1. Introdução
A adjunção dos sufixos nominalizadores –ção e -mento às raízes verbais forma
substantivos abstratos, como perseguição, obrigação, posicionamento, questionamento
etc.; entretanto, isto não ocorre de forma aleatória, pois temos, por exemplo,
distribuição, e não *distribuimento, assim como endividamento, e não *endividação.
Sendo assim, explora-se a hipótese de que as raízes verbais impõem restrições de cunho
aspectual às formações derivadas, que vão permitir ora a adjunção da base verbal ao
sufixo nominalizador –ção, ora ao sufixo nominalizador –mento.
O trabalho divide-se em três seções. Primeiramente, delineam-se os aspectos
mais importantes da Morfologia Distribuída, que são relevantes para explicar a
adjunção dos sufixos em questão a uma raiz verbal; em seguida, apresenta-se uma
proposta de análise para explicar a adjunção de –ção e –mento às diferentes bases
verbais; a última seção apresenta as conclusões do trabalho.
2. A Morfologia Distribuída
A teoria da Morfologia Distribuída (doravante, MD) propõe uma arquitetura de
gramática na qual um único sistema gerativo, a sintaxe, congrega palavras e sintagmas
que são submetidos a dois outros módulos independentes, a morfologia e a fonologia.
Em sua essência, portanto, a abordagem da MD para a morfologia é sintática.
Alguns aspectos da formação de palavras surgem de operações sintáticas
(Merge, Move), enquanto outros aspectos são realizados por operações que ocorrem em
D √DESTRUIR
√DESTRUIR a cidade
Já o agente da projeção ν-1, que serve para verbalizar as raízes, ocorre na
sentença em (2):
(2) João destruiu a cidade.
ν -1 verbalizador
ν-1 √DESTRUIR
√DESTRUIR a cidade
O ambiente verbal em (2) revela, semanticamente, um evento não causado
internamente, e, conseqüentemente, um agente externo. O ambiente nominal em (1)
igualmente denota um evento não causado internamente.
Já em (3) abaixo, temos um exemplo de ν-2, em que a raiz do verbo crescer faz
referência a uma mudança de estado causada internamente:
(3) O mato cresceu.
ν-2 verbalizador
ν-2 √CRESCER
√CRESCER
A raiz √CRESCER, ao contrário de √DESTRUIR, é não-agentiva.
Conseqüentemente, quando crescer é colocado em um ambiente nominal, não há
nenhum agente para o sintagma nominal, e temos somente “o crescimento do mato”.
Assim, destruir / destruição parecem reter seu agente, enquanto que
crescer/crescimento perdem a possibilidade de expressar o causador agentivo. A
solução para esta configuração é puramente sintática. A raiz lexical por trás tanto do
verbo destruir como do nome destruição inclui significado causativo, então, implica um
agente. Por outro lado, na raiz por trás de crescer e crescimento falta o significado
causativo.
Há diversas diferenças entre ambientes sentenciais e nominais; entre elas está a
possível presença de um agente sintaticamente projetado: ambientes sentenciais –
Asp vP
v √P
√Raiz
Para Embick, os traços de v (o núcleo v é um verbo leve, funcional) dizem
respeito à agentividade/causatividade e eventividade ou estatividade. Asp contém traços
que se referem às propriedades dos núcleos funcionais. As Raízes, como já vimos, não
carregam noções morfológicas de categoria; os núcleos funcionais são identificáveis em
termos de seu contexto de traços sintático-semânticos e então desempenham um papel
definido na realização morfológica da Raiz. Tomados juntos, os 2 núcleos funcionais
(Asp e v) contêm informações aspectuais básicas acerca da eventividade ou estatividade.
Em suma, no quadro teórico da MD, as raízes são a-categoriais; na sintaxe, são
concatenadas (merged) com núcleos funcionais abstratos doadores de categoria. No
domínio verbal, este núcleo é v (Chomsky, 1995). No ambiente não-verbal, este núcleo
é n para os nomes e a para os adjetivos. A realização fonológica destes núcleos
doadores de categoria é tipicamente um sufixo derivacional. Se os afixos contiverem
traços fonológicos, o radical será derivado. Uma palavra só é concebida como
morfologicamente bem formada após o cumprimento da condição de adjunção de um
sufixo temático ao radical. No componente morfológico ocorre a operação de Inserção
Vocabular, tendo como resultado a inserção da raiz (√) e a inserção do afixo
derivacional, que é sintaticamente motivado, embora não seja pronunciado. Um afixo
tem, então, um traço de seleção categorial que determina sua inserção em uma estrutura
morfológica. A informação que permite diferenciar as formas derivadas de formas
simples, segundo este modelo teórico, é o conteúdo fonológico do afixo doador de
categoria morfossintática à raiz.
n AspP
Asp vP
-ÇÃO
[morfema +agentivo/]
+causativo v √ DECLARAR
[causação externa
ou agente]
√DECLARAR
A derivação ocorre como exposto abaixo, na qual, com base em Lemle (2002),
coloca-se em prática, na análise, a interação entre a semântica do componente lexical e
do afixo derivacional:
1º) a raiz √DECLARAR entra na derivação e é concatenada ao núcleo funcional
verbalizador v, que tem o traço aspectual [causação externa];
2º) o morfema –ção, inserido no núcleo funcional Asp, carrega o traço
[+agentivo] e é semanticamente compatível com o traço [causação externa] da raiz;
3º) a raiz declarar se concatena ao morfema -ção, que preenche a exigência
semântica de agentividade;
4º) na parte fonológica da derivação, o núcleo funcional nominalizador n atrai a
forma [declarar + ção], que se move para incorporar-se a n, formando declaração.
Neste ponto, a derivação se encontra como em (7):
n AspP
declaração
[resultado da
ação/agenti- Asp vP
vidade] -ÇÃO
[morfema +agentivo/
+causativo] v √DECLARAR
[causação
externa ou agente]
√DECLARAR
Passemos agora à análise de derivações formadas a partir de uma base verbal + o
sufixo nominalizador –mento.
n AspP
Asp vP
-MENTO
[morfema não-
agentivo] v √SENTIR
[causação
interna]
√SENTIR
Assim ocorre a derivação, na qual, se coloca na descrição, a interação entre a
semântica do componente lexical e do afixo derivacional (Lemle 2002):
1º) a raiz √SENTIR entra na derivação e é concatenada ao núcleo funcional
verbalizador v, que tem o traço aspectual [causação interna];
2º) o morfema –mento, inserido no núcleo funcional Asp, carrega o traço
[-agentivo] e é semanticamente compatível com o traço [causação interna] da raiz;
3º) a raiz sentir se concatena ao morfema -mento, que preenche a exigência
semântica de não-agentividade;
nP
n AspP
sentimento
[resultado da mu-
dança de estado] Asp
-MENTO vP
[morfema não-agentivo]
v √SENTIR
[causação interna]
√SENTIR
Observou-se que há algumas formações duplas na língua, como ligação e
ligamento; internação e internamento; salvação e salvamento. Os vocábulos ligação
(“ato ou efeito de ligar”) e ligamento (“tecido fibroso que constitui meio de união de
articulações ou de partes ósseas”) não são palavras derivadas, mas são formas
primitivas, provenientes do latim ligatione e ligamentu, respectivamente (Dicionário
Aurélio, 1999, p. 1212). O mesmo acontece com os vocábulos salvação (“ato ou efeito
de salvar”) e salvamento (‘operação ou efeito de salvar”), que provêm, respectivamente,
do latim salvatione e salvamentu (Dicionário Aurélio, 1999, p.1805). Supõe-se que,
provavelmente, deveria haver, em latim, uma diferença de sentido entre essas formas.
Já internação e internamento são realmente formas derivadas formadas a partir
da adjunção de –ção e –mento ao verbo internar, constituindo, assim, uma rara exceção.
Ambas as formas são sinônimas e exprimem “ato ou efeito de internar(se)” (Dicionário
Aurélio, 1999, p.1126). Será que há algum tipo de diferença semântica na interpretação
dessas palavras por parte dos falantes? Aqui está um dado para ser investigado em
pesquisas futuras.
4. Considerações finais
A análise das formações derivadas com –ção e –mento leva-nos a concluir que:
a) Os verbos que se adjungem ao sufixo nominalizador –ção denotam um evento
não causado internamente, o que implica em causa externa ou agente, e têm como
resultado uma forma derivada que denota o resultado da ação ou da agentividade;
b) Já os verbos que se adjungem ao sufixo –mento denotam mudança de estado
causada internamente, o que implica em causa interna, e têm como resultado uma forma
derivada que denota mudança de estado;
c) As nominalizações são sensíveis ao aspecto, que, por sua vez, decorre da
estrutura [raiz + sufixo nominalizador]; portanto, nas formações derivadas há restrições
semânticas por parte da raiz, já que nessas formações interagem as propriedades
aspectuais da forma verbal e do morfema;
* Agradeço a Maria Cristina Figueiredo Silva a leitura cuidadosa deste texto. Se alguns problemas ainda
persistem, são de minha inteira responsabilidade
5. Referências bibliográficas
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