I. INTRODUÇÃO
Esta pesquisa investe-se no papel de analisar alguns aspectos da lei que institui o
regulamento do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, e sob sua
implementação protecionista, os possíveis conflitos e impactos em comunidades
tradicionais quilombolas e sua forma cultural de vida. Um dos principais conflitos é a
chamada sobreposição de territórios quilombolas por unidades de conservação ambiental
na modalidade intitulada de proteção integral.
Tendo em vista a complexidade das possíveis situações de sobreposição e todos
os fatores sociais, territoriais, culturais, econômicos e existenciais que contornam esse
debate, o estudo se restringirá a uma breve e introdutória análise do panorama jurídico e
do debate entre meio ambiente e cultura, para além das lutas específicas e cotidianas por
reconhecimento.
A lógica inicial do discurso ambientalista é eminentemente economicista: “sendo
finitos os recursos do planeta, temos de economizá-los” (ACSELRAD, 20041). Muito
embora, a análise que leve em conta a significação existente nas relações sociais entre a
sociedade e os processos ecológicos, enquanto construção do próprio significado social e
existencial de um determinado grupo de pessoas, requer um exame condizente com a
realidade social.
Os objetos que constituem o “ambiente” não são redutíveis a meras quantidades de
matéria e energia pois eles são culturais e históricos: os rios para as comunidades
indígenas não apresentam o mesmo sentido que para as empresas geradoras de
hidroeletricidade; a diversidade biológica cultivada pelos pequenos produtores não
traduz a mesma lógica que a biodiversidade valorizada pelos capitais biotecnológicos etc.
Por outro lado, todos os objetos do ambiente, todas as práticas sociais desenvolvidas nos
territórios e todos os usos e sentidos atribuídos ao meio, interagem e conectam-se
materialmente e socialmente seja através das águas, do solo ou da atmosfera
(ACSELRAD, 2004).
A proteção ambiental deve caminhar junto com a cultural, especialmente a
cultura de quem depende da natureza para sobreviver e conservar suas tradições. Como
irá se verificar, a lógica eminentemente preservacionista2 não condiz com a realidade
socioambiental das comunidades tradicionais brasileiras.
2 As posições teóricas preservacionistas e conservacionistas no Brasil fundem-se “em uma visão única sobre
o que a proteção à natureza deveria representar”; ver FRANCO; DRUMMOND, 2012:343-346.
3 Artigo 8o da CRFB/88 diz que: “O grupo das Unidades de Proteção Integral é composto pelas seguintes
categorias de unidade de conservação: I - Estação Ecológica; II - Reserva Biológica; III - Parque Nacional; IV -
Monumento Natural; V - Refúgio de Vida Silvestre”.
5 Sob uma análise das micro-realidades que compõem o imenso patrimônio histórico e plural brasileiro, tal
fato é facilmente averiguável, muito embora, ainda que sob análise estritamente abstrata e “positiva”, afiguram-se um
vasto rol normativo que compõem a relação entre cultura e meio ambiente: “a Política Nacional do Meio Ambiente,
instituída pela Lei n° 6.938, de 31 de agosto de 1981; o Novo Código Florestal, instituído pela Lei n° 4.771, de 15 de setembro de
1965; a Política Nacional da Biodiversidade, cujosprincípios e diretrizesforam estabelecidospelo decreto 4.339, de 22 de agosto de 2002;
e, dentre os que dão maior ênfase à proteção cultural: o Plano National da Cultura, previsto na Constituição desde 2005, pela Emenda
Constitucional 48111, e o Sistema Federal de Cultura, instituído pelo Decreto n° 5.520, de 24 de agosto de 200 5 ” (MENDES,
2009:146-147,)
C O M U N ID A D E Q U IL O M B O L A M ULTA IN S T IT U IÇ Ã O M O T IV O
F o rm ig a A rn o R ib e iro d e S o u sa R f 3 0 0 ,0 0 N A T U R A T IN S M a d e ira p a ra c a sa
R f 1 0 .0 0 0 ,0 0 R o ç a d e to co
6 Referindo-se ao moroso processo que viabiliza a efetividade do artigo 68 do ADCT da CRFB/88, previsto
pelo Decreto n° 4.887, de 20 de novembro de 2003, que apesar do trâmite burocrático, é atualmente o único
instrumento legal (regulamentar) para o reconhecimento, delimitação, e emissão dos títulos coletivos de propriedade
que as comunidades quilombolas atualmente tem, e apesar disso, encontra-se sendo questionado pela ADI 3239 —
STF.
7 Esta tabela foi fornecida por Paulo Rogério Gonçalves, diretor técnico da Organização Alternativa para o
Pequeno Agricultor no Tocantins (APA-TO), em uma Reunião realizada no dia 15 de abril de 2016. A Procuradoria da
República estava presente com o objetivo de discutir os autos de infrações lavrados contra os membros das
comunidades quilombolas (e outros assuntos) (BATISTA; CAVALCANTE; FORMIGA, 2017:173-174).
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Situações jurídicas são inúmeras, Girolamo Domenico Treccani expõem algumas das possíveis situações de
conflito: “(...) Terras quilombolas incidentes em terras públicas federais, estaduais e municipais, devolutas ou
arrecadadas e matriculadas em nome da União, mas ainda não destinadas; a) Terras quilombolas incidentes em terras
públicas ilegalmente registradas em nome de “grileiros”; b) Terras quilombolas incidentes em terras públicas ocupadas
por posseiros não quilombolas; (...) Terras quilombolas incidentes em terras públicas federais afetadas; a) Terras
quilombolas incidentes em terrenos de marinha, várzea, marginais de rios e ilhas; b) Terras quilombolas incidentes em
unidades de conservação; c) Terras quilombolas incidentes em áreas de segurança nacional (áreas localizadas na faixa
de fronteira e militares); d) Terras quilombolas incidentes em terras indígenas; (...) Terras quilombolas incidentes em
terras particulares legalmente constituídas (propriedade privada)” (TRECCANI 2006:201- 234).
10 Ver VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005:
703-720.
V. CONCLUSÃO