Foi com grande alegria que recebi de meus amigos da Seção Brasileira da ISKCON o
amável convite para prefaciar a edição brasileira de O Néctar da Devoção - a Ciência
Completa da Bhakti Yoga. Trata-se de um livro importantíssimo, que expõe metodica-
mente a fnomenologia da bhakti, ou amor divino, aspecto da tradição hinduísta geral-
mente negligenciado pelos pesquisadores e intérpretes ocidentais do pensamento
oriental.
Em O Néctar da Devoção o devoto Vaishnava encontrará um guia seguro para suas
práticas devocionais, um verdadeiro roteiro para sua viagem mística ao encontro da su-
blime teofania de Krishna - suprema manifestação da Personalidade Divina, de acordo
com a tradição teológica Vaishnava. Entretanto, o livro não interessa apenas aos devo-
tos, sua leitura será de muito proveito também para todos os que se interessam pelo
estudo científico das religiões, em diferentes abordagens.
O psicólogo das religiões e o antropólogo encontrarão uma importante exposição
metódica dos diferentes sintomas físicos e psíquicos experimentados pelo devoto,
quando sua alma é arrebatada pelo êxtase do encontro com a Personalidade Divina.
Certamente esses estudiosos se mostrarão tocados pelo uso da linguagem amorosa
pelos místicos da tradição Vaishnava, fenómeno que revela uma notável coincidência
com os grandes místicos do Ocidente, como Sta. Teresa de Avila e S. João da Cruz. Isso
sem falar do emprego da mesma linguagem em outras correntes da espiritualidade
oriental, como os Tantrismos hinduísta e budista. Os intérpretes de tendência freudiana
ou simplesmente materialista justificarão esse fenômeno explicando a mística como
um desvio ou uma sublimação do amor sexual humano. O místico seria, de acordo com
essa interpretação, "um amante que se desconhece". Quero lembrar aqui o belíssimo
livro de Denis de Rougemont L Amour et 1'Occident, em que a linguagem erótica dos
trovadores provençais da Idade Média é explicada a partir das experiências místicas da
seita herética dos Cátaros. Dessa forma, a proposição materialista-freudiana é
invertida, na medida em que constatamos que o amante profano é que é um "místico
que se desconhece", e não o contrário. A mesma explicação cabe no caso da
linguagem amorosa da Gesta de Krishna e de todo o simbolismo pretensamente erótico
da arte tántrica. 0 amor humano aqui é uma mera linguagem que procura expressar o
extático encontro entre a pessoa humana e a Personalidade Divina, um pálido modelo
do Supremo Amor que une a alma a Deus.
O especialista em Fenomenologia das Religiões também encontrará amplo material
para reflexão nestas páginas. Encontrará nas descrições simbólicas e dramatizadas das
diferentes facetas da personalidade de Krishna inúmeras coincidências com a descrição
do Sagrado e dos sentimentos que ele inspira no homem - amor, devoção, espanto,
terror, etc. - feita por estudiosos como Rudolf Otto e Mircea Eliade. Constatará ainda a
presença dentro do Hinduismo de uma tradição mística monoteísta em que, à
semelhança da tradição cristã, a alma humana não se despersonaliza para se fundir
com um Absoluto Impessoal, permanecendo eternamente individualizada, embebida na
suprema alegria do encontro amoroso com a Personalidade Divina. Compreenderá
então a extrema complexidade da tradição hinduísta, que não comporta interpretações
apressadas e simplificadas, como aquela tão comum entre os vulgarizadores ocidentais
que, inspirados pela tradição Vedãntica de S4nkara, julgam que todo o Hinduísmo se
resume numa mística impersonalista e panteísta, em que a alma pessoal, vista como
uma ilusão ou maya, se dissolve no Brahman ou Absoluto Impessoal no momento da
Suprema Libertação. Cumpre ainda destacar os aspectos lúdicos da mística Vaishnava,
com suas menções aos "passatempos" e "brincadeiras" de Krishna, que contrastam
vivamente com a atmosfera sisuda e austera que caracteriza a maior parte da tradição
espiritual cristã. O encontro da alma com Deus, sendo a Suprema Alegria, também
pode ser manifestado através de uma brincadeira gostosa e descontraída. O místico
não precisa ser um sujeito fechado e intratável, sempre batendo no peito com a cara
amarrada. O Vedantismo impersonalista também encara o universo como Glā, uma
brincadeira cósmica em que o Absoluto brinca de esconde-esconde consigo Mesmo,
manifestando-Se através de uma multiplicidade infinita de seres.
Em suma, recomendamos a leitura deste livro a todos os pesquisadores sinceros que
desejam conhecer o Hinduísmo a partir das fontes vivas da Tradição, e não através das
visões unilaterais ou deformadas de intérpretes ocidentais mal-informados ou
preconceituosos.
Prefácio do Autor