Literatura brasileira contemporanea
um territério contestado
Regina Dalcastagné
HoRvONTE1. Pluralidade e escrita
Desde os tempos em que era entendida como instrumento de
afirmagio da identidade nacional até agora, quando diferentes
grupos sociais procuram se apropriar de seus recursos, a literatura
brasileira € um territorio contestado. Muito além de estilos ou
escolhas reperteriais, o que esta em jogo é a possibilidade de dizer
sobre sie sobreo mundo, de se fazer visivel dentro dele Hoje, cada vez
mais, autores e criticos se movimentam na cena literéria em busca de
espaco-e de poder, o poder de falar com legitimidade oude legitimar
aquele que fala. Dai os ruidos e o desconforto causados pela presenca
de novas vozes, vozes “no autorizadas”; pela abertura de novas
abordagens ¢ enquadramentos para pensar a literatura; ou, ainda,
pelo debate da especificidade do literario, em relagao a outros modos
dediscurso, edas questies éticas suscitadas por esta especificidade.
£ dificil pensar a literatura brasileira contemporanea sem
movimentar um conjunto de problemas, que pode parecer
apaziguado, mas que se revelam em toda a sua extensio cada vez que
algo sai de seu lugar. Isso porque todo espago ¢ um espaco em
dispute, seja ele inscrito no mape social, ou constituido numa
narrativa Pai o estabelecimento das hierarquias, as vezes, to mais
violentas quanto mais diseretas consigam parecer: quem pede passar
por esta rua, quem entra neste shopping, quem escreve literatura,
quem deve se contentar em fazer testemunho. A nao concordancia
com as regras implica avangar scbre o campo alheio, 0 que geratensdo e conflito, quase sempre, muito bem disfargados. For isso, a
necessidade de refletir sobre como a literatura brasileira
contemporanea, ¢ os estudos litersrios, situam-se dentro desse jogo
de forgas, observando 0 modo como se elabora (ou nao se elabora,
contribuindo para 0 disfarce) a tensdo resultante do embate entre os
que nao esto dispostos a ficar em seu “devido lugar” e aqueles que
querem manter seu espago descontaminado.
Para isso, é preciso dizer, em primeiro lugar, que o campo literério
brasileiro ainda ¢ extremamente homogéneo. Sem diivida, houve uma
ampliagéo de espacos de publicacio, seja nas grandes editoras
comerciais, seja @ partir de pequenas cases editoriais, em edigtes
pagas, blogs, sites etc. Isso ndo quer dizer que esses espacos sejam
valorades da mesma forma, Afinal, publicar um livre no transforma
hinguém em escritor, ou seja, alguém que esté nas livrarias, nas
resemhas de jomnais e revistas, nas listas dos premiados em concursos
literétios, nos programas das disciplinas, nas prateleiras das
bibliotecas. Basta observar quem sdo os autores que estéo
contemplados em vérios dos itens citados, como séo parecides entre
si, como pertencem a uma mesma classe social, quando nao tém as
‘mesmas profissdes, vivem nas mesmas cidades, tem a mesma cor, 0
mesmo sexo.
$6 para citar alguns mimeros, em todos os principais prémios
literdrios brasileiros (Portugal Telecom, Jabuti, Machado de Assis, So
Paulo de Literatura, Passo Fundo Zaffari & Bourbon), entre os anos de
2006 ¢ 2011, foram premiados 29 autores homens ¢ apenas uma
mulher (na categoria estreante, do Prémio Séo Paulo de Literatura)!.
Outra pesquisa, mais extensa- apresentada no iiltimo capitulo deste
livro -, mostra que de todos os romances publicados pelas principais