Logo no início do capítulo, Baschet traz uma breve – ainda que significativa –
discussão a respeito do imaginário posterior que se formou envolta da passagem do ano
999 para o ano 1000 na Idade Média. De maneira geral, existiu até o século XIX e XX
uma crença, iniciada em fins do século 16 no livro Annales Ecclesiastici do cardeal César
Baronius, a respeito do que a historiografia chamou de “Terrores do ano mil”, ou seja:
imaginar, no nosso próprio tempo, que a grande maioria dos medievais temia que o
arrebatamento e o Apocalipse aconteceriam quando se completasse um milênio da Paixão
de Cristo, data que se concretizaria por volta de 1030-40 d.C.
Apesar de alguns autores medievais, como o Abbon de Fleury, terem escrito
certos presságios e temores em referência a concretização do primeiro milênio após a
Paixão de Cristo, a ideia de que a passagem para o ano 1000 representou um terror
generalizado na Europa medieval é uma construção renascentista e iluminista, tendo se
iniciado somente no século XVII. No século XIX, o historiador Jules Michelet lembrou
da entrada maciça de pessoas em mosteiros neste período da passagem do século X para
o século XI, concluindo então que haveria uma crença geral de que os medievais
imaginavam o fim do mundo (na concepção cristã) na virada do ano 1000. Um precedente
medieval para o “bug do milênio” de 1999 para 2000.
Neste sentido, a discussão pode ser fomentada na constatação de que a antiga
crença historiográfica dos “Temores do ano mil” de forma generalizada na Europa
medieval é uma construção muito a posteriori, datando somente de 1598 e se cristalizando
no século XVII. Assim, temos para a discussão mais um exemplo da visão que a Idade
Moderna formulou, um “pré-conceito” da Idade Média, uma vez que são os autores
modernos que buscam realizar um julgamento cultural dos medievais, imbuídos de uma
visão antiaristocrática (aristocracia associada ao medievo) e anticlerical (por conta da
guerra contra a Igreja e as instituições do Antigo Regime, como a monarquia).
A discussão em torno do “imaginário do ano 1000” é também um exemplo de
história do imaginário, uma vez que permite-nos realizar uma experiência de psicologia
coletiva na História, adquirindo a sapiência para compreender não somente as realizações
das pessoas na história, mas se preocupar com o estudo daquilo que os homens pensavam
na história.
Por outro lado, apesar de haver algumas poucas fontes eclesiásticas que falam
de uma aparente chegada do Anticristo na passagem do milênio, autores contemporâneos
ao acontecimento, como o monge Raul Glaber, haviam antes notado uma espécie de
reflorescimento espiritual, uma afirmação cada vez maior da espiritualidade cristã sobre
a Europa, demonstrando que não havia somente essa crença na escatologia construída
somente no século XVII falando sobre a Idade Média. Raul Glaber escreveu que:
“[...] como se aproximava o terceiro ano que se seguiu ao ano mil, vê em quase toda a
terra [...] renovarem-se as basílicas das igrejas; embora a maior parte, muito bem
construída, não tivesse nenhuma necessidade disso, uma emulação levava a comunidade
cristã a ter uma igreja mais suntuosa do que as outras. Era como se o próprio mundo fosse
sacudido e, despindo-se de sua vetustez, tenha-se coberto por toda parte com um vestido
branco de igrejas. Então, quase todas as igrejas [...] e mesmo os pequenos oratórios das
aldeias foram reconstruídos ainda mais bonito pelos fiéis”.
O que viria a ser conhecido como os nobres “cavaleiros medievais”, objeto tão
latente no imaginário contemporâneo, é na verdade, de início (nos séculos VII e VIII),
milícias que são contratadas, quase como de forma mercenária, para proteger os castelões,
os senhores que tinham morada nos castelos. Como a posse de terra era uma das principais
formas de garantir riqueza no período medieval, a partir dos séculos XI e XII essas
milícias começam a receber terras como forma de recompensa por seus serviços de
proteção, por seus papéis em guerras feudais (lembrando que os campos de batalha entre
um senhor feudal e outro não era igual às batalhas de grandes reinos Nacionais, com um
exército profissional composto por milhares, antes: eram algumas centenas de cavaleiros,
muitos dos quais contratados, que se digladiavam em campos abertos).
Desse modo, o que, afinal, é o cavaleiro medieval? Sobretudo, ele é um nobre,
que a partir do período da Baixa Idade Média, recebe terras por seus suseranos devido ao
cumprimento de seus deveres como cavaleiro e guarda. Assim, ocorre gradualmente uma
fusão entre os que já eram nobres de nascimento (muitos descendentes de grandes famílias
do período Carolíngio), que pertenciam a linhagens de donos de terras, e os novos
cavaleiros, até antes milites que faziam escoltas e prestavam serviços aos castelões. Neste
período da Idade Média, chega-se mesmo a se tornar “difícil reivindicar-se nobre sem ser
cavaleiro e a designação como miles [como um cavaleiro, agora com posses] termina por
ser considerada até mais valorosa do que a antiga terminologia de nobilis ou princeps. ”
(p. 111).
De forma sintética, a partir dos séculos XI e XII, os cavaleiros vão tornando-se
os “novos nobres”, donos de terra. Os nobres, antes, faziam parte de uma aristocracia cuja
legitimação para a continuidade de suas condições de nobreza dava-se por origens
principescas, ou seja, eram detentores de terras cujos descendentes foram duques ou
príncipes e cujas terras foram ganhas por governantes do Império Carolíngio, e muitas
vezes essas origens dinásticas são elaboradas de uma forma mítica – um suposto ancestral
mítico, que fora um grande rei ou guerreiro –, contribuindo para a legitimação presente
para o nobre e sua linhagem perpetuarem a administração de seus hectares de terra, em
sua família há séculos.
É neste sentido de ter os cavaleiros recompensados com terras que tem início
também a visão mais tradicional que fazemos do sistema de vassalagem feudal.
O cavaleiro que irá ganhar um título de nobre e terras de seu suserano recebe sua
espada das mãos de um nobre, hierarquicamente superior, que em seguida realiza o gesto
de colação, ou seja, um golpe sob a nuca ou o ombro com a empunhadura ou lateral da
espada, rito de passagem que simboliza a entrada do cavaleiro para o grupo dos nobres.
O ritual de adubamento (pois não é outro senão este o nome do processo) é precedido por
uma noite de orações na igreja, o que demonstra o papel do cristianismo na confecção do
sistema feudal e dos cavaleiros cristãos – a espada que o mesmo recebeu é depositada no
altar e benzida pelo padre. Dessa forma, pode-se “insistir sobre o papel fundamental da
Igreja na estruturação da ideologia cavalheiresca” (p. 112). (Lembrar de rei Arthur e
Lancelot, seu principal campeão.)
(p. 147) A partir dos séculos XII e XIII, pode-se dizer, de acordo com Baschet e
Jacques Le Goff, que se impõe finalmente uma Europa urbana. Isto significa uma gradual
ruptura com as terminologias até então empregadas, aquela Europa “rural” que vigorou
por toda a Alta Idade Média. No século XIII por excelência, os êxodos para as cidades
dão origem ao que a historiografia chamou de desenvolvimento urbano nas grandes
cidades europeias.
Além disso, o crescimento populacional em centros urbanos dá matriz para dois
outros fenômenos: a renovação do comércio e dos mercadores e a implementação do
saber, o acesso às universidades e escolas urbanas. A própria Igreja, que mantinha uma
tradição de criticar os grandes centros urbanos, por conta da associação com a versão
bíblica da Babilônia, permite uma otimista abertura em relação à infiltração nas cidades
– se antes os centros eram vistos como locais pútridos, de encontros de mercadores,
banqueiros e etc, o própria método de ensino cristão chamado Escolástica é desenvolvido
numa cidade, dentro das universidades, e os frades das ordens mendicantes aceitas pela
Igreja também atuam nas cidades, realizando trabalhos voluntários, como serviços de
lixeiro (conforme escrito na página 151, alguns lixeiros eram associados à santo Antônio,
podendo eles ter direito à livre circulação).
De fato, a cidade medieval é eclética. É “normal encontrar, no interior das
muralhas das cidades medievais, terras cultivadas e mesmo gado, o que, junto com a
presença de torres e, muitas vezes, de um castelo, atenua a distinção entre o mundo urbano
e o mundo rural” (p. 151). Há, nas cidades, diversas tavernas, a praça pública, as torres
com sinos, e também ruas com prostíbulos organizados pela própria administração, a fim
de garantir um serviço coletivo útil à paz pública (p. 151). Um provérbio alemão medieval
anunciava: “O ar da cidade liberta”. A própria prostituição foi um meio de controlar os
excessos de um mundo cheio de celibatários, religiosos ou jovens em geral; a Igreja
medieval chegou a fundar a ordem feminina de Maria Madalena para acolhimento das
prostitutas nas cidades, e o ato de casar-se com uma prostituta, ao invés de ser visto como
pecado, era uma obra de mérito.
A Vida na Cidade. Os Efeitos do Bom Governo (c. 1337-1340), de Ambrogio
Lorenzetti. Na pintura, a cidade de Siena está retratada. No topo da imagem, andaimes e
trabalhadores evidenciam: a cidade está num contínuo crescimento. A cidade é o reino
dos poderosos e dos ricos. Camponeses comercializam; há um professor lecionando numa
sala de aula, uma sapataria em funcionamento e outras corporações, demonstrando uma
cidade eclética e em constante movimento. A roda formada pelas mulheres (perceber o
tamanho delas em relação aos camponeses) representa a ociosidade, um nada-fazer - o
círculo de mulheres dançando ao ar livre da cidade evidencia alguma comemoração
pública, e seus tamanhos e vestes indicam tratar-se de pessoas mais abastadas. Assim, na
concepção medieval de cidade, os mais ricos conseguem o lazer após um duro trabalho,
geralmente nobres.