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DUNKER, C.I.L. – A Lógica do Condomínio ou o Síndico e seus Descontentes.

Revista Leitura
Livre – Centro de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, n 1., 2009.

A Lógica do Condomínio ou: o Síndico e seus Descontentes

Christian Ingo Lenz Dunker

1.A Lógica do Condomínio:

Ao entrarmos em um desses modernos condomínios, projetados com a mais tenra


engenharia urbanística, temos o sentimento pacificador de que enfim encontramos alguma
ordem e segurança. A polícia parece estar realmente presente, apesar de particular. As ruas
estão bem pavimentadas e sinalizadas, apesar de vazias. Crianças brincam em estado de
natureza. As casas exibem seu indefectível jardim frontal, sem cercas. Tudo o mais é
funcional, administrado e limpo. A imagem desta ilha de serenidade captura as ilusões de
um sonho mediano de consumo. Uma região isolada do resto, na qual se poderia livremente
exercer a convivência e partilhar o sentido de uma comunidade de destino. Além de tudo
estamos entre iguais. Protegidos pelos muros que anunciam: aqui vigora um estado
especial da lei. Ao passar pela guarita prepare-se para ser fichado e filmado: você está
entrando no sistema.
Antes mesmo de possuirmos nossos próprios condomínios fechados, aprendemos a
associá-los com a imagem de felicidade, que não sem alguma ironia, podíamos colher no
cinema e na televisão. É o subúrbio redivivo da Califórnia à Long Island que podíamos
importar e implantar por aqui. Assim, quando os primeiros projetos deste tipo ganharam
corpo no Brasil dos anos 1970 era também uma ilusão pré-fabricada que encontrava seu
signo de realidade. O muro entre civilizações podia ser reaplicado como uma estratégia
intra-civilizatória. Auschwitz encontra sua face redentora depois do estágio representado
pelo muro de Berlim. Inverta-se os sinais e as câmaras de gás transformam-se em câmaras
de gozo. Os muros para não sair transformam-se nos muros para não entrar. O estado de
exceção torna-se a regra. O cerco, não a trincheira ou a batalha se tornam a tática
predominante.

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A psicanálise nos ensina a reconhecer com suspeita tais produções da cultura, que
acenam com uma região de extraterritorialidade protegida, um espaço abrigado onde se
concentraria a realização do prazer retinto de liberdade hedonista. Aprendemos com a
experiência neurótica que o passo seguinte à montagem de uma fantasia de tal expressão é
o estranho sentimento de servidão que nos acorrenta à repetição de uma mesma rotina
fantasmática. Estes dois tempos da fantasia aparecem no filme Beleza Americana no qual o
protagonista Kevin Spacey comenta sua própria vida em um condomínio. Enquanto se
masturba no banheiro e anuncia sua própria morte ele observa: “Notem a estampa do
sapato de minha mulher enquanto verifica as roseiras. Combina com o cabo da tesoura de
poda. Não é por acaso”. A lei de ferro da parecência é ironizada até incluir a vida no
trabalho e o imperativo simples de que o Trabalho Liberta (Arbeit macht Frei), como se
encontra nos portões dos campos de concentração nazistas).

No mais das vezes sobrevém uma terceira etapa da fantasia. Nela proliferam atos
dispersos que tentam corrigir o paradoxo da fantasia, ás vezes pela purificação do excesso,
mas, via de regra, pela tentativa de transformar a lei, agora reconhecidamente insensata,
que a comanda. Tais atos procuram mostrar em vez de rememorar, repetem comicamente o
momento trágico que os tornou possível. É também o momento em que se torna difícil
distinguir o sintoma do fetiche, ou seja, a contingência ou necessidade formal da lei.
A cultura brasileira, no período pós-inflacionário, pode ser descrita pela expansão
da lógica de condomínio que parece ter alterado, gradativamente, a antiga relação
parasitária e clientelista entre vida pública e vida privada. Afinal, o condomínio implica a
tentativa de criar certas regras e normas públicas, nos limites da vida privada, mas sempre à
condição de um espaço de excepcionalidade, erigido como defesa contra a barbárie
exterior. Ela implica, portanto, um reconhecimento da barbárie. Supondo-se que na
situação em questão as condições objetivas e as intenções subjetivas são da melhor
qualidade, pode-se argumentar que estamos diante de um paraíso para a ação comunicativa,
o cenário ideal para a auto-organização racional de uma comunidade de risco zero. Tudo
depende de um bom síndico.
Freud em seu trabalho sobre o Mal Estar na Cultura enumera uma série de
“estratégias de vida” que se poderia adotar para fugir ao desprazer. Quase todas elas estão

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condensadas em nossa parábola do condomínio fechado: associação entre a conquista da


natureza e a comunidade orgânica, refúgio em um mundo próprio, sentimento de que se
usufrui de uma experiência que é acessível para poucos, ilusão de uma realidade
esteticamente orientada, sentimento de ruptura intencional com o “mundo comum”, e
finalmente, a anestesia induzida pela intoxicação. Em tais condições a possibilidade de
sonhar e a as ilusões disponíveis à consciência tornam-se perigosamente próximas de sua
realização efetiva. Nesta situação ocorre uma destituição tanto da função de ideal, que é a
de apresentar-se como negatividade futura (utopia), quanto da função do objeto, que é a de
apresentar-se como ilusão de presença (atopia). A utopia é uma ilusão que se sabe ilusão,
justamente por isso ela exerce a função reguladora própria do ideal. Quando a função de
ideal é substituída pela de um objeto encarnado está estabelecida a condição para o fascínio
totalitário e para a servidão voluntária.
De fato esta expectativa teórica se confirma na forma totalitária assumida pelos
regulamentos internos de tais condomínios fechados. Regras extremamente severas e
punições draconianas são estabelecidas para pequenos atos infracionais. Bicicletas deixadas
fora de lugar são passíveis de apreensão, mudanças estéticas na fachada de uma casa são
ameaças potenciais à imagem do conjunto. Aquilo que não é expressa e formalmente
proibido torna-se possível e o possível em estado de liberdade é obrigatório. Tudo se passa
como se a permissividade, expressa pelo ideal, retornasse na forma de severidade em um
regramento insensato. O que antes era uma agradável “opção de vida” torna-se então uma
“obrigação obscena de felicidade”. Explique-se; a necessidade legítima de regulação da
coisa pública, a posição mediadora e negativa da lei, como limitação do excesso, torna-se,
ela mesma, um ideal a ser realizado em sua totalidade. A fuga do desprazer torna-se assim
equivalente do próprio prazer.
Tomemos agora a extensão desta forma de mal estar na cultura brasileira pós-
inflacionária. Consideremos que o período anterior, marcado pela degradação
(Erniedrigung) crônica do valor do dinheiro, nos teria levado à fantasia ideológica de que
uma vez livres deste pequeno empecilho, - “ajuste” era a expressão eufêmica para tal
operação – poderíamos, enfim, dedicarmo-nos á procura da “felicidade”, reencontrando
novamente nosso glorioso destino. Ou seja, uma versão mal disfarçada da fantasia primária,
que nos faz crer e confirmar, a cada momento, a hipótese de nosso “liberalismo mal

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implantado”. Primeiro é preciso estabelecer certos limites contra o desprazer, em seguida


pensar se é possível alguma satisfação. “Um esforço a mais se quereis montar vosso
próprio condomínio” – diria o aspecto sadeano de tal fantasia.
É claro que o condomínio fechado toca-se rapidamente com o universo periférico
das favelas, reverso da mesma lógica concentracionária e da reprodução de um mesmo
estado de exceção. No terceiro pólo das formações segregativas devemos localizar as
prisões. Nos três casos encontramos o fascínio pela emergência “espontânea” de regras e
códigos próprios que se autonomizam: Cidade de Deus de um lado, Estação Carandiru de
outro. Saliente-se, com relação aos três casos, o reconhecimento pela criação de “leis
próprias” ao modo de códigos de honra e compromissos pessoais na favela, no condomínio
e na prisão. O delírio normatizante e a atração exercida pela terra de ninguém, permite
atualizar a cena primária de toda fantasia, qual seja, a observação e participação no
momento originário de nascimento da lei. Corresponde assim a uma tentativa de corrigir
um fragmento insuportável de realidade que fora suprimido por ocasião da constituição do
campo. Lacan postulava, em 1967, que a expansão dos mercados comuns nos levaria à
acentuação da segregação como princípio social. Resta explicar como o antagonismo
social, que se elide com as cercas, retorna sob forma de compulsão legislativa. Ou seja, se a
felicidade prometida pela ilusão de universalização do capital não se realiza é porque há
“alguém furtando nosso gozo”, segundo a expressão de Zizek. “Alguém” que precisa ser
controlado, segregado, denunciado. “Alguém” que funciona como prova histórica e material
de como o objeto da fantasia ideológica produz o desajuste entre a ilusão e seu rendimento
de felicidade. Mas não sem uma comissão de ética que seja capaz de localizar,
permanentemente, tais elementos residuais, voluntários ou não.
Isto posto torna-se crucial distinguir entre a face liberal e a face disciplinar da
fantasia ideológica. A face liberal trabalha pela instrumentalização e eliminação estratégica
dos dispositivos de regulação, entendendo a formação de normas como a ocasião ideal para
se apoderar de suas condições de aplicação, produzindo assim um gozo protegido,
experienciado na privacidade da Outra cena. Aqui o condomínio se apresenta na gramática
das agências regulatórias. A face disciplinar desta mesma fantasia ideológica trabalha
reativamente, mas na mesma lógica condominial, pela idealização e proliferação tática da
regulação, entendendo a formação de normas como a ocasião perfeita para a purificação da

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lei e conseqüente devolução de um fragmento de gozo extraviado. Aqui o condomínio se


apresenta na figura fetichizada do síndico (não confundir com a sua figura historicamente
anterior representada pelo sindicalista). Ou seja, duas formas complementares de controle,
a disseminativa e a concentracionária, que se revezam na sustentação da mesma fantasia.
Grosso modo, vão se formando pontos na reta deste furor normativo que já não
podem mais ser desprezados, como equívocos de ocasião. Tais “lapsus burocraticus”
exigem o esforço crítico e psicanalítico. A lógica do condomínio levanta a pergunta: afinal,
quem será o síndico?

No condomínio “psicologicus” encontramos efrações deste movimento. O projeto


do ato médico, que regula e subordina todas as ações no campo da saúde à figura
privilegiada do médico, é um exemplo de condomínio corporativo. Em âmbito ainda mais
restrito, mas de modo mais bizarro, podemos mencionar o projeto do Conselho Federal de
Psicologia, habitualmente conhecido como uma instância de esquerda, com pretensões
críticas e progressistas, que propõe, recentemente, que todo psicólogo seja obrigado a
denunciar qualquer infração tencionada ou cometida por seus pacientes. Em outras
palavras, uma ruptura do princípio de sigilo que funda a atividade clínica e regula a
confiança intersubjetiva entre paciente e psicólogo. Incitação à denúncia, reforço
corporativo, controle da expressão jornalística e artística; seria o caso de perguntar: com
uma esquerda como esta quem precisa de direita ?
Quando a forma como se deve controlar a distribuição da renda mínima torna-se
mais importante que a própria renda mínima, ou quando decisões técnico-regulativas, tais
como a taxa referencial de juros torna-se o termômetro ideológico da economia, ou ainda
quando o programa de transformação social aparece, prioritariamente, como um programa
de reformas legais e constitucionais, e ademais quando a vida política do país parece
depender de Comissões Parlamentares de Inquérito, não deveríamos perguntar se não
estamos esperando demasiado de nossas ilusões normativas, e se afinal estas não seriam um
efeito de nossa aderência, inconsciente, à lógica do condomínio?

2. O Paradoxo da Lei

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No filme A Vida de David Gale (Alan Parker, 2003) encontramos retratada a


trajetória de um professor de filosofia que milita ativamente contra a pena de morte no
estado do Texas. Somos levados a crer que tal professor é vítima de uma conspiração que o
incrimina pelo estupro e assassinato de sua principal colaboradora. A conspiração se
alimenta do fato de que antes deste crime ele fora acusado de estupro por uma bela, mas
indolente, aluna. Além disso, todos os fatos parecem estar contra ele: impressões digitais no
saco plástico com o qual a vítima fora sufocada, falta de álibi, seu sêmen encontrado na
vítima, etc.
Quatro dias antes de sua execução ele e seu advogado, notoriamente incompetente,
convocam uma jornalista para que esta escute e testemunhe a história de David Gale. Mas
nas palavras dele: “Ela não está ali para descobrir quem é o culpado, mas para saber
porque ele será executado.” Lentamente a narrativa contada do corredor da morte vai
convencendo o espectador de que David Gale é inocente. Simultaneamente uma fita é
entregue para a jornalista contendo as cenas finais da morte pela qual Gale foi condenado.
Uma mulher com um saco plástico na cabeça, tendo sua boca e pescoço vedados por uma
fita adesiva. Ela é algemada e nua no chão de sua cozinha se contorce em seus últimos
momento de vida enquanto uma câmara registra a cena. O detalhe mórbido e moral é que a
chave de suas algemas são encontradas no seu próprio estômago indicando que “a
liberdade encontra-se dentro dela mesma”. A chegada da fita, bem como a presença
insidiosa de um homem misterioso que acompanha a investigação iniciada pela jornalista e
seu ajudante reforça a certeza de que Gale é inocente. Além disso, o próprio dispositivo de
execução fora abordado por Gale em um de seus livros, mas jamais utilizado como peça da
acusação, tornando óbvio que o verdadeiro assassino é alguém próximo do filósofo.
Mas este é apenas um caso do que Zizek chamou de “falsa solução necessária”. Se a
jornalista não acreditasse que Gale é inocente jamais seria levada a procurar a fita
completa, a fita verdadeira, que poderia tirá-lo do corredor da morte demonstrando tratar-se
de um equívoco judiciário. Este é o verdadeiro problema do filme: as relações entre a lei
(em sua figura lógica do condomínio prisional) e a exceção (em sua figura lógica do
inocente culpado e do culpado inocente).

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Do ponto de vista da lei, nas coordenadas simbólicas fixadas pelo filme,


encontramos a seguinte posição. No estado do Texas execuções são comuns baseadas nos
tradicionais argumentos sobre redução de criminalidade e também no axioma bíblico: olho
por olho, dente por dente. Uma lei como qualquer outra, exposta ao relativismo cultural que
domina todas as formas jurídicas. Ocorre que todos os casos de prisioneiros que são libertos
pouco antes da execução, pela demonstração de equívocos legais, apenas comprovam a
eficácia do sistema. Quase mártires não contam. Como não se pode encontrar uma exceção
a esta regra, que permitisse comprovar a execução de um inocente e por em dúvida a pena
de morte baseada na falibilidade do processo jurídico, e na irreversibilidade da pena, os
militantes contrários à pena de morte encontram-se imobilizados.
Note-se que todos os argumentos contra a pena de morte acabam mostrando-se
externos a estas coordenadas simbólicas e, portanto inoperantes. O fato de que ela não
reduz o índice de criminalidade, que ela é uma crueldade que fomenta o ódio e a vingança
em nome do Estado, a espetacularização da cena de execução, seus usos políticos, etc. tudo
isso não possui alcance algum, pois não afeta o estatuto da lei internamente, ou seja,
segundo suas próprias coordenadas constitutivas. As exceções confirmam a regra, não a
transformam. A regra afirmada é de que o estado pode legitimamente usar o assassinato
para coibir o assassinato. A lei é este paradoxo ele mesmo: em nome da liberdade retirar a
liberdade, em nome da paz o terror, em nome da regra a transgressão, em nome da saúde a
doença, em nome da segurança ... a polícia.
Podemos chamar este paradoxo de paradoxo da lei do condomínio. Nada impedirá
que em nome da execução, frio processo jurídico, anônimo e impessoal, o sujeito se engaje
como instrumento desta lei e extraia, a partir disso, um gozo próprio. O gozo dos
carcereiros, dos espectadores, dos manifestantes e porque não da própria vítima. Se a lei é
pura nenhum ato dela decorrente o será, por antecipação. Aqui entra a razão cínica que
comanda a defesa da pena de morte. Cínica, pois se apóia por uma lado na obscena
contabilidade do gozo e por outro no fato de que os que a defendem, sabem, via de regra,
de seu paradoxo, mas agem mesmo assim como se não soubessem. Como se este saber não
contasse no real. O que o cinismo deixa de lado é o desejo que funda a lei. O cínico é no
fundo um aspirante a síndico.

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2. O Paradoxo da Ética

O início da narrativa de Gale mostra uma de suas aulas. Na lousa encontramos o


grafo do desejo, desenvolvido por Lacan no seminário sobre as Formações do Inconsciente,
além de algumas referências à conceitos lacanianos: o objeto a, o ego como inimigo, a
teoria da fantasia e a causalidade psíquica. O professor interpela os alunos: Digam-me, qual
é a sua fantasia? e responde retoricamente, fama, dinheiro, amor, bom sexo, etc. Em
seguida vem o trecho decisivo para entender o filme:
“Entendem a idéia de Lacan ? As fantasias tem que ser irreais porque no momento,
no segundo em que se consegue o que se quer ... não quer, não poder ser mais.
Para poder continuar a existir o desejo tem que ter os objetos eternamente
ausentes. Vocês não querem “algo”, vocês querem a fantasia de “algo”. O desejo
apóia fantasias desvairadas.”
Neste momento entra na sala a jovem e belíssima estudante, Berlin, que
imediatamente captura o olhar do professor. Demonstração em ato do tema discorrido e
potencial alegoria significante (Berlin, Berlim, a queda do muro, etc). Um objeto que
parece demais ser ele mesmo a realização da fantasia e desvairio.
“Foi esta a idéia de Pascal ao dizer que somos realmente felizes quando sonhamos
acordados com a felicidade futura. Daí o ditado “O melhor da festa é esperar por
ela” ou “Cuidado com seus desejos”. Não pelo fato de conseguir o que quer, mas
pelo fato de não querer mais depois de conseguir.”
Até aqui nenhuma novidade. Trata-se de uma versão possível do tema da falta como
geratriz do desejo, sua disparidade diante da demanda e sua determinação temporal no nível
do sujeito.
“Então a lição de Lacan é: viver de desejos não traz a felicidade. O verdadeiro
significado de ser humano é a luta para viver de idéias e ideais. E não medir a vida
pelo que obtiveram em termos de desejos, mas pelos momentos de integridade,
compaixão, racionalidade e até ... auto-sacrifício. Porque no final a única forma de
medir o significado de nossas vidas é valorizando a vida dos outros.”
Essa é uma leitura bastante irregular das teses de Lacan sobre a ética. Na verdade
congrega versões distintas e talvez incompatíveis sobre o assunto. É claro que estamos

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lidando com um nível de generalização bastante amplo e próprio à apresentação de


problemas filosóficos na linguagem do cinema, principalmente no cinema americano de
massa. Mas é surpreendente como a passagem acima consegue reunir ilustrativamente três
posições em debate entre os comentadores de Lacan.
Primeira posição. Viver de ideais e idéias nos conduz a uma posição comum aos
que valorizam a primeira parte do ensino de Lacan que acaba convergindo para uma certa
idealização do desejo. Neste caso a análise conduziria à subjetivação do desejo, à produção
de um saber sobre sua gramática singular e conseqüentemente à expansão do universo da
falta, conforme expressão do Seminário VII. A felicidade reside em suportar o desejo, em
aceitar sua lei, libertando-se da obrigação de realizá-lo em objetos empíricos específicos.
Factível, mas convenhamos, pouco original.
Segunda posição. Medir a vida por momentos, sejam eles íntegros, de auto-
sacrifício ou como queiramos definí-los, nos leva a uma posição um pouco diferente.
Introduz a forma temporal da felicidade. Não um estado regular e mais ou menos estável do
sujeito em sua relação com o desejo, mas em momentos fecundos e decisivos onde a
relação do sujeito com seu ato se precipita de forma singular ou original. Ainda vemos aqui
a participação dos ideais, mas sua função é um pouco diferente da primeira asserção. Não
se trata de orientadores perspectivos para a ação do desejo, mas de reguladores
retrospectivos para o juízo sobre a existência. Podemos definir esta posição pelo que alguns
autores, seguindo o seminário VII, chamam de ética do real. Uma ética baseada em atos
disruptivos das coordenadas simbólicas do sujeito.
Terceira posição. A única forma de medir o significado da vida é valorizando a vida
dos outros. Poderia-se inferir aqui uma ética da alteridade, uma ética onde o
reconhecimento radical do Outro seria sua cúspide. O Outro como valor e princípio
aproximaria e tenderia a tornar compatível as posições de Lacan, com as de Derrida e
Levinas, por exemplo. É também uma forma de ética do simbólico, como o primeiro caso,
mas agora não apenas baseada na finitude expressa pelo desejo, mas pela afirmação de uma
certa relação radical ao Outro e também ao outro. Posição que se liga com a anterior pelo
fato de qualquer ato só pode ser considerado em relação ao Outro, as coordenadas
simbólicas do sujeito.

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De fato o que se nota é que a noção de Outro, envolvida nos três casos em questão é
um pouco diferente. No primeiro caso trata-se do Outro como lugar da linguagem e da lei,
mas da lei e da linguagem concebidas como sistemas formais, abstratos e regulados por
princípios heterônomos em relação ao sujeito. No segundo caso o Outro é entendido como
coordenadas simbólicas históricas e precisas. É um Outro que se altera pela flutuação dos
significantes que, a cada momento, precipitam a posição do sujeito. No terceiro caso temos
um Outro cujo sentido mais próximo é mesmo o de humanidade, de semelhante ou próximo
tomado não apenas como duplo egóico e narcísico mas como Outro encarnado. O que há de
Outro em um outro.
Esta deriva de acepção da noção de Outro, e conseqüentemente da acepção de
simbólico é de extremo interesse tanto para a clínica como para a psicanálise em extensão.
A deriva semântica que envolve este conceito se explica pelo fato de que ele se encontra
nos primórdios da teorização de Lacan e o acompanha até seus últimos momentos. Por
exemplo, o Outro como lugar do código ou tesouro dos significantes é bem distinto do
Outro como barrado ou inconsistente. Isso leva, por exemplo, a implicações distintas se
consideramos o Outro-sistêmico, o Outro-histórico e o Outro-sexo em uma confrontação
clínica ou a um projeto de crítica social.
Na mesma linha desta oscilação conceitual podemos ler o paradigma de Antígona
como extremamente conservador, afinal ela morre em nome do ideal de manter seus irmãos
inscritos na ordem simbólica, dentro das regras do funeral grego e de sua lógica sistêmica.
De maneira inversa podemos entender a radicalidade de seu gesto como uma demonstração
em ato da paradoxalidade da lei ateniense, o que levaria à sua transformação. Finalmente
podemos ler o mesmo ato de Antígona como a preservação radical do outro como
encarnação do Outro, valor pelo qual seu próprio gesto pode encontrar solução.

3. O Ato mais além do Condomínio

A investigação levada à cabo pela jornalista conduz de fato ao encontro de uma


segunda fita, contendo uma surpresa. É a própria ativista e colaboradora de Gale quem se
algema e prende o saco plástico na cabeça induzindo seu suicídio por asfixia. Portanto Gale
é inocente e é possível provar sua inocência. Se na primeira cena a jornalista é a

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testemunha, Gale a vítima e o sujeito da caminhonete o culpado a descoberta da segunda


fita produz uma reviravolta dialética. O sujeito da caminhonete passa de culpado a
testemunha, Gale permanece como vítima, mas é a própria jornalista quem se vê agora
culpada por não conseguir entregar a fita salvadora à tempo. Exatamente em acordo com a
idéia de tempo lógico em Lacan temos o primeiro instante de ver – que Gale é inocente –
seguido pelo tempo de compreender – que se tratava de um suicídio para provar a ineficácia
do sistema judiciário.
Mas a última reviravolta dialética é de fato a conclusiva. Chega à jornalista, após a
execução de Gale, uma terceira fita, que mostra agora as contorções do morrer (tempo de
ver), a cena do suicídio (tempo de compreender) e a presença do próprio Gale na cena do
suicídio, introduzindo suas digitais autoincriminadoras, no saco plástico que servirá de
prova contundente para sua condenação (momento de concluir). A verdade da verdade é
que Gale precisou mentir sobre sua inocência para encontrar a verdade de sua culpa, ou
seja, tornar-se a exceção que o sistema exigia para ver questionada internamente a lógica de
sua lei. No fundo tanto Gale como Constance, sua colaboradora, mostraram, em ato, como
é possível “usar” o sistema para perpetrar “voluntariamente” a própria morte. Mostraram
em ato, como o sistema é um mero instrumento e não a encarnação de uma lei abstrata,
impessoal e soberana em sua finalidade. E eles o fazem “usando” a lei ao modo fetichista.
De fato, a função da jornalista não era, como foi sempre dito, salvar Gale, nem
encontrar o culpado, mas de testemunhar, para o filho do professor para a comunidade
histórica americana a integridade, racionalidade e auto-sacrifício do seu ato. Ela volta à sua
posição inicial de testemunha, mas inteiramente transformada na relação com o saber que
se trata de testemunhar, não mais anódina confissão de culpa ou apelo de inocência, mas
radical reconhecimento do ato. Ato que corrompe as categorias, ou coordenadas simbólicas
que o tornaram possível: nem vítima, nem culpado, apenas um ato decidido.
A jornalista, e o Outro por extensão, são e não são os mesmo depois do ato de Gale,
aliás um ato real, que exprime o momento de verdade da questão da pena de morte, em
acordo com a estrutura de ficção contida no filme. Ele mostra que a vida de cada um só
pode ser medida pela dos outros, daí o título do filme “A Vida de David Gale”.
Aqui podemos traçar uma distinção a partir das posições de alguns dos personagens
diante do ato de que se trata. O sujeito da caminhonete, assim como a jornalista, colaboram

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em posição de desejo decidido, que realiza e contém sua própria finitude ao ser desejo do
desejo do Outro. Mesmo amando Constance, o caubói colabora com seu suicídio. Mesmo
estando em apenas mais um trabalho a jornalista se engaja subjetivamente na busca da
verdade, ela se compromete. Ética do desejo.
Os militantes, pró ou contra a pena de morte, o sistema judiciário e político, por sua
vez estão às voltas com a ética alteridade. Distinguem-se pela qualificação do gozo que
concerne à esta alteridade. Abstrata, anônima e sistêmica, no caso do político, concreta,
humana e “com rosto” no caso dos militantes.
Mas é finalmente e apenas Gale que nos põe em contato com a ética do real, ele faz
a função de objeto a para o sistema judiciário, mas também a função de sujeito para uma
nova formação do Outro.

4. Conclusão: a Administração do Descontentamento

A lógica do condomínio, elevada à dignidade de razão política indubitável e forma


de vida universal, baseia-se, tanto em sua face liberal quanto em, sua face disciplinar na
administração do descontentamento. Ela funciona pela indução de uma espécie de
descrença calculada das formas de racionalização da vida. Se a felicidade tornou-se um fato
político depois de Napoleão, podemos dizer que o descontentamento tornou-se o mote de
uma época que não mais aspira sacrifícios em nome de um futuro comum, apenas conforto.
Uma época em que o agente do ato político torna-se realmente um síndico. Daí que haja
regras para os descontentes, sistemas de formulação e administração de demandas. Ora, a
demanda anônima de justiça, de eqüidade e de conforto é endereçada a lugares que dela se
encarregam. É a regra representativa que vige nas democracias ocidentais. Mas o sistema
de representação se tornou tão complexo que foi preciso estabelecer níveis de
independência com relação ao que de fato ele representa. Na passagem de um nível para
outro o endereçamento da demanda se dilui, se apaga, se impessoaliza. Isso leva ao
paradoxo constituitivo da lógica do condomínio que ao modo de um sintoma tenta
reestabelecer a função primitiva da norma como convenção baseada em interesses. São
nestas zonas condominiais que se estabelecem os dissidentes, os desviantes, mas também
os excluídos.

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Christian Ingo Lenz Dunker: Psicanalista, doutor em Psicologia (USP), professor e Livre
Docente do IPUSP, autor de O Cálculo Neurótico do Gozo (Escuta, 2002) e Lacan e a
Clínica da Interpretação (Hacker, 1996).
chrisdunker@uol.com.br

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