírito quando ele vem, vem muito agitado e
com o passar do tempo, nao só vocé vai se estruturando fisicamente para suportar este
Espírito, como este Espírito vai se doutrinando e atuando de uma forma mais branda. As
vezes vocé tem lncorporeciio que as pessoas nem percebem que vocé incorporou.
Porque, vocé se prepara fisicamente, psicologicamente e atua. Na verdade noventa por
cento da lncorporeciio do Espírito ela se faz apenas na tua moleira ou Ori (cebece} ... O
Espírito quando comece a Incorporar, quando ele comece a prestar a caridade dele, ele
vem como se fosse uma pedra bruta. O médium é que tem que ir lapida ndo, lapidando,
lapídando. Isto vocé nao tenha dúvida, o médium é a pece fundamental de tudo."
Essa dinámica nos auxilia a compreender o processo do intérprete na construcáo da
personagem quando a proposta é vive-la em carne e 0550 a partir de um conteúdo
vivencial. Nao se trata de fazer "viagens" nem tampouco mistificacóes, mas sim
"aterrissagens". A referencia de campo nos traz a realidade de um trabalho realizado

83
internamente e que é construído de forma gradual com a efetiva participacáo do corpo-
sujeito. Se noventa por cento da lncorporacáo depende do médium, o mesmo podemos
dizer do intérprete na construcáo da personagem. A outra porcáo que corresponde a
entidade na Umbanda podemos compará-Ia a
interferencia do talento inato do intérprete.
No complexo mecanismo de que nos fala a Umbanda - onde um fluxo energético
atua nos corpos físico, emocional e mental em interacáo com a entidade espiritual -
étáo importante o Incorporar quanto o Desincorporar. Em ambos há uma circunstancia
de desequilíbrio pela qual o corpo precisa passar. Aos poucos os movimentos caóticos
váo se fundindo até chegar a clarear uma forma concebida. O corpo foi reequilibrado
e reorganizado. A potencia que o corpo adquire, para reverberar um conteúdo de sua
intimidade em relacáo direta com um inconsciente coletivo, torna o sujeito táo distinto
de sua roupagem cotidiana que muitas vezes chega a ser o seu oposto. Mas esta
realidade do sujeito incorporado também acaba intervindo em sua realidade cotidiana.

O "cavalo" nao escolhe o que vai incorporar. Trata-se de uma verdade que nao
depende do gosto da pessoa. A pessoa abre rnáo de sua auto-imagem para receber
em seu corpo o que for preciso, necessário.

A dinámica caracterizada por saídas, entradas e pelas somas na descoberta de si


mesmo ocorre naquele sujeito que se oferece para ser cavalgado, ciente de que as
rédeas estáo em suas próprias máos,

NOTAS

1. o professor Klaus Viana, em suas aulas práticas de especo que circunda o corpo, predominando uma
dence, empregava os termos "resistencia" e "epoio", rápida mudanr;:a das sustentecoes dos grupos musculares
para distinguir qualidade de movimentos, quando utilizados durante o movimento.Há uma extroversiio no
realizados com a intencño da musculatura e com a caráter do movimento mostrando que o livre fluxo é
intenceo da osseture, respectivamente. Vivenciando mais atuante. Vivenciando este tónus através dos
estes aspectos, como sua elune, tornavam-se claras as movimentos assim identificados, percebemos que a
distintas qualidades de tonus, auxiliando-me na referencia está na percepciio da ossatura, principalmente
pesquisa em meu próprio corpo e na leitura do corpo a través das articular;:8es.
do outro. Portento, utilizamos "resistencia" e "epoio"
para qualificar alguns níveis de tensiio da musculatura, 2. Hélio Campos - Mestre Xareú, 1990.
por serem palavras realizadoras do movimento no 3. Reportagem Anónima "Cepoeiregem e os seus principais
corpo. cultores; a ar;:aoda Policie, de Vidigal a Sampaio Ferrez" -
A somatória das pesquisas conduziram as seguintes Vida Policial - Rio de jeneiro, 21 de merco de 1925.
interpretar;:8es: 4, 5 e 6. Cezar Barbieri - Um jeito brasileiro de aprender a
No "tónus de Resistencia" a ar;:aomuscular é de ser, 1993.
entepero, no sentido de proteger, resguardar, defender 7 Waldeloir Rego - Capoeira Angola Ensaio Sócio-
o corpo do meio externo. Na intenr;:ao do corpo resistir, Etnográfico, 1968.
há uma contenciio da toree e o fluxo do movimento
está sob controle. A imagem que o corpo apresenta é 8. Waldemarde Oliveira - Frevo, Capoeira e Passo, 1971.
de densidade. Realizando os movimentos provindos das
9. Carlos Alberto da Costa - Umbandista, Brasília (DF),
pesquisas de campo que identificamos com este tonus, 1995.
verificamos que há uma intencéo do corpo de penetrar
incisivamente o especo. Apesar da referencia deste 10. "Umbende, Uma religiéo brasileira''¡Revista - Sáo Paulo:
tonus estar na percepciio da musculatura, sentimos na Escala, ano l.
sua gredecéo máxima algo como se a ossatura
"perfurasse a carne". 11. Umbandista - Campinas (SP), 1995.
No "tónus de Apoio" a ar;:ao da musculatura deé 12, 13, 14 e 15. Carlos Alberto da Costa - umbendiste,
encontrar epoio, com uma referencia de densidade no Brasília (DF), 1995.

84
8. O PROCESSO DE CONSTRU~AO·DO
BAI LARI NO-PESQU ISADOR-I NTÉRPRETE

A linha de trabalho que propomos está voltada para a construcáo do bailarino-


pesquisador-intérprete. O processo apresenta em seu eixo de acáo uma visáo do que
seja a pessoa, na condicáo de bailarina, como pesquisadora de si mesma no confronto
com determinadas realidades, que propiciam-Ihe viver os papéis que emergem destes
contatos. O fato do processo estar vinculado a um contexto nacional, boja de várias
rnanifestacóes culturais, nao significa que o seu principal objetivo esteja voltario para
uma estética brasileira, mas sim para o que ela nos propicia: o desenvolvimento das
potencialidades artísticas numa relacáo mais direta do bailarina com a vida ao seu
redor.

A partir de minha própria vivencia como bailarina-pesquisadora-intérprete fui


constituindo um "método", consolidado em nave anos de aplicacáo a alguns bailari-
nas interessados, muitos deles alunos do curso de Dancada Unicamp. Nos espacos
das aulas de danca, juntamente aos dos campos de pesquisa, foram senda elaborados
projetos, resultando em criacóes artísticas, que possibilitaram desenvolver as várias
etapas do "método". Sua esséncia re-side na inter-relacáo dos registros emocionais
que emergem da vivencia na pesquisa de campo com a memória afetiva do próprio
intérprete.

As aulas de danca adquirem o significado de laboratório das fontes, senda o bailarina


o primeiro sujeito a ser pesquisado por ele mesmo. Tendo como principió a "Estrutura
Física", o carpa-sentido é sisternaticamente trabalhado. Procura-se atingir, a nível
profundo, os ossos e músculos envolvidos em cada matriz de movimento. Esta
associacáo as imagens internas provoca sensacóes distintas em cada pessoa. O
desdobramento das temáticas, provindas das manifestacóes culturais brasileiras, é
realizado a partir da incorporacáo de seu s campos simbólicos, considerando-se as
dinámicas específicas de cada uma delas: Estas fontes brasileiras provocam um conflito
no bailarina, levando-o a questionar sua Identidade. Estes conflitos sáo vistos como
importantes elementos nas linguagens da danca, já que os seus movimentos sáo
trabalhados. O percurso interior (imagens e registros emocionais) é desenvolvido em
interacáo com o movimento exterior, buscando-se sempre uma qualidade que seja
resultante da realidade do sujeito-bailarino.

Aa bailarina é solicitado o inventário de suas origens, de seus registros culturais, de


sua relacáo com aterra. Na medida em que o bailarina vai se situando - no mundo e
em si mesmo - ocorre a integracáo de vários aspectos que a príncipio pareciarn
fragmentados. Um espaco imaginário é construído para que a linguagem da danca
brasileira em seu carpa possa desenvolver-se. Neste espaco sáo trabalhados o medo
de errar, os preconceitos, o enfrentamerito da própria impotencia, sem o bailarina
parar de se mover. Questiona-se o que é a danca no próprio carpa. Há um momento
precioso nesta etapa, quando o bailarina corneca a destituir-se de sua armadura. Ele
nao consegue movimentar-se como antes, torna-se frágil, pois é como se nao soubesse
mais dancar. Em seguida, conduzindo o movimento de dentro para fora, com os sentidos
agucados, ele corneca a perceber a unidade de seu carpa, e a sua resposta na danca
adquire uma forma mais consciente. O movimento do outro e o seu próprio sáo vistos
sob uma nava ótica: sem rótulos.

147
Na pesquisa de campo, o corpo do bailarina deve estar preparado para a coleta
de dados. No mínimo, os seus pés já contactam o solo com alguma raiz. Portanto, o
seu corpo já nao é táo diferente dos corpos que ele vai pesquisar. A percepcáo do
"olhar", exercitado nas aulas de danca, deve habilitá-lo a ler como o movimento se
processa na pesquisa de campo, com agilidade para detectar as partes mais evidentes
e a totalidade do corpo que aí danca.

Inicia-se a etapa do rastreamento a partir de referencias da rnanifestacáo ou do


segmento social que será o foco da pesquisa, sendo fundamental a empatia do pes-
quisador com o mesmo. A escolha do lugar e do grupo para o desenvolvimento da
pesquisa é determinada, dentre outros fato res, pela qualidade de movimento, que
poderá estar restrito a poucas pessoas. Na esealha do bailarino-pesquisador-intérprete
já estáo contidas referencias importantes quanto ao enfoque de seu trabalho poste-
rior, mesmo que inconscientemente.

A preparacáo para o campo exige centracáo, com todos os atributos do que seja
eixo: postura, neutralidade e um estar presente (= envolvimento com a realidade,
despojado dos pré-eanceitos, relacionados adanca). Ao mesmo tempo há que se ter
um corpo aberto para o recebimento do material da pesquisa em si mesmo. Há que
se ter folégo e paciencia para pesquisar "o corpo que danca" em todo o seu contexto.

O pesquisador, integrado ao campo, conquista as suas relacóes com as pessoas,


passo a passo. Um mínimo de perguntas sáo feítas, privilegiando-se os dados nao
verbais. Os relatos sáo ouvidos com a atencáo voltada para o que eles podem estar
cerceando. No momento em que o bailarino-pesquisador-intérprete "perde" o referencial
da razáo objetiva de estar ali, ele transpassou o limite de seu mundo e penetrou na
moldura do outro. Isto significa que ele está ea-habitando com a fonte. Neste patamar
ocorrem apreens6es de elementosfundamentais, náo-verbais. que o corpo assimila e
guarda no inconsciente, e que seráo expressos no trabalho de laboratório. Este
conteúdo, recebido e expresso no laboratorio, penetratarnbérn no trabalho de criacáo
artística.

Na pesquisa de campo a orientacáo é feita considerando-se principalmente a


relacáo do pesquisador com o seu lugar de pesquisa. Nesta direcáo nao se trabalha
com certezas, mas com cumplicidades por um lado e por outro. Devido a
torea
emocional, impressa nesta modalidade de pesquisa, as situacóes sáo constantemente
avaliadas, privilegiando-se a busca do equilíbrio em todos os momentos.
De modo geral, segue-se do campo para o laboratório, mas estas etapas muitas
vezes se entrecruzam. Os laboratórios térn como finalidade a incorpora~ao da per-
sonagem. Os diários de campo e os demais registros, como os áudios eVideos, sáo
instruméntos importantes, mas é a partir do bailarino-pesquisador-intérprete, do que
o seu corpo expressa ou deixa de expressar, que o trabalho é conduzido.
Os laboratórios sáo dirigidos através de criacóes de dinámicas relacionadas aos
conteúdos e desdobramentos de linguagens provindas das fontes pesquisadas. As
respostas do bailarino-pesquisador-intérprete, em relacáo a estas dinámicas, váo
direcionando o enfoque de cada dia de trabalho. Inicialmente nao há uma fluidez de
significados expressos pelo corpo. Nesta fase, sucedem-se os bloqueios em partes
específicas do corpo, como também a repeticáo de alguns movimentos que impe-
dem o fluxo da dinámica. A pessoa se detém, mesmo havendo propostas estimulando-
a para seguir adiante. O bailarino tende a se ocultar, seu movimento fica introspectivo.
Sáo situacóes em que vemos a necessidade de abrir um espaco para que a pessoa
tome conhecimento dos conteúdos que a estáo impedindo de mover-se. As emocóes
que váo sendo abertas devem ser elaboradas para que o bailarino-pesquisador-

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intérprete possa distinguir uma ernocáo trabalhada de um "ernocionalisrno".' De ta


forma, o objetivo é que a ernocáo seja o motor de um movimento consciente, atribuindo
uma maior plasticidade ao corpo.

Através dos laboratórios vivencia-se o vazio, o caos, até a conquista de uma forma
ordenada. No espaco fechado da sala, o bailarino-pesquisador-intérprete vai construindo
paisagens imaginárias e passa a atuar dentro delas. Nao há preocupacóes quanto a
reter o que vai sendo expresso, nem tampouco as descobertas sáo racionalizadas. O
trabalho é conduzido de maneira que as paisagens possam se fundir e sofrer
transforrnacóes. Naturalmente, algumas paisagens cornecarn a se repetir, entrelacadas
a "alguém" que circula ou habita nelas. Continuamente é solicitado ao bailarino que
faca a projecáo das imagens internas nas paisagens-cenários e que elas retornem
modelando algumas partes do corpo em movimento. Nesta fase van se desdobrando
e se integrando os dados das fontes de pesquisa (do campo e do Intérprete) e a
linguagem de movimento é mesclada. O movimento-síntese irá ocorrer no momento
em que uma imagem-chave (somatória de várias imagens), ganhar contorno e lugar.
Através do movimento, o bailarino ve dentro dele algumas características de uma
~ em seu espaco originário. A partir de entáo ele irá "incorporá-Ia" e todo o
seu trabalho vai se desenvolver por intermédio dess~s~na~

Com a personagem instalada, o corpo vai adquirindo o dínamo. Perde-se o


referencial de feio e bonito. As travas do corpo do intérprete van sendo liberadas
com a ajudá da personagem. Na personagern estáo representados vários aspectos da
pesquisa de campo e o seu estofo está associado aos conteúdos já conhecidos do
bailari no-pesq u isador-i ntérprete.

As matérias extraídas dos laboratórios sáo determinadas na medida em que o bailarino-


pesquisador-intérprete evolui na incorporacáo de sua personagem. Portanto, este é o
eixo de construcáo do trabalho cénico. A direcáo corneca a estabelecer limites
conduzindo os conteúdos que foram abertos para serem elaborados e sintetizados. O
esboce de algumas cenas van sendo compostas na prática do desenvolvimento da
personagem, até o estágio indicativo da criacáo de uma estrutura:'o roteiro.

O roteiro emoldura um grande volume de representacóes, tendo como objetivo


primeiro a fluidez do bailarino-pesquisador-intérprete. Neste caso, há uma preocu-
pacáo quanto a clareza do que se quer expressar, relativizando a interferencia do
roteiro que, quanto a perspectiva de espetáculo, fica em segundo plano; isto no sentido
de que nao existem estratégias para encobrir os limites do intérprete nem tampouco
uma construcáo formal que nao esteja integrado a ele.

Durante o processo sáo elaborados os espacos cenográficos, os objetos e os


figurinos com a participacáo direta do bailarino-pesquisador-intérprete em suas ma-
nufaturas. A estrutura-física, provinda das manifestacóes culturais brasileiras, é uma
referencia de trabalho técnico, abrindo-se também para outras referencias que possam
contribuir para o burilamento de cada corpo que será exposto. As ernocóes que movem
o roteiro sáo trabalhadas até o momento em que el as possam ser conduzidas de
forma consciente.

O processo inteiro é trabalhado no fio limite de exigencia em relacáo a cada


bailarino-pesquisador-intérprete. Porém, a pessoa é mais importante do que o produto
artístico, uma vez que a qualidade estética depende de sua integridade.

A estrutura do espetáculo é frágil, necessitando que o bailarino-pesquisador-intérprete


de vida a cada fragmento que o cornpóe. A capacidade de transformacáo da estrutura
do espetáculo é decorrente da conquista do intérprete, quando ele aprende a

149
compartilhá-Io com O público, mesmo diante de rejeicóes, Neste estágio, vivido em
profundidade, o bailarino reconhece o tributo a pagar pelo próprio desenvolvimento,
quando o aplauso nao é a forma mais esperada de reconhecimento pelo que é feito.

Diante da natureza deste processo é fundamentel que a pessoa o escolha, para


desenvolver-se. Cabe a direcáo mover-se dentro das fontes de-pesquisa, individualizan-
do o processo. Nao existem formas de repeticáo quanto as dinámicas utilizadas nas
várias fases, pois cada grupo, cada pessoa, apresenta características que mobilizam
formas distintas de conducáo. Há circunstancias em que cada etapa necessita estar
bem delineada e há outras em que elas se interceptam. Também a duracáo de tempo
no trabalho do bailarino-pesquisador-intérprete é relativa as situacóes que se Ihe
apresentam.

Como um grande quebra-cabecas as pecas váo se encaixando - neste jogo nao cabem
as casualidades e sim interacóes - revelando a coeréncia do percurso construído.

Seguindoeste trajeto, o bailarino-pesquisador-intérprete tem o processo em suas


máos, em seu entendimento, em seu corpo inteiro. Porém, é necessário que ele percorra
o seu caminho guardando o devido tempo de decantacáo do que foi vivido, e se
disponha a trabalhar.

Observamos que, apesar de pormenorizada, uma descricáo do processo sempre


poderá suscitar equívocos nas interpretacóes, uma vez que todas as suas etapas estáo
relacionadas a nossa própria vivéncia. Sobre os resultados obtidos na forma de
espetáculos, nos limitamos a fazer uma abordagem generalizada, reconhecendo, porém,
a existencia de particularidades no desenvolvimento de cada um deles. Passamos a
apresentar apenas alguns dados relacionados ao conteúdo já exposto no intuito de
que possam contribuir para a melhor cornpreensáo do processo de forrnacáo do
bailarino-pesquisador-intérprete.

A fala dos bailarinos em desenvolvimento no processo


Situamos os momentos em que as bases do processo sáo construidas; trata-se,
portanto, de períodos anteriores ao aprofundamento das pesquisas de campo e a
criacáo de espetáculos. Alguns dos tópicos de desenvolvimento do processo sáo
destacados aqui através dos relatos dos bailarinos. Escolhemos os relatos mais re-
presentativos quanto a relacáo dos alunos com os procedimentos do processo de
formacao do bailarino-pesquisador-intérprete.

As aulas de danca adquirem o significado de laboratório das fontes, sendo o bailarino


o primeiro sujeito a ser pesquisado por ele mesmo.

Ultimamente tenho aprendido a ponderar a ansiedade quanto ao que meu carpa


produz sem me conformar com isto de forma alguma, mas sem declarar guerra contra
o tempo.
Para mim isto é um mergulho dentro da própria imagem. É como mergulhar na
água e sentir o carpa todo envolvido. Tudo fica a flor da pele, o carpa fica atento a
todas as reecoes.

Lentamente sentia que meus pés se assemelhavam as raízes procurando o solo para
penetré-lo cada vez mais. Percebi que do centro do carpa vem a intencño do movimento
a ser realizado e nao a forma a Ihe dar intencéo.

Sinto que agora consigo aproveitar um aspecto que vejo como importante no trabalho,
que o respeito pela individualidade de cada um. Fico mais comigo, experimentando
é e

150
me dando o direito de me sentir. Entiio, acho que pela primeira vez acredito que tenho
potencial.
O percurso interior (imagens e registros emocionais) é desenvolvido em interacáo
com o movimento exterior, buscando-se sempre uma expressáo que seja resultante da
realidade do sujeito bailarino.

Eu nao conseguia ter imagens - que diabo de imagem é essa? (eu pensava). Ficava
tiio distante daquilo, nem ao menos a tal da paisagem me aparecia. Eu até tentava
e
imaginar alguma de que eu gostasse, mas ficava falso logo ela me fugia. As coisas
comeceretn a tomar algum sentido para mim durante um exercício no qual vocé
(Craziela), partindo de um pulso, pediu para irmos intensificando-o e deixando que ele
tomasse todo o corpo. Depois pediu para que ele fosse diminuindo até ficar só dentro
do corpo como uma sensa<;ao do pulso. Neste dia eu consegui ver uma paisagem, ela
simplesmente surgiu (vocé também pediu para que deixássemos os "pés nos trilhos"}.
Junto com esta paisagem eu também me movimentava sem estar pedindo ao meu
corpo. Era como se meu corpo tivesse criado inteligéncia. A partir deste dia as imagens
foram surgindo.
Tive a possibilidade de o tempo todo nao ficar preso él aquisi<;ao de passos ou
seqüéncias, mas sim de tentar a essocieciio entre intenciio/gesto/reeciio.

A grande preocupecéo com a base (os pés), o contorno com o chao e o "rabo"
possibilitaram-me um bom desenvolvimento técnico com liberdade para sentir o
movimento e fazé-Io a partir do meu corpo. No comeco me assustou, m?s me fez muito
bem, pois eu podia fazer o que estava sentindo e nao o que tentava copiar. As imagens
ajudaram bastante.
Eu nao conseguia fazer nenhum movimento na frente do altar. Parecia uma heresia.
Como me diziam na infancia: nao pode dencer na igreja, nem no cemitério, nem na
quarta-feira de cinzas, sábado de Aleluia ou dia de fina dos. E nao adiantou eu pensar
racionalmente que era tudo uma grande besteira. Muscularmente eu estava paralisada
por estas lembrences.
Houve o momento de lnsegurence, de querer protecéo - "a personagem" entrou na
cara vela e partiu.
Ao bailarino é solicitado o inventário de suas origens, de seus registros culturais, de
sua relacáo com aterra.

Minha avó me puxava e denceve cana verde, na minha frente, em sua cozinha. Eu
nao entendia o que era aquilo.

No universo de "meu quintal" tinha uma avó benredeire, um avo que fazia promessas,
minha mée ligada él religiosidade popular. Eu discrimina va tudo isso, preferia a diterence,
construindo uma falsa identidade. Hoje percebe que há um universo muito meiot em
ser brasileiro. Os dados que levantei mostraram-me como tudo isso faz parte de mim.
5ó que nao é fácil aceitar-me neste contexto.

Um espaco imaginário é construído para que a linguagem da danca brasileira


possa desenvolver-se no corpo do bailarino.

É como retornar a uma estrada há muito nao utilizada, mas conhecida. No seu
percurso viera m muitas lembrences. .
Mergulho surpreendente pro fundo da gente. Estrada estranha de terra. Um dia de
busca. Uma imagem que move uma linguagem.

151
Meu movimento está adquirindo densidade, equilíbrio. Perdi a angústia dos pés.

Gostaria de chegar ao cortejo, mas nunca consigo.

Meu corpo um monte de sensecoes. nao tem forma definida, ou história, ou nao
é é

corpo, só sensecoes. Talvez seja como a argila crua, sem forma. O chao sensível aos é

movimentos, ou talvez eu seja sensível ao chao. No próximo pesso, posso cair no nada.
É o medo. O corpo vive essa realidade, assume o movimento, reage, vivo, denso, inteiro.
Vejo um grande círculo com chao de terra escura e pedrisco. O lugar está cercado
por casinhas velhas com portas e janelas fechadas, porque chove. Uma pessoa ocupa o
meio do círculo e está só. Ela atingida por raios, ela o próprio raio. Uma canoa no
é é

rio ... Alguém está de pé na canoa e o belenco da água brinca com o seu eixo. O corpo
nao tem memória, moco,
é menina, é velho. O corpo sente fisgadas, tremores como
é

se fosse desestruturar-se, mas pode suportá-Ios. O corpo fica molhado, a roupa colada
revela um corpo de mulher forte. Fica-me a certeza de que ela protegia a todos, ela é

um pára-raios. O corpo sinuoso recolhia algo com as miios e trazia para a barriga. Fui
endurecen do, virei a imagem. Estou num andor, as pessoas me vém de baixo e cantam
para mim. Sou levada por uma canoa que parte. Ela beience e belenes ... Desta vez o
trabalho foí diferente, o movímento que trazia as lembrences. "(No inventário desta
é

bailarina constavam dados de sua familia referentes a procissóes em canoas feitas em


devocao ao Divino e a Nossa Senhora.)

A pesquisa de campo: primeiras experiencias.

A pesquísa de campo me fez conhecer um mundo bem diferente do meu. Antes de


tudo, a gente gente. E foí assim que eu fui tratada. Nao houve entrevistas e sim
é

conversas.

Percorremos caminhos com a folia por cerca de doze horas. Nosso envolvimento
com o grupo foi bastante profundo, de tal modo que ao final de um día parecía que
está vamos juntos há muitos días.

NOTAS

1."Emocionalismo" - emociio represa da, desconhecida, que da pessoe, permanecendo na máscara do rosto.
atua numa forma representada e nao circula pelo carpa

152
CONCLUSAO
-

Caracterizar o que seja a danca brasileira implica uma sene de quest6es.


Consideramos as fontes populares como uma das quest6es que deveria fazer parte
das discuss6es do meio oficial devido él sua importancia na constituicáo da estrutura
cultural brasileira. Diante disso - independente do método oulinha de abordagem de
trabalhos em danca - é fundamental que o bailarino e/ou coreógrafo "marquem seus
pés com lama", ou seja, tenharn um contato direto, corpo a corpo, com o universo da
cultura popular. De outra forma continuaráo ocorrendo equívocos nas representacóes
que distanciadas das fontes se utilizam delas para "abrasileirarem" o movimento. Nesse
caso, os corpos made in Brazi/ reforcarn os estereótipos de uma danca baseada no
olhar etnocéntrico daqueles que observam a cultura popular somente como um objeto
exótico.

O método que propomos pode perfeitamente nao se adequar a um grande número


de talentos. Todavia, verificamos que se adequa a muitos dos que estáo insatisfeitos
com resultados apenas formais na danca. Em funcáo disso, acreditamos que novos
talentos poderáo surgir como conseqüéncia do desenvolvimento do processo de
forrnacáo do bailarino-pesquisador-intérprete. Os resultados obtidos até entáo, ainda
que possam parecer simples, representam para nós uma colheita farta e de qualidade.
Isto pode ser comprovado quando observamos um pequeno grupo de jovens bailarines-
pesquisadores-intérpretes cientes de suas coridicó es. acreditando em suas
potencialidades e enfrentando o exercício da disciplina, porque sabem que a liberdade
de dancar deve ser resgatada cotidianamente. Nessa linha de trabalho, a danca nao
decorre de nenhum mecanismo espontáneo, mas se revela como uma danca construída
com rigor. Mais uma vez, recordamos a importancia de que este carpo seja flexível,
individual izado e sempre aberto a novas realizacóes.

O trabalho que apresen tamos nao pretende entrar no debate específico sobre
conceitos de pesquisa nem discutir a danca no ámbito de metodologias pré-
estabelecidas justamente por ter nascido de uma experiencia de vida vinculada él nossa
forrnacáo de bailarina. Registrar o processo de forrnacáo do bailarino-pesquisador-
intérprete tornou-se um compromisso assumido com os novos bailarinos, uma vez
que muitos deles térn nos fornecido respostas através de trabalhos desenvolvidos com
base em nossa linha de investigacáo e criacáo.

Nosso objetivo maior foi, portanto, compartilhar o ernbriáo de uma proposta de


vida e de danca na expectativa de que outros passos venham a ser dados por aqueles
que se dispuserem a atuar de corpo inteiro - com coragem, dignidade e equilíbrio -
em cada momento de sua autoconstrucáo como pessoa e bailarino.

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