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5EmlRlmUi

Rainha da Assíria, de Babilônia


do Súmer e Akad
4ª Edição - do 16Q ao 25Q milheiros
Novembro de 1995 IL AVE
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LAKE - Livraria Allan Kardec Editora


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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Chaves, Camilo
Semíramis: Rainha da Assíria, de Babilônia do Súmer e Akad: romance
histórico: Camilo Chaves - 5ª edição - São Paulo, LAKE - 1995.

1. História - Ficção; 2. Romance brasileiro; I. Chaves, Camilo 11. Título Rainha da 11151ria, de labnlpia
I
da 5úmer e Akad
95-4081 COO-869.93081
(Romance Histórico)
índices para Catálogo Sistemático:
1. Romances históricos: Literatura brasileira 869.93081 • Há palavras que possuem o vigor de
mudas sentenças reunidas.

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5EMÍRAMIS
5
Reconciliação - Rl'nova-se a· chama - Admoestação paternal'
- Guerra contra Babilônia - O delator - Enarbas _ In-
vestigação - Plano de vingança- Visita p~terna' _ Propos-
ta de fuga - A visita do espôso real - Dissimulação _ A
íNDICE vingança - Revide - Revolta da guàrda - .Morte do rei _
Socorro tardio - Chacina. - Regente. . ~ . 77

CAPÍTuio QUAR'1'O
PREFACIO ...•.........................................•...• 9
L:gCON

DtTRODUÇÃO A escolha do tártan - Conselho de generais· - A guerra da Síria


- Assédio de Nínive - Evasão - Contra-ofensiva ._
NO BOJO DA ESFINGE Heroísmo de mulher - Levantamento do assédio _ Batalha
de Sírki - Encontro de gigantes - Prisão de Bpnadad ~
R' - O grão-sacerdócio - Simas - O Glorificação - Bodas reais - O sacrifício de prisioneiros _
O templo de  mo~- a -Chams _ Iniciação _ A Indulto e liberdade. . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .• . ...••
colégio da Esfmge F S~mara Última vontade _ Ramis e
filha de Derceto - ara0 d- F ' Mensagem amiga _
S" d - Intrigas - Morte o ara~-
T~~as - O mar de Quíti - Pegurelro. . ................••• 15 CAPÍTULO QUIN'1'O

BABILÔNIA
CAPÍTULO PRIMEIRO
Eternas rivais - G!ll'rra no sul - Rendicão Exortacão ao
O oASIS DOS PEREGRINOS povo - Regim p liberal - Rainha da Assíria. de Bahilônia,
do Súmer e Akad - Unificação _ Babilônia capital _
. Comitiva de guerra - Oanês - Ori~ens - Nilo - Eufrates - Tig-re - Primórdios .,.... O
Panorama - O pastoreio 1~ A luta _ Hospitalidade _ grande programa - Despeito - Conjura _ Sumrêsa _
Lécon - A caça aos N eoes ~mos _ Damasco _ Os na- Invasão do palácio - Diante de Istar - Socorro _ Discussão
Consulta à deus,: - N?':oS :.- O pretendente _ Solicitação dos áulicos - Indulto. . .
ados - Missao a Illlve . ' 115
~rCasada - Nínive -"- O convite real. .......•....•......•. 36
CAPÍTULO . SEXTO
CAPÍTULO SEGUNDO
A PRAÇA CONQUISTADA A GUERRA DA M:i!DIA
Ml'dos e Dl'rsas - Guerra - D;"isão do exército _ Boh-Alib
. , O arbo da amazona - Guerra - O comhate singular - S~Iub - Luta de heróis _ Rendi-
O chamado. do rei B- Tartan Impaciê~cias do rei _ O estratagema ção - Mábi - Namôro - Chl'!!ada de Samura-mat _ Triunfo
O cerco de actres - V't' . e reg-resso - Rapto - Partida para Urartu _ Revide _
- . . Revolta - Ao pé das muralhas - I orla ::-
decIsIvo - .
N cimo do outeiro - O · N'
rei. um i _ Intercessão
P - Perdao- s Nasákar - O duelo - Reconciliação. . . 136
_0 Visita a Bactres - A vontade onipot~nted- r1eocup:ç&s
·
de SImas - A "I'sita
• do eunuco - NOiva o rea - o .
- Os prisioneiros. . , . S5 CAPÍTULO SÉTIMO

URARTU
CAPÍTULO TERCEIRO Ao pé do monte Ararat - Povo semibárbaro _ Reunião dos
SAMURA-MAT exércitos .,..... Assalto inimigo à retaguarda _ Rapto das
mulheres - Desespêro de Beb-Alib - Cêrco de Mazoluch
C 1" Rp~omDensa - O chefe da guarda - Mercado de escravas - Leilão - A batalha _ A brecha
Chamsi-Adad:- o OQUlO - . :~. _~ Preocupações de Simas _ - Rendição do rei Mê::uas -"- Castigo - Avanço sôbre a
_ Ressentimento - A usenCla" Chia .... Nômades - :t:Ja região dos lagos -Samura-mat em
6 C AM I L O C H AVE S
,SEMfRAMIS 7
Mazoluch - O pedido de refôrço - Em auxílio de Lécon - CAPÍTuLO DÉCIMO. PRIMEIRO
Batalha, dos Lagos - Derrota - Socorro tardio - Vitór~a -
Ckegada de Samura-mat - Estela da vitória. •.. ,........ 155 A FILHA DO SOL
A fidelidade do amigo - Alegria de irmã' - Retomo ao posto
- O prestígio da embaixatriz - Nazur - Noivado - De-
CAPiTULO OITAVO cepção - Mandifar - Vigilância - Sedução - Serelép _
Vingança - O segrêdo do Nilo --" Decepção da faraona. ••.. 241
MÁBI
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO
Mazoluch - Chegada de embaixadas - Submissão geral -- Revide
dos citas - Invasão do Urartu - Devolvida Mábi a Ba- íSIS E ISTAR
bilônia' - Em poder dos citas - Regresso .penoso - Aban-
donada - Na Armênia - A caravana - Nascimento do fi1h<> No dorso do Nilo - O ansiado encontro - Tebas - Guizé
.:- Em direção a Nínive - O sOCorro a Urartu - Encontr<> A' caravana dI) deserto - Desfôrço de irmão - Combate _
salvador _ Beb-Alib e Zelu - Calúnia - O testemunh<> Mábi - ' Delírio do guerreiro - Inclinação da faraona _
do rei Zambor ...:.. Beb-Alib e Amoi - Encarcerado e degra- Excursão à Itália - Cartago - 6stia' - Sobre o outeiro
dado - O testemunho de Mábi - A mensagem de Sarntira..mat na região' das sete colinas - Visões - Etrúria _ Noivado
- Reabilitação - A volta para a estepe - Exílio de Zelu - de Chams - Rumo a Sidon. 264
O rapto da amada. ........•........•.....................• 171

CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO


CAPiTULO NONO
BABEL
MAR VERMELHO
Organização urbanística - Glória de Samura-mat - Inaugura-
ções -:. Os dois palácios - O festim - A fortaleza invencível
Organização do império - Excursão aos d?~ínios Ocid~te 40 - Os cais - Os jardins suspensos - O Panteão - O
- Fundação da cidade de Tarso - Fentcla - Blblos, Sldon gôlfo Pérsico - A esquadra - Istar - O templo de Belo
e Tiro - Chipre - Síria - O mar de Quíti - Eti6p!a. - - Sangue votivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
A capital improvisada - A construção da esquadra - Fattma
_ Sedução - Excursão venatória - Perseguição - O rugi-
do do leão - O bo~ da fera - ' Na garupa do guerreiro - CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO
Sob a fronde amena - Encantamento - Preocupações de
Samura-mat - A revelação da escrava - Vigílias - último O TRONO DO ALTíSSIMO
encontro - À espera do espôso - Recriminação - Rompi-
mento - Ressentimentos da bela - A palavra de Tarabat - A caravana do deserto - Mestre e discípulo - Encontro apra-.
A partida ,- No encalço d~ fug~ivo -; ~ndif~rehça pel~ zado - Pai e filha - A escalada da montanha - MotÍte
negócios do Estado -D:sartl~ulaçao admmlstrattva - ~edi- Sinai - A gruta hospitaleira - ' Cinzas do passado - 'O
ção - A batalha - ,Reforço mesperado - Salva - Fátima. 190 tribunal divino - Nem mais um p.assol - Desp~dida - Con-
selho de g~nerais - Para a índia I - Concentração de reis
e povos - A marcha famosa - O desfiladeiro- A batalha
- Retirada - Retôrno. 300
CAPiTULO DÉCIMO

A VOZ DA ESFINGE CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

O LEÃO VENCIDO
Armond-Hermés - O embaixador de Babilônia - Mábi - ' Con-
fidências' - A festa da embaixada - A entrevista - O co- O domador de serpentes - Savarta _ O valido do rei _ A
mandante da praça - Paixão de faraó - Rapto - Revolta entrevista - A audiência do rei - Adad-Nirári - Cons-
- Os dois irmãos - Sáiad - Banza - Última vontade -
Faraona. ••••••••••••• ..•• •• • •• • •• ••••••••••••••••.•,•.•• • • • • 218 piração - Mãe. e filho - Lécon - Decisão suprema _
A emboscada - Morte do leão - A leoa ferida. •.•.•..•.... 315
CAMILO CHAVES
8
CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO

o ÚLTIMO BRAMIDO DA LEOA

Audiência a Savarta - Preparativos para a execução - P~~~~o PREFÁCIO


de indulto .-:.. Adad-Nirári - A vingança real - Pa!n~1 lO
_ Evocação do passado - O filho renegado :- Ju~tl~a. -
_ Argüições íntimas - Desinteresse pela. cOIsa p.ubltc.a. :-
Continua a conspiração - Delegação ao reI - ÚltJma VlSlta
- Morta ; 0'0 00 o ••• •
333 A impressionante figura de Semíramis sempre me preocu-
pou a fantasia de moço. Admirava-a pelo que ela mereceu da
glorificação dos homens: deusa, heroína, rainha, mulher.
353 Na teogonia assírio-babilônica foi equiparada a Istar, a
CONCLUSÃO. •••••••••••••••••• 0. 0 •••••••••••••••••••.•••••••

Vênus oriental, adorada como deusa da beleza, da castidade, do


amor e da guerra. Deusa, sagraram-Ihe conhecido asteróide,
a Semíramis do espaço, e no reino vegetal perpetuaram-na, im-
pondo a uma composta o seu nome fabuloso: calliopsis tincto-
ria.
Muitos, divagando na bizarria do mito, a idealizaram mu-
lher feroz e caprichosa, como soíam ser as divindades de Ho-
mero, quando desciam à forma humana.
Tendo vivido em época imprecisa, deixou na falaz memó-
ria. dos homens impressão de figura sobrenatural, pela fortuna,
formosura, orgulho e poder real. Coube ao grego Heródoto,
no século quinto antes da nossa era, ao percorrer as misteriosas
regiões da Mesopotâmia e da Pérsia, a surpresa. de conhecer,
a~ravés dos sacerdotes, nos mosteiros do Irã, a fantástica notí-
cia da soberana que elevou Babilônia ao pináculo da glória.
Sem:ramis, misto de deusa e mulher, foi· o nome com que
a personalizou o transmissor da notícia, ao sabor da concei-
tuaçiio dos povos antigos, que atribuíam dupla forma às divin-
dades.
O nome transmitido por Heródoto, adotado pelos gregos
e romanos, tem etimologia discutida. Há quem lhe dê o no-
me .de Schamirain, com o significado de pomba. Talvez daí
se explique ser ela .representada por uma figura columbiforme.
O orientalista Fi!. Luzatto propõe o nome sânscrito Smí·
rama, significando: a que aJlta.
Naqueles recuados tempos, a língua predominante no
Oriente médio, como raiz do linguajar semita, era o árabe.
Nem o Egito, apesar da origem diferente, lhe escapou à influ-
SEMfRAMIS H
C A )41 L O C. H AVES
10
sões mais ou menos aceitáveis. tt mister ter ém vista que,
~. Daí ser-lhe atribuído o nome árabe de s~a, ~u-
encta, o d ' d' t nha ela sido autêntlca se)l1lta. em grande parte, os fatos são assinalados ou' deduzidos do tes-
lher soberana, Tu o ln lca de '. Sinias temunho dos monumentos, em linhas muito altas, visto que
, t t o nome e seu pal. .
como es~ aa es ~r d Samura-mat, que lhe deram os lhes faltou o complemento das crônicas. Outro escolho é a
Exphca-se, aSSlm, o nome e 'prio fixação das datas, presumíveis, dentro da imprecisão dos cá':"
" . d at o título real, acrescentado ao nome :pro '.
asslTlOS, sen o m ' d 'd 'Samura que pode mUlto bem lendários, variáveis e incertos.
- 'bemos o som esse u e
N ao ,, I A princípio, os historiadores remontaram a nossaheroí·
sa, , 1 t fonético do da língua inglesa, em a guns
ter o eqUlva en e , na a uma época muito afastada, que dá a impr~ssão de que a
casos. b desses povos primitivos variam terra ainda estava mal enxuta das águas do dilúvio... As-
Os nomes dos so erd~no~ l' güística da notícia transmi- sociaram-na aum rei chamado Ninus,- que teria dado o nome
. ndo a proce enCla in , . 'd a Ninive, capital do reino da' Assíria.
mUlto, segu ' b Ih' dos historiadores para 1 en-
'd
tI a.
N-oa. pequeno
, . e o tra a o
. d denominações. C
erto e que
' Maspero, na oitava edição de sua U Histoire Ancienne dú
tificá-Ios atraves das vana a: H "doto à famosa he- Peuples de rOrient", tratando de Samura-mat, diz que este
' . atribUldo por era ,,'
o nome de S emlramlS, .' aliás Q são os ou';' nome é o tipo original do de Semíramis e reconheceu nesta
, 'de "'utentiddade dlscutlda, como, , Samura-mat a Semíramis de Heródoto, tendo ela vivido sé-
r01na, e '"
tros nomes dela. d' - o árabe de Samara, que culo e meio antes de Naoopolasar e embelezado a cidade de
~. dar lhe a enommaça , Babilônia.
E u pre 11170 - S ra nO dialeto assino.
, t- formou em amu , .
depOIS se 1 ans " r d de dessa eXlstencla A •
Delaporte, na sua obra <'La Mesopotamie: Les Civilisa,..
Resta-nos, agora, dlscutI~ a. ~ea 1 a tións Babilonienne et Assirienne" (1923), referindo-se a
.' , faltou hlstonador. . Chamsi-Adad V, filho ~e Salmanasar (m. em 824 antes de
pnvllegmda, a que,m S ' 'amis tenha realmente eXIS-
Há quem duvlde ~e q~e ::~~es. repugnava aceitar a au- Cristo), diz que o nome de sua esposa Samura-mat, cuja es-
tido. Aos gregos e onenta1~ n 't logia, Os deuses e as deu~ tela foi encontrada em Assur, ficou célebre sob a forma grega
tenticidade das personagens a ml o a~os com preferências e de Serriíra~is.
,.0 noS assuntos h um o o
Assim, pois, é unânime a opinião moderna dos historia-
sas se lmlSCUlam l' Para um grego, aSSlno ou
. -
pa1xoes, e eva 1 das ao super atlvo. , idência de con lçoes d' - f'l- dores em atribuir a Semíramis a mesma personalidade de Sa-
o' muito natural esta comc . . mura-mat, que viveu em époça muito mais recente do que se
eglpclO, era ." 'lhor humanas e dlvmas. .
sicas ou esplrItuals, ou me d' , eiro século da era cnS- supunha. Não se furta: a consignar o fato o austero ,H. R.
Luciano, escritor grego °D}.:mm em "Rfeso refere-se ao Hall, da Academia Britânica.
tã ao descrever o templo de l ana,po<" l' -'-"mage~s. Éfeso, à Aqueles que,' anteriormente, se aferravam a excessivo ri-
, " resenta da •
culto de Semlramls, rep b longe de Babilônia.,. gor histórico, a despeito das afirmações dos· historiadores mais
d M d'terrâneo
1 estava em antigos, como Heródoto,' Ctésias de Gnido, Diodoro Sículo,
margem o e. , _ ' l ' realidade deste culto, posso
Ccmo contnbUlçao .pessoa ; interior do Brasil, no Justino, Plutarco, Cícero e outros, devem ser emendados, se
informar qu~ encontr~l em ~:;~o vi~ésimo, um devoto da já o não foram, porque são contraditados pelas afirmações se-
H'stado de Mmas Gerals, ne~te eu dizer nó" chamamos mi-eternas dos monumentos recentemente descobertos. O ar-
,L.< M t' 1" que no s . , ~
deusa, natural da J: esopo am a- lt' , ermanece nas paragens dos mênio Moise Khosen, do quinto século, por exemplo, se refére
Semiramis. Segundo .ele, o cu o p . ' aos imensos trabalhos executados por Samura-mat à margem
rios Tigre e Euhate,s. ,_ eO sabe'" se Semiramis exi.s- do lago de Van, na cidade a que ela dera o ,nome de Artemi-
. de q1"'eS'fao ." , sa, ao fundá-la. Em 1827,. Mr. Schubs diz haver reconheci-
Entretanto, a gran . ~-..' ~c d 'DOVOS da alta antiguidade,
1d
diante da nebulosa hlStO. . oSx dos Cingem-se os do a montanha artificial, que ela levantou, formada de enormes
. d . os seus hvros sagra ' quarteirões de rocha, sobre a extensão d~ uma hora. de cami-
a não ser o Ju-eu com . f o para o'1egar a conc!u~
historiadores ao estudo compara .1V' - .
12 CAMILO CHAVES

nho. A entrada e os flancos da montanha são 'cobertos de em seguida, apresentou sobre o mesmo tema e sob o mesmo
inscrições cuneiformes, para admiração de inúmeros viajantes
nome, a sua tragédia, para contrariar a preferência da céle-
que ali acorrem. bre amante de Luís XIV. '
Erp língua italiana, o grande teatrólogo Metastásio a ilus-
:I< * *' t:ou na tragédia "Semiramide"~ de incontestado valor literá-
no.
Embora não se lhe assinale um reinado historicamente de- Entre os espanhóis, surgiu uma primeira tragédia de
terminado, foi ela regente durante a minoridade de seu filho, . Cristóbal de Virués,." La gran Semíramis", de medíocre
o rei Adad-Nirári IH. Durante doze anos, no mínimo, exer- valor, mas nela se inspirou Calderon para compor a sua "La
ceu a governança em toda a plenitude, r,ealizando a conquista hija deI aire". A obra de Calderon' é mais importante pela
do mundo conhecido e erigindo as mais audazes construções, concepção e pela forma, tendo sido objeto de elogios de ho-
entre as quais a dbs jardins suspensos, considerados uma das mens como Schack e Goethe.
sete maravilhas do mundo antigo. Recentes descobertas ar- Em todas as línguas surgiram trabalhos literários, ex-
queológicas vieram ~issipar quaisquer dú~i~a~ sobre a ex~s4 plorando o empolgante episódio da história da Humanidade.
tência desta mulher, que assumeextraordmano papel na hIS" Todavia, tudo o que se há escrito sobre a heroína é fun.
tória da humanidade. dado na lenda e na fantasia.
De fato, a esteta, com relevos, de Adad-Nir~ri III. em Sa-
báa, se refere à regência exercida por sua mãe, durante a mi..
noridade dele. Durante esta regênfia,ela mesma fez levan· * *' *
No campo musical surgiu, no libreto de Metastásio "La
tal' em Assur'. segundo a norma.. adotada por ,outros
... .soberanos
.. ~ Semiramide riconoseiuta" a ópera de Gluck, representada em
assírios, uma pedra comemoratIva com a segumte tnscrtçao ~ 1748, com êxito de ocasião.
MONUMENTO DE SAMURA-MAT Em 1802, foi representada em Paris a ópera de CateI mu-
ESPOSA DE CHAMSI-ADAD sicada sobre libreto adaptado da tragédia de Voltaire. '
MÃE DE ADAD-NIRARI No seu (( Dictionaire Lirique" afirma CIement que nada
NORA DE SALMANASAR. menos, de vinte e uma óperas musicais foram compostas du-
Posteriormente, talvez no ano 797 antes de Cristo, o go- rante o século XVIII, segundo o libreto de Metastásio, nota-
vernador Bel-tersi-iluma, de Haliu. ofereceu uma estátua ao damente pelos famosos compositores da época: Vinci, Porpo-
deus Nabu, em honra de Adad-Nirâri e Samura-mat. . ra, Cocchi, Sarti, Traetta e Meyerber.
Isto veio apenas confirmar o que já corria mundo por A mais famosa, porém, surgiu em 1823, no Teatro de
conta da tradi~o. Veneza. A "Semiramide" do genial maestro Rossini obte-
ve sucesso, e a sua sinfonia, inspirada e grandiosa, continua
em plena atualidade.
$ '" >I<
o nome de Semíramis exerceu, sempre, enorme fascínio
O que, porém, nos interessa não é a deusa da fábula. Ape-
sobre os artistas, em todos os campos da Arte: na literatura, nas a mulher.
na pintura e na música. Vários dramas ou tragédias ilustra-
ram o gênio dos poetas e escritores, em todos os tempos. Em . Semíramis foi· tão grande e magnífica pela força do gê-
1717, Crebillon, sob os auspícios de Madame Pompadour, fez mo, que a supuseram deusa. Assim devia ser numa época
representar, em Paris, a sua 'tragédia "Semíramis" que, de em que às mulheres não se davam oportunidades ~ara a fortuna
e para a glória.
discutido mérito, foi acremente criticada por Voltaire. Este,
Certamente foi uma predestinada.
14 C A M 11.0 C tI-AVE S

Convém considerar a rapidez com que ela realizou tão


assinalados feitos, limitados ao penodo da regência durante a
minoridade de seu filho. Muito jovem, ela conquistou o tro-
no e empreendeu os' mais extraordinários acontecimentos da.
vida da<:.luelespovos. Não havia te~po a perder, e ela o apro- INTRODUÇÃO
veitou para a formação de um império vasto como o de Ale-
xandre o Grande. NO BOJO DA ESFINGE
Bem considerado, Adad-Nirári, seu tilho, nada mais po-
dia acrescentar ao que ela' fizera; cumpria-lhe, apenas, con- .
servar a herança de suá mãe. Faltou-lhe o gênio. todavia.
Cumpre-me. a' mim. autor desta. despretensiosa obra,' glo- o grande templo. de Amon, em Tebas, estava, nesse dia,
des?sadamente concorndo. Comprimia-se a multidão no seu in-
rificar, dentro da sua condição humana, a grande rainha. pro-
ten?r, sobrando, no saguão da entrada, lugar destinado es-
curando separar da fábul~ o que ela realmente foi.
Tenho para mim que Semíramis, Samara ou Samura"mat
p,eClalme~te, aos mendigos e estropiados. Chegavam, de'con-
tmuo, fxlasde organizações religiosas conduzindo vexilos e
é justamente apontada como u~a das mais ilustres ~ulheres
giandes bandeiras. ~o ingressarem no corredor, formado por
de todos os tempos. Nenhuma outra a superou e mUlto pou-
a_as ~e postulantes, Iam colocar-se em lugar determinado da
cos homens a igualaram. grandlOsa nave de ciclópicas colunatas de granito. No recin-
Esta tarefa, que empreepdo nesta obra, realizo-a com
to, abstruso. o murmúrio do voz,erio humano, mas no adro, o
entusiasmo. vibrando por reabilitá-la da pecha de ser uma rumor era Irreverente; a plebe vociferava e os desgraçados
figura de ficção, deturpada e caluniada, quando foi um es~ vomitavam blasfêmias e frases soezes. Plácidos soldados em-
?raçando escudos e empunhando lanças, impunham re~peito
pécime de eleição da raça humana. A História lhe· foi adver-
sa, por inexistente ao tempo do seu reinado, mas sirvam estas aquele r~botalho humanú, sempre propenso à desordem.
páginas para glorificá-la, nos seus legítimos títulos de pere- A CIdade, também, estava ebuliel1te com, o acontecimento.
grinapersonificação da beleza. do amor, da fortuna e da ~oalhava-.se . ~ porto fluvial de embarcações procedentes das
perfeição. CIdades fl?emnhas do Nilo, especialmente de Tânis Mênfis
Ela foi mulher, assim como a apresento, mas tão gran- e Abu, SItuada na primeira catarata. Caravanas ~rovindas
de; que lhe ficaria melhor um título de divindade. dos ~ási~ vizinhos, colmavam a cidade de pereg;in~s e, em
~r?mISCU1dade de raçaój e indumentos, ali se reuniam adven-
CAMlLO CHAVES
tIoos da longínqua Etiópia, da Arábia, da Núbia e da Líbia.
Chegavam devotos dos oásis Tostes. To-aau e Hibit; nôma-
des do deserto saariano e negros do centro da África' semi-
tas da Síria, da Fenícia e mercadores da Filistéia' prestidiO'ita-
~ú~~s da f.ndia e mas~ates de Babilônia. A pr~t~xto doto dia
fesn:,o a CIdade se transformara em agitada feira, aonde con-
corna aquela multidão, na faina de comerdar.
Tebas perdera muito da sua magnificência com >O elesIa,.
camento d,a capital política do novo império para Tanis. situa-
d~ n? delta rio sagrado, mas ninguém podia- tirar-lhe a 'impor-
tancxa e, sobretudo, os seus privilégios religiosos.
16 CAMíLO CHAVES
SEM 1'1< AM I S
17
Festejava-se o dia dedicado a Amon-Ra. a divindaáe maior.
O povo egípcio corria para ali em preito devocional do dos mortais. Dotados da vaca ão d e ' .
passado e, no murmúrio dos milênios, nas pedras dos santuá- de, . ~s magos ençabeçavam :ritu~is ,~e:n se:V1:ra co~unida­
patehcos conJ'urús, ~s p t' ,,' '. propl0atónos. PedIam em
rios, relembrava os fastosde antanho e as vicissitudes do seu d as transformações ,.. o encIas mcompre d'd '
da n t en .1 as, ordenadoras
longo evolucionar.
para a abundância das saf:a~rez~ ~ regul.andade das cheias,
Imenso era o poder do faraó, mas igual importância e res- cebeu o nome de Nilo t " sSlm, o .no benévolo, que re-
peito desfrutava, no conceito desse povo tradicionalista, a 'd' . , ornou-se no ntmo d -
prOVI enCIa das populações ribeirinhas, as estaçoes, a
classe privilegiada dos santuários e dos mosteiros. Tão gran-'
de a ascendência da casta sacerdotal, que não se furtava a Auto-sugestionados, por inata' r . - .
dianeiros dos mortais e d . d mc maçao, mculcaram-se me-
ela o próprio soberano, na verdade, um prolongamento seu. do-se da timidez dos in o,s po eres ocultos do Alto e, apossan-
Desapareciam as dinastias, substituídas através dos séculos, mas ignaras para as rimei:~nuos, ~rrastaram consigo as massas
o poder iwoessoal do sacerdócio vinha acompanhando, imutá· dos então ' 'd P a!?,lutmaçóes societárias. RecoJh'-
vel, a trajetória vicissitudinária do povo nilótico, imprimin- , , a VI a contemplatIva d 1
o valor terapêutico das 1 t OS ascetas,' experimentaram
do-lhe a diretriz para as formas definidas da unidade. . - " ,pan as engrandecend
Nos primordiais magotes humanos, derivados dos pontos claçao prestlg,lante do 'd"d " o-se na. asso-
me !Coe o sacerdote.
cardeais, viam-se fugitivos das telúricas convulsões, que tra- Ao apelo dos, contendores suas a'd-
garam a Atlântida; deambulantes do momadismo inconforma- uma judicatura condliatória ' d . ~tl oes se" !'lmpliaram a.
Por 'lt" ' ,em eosoes de eqUldade
do às torturas adustivas do fundo de mar saariano, sabuloso . u Imo, nO desempenho de f - d .
e imenso; gente' escura e bronca do· tórrido interior da na,., habilitaram-se nas práticas da Unçoes a_ economia agrá-
Africa; arrivistas do sul, em canoas de um só tronco; apbcaçao dos primeiros teore ~'" ..11_ mensura~ao, encontrando

v:a1onzados ma.;:> Uil1 geometna.
vagabündos dos areais alvacentos da Arábia Feliz; semitas, por essas ú1' I
aglutinados em clãs, das regiões do oriente próximo, todos na rante, deviam como ac ~ t!P as capacidades, em meio igno-
ebulição de uma fase de ajustamehtos, que se afeiçoavam à cias das populações que°nneelecseu, -assenhorear-se. das consciên-
terra fertilizada pelos transbordamentos do Nilo. · -nas
med lcaçao ' doenças e' t' encontravam "
arnmo nas l '
utas
" JUS IÇa. para d" •
Nessa acrisolada moldagem ,de etnias heterogêneas e, so- cupados, no seu parasitismo d . o seu lrelto. Despreo-
bretudo. de ajuste mental e social, quando o homem apenas chegavam espontâneos'do ~v~s. m~~os de subsistência, q~e lhes
egresso da 1ase da inconsciência, não faltaram cnaturas, pro- vadas cogitações, que lhes'desv ' ~ ,Iam entre~r-se a maIS :le-
videncialmente iluminadas que. na contemplação dos misté- 10gia, humana, em conexão co:asa~~~.~?nheC!1~entos de PS!Co-
rios das forças criadoras da natureza e, da raiva dos elemen- brevivên:ia e da destinação espirituaL 1 lvas aftrmações da so-
tos, 'observavam que duas eram as potências atuantes. Uma, , A VIda gregária dos convent t 'b '
benéfica ao organismo das plantas, das quais irrompiam, es- moramento destes estudos enq ua~~ a nou, so remodo, no apri-
pontâneos. os frutos oferecidos à alimentação; outra, malé-
, t ' .'
°
sol de uma experimentaça-~ de vinte mOI'l~;o, pf~ssado pelo cri-
emas, !xava no am r
fica. vociferante na sanha das transformações' geológicas. ou a_ erra" o seu padrão racial, a unidade idiom't" o ,
aniquiladora. na inclemência dos elementos e das enfermidades. $l,o nacumal. Pela mão desse valoroso ' ,a lca e a e:xp~es­
Esses homens. em perseverantes arrazoados. faziam ver e,Ieemergir da noite da ba i.L " begum, 0, sacerdote, pode
- rl.J'dne e enca «"a.r o su t d . 'li
aos companheiros, preocupados com os problemas da sub!>is- zaçao humana. entre' os' P' d
ovos a terra "li ' , r o e CIVl -
tência. a singularidade dos fenômenos. atribuirido-Ihes trans- Suficientemente sábio ' " 'di '
cendente procedência. Os bárbaros, em plena fase neolítica, ricas do mando f ~ara prescm r das categorkas prá-
ouviam, pávidos, as insinuações de que esses poderes, tre- nio con . ' em avor os processos indiretos do predomí-
, seguIU o sacerdote perpetuar um d" -
mendos e desconhecidos, eram acessíveis aos rogos e oblatas ap presente não foi igualada. Pod _ a ommaf?ao, que até
que rest~ d . .', ' e se mesmo a lrmar que o
, o anbgQ EgIto, alem da herança mCJr~l e intelectual
18 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 19

testemunha eloqüentemente o alto valor científic? ?o sacerd?t~, - Ali vem o nobre Aretas, com a família, dizia um. Em
que a tudo presidiu, seja na perpetuação geometn~~ da: pIra~ sua casa há sempre uma migalha de pão para os pobres.
mides, seja no ens<1-io da incorrupção, pelas mum1ÍIcaçoes· ca- Salve, Aretas! Que Amon te guarde.
davéricas. O populacho aplaudia.
Ao tempo desta história, que remonta a quase trinta sécu- - Hum L .. , reclamava um incomodado, Fica q,uieto,
los, o Egito era o re'sultado experimental de vinte milênios. fétido habitante das cloacas, queres, por acaso, arrebatar_me
Mais de vinte dinastias se haviam consumido, e os templos de o posto? Eu madruguei para garantir-me este lugar! Vies- .
ses mais cedo! ...
Tebas, Mênfis e Guizé, imponentes, na estrutura gigantesca .e
no gosto das decorações, colimavam o fastígio dessa grande CI- - Cala-te, peçonhenta criatura!
vilização, transmitida pelos sacerdotes. Outros, curiosos, trepavam nas colunas como SlnuOS; ou
se instalavam nos pedestais dos leões de mármore, dispostos
O vulgo, votado à ignorância, desconheCia os mistérios, em grandes alas.
cujo conhecimento era privilégio dos ricos e dospotentado~,. mas . - Viva o magnífico Indu, grande senhor dos trigais!
este escol, educado
.. . era suf1Clente
e dirigido pelos sacerdotes, exclamava 'um assistente, levantando a mão num gestó amigável:
para compelir o país em sua marcha progressIva. - Benvindo sejas, ó generoso Mandifar, maior senhor de
Ao pé da Esfinge de Guizé, estrangeiros ávidos de apren- barcos do Nilo! saudava outro.
der iam buscar conhecimentos, que ~ransportavam para as suas Mais loquaz, este fazia a apologia do seu favorito.
pát~ias. O mundo, então conhecido, participo.u, embora em - Ele tem pacto' com nosso pai, o rio sagrado, para não
menor escala, dessa magnífica evolução, postenormente ultra- lhe tragar as embarcações, entregues ao tráfego do trigo. Man-
passada, apenas, pela. Grécia e pelo Cristianismo. difartrabalha para garantir o pão ao nosso povo. ~ um be-
Não admira,' pois, que Tebas reunisse, naquele dia, o que nemérito! Bem diferente desses malditos escorchadores' de
havia de melhor no povo egípcio. Já no interior do t~mplo ~e impostos, que hão de' ir para o Amênti, ou voltar, depois de
AÍnon se encontravam eminentes figuras do mundo SOCial ~ reh- mortos, ao corpo de um chacal ou de uma hiena.
gioso, chefes e delegados dos convento~ do deserto, generaIs, al- - Cala-te, linguarudó, estás fazendo jus a umas basto-
nadas!. ..
tos dignitários e grandes figuras da fmança ou cabeç~s de es-
tirpes gloriosas. O elemento feminino alegrava o ambIente com - Que acompanhes ao país das sombras esses devoradores
o policromismo da indumentária elegante. da economia popular, vomitado r de agouros! retrucava o ofén-
dido.
:E;;tava a chegar o Faraó com. o seu cortejo de ministros, Nesse momento irrompeu um grande murmúrio, que, logo
príncipes reais e áulicos; mais chegados ao tro~o.. A plebe, .e~­ se transformou em gritos.
pecialment,e os mendigos,. se apinhavam no. atno e no patlo -'- Faraó! Faraó!
vestibular, à espera da liberalidade do soberano. ?oldados, pos- O cortejo atingiu o átrio.
tados à entrada, que não podiam tran~por, abr~am alas p~ra ...- Faraó! Viva o nosso pai!
trânsito dos que chegavam, pois, no pátIo fronteIro, aproveIta-
Ensurdecedora aclamação abalou o recinto, à passagem do
vam côches e liteiras, guardados por escravos, logo ordenados
soberano, sentado n~ trono. portátil, conduzido ao ombro de
em filas pelos soldados do policiamento. Mais distante, grandes
quatro gentis-homens. Vinha ele impávido e imóvel, como urna
récuas de cavalgaduras e camelos se amarravam a postes, en-
estátua, cingindo a tiara de três coroas, como senhor do Alto
quanto os donos assistiam à função.
e Baixo Egito e diretor espiritual do povo. Seguia-o a fa-
A curiosidade pública se aguçava diante de tanto fausto raona.
e os mais palradores apontavam as personagens pelos nomes. - Glória do Egito! gritavam.
20 C A,:M; I L O C H AVE S SEMfRAMIS 21

' - Filho do Sol! Das p!r~s, colocadas ao lado, evolavam-se espirais de incen-
- Viva! so, ,e.o o.flcmnte, ton:ando o turíbulo de Ouro da mão do tun-
E o Faràó entrou no templo, cuja ábóbada parecia ruir fe:arto, Incensou, prtmeiramente, a imagem de Ámon e, de-
à vociferação do Egito, ali t.:eunido. pOIS, os soberanos.
:}3:ra costume, nessas grandes ocasiões, quando chegava o O. oficiánte, feito silêncio, braços projetados para cima,
soberano em sua majestade, dar um sinal da sua liberalidade proferIU, em alta voz; a invocação ao .nume.
real, com ampla distribuição de alimento. O pepulacho fa- - - H Ar~lOn-Ra, facho de luz criadora, que aqueces os mun-

minto abandonou o átrio em tumulto e cercou os veículos, dis- ~os e as cnaturas com o teu beneplácito, .sê propício aos teus
postos no pátio, carregando grandes pilhas de pães. fIlhos !'~ .
Além da chefia política e administrativa, o Faraó exercia O coro, ao som dos címbalos e das sinfonias declamou
a espiritual, como triplice função da realeza. Iniciado nos as estrofes do hino sagrado. '
mistérios de tsis e Osíris, recebia educação para governar como
- "Bendito sejas na beleza dos panoramas que espelham
rei-sacerdote. a tua glória!" ,
"Os jovens herdeiros da, coroa passavam por um noviciado
conventual onde adq'uiriam conhecimentos secretos e se ini- . ~ Grande clamor irrompeu na estuante invocação da mul-
eiavam nos, mistérios divinos. Entretanto, o faraóreceb'la, no tldao.
desempenho da sua investidura, assistência imediata, do .grão- - "Santificado sejas na benevolência dos nossos cora-
sacerdote como a maior figura representativa da corporação. ções!"
:Este car~o era conferido a um vulto de assinalado valor cul- . O s0?erano passou a receber o preito dos sacerdotes que,
tural e moral, e sua escolha era objeto de grande interesse dOIS a dOIS, se prostravam em profunda reverência.
por parte da comunidade, pela influência que' exerda na vida
E o coro cantava...
do país.
Se grande era a significação da data dedicada a Ámo~, - "Guarda o Faraó e o Egito dos' insultos da iniqüi-
outra importante razão contribuía para o esplendor da festi- dade! Amon-Ra, nosso Deus e Senhor!"
vidade. Com a morte do velho detentor do cargo, proaedia-se, Trompas de prata, voltadas para o alto, despediram clan-
naquele dia, à sagração do novo grão-sacerdote ou sumo pon- gores, fazendo com que todos se voltassem para o cortejo
tífice do Egito. Dos vários conclaves, 'realiz~dos no~ círculos entrante. Grande fila de hierofantes conduzia, processional-
religiosos, resultara a eleição do sacerdote SImas, d~retor do mente, o novo titular em direção ao altar. Envergando as
templo da Esfinge. Figura preeminente no meio sacerdotal, vestes pontificais, Simas, entre acólitos, dirigiu-se ao altar e
reunia às virtudes morais, e cívicas vasta erudição e cultura. prosternou-se diante do ídolo. Em segtlida, encaminhou-se
Não era egípcio de' nascimento, mas natural da Síria.. Vivera, para os soberanos, aos quais prestou 'homenagem de vassalo,
entretanto, quase a vida inteira, à margem ?o NIlo, onde genufletindo e beijando~lhes as mãos.
iniciou bem cedo o aprendizado para o servIço do templo. Colocando-se, novamente, em frente ao altar, conservou-se
O val~r pessoal obscurecera esta lacuna da sua qualificação, e imóvel, enquanto o coro entoava o salmo dos iniciados.
a escolha recebera a aprovação do Faraó. - "Único e inconfundível Senhor do universo, manda d

Trajando paramentos do ritual, ri oficiante, seguido de nos um raio do teu amor, incendeia os nossos corações' para.
filas de sacerdotés igualmente trajados, foi ao encontro dos as obras edificantes do bem I" ,
soberanos, os quais, deixados os tronos gestatórios, encabe- Um grupo de sacerdotes dirigiu-se ao trono e com gran-
çaram o cortejo em direção ao altar. . Pr;~tada ~om:nagem des reverências convidou o faraó e acompanhou-o. ao altar,
à grande estátua do deus, dirigiram-se aos sobos reaIS, de onde ao som da misteriosa salmodia.
deviam participar da cerimônia.
2Z Ç.A M XL O C H A VE S SEMÍRAMIS

"Manda-nos um mio do' teu amor, ó nume benévolo! entre ~s, quais o' de reitor ~o edu~;l.ndário, ao pé da Esfinge
Ilumina. oS nossos- comções para as obras edificantes da fra- ?e G~Ize. Ed~cavam-se, alI, memnas da aristocracia egípcia,
ternidade I'" mc~usIve as prmcesas de sangue real. Este posto o tornou
Uma menina, entre dois pequenos acólitos, aproximou-se, estImado da 'nobreza, pelo reflexo da veneração que lhe tribu-
conduzindo, numa salva, a tiara do pontificado. tavam as discípulas. " .
E o coro continuou... . . Quando se. iniciavam as férias do colégio, uma galera real
Ia buscar as pnncesas, com a ordem de levar a Tânis o reitor
- "Glorificado seja o teu nome no deslumbramento da
obra criada, na majestade do teu poder infinito, ó Demiurgo, Também o Faraó o hospedava em seu palácio e o honrav~
Ó Senhor dos mundos I" com a sua confidência a respeito de muitos negócios. A pon-
O ,Faraó, tomando' a tiara com as duas mãos, proferiu a' deração e agudeza de inteligência tornaram-no necessário ao
fórmula da cOroação: , "Em nome de Amon-Ra, criador e sob~r~no, que o prendia ao seu lado. Isto ô contrariava, por
senhor do mundo, eu te sagro grão-sacerdote do Egito, com obrIga-lo a afastar-se da responsabilidade da reitoria. O con-
a tiam de uma só coroa, para 'que reines sobre os espíritos vívio na corte, entretanto, lhe permitia estudar os homens que
e as consciências". cercavam o trono. Q Faraó era um enfenno, cujo estado .de
Simas, genuflexo, recebeu a grande investidum que o saúde e cuja idade preocupavam os áulicos, quanto à even-
tualidade de sua morte súbita. Estava diante deles a perspecti-
tornava chefe dos crentes e da c1erezia.
va da sucessão.
Quem era Símas? Não tinha cinqüenta anos. Pouco
açima da média estatura, a sua pessoa se impunha por um Dois jovens príncipes personific;tvam o problema da pró-
agradá~el contenho. 'Semblante sempre aberto por um sor-
xima crise sucessória. Ramis, o mais velho, indicado, natu-
riso, apresentava a singularidade de uns olhos verde,.claros, ralmente, para substituir o pai, não tinha as qualidades que
contrariando a característica racial dos semitas. exornavam o segundo filho. Era grosseiro, pouco inteligente
Desde jovem, dedicara-se ao estudo e ao ascetismo em e.. de ,.instinto violento, 'ao passo que o innão em maneiroso,
: - -.

Mênfis e, pela acuidade intelectual,- conseguira alcançar, muito sImpatIco e de melhor entendimento.
cedo, os requisitos necessários à iniciação e ao sacerdócio, pro- Logo Simas compreendeu que, para a felicidade do povo,
priamente dito. Vários templos e conventos estivemm sob a .a coroa devia caber ao príncipe Saiad, ° segundol.gênito, e
sua jurisdição,. de forma que, aos conhecimentos religiosos e passou a estudar-lhe o caráter. Secreto pensamento sugeriu
científicos, aliava a experiência administrativa. a Simas a possibilidade de Samara se tornar, um dia, famona,
Após a iniciação, desposou uma jovem síria, filha de um casando-se com ele. .
compatriotà, residente, também, no Egito; felicidade passageira. O príncipe Ramis, ao contrário, olhava suspeitoso .as de-
essa, que logrou ao lado da companheira,' morta ao dar à. luz monstrações de afeto que o irmão dispensava ao sacerdote,
uma menina. Dedicou-se, com paixão, à. criancinha órfã, ra- pois, na corte, se haviam formado partidos e preferências.
zão por que não lhe interessou nova ligação matrimonial. Com a mçrte do grão-sacerdote, decrépito, e afastado no
Samara, cuidada por uma escrava dedicada, crescia. em refúgio de Mênfis, abriu~se vaga. O faraó externou a .sua
graça e 'beleza. A núbia Sinéfru, trazida como dote de casa- preferência por Simas, apesar de ser ° cargo de elei~ão dã
mênto pela Jovem esposa, nada tinha da estupidez da sua mça, casta sacerdotal. Simas já desfrutava de grande prestígio, e,
e pam que bem pudesse servir à sua ama, com esta recebera coma insinuação real, nenhum outro nome se lhe opôs. Todas
bOa educação. Conhecedor de suas qualidades, Simas' resolveu as corporações. religiosas mandaram delegados. à assembléia,
confiar-lhe a menina para criar. da qual surgiu eleito o reitor do colégio da Esfinge.
O sacerdote, de seu lado, crescia em conhecimentos e con~ ~ No. no,,:o posto, Simas, a pedido do velho soberano, que
sideração M seu meio, galgando postos de responsabilidade, nao podIa dIspensar-lhe os conselhos, transferiu-se para Tânis,
SE M: iR A KIS 2S
CAKILO CHAVES
- Como eu te amo, Chams!
apesar de caber a Mênfis ~ sede do pontificado. Antes de Os dias ~e férias de Samara, na corte, corriam entre mil
partir. internou Samara, então com dez anos, no colégio das divertimentos.
meninas, ao pé da Esfinge. .Ao entrar na, puberdade, começou ela a revelar grandes
Começaram· pam ela dias de alegria, no convívio das co~
quahda?es de carater, destacando-se no meio em que vivia.
legas. A vida solitária na casa paterna, .embora de mimos e
Cum~ndora ~o de~er, conjugava o v.igor intelectual ao gênio
conforto, tornara-a reservada e triste, em desacordo com as
aprazIvel. Nao pnmava pela l<?<luacIdade, própria da idade,
expansões espontâneas da meninice. Agora, encontrara o seu
mas. punha nos seus conceitos medida justa e graciosa. Às
habitat no meio alegre das companheiras. Adquiriu íl- euforia
quahdades do espírito associava uma perfeição de linhas sin-
espiritual e,' nas regras do estabelecimento, responsabilidade e
gularmente harmoniosas. Certas ocasiões, surpreendia' pela
discernimento. Iniciou-se, gradativamente, na prática do culto,
penetração divinatória e a bons observadores, como os sacer-
ministrada Com sabedoria e parcimônia, dê acordo com os pen-
dotes, não passava despercebida. esta importante faculdade, que
dotes naturais de cada alma. t~atavam de desenvolver. OUVIa vozes e, não raro, se trans-
Mestres eram os sacérdotes egípcios na arte de edutar e,
fIgurava como na posse de outra personalidade, a discorrer
pode afirmar-se, conheciam as qualidades psíquicas .dos indi-
sobre. assuntos que lhe. t!anscendiam a idade e a experiência.
víduos. Antes de darem à postulante consciência dá forç~ de.
Com Isto passou a partICIpar de estudos mais reservados.
vontade," através da compreensão, quebravam-lhe as arestas,
no exercício da paciência, da humildade e da renúnda. Os sacerdotes, ciosos das faculdades psíquicas, mantinham-
Algumas vezes, o pai ia vê-la, interessado no andamento nas .secretas. Arro,?avam-se o direito de requisitar 'pessoas,
da sua educação e, nas férias, levava-a para Tânis, em con- predIspostas ao fenomenos. Clausuradas, desenvolviam-lhes as
a
tacto com sociedade e com a família real. As princesinhas, aptidões e, iniciadas nos mistérios, tomavam destino, sob ju-
ramento, 'com terríveis imprecações, de manter secretos os seus
súas colegas, não lhe dispensavam· a companhia. Entre todas,
destacava-se a pequena Chams, filha do faraó,que, na coin- dons.
cidência da. idade, ternamente se irmanara com a. filha dó grão- Para.os homens, terrificante erá o processo $ iniciação
sacerdote. pela sevendade d~ pro~; pa!a. as mulheres, menor o rigor,
_ . Sabes, Samara, dizia ela, que acabo de pedir ao nosso por exercerem açao maIS restnta.
reitor permita nos. acompanhes a Tânis? Na pata da Esfinge, por uma pequena porta, penetrava.-
_ Que te disse ele? perguntava, curiosa, a menina. se em "longo corredor, que ia dar na ponta lateral de uma
_ Disse que sim, pois tens mesmo que ir para junto de grande sala s~bterrânea em forma de tê màÍúsculo (T), cor-
teu pai. Prepara-te, pois, para ires conoscO. respondente a nave. e ao transepto de uma igreja moderna.
_ Como és boa, Chams! Estou tão contente de ir con- Dez colunas de granIto, quadradas, com cinco metros de altura,
tigo!. .. sust~ntavam o teto em duas ordens de cinco, ao longo da nave,
_ Mas imponho uma condição. e seIS, na parte correspondente à abside. Mediante corredores
-- Qual? c~egava-~e . ~ s:tas menores, de finalidade especial, nas cerimô~
_ Vais morar conosco, no palácio. nIas d~ :n~ctaçao. Estas reservavam-se, apenas, aos iniciados
_ Papai não consentirá. Ele gosta tanto de mim! ..• nas mIstenos.
Eu gosto tanto dele! O processo de iniciação, um tanto complicado, se revestia
_ Sim, tens razão, Samara.. Eu, também, gosto muito de grandes precauções. Trinta e" três mestres do esoterismo
de meu pai... Então, prômetefazer-nos companhia muitas escolhidos e convidados, executavam os trabalhos. Primeira~
vezes. Vê, Samara, eu não tenho uma irmãzinha. .• Eu que- mente, reuniam-se sete, em comissão, Colocados três de cada
ro que .sejas minha. irmã.
26 CAHILO CHAVES
SEMfRAMIS 27
lado de uma mesa, o presidente à cabeceira e, na outra ponta, - Previno-a de que, apenas três vezes, poderá tentar se
a postulante. o resulta~o não for unânime. Compreendeu? '
Aos quinze anos, encontrava-se preparada Samara para SIm, respondeu ela humildemente.
enfrentar as provas, sentada à cabeceira' da mesa. . . Levantando-se, os presentes invocaram a assistência de
Perguntou-lhe o presidente se ela desejava, verdadeira- fsIS e Osíris.
mente, entregar-se ao serviço da 1S15 divina, cujos mistérios . Ao proceder-se à votação, ohieróforo, com a sacola pret~,
somente a poucos eleitos podiam ser integralmente revelados. la. recebendl;>, de cada. um, uma bolinha, depositada no fundo.
- Afirmas a tua vocação para o serviço da Deusa? VIra.~a a sac~la e feita a contagem, verificou-se o resultado
- Sim, afirmo, respondeu ela. de trmta e tres bolas brancas.
- Estás disposta a assumir todas as responsabilidades des- .'~ Está aceita, minha irmã, unanimemente. Meus pa-
te teu ato? Dou-te algum tempo para responder. Pensa e rabens! .
podes retroceder. . Sam~l'a recebe?, comovida, o abraço de seus novos irmãos.
- É uma deHberação tomada de minha livre vontade. AlI mesmo, o. preSIdente marcou o dia para a recepção solene
Assumo toda a responsabilidade do meu ato. da nova seTV1d~ra do templo. Foram expedidos convites a
Os mestres fizeram, com as mãos, o círculo magnético e todos os herm?tIst~ do Alto e Baixo-Egito.
invocaram !sis, para que demonstrasse a sua vontade. . O acont;cI?Iento era de grande importância para a comu-
Seguiu-se um grande silêncio. mdade? e ~enfIS .~ ~voou de forasteiros, que vinham assistir
Agitado por ligeiro tremor e transfigurado, um dos mes- ao ceqmomal de InICIação da filha do grão-sacerdote.
tres falou. ~a sala, por. trás da nave, do templo, estayam reunidos
--,- Venho,em nome da deusa, senhora. nossa e vossa. 'os maIs. graduados hierofantes, embuçados em negros capuzes
"Tendes em observação um caso especial. Muita atenção vos e revestIdos de paramentos deslumbrantes de ouro e pedrarias.
recomendo e ,que opineis pela aceitação' da neó fita. Depois,. ser- Colocados em fIlas, frente a frente, empunhavam aguçadas es-
vos-á dita alguma coisa mais. padas, cruzando-as ao alto. Samara, trajada de branco, passou
Com relatório favorável, foi marcado o dia da iniciação. sob a abóba~. de ferro e encaminhou-se' para o altar: Aguar-
Reuniu-se a congregação dos trinta e três mestres super- dava-a. o ofICIante, que sobre ela, prostrada, esparziu água e
iniciados, sob a presidência, do mais velho. Samara estava terra, Invocando o simbolismo de um sepultamento. ,
colocada ao centro do grupo, pálida e inquieta, pois ignorava -=- ~anço so~re ti os elementos naturais, que constituem
os trâmites do processo. a ~ssencIa das CoIsas, como sinal de que és mortal e 'voltárás
O chefe falou: a: Integrar-te na Mãe-nat~reza.
- Preciso explkar à postulante que vamos deliberar so": Levantando-a, fê-la passar três vezes sobre a pirade fogo.
bre a sua indusãono grêmio dos iniciados. Se, na votação, se - Recebe, a purificação, inerente à tua subida ao plano
apurarem somente pedras brancas, unânime será a aceitação; superior dos iniciados nos mistérios de 1sis e Osírís.
a pedra branca vale sim. Se houverdiscrepâncía na cor: das , . . Postá em pé,. braços estendidos, boca fechada, dizia-lhe o
pedras, somente nove meses após poderá tentarriovamente, ofIcIante: '.
se o requerer. No caso de haver sete pedras pretas ou: mais; • - Aspira, forte, o ar! Enche os pulmões! O ar é' o
impossibilitarão novo escrutínio. Se se apurarem' de' uma a veIculo. \:la transmissão do verbo. . . Expele o ar!. .. Aspira,
seis pedras negras, a pedido da postulante,. poder-se-á nomear novamente I Le~bra-te, sempre, da continência da língua...
uma -comissão de sete membros para examinar, com sindicân- ExpIra. . . AsplTa, novamente. • • A prudência no falár é um
das, sua vida privada. dos pri?:ípios da Sabedoria... Solta o ar l. .. Fala pouco e
A· voz do mestre vibrava metalicamente. a proposIto.
28 CAM'ILO CHAVES
SEMfRAMIS

'A um sinal do mestre de cerimônias, levantaram-se todos. O silêncio era geral, e ela encaminhou-se por entre os que
Samara ajoelhou-se, e o sacerdote, impondo-lhe as mãos sobre proferiam, repetidamente, a palavra mágica, portadora de vi-
a cabeça, proferiu as palavras inidáticas. brações benéficas, emitidas como um sopro.
....... Ó mortal morreste para as paixões do mundo. O tú- A-A-A-A-A-ü-ú-ü-ü-ü 1... A-A-A-A-A-O-ú-O-O-ü!. ..
mulo do teu espírito é o universo, a que deves servir, segun~o A-A-A-A-A-ü-ú-O-O-ü 1. ..
aS inspirações da tua consciência, que te forem dadas por 1S1S O oficiante recebeu Samara, apontando para a imagem de
e Osíris. ,. . . 1sis. A deusa tinha o corpo e o rosto velados por denso véu,
....... Cumpre-se, neste momento, falou, .profetlco, u~ 1111- sentada, com um livro sobre os joelhos.
dado, cumpre-se neste momento, uma. das fases ?etermmada~ - Minha filha, disse ele, estás apta a desvendar o enigma
por Amon, na vida desta jovem. Assmalado ~ammho lhe. e~ta da Esfinge, através da fórmula: Saber-Querer-Ousar-Calar.
prescrito pelo Criador e senhor de tod~s as COlsas. .ConstttUIr- Que 1sis te assista, e vaiem paz.
se-á em instrumento, na m'ão do Destmo, para efeIto de evo-
>I<
lução da Humanidade. Grandes feitos lhe estão reservados,
como exemplo de eqüidade e progresso, às gerações. vindouras. O prestígio de Simas aumentava à medida que o faraó
Eu, Derceto, em missão divina, sou a encarregada de velar-lhe definhava. Todos sentiam que as últimas resistências de sua
o caminho ea trajetória, a fim de que nela se cumpra a von- vida se exauriam, e a figura do grão-sacerdote, nesse transe de
tade do Altíssimo. Será chamada filha de Derceto, .senhora incertezas, era olhada como uma garantia.
das nações, deusa da guerra. De uma feita o faraó chamou-o.
....... Sois a Derceto de Ascalon? perguntou-lhe um dos pre- - É o fim, disse, desconsblado. As minhas forças se
acabam ...
sentes. . d ' •
....... Em Ascalon está a representação grosseIra o esplT1to. - Ânimo, meu senhor. O povo todo faz preces pelo
Sou um dos agentes escolhidos por Amon- Ra para encaminhar: vosso restabelecimento, e o Onipotente há de ouvir-lhe os rogos.
a evolução das nações. Na pred~sti~ação.de Samara pore! ....... Estende as mãos sobre mim, a fim de que me acalme ...
diligência, em cumprimento das ~~ssoes m1?ha e dela. , Que Como me sinto aflito!. " Assim!.. . Já me sinto melhor ..•
ísis, senhora nossa, e o divino. OS1f1S vos assIstam e aben5oem. As tuas mãos, ó meu amigo, despedem bênçãos e alívio ..•
Ea prestigiosa entidade evolou-se, a uma convulsao do Dize-me, dize-me ... , que pensas sobre a minha sucessão?
iniciado. - Far-se-á em tudo segundo a vossa vontade.
O oficiante dirigiu-se a Samara um tanto confusa «:,com - Muito me preocupa esse assunto, e temo as conse-
uma vênia, cumprimentou-a. qüências de um erro. O meu primogênito não me parece ta-
lhado para as responsabilidades do governo. O príncipe Saiad
_ Salve,' filha de Derceto! . .
Enquanto ela mudava de vestimentas, reU1~iram-se os hle- é mais aquinhoado de qualidades de mando... É a sorte do
Tofantes à comunidade, que aguardava no recmto do templo. Egito que está em jogo... Aconselha-me, amigo, eu confio
no teu critério.
Simas e Aizar,escolhidos como testemu?has, foram ao seu
encontro. Samara caiu nos braços. do paI, em soluços. V e~­ Sir;nas encontrou-se numa encruzilhada. Justificou, em
tida de branco e coroada de lírios, ~oi, ~ela mão dos padrt- seu íntimo, os escrúpulos do faraó, concordes com a sua opi-
nhos, introduzida no recinto. As dmconIsas e m,:lheres do nião. Temia, porém, uma indiscrição de efeitos fatais, se
transpirasse. .
templo receberam-na com um canto· grave e evocatIvo, quase
fúnebre. Duas grSlndes filas de hieróforos, formand? ~or­ - Dize-me a tua opinião, sem receio, insistiu o doente.
Terei o cuidado de guardá-la para mim,
redor, espalmavam as mãos sobre as gargantas, como ~ .1~dl~ar
q~e preferiam ser degolados a trair o segredo da. tnlcmçao. Simas, encorajado, resolveu-se pelo amigo, pensando que
os deuses o encaminhavam para a solução acertada.
S EM f R A M I S 31
30 C A :M I L () CH A :v li: S
Sapientíssimo senhor, os vossos escrúpulos estão jus- aproveitando-se da, confusão reinante no palácio, mancomunado
tificados pelo entranhado amor à. terra do Egito. Se quiser- com o general c0t.Uandante da praça, guarneceu com gente sua
des, podereis modificar as determinações anteriores, uma vez as .entradas: d:poI~ ~e afastar a guarda habitual. O príncipe
que vos manifesteis ao vosso notário. A vossa propensão para ~alad, seu Irmao, tOI preso quando se dirigia à câmara mortuá-
o vosso filho segundo é inspirada por Amon, a fim de se na, e o mesmo aconteceu a outros amigos dele.
pouparem ao povo egípcio dias de amargura. ~reparava-se Simas para acudir ao chamado, quando lhe
_ Tens razão, é mister que o bem-estar do povo. esteja anunCIaram a chegada de um novo emissário. Este apresen-
acima de qualquer outro interesse... O notário I. .. Manda tou-se.
vir o notário, disse o faraó, num paroxismo de aflição. - Que desejas? perguntou o pontífice.
Naquela mesma tarde, foram modificada.s as suas dispo- - Sen?or, venho, da parte da princesa Chams, encarre-
sições, como sua última vontade, em, favor de seu filho Sáiad, gado de aVIsar a Vossa Santidade dos graves acontecimentos
indicando-o seu sucessor. Determinou, igualmente, o sobera- que se passam.
no que, em vista de seu precário estado de saúde, fossem os - Morreu o Faraó?
negócios do Estado resolvidos por uma' comissão, constituída . . - Está nos últimos momentos. O príncipe Ramis subs-
pela rainha, pelo grão-sacerdote e pelos ministros. , t1tUl~ a guarda d~ palácio e prendeu seu irmão, quando entrava
Compre~nsível era a gravidade do momento, em que se na camara do ~I., Muitos outros foram presos, e minha se-
elaborava uma transformação no Estado, com o advento de nhora ma~da aVIsa-lo do perigo que corre Vossa Santidade.
um novo faraó. A intriga campeava nos bastidores, e come- A prm~esa Chan:s, companheira da filha do grão-sacer-
çava para todos a incerteza da situação, que, de um momento dote, se afeIçoara a SImas pela amizade que esta lhe dedicava.
. para outro, podia ocasionar a derrocada de muitos. Ela mesma apontara a Sáiad o nome da amiga para que a
O direito de sucessão, segundo as normas usuais, cabia desposasse.
ao príncipe Ramis, primogênito do faraó, mas muitos recebiam Simas compreendeu que estava perdida a partida em que
com inquietação a sua subida ao trono. Refletiam-se nele os se empenhara e. que seria préso se tentasse entrar no palácio.
mexericos, e seu gênio irascível, não raro, irrompia em amea- O resultado sena o seu desaparecimento na masmorra.
ças e truculências. Entre ele e o príncipe Saiad criou-se an· . ~ Dize à tua senhora que jamais esquecerei a prova de
tagonismo, que degenerou nas formas' imprevisíveis da inimi- amIzade. .
zade. A malevolência do príncipe Ramis estendia-se a. todos Cumpria~lhe afastar-se imediatamente, antes que fossem
os amigos e simpatizàntes do irmão, e, Simas estava incluído tom~das medIdas para a sua captura. ' Reuniu os escravos mais
entre os visados para a vindita. Estes fatos acirraram os dedIcados e preparou a fuga. Tirou da arca e encaixotou °
ânimos e muitos entraram a conspirar, porque todos sabiam ouro de que dispunha, suficiente para abrir caminho nas difi-
que, c~roado o príncipe Ramis, ai dos seus adversários I culdades e garantir-lhe a subsistência.
A rua participava das maquinações de revolta, e, enquanto E Samara ?Havia de abandoná-la em Guizé? Es,te pen-
o velho faraó se morria, firmavam-se pactos entre os áulicos samento gelou~l~e o coração, mas, reagindo, ordenou que os
e concertavam-se planos. Simas, como chefe religioso, pas- escravos condUZIssem a bagagem para a sua galera, que ba-
sava por s·er um dos agentes preponderantes da vitóri~ do louçava no ancoradouro. Enquanto se desenrolavam os acon-
príncipe Saiad, mas a faraona, preocupada com a enfermI?~e tecimentos relativos à morte e sucessão, do faràó, Simas afron-
do consorte, entregava-se ao desespero, alheada dos negocIos tava a correnteza do Nilo, rumo a Mênfis. Os remadores,
e das, intrigas palacianas. segundo a ordem, aceleravam o impulso do barco. .
. Chegara, finalmente, o último dia do soberano. Expediu- No primeiro momento, após o falecimento do velho mo-
se aviso a todos os parentes e autoridades. O príncipe Ramis, narca, o príncipe Ramis se proclamara far~ó. Arautos par-
32 CAMILO CHAVES
SEMÍRAMIS
33
tiram em todas as direções a anunciar o acontecimento. Pas~
sados os primeiros momentos,. após o~ funerais, e, tã~ :ogo se - Assistiremos ao fato· único na nossa história, o de asi-
organizou o novo governo, fOl expedlda ordem de pns~o con~ lar-se o nosso pontífice em lugar ignorado!. . . Que os deuses
tra o grão-sacerdote Simas. Verificado o seu desapareclmento, imortais confundam o nosso inimigo.
foram despachados mensageiros recomendando a ,su~ ca?~u:a, -: As nossas leis prevêem o caso, e, na minha ausência
mas ele levava a vantagem de três dias. De Menfts dlr!gu;l- o meu substituto dirigirá a comunidade até que melhores dias
cheguem à nossa terra.
se- ao colégio da Esfinge, onde foi recebido com a deferencla
devida ao seu alto cargo. - Lastimo sinceramente esta situação e espero que, com
- A surpresa da vossa chegada, ilustríssimo pai, faz-me a benevolênci::. dos deuses, tudo se acomode. Podeis estar
pressentir acontecimentos graves. Aqui têm chegado rumores certo de que a comunidade velará pela vossa filha.
de que as coisas não vão bem na corte. - Agradeço a generosidade do oferecimento, mas desejo
levá-la comigo. Se maiores vicissitudes tiver de passar, que
- E verdade, bondoso Aizar, a morte do noss~ augusto ela esteja perto de mim. Peço-lhe, pois, meu amigo, que a
faraó veio trazer ao Egito dias confusos e, talvez, mUlta amar- prepare para seguir imediatamente, antes que nos alcancem os
gura. sicários do tirano.
Contou ao reitor as ocorrências relativas à ascensão do novo Imediatamente, Aizar ordenou· a uma diaconisa qu.e pro-
faraó, iracundo e vingativo, que havia encarcerado o próprio videnciasse a viagem de Samara, enquanto ele e Simas toma~
irmão. vam disposições inerentes à vacância do pontificado, com aviso
- Eu não respondo pela vida do príncipe e, acredito, seus ao substituto Amond Hermés para assumir a direção da co-
partidários e admiradores estão presos, se não m~rtos. Eu m.es- munidade, durante a ausência do titular. Foi, em seguida,
mo, avisado a tempo, pela princesa Chams, aqUl e~tou: fugldo redigida circular a todos os sacerdotes e iniciados, pondo-os
à sanha do energúmeno. Certamente, antes de dOlS dlas~ che- a par dos acontecimentos.
garão ordens de prisão contra mim. Pouco depois, Simas e a filha tomavam o curso do Nilo,
- Não acredito se atrevam a violar estes lugares sagrados, em direção à famosa Tebas. No correr da viagem, o pai
onde podeis permanecer o tempo que quiserdes. inteirou Samara do perigo que estavam correndo e da neces-
- Àgradeço boníssimo Aizar, a boa acolhida e o amparo sidade de fugirem à perseguição do faraó. A moça, embora
oferecido. No t~mplo de Amon, também, há asil?, para o a sua tenra idade, tinha forte o ânimo.
grão~sacerdote, mas não podemos prever até aonde lra a tr~­ - Iremos, meu pai, para muito longe, onde não se fale
culência do tirano, reconhecidamente inescrupuloso.. Pr<;fen- no nosso inimigo. Eu o ajudarei no que puder e pedirei a
vel é que eu tome destino ignorado, antes que a lm~m~da?e Derceto, minha mãe, que nos ajude.
sacerdotal e os nossos templos sejam ultrajados com vlolencla. Postou-se ela ao lado do mestre dos remadores, e, ao
- Para onde quereis ir, pai ilustríssimo? ~~r~ o de- seu incitamento, acelerou-se o ritmo dos remos. A galera
voava em direção ao seu destino.
serto? Para o coração do continente? Para a Nubla. Para
a Etiópia? Tebas estava muito afastada de Tânis, e os últimos acon-
tecimentos eram ignorados ali. A chegada da galera causou
- Não meu amigo. Quero ir para onde não houv~~
sensação pelo inesperado. A velha capital do Alto-Egito, onde,
influência d~ governo egípcio: Subirei o rio até Teb~, e_
durante séculos, residiram várias dinastias, era ainda o gran-
temos os nossos santuários onde .tomarei conselho ~ dl:e~ao.
de núcleo da casta sacerdotal e grandiosos templos e santuá-
- Ficaremos sem o nosso chefe, sem a sua saplentlsstma fios sustentavam-lhe o prestígio religioso. Os templos de
~~? • Abidos e Karnac, assim como outros grandes monumentos do
.. - Amon onipotente vela sobre o Egito e a tudo prover;.. passado, eram o atrativo de todos os devotos.
34 CAMILO CHAVES
SElIlfRAMIS
3S
Simas quisera. passar despercebido e, embora incógnito, da barraca pôde ver à luz d 1 b .
recolhido ao convento de Abidos, a galera denunciou-lhe a pre- a dormirem indífer~nte °t uar es ranqUlçado, os camelos
sença. Inúmeros religiosos procuraram-no, desejosos de lhe Lembrou-se'de Derceto. s aos errores noturnos. Acalmou-se.
prestarem homenagem.
- Minha mãe, ajud~-me!
A par das graves ocorrências pôs os superiores das casas E dormiu.
religiosas e manifestou-lhes a intenção de fugir à ira do faraó.
Sua decisão foi transmitida a todas as comunidades do país, dou DeI mad~ugada, retomando a marcha, a caravana envere-
passando a concertar o plano de evasão. Mandou que sua a pe ~ va e, d~ ~oonu, cujo' curso acompanhou durante
galera voltasse a Mênfís, à ordem do grão-sacerdote,' dando-se Iguns. dIas, a~e atmglr Kuaú, pequena localidade marítima
O barco Já estava ' d . .
curso à notícia de que ele havia voltado à sua sede pontificaI. dia d h. d . a espera ?S passageIros e, no próprio
Após dois dias, começaram a chegar notícias da corte, da a c ega a, recebeu a bordo SImas a filha e os de
vos Com as bag A ' z escra-
morte do Faraó ·e da subida do seu primogênito ao trono. agens. travessado o mar de Quíti bo d .
Não tardou que o governador da cidade procurasse o superior ra~ adPenínsula arábica, rumo norte, entrando pelo' bra~oe~~­
do convento de Abidos para saber notícias do grão-sacerdote. reI o esse mar, formador da península do S' . D -
barcando na extremid d d ' mal. esem-
Simulando ignorar, o superior disse que, realmente, seu chefe Acabá Simas ' . a e esse golfo, na pequena cidade de
estivera em Tebas, mas retornara a Mênfis na sua galera. A , orgamzou caravana e parti . d rt d
demora na troca de mensagens entre o governador e o seu chefe rumo ao país de Edom D' d' u, ese o a entro,
. . elxan o a esquerda o M
em Tânis ia dar ensejo à evasão. segmu, pelos reinos de Moab e de ~nion , , ' , ~ar orto,
o caminho de Babilôni ' , . ' ate a Sma. Tomou
Antecipou-se, disfarçado, em Kuaú, pequeno porto do mar fez parada. a, ate ao oaSlS dos Peregrinos, onde
de Quíti, que se chama, hoje, mar Vermelho, um ·dos sacer-
dotes de Ábidos, com o fim de contratar uma embarcação. ~li, ele se sentiu livre do ódio do farao'
No dia determinado, partiram Simas e a filha. Os sacerdo- Pr opne da de adequada à criação de carneiros.' Adquiriu uma
tes, secretamente, tinham organizado a caravana que devia con- E tornou-se pegureiro.
duzi-los.
Certa madrugada, cor de nácar, caminharam em direção
ao sol nascente. Samara sentiu o bafejo quente do deserto.
Lembrou-se de Guizé, da Esfinge, das companheiras. Embu-
çada no seu branco albornoz, seguiu a caravana, montada no
dorso do camelo. O Nilo desaparecera como um sonho e,
agora, só via a sucessão das dunas. O areal era como o adja:'
cente à Esfinge, onde passara dias felizes. . A princípio, o
movimento desconjuntado do pachorrento animal incomodava-a,
mas, aos poucos, foi-se habituando, enquanto as dunas se su-
cediam, monótonas.
Abarracaram em pleno êrmo, quando o sol se escondia
no horizonte raso, deixando no espaço uma pulverização de
ouro.
No silêncio da noite, Samara não dormia, assustava-se
ao latido agourento das hienas famintas. Aves noturnas sa-
cudiam o ar com as suas gargalhadas derrisórias. Pela fresta
SEMfRAMIS 37

Em direção ao grande deserto, isto é, para o sul o ver-


dor da .clorofila ia, gradativamente, esmaecendo, até que a
m~not?ma amo.rt~l~asse de branco as ermas paragens, às quais
a 1roma da HIstona denominou de Arábia Feliz.
Onde o veio de água subterrâneo conseguia, aflorando,
CAPÍTULO PRIMEIRO vencer o lençol sabuloso, alimentava vegetação multifária que
da altura, lembrava gigantesca esmeralda superposta a um~
o OÁSIS DOS PEREGRINOS lâmina prateada.
A gramínea rasteira se enfeitava de verde, convidativa
Os montes Peregrinos, conforme a denominação da época, ao repasto ~os rebanhos bovinos e das cavalhadas soltas, que
vagavam relmchantes pelos varzedos. As tamareiras como que
eram uma espécie de contrafortes da cadeia do Líb.ano, con-
assustadas da quietude do ermo, num gesto de defe~a, se con-
tra os areais e os ventos ardentes do deserto. PareClam devo-
gregavam em moitas espessas, oferecendo aos viajores esfal-
tos do Sol, prosternados em direção ao oriente, em perpétua
fados as cargas apetecidas dos cachos. Arvores e arbustos
adoração. Pouco elevados, se destacavam, entretanto, das dunas
próprios do clin:a, formavam aqui, acolá, na alfombra verde:
e formavam vários cabeços, em semicírculo, de cujas encostas
bosquedos luxunantes, que se degradavam nas tintas à medida
desciam cristalinos mananciais, formadores de um ribeiro que, .
que se aprOXImavam da sequidão. '
algumas léguas abaixo, .ia morrer em extenso lago: segun~o a
vocação hidrográfica da região. Esse pequeno velO de agua, Aquela ilha edênica p~der-se-ia denominar quase um
, I ' ,
rumado, naturalmente, para ° mar, não podia alcançá-lo, por- pal~, ta a ext.ensão e a multiplicidade de elementos que ofe-
reCIa: aos h~bltantes. ~:u~as. e cereais de variadas esp6cies
que, de permeio, estava a grande cordilheira, a espremer a
surgI~m ~atIvos: ~ a dlhgencla do homem conseguia cultivá-
Fenícia no Mediterrâneo. los: ftgu,elras, ,VIdeIras, c~vada, trigo, milhete, gergelim, do qual
Essa bacia, que se podia chamar de vale, localizada na
Síria superior, constituía magnífico oásis, onde as caravanas, se extraia o oleo de estimada bebida, ou a tamargueira, for-
n~cedo~a de goma açucarada. A tamareira, porém, era a prin-
em demanda de Babilônia ou do Egito, tomavam descanso, de-
pois da grande travessia, ou se preparavam para a arrancada CIpal nqueza da terra, porque supria todas as necessidades
Dela se extraía uma espécie de pão, de vinho, de vinagre, d~
sobre os horizontes infindos daqueles desertos.
A instabilidade do estrado arenoso, ora deslocando-se ao mel, de bolos e muitas variedades de tecidos. Os seus caro-
sabor dos vendavais, ora acumulando-se em dunas, não permi- ços alimentavam as forjas, produzindo calorias ou socados
tiria hoje a localização dessa mancha verdejante. No correr e macerados, serviam de alimento aos bois e carneiro~.
dos milênios, modificações profundas se operaram na fácies N.ã? f~ltava ao mágico refúgio a fauna de grande porte,
geográfica desse trecho continental, com o soterramento de que VIVia a margem e se alimentava da alimária selvagem.
rios e lagos, ou com a remoção da areia para a descoberta Os leões e as hienas vociferavam nas dunas, mas domestica-
dos estavam o cavalo, o burro, o porco, o cão, a cabra, o car-
de mananciais formadores de novas ilhas de verdura.
Quando aconteceu esta história, muito conhecido era o neiro e o boi.
oásis dos Peregrinos, ponto de convergência das caravanas. O . <;ompletava o bonançoso recanto uma população variada de
caminho de ligação do Egito, Palestina e Fenícia às terras do refugtados
, .
de outros países: egípcios, filisteus ' israelitas, fe-
oriente, tinha singular importância no comércio daqueles paí- 111ClOS, edomitas e árabes, os quais, seguindo os naturais pen-
ses, que constituíam o mundo civiliz~~o, .se é que, naq~el:s dores, cultivavam a terra ou pastoravam rebanhos.
recuados tempos, mereciam este quahfIcatlVo os povos nbeI- A zona fazia parte da província da Síria que, nesse tempo,
estava sob o domínio assírio, representado por um governador
rinhos do Nilo, do Eufrates e do Indo.
CAMILO CHAVES SEM f RAM I S 39
38
A esc:assez de negócios, as caravanas levantavam acampa-
militar. Para atingi-la, era mister atravessar extenso trato are- mento, deixando vago o lugar para outra superveniente.
noso. Este fato a mantinha indene às intrigas e paixões pre- Neste recailto se refugiara Simas. Estava sob o domí-
dominantes em Damasco e demais cidades, e a sua população nio da Assíria e nada tinha a temer do ódio do faraó. Iso-
heterogênea vivia em relativo sossego. lado naquele oásis, mantinha-se afastado, suficientemente, do
A própria condição de refugiados torna~a todos com~­ governo de Damasco, para não ser incomodado. Com o ouro,
didos e cada um cuidava do seu trabalho, evitando competi- que havia trazido, comprara um pedaço de terra, onde exercia
ções ou lutas, em bem da segurança pessoal.. ,E.ssa populaçã~ a profissão de. criador de ovelhas. Ele, a filha e uma dezena
mista se distribuía ao longo do~xtenso terntono; e as habI- de escravos fiéis, entre homens e mulheres, habitav.am a mo-
tações se plantavam próximo aos cursos de água, ou junto desta herdade, que se caracterizava, além da morada da família
aos mananciais afluentes. Mas havia um pequeno povoado por amplos barracç>es e currais, abrigo dos rebanhos. Nad~
que, embora embrionário, era a capital da região. Ali viviam daquelas suntuosas instalações, perto de Tânis, quando desfru-
estalajadeiros e pequenos negociantes, exploradores das cara- tava as prerrogativas de Sumo Sacerdote e dos favores do
vanas. Rústicas estálagens acolhiam gente de diferentes ra- soberano. Recordava-se de toda a intriga em queS'e envol-
ças, confundidas no linguajar estranho das· mais remotas ex- vera para elevar ao trono o príncipe Sáiad. As angústias da-
tensões da Ásia e da África. Citas, hindus,bactrianos, persas, quela noite em que partira, as precauções, o medo de ser alcan-
mongóis, medos, babilônios, assírios, sumerianos,· hititas e idu- çado, tudo lhe causava arrepios ao lembrar-se... Depois a
meus se misturavam a egípcios, árabes, hebreus, filisteus, etío- fuga no barco etíope, a chegada ao deserto, a caravana para
pes, fenícios e cretenses, dando ao ajuntamento aspecto de Babilônia, o oásis dos Peregrinos ... , a liberdade! Agora, as
feira internacional. grandezas do Egito lhe pareciam um sonho.
Em cercados de madeira, onde se levantavam coloridas Ninguém, dos que habitavam· o oásis, podia supor que
tendas de pano, circunspectos camelos dormitavam, mostrando aquele pastor ocult~va um gão-sacerdote de Amon, senhor de
as corcovas pisadas pelas cargas. Garanhões, escapos das ca- alta sabedoria, conhecedor dos mistérios divinos deste mundc
beçadas, atiravam-se ferozes sobre os concorrentes ao amor e do outro.
das potrancas; onagros de longos pêlos ensimesmavam a misé- Não lhe convinha, a Simas, se divulgasse o segredo, a fim
ria da sua degradação. de se evitarem complicações, mas sentia-se tranqüilo, porque
Nas tendas, dispersas pela enorme praça, os mascate~, a Assíria era inimiga do faraó. A vida simples que adotara,
abertas as canastras, exibiam artefatos e tapeçarias da PérsIa corria-lhe despreocupada no cuidar das ovelhas e no apascen-
e do Hindustão; tecid()s de lã e seda, de vivíssimas cores, tar os rebanhos nas encostas das serras, onde verdejavam am-
procedentes do remoto oriente; objetos de cobre ou bronze, plas pradarias. As manhãs lhe chegavam, agora, com um sol
espadas de ferro, adagas, cimitarras. Em uma dessas expo- madrugador, saudado pelos balidos dos currais. Sentia-se co-
sições, dispunham-se, em ordem, fac-símiles, em miniaturas, movido ao oontemplar os flébeis cordeirinhos, inaugurantes da
de deuses de todos os povos, ídolos egípcios com cabeças de vida! E esquecia o passado.
animais estatuetas de Belo, Marduc e Istar, de Babilônia; Cada aprisco tinha o seu chefe responsável, e Simas de-
a deus; Derceto, de Ascalon; o Baal ou Moloc, dos fenícios; terminava a todos. Indicava o encosto para cada partida e,
pequeninas arcas-da-aliança dos hebreus e figurinhas de Xiva. °
ele mesmo, abrindo a porteira, dava grito característico. Uma
ovelha se adiantava, afoita, e logo, as outras, acompanhando,
com seis braços, adorada na índia.
As tribos nômades do deserto ali vinham, com seus xe- se precipitavam em tropel, enquanto ele procedia à contagem.
ques, permutar gado lanígero, peles, lãs, cavalos, came,los por Zinar, o escravo, com a vasilha de água a tiracolo e, na mão,
utilidades de que careciam, formando ajuntamentos a porta a panela do almoço, chamava o seu cão e partia no comando
da carneirada.
dos mercadores.
SEMfRAMIS
CAMILO. CHAVES
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unicamente nela. Preocupado em assegurar-lhe o 'futuro,
N ovo rebanho era solto, e, nesse momento, se apresentava quando desfrutava de um poder quase igual ao do faraó, so-
Samara, preparada para seguir. nhara para ela nada menos que um trono.
_ Hoje, meu pai, quero pastorar. Gosto tanto das ove- Samara contava dezesseis anos; bela de inquietar. O pai,
lhas! .. , Os cordeirinhos são um encanto!... Tão mei- preocupado em resguardá-la, fugia aos ajuntamentos SOCIaIS.
gos!. .. I A situação humilde daquele refúgio não apoquentava a me-
_ Eu não gosto de que te aventures sozinha pe o ermo. nina, que estava na primavera da vida, em que tudo é risonho
As mulheres correm mais perigos que os homens. Um pres- e florido. Mesmo sozinha no campo, para espalhar a mono-
sentimento me traz inquieto ... tonia da solidão, ela cantava, e as dunas, em ricochete, repe-
_ Que me pode acontecer? Já tantas vezes tenho aco~- tiam os acentos sagrados da invocação à deusa, como apren-
panhado as ovelhas ao pastoreio, que elas me conhecem e sao dera em Guizé.
capazes de defender-me. Veja lá Zebulon, o pai da turma, com Simas, não raro, temendo o isolamento da filha, mandava
as suas rodilhas de chifres, como um gorro, sobre a cabeça! um dos escravos percon:er os prados, mas a normalidade cons-
Ele é meu amigo e não creio que me aban~one no mo~ento tante restituía-lhe a confiança. .Lá para os lados da serra ou
de perigo. Sabe dar cada marrada!!. o. Vlv.a oZebulon o nas lindes do deserto habitavam leões e hienas, mas os reba-
Aproximou-se do enigmátic~ animoal e acan~lOu-Ihe a fron- nhos não se distanciavam até lá; não constava invadissem as
te calejada. Zebulon, por exceçao, deIxou-se mImar, olhando-a teras os pontos mais freqüentados do oásis.
com os olhos amarelos ... O pequeno povoado, que gozava da honra de ser conside-
_ Eu, se fora general, havia de organizar um rebanho rado capital desse refúgio paradisíaco, foi, um dia, surpreendi-
de aríetes como este e mandaria que eles malhassem os mu- do por um acontecimento capaz. de modificar-lhe a rotina e
ros das cidades inimigas até ruírem. alarmar os seus pacatos habitantes. Chegou abruptamente, com
Comprazia-se o pai em ouvi~-lhe os rasgos de espírito. grande estardalhaço, um trem de guerra, com numerosos carros
_ Tens cada idéia, minha fIlha, que não pareces uma puxados por fogosas parelha.s de cavalos. Trompas militares
menina. Teus modos são de rainha. . clari~avam a importância do cortejo,.a cuja frente vinha vis-
_ A gente pode ser rainha, mesmo entre os carnelr~s. toso chefe, a dirigir sozinho O seu carro. A violência da
_ Então chama os teus vassalos,concluiu Si~as a :lr. marcha obrigava os pacíficos camelos das caravanas itineran-
_ Algum dia, se eu for rainha, hei de .ser mUlto quenda tes a abrirem caminho, assustados.
e respeitada. Vamos, Vombi! Vê, meu paI, tenho o~tro va- A comitiva parou, subitamente, em frente à estalagem
lente defensor. Vombi e Zebulon são os meus paladmos. principal, e, ao descerem os soldados, já um arauto anunciava
O cão correra para ela e, ao festejá-Ia, l:vantava-se nos a qualidade da principal personagem.
pés, tentando beijá-la. Ela empunhou o borda0, ;om o mo- , . - Honra ao invencível general Oanês, governador da
Sma! .
ringue de água ao cinto, a vasilha do almoço ~a mao e~ue~da
e tomou a frente. Ao seu chamado, a esteIra de la ,fOlo-se Os da comitiva, reunidos em esquadrão, elevavam a mão
movendo em direção ao prado, à semelhança de um hqUldo direita e bradavam:
pastoso a escorrer em estrado escuro. . - Honra! Honra I
Samaraera a alegria daquela morada; ao seu lado, SI:n~S - Glória ao amigo de Chamsi-Adad, onipotente senhor
esquecia os reveses, e mesmo a humilde situação em que VIVIa, do mundo!
apesar da sua grande ambição, tornava-se-Ihe venturosa. Todo - Glória I Glória! exclamavam os da escolta.
o seu orgulh ,
~ o toda a sua ternura se concentravam naquela - Salve o vitorioso general da Assíria! clamava o arauto.
d' " f ,. - Salve!
jovem, dotada de grande espírito e de ext~aor mano ascmlO.
Nas suas vicissitudes, não pensava em SI mesmo, mas nela
42 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 43

Enquanto se procedia à aparatosa proclamação, o povo Os reis da Assíria e de Babilônia gloriavam-se do número
do lugarejo e os viajantes das caravanas reuniam-se e, genu- de leões vencidos e perpetuavam os feitos em monumentos que
nexos, faziam vênia. O mais apessoado, de longa barba ao chegaram até ao presente. Alguns deles sacrificaram alguns
peito, dirigiu uma saudação coletiva ao recém-~hegado. milhares desses felinos em grandiosas caçadas reais. Este
_ Ormuz vos guarde, senhor nosso, e nos vos rogamos gosto se comunicava a todos os nobres, entre os quais não
que manifesteis as vossas ordens. se tolerava a covardia. Os jovens aristocratas do reino, a
_ Levantai-vos! gritou o general. par dos exercícios e práticas de guerra, se adestravam para
Adiantou-se o ancião para se entender com o arauto. Teve o duelo com as feras, especialmente, leões ou tigres.
ordem de acercar-se do general, a quem se apresentou, trê- O .general Oanês era um dos nomes de guerra mais glo-
mulo de medo. riosos da Assíria; inúmeras batalhas pelejara e vencera ao
_ Senhor, que os gênios do Espaço vos conc~dam pro- lado do seu soberano, e, afirmava-se, muitas vitórias foram
teção. Nós vos pedimos humildemente que declarel~ as vos- devidas ao seu gênio militar. Não precisando dele,' naquele
sas ordens e desejos, a fim de que possamos cumpn-los com momento de paz, o rei lhe dera o governo de uma de suas
a solicitude a que tendes direito. . . conquistas _. a Síria.
_ É vontade minha que me forneçaIs um gUla, que me A época era propícia aos exercícios cinegéticos, e o bravo
leve ao reduto dos leões, para que eu possa matá-los com a guerreiro não podia fugir aos pendores da aventura no medir-
minha mão. se com um poderoso leão. A sua fé de ofício lhe atribuía
°
O inesperado da situação pôs velho perplexo, fazendo-o algumàs centenas de vitórias nestas arriscadas competições.
gaguejar. . . Como secretário, trouxera um jovem aristocrata, herdeiro
_ Permiti-me, Senhor, que vos pergunte se conheceIs a de ilustre família de bravos, que o rei lhe confiara. Cumpria-
força e destreza do rei do deserto. Ireis ao encontro de lhe encaminhá-lo na escola da 'bravura e da experiência, o
morte certa. que fazia com diligência e afeição.
_ Cala-te! Um general assír:io não teme nada neste Lécon tinha apenas vinte anos e entrara pela vida num
mundo. Nem os inimigos de Chamsi-Adad nem ° rei do de- atropelo de entusiasmo e ambição, como convinha a um fi-
serto ! Ouviste? dalgo assírio, cujo pai, depois de muitas lutas e vitórias, su-
_ Perdoai-me, senhor, que lembre a audácia da empresa, cumbira no campo da honra. Estatura elevada, mas delgado,
insistiu o velho a tremer. seu corpo era um feixe de músculos. A falta de barba, a
- Cala-te! caracterizar o efebo, antecipava-lhe a graça de um período
O general, investindo contra ele, fustigou-o, repetidamente, clássico posterior, quando, a correr, empunhava as rédeas da
com o chicote. O pobre homem compreendeu que nada lhe biga.. Vestia leve túnica que o cobria até aos joelhos, como
restava a fazer senão submeter-se. convmha a uma partida em que a audácia e agilidade entravam
- Senhor, senhor! Piedade! em jogo. Jamais abatera um leão, mas aspirava, com ânsia,
- Cumpre as minha ordens! abrir a contagem das suas vítimas futuras. .
_ O vosso servo vos acompanhará até à morte. Lécon apresentava-se ao combate apenas sobrecarregado
_ Incorpora-te à comitiva e toma a dianteira, para que da espada, à cinta, duas fáretras, cheias de setas, presas à
te sigamos. Como te chamas? guarda do carro; pelo arco, a tiracolo, e pela lança.
- Aduc, vosso escravo.. . Em Nínive, passara ele por todas as escolas de especia-
Naqueles tempos heróicos a glória dos br~,:os se ,a~ena lização da arte militar e recebera dos preceptores conhecimen-
pelo número de leões abatidos.. A faç~?ha ex:gta aud~c:a e tos das regras da caça e das particularidades de astúcia das
destreza. Somente os verdadeIros herols podIam realtza-la. feras, mas faltava-lhe o batismo cruento dos entreveros, nos
44 C A :M IL O C H AVE S SEMfRAMIS 45
quais, pela felicidade ou pela audácia, selecionavam~se os valo- mas, acossados, investiam: ~ontra eles, rápidos a esquivar-se,
res de direção, nos impérios que se impunham ao mundo pela voltando ao ataque: Ao aVIs~rem, porém, os novos inimigos
violência e pela força das armas. (IU~ cheg~vam, ennçaram o pelo e com rugidos longos e re-
Enquanto não chegava o momento da ação, Lécon, tendo petidos fIzeram tremer as árvores e os corações.
ao lado o ajudante, empunhava as habenas, fazendo estalar - As honras do dia são tuas, Lécon. Ria I
o chicote na anca dos cavalos. Ao alcance de tiro, o carro parou, enquanto o rapaz colo-
_ Emparelha-te a mim! gritou-lhe Oanês. cava a seta no arco. Curvando, levemente, o joelho, recuou
Uma valente chicotada fez com que a biga, numa guinada, {) outro pé; escancarou o arco em toda a distenção da corda
se adiantasse. a flecha partiu. '
_ Somente os fidalgos podem medir-se com os leões, Um rugido terrível ecoou, e a leoa enrolou-se, no chão,
,como deves saber. Iremos juntos enfrentá-los, disse-lhe o ge~ a ~order o dardo cravado no fIanco. Ao ver a companheira
neral. fend~, o leão não mais prestou atenção aos cães e avançou,
O trem de guerra enveredou célere pelo vale, em direção fulmmante, a atacar os caçadores. O general, compelindo os
à serra. Passaram os incursionistas pelos rebanhos de Simas cavalos recalcitrantes, adiantou-se com o carro a enfrentar a
e lobrigaram Samara, sentada à sombra de um .carvalho, en- fera. Esta, em formidando salto caiu em cheio sobre um
quanto o compacto conjunto de ovelhas sê movia a pastar a dos cavalos, mas foi traspassada por um cutilada certeira.
erva verde. , . Chegados os carros da comitiva, recoJheram as peças aba-
_ . Salve a bela pastora! gritou Lécon, estalando o chi- tidas, enquanto os cães eram estumados em outra direção. O
cote, ao defrontá-la. .., general seguiu-os, depois de substituído o cavalo morto na
Pouco adiante, notaram, ao longe, uma manada de equmos garra do leão. Notou, porém, que a acuação estava dividida.
em desabalada carreira, em direção ao centro do oásis. - Agora vais lutar sozinho, Lécon. Boa sorte!
- Os leões! ecoou um grito de alarma. E cada um tomou a sua direção. O rapaz aproximou-se
Os rugidos, aproximando-se, repercutiam na encosta, se- d~. matilha, que atacava. As feras já tinham aos pés algumas
guidos dos latidos dos chacais,. que os acompanhava?:, para VItImas, mas os cães valentes não lhes davam tréguas. :Elas,
participarem da presa. A um sma! do ge~eral a comItIVa fez ao verem aproximar-se o inimigo, assanharam-se rugindo amea~
parada; enquanto o chefe da matilha fazI~ des~er as trelas. çadoramente. Como o raio, precipitaram-se sobre o carro
Os mastins, percebendo o perigo, rosnavam mdeCISOS. cujos cavalos empinaram de pavor. Uma delas cravou os den~
Manadas de burros selvagens e de corças fugiam louca- tes na goela de um dos pobres animais, enquanto a outra
mente. acometia o condutor, abatendo-o. Lécon traspassou-a com a
_ Por Marduc! É uma incursão de leões! Tiveste lança e pôde, a tempo, defender-se; prostrado o segundo ca-
sorte Lécon, a partida vai ser divertida. valo, o leão se voltava contra ele. Uma lançada na costela
Os cães foram largados com grande incitamento. Alguns e outra, repetida logo, fizeram o animal aquietar-se.
hesitavam, choramingando, mas, afinal, partiam na cola dos O rapaz viu-se só, pois que, em um momento, perdera o
mais animosos. amiga e os dois cavalos. Encaminhou-se, a pé, rumo ao ponto
Os homens do séquito ficaram em expectativa e só podiam ond~ deixara a comitiva. Altos gritos lhe chamaram a atenção,
intervirem caso especial, quando atacados pelas fer~s. O ge- e VIU que os leões assaltavam o rebanho e abocanhavam as
neral e Lécon passaram a direção dos carros aos aurIgas e par- ovelhas, conduzindo-as atravessadas. A pastora corria espa-
tiram para o combate. vorida, e ele partiu em sua ajuda.
Os cães, com os latidos característicos, atormentavam o Um leão os viu, de longe, e veio atacá-los.
casal feroz e alguns se aproximavam tanto, que quase eram - Acode-me! implorou Samara.
mordidos. 'Os felinos, manhosamente, simulavam indiferença, - Coloca-te atrás de mim e fica quieta.
CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS
47
Enfrentando a fera, lançou mão da única anna de que
dispunha, a lança. Tomou-a pelo meio e imobilizou-se, braço
~~~:ir~ee o valoroso ges.to q?e, se muito te glorifica pela bra-
alevantado, e em expectativa. Samara estacou, a contemplar, d e mm a amara. a mIm, Imenso desgosto, salvando a vida
'. h Spoupou,
trêmula, o seu defensor imóvel, como uma estátua de pedra.
O leão mirou-o quase indeciso, mas encolhendo-se. atirou-se :- Nenhuma retribuição eu quero, senhor e sinto-me
sobre a presa em formidoloso salto. O rapaz, no momento cladelramente feliz por ter chegado a tempo de'salvá-la R v~-
exato, com um' golpe seco, introduziu-lhe a lança boca a dentro gr~ças a Istar po~ ~er apressado os meus passos e ter-~e ~~d o
e esquivou-se. O. animal, engasgado com o dardo, tocou o a c estrez~ necessana em tão arriscada situação. o
chão e ricocheteou, como se fora de borracha, sobre uma Ja
-h ,lheI agradeceste, minha filha, o ter-te livrado da
mort e ornve? N- .
ramada e caíu, pesadamente, a tremer na ânsia da morte. . ao repares, generoso Jovem o seu natural
acan h amento. '
Já vinham chegando os companheiros, inclusive o gene-
ral, que terminara a sua tarefa. Colocando Lécon no seu . Samara sentia-se embaraçada diante do formoso mancebo
carro, partiram em rumo aD local onde jaziam as vítimas do aI quen: edra devedora da própria vida. Parecia-lhe a ela um'
combate. c eus vm o em seu socorro. A' te ch egar a' sua casa
' ,
chorara
-Foste o herói do dia, Lécon. Abateste quatro leões, cofstantemrnte, abalada pelo transe terrível, mas ag~ra mais
feito que honraria o próprio rei. Vou anunciar-lhe a tua ca ma, as agrimas se lhe haviam secado e Léc A d'
vitória. templar-~he o semblante belíssir~lO e o olh;r trans~~tfr~d~ ~~~;
Sa~ara se refugiara na comitiva e chorava copiosamente. qU~. ~ fItava. Aque.le olhar tmha alguma coisa de estranho
Oanês lhe admirava a beleza e teve uma expressão de déspota: e_ Ivm~, que o fascmava. Tomada ela de intraduzível como-
- No meu harém não há mulher tão bela ... çao, es orçava-se ~or falar e, sem nada dizer, preci itou-se
Ao levarem-na para casa, Simas dispensou aos componen- ~r~scamente aos :pe~ .do seu salvador e, tomando-lhe ~ mão
tes da comitiva uma acolhida à moda oriental, cheia de excla- eIJodU-~ uma e mUltas vezes. Só então pôde articular u~
agra eClmento.
mações, promessas· e louvores. Insistiu por que Oanês acei-
tasse a sua hospitalidade,. para que lhe pudesse demonstrar, - Meu senhor!
assim como a Lécon, a sua gratidão. . 'VI - Levanta-te
._' por favor. N'a d a me d eves, porque o meu
- Minha pobre filha, por que susto passaste! Meu co- J II I o, p.ela oca~Iao de praticar um ato em prol de uma for-
ração dizia que alguma coisa de grave ia acontecer. Fui cul- mosa cnatura, e-me grata recompensa.
pado de deixar-te exposta a tamanho perigo. .. Tenros cordeiros foram sacrificados para aliment d
Como a querer justificar-se, dirigia-se aos presentes. 111ltIva, abarracada próximo à casa d.e S. o a co-
t r d .. Imas, e os espetos
- Jamais ouvira falar numa incursão de leões. Por Osí- rans Ixan .0 bandas mteIras, reviravam-se nos braseiros a a()"u~
ris e Hórus! ,Quem podia esperar tal coisa? Se não fosse ç~r ? apetIte dos soldados. O .!!eneral e Lécon ante . b.
este bravo rapaz, minha filha teria servido de pasto aos fero- tencla h d . ~ , a mSIS-
, o.spe aram-se na própria. casa do senhor da herdade.
zes animais. Que horror! Minha pobre filhinha! . em A cela,. suculenta e, farta, fOI servida por Samara, atenta
Abraçava-a e beijava-a como doido. A propor~lOndoar. aos hospedes a mais solícita hospitalidade
- Eu não sei o que fazer para recompensar-te, ó gene- gora, trapn l11dumentária mais elegante para cumprir .
roso jovem, que não trepidaste em socorrê-la. Tu foste um deveres de bem servir, se transformara aos olhos de L' os
mensageiro divino, mandado pelo céu no justo momento. Ren- em uma f" 'lh' econ
h' 19ura_maravI osa. Pareela-Ihe tratar com velho co-
do graças aos deuses por este favor. A coisa que mais amo ~ ec}n: ento e nao se cansava de olhá-la, tomado de verdadeiro
no mundo é minha filha, continuava ele na sua exaltação, e a~~Imo. Se ela o fitava, tinha sensação de delíquio e mal
eu não suportaria a vida se ela fosse sacrificada de forma ~~~ ~atrlehsponder às perguntas de Simas sobre os pormenores
tão cruel. Dize-me, dize-me, jovem senhor, como poderei re- a a a.
48 CA M I L O C H AVE S SEMÍRAMIS 49

Oanês fez descrição de emocionantes acontecimentos, e a


sua palavra tomava extraordinário calor a~ .focalizar. os lances
- Eu sou natural de Damasco, mas residi grande parte )
da minha vida no Egito. Samara é natural de Mênfis, mas
arrojados de que eram capazes os bravos assmos .. , Slmas, que a mãe dela era síria, como eu.
vivera tantos anos no Egito, jamais' ouvira falar em tamanh.a - Tudo em vós outros me diz que não sois pegureiros
audácia e passou a admirar o valor dos soldados de Chamsl- de ofício.
Adad. - Somos, pela força das circunstâncias, senhor.
_ Nunca havias matado um leão? perguntou Simas a - Por que viestes para aqui?
Lécon. . - Somos refugiados políticos. Não podíamos morar no
_ Foi esta a minha primeira prova, mas, ao vir para Egito para não sucumbirmos à ira do faraó.
aqui, já estava devidamente ins~ruí~o pelo ~e.u 'preceptor de
- Quem sois, então?
arte cinegética. Agora sei que o leao e um InImIgo poderoso,
que eu posso superar com calma e audácia. - Simas, grão-sacerdote de lsis e Osíris.
A palestra se prolongou até alta noite. E contou as suas vicissitudes e perigos, até chegar ao
oásis.
Durante longas horas, o sono esteve ause~te daquele teto.
Simas pensava nos novos rumos que lhe podI.am ~razer estes - Aqui, esperava viver tranqüilo e despercebido.
acontecimentos. Samara pçnsava no. seu heróI; Lecon est~va ~ Eu já havia adivinhado o sacerdote sob as vestes do
fascinado pela linda pastora. Oanês teimava em q?e aquela JO- pastor. Não mai~ permanecereis nesta região inóspita e ireis
vem valia mais que todas as mulheres do seu harem. morar perto de mIm, em Damasco. Lá não poderá atinair~vos
Por mais dois dias continuaram as batidas nas lind,e~ do o ódio do faraó, inimigo da Assíria. Podeis contar ~om a
deserto e· novas vitórias aumentaram a contagem das VItimas proteção minha e do meu soberano.
dos de~temidos caçadores. Livre, a caravana, dos v.eí~ulos, que . Oanês e sua comitiva voltaram para Damasco. Simas
conduziam os abarracamentos, armados na proxImIdade da fICOU em conjeturas sobre o que devia fazer. A noite, chamou
herdade de Simas, podiam eles mover-se, sem, ~bara50' pelas Samara ao compartimento da casa, onde costumava meditar
encostas e pelas dunas, à procura dos ternvels fehnos. À e auscult.ar as determinações secretas dos gênios protetores.
tarde, voltavam ao acampamento. Colocou mcenso no braseiro, e uma espiral de fumo envolveu
Impressionava-se Oanês com a dis~inção d? propriet~rio o recinto semi-escuro do perfume característico;
do estabelecimento pastoril e não podIa acreditar fosse ele - Invoco a ti, maravilhoso Anúbis,filho de Osíris e
u~ simples pastor. A vida confortável que desfrutava, o modo lsis, que presides aos mistérios da morte e das vidas suces-
de trajar, tijdo indica\>'a tratar-se de uma pessoa de relevo sivas. Manda-nos, ó num~ benévolo, mensagem esclarecedora
social. a ~eus s,ervos, entregues às in.certezas do infortúnio. Não per-
.":'- Pelo que observo, não se conteve: ;m dize:, sois.es- mlt~s, ~ consolador dos afhtos, que os teus devotos sejam
trangeirÇ)s. Vossa filha mal articula o S11'1o e traja-se dIf~­ contundidos no· tumulto das paixões.
rentemente das jovens desta terra. Pelos modos me pareceis . . Samara, em atitude extática, olhos alevantados, agitou-se
d~ nacionalidade egípcia..• ItgeIramente a tremer. Depois de longa vênia até ao chão,
Simas compreendeu a impo~cia do. momento. S~ pro- levantou-se transfigurada, e percorreu os quatro cantos da
curasse iludir o hóspede, autorizana suspeI~as, porque nao era sala em mímica cabalística. Proferia !palavras ininteligíveis
possível dissimular um egípcio culto, de fmo tratamento, aos e, com as mãos, despedia vibrações misteriosas. Luz suave
olhos perspicazes de um homem como o governador. Resolveu- l~acara~a o a~biente, -envolvido em doce .bem-estar. A pá-
se pela v~dad~, are;a.tl.do com os risÇOS de Ser mal julgado. lIda crIatura, mmbada de luz, não parecia simples mortal, mas
CAMILO CHAVES
SEMÍRAMIS 51
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uma entidade maravilhosa, vinda de um reino encantado. Ro- Não digo isso, respondeu ela, dissimulando' mas a
dopiava em figurações coreográficas, suspensa à ponta dos pés, Es~nge, de qualquer forma, diz alguma coisa a qu~m quer
e seus braços se amoldavam às ondulações de um ritmo de deCIfrá-la. O olhar dela é severo e sinistro, mas há nele algo
paragens invisíveis. de ternura ...
E Simas ouviu a voz do Alto ... - Ainda bem! Eu ficaria triste se devesse tratá-la como
Vendida a sua propriedade, instalou-se numa vila nas pro- a ~ma sacerdotisa de 1sis. Prefiro vê-la, como a vi da pri-
ximidades de Damasco. O governador encarregou-se de apre- meIra vez, uma modesta pastorinha de ovelhas.. Eu tenho hor-
sentá-lo à sociedade como sacerdote de 1sis e Osíris, pres- ror. às sacerdotisas de Belo... Ademais, eu não gosto do
tigiando-o com a sua amizade. Com isto tornou-se grande EgIto; é um país cheio de mistérios e de sombras onde o
passado está inumado em uma carcomida necrópole.' Acresce
figura naquele meio. que os egípcios são soldados medíocres ...
Não raro, era visto aportar à vila um carro condtiz~~do
- Pensando nisso, valoroso assírio, eu saudei em ti o
o O"eneral para uma visita obsequiosa. Mas o grande frequen-
futuro senhor do mundo... disse ela numa quase ironia.
tador da casa era o jov.em Lécon, calorosamente. acolhido.
Samara vinha recebê·lo .à porta e se entretinham. alegremente . - P~derei, apenas, ser participante de;~a gloriosa con-
a palestrar. Para ele não havia mais cerimônias, tal a inti- qUIsta, pOIS meu povo tem todas as qualidades militares para
tanto.
midade. - Para mim, a força domina, quando aliada à inteligência,
Trajando, agorà, as vestes. da boa sociedade, el~ era obje-
respondeu ela emendando. Não desdenho, porém, o poder da
to de viva admiração pela beleza e modos senhorIs. Desta-
cava-se, nesse meio grosseiro, pela boa educação, porque na- beleza ...
quela figurinha de moça simple.s esta.va~ _ocultas,. sem qu: , .-- Podes estar certa, Samara, de que és uma grande po-
ninguém o' suspeitasse, a sabedorIa e dIst1?çao! ~olhIdas ao ~e lencta. " retrucou ele, num galanteio.
da Esfinge, onde se ministrava a refmadIsslm~ educaçao . - M?s. a minha. ambição é muito limitada, porque obje-
egípcia. Não admira, pois, que, no meio gro~selro daquele tiva uma Ul11ca conqUIsta, respondeu ela, enigmática.
mundo árabe de Damasco, se apresentasse dommadora a sua - Quem o feliz mortal que há de render-se a tão pode-
personalidade, causando despeito. e inveja.. Lécon. sentia toda rosa conquistadora?
a influência deste encanto e se deIxava atraIr pela lmda pas,tora, Ela silenciou, num trejeito, a rir.
como a chamava. Simas olhavi esta afeição com agrado mas uma secreta
intuição o advertik de que o general també~ aspirava ao amor
_ Salve, futuro senhor do mundo! dizia ela ao receber
de. sua filh~. Conjeturava s~bre os perigos desta situação.
ruidosamente o jovem assírio. Lecon era Jovem, bravo, cheiO de futuro e consentâneo na
_ Os teus augúrios se realizem, bela' pastora do deserto idade, com sua filha, mas Oanês era poderoso e cheio de
de Guizé! glória no império assírio, apesar de muito mais idoso. Estava
_ Em Guizé não há pastores, respondeu ela. O que há certo de que Samara propendia para o seu salvador e isto o
é muita sabedoria, sussurrada pela brisa do deserto. A Es- inquietava, na sua velha experiência de palaciano 'e satélite
finge é muda na aparência, mas segreda coisas misteriosas, que do trono. .
só os iniciados podem entender. Certo dia, apresentou-se Lécon na vila. Embora entu-
si~sta do movimento e da aventura, mostrava-se pesaroso por
Tu entendias a linguagem da Esfinge? deixar Damasco. O governador o designara como emissário
Como não! respondeu ela frivolamente. de' uma mensagem a Nínive, para ser entregue ao rei. Nínive
era uma grande capital, e muito o lisonjeava a perspectiva de
És uma iniCiada?
CAMILO CHAVÉS
SEMÍRAM,IS 53
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ser recebido pelo onipotente Chamsi-Adad, mas seu coração Esta, consultada, confessou ao pai que amava a Lécon e
não queria ligar-se a Oanês, a despeito da riqueza e poderio
ficava em Damasco ... deste. .
Samara ouviu, silenciosa, a notícia que o mancebo lhe
Afligiu-se o pai com a situação e viu os riscos decorren-
transmitia. Com uma pequena vara fazia figuras na areia do
tes da obstinação da filha. O potentado assírio protegia-o,
jardim, como se estivesse distraída, a pensar.
mas, ~es~nganado, havia de desinteressar-se por eles, se não
_ Que sinal é esse? Fazes um encantamento?
os opnmlsse com o seu despotismo. Teria que refugiar-se em
_ Sim, rogo a Derceto, minha mãe, que felicite os p~­
outra parte para evitar complicações.
sos do bravo guerreiro e o traga de volta para nossa alegna.
_ Uma pomba é a figuração deste teu voto? Suplicou o sacerdote à filha que assentisse nas suas ra-
_ Sim, a pomba é a ave voadora por excelência. Com zões. J; l?rincípio, ela recebeu hostilmente qualquer hipótese
uma mensagem ao colo, atira-se ao espaço para longínquos da. renunCIa ao seu amor; mas, diarrte das considerações do
paI, aterrado. c?m o provável rompimento com o general no
itinerários, mas volta ao pombal de onde partiu. É um sím-
caso ~e, l?erslsür a fIlha em sua recusa, acabou por aceitar
bolo usado na minha terra, o sacnfIclO. Na fortaleza adquirida como iniciada, encontrou
_ Por que não pedes a tua mãe, se tão poderosa é, que
a vontade necessária para superar a prova.
me detenha aqui?
_ Porque és jóvem, Lécon, e precisas, pelo trabalho e - Algum dia hei de ver os homens prostrados a meus
merecimento; abrir caminho ao teu futuro. pés ; então farei o que me aprouver!
_ És cheia de sabedoria e nohreza, Samara, mas eu pre- Fez-se o casamento com extraordinária pompa, e na socie-
feria ficar aqui. dade damascena surgiu uma autêntica soberana. A notícia
_ Eu gostaria, igualmente, que não partisses, mas convém ecoou na corte de Nínive e apunhalou o coração de Lécon.
que vás. . Desespe.rado, .o rapaz, passadas as primeiras lamentações,
_ Sabes que a viagem é demorada? pedIU ao reI lhe desse outra comissão. Chamsi-Adad o con-
_ Sim. Aguardarei com ansiedade a tua volta. servou na sua guarda pessoal. .
_ É verdade o que me dizes? Amas-me, então? Poucos meses depois destes acontecimentos anunciou-se
_ Sim, disse ela, enleada. na corte de Nínive a chegada de Oanês e sua eSD~sa. Chamsi-
:...- Como sou feliz! Eu te amo, divina Samara, desde Adad, .rei dos reis, quis recebê-los solenemente ;m seu palácio,
o dia em que te vi, pastorinha, ao pé do rebanho. A minha como Justa ho:nenagem a. um dos seus mais bravos generais.
saudação festiva foi de alegria por ter encontrado o meu amor. A,o , s~u conheCImento haVIa chegado notícia da beleza extraor-
Parto no cumprimento do dever, com o coração exultante, e dm~n~ da mulher do general, e um secreto pensamento de
criarei asas para voltar ao pé de ti. • . cunosldade fez-lhe conceber a idéia de convidar para a festa
_ Eu rogarei para que não tardes e para que os gemos
todos os grandes do reino e suas mulheres. Ordenou ao mor-
do deserto te acompanhem propícios. domo que preparasse um grande banquete, em que se exibisse
Um beijo ardente selou o adeus do jovem par, que se pro- toda a magnificência do seu poder.
metia para sempre. . . Como era. de esperar, o acontecimento alvoroçou o mundo
Livre do concorrente, Oanês tratou de conquistar o amor
SOCIal e, no d.la ansiosam~nte esperado, a guarda do palácio,
de Samara. Freqüentava assiduamente a vila e liberalizava
em grande um forme, se dIspunha a prestar as honras devidas
mimos e gentilezas a Simas e à filha. Logo à partida de
ao famoso guerreiro e aos demais convidados.
Lécon, dissolveu o seu harém, mandando vender as mulheres
no mercado. Tornou-se galanteador e folgazão e rejuvenesceu O gener~l Oanês passou, garbosamente, em frente à tropa.
no aspecto. Certo dia,. declarou a Simas os seus projetos e A seu lado vmha, deslumbrante de gala e beleza, a sua jovem
~sposa.
pediu-lhe a mão de Samara.
S4 CA!lIILO CHAVES

Defrontando o esquadrão, Samara reconheceu, imediata-


mente,a.figura b2Uapa e imóvel do bravo oficial e lembrou-se
,
do instante em que o jovem caçador, parado como uma esta-
tua. apontava à goela do leão a lança enristada. Sentiu no
coração uma dor lancinante, e aquele dia, que lhe parecia CAPíTULO SEGUNDO
fadado a um grande triunfo, passou-o perplexa.
A festa deu que falar. Só se comentava a beleza de Á PRAÇA CONQUISTADA
Samara. O rei não se conteve e gracejou entre amigos:
_ Ora, o meu bravo Oanês! É muito avançado em anos
para defender uma cidadela tão fortemente assediada ...
o casamento deixou Samara em situação equívoca. A
vida de fausto, que lhe proporcionava o marido, poderos,) e
afortunado, não lhe satisfazia os naturais pendores de espírito,
inteligência e ambição. A sua juventude estuante e idealista
não se coadunava com as desilusões e ceticismo de um velho
de sessenta anos, que ensaiava encerrar a carreira.
Pouco lhe interessava, a ela, o acervo de glórias do
passado' do general, quando no seu coração, exultante de vida,
dormitavam ânsias de louros por ela mesma conquistados e
saboreados. Além do mais, Oanês não lhe correspondia aos
estos do temperamento enérgico e ambicioso, visto que já tinha
realizado a sua vida, sem que ela compartilhasse as emoções do
triunfo. .
No' trafo social a que se via obrigada, para atender às
solicitações de uma semicorte como a de Damasco, o seu senso
agudíssimo de observação lhe ensejava o estudo dos homens.
Saíra com quinze anos do colégio para fugir e esconder-se na
condição de simples pastora e deséonhecia o aspecto real do
mundo, mas, agora, na desilusão encontrada, olhava a vida
como escola de experiência.
Lembrava-se, com tristeza, de seu jovem namorado, belo
e bravo, ao qual se votara no sonho de seu único amor. Como
se agigantava a figura dele nos seus devaneios! Como seria
feliz ao lado dele! Acusava-se, a si mesma, da traição come-
tida; devia ter resistido aos rogos do pai pelo dever de tudo
afrontar a fim de conquistar o seu amor. Preocupava-se em
secreta interrogação de saber como Lécon teria recebido a
notícia de seu casamento. Recordar-se-ia dela, apesar de per-
tencer a outro homem? Sentia ciúmes dele, que julgava per-
tencer-lhe, a despeito de tudo, e temia não suportar que outra
lho arrebatasse. Recordava-se da festa que o rei lhes ofere-
SE:MfRA:MIS 57
56 C A :M I'L O C li A V E S
Adad, em pessoa, vai comandar a expedição. Tens que acom-
cera, ao marido' e a ela, quando o vira firme e estático como panhar teu marido nessa empresa.
se esperasse o leão para o golpe salvador. Solitária, na sua - Vais comigo, meu pai?
câmara, vertia lágrimas que lhe queimavam as faces. Contudo, - Sim, o general se empenha por que o acompanhe.
resignava-se à compreensão do dever de respeitar o marido, Pouco posso valer-lhe em meio a que não estou acostumado.
aceito de sua vontade, na sua fraqueza. - Mas o teu amparo, meu pai,é vital para mim, pelas
, Embevecia-se Oanês com a jovem esposa e, intimamente, mesmas razões que alegas. Nós três, tu, eu e Sinefru, for-
se. gloriava de possuir a mais bela mul1J.er do mundo. Sabia- maremos um oásis do Egito no deserto da Assíria.
se universalmente invejádo e percebera que opr6prio rei se Os dias seguintes foram empregados em preparativos de
curvara vencido, diante de Samara. Mas, uma voz sarcás- viagem. Oanês se adiantara para ocupar o seu posto no exér-
tica lhe segredava as deficiências de velho, em comparação com cito, segundo a ordem do rei, deixando um preposto no go-
a criatura magnífica de dotes naturais que era sua mulher. verno da província. Simas ficara encarregado de levar-lhe
Sentia ciúmes; tinha medo de que lhe arrebatassem o seu Samara.
tesouro. Tinha medo do rei e se prometia não voltar a Nínive. A comitiva partiu, afrontando o deserto, e, mais uma vez,
Vigiava a esposa. Quis impor-lhe criadagemda sua es- Samara montou um 'camelo, com seu branco albornoz, a cami-
colha, mas ela exigiu que a servisse pessoalmente a sua boa nho do seu destino.
Sinefru, que a criara. Esta, valendo-se dos direitos, quase ma- Encontrou Nínive em ebulição militar com o apresto dos
ternais, s?bre ela, consolava-a nos seus dias de íritimo des- exércitos para a guerra. A juventude e todos os homens vá-
gosto. ' lidos tinham sido chamados às armas, ressentindo-se o trabalho
Não te amofines, menina, que a vida é assim mesmo, e o comércio da falta de braços. Os campos militares se mo-
um eterno desengano. Não penses que és a única a receber vimentavam com as tropas em manobras. As trompas faziam
patadas do destino. grande alarido, e as ruas se agitavam à passagem das falanges
A ama tratava-a, às vezes, asperamente, para que ela não em marcha. Camelos, em cáfilas, chegavam com vitualhas,
desse expansão. à tristeza, mas ela mesma não podia sopitar tecidos para barracas e outros abastecimentos. Grandes cava-
as lágrimas, ao ouvir as queixas de sua filha de criação. ' lhadas alarmavam os moradores à sua passagem, e manadas de
- A mulher, dizia, é uma criatura talhada para a escra- vacuns, carneiros e cabras encaminhavam-se para os pontos
vidão. É sorte de todas elas sujeitarem-se à vontade absoluta de concentração. As oficinas trabalhavam, dia e noite, no
do senhor. Tu, Samara, tens um senhor que te pode mimar fabrico de armas e apetrechos bélicos.
e satisfazer nos mais requintados caprichos. És verdadeira Oanês, a'bsorvido pelas atividades do comando, mal lhe
rainha na corte de Damasco ; a ,tua vontade é soberana, e sobrou tempo para receber a esposa.
todos se prostram a teus pés. Que mais queres? O rei, ao saber da chegada de Samara, mandou-lhe flores
_ Contudo, não sou feliz. Eu daria, de bom grado, a e um 'belo cavalo branco.
minha posição, a minha fortuna, para' viver humilde ao lado Oanês foi nomeado tártan, isto é, generalíssimo do exér-
dele. Não me posso esquecer, Sinefru! cito expedicionário, o que lhe aumentou os deveres e respon-
A entrada 'de Simas pôs fim a este diálogo. sabilidades.
- Sabes, minha filha, que acabo de, saber grandes novi- O rei Chamsi-Adad queria levar a guerra à própria Bactria-
dades de teu marido? na, país longínquo, situado na bacia do rio Iaxartes, tribu-
_ Há muitas horas não o vejo, meu pai. Ignoro, por- tário do lago de Aral, contravertente do rio Indo. Era uma
tanto, do que se trata. , vasta região acidentada, na cordilheira de ligação do Cáucaso
_ Acaba de chegar um mensageiro do rei 'com ordem a ao Himalaia, aquém da Sogdiana. Bactres, a capital, era uma
Oanês para assumir o comando de um dos exércitos que vão potentíssima fortaleza, reduto de um povo aguerrido, da raça
combater a Bactriana. A guerra foi declarada, e Chamsi- ~lriana.
58 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS S9

Chamsi-Adad, mediante consulta ao respectivo governo, Samara tinha dezessete anos, mas a juventude não lhe
determinou a capital do reino de Arioi como ponto de con: desmerecia a compostura. Os cabelos negros lhe envolviam
centração dos exércitos. Oanês, como comandante chefe, fOI o rosto claro e ovalado; os olhos grandes, negros e rasgados,
soltando, às miríades, as forças de invasão sob o comando de tornavam-se, por vezes, severos a um vinco entre os super-
famosos miriarcas. Primeiramente, a cavalaria; em seguida, a cílios, se alguém a contrariava, mas, à ação dos sentimentos
infantaria, os> arqueiros, os carros de guerra; cada grupo com ge~tis, a sua fisionomia se abria às expansões de uma alegria
os respectivos abastecimentos. catIvante. Nela, tudo era encanto e harmonia, deixando sus-
Samara partiu na comitiva real, juntamente co~ as mu- penso e enlevado quem selhe aproximasse. Já estava na posse
lheres de outros generais. Adestrada por um cavaleIro medo, plena de sua consciência de mulher, servida por um espírito e
pôde montar o corcel que o rei lhe oferecera. intuição tais, que a tornavam dominadora e cortejada. Nas
Um dos escravos 'de Simas, conversando com um escu- horas de bivaque, em marcha, ou em reuniões na tenda real.
deiro olwira a exclamação dl:ste à passagem da amazona. quando acampados, deleitava-se o rei em ouvir-lhe os conceito~'
.:.- Por Assur! Que bela criatura! É, certamente, filha. sempre originais e justos. Acompanhando o marido, assistia
aos conselhos dos generais e, consultada, discorria com aeerto
de um deus. . . ;.
Zinar, industriado para ocultar a verdadeIra ~o?dlçao de e indicava soluções. Todos se admiravam de que em tão jovem
5imas, agora em contacto com os magos da Assma, pr~su­ criatura se acumulassem tão singulares qualidades de beleza,
midos e ciosos de suas prerrogativas, e, sobretudo, deseJoso engenho e domínio.
de enaltecer a sua senhora, respondeu-lhe: Longa foi a viagem em demanda da Bactriana. Eeita a
._ Não sabes que ela é filha de' uma deusa? junção dos exércitos, Chamsi-Adad assumiu o comando e en-
_ É verdade? Acho que, pelo garbo e beleza, não pode trou pelo país a dentro.
ser simples mortal. . Em vários recontros o inimigo .foi batido "e obrigado a
_ Meu senhor não quer que se lhe revele a ongem
retroceder, encerrando-se, por fim, na praça forte de Bactres.
divina. Ele era dono de grandes rebanhos na Síria e, um
belo dia, encontrou, entre os rochedos da montanha, ~m c~sto Cercada a capital, começaram os assaltos aos muros altís-
contendo uma criança recém-nascida,' ricamente ataVIada. À simos, de onde os defensores combatiam com vantagem. Ve-
sua chegada, dispersou-se um bando de pombas q~e. a guar- rificada a potência da fortaleza, o rei assírio arregimentou
davam. Uma mensagem acompanhava o cesto e dIZIa tratar- artífices especializados, os quais, dispondo de abundantes ma-,
se de uma filha da deusa Derceto de Ascalon e recomen?ava deiras das encostas das montanhas, construíram torres levadas
que a criassem com carinho, até que ela revelasse a sua orIgem em rodas até às muralhas e postas. em ação, para os combates
divina. corpo a corpo. .
_ Isso é verdade? perguntou o escudeiro, um tanto Passado algum tempo, Bactres, apesar de completamente
incrédulo. , . , . apertada· pelo assédio, não dava ,sinal de rendição próxima, ta!
_ Juro que é verdade, pela glona ~a propna, ~erceto, o denodo dos defensores. .
a deusa da minha devoção. Mas peço-te, o bravo assmo, nada
Entretanto, as notícias da. Assíria eram inquietantes, quan-
reveles do que te digo. " . I 16 à lealdade dos reinos vassalos. Chamsi~Adad,impacientado,
_ Bem se vê que acertei em chama-la dlvma. Por Istar.
forçava o desfecho da luta. Os assaltos se repetiam com fúria
Só uma deusa pode ter esse donaire. . crescente, mas a defesa não desfalecia.
O escudeiro, como bom palrador, contou a nOVIdade aos
colegas, e estes, por sua vez, a transmitiram a o?tros, e não - Já nem sei quando isto vai acabar, dizia o rei no seu
tardou a soldadesca comentava o fato de estar, alI, entre eles, desespero. Imaginem se estes montanheses me prendem aqui
uma a~têntica deusa, penhor de vitória e felicidade. durante cinco ou dez anos!
CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 61

Vários estratagemas foram propostos e debatidos, mas pos- - É uma razão para dar resultado, concluiu o rei.
tos à margem, por inexeqüíveis ou incertos quanto ao resul- - O plano tem que ser revelado a todos os quiliarcas,
tado. hectarcas, dodecarcas e pentarcas, para que possam representar
- Majestade, sou capaz de indicar-vos um plano que, bem o seu papel. Nisto consiste o êxito da manobra ...
executado, vos dará a vitória, interveio Samara. Marcou-se reunião para os chefes de falanges, e estes,
- Ora bem! Vamos ouvir a deusa da guerra. Fala, por inteirados do assunto, puseram-se a calcular. Propuseram,
Assur! exclamou o rei complacente, a rir. inicialmente, que se afastassem os oficiais indiscretos e pouco
- Di-Io-ei .sómente a vossa Majestade e ao tártan, meu seguros, .dando-se-Ihes outr?-s incumbências.
marido. .• Foram, ainda, consultados os chefes de hectarquias.
- Se tão importante é o assunto, nã~ se perca a ?CaSlaO
de ouvir-te. Retirai-vos, senhores generaIs! Istar vaI falar Os dias iam passando sem que o rei se decidisse, temendo
ao rei da Assíria. o fracasso, mas os negócios internos da Assíria se agravavam,
- Eu conheço, ó grande rei, as dificuld~des que asso- impondo a terminação da guerra.
berbam a vossa fortuna. Já se prolonga demasIado esta guer- - Devo declarar-vos, ·senhores generais, que aceito o pla-
ra, sem perspectiva de imediato desfecho. Em outras~ar!es no de Samara, e podeis preparar-lhe a execução.
do vosso império irrompem gestos de r:volta, por. dem,als m- Por algumas semanas, prolongaram-se as providências.
comodativos. Urge, portanto, uma soluça0. O assalto as mu- Um dia,estourou a notícia de que o exército de Chamsi-
ralhas se apresenta ineficaz, e já muitos bons soldados se per- Adad estava dividido, com a revolta da infantaria e dos ar-
deram nestas 'batalhas. A menos q~e, o. assédio demor~ o queiros. A novidade penetrou, misteriosamente, na praça, pro-
tempo necessário para quebrar a reslste.ncl~ pela fome,. so o vocando comentários e reanimando os sitiados. Tudo pareceu'
estratagema pode dar resultado. No prImeIrO ~so, quaIS se- confirmar-se, quando os sitiantes se afastaram, levantando o
rão os recursos do exército sitiado? Serão suftcIentes, talvez, cerco. As muralhas da cidade se povoaram de curiosos, to-
para cinco ou dez anos. Isto não nos convém, por ?er!o. mados de ruidosa alegria.
Proponho, pois, o seguinte: simular-se uma revolta no exercIto
sitiante, e, na batalha que se ferir ao pé dos mu~os, o gru~o
Os comandantes discutiam ° modo de se aproveitar da
situação, sugerindo alguns que se fizesse logo uma sortida
que ficar ao lado da praça irá retrocedend? ,ate chegar :;5
portas. Estas, a pedido, se abrirão para abrIga-los e ... nao para sondar. Nisto, correu a notícia de que o exército assírio
mais se fecharão. combatia à vista, e a população correu a ver a batalha.
- Por Assurl Isto é genial. Vamos estudar o assunto. De fato, a luta era acesa; a infantaria cobrindo os arquei-
Que dizes, tártan? , . ros, que disparavam setas por elevação, vinha recuando em
- Seria possível com um exerCIto absolutamente fiel e rumo à cidade, acossada pela cavalaria e carros de guerra.
instruído. A população, do alto, vibrava de entusiasmo a incitar os re-
- Poderei contar com a fidelidade do meu para repre- voltosos. Em determinado momento, adiantou-se um parla-
sentar esta comédia? • mentário, como a propor a rendição dos vencidos, enquanto
- O exército é fiel e está impaciente por termmar a os que estavam mais próximos às muralhas gritavam pedindo
luta. Necessário é prepará-lo para a manobra. acolhida. Em grande rebuliço, a multidão pedia que se abris-
- Sobretudo, muito sigilo, lembrou Samara. Que não sem as portas para abrigá-los. Surgiram vozes prudentes, que
haja traidores. . . . d. I aconselhavam cautela, pois o inimigo era insidioso. Fez-'se
Foram convocados os generais, e o reI os mtelrou .0 pano. grande comício,em que oradores inflamados concitavam o
- Este é um recurso jamais empregado e que nao ocor- rei a receber os revoltosos. Eram eles aliados naturais, can-
reu a quem quer que fosse, considerou um dos presentes. sados do jugo assírio, e viriam reforçar os hactrianos. Assim,
SEMÍRAMIS
62 CAMILO CHAVES

a vitória seria completa, porque, além da ajuda, denun~iar~am - Mata-me, por misericórdia! gritou o monarca prisio-
as dificuldades e fraquezas do inimigo. Todos se atIranam neiro, num paroxismo de dor.
à perseguição dos retirantes, e não escaparia um só inimigo, - Sim, hei de. matar-te, mas de modo jamais visto, até
. nem mesmo o feroz Chamsi-Adad, opressor dos povos. saciar todo o meu rancor.
_ Eu, por mim, deixarei que eles se trucidem, disse o E, voltando-se para a escolta, ordenou.
rei aos manifestantes. Temo os assírios, mesmo trazendo-nos Levai-o em custódia, até o dia da vingança.
socorro. Permiti, ó grande e poderoso rei, que vos peça uma
Mas a conclamação era geral. graça!
- Abre ,as portas! Abre! - Tudo se fará segundo a tua vontade, ó deusa da vitó-
_ Já que o quereis, sejam elas abertas, ordenou o rei na. E:n?:nho nisto a minha palavra de rei. Vou revelar-
Númi. vos, ofICIaIS e soldados: a vencedora desta jornada foi esta
Duas portas se escancararam em frente às coortes, que mulher, que traz no sangue e no coração a prudência de uma
entraram por elas em marcha acelerada. Seguiu-as a cava- d~~s~. Devemos a Samara o plano que nos proporcionou a
laria. vltona.
_ Cerrem! Cerrem as portas! gritavam de dentro. Samara, acabrunhada, esperava.
Era tarde. Ninguém pôde conter a avalanche que se pre~, . Grande sussurro percorreu a assistência. O rei da Bac-
cipitava. E começou a matança. tnana olhou-a com os olhos em sangue.
. . Chamsi-Adad, de um outeiro, mostrava a Samara o de- - ~al.a, pois!. Estou atento à tua vontade. Queres tu
sen~olar dos acontecimentos. Aprisionado o rei Númi da ~1~s~a llldlCar o genero de morte que mais convém ao nosso
Bactriana, foi conduzido à presença do vencedor, que o rece- inImIgo? Queres tu mesma vibrar-lhe o golpe mortal?
beucom a costumada arrogância dos reis da Assiria. Fala!
_ Estás finalmente em minha mão, ó tigre feroz da . Onipotente senhor do mundo, eu, vossa humilde vas-
Bactria~a'! Hei de saciar' em ti todo o meu ódio, toda a minha s~la, .slllto-me o~gulho.sa da vossa glória. Com est~friunfo
vingança,. para que ninguém, jamais, ouse levantar a cabeça d:lat~ls o. vos:o lmpéno até às lindes da índia, além da cor-
contra mim. dIlheIra, Jamais transposta por um rei do ocidente. Eu qui-
_ Venceste pela traição, tirano, opressor das nações! ser~ ver-vos, neste momento, coroado por uma realeza muito
_ A Assíria acima de tudo! Agora, a meus pés, não maIS fulgente que as jóias incrustadas na vossa tiara real. Eu
mais arrogância terás. c?mpreendo a grandeza de um rei, quando ela é ilustrada pela
Jamais me dobrarei ao teu conspecto, cão abjeto! Sa- vlr~ude soberan~ da magnanimidade. O ódióe a vingança são
cia em mim o teu ódio, como quiseres, que não temo. . atnbutos dos SImples mortais, mas a misericórdia é privativa
_ Ouve o rumor da carnificina! disse Chamsi-Adad, com dos deuses e dos reis.
escárnio. _ Chamsi-~d~d estava confuso e decepcionado, tal a impres.
Perturbou-se Númi ao ouvir o clamor que se levantava sao que expnmIa seu olhar indagador e incerto.
na cidade, e quebrou-se-Ihe a resistência para uma súplica. . - .Q?e:es, porventura, pedir-me graça para este impe-
_ Poupa o meu povo, vítima da sua generosidade no aco- mtente 1lllmlgo?
lher os traidores. - Sim !'Não somente para este valoroso rei vencido
_ Para os inimiaos
b da Assíria não há demência.• _ Serão mas para todo o seu povo, respondeu Samara, com firmeza:
passados a espada todos os varões, e as mulheres segUlrao para Ela la~çara l}ma cartada suprema, que podia perdê-Ia, mas
o meu reino como escravas. falava mOVIda por uma força superior.
64 CAMILO CHAVES
SEMfRAMIS 65
- Um rei da Assíria jamais teve misericórdia para com
Tende dó de mim! Eu concorrí para a desgraça deste
o inimigo! Meu lema é ser desapiedado, destruir, pela cruel- rei' e do seu povo.
dade, todas as resistências para escarmento dos meus inimigos.
- Mas glorificaste a Assíria e o meu nome.
- Ouvi-me, ó grande rei!
- Se dignificada me julgais pela minha ação, sentir-me-ei
Ela comp~eendeu o. risco que corria, afrcl11tando o mons- compensada se lhes perdoardes.
tro, mas 'não podia mais retroceder. Deixou, pois, fluirem
os conceitos que lhe ocorriam. Todos os presentes estavam A ,assist~ncia,. nesse momento, estava trepidante por ver
suspensos, e o próprio rei da Bactriana a contemplava admi- o espetaculo maudIto de ser o rei enfrentado por uma mulher.
rado. . Levantada, ela, como a procurar apoio, volveu os olhos
- Podeis construir uma glória muito maior pela gene- para aqueles que assistiam a este quadro, e fixou uns olhos
rosidade e grandeza de coração. Com estas virtudes, podeis de. fogo, que a devoravam. Era Lécon. Escapou-lhe um
edificar, no reconhecimerito dos povos, um reinado m\1Íto mais grIto ~ouco,e ela caiu sem sentidos.
glorificado. Este poder, que vos enaltece, vos foi conferido Esta?eleceu-se confusão, e muitos correram a acudi-la,
pelos deuses imortais, não para destruir os povos, mas para ~TIas, ~ reI levantou-a no.s _braços.. Simas, que assistia à cena,
engrandecê-los, pela vossa ação próvida, através das conquistas lt;Upavldo, entre a multtdao,. abrIU caminho para socorrer a
do progresso moral e humano. Que lucrareis, ó grande rei, fIlha. Com um t~ue m~gnétieo, fê-la recuperar os sentidos.
varrendo este povo herqico da face da terra? De certo modo Coragem, m.mha fIlha! segredou-lhe em língua egípcia.
interrompeis as suas vicissitudes e sofrimentos por meio de A deusa fala por tI.
uma sentença impiedosa, tirando-lhes a vida. Assim, eles mor- Chamsi-Adad estava viSivelmente comovido e verificada
rerão certos de que sois implacável. Entretanto, é preciso a melhora de Samara, dirigiu-se ao prisioneiro. '
que eles vejam .e testifiquem que sois realmente grande e - Rei da Bactriana! Esta jovem me deu a vitória e
magnânimo. Como poderão testificar se os aniquilais? Atra- ag?ra, .como prêmio ao seu extraordinário engenho, te resti~
vés da graça e do perdão podereis conquistar uma grande tu! a hbe~dad,e .. Volta ao teu povo e seja amigo da Assíria.
fidelidade. Se os matais a todos, quem virá ocupar estas O reI NumI chorava de comoção.
terras despovoadas, destinadas a produzir alimentos e riquezas? . - Gran~e :ei, não somente serei amigo teu, mas vassalo
Se importa colocar alguém no lugar deles, por que não os fIel. Tens dl:eI~o de vida e morte sobre o vencido, mas o
conservais onde estão? teu. ~t? magnamm?, concedendo-me a liberdade, me prende
- Argumentas dG maneira diferente. Nunca 171 alguém d~f!mtIvamente a tI pela força do reconhecimento. Manda re-
falar assim, disse Chamsi-Adad. dI~Ir os termos da ,minha su~missão e aliança, de cujo tratado
- Perdoai-me, senhor, se raciocino pelo coração, como seja portador o tartan, a fIm de que eu o assine. Como
convém .a uma mulher. Este rei é um bravo soldado, digno ?,rande mercê, peço-te que mandes junto esta formosíssima
de viver, porque é capaz de !fomar a sua palavra de fidelidade, Jovem, para que a mostre ao meu povo como nossa salvadora.
em retribuição à generosidade do vencedor. Pensai, ó grande ~odos •e,:;tavan; contentes com o desfecho da guerra, que
rei, na chacina de inocentes que vai manchar o vosso nome e deu a Assma maIS do que uma conquista, um fiel vassalo.
a história da Assíria. Pel~ _vez primeira,. C?amsi-Adad sentiu que, nas lutas e com-
Samara estava transfigurada, e, prostrando-se aos pés do petlçoes, a magnammldade é o melhor prêmio da vitória. .
rei, continuou. Samara era objeto da admiração geral, e todos compre-
- Senhor, tende piedade desta vossa humilde serva! enderam que se levantava na Assíria uma verdadeira rainha
Chocou-se o rei ao inesperado gestq, tentando levantá-la. pelo prestígio da beleza e do coração. '
Levanta-te! Por que piedade, se me pareces ventu- - É, na verdade, filha da deusa, comentavam.
rOSa e digna de inveja? - Não pode ser senão a própria Istar encarnada, afir~
mavam.
SEMÍRAMIS 67
C A MI L O CH AVE S
66
Os soluços embargaram a voz do soberano, que finalizou
_ O rei re~deu-se à sua vontade... em lágrimas.
_ Como é bela! exclamavam. - Valoroso rei e capitão! respondeu-lhe o tártan. Eu vos
_ Como é generosa! agradeço as comoventes palavras que acabais de proferir, e,
- É Istar! É Istar! agora, que considero depostas as iras dos nossos corações, vejo
E todo mundo estava convencido de que a deusa se achava quão grande foi a nossa conquista, não por vos levar cativos e
na terra. .. humilhados, mas por tornarmos à pátria com a preia magnífi-
Dois dias após, Oanês, seguido de brilhante comitIva, apre- ca da vossa amizade. Nunca se viu guerra tão feliz e tão bem
sentou-se com a mulher às portas .d~ B~ctres. . concluída! Por este fato apresento-vos as saudações muito
O rei Númi, pouco ~ntes prI:lOnelro, dedIcou-lhes sun- sinceras do meu soberano.
tuosas homenagens. Na cidade, so se falava em Samara, a Grandes folguedos populares foram improvisados nas pra-
deusa que baixara à terra. À sua passagem, era apontada ças públicas, e Samara era obrigada a atender às solicitações do
com entusiasmo, e momento houve ~m que ba;:edor'es, armados, povo que, sem aparato ou cerimônias, manifestava o seu conten-
abriam caminho na multidão, desejosa de ve-Ia d~ perto, de tamento.
tocá-la, como se fora objeto sagrado. Mães ~xta~Iadas apre- Assinado o tratado de aliança com o rei da Bactriana, Oa-
sentavam-lhe os filhinhos enfermos, num apelo as virtudes cura- nês e sua comitiva voltaram ao acampamento.
tivas da deusa. O retorno a Nínive foi uma excursão triunfal. Samara
_ A nossa salvadora! apontavam. era objeto da curiosidade pública e, por toda parte se falava da
-Ei-Ia, a' deusa da beleza! Como é linda! descida de Istar à terra.
_ Istar! Istar! gritava o povo crédulo. . Chamsi-Adad não se havia casado ainda, embora fósse
Grande multidão acompanhava o cortejo ao palá~l~ real. dono de magnífico harém, povoado de numerosas concubinas.
O rei Númi, sua esposa e as princesas receberam os :I~ltantes Era jovem, de estatura elevada, peludo, como autêntico semita.
à porta conduzind,o-ôs ao salão de fest~s, repleto de U;tlttares ~ A cabeleira frisada e longa a barba, encaracolada àmoda da
damas,:ga: sociedáde. Passado o delírIO das ac1amaçoes, o reI época, imprimiam-lhe olímpico aspecto e podia ser qualificado
de belo. Dava a impressão de atleta pela compleição e gozava
falou~ Eu vos peço perdão, magnífico tártan, p:la pobreza do· fama de ter modos abrutalhados e tirânicos, como homem de
acolhimento. Sinto-me impossibilitad~, ?or efel~o da guerra; acampamento, onde a sua vontade se impunha inflexível. Pou-
de mais digna recepção a que tendes dIreito. QUIsera eu pode co loquaz, a sisudez lhe denunciava apouca flexibilidade mental
receber na minha cidade o vosso poderoso soberano 'para lhe mas não sabia furtar-se ao fascínio da formosa esposa do gene-
tributar as homenagens que merece. Pensando nas mmhas de- ral. Engraçado vê-lo, infantil e obsequioso, a cortejá-Ia com
ficiências não me atrevi a convidá-lo, a fim de não lhe emp~­ a ingenuidade submissa do deus dos exércitos, ao pé da belíssima
nar a gló~ia e majestade. Peço-vos, ó tárta~, que lhe transml- Istar. Ele, que se habituara ao despotismo bestial com as suas
tais este meu pensamento. 'Entretanto, sentImo-n~s 'Cabalm,en concubinas, sentia-se pequeno diante da personalidade forte
te hbnrados com a presença vossa e da vossa mcomp.ar~ve 1 dessa mulher, que sabia valer-se dos magníficos atributos da
consorte. Permiti-me este qualificativo que, espero, saberels JUs- inteligência. Sua corte, privada de uma rainha, era, agora,
tificar na vossa complacência. A vós outro? recebem~s.co~ o animado centro de reuniões, freqüentado pelos palacianos e suas
acatamento que mereceis,. pela vossa categona e pela lmpor~n­ esposas, em obediência ao protocolo, que passou a vigorar. Nas
cia da vossa missão; mas à divina Samara ac~lhem.os com to a.a suas festas suntuosas, a figura de Samara se afirmava soberana,
ternura do nosso reconhecimento. Com a smc~rI~ade das .ml- visto que o rei não lhe ocultava a preferência. Corria, nos
nhas expressões, falo por milhares de n;ã~s, por mumeras. c~an­ comentários e mexericos, que o rei estava apaixonado e que não
cinhas; enfim, falo p<>r milhares de sudüos meus, beneftclados tardaria em fazê-la sua esposa.
e salvos pela bravura do seu coração generoso.
68 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 69

Samara ressentia-se desta situação equívoca diante do - Meu senhor, retrucou o eunuco, causa-me admiração o
marido encÍumado e procurava isolar-se. Oanês, nos seus vosso escrúpulo, a contrastar com o contentamento das jovens
íntimos arrazoados, ansiava para receber uma comissão real e assírias de receberem a preferência real.
pensava até em solicitar a sua volta para a Síria,. a fim de se Simas compreendeu o perigo que ameaçava Samara. A
"afastar da ruína iminente. Não era ele um apaIxonado pela vontade do rei era incontrastável, e, em vão ele procurava li-
mulher habituado como estava a conviver com muitas, segundo vrá-Ia de tão humilhante perspectiva. Inútil seria informar
o cost~me dos potentados. Ao casar, dissolvera o harém, para o general das intenções do soberano, porque seria esmagado ao
restabelecê-lo, depois. Era, no fundo, um velho devasso, e menor gesto de oposição.
Samara sentia-se ofendida na sua dignidade de mulher. Poucos dias após o eneüntro com Eutarcas, este procurou
Ele já percebera as intenções do rei e sentia-se diminu'ído Simas, novamente. Eutarcas era uma figura .preeminente na
no seu pundonor e ·temia que ele lhe tomasse a esposa. corte, pela sua qualidade de confidente do rei. Desta vez, apre-
Simas ouvia os comentários das rodas palacianas e notou o sentou-se como emissário, numa grande reverência.
ronsideráve1 aumento do seu prestígio pessoal; pelas atenções e - Meu senhor, pus meu soberano' a par da nossa palestra
salamaleques dos áulicos. de dias atrás e tive o prazer de verificar um grande engano
_ Como são inextricáveis os caminhos de Deus onipoten- meu, quanto às suas intenções, o que venho, agora, com prazer,
te! Eu, que sonhara para minha filha com o trono do Egito, retificar. Eu não havia apreendido toda a extensão do seu
mediante manobra arriscada, vejo que outra coroa tão brilhante amor por vossa lindíssima filha. Ele ralhou-me por lhe haver
lhe vem ao encontro. Nisso está a vontade de Isis, soberana eu atribuído a intenção de receber a vossa filha no harém. Pos-
do destino das mulheres.. É o'oráculo da Esfinge que se vai so afirmar-vos, meu caro senhor, que os projetos de meu amo
cumprir ..• a respeito da vossa casa, são grandiosos. Ele pensa que a vos-
Nos seus rituais noturnos, sOndava a vontade da deusa e sa formosa filha, a quem adora com o ardor' de um robusto va-
os presságios lhe propiciavam a vitória da filha. ~ resposta de rão, não deve condicionar-se à situação de uma concubina, por-
Dercet(i) era ~pressa: Não te atravesses no destmo de Sam~' quanto é uma criatura de altíssima estirpe espiritual. É filha
m. Ele se entregava ao fatalismo dos que não querem maIs de uma deusa, e ele crê que é a própria Istar, diva da beleza,
raciocinar. da sabedoria' e da guerra. Eu venho pedir-vos perdão, senhor,
Certo dia, Simas foi procurado por Eutarcas, rab-chaqué, pelo meu engano e, ao mesmo tempo, propor-vos a palavra do
isto é, o eunuco chefe do harém real. nosso amo e senhor, que quer tomá-Ia por esposa e fazê-Ia par-
_ Deveis sentir-vos feliz, meu senhor, pela graça alcança- tícipe do trono mais poderoso da terra.
da por vossa divina. filha. O grande rei, serlhor do mundo, Simas julgou-se no dever de considerar a situação pratica-
está apaixonado por da, e não tardará o dia em que a ronvoque mente, já que era inútil contrariar a vontade real.
para sua favorita. Meu senhor só pensa nela, e lhe p~recem - A benevolência do grande rei vem cair como uma bên-
desprezíveis, apesar de belas, as mulheres que lhe enfeItam o ção em minha casa. Terei grande honra em levar à minha fi-
haréfu. Eu, por minha conta, venho prevemr-vos do grande e lha a sua palavra de graça, para que ela exulte na sua glorifi-
auspicioso acontecimento, que está para felicitar a vossa casa. cação. Entretanto, ela está ligada a um homem que desfruta do
Simas sentiu-se revoltado com a proposição do eunuco e beneplácito do nosso rei e senhor. Será de máxima oportuni-
teve ímpeto de agredi-lo. Mas se conteve. . dade estabelecer o modo de ser libertada dos compromissos com
_ Minha filha jamais se conformaria com o papel de co?- ele, em bem da própria segurança dela e da sua liberdade de
cuhina, e eu, que conheço a sua altivez e pundon~r, poSs? aÍlr-. mánifestar-se. .
mar-lhe que ela se mataria, antes de chegar ata0 humllhante - Oh! ... , exclamou Eutarcas. Quem se atreveria a con-
condição. traditar a vontade de Chamsi-Adad, o rei dos ne13?
70 CAMILO CHAVES
SEMfRAMIS 71

- Acredito, prestigioso Eutarcas, que ninguém será capaz


de um ultraje à vontade do rei, mas minha filha é sujeita a um
o diálogo foi interrompido por Simas, que entrava.
- Tenho graves coisas a dizer-te, minha filha.
gesto desatinado de despeito.
- A respeito dos ooatos, que acaba de trans~itir-me Si-
- Já está tudo previsto, respondeu' o eunuco. Oanês .foi nefru?'
cientificado da vontade do rei de desposar a divina Samara, mi- - Não se trata de boatos, mas de fatos autênticos. O rei
nha senhora, de cuja presença deve afastar-se incontinenti. Se de por intermédio de Eutarcas, acaba de fazer-me o pedido da tu~
. aceitar de' bom ânimo a ordem real, ser-Ihe-á designada uma mão. '
comissão honrosa em uma das províncias do império. Do con-
- Nenhum ato me libertou dos vínculos que me prendem
trário,será preso e desterrado.
ao meu marido. Como pode ser isso?
De fato, Oanês, notificado, afastou-se repentinamente, - Não há leis, nem direitos ou deveres em contrário à
deixando um, recado de despedida a Samara, a quem Sinefru, vontade do rei, senhor dos. bens e das vidas dos seus vassalos.
sua velha ama de criação, trazia informada das novidades da O general Oanês já foi notificado para se afastar da côrte e
Corte. a est~ hora viaja para Babilônia, em missão política, segundo
- Estão comentando, dizia ela, a partida inesperada de Oa- me dIsse Eutarcas. Nunca mais voltará.
nês, por ordem do rei, que está apaixonado por ti. - Depende, também, da minha vontade, desligar-me dele.
- Quer dizer que já me separaram de meu marido? per- - Seria a perdição de amoos.
guntou Samara inquieta. - Triste condição a da mulher, presa ao despotismo dos
homens! exclamou Samara.
- Estás pesarosa por isso?
- Mas, há escravas que cingem uma coroa ... , conside-
- Nenhuma afeição particular me prende ao general, como rou Simas. .
já te disse. Prendem-me a ele deveres de esposa, mas nenhum
. - A realeza não é penhor 'de felicidade, retrucou-lhe a
pesar me causa o seu afastamento. Entretanto, esta situação fIlha.
me coloca na posição de repudiada.
- Eu sei. Mas é, às vezes, cumprimento de um destino.
- Afirma-se que o rei quer pedir-te em casamento. Como - É verdade. .. Está predito, concordou ela.
receberias a proposta dele? - Vejo que estás compreendendo ...
- Não lhe tenho afeição, também. Parece um déspota - ?~m, terei que me entregar a esse homem prepotente e
todo-poderoso, diante de quem todos se prosternam. sem espInto.
- Sei... Não te esqueces do oficial, insinuou Sinefru. - Lembra-te da deusa da sabedoria.
- Eu penso que, quando se nos depara o nosso grande - Ouço sempre a sua palavra: Saber-Querer-Ousar-Ca-
amor, não liá fortuna nem grandezas que consigam apagar os lar ...
vestígios dessa afeição. O amor não está sujeito ao dinheiro Símas prol;urou Eutarcas para lhe comunicar a deliberação
ou ao poder: ele existe por si mesmo, a despeito dos infortúnios de Samara de tornar-se esposa de Chamsi-Adad.
e de tudo. Eu creio na dualidade do ser humano, sintetizado - O grande rei, disse-lhe Eutarcas, quer celebrar o acon-
no simbolismo de ísis e Osíris, como princípios feminino e mas- t~cit?ento ~om, ~ pom~a di~a da beleza da noiva e da impor-
culino, que se completam. Quando encontramos o nosso du- tá?CIa do Impeno; FIca, poIS, estabelecido que a nossa futura
plo, não há forças, nem obstáculos ou preconceitos que obstem a ramha, desde já, se coloque sob a solicitude dos dignitários, en-
reunião. Há uniões erradas, é bem cert'Ü, mas há uma atra- carregados do protocolo e das providências que o caso exige.
ção inelutável entre os seres, que, desde as origens se Deve. e~a transferir-se para o palácio do Oriente, onde passará
pertencem e, quando se aproximam, desaparecem inconveniên- a reSIdIr com os seus familiares.
cias e perigos, para a fusão final na unidade. Retirava-se Simas, quando Eutarcas o chamou.
72 CAMILO CHAVES
SEMfRAMIS 73

- Estava olvidando, disse, comunicar-vos um episódio que Chegou, finalmente, o grande acontecimento. Nínive era
nos chegou ao conhecimento e que, de certo modo,. deve intere:- um fervedouro de forasteiros, atraídos pelas notícias das pró-
sar-vos. O nosso bravo general Oanês, em sua vIagem a BabI- ximas festividades. De todos os quadrantes chegavam cara-
lônia, foi assaltado, em caminho, pelos nômades do deserto e tru- vanas, e, pelo curso do Tigre, arribavam à cidade embarcações
cidado barbaramente. Bateu-se, com denodo, até morrer. O repletas de gente para participar dos folguedos. Provindas dos
encarregado da ordem e da vigilância está vivamente preocupa- países vizinhos e amigos, comitivas reais eram recebidas com
do com a falta de garantia aos viajantes. De vez em quando, grande ostentação militar, enquanto outras, de modesta apa-
acontecem fatos semelhantes, que privam a Assíria de seus be~ rência, chegavam com grandes carregamentos de fardos e vo-
neméritos servidores. lumes diversos, sobre a corcova de camelos esfalfados. Gente
de inúmeras raças e idiomas davam à cidade aspecto bizarro,
Uma grande festa, em palácio, proporcionou ao rei ocasião
pela variedade de costumes e maneira de comerciar. O povo,
de anunciar o seu casamento e apresentar a noiva à a:ri~tocra­
insaciável de divertimento, se adensava nas praças e ruas cen-
cia do reino. Nínive, em peso, preparou-se pa.ra celeóra~ .0
trais, em torno de saltimbancos, malabaristas, adivinhos, encan-
grande acontecimento. O rei quis que todas as classes. S~I~S
tadores de serpentes, domadores de animais selvagens, mági-
participassem da sua alegria. O d~~rtame?to de asslstenCIa
ofereceu-se para fornecer o necessano, a ftm de que as de- cos e cantores, acompanhados de rufas e pifaras. A multidão,
monstrações de regozijo tivessem característica expressão po- ébria de alegria, cantava, vociferava, ria em algazarra. Ven-
pular. As províncias e reinos vassalos foram' notificados acer- dedores ambulantes, com grandes .ânforas, vendiam vinhos e li-
ca das contribuições que lhes cabiam. cores, disputados com imprecações. Em frente ao palácio real,
Acima de todos, mostrava-se encantado o próprio rei, que dispunham-se grandes mesas, repletas de comensais em pé, a
chegou a prescindir de formalidades e protocolos p~ra se tornar saborearem os assados, que iam chegando em grandes espetos.
quase enfante, na sua alegria de namorado. Interessava-se por Cevados inteiros, assados no forno, eram repartidos entre o po-
pulacho, faminto de enxúndia e de carne; frutas da terra eram
.
conhecer, em suas minúcias, as medidas tomadas pelo encarrega-
do de organizar o cerimonial. Diariamente, quase, ab}~rava a despejadas das carretas e assaltadas pela meninada vadia.
etiqueta e corria, incógnito, à casa da noiva para u~ ~slta pre- Na véspera do dia designado para as cerimônias do casa-
cedida de ricos presentes. Samara, sempre comunIcatIva, dlver- mento reuniu o rei as delegações estrangeiras e os grandes do
tia-o com a sua vivacidade e conceitos equilibrados. A morte reino em suntuoso banquete, tendo ao. lado os soberanos visi-
de Oanês teve para ela o efeito de rompimento com o passado. tantes e suas comitivas. O seguinte dia foi destinado ao ceri-
Liberta agora, de todos os preconceitos, ela marchava para o monial.
seu destino, integrada no espírito do dístico poderoso e mágico
A sala de festas do palácio real burburinhava ao acúmulo
gravado no pedestal da estátua de tsi~:. Saber.Quer:r-.Ou~r­ de seleta assistência que aguardava a chegada dos nubentes.
Calar. Uma egipciana na terra da Assma, pelas radIcaIS dIfe- Dois grandes tronos contíguos centralizavam duas ordens de
renças .entre os dois povos, constituí~ extraordinária e chocante outros menores, destinados aos soberanos visitantes, que iam
ocorrência. Filha do bonançoso Egtto, onde tudo era recorda- sendo localizados à medida que chegavam.
ção e tl')isticismo, devia ela escandalizar-se nesse 1?e~o ?nde ?
povo só conhecia os argumentos da força e da vlOlencIa. Ja Clangores estentóreos das trompas anunciaram a chegada
se esboçava, contudo, na alma de Samara grande pen~or. para da noiva, aguardada à porta do palácio pelo rei °e grande cor-
uma elevada contribuição humana de ordem dlreclOnal, tejo. Grandes aclamações, no salão magno, acolheram os reais
tendente ao aperfeiçoamento e bem-estar sociais. O incongruel:te nubentes, quando conduzidos aos respectivos sólios.
determinismo histórico que preside a evolução dos povos la, Salve, ó grande rei!
agora, soprar para os lados do oriente a brisa quente das - Samura-mat! Salve!
pirâmides, impregnada de prudência e sabedoria.
74 CAMILO CHAVES
SEMfRAMIS 75
Pela vez primeira ela ouviu o seu nome oficial - Samura- Fortemente escoltada, postou-se, em frente ao estrado real,
mat com o qual é conhecida. Samara, em sua origem árabe, extensa fila de prisioneiros, carregados de cadeias e atados uns
já ~ra um nome de rainha pelo signific~d~: mulher, soberana. aos outros. O tinir dos grilhões dava ao quadro festivo uma
Os assírios acrescentaram ao nome propno a parhcula mat, nota de horror. Eram eles personagens importantes em seus
que significa rainha. países : reis, príncipes, ministros e generais capturados em com-
Estava maravilhosamente bela, ainda que um tanto pálida. bate. Três individualidades reais, encabeçando o préstito, cin-
Trajava riquíssimo vestido branco, cravejado de rubis e tur- giam irrisórias coroas de madeira, a denunciar-·lhes a hierar-
quesas e o extenso manto de terciopelo tírio, se arrastava no qUIa.
pavimento atapetado.
- Rei do Helesponto, estás vendo minha glória? pergun-
Chamsi-Adad trajava. vestes pontificais, cingindo a tiara tou arrogante Chamsi-Adad.
com a coroa real. A barba e o cabelo frisados davam-lhe as-
pecto de soberba majestade, como se fora o deus das deuses, a - Sim, vejo que sois realmente grande e poderoso! res-
presidir a corte celestial. pondeu-lhe o prisioneiro, humildemente.
Foi lido pelo arauto real o decreto, pelo qual o rei declara'- - A tua memória vai guardar, por toda a tua vida, a
va receber a Samara por sua legítima esposa e a proclamava derradeira visão deste quadro soberbo da minha glorifica.ção.
rainha da· Assíria. Sou o rei mais venturoso de quantos existem, porquanto, além
Os presentes, em frenéticas aclamações, aproveitar~ o de mais poderoso, sou possuidor da mais bela rainha do mundo.
momento para exteriorizar a sua admiração pela bela ramha. Para escarmento teu, do teu povo de vilões e de todos os meus
A noiva, precedida de formosas jovens, chegara diante do inimigos nunca mais os olhos teus verão a luz do sol.
trono do rei, perante o qual se ajoelhou. Ao mesmo tempo, lu- O pobre prisioneiro, transido de pavor, ajoelhou-se-Ihe
zido cortejo de pagens conduzia a coroa real. Chamsl-Adad aos pés.
tomou-a da mão do pagem e cingiu com ela a cabeça da sua es- - Misericórdia, senhor! Já tenho o castigo no meu in-
posa. fortúnio.
Samura, recebe das minhas· mãos a coroa de rainha da - És sempre o infame e covarde, incapaz de enfrentar a
Assíria, para que sejas obedecida e venerada por todos os teus morte.
vassalos.
- Graça! Peço-vos graça, por piedade!
O rei fê-la levantar-se, e o belo par, de mãos dadas, apre-
sentou-se, com uma leve inclinação à assistência delirante. - Devias ter encontrado fim glorioso no campo de bata-
Enquanto recebiam homenagens, um corpo de baiadeiras, lha. Agora me pertences e eu jamais te perdoarei. Quero vin-
levemente veladas, passaram a executar números coreográficos, gar-me no teu sofrimento. Viva a Assíria!
dando a impressão de que formosas ninfas festejavam um hime- O prisioneiro relutou, e vários braços possantes o imobili~
neu divino. zaram. Um pentarca apresentou a Chamsi-Adad uma lança tira-
O programa da tarde desse dia foi anunciado como sur- da de uma grande pira de brasas, e ele, tomando-a, chegou a
presa. Instalaram-se na praça fronteira ao palácio outros tan- ponta rubra aos olhos do seu inimigo. Evolou-se fumaça ao
tos tronos, que foram ocupados pelos reis e demais soberanos contactocandente, e o cheiro de assado tresandou no ambien-
visitantes. Miríades de soldados, formados em falanges, ocu- te. Um grito roucoirrompeu da garganta do infeliz, que tom-
pavam a praça, mas havia espaço destinado ao povo. E~a cos- bou em contorções.
tume assírio guardarem-se os prisioneiros de alta categona para A cena foi interrompida, enquanto socorriam Samura-mat,
serem publicamente supliciados. Organizavam-se espetácul~s que caíra desacordada sobre o braço do trono. Quisera
de grande crueldade, em quc o rei se saciava, para a própna ela pedir clemência, mas seu marido, distanciado, não lhe ouvi-
exaltação, no sofrimento dos vencidos. ra a súplica. Fechou os olhos e, ao grito da vítima, desmaiou.
76 CAMILO CHAVES

Chamsi-Adad interrompeu a execução. para socorrer a


esposa, e esta, recobrados os sentidos, dirigiu-lhe um olhar
súplice.
- Tem piedade, não me mortifiques assim!... Não su-
porto! CAPÍTULO TERCEIRO
- A rainha da _Assíria não pode dar sinal de fraqueza.
Precisas acostumar-te a estes espetáculos... Não é possível SAMURA-MAT
modificar o programa. Coragem, Samura!' Sê forte!
Ela endireitou-se no trono.
- Serei forte! disse. A lição foi aprendida e não mais Como figura representativa do seu tempo e de suas em-
fraquejarei. .. presas, Chamsi-Adad era um déspota completo; com mão de
ferro subjugava os povos vizinhos, duramente tiranizava a sua
Chamsi-Adad voltou ao posto e cegou, com a ponta rubra
gente. Guerreiro inexorável, como todos os reis da Assíria,
da lança, os outros dois prisioneiros reais, que, c~mo o pr~ei­ aniquilava as resistências opostas com espantosa ferocidade, e
ro, depois de receberem de um soldado os bordoes de arnmo, nações inteiras eram raspadas da face da terra.
babatavam, Sem rumo, entre a chacota geral.
Pessoalmente, um truculento. As suas ordens eram im-
Os outros prisioneiros de menor categoria foram justiçados postas com extremo rigor, porque ilimitada a sua vontade. Os
pelos generais e ajudantes. do rei. subordinados sentiam-lhe a arrogância,através dos atos violen-
Retirada a assistência e ao tropa, ficaram os pobres cegos tos; tratava os oficiais com modos de vilão e, se os recriminava,
a errar na enorme praça ... impunha-se pela força dos punhos e das bastonadas.
A- noite as luminárias comemorativas do auspicioso acon- Não podia ser um homem de espírito, e esta deficiência o
tecimento, fulguravam em todas as casas de .Nl~l1:e, que pa-
" ,T •

tomava influenciável à sagacidade da rainha. Rendido aos en-


recia imenso lago a refletir as constelações do mfImto. cantos da jovem esposa, fazia-lhe todas as vontades e só pen-
sava em cortejá-la, esquecido das concubinas do harém real.
Com isso, Samura-mat ia imprimindo às cousas o cunho
do seu gosto. Remodelou o palácio, escolheu, ela mesmo, os
seus servidores, cuja dedicação assegurou, desde logo.
- No meu entender, a rainha, principalmente, tem o de-
ver de premiar o devotamento dos súditos. Qual a vossa opi-
nião? perguntou ela ao real consorte.
- Eu penso que os vassalos têm o dever de bem servir os
reis, mas é atributo destes premiar-lhes os atos de dedicação.
A rainha tem, principalmente, a missão de embelezar a corte
e distribuir as magniHcências da sua bondade. Assim libera-
lizando benefícios e recompensas, pratica a generosidade, virtu-
de atribuída aos deuses e aos reis, segundo já mo dissestes, um
dia.
- Respondestes sabiamente, disse ela. Entretanto, tenho
a pesar-me na consciência uma grande falta para com aquele
que me salvou a vida.
78 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 79

- Quem é o feliz mortal que se tornou credor de tam~nho forças para suportar o primeiro encontro. Nisto se parecia
merecimento perante a rainha da Assíria? perguntou o reI, de com a jovem de Damasco e do Oásis dos peregrinos. No re-
bom humor. côndito de sua consciência, ela fundamentava o propósito de
- É um jovem oficial da vossa guarda, que me salvou da recompensar, de alguma forma, o seu bravo guerreiro.
fauce do leão. Determinou que a posse do comandante da guarda se rea-
E contou ao rei o episódio dos leões. lizasse com solenidade, o que se fez, passando o rei revista à
- Por Assur! exclamou Chamsi-Adad. É uma proeza tropa. Este fato deu à cerimônia caráter protocolar, livrando
digna de um rei. Dizei-me o seu nome. Samura de maiores preocupações.
- Lécon. Segundo as referências históricas, Chamsi-Adad foi um
- Fá-Io-ei quiliarca e chefe da vossa g~arda. , . rei extremamente belicoso, - suas guerras foram contínuas,
Assim, Lécon passou a con:andar a guarmção do palaclO da ora para o norte, com os Povos ribeirinhos do lago de Van, ora
rainha. Ao chegar-lhe a notícia, pensou em. recusar a honra. para o sul, contra Babilônia, ou contra a Média, situada a leste.
Estava profundamente ressentido da insincendade de Samar~. Vivia, pode dizer-se, no acampamento, entregue ao trabalho
Quando do casamento dela com Oar:ê.s,. foi tomado de sombno nômade das expedições. Nos primeiros tempos de reinado, ar-
desespero, que quase o levou, ao SUlCldlO. Yer.der~ t.odo o es- riscado seria. ausentar-se por muito tempo da capital, em razão
tímulo de viver, até que se operasse a reaçao InstIntIva contra das lutas que sustentou contra seu irmão rebelado. Casado, ti-
os infortúnios. Três vezes a vira e se desesperançara ao con- nha em quem confiar e deixava os negócios públicos entregues
templar-lhe a formosura radiosa e a incomparável ,f~rtuna. Com à direção da rainha, cuja prudência reconhecia. Jamais teve
a promoção e designação para comandante d:> palac~o real, sen- ocasião de reconsiderar um ato dela, por desacertado. Apesar
tiu-se ferido no seu pundonor, porque dormItav~, a~nda, r:o co- de amá-la apaixonadamente, preferia aproveitar-lhe as aptidões
ração a brasa que, a qualquer momento, podia InCendIar-se. administrativas, em benefício da sua segurança. Em longas au-
Sentiu-se incapaz de resistir a tamanna prova e chegou a pe.n- sências fazia-se acompanhar de concubinas do harém, o que cau-
sar no término sensacional da tragédia, com duplo extern:mlO. sava intima revolta rà rainha,consciente da sua beleza e supe-
rioridade.
Recordava-se, com rancor, de Oanês e, agora, passa:a a odIar ,o
rei, porque este se apossara do seu tesotir? ~ ao lhe.sala Cumpria-lhe, porém, a ela, fazer vista grossa às levianda-
da mente a desgraça que lhe c~usara,essa c:latura,. e sentia-se des do marido, e, com isto, entregava-se, com diligência, aos
humilhado. Antes a' tivesse deIxado a me~ce do.leao.. assuntos da administração. Encontrava, na colaboração de Si-
Não encontrava saída para as suas dlvagaçoes,dIante d~ mas e do seu comandante da guarda, auxílio importante e confia-
impossibilidade de resistir à ordem do rei. Nen: sequer atI- va-lhes a solução dos problemas mais delicados.
nava como apresentar-se à rainha: se com o despeIto do an;~n~ A assídua convivência reacendeu em Samura e Lécon a
te ofendido se com a submissão do vassalo. No seu espmto chama do amor, apesar de 'cuidadosamente recalcado. Notara
curioso re~ntava, contudo, insistente ir:t.errogação. Por que ela, por vezes, o arrebatamento do jovem, no tratar determi-
ela se lembrara dele? Como podia conCIlIar esse gesto .de be- nados assuntos, principalmente quando se referia ao rei; per-
nevolência com a traição cometida? Recompens~ matena.l por cebia-lhe o ciúme mal contido. A paixão lhe irrompia do ínti.
lhe haver salvado a vida? Melhor seria que o tIvesse deIxado mo, indomável, dominadora, à lembrança dos venturosos dias
entregue à própria sorte. . " de Damasco. Nas suas vigílias, saltava-lhe à frente a figura
Samura-mat, também, encontrava-se em ans~osa al~err:atI­ épica do namorado a enfrentar o leão. Convencida de que
va. Havia muito não via o seu salvador. SentIa,. n<: IntImo, era propriedade dele, reconhecia-se criminosa contra si e con-
curiosa saudade dele, enquanto se acusava do ~to IndIgno q.ue tra ele. Sentia, depois de prová-las, quão efêmeras e onerosas
praticara. Mais do que nunca, calculava o abIsmo que ,se. In- eram as grandezas do mundo, alcançadas com o coração vazio.
terpunha entre eles, mas temia não encontrar, no seu ammo, Como seria feliz se, a seu lado, tivesse Lécon como rei e
consorte!
80 CAMILO CHAVES
SEMfRAMIS 81,
Lécon, também, divagava. Fremia ao pensar no general
Oanês, cuja astúcia o relegara para Nínive, a fim de se apode- Temiam o rei, mas amavam-na. Como era diferente do
rei! Nos seus arrazoados, o povo queria vê-la sozinha no
rar da pastora. Quisera vingar-se, pela sua própria mão, do
trono. Que morresse o rei, tão mau! Que não voltasse nunca
amigo infiel, mas outra~ consid~rações lh~ atenu~v~m o ~e­
A

sejo de desforço. OcorrIa-lhe a mconstancla e falacla das JU- da guerra! Comentava-se-Ihe <> mau gosto em preferir a ma-
lança a desfrutar da sua lindíssima rainha. Para uns ele era
ras da noiva, cuja ambição lhe amortecera o afeto, ~m. favor um animal.
das grandezas e vaidades.
- Um bruto!
- Ela é a O'rande responsável, dizia ele consigo mesmo. - Ela é um presente de Assur para a Assíria, afirmavam
°
Se me amasse sinceramente, . o outro. AS
não teria preferIdo outros.
mulheres são assim mesmo: colocam a vaidade acima das mais - A própria Istar nos governa!
legítimas afeições. Eu, também, ~oderia gui:rdá-Ia ao pir:áculo
Tudo corria muito bem, mas a acuidade paterna de Simas
°
da glória, porque tenho futuro dIante de mIm. ~as a mgr:- havia lobrigado um fato que o trazia alarmado. Notara a cor-
ta deixou-se seduzir pelas promessas de um guerreIro que nao
dialidade e preferência da filha por Lécon. Estreitara-se o
tinha mais futuro, nem mocidade. Ela, portanto, a grande cul-
convívio entre este e ela, a ponto de ocasionar suspeitas quanto
pada; não merece a minha: vingança. à legitimidade dessas relações. Aumentara a vigilância, a fim
Assim, Lécon se conformou com a situação, mas não podia de evitar escândalos. Estava certo de que nada havia até o mo-
esquecê-la. Acompanhara a rápida ascensão de Samara com mento, mas conhecia os antecedentes de ambos. Sabia da von-
imenso despeito, mas agora, ao serviço dela, se mostrava con- tade férrea da filha e não duvidava da pujança de uma afeição
formado, admitindo a própria insignificância, em comparação verdadeira e sopitada. Simas era um sábio, na extensão do
com o grande favor que os deuses lhe dispensavam. termo,e avaliava todos os arcanos do sentimento humano. Sa-
- Não a mereço, dizia ele, em seus solilóquios. Ela é bia que o amor, quando absoluto, não respeita óbices nem pre.
conceitos.
uma criatura privileO'iada. . . Dizem que é filha de Derceto ...
Ela mesma é uma °deusa que veio à terra em missão divina. , Acompanhando a vertiginosa trajetória de Samara, estava
É a mesma Istar, segundo a crença do povo. Cumpre-me, ape-
inteirado da obstinação com que ela perseguia os próprios obje-
nas, adorá-la como crente. Infeliz de quem põe os olhos na tivos. Sinefru transmitia-lhe as confidências, pondo-o de so-
divindade! Torna-se um fascinado. Eu fitei a deslumbran- breaviso. Um procedimento leviano dos antigos namorados
te Istar... Ai de mim!... A despeito .de tudo, adoro-a podia perder a todos.
mais do que nunca, como deusa, como rainha, como mulher. Envolvera-se Chamsi-Adad em guerra com a Armênia e,
Amo-a porque é parte de mim mesmo; odeio-a porque me des- como de costume, dirigia pessoalmente as operações. Na qua-
prezou e não posso alcançá-la. lidade de regente, mandava-lhe a rainha mensageiros portado-
res de relatórios sobre os negócios do Estado. De uma feita,
Mantinha-se o rei à testa do exército, e Samura, com o tem- mandou chamar o comandante da guarda, e Lécon entrou quan-
po, se assenhoreava de todos os segredos da admin~stração. do ela estava só no gabinete. Após a continência protocolar,
Colocava nos postos gente a ela afeiçoada e, em vez de Isolar-se ela lhe dirigiu a palavra.
na 'sua O'randeza, interessava-se pela situação dos vassalos e es- - Tenho aqui uma· importante mensagem para o rei. De-
tendia aO sua benevolência aos elementos da sociedade feminina, ve ser confiada a portador de confiança para que se não perca.
onde encontrava muitas dedicações. Quem não se rendia à - Se tão importante é, majestade, o melhor correio, que
bondade e beleza da rainha? me ocorre, sou eu mesmo. Passarei o comando da guarda 'ao
O povo sentia-se feliz, e os comentários a glorificavam. meu imediato e seguirei a cumprir as vossas ordens.
- Precisarei de vós para outros misteres, retrucou a rai~
-. Deus a conserve! ouvia-se por toda parte. nha. Tratai, pois, de escolher outro.
82 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS

- Se mo permitis, senhora minha, eu desejo Muita vez, no caso da perda dessas alegrias, ainda que
vos um pedido. apenas despontadas na nossa vida, torna-se-nos grata a liberta-
- Falai! ção pela morte.
Ao coração de Lécon afluiu uma onda de amargura a Ela sentiu-se transtornada e, cobrindo o rosto, deixou que
vasar-lhe pelos lábios. Samara encarava-o com interesse. as lágrimas e soluços a sufocassem.
- Eu vos sirvo há algum tempo, senhora, e grato vos sou - Perdoai-me! senhora, se vos faço sofrer. Jamais pen-
pela vossa bondade. que as minlias palavras vos causassem tamanha mágoa. Sur-
Ele hesitou à emoção que lhe aflorou no rosto incendiado. giram-me, em tumulto, à lembrança do passado.
- Sou moço e tenho na alma uma grande ambição. Vejo - Nenhum perdão tendes a pedir, se o crime e o arre-
que os exércitos do rei, meu senhor, se batem em memoráveis penqimento me queimam o coração. Estas lágrimas não são
batalhas, onde eu teria ocasião de pelejar em benefício meu e as primeiras a me brotar dos olhos. No atropelo dos fatos do
da Assíria. meu destino, sinto o vácuo no coração, e daria toda a minha glória
- Julgais perdidos os serviços que prestais à r~inha? para retornar às esperanças da juventude, no Oásis dos Pere-
- Ao contrário, senhora minha, julgo-me felIz pelo es- grinos, quando me alegráveis com o vosso afeto.
forço que pus no vosso serviço e pelos que vos possa oferecer Dominou-a, por fim, a paixão refreada.
no campo de batalha. Sou soldado e, nas atividades da paz, não Lécon caiu de joelhos.
poderei alcançar glória nem fortuna: Peço-v?s, se~hora, que Enlaçaram-se-Ihes os braços com· ímpeto irresistível, e os
me confieis a vossa mensagem ao reI e me deIS ensejo de per- lábios se procuraram e uniram em longo beijo fusionante, se-
manecer ao seu lado. guido, em atropelo, de outros, muitos outros ...
Samura sentiu-se confusa com a atitúde do brioso - Sois um raio de sol com que Ámon me incendiou a
litar. Reconheceu-lhe a nobreza do gesto, o que mais o ele- alma!. .. exclamou ela arrebatadamente.
vou na sua admiração. Inconfessado sentimento pungiu-lhe o
Simas, anunciado, entrou na sala.
orgulho à suposição de que Lécon preferisse afastar-se dela
- Acaba de chegar um correio com mensagem do reI.
para afrontar os azares da guerra. Quereria ele procurar a
- Manda-o entrar.
morte no campo de batalha? Sentia-se feliz por tê-lo a s.eu lado
Depois das reverências e formalidades do protocolo, o
e alarmou-se à hipótese de perdê-lo. O seu olhar traduzm-lhe a
emissário apresentou à rainha as tabuletas, marcadas com o si-
tristeza. nete real. Ela procedeu à leitura.
- Podeis perder a vida e truncar a vossa grande ambição, - O rei, disse ao concluir, anuncia a vitória dos nossos
objetou ela. exércitos e a rendição do rei inimigo. Que se anuncie a boa
- Não considero a morte como infortúnio, respondeu ele, nova e graças sejam dadas a Assur pela proteção que dispensa
titubeante. à Ass'Íria e ao rei. O comandante da guarda providencie.
- Quereis morrer? Lécon afastou-se e, em breve, as trompas clarinavam a
- Senhora, nós temos o dever de notícia alvissareira.
para um nobre destino; do contrário, é preferível dar-lhe fim Ficaram na sala Simas e a filha.
glorioso. - Minha filha, venho falar-te como pai, interessado na
- Entretanto, disse ela, a renúncia à vida importa na re- tua paz e felicidade. Tenho observado a tua inclinação por
cusa a alegrias supremas e a afeições gratíssimas. Lécon. Eu conheço as razões que alimentam essa velha
Ia travar-se, finalmente, a batalha decisiva entre os dois afeição e reconheço a onipotência do amor. A proximidade e
amantes. Desaparecia entre eles o formalismo hierárquico para convívio desse rapaz contigo representa constante perigo para
dar lugar aos revides recalcados da paixão. Lécon, rosto afo- ambos. É mister que o afastes para bem longe. Podes dar-lhe
gueado, retrucou à alusão de Samara.
84 CAMILO CHAVES
SEMfRAMIS 85

uma incumbência fora da capital, na provínda, por exemplo Samura-mat assumiu, novamente, as rédeas do governo.
Aconselho-te que o faças sem demora, antes que te percas a Ninive, nesse período, passava por grandes transformações
mesma e a todos nós. de natureza material. O rei Salmanasar, pai de Chamsi-Adad,
- Meu pai, vens pedir-me o impossí.vel. Segui os te havia iniciado grandes obras de defesa da capital. Extensíssi-
conselhos e aceitei unir-me ao homem a quem não amav mas muralhas eram construídas, assim como outros grandiosos
Procurei arrancar do coração o 'meu verdadeiro amor, comQ estabelecimentos, que lhe' enalteciam a importância, 'como o
se honras e riquezas preenchessem os sublimes anseios da vida: grande templo de Assur, o deus nacional, o novo palácio real e
- Que dizes, minha filha? A paixão dominou-te a pontq a retificação do leito do rio Tigre. Revelava-se a rainha 'gran-
de tudo sacrificares? Pensa no desfecho desta tua aventura de administradora, incrementando e levando a termo eSses me-
no enorme eSdândalo em que se envolverá o trono da Assíria. lhoramentos públicos, paralisados durante anos, para serem fes-
.- Coisas há, que ultrapassam as possibilidades da resis" tivamente inaugurados à chegada do rei. A despeito das preo-
tência humana. cupações e medidas de guerra, ela encontrava meios de atender
- Mas há situações em que todos os sacrifícios são pouco a essas colossais edificações, que tornaram Nínive a maior e
para salvar as conveniências. mais suntuosa cidade do mundo. Ademais, prestava ao marido
- Voto-me a todos os sacrifícios pela minha ... disse ela! efetiva contribuição de ordem militar, mandando-lh~ novos exér-
ambiguamente. citos, sempre oportunos e decisivos para o êxito das campanhas.
-Pensa no que vai acontecer, quando o fato chegar ao co- Movimentava-se o prestígio da regente no sentido da realização
nhecimento do rei. Que farias tu em seu lugar? de alianças, em reforço da posição internacional do reino.
- Mandava matar os culpados. Desta vez, ao partir, Chamsi-Adad levou a promessa de
- É isto que esperas? um herdeiro, e, no acampamento, chegou-lhe. a boa nova do
- A morte pouco me importa, contanto que me nascimento de um príncipe, acontecimento celebrado com gran-
tegrada no meu amor. des festas. O rei pôs-lhe o nome de Adad-Nirári.
- Que Derceto, tua mãe, te inspire e encaminhe na tua Os meses transcorriam, e Samura-mat sentia-se feliz ~om
incompreensão! a ausência do marido, pelo ensejo de maior convívio com o
- Ela me ajudará nas tribulações, porque sigo os ditames amante. Eles estavam certos, porém, do perigo a que se.ex-
do coração. punham e do fim terrível a que se votavam.
A chegada do rei vitorioso empolgou todos os habitantes - Temo, amada, temo constantemente pela tua vida. Al-
de Nínive. A rainha foi ao seu encontro, e ambos entraram gum dia há de transpirar a nossa ligação, e a vingança do rei
em triunfo na capital. Deu singular imponência ao espetáculo será certa.
a presença de vários reis e capitães aliados, participantes da. ex- - Procuro garantir-me, comprando a fidelidade de todos
pedição. Não faltou à pompa da vitória· o cortejo dos cativos, os servidores, especialmente do alto funcionalismo. Sabes que
que marchavam a pé, carregados de ferros, encabeçados pelo rei a amizade tem tinido metálico, por isso ·eu os colmo de ouro e
vencido. . honras. Entre mim e q rei eles não hesitarão em tomar o meti
partido. . .
Nova empresa militar reclamou a presença de Chamsi-Adad
nas montanhas do norte, onde se organizava um povo da raça - Entretanto, disse Lécbn, o perigo permanece. Um~
ariana, aparentado com os armênios e georgianos, isto é, os cáI- indiscrição, um descuido, uma denúncia maldosa de estranhos e
di do chamado Urartu. Aguerridos e temíveis nas suas mon- intrigantes pode pôr o rei ciente de tudo.
tanhas, esses bárbaros civilizavam-se à moda dos caldeus e com - Estás--exagerando, meu adorado. .. Para ter-te ao meu
isso se tornavam ameaçadores para os reinos do vale do Eufra- lado, desafio o mundo e os homens. Cheguei a perder-te, mas,
tes. Cumpria submetê-los, em bem da tranqüilidade da Assí- agora, só a morte nos pode separar. Venha ela de qualquer
ria, repetidamente inquietada. forma, morrerei feliz, pensando em ti.
'II

86 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 87.

Ela enlaçava-o num beijo frenético. Na batalha de Dában, Chamsi-Adad alcançou importante
- Sabes? tornava ela. Eu creio na minha estrela e no au- vantagem que, segundo a História, custou aos adversários sete
xílio da deusa, minha mãe. Eu objetivo uma grandiosa deter- mil mortos, duzentos carros, com seu estandarte real e toda
minação divina, e tu fazes parte integrante da minha missão, a bagagem do exército. l\Ias a vitó~ia n.ã~ ~oi decisiva, por
porque és um pedaço de mim mesma. Eu ,e tu somos um e nos não lhe ser possível conqUIstar a capltal 11111111ga.
completamos no nosso amor. A Assíria é bem pequena para Certo dia apresentou-se-Ihe, no acampamento, um emissário
cenário do meu destino... Farei do mundo palco da minha chegado de Nínive, dizendo-se oficial da guarda do palácio da
epopéia! ... rainha.
- Tu és brava e bela como Istar! Haja o que houver, Enarbas exercia, de fato, essa função e vinha, havia tem-
não nos separaremos nunca mais. Ouço, também, um sussurro pos, servindo à soberana assíria. Irrequieto e suspeitoso, ocul-
imanente no recôndito do meu ser, que me segreda a unidade de tava, com cuidado, a sua grande ambição. Lécon não gostava
nossas almas. dos seus modos e, várias vezes, quisera afastá-lo do palácio,
- Sim, continuou ela, nós formamos um todo inteiriço. mas Samura-mat preferia cumulá-lo de favores e dinheiro.
No estalo do teu chicote, ao passares em teu carro, no Oásis' Enarbas, contudo, olhava muito alto e não se contentava com
dos Peregrinos, eu senti a saudação amiga de um velho compa- os postos subalternos. Não se atrevia a tentar a sorte na guer-
nheiro. Nós somos a mesma faísca bifurcada, partida do pen- ra Que era o caminho de ascensão dos bravos. Covarde, vivia
samento criador de Deus supremo. Portanto, meu amigo, não a 'p~i:scrutar meiose oportunidade de chamar a atenção sobre
me fales mais em perigos, que nenhum poder me fará abrir a sua pessoa. Procedia como intrigante e delator, armando
mão de ti, porque me pertences por direito natural e divino. competições ·e rixas, insinuando falsidades, mas tão dissimu-
O príncipe Adad entrou a correr, interrompendo os estas ladamente, que, muito raro, era apanhado no trabalho inglório.
de ternura do amoroso par. Samura-mat, atraída pelos gritos Já se falava, à boca pequena, dos amores da raínha com
e risadas do filho, envolveu-o num abraço, cobrindo-o de bei- o seu comandante da guarda. Enarbas pôs-se em campo para
jos. observar e, na espionagem desenvolvida em torno do paço,
O rei combatia lá para os lados do Urartu. encontrou motivos de suspeita. Concebeu o plano de alcançar
Concluída a guerra, armou-se nova contenda para o sul. evidência por meio do reconhecimento do rei. Desertou do
Babilônia e Assíria, nações afins pela origem, floresciam serviço e empreendeti viagem ao acampamento. Chamsi-Adad
nas bacias dos rios Eufrates e Tigre, abarcando o famoso trato o recebeu com mau aspecto.
geográfico da Mesopotâmia. A primeira crescia para o sul e - Vieste da parte da rainha? perguntou-lhe.
leste, em lutas seculares com o Súmer, com Elam e demais po- _ Meu rei e meu senhor, que Assur vos conceda vitória
vos circunjacentes ao golfo pérsico, ao passo que a Assíria se sôbre todos os vossos inimigos. Sou oficial da guarda da augus-
expandia para o ocidente, para o norte, oeste e nordeste, asso-
tíssima rainha.
lando e submetendo as nações marginais do Mediterrâneo e do
Ponto Euxino. Igualmente poderosas, não podiam coincidir - Que é da mensagem?
no mesmo círculo de influência e digladiavam-se no correr dos _ Eu tenho grande amor ao meu rei e senhor e vim até
.séculos, com sorte vária, pela hegemonia. Salmanazar IIl, pai aqui para inteirar-vos dos acontecimentos que o favor dos gênios,
de Chamsi-Adad, vivera em contínua luta com o reino do sul, do espaço me permitiu presenciar.
e este, repetidas vezes, se abalançara contra o rival, sem, con- - Deixaste o serviço sem licença! És desertor! atalhou
tudo, lograr êxito definitivo. o rei com severidade.
Nínive, por pouco tempo, hospedou ° seu rei, enquanto _ Não podia ser de outra forma, meu rei e senhor. A:-
se transportavam os seus exércitos para enfrentar o reino de rostei perigos e perseguições para' vos poder testemunhar a ml-
Babilônia, agDra, aliado do Elam e dos arameus. nha fidelidade. Graves acontecimentos ocorrem no paço da
88 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS S9

rainha, e, para vo-los revelar, tinha que sair sub-repticiamente. Chamsi-Adad voltou a Nínive, procedendo, em sigilo, às
Fugi, senhor, desertei, porque não pude mais suportar as afron- investigações sobre a conduta da sua esposa.. Mandou sondar
tas à vossa augusta pessoa. discretamente a opinião de todos os funcionários do paço, mas
- De que se trata? nada apurou contra ela. Mandou prender, ocultamente, a ser-
- Senhor, procurei certificar-me da veracidade dos fatos, vidora pessoal da rainha, que, a princípio, negou tudo, mas,
que se atribuem à rainha, minha augusta senhora, e pude veri- sob a ação da tortura, acabou confessando a verdade.
ficar-lhes a procedência. E o rei planejou a vingança.
. - És um miserável intrigante, que merece morrer. A Desde o desaparecimento de Enarbas, Lécon transmitiu
ramha é uma honradíssima criatura, contra quem não és digno à soberana as suas desconfianças quanto à lealdade do oficial.
de atentar! Promoveu investigações sobre o seu paradeiro, sem conseguir
:- Ao toma: esta atitude, ó sublime filho do sol, pon- nenhuma notícia, apenas um leve indício o localizara em uma
dereI todos os nscos que devia afrontar, inclusive o de não caravana que se dirigia para o sul. Adivinhou os planos do
~nfiel e ficou na expectativa de grandes perigos. Fez pro-
merecer a vossa graça. Como fidelíssimo súdito revoltei-me
I:0 r ver a v~ssa honra ultrajada. Assumo toda a responsabi~ Jetos, tomou precauções, pôs em campo múltiplas atividades
de observação, estreitando relações, aumentando a liberalidade
hdade da m:nha acusação.. Apenas vos peço, ó rei dos reis,
que me ouçaI~, para profenrdes a vossa sentença. Não quero da rainha, insinuando por seus agentes o descrédito do rei.
que me acredIteIs, mas que mandeis sindicar quanto à veraci- Sabia que o momento era decisivo e formou o seu núcleo de
dade dos. fatos que vou apontar. resistência para o que desse e viesse. Preparou mesmo mi-
- Fala! disse -o rei com enfado. nucioso plano de evasão. O rei procedeu com dissimulação
e demonstrou à esposa grande solicitude. Samura-mat, tam-
. :- .Come?!a~se, senhor meu, entre o pessoal do palácio, a
eXlstencla de 111cltas relações amorosas da rainha com o coman- bém, pôs em ação grande astúcia, desarmando as desconfianças
do real companheiro com os amavios da sua extraordinária
dante d~ gua.rda. T?do mund? sabe, mas ninguém denuncia,
porque e mUlto quenda. Eu e que me atrevo a vir até vós beleza. O desaparecimento misterioso da sua serva fiel não
porque vos venero acima de tudo, ó divino filho de Assur. ' lhe deixava dúvida quanto às intenções dele. Mas Chamsi-
Adad estava fascinado e excedia-se em demonstração de ter-
- Se mentes, serás empalado à vista de -todo o acampa-
nura, em cenas de ciúme e ameaçava um suposto traidor e
mento, interrompeu o rei, irritado.
concorrente ao amor dela. Esperando calmamente a tempes-
--:- .Castigai-me, senhor, se eu menti. Eu mesmo mal tade, ela procurava aplacar o monstro com os seus carinhos.
acredlteI na acusação e, somente em vista da insistência re-
solvi investigar. Todos notam a grande influência que Lécon, A mulher do notário real, amiga de Samura-mat, pro-
o comandante da guarda, exerce sobre a rainha; é o seu con- curou-a para revelar o projeto de Chamsi-Adad. Lécon estava
selh~iro em tod~s os negócios, e a sua freqüência aos com-
sentenciado à morte, e sua prisão era iminente, conforme
.partlmentos partlculares dela é contínua. Eu mesmo senhor decreto já lavrado.
observando, tive ocasião de presenciar a entrada cl~ndestin~ Nesse dia, Simas entrou na câmara da filha, sem se anun-
de Lécon no p~lácio, altas horas da noite, servindo-se de portas ciar. Vinha preocupado.
escusas, encammhado por uma servidora da rainha. - Senta-te aqui, meu querido pai. Pareces triste. " Que
. O rei ficou abalado com o que ouvia, mas continuou silen- há?
CIOSO. - Grandes ameaças no horizonte, minha filha. Nuvens
- Cr~de-me, ó meu adorado soberano, eu procedo por negras se adensam no nosso firmamento, e eu temo por ti.
amor de vos e peço-vos perdão pela minha audácia. Dia houve em' que eu prelibava grande vitória, esperando
- Ficarás preso até que se apurem ~sses fatos. Ai de colocar no trono egípcio um príncipe amigo e capai. Tudo
ti se mentires! • parecia propício e seguro. Entretanto, inesperada reviravolta
90 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 91

na fortuna me deixou desamparado e com a vida em perigo. fiança. .. Não duvides de que a tortura lhe forçou a reve 4

Vi-me obrigado a fugir para não perecer. Vieste em minha lação.


companhia, e o favor dos deuses permitiu que muito alto su- - Eu já ponderei tudo isso, interrompeu Samura, pen-
bisses, tão alto, que me apavoro com a p'erspectiva da tua sativa. .
queda.
- Pois bem, se queres viver, é mister fazermos o que fiz
- Estás sombrio nas tuas prevIsoes, querido pái. Eu no Egito.
não temo o destino, porque me cobre uma grande proteção - Fugir?! exclamou 'ela, aflita.
do Alto. - Sim, antes que seja tarde. Fugirmos todos, hoje
Beijou o pai com carinho. mesmo.
- Minha filha, alcançaste uma situação a que nenhuma - Como? Para onde?
outra mulher jamais logrou chegar. Mão misteriosa encami':' - Eu já organizei a nossa fuga. Se quiseres abando-
nhou-te para a .fortuna sem par, mas é tempo de pensares, nar-te à minha direção, levar-te-ei e a ele, para lugar seguro,
seriamente, em ti mesma. O teu amor a Lêcon arruinou a onde não alcance a mão vingatÍ\'a de Chamsi-Adad. Iremos
tua carreira. para a índia, através de reinos hostis e montanhosos, P?r
Samura, apanhada de surpresa pela afirmativa do pai, per- estradas mal conhecidas. Prevendo este desfecho, o nosso fIel
turbou-se e ficou pensativa. Recobrou, porém, a serenidade Zinar preparou, há muito, o nosso roteiro. Desde C).ue aqui
característica. chegamos, acumulo ouro, à tjspera desta emergênCIa. lJt:l
grande tesouro está a salvo. à nossa espera. Com ele abn-
- Não me censures, meu pai. A minha ligação a Lécon
remos todas as portas e todos os caminhos. Prepara-te para
é uma dessas situações fatais e sem alternativa, conformeiá
te disse. . hoje mesmo; avisa a Lécon para que nos acompanhe. Apro-
veitaremos a noite ...
- Não quero censurar-te. Eu compreendo a força da - Sua majestade o rei, senhor do mundo! anunciou o
lei que liga os seres humanos; sei mesmo compreender-te. arauto do paço.
Mas o que quero considerar é que estaplos em frente das con- Simas afastou-se por uma porta interior, e Samura-mat
seqüências do teu procedimento. Não há ação sem reação: apressou-se em ir ao encontro de seu real consorte.
é lei da natur,eza. Tens que suportar os efeitos do teu ato, - Prepara refresco para duas pessoas, ordenou ela à
contrário às diretivas que o destino te impôs. O preço da escrava etíope. Faze conforme te instruí.
realeza é a tua ligação a Chamsi-Adad. Não é possível con- E foi ao encontro do marido, levando-o para os seus apo-
ciliares Lécon com a coroa de rainha. sentos particulares. Sorrindo, apresentou-lhe a face para o
- Eu compreendo, mas não tenho f0rças para deixá-lo. beijo do costume.
Prefiro abandonar-me ao destino. - Excelso senhor do mundo! graças rendo aos deuses
- Como está, só podemos esperar desgraça. Será a imortais peta mercê de me trazerem o magnífico tirano de mi-
morte para ele, para ti, para todos nós. Conheces bem a nha. alma.
crueldade de um rei assírio. - Exerço, porventura, alguma tirania sobre o meu amor?
- Que me queres sugerir? perguntou ela, inquieta. perguntou ele,' melífluo.
- Não é possível anular o que está feito. Algo de amea- - Não reputais tirania, essa de trazer-me preocupada a
çador para nós está se elaborando. O rei já conhece a tua pensar no meu senhor, ora supondo-o morto na guerra, ora
ligação com Lécon e a qualquer momento vai desencadear-se ansiando por tê-lo junto de mim?
a tormenta. A deserção de um oficial da tua guarda é sintoma - Sentis real ventura por me terdes ao vosso lado? per-
de delação. Pensa na volta inesperada do rei, nas suas reti- guntou ele com malícia.
cências, no seu ciúme... Desapareceu a tua escrava de con- A resposta foi um beijo sonoro na face dele.
92 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 93

- Muito folgo com a vossa carinhosa acolhida. Assim, --. Basta! gritou. Não mais me afronteis! Fazei de
espero levarmos a bom termo o nosso entendimento, disse ele, mim o que quiserdes, mas não me insulteis!
sentando-se.
- Eu não vos insulto. Venho tratar convosco de um
Sinistramente calmo, colocou sobre a mesa uma prancheta fato concreto, no qual podeis influir decisivamente.
de madeira, gravada com sinais cuneiformes.
- Vim aqui, minha querida, assinar em vossa presença O rei estava rubro de emoção, e o suor corria-lhe em
este real decreto. Lede-o ! bagas pelas faces, quando· se lhe acercou a escrava núbia, com
duas taças de refresco, numa: salva de ouro. Ele tomou uma
Ela tomou a prancheta e leu. Contraiu-se-Ihe a fisiono-
delas e sorveu-lhe o conteúdo, com sofreguidão. A escrava
mia com um vinco na testa. Fitava-a o rei insistentemente,
retirou-se a um sinal de recusa da rainha; cuja indignação
ela, porém, conservou-se calada.
chegara ao auge.
- Eu quero que assineis comigo esse importante ato do
meu governo. - Tripudiais sobre a nova vítima da vossa sanha! Nem
o tigre da Hiroânia o.u o leão do deserto é mais sanguinário
- Os decretos reais levam apenas a assinatura do rei. que vós, destruidor de povos, exterminador de multidões. Já
Não me compete assinar, respondeu ela secamente. vos habituastes à carnificina e necessitais de novas vítimas
Após breve silêncio, o rei começou a falar. para reavivar nas vossas narinas carniceiras o cheiro acr~ do
- Apurei, minha querida, a grande traição desse indiví- sangue. Matai-me, também, se vosapraz, que não levare! ne-
duo, acusado de amante da rainha. Quero, pois, que, com a nhum pesar desta vida.
vossa assinatura a esse decreto, demonstreis a vosso esposo Chamsi-Adad sentiu-se empolgado pela beleza desvairada
a inverdade da tremenda acusação. Essa assinatura confirmará de Samura-mat. Ele não conhecia a misericórdia, mas era
a vossa inocência. um bravo e admirava sinceramente todo ato de coragem. Era
- Se eu assinar, a afirmativa da minha inocência perante um obcecado adorador da sua consorte e, intimamente, lasti-
vós importará na perdição do acusado, quando a minha valerá mava a eventualidade de perdê-Ia. Admirava-lhe o gênio ad-
pela dele. É uma ignomínia que me propondes. ministrativo, não menos que a beleza· fisica. Quando a viu
- Que vale a vida desse homem num episódio de reis? transfigurada pela indignação, sentiu-se subjugado e mudou
No embate das nações perecem milhares de indivíduos, e va- de tática.
mos ter escrúpulo em relação à vida de um único homem? - Perdoai-me, divina filha da deusa, se vos ofendi. Que·
- Eu jamais assinarei esse documento, por ignominioso. branta-me a vossa ira e temo a vossa vingança. Eu vim
- Confessais, então, a vossa culpa? aqui para vos propor uma solução honrosa,. mas prefiro t~an­
- Não confesso coisa nenhuma! sigir. Não quero perder-vos, porque fazels parte da mmha
- Entretanto, deixei para assinar o decreto convosco, cer- fortuna política. Ademais, amo-vos entranhadamente. Man-
to de que isso vos causaria alegria, pelo ensejo de castigar o darei embora ess·e homem, contanto que fiqueis comigo. Que-
caluniador. Vede que ato moralizador: "Nós, Chamsi-Adad ro que sejais somente minha; por isso ele não poderá per-
e Samura-mat, sua esposa, senhores do mundo, reis da Assíria manecer aqui.. Dizei-me que concordais com esta solução e
e de Acad, condenamos o caluniador e traidor Lécon, coman- que sereis minha, unicamente minha.
dante da guarda do paço da rainha, à morte por esquarteja- Chamsi-Adad atirou-se aos pés de Samura-mat, a beijar-
mento, depois de evirado. Cumpra-se este decreto na presença lhe as mãos. Não era mais o déspota e senhor absoluto, mas
dos reis e da corte". submisso vassalo.
O rei encarou-a com maldade, a perscrutar o efeito. -..: Não concordo com proposta nenhuma e digo-vos ainda:
Samura-mat mal continha a sua indignação, mas à violência do não vos aceitarei mais como meu marido. Com o meu eleito
insulto que o rei lhe atirou, explodiu: irei para bem longe daqui, onde não ouça falar no vosso exe-
94 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 95

crado nome. A menos que nos queirais matar a ambos. Samura-mat assistiu perplexa a esta cena e não se tinha
caso, morrerei contente. (linda refeito do susto, quando Lécon irrompeu, na sala, à
- Dizeis a verdade? perguntou ele, apatetado. Serei tão testa de numeroso troço de soldados.
abjeto, que preferis a morte a ficardes a meu lado? 1\ ;..nca Chegou a vez de se espantarem os agressores do rei, por-
ninguém se atreveu a falar-me assim! ... que uma voz sonora os intimou.
Profundo silêncio interrompeu este diálogo, e eles se fita- - Rendei-vos, traidores!
vam em desafio. Por fim, o rei levantou-se resoluto, mas - Traidores? perguntou o chefe do bando revoltoso.
empalideceu e levou a mão à garganta. Um grande gemido Procedemos por ordem vossa.
irrompeu-Ihe do peito ao gesto contorcido da dor causada pelo
veneno, ministrado pela escrava. . - Calai-vos! trovejou Lécon.
- Pois bem, ides ambos morrer de forma ignominiosa. - Companheiros, fomos vítimas de uma cilada. Fu-
Hei de lavar no vosso sangue a minha honra ultrajada! Hei jamos!
?e saciar nos vossos ais o meu ódio e a minha vingança, mulher Os conjurados debandaram em direção às saídas, mas as
Ingrata, que do nada elevei ao trono! Não sois digna de portas estavam guardadas.
viver, ocultando em tão harmoniosas formas uma alma de E a voz de Lécon ecoou.
hiena.
- Matai-os a todos!
- Não vos temo! gritou ela, triunfante.
Ele correu a defender a rainha, tl111uanto se procedia à.
Nesse momento, irrompeu na sala um magote de soldados chacina. Alguns dos perseguidos tentaram vender caifo as
aos gritos. vidas e faziam frente aos perseguidores. Após breve combate
- Abaixo o rei! Abaixo o rei! tombavam varados pelas lanças. Um dos revoltados, fugindo
Chamsi-Adad compreendeu logo a situação e dirigiu-se aos à perseguição, investiu para Lécon.
soldados amotinados. - Traidor. és tu, que nos concitaste ao crime, gritou,
- Quereis agredir o rei? mandar-vos-.eÍ enforcar a todos, raivoso. Vais pagar caro a tua felonia!
infames traidores! Atirou-se como louco, mas encontrou enristada a espada
- Traidor és tu! de Lécon, que lhe penetrou pela 'boca, apontando na nuca.
- Traidor da rainha! Os cadáveres dos amotinados jaziam em desordem sobre
- Viva a rainha! um lago de sangue, misturados às lanças e espadas.
- Viva a rainha!
Gente, atraída pelo alarido dos combatentes e pelo entre-
- A ninguém mais enforcarás! choque das armas, surgiu em todas as portas. Lécon, levan-
- Avante, companheiros! gritou um oficial, encabeçando tando a espada tinta de sangue, gritou bem alto:
a agressão. Morte ao rei!
- Viva Samura-mat!
Chamsi-Adad desembainhou a espada e pôs-se em guarda.
De um salto, encostou-se à parede, visivelmente transtornado Uma grande aclamação saudou-a.
pelo efeito do veneno. Os revoltosos o cercaram agressivos, Os presentes despiram as capas que, estendidas no chão,
e, diante da superioridade numérica, inútil foi a resistência, permitiram que a rainha passasse sem manchar os pés na
porque muitas lanças se enristaram contra ele e o golpearam. sa.ngueira.
Ele amoleceu, morrendo, mas o seu corpo ficou pregado à Lécon mandou identificar os mortos e verificou que o
parede pelas lanças que o traspassaram. A medida que elas comandante dos assassinos do rei não estava entre eles. Pro-
se afastavam, foi arriando até ao chão, com as cesuras a bor- cedeu à busca em todo o palácio, mas o evadido não foi en..
botarem sangue. contrado.
96 CAMILO CHAVES

A notícia 'correu, celeremente, pela cidade, e o povo aglo-


merou-se em frente ao palácio. Corriam várias versões sobre
~ tragédia., Atribuía-se aos sublevados o propósito de matar
o rei e a rainha, mas a intervenção imediata de Lécon con-
seguira salvar esta.
CAPÍTULO QUARTO
Os generais presentes na capital e os VlZlres reuniram-se
no próprio palácio da rainha e resolveram proclamar rei ao
príncipe Adad-Nirári, com cinco anos de idade, e a Samura- LÉCON
mat como regente do reino até à maioridade do novo rei.
Nesse mesmo dia, perante a multidão convocada, a rainha,
o reizinho e os vizires presidiram à solenidade da proclama- Na minoridade de Adad-Nirári, Sal1lura-mat exercia a
ção. Samura-mat empossoucse no cargo de regente e rece~eu realeza em toda a sua plenitude. Afirmava-se nela, desde logo,
homenagem de todas as forças e de todos os grandes do remo aquele gênio político que havia de levá-Ia às culminâncias do
da Assíria. poder e da glória.
Remodelava os quadros administrativos, selecionando va-
lores, criando escolas, fazendo prosélitos. Os elementos duvi-
dosos eram substituídos por outros capazes, que lhe ficavam
,dedicados. Para vizires ou chefes dos vários ramos da admi.
nistração, escolheu pessoas qualificadas no meio, entre as quais
o fidelíssimo Uakim, no posto de grão-vizir que, nas ausên-
cias dela, a substituía. É sabido que ela foi grande viajora,
tendo percorrido todos os cantos do seu vasto império.
Procurou estabelecer com Babilônia, a eterna rival da .As-
síria, um regime de boa vontade e inaugurou política de melhor
entendimento com os aliados e países conquistados.
Mas a segurança do reino exigia constante vigilância. A
política de agressão, praticada habitualmente pelos reis da As-
síria desde os primórdios, criou em toda parte Ulll clima de
desconfiança e odiosidade, que não podia, de Illomento. ser
dissipado, principalmente quando, à testa da governallça, estava
uma mulher, supostamente fraca e infIuenciável por aventu-
reiros. Portanto, a trégua subseqüente à morte do .rei Chamsi-
Adad e ao advento de Samura-mat devia ser e foi, cfeliva~
mente, empregada em preparativos bélicos e aclestramento dos
exércitos acantonados em pontos estratégicos.
Antes, o rei era o comandante único, mas, agora, impu-
nha-se a designação de um chefe para as forças armadas,
destinado a ganhar particular importância, como autoridade
imediata à rainha. Esta não lhe podia escapar ao domínio,
porque o poder do tártan era imenso,. e à sua mercê ficava
toda a segurança nacional. Ainda perdurava na memória de
98 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 99

todos a decisiva autoridade de Assurdáian, tártan durante a ço as minhas sugestões e, não raro, adotava as minhas idéias.
. velhice do rei Salmanazar IH, o qual, à custa de uma suble~ Segundo a organização do reino, é o rei comandante supremo
vação do legítimo herdeiro do trono, impôs a sucessão em do exército, mas Adad-Nirári é ainda muito pequeno para
favor de Chamsi~Adad. Tratava-se, portanto, da escolha de assumir tão pesado encargo. Durante a minoridade, a rainha-
um rei de fato.' mãe foi escolhida para regente, representando (,' rei, ou melhor,
tornando-se a pessoa do próprio rei. É ela, portanto, a ver-
Gloriosos generais, ilustrados por grandes feitos militares
dadeira comandante das forças armadas, e certa estou de que
camQ<lnhas de Chamsi-Adad e Salmanazar, seu pai, puse-
1J$l.S
não vos decepcionará quanto à sua capacidade. Senhores vi-
ram-se e~ campo para a obtenção do cobiçado pósto, mano- zires e homens de prol do reino, eu não abro mão das minhas
jJrandoelementos de influência, intrigando, subornando, pro- prerrogativas, investida, como estou, do poder absoluto da rea-
metendo recompensas. leza, conferido pelos deuses tutelares do império. Isto não
A opinião pública propendia para determinados nomes, impede que se nomeie um imediato no comando. Enquanto
como conseqüência da ebulição das ambições,' criando-se um eu ultimo os trabalhos de reorganização do reino, o tártan
estado alarmante e incomodativo, pela perspectiva de revoltas dirigirá os meus exércitos. Estais convocados, por ordem mi-
militares. nha , a manifestar -vos sobre a momentosa escolha desse sub- .
chefe militar. Fi)i esta escolha, em todos os tempos, pnva-
Urgia, pois, solucionar a questão. Ninguém ._
tiva atribuição dos reis, mas, sem abdicar desse direito, fiel
pensamento de Samura-mat, porque ela alimentava a aspIraçao
de todos os pretendentes, incutindo-lhes a esperança de sua apenas ao propósito de receber a colaboração de t~dos ~s ho-
mens responsáveis, desejosa de inaugurar um regmle hberal,
preferência. Convocados seus vizires, con~e~hei~os, g~nerais e
na nossa gloriosa nação, quero ouvir-vos as sugestões. ?esejo,
homens de prol do reino, ela mesma presIdIU a movImentada
sinceramente, que a investidura recaia sobre um autêntIco ex-
assembléia. Os grandes generais apresentavam-se aparatosa-
poente da mentalidade guerreira, que prometa à Assíria um
mente, como esperados beneficiários do dia, ju!~ando-se cada
prestígio jamais alcançado na sua história. Coincidem, no
qual.o preferido. no cotej? para o prim:do mIhtar. Che~o? fastíaio da nossa importância militar no mundo, retumbantes
a ramha ao recmto palpItante de emoçao, com a ma~~l1Í1~
cência do seu poder. Cercava-se de grande aparato mIhtar,
glóri~s que, neste momento, enobrecem imponentes figuras do
meu exército, aqui presentes. Espero que o acerto da escolha
ao sentar-se no trono de marfim, incrustado de ouro. Lécon,
nos proporcione novos motivos de orgulho e dominação. Mani-
revestido das insígnias de general, postava-se-Ihe ao lado, assim
festai-vos!
como os vizires. A ansiosa expectativa, que angustiava o am-
biente arrefeceu o calor das homenagens e aclamações. O Houve um momento de silêncio, denunciador da trepidação
silêncio era apenas violado pelo movimento cadencioso dos sol~ ambiente.
dados. - Gloriosa rainha, disse por fim o grão-vizir, abrindo os
Inteiramente calma, ela encarou a turba expectante. debates. Queremos agradecer-vos a magnanimidade no que-
rer ouvir os vossos fiéis súditos, em tão relevante assunto.
- Grandes homens da Assíria, aqui reunidos, eu vos
Compete a Vossa Majestade a designação do tártan, conforme
saúdo! disse. Enganai-vos se' julgais faltarem à rainha ânimo
atribuição privativa dos nossos reis e senhores, assim como
e càpacidade para comandar. Ao assumir a regência do reino,
não se poderá efetuar qualquer escolha sem o vosso consen-
investi-me do dever e da coragem de exercer o governo em
timento. Entendo que nos cumpre, apenas, alvitrar e lembrar
todas as suas modalidades. As atividades pacíficas da gover-
nomes, enquanto não se fizer ouvir a vossa palavra, que, de
nança, tenho-as desempenhado a contento. Na guerra contra
qualquer forma, será acatada e cumprida. Proponho fique
a Bactriana, demonstrei minha sagacidade no indicar e pro-
estabelecido, como preliminar, completa submissão e aplauso de
jetar o plano da vitória. Chamsi-Adad tinha em grande apre·
todos à vossa vontade soberana e irrecorrível. Sendo único
100 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 101

o posto a preencher, muitos são os nomes de valorosos ge dos oficiais, cercando os amotinados. Estes, sentindo-se per-
rais capazes de conduzir vitoriosamente a máquina militar didos, aquietaram-se.
Assíria. Aqui está o comandante do exército, que guarda - Haveis procedido como chacais, diante da rainha, nos-
fronteira com Babilônia, experimentado cabo de guerra. sa. gloriosa senhora, gritou o grão-vizir. Estais todos presos!
Grandes aclamações acolheram esta alusão ao chefe pres - Sou um chefe de ex,ército e não posso ser preso por
tlgioso. um civil e por ninguém mais a não ser a rainha! exclamou
- Vejo ali, continuou, o general guardião dos limite o general Teerazar. .
com os países do norte, cheio de títulos heróicos ... - Estais preso em nome da rainha! retrucou o grão-
Partidos dos entusiastas do valoroso soldado, ecoara VlZlr.
gritos ruidosos de aprovação às palavras do grão-vizir. Imediatamente, um grupo de soldados cercou o excitado
- Acolá, está o bravo defensor das lindes do deserto guerreiro, que esbravejava com ameaças de sublevar-se e trazer
bem próximo, o denodado governador da Síria, assim com os seus soldados ao pé de Nínive. Foi ele conduzido aos em-
presentes estão outros e muitos generais, gara?tidores do pres purrões para fora do recinto.
tígio e poder da nossa divina soberana. H:s!to em apontar Os outros, mais exaltados, acalmarq.m-sediante da reso-
nome mais categorizado, tantos são os eqUlvalentes e merece.. luta atitude do grão-vizir. Em severo contenho, mantinha-se
dores. Eu acatarei a designação da nossa onipotente rainh Samura-mat, a ditar ao escriba que lhe estava ao lado.
e senhora, cuja sabedoria tem o beneplácito dos deuses imortais. Restabeleceu-se o silêncio e' todos ouviram, submissos, o
Sabia Samura-mat de antemão, da grande cabala que decreto real pela voz estentórea do arauto oficial.
havia em torno de non;es em evidência, e a indicação sumária - O,.uvi, habitantes de Nínivee do Império, a palavra
do seu preferido podia assumir feição impositiva e deflagrar, irrevogável da rainha, nossa augusta senhora! Ouvi! "'Eu,
em rebelião. Preferiu convocar todos os comandantes e apro- Samura-mat, rainha da Assíria, por vontade de Assur e dos
veitar o seu afastamento das bases para enfraquecê-los e do- deuses imortais, usando das atribuições a mim conferidas, no-
miná-los. meio tártan dos meus exércitos o general Lécon e ordeno que
- Consinto manifesteis as vossas preferências, facultou todos o acatem e obedeçam como se fora eu mesma". É a
ela, maliciosamente. voz da rainha que eu, arauto real, transmito a todo o povo
Levantou-se logo um jovem general, que entrou a fazer da Assíria para que se cumpra.
o panegírico do seu chefe, o general Teerazar, cuja glória Na mesma hora foram destituídos todos os comandantes
era o orgulho do exército. Projetou-o como afortunado guer- das guarnições frontdriças, e nomeadas, em substituição, ofi-
reiro, jamais derrotado e primeira figura militar da Assíria. ciais novos, reconhecidamente dedicados à rainha.
Houve protestos na assistência, e outro general lembrou o Lécon, apesar de jovem, era dotado de grande tato e
nome do governador da Síria, cujo cargo lhe consagrava o compreensão nos negócios públicos, tornando-se preciosa a sua
mérito e capacidade. Sob o estrépito da reprovação. de gran~e colaboração como vínculo entre a rainha e seus auxiliares.
número de assistentes, ele o apontou como a personalIdade maIS Além disso, adquirira ascendência sobre os oficiais mais moços,
destacada do exército. fato que 4eu ao governo feição de firmeza e coesão.
Enfim, nomes outros surgiram em cotejo com esses e Atirou-se ele, a fundo, ao trabalho de preparação e ades-
outros cabos-de-guerra, estabelecendo-se enorme vozerio e al- tramento dos exércitos, principalmente em Nínive e na base
tercações, com evidente desrespeito à rainha. Esta se manti- de Calá, restabelecida sob o comando do general Beb-Alib,
nha impassível. seu amigo e companheiro.
A competição entre os vários grupos tornou-se violenta, Previstas estavam complicações com os países sujeitos. O
a despeito do alarido das trombetas, visando a abafar o tu- primeiro gesto de rebelião partiu da Síria, inquieto país das
multo. A guarda real irrompeu no recinto à voz imperativa imediações dos montes Líbano. Esta nação, ciosa da sua li~
102 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 103

berdade, mas sempre oprimida, era uma pedra no antecedência, ocupar os caminhos do deserto, impedindo a tra-
truculentos reis da Assíria.· A sua submissão, dificilmenlte vessia dos correios. A corte de Samura-mat foi apanhada de
realizada, era mantida à força de repetidas expedições repres- surpresa.
sivas, desde os tempos de Salmanazar e de Chamsi-Adad, seu
filho. A estratégia dos assírios consistia em atacar logo os paí-
ses inimigos, visando a aproveitar o desconcerto na organização
O povo assírio, já foi dito, era amante da gl6ria e da econômica dos mesmos, produzido pela invasão e pelo saque.
grandeza. Procurava dilatar as suas conquistas, com o obje-
A guerra defensiva lhes repugnava ao gênio militar, e, cons-
tivo de impor aos vencidos contribuições que lhe sustentassem
trangidos, agora, a se recolherem à capital, sentiram-se deso-
o poderio militar e o fausto dos seus reis e magnatas. Nação
opressora e odiada, não cogitava, no seu processo de conquis- rientados.
ta, de aniquilar as instituições. dos vencidos, contanto lhe acei- Nínive era uma fortaleza inexpugnável, graças às altís-
tassem as imposições. Não lhes demitia sequer os soberanos, simas muralhas que a circundavam desde os tempos mais re-
contentes de serem poupados e enumerados entre os vassalos. motos. O fracionamento dos exércitos pelas fronteiras não
Destituída de ambição, no campo das atividades comerciais, permitiu rápida concentração na capital, a não ser a da guar-
cultivava os seus pendores guerreiros para a conquista de novos nição do quartel-general em Calá, trazida incontinenti por Beb-
territórios e para satisfação das suas vaidades heróicas. Alib, seu comandante.
O povo sírio, posto que mais fraco militarmente, tinha Os coligados, sem demora, puseram cerco à formidável for-
grande personalidade histórica e mal suportava a s~serania taleza, mas verificaram a impossibilidade de conquistá-la, a
dos déspotas da margem do Tigre. Benadad lII, ftlho de não ser pela fome. A agressividade dos assediados não permitia
Hazael, notabilizara-se pelas façanhas guerreiras e pelas suas descanso aos adversários, obrigando-os a manter vigilantes to-
qualidades pessoais e granjeara ascendência sobre os povos mais das as suas forças, em frente às muralhas, porque, quando me-
fracos, como os da Fenícia, Iduméia, Judéia, Filistéia e outros, nos esperado, abria-se uma porta por onde irrompia um troço
que lhe ficavam próximos. de combatentes a desorganizarem as obras de sítio, com grande
Desde longa data, Síria e Assíria disputavam, com sorte dano e contrariedade para o comando aliado. Neste gênero
vária, a hegemonia dos semitas do Mediterrâneo e da penín- de escaramuças, sobressaía o general Beb-Alib, apelidado "o
sula arábica. Hazael, pai de Benadad In, como grande rei furacão", pela violência de suas sortidas. Conseguido o obje-
que foi, elevara o prestígio do seu pais, e com dificuldade Sal- tivo de destruir uma trincheira, um parapeito, incendiar um
manazar e Chamsi-Adad lhe limitaram a ambição. O filho de grupo de torres de assalto ou uma concentração de máquinas
Hazael lhe seguira os métodos e a política de inquietação, que de arremesso, recolhia-se com os seus à cidade, fechando à
ocasionavam sobressaltos aos vizinhos, notadamente aos reinos cara dos perseguidores as pesadas portas de bronze. Com isto,
de Israel e Judá, conforme o testemunho das escrituras sa- impossível se tornava o assalto geral.
gradas dos judeus.
Passado algum tempo, verificou-se, na praça sitiada, rá-
Não quis, pois, Benadad perder a oportunidade desse pe- pida diminuição de vitualhas, porquanto a surpresa do ataque
ríodo de transição por que passava a Assíria, para sacudir a não permitira maior abastecimento. Debalde, em suas reu-
odiosa suserania. Conseguiu facilmente ,encabeçar uma coali- niões, os generais assírios procuravam remediar a situação.
zão, com a solidariedade· da Fenícia e dos reinos circunjacen-
Benadad, experimentado como era, já previra o desfecho
tes da Iduméia, Filistéia e outros.
da luta e prelibava o sabor da vitória. Prometia destruir,
Quando chegou a Nínive a notícia da aproximação dos de vez, não somente o poderio militar, mas o próprio povo assí-
exércitos coligados, estes estavam atravessando o Eufrates, a· rio, reduzindo Nínive a um montão de escombros. Cumpria,
marchas forçadas. Benadad tivera o cuidado de mandar, com apenas, esperar.
104 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 105

Entretanto, dentro da praça, havia uma fe ~ Isto prolongaria a guerra, se os obrigássemos à reti-
que mantinha inquebrantável a resistência. Samura-mat multi- rada para os seus redutos distantes. Julgo mais acertado pre-
plicava providências, organizando serviços públicos, estabelecendo cedê-los em suas pátrias, obrigando-os a correrem em socorro
o racionamento da alimentação, disciplinando o povo a coope- delas. Então, destruí-Ios-emos entre dois exércitos, vós, pela
rar. Não faltava nunca nos pontos de maior encarniçamento retaguarda, e eu, pela frente.
da batalha, animando os combatentes, e onde ela aparecia, to- - O essencial, disse o seu contraditor, é reunir os nossos
mavam incremento as atividades da defesa. exércitos e trazê-los para a luta. Poderíamos nós prolongar
No conselho de generais, Lécon encarecia a necessidade de a resistência por mais alguns meses? O vosso plano está con·
se promover uma reação capaz de interromper o cerco. ' dicionado a isso.
~ Os inimigos, muito sabiamente, adiantaram-se na inicia- - Nínive não se renderá! retrucou Lécon.
tiva, dizia. Vieram trazer-nos a guerra, dificultando-nos a ~ Quem o garante?
defesa. Observai que aos países de onde vieram, cumpre-lhes ~ Eu! afirmou Samura-mat.
apenas a obrigação de sustentá-los com víveres e reforços de Estava Nínive situada à margem do rio Tigre, mas, por
soldados, enquanto nos debatemos na toca das nossas muralhas. sua vez, era atravessada por um afluente deste rio, denominado
- Que pretendeis fazer? perguntou-lhe um dos compa- Kussur. .Aproveitando-se da calmaria da madrugada, quando
nheiros. as sentinelas dormitavam, Lécon seguiu sutilmente ao longo
-Fazer como eles, levar a guerra aos seus países, às da correnteza, até alcançar o leito do Tigre. A margem estava
suas capitais. fortemente guarnecida, mas o tártan, insinuando-se pelo canal,
- Não vejo meios. Perdemos a iniciativa. passou pelo inimigo, tranqüilamente, como se fora umamon-
~ Estais enganados. Temos forças dispersas que podem toado de vegetação a rodar. Alguns quilômetros abaixo,pôde
constituir um exército. É mister. reuní-Ias. alcançar barranco. De dia, mantinha-se oculto nas moitas de
- Como chegará a elas a ordem para a concentração? tamareiras e, à noite, iniciava a marcha em direção à cidade
Estamos inteiramente cercados. de- Arbelas, nas fraldas da cordilheira. Assumiu o comando
- Alguém, devidamente credenciado, tem que capitaneá- do destacamento desta cidade e expediu ordens às guarnições
las. da fronteira da Armênia e da Média para que marchassem
- Quem há de ser? rumo ao ocidente, através do Eufrates, e fossem aguardá-lo
- Eu! disse Lécon. na região de Amaur, nas proximidades da cordilheira do Lí-
- Ficaremos sem o nosso comandante? bano, próximo à Fenícia.
- Dirigir-vos-á o general Beb-Alib. Com grande rapidez, marchou Lécon para o sul, engros-
- É muito jovem, objetou Samura-mat, tentando d!s- sando seu exército com forças das guarnições fronteiriças do
suadi-lo. Elam e da Caldéia, onde estas eram mais numerosas. Atra-
~ Mas é muito bravo, respondeu Lécon. vessados o Tigre e o Eufrates, entrou pelo deserto de Kedar,
- Impossível romper o cerco! disse ela, numa última ten- em direção à Fenícia e à Síria.
tativa. Nesta travessia, capturava as caravanas de abastecimentos
- Hei de consegui-lo. do exército de Benadad e aprisionava os reforços que lhe
- Que pretendes fazer? eram mandados. Em Hamat, fez junção com as forças, sob
- Começarei por cortar as comunicações dos invasores o comando de Amoi, que, pelo norte, haviam costeado o Me-
e seguirei, pelo caminho que trilharam, a atacar-lhes as capi- diterrâneo e as montanhas de ligação do Líbano com o Amanu.
tais desguarnecidas. A invasão apanhou de surpresa tanto a Síria como a Fe-
- Por que não 'correis logo a atacá-los aqui, obrigando-os nícia,cujas tropas estavam empenhadas na expedição de Be-
a levantar o cerco? Libertar primeiro a nossa capital! nadado Lécon, em marchas fulminantes, apresentava-se diante
106 CAMILO CHAVES
SEMfRAMIS 107

das cidades em pânico, que se rendiam sem resistência.


apoiavam aos muros para a escalada, e as torres de madeira,
aconteceu a Biblos, Sidon e Tiro. Submetida a Fenícia,
rodando impelidas por soldados, se aproximavam das ameias,
vessou o Líbano ,e surgiu diante de Damasco, capital do
para os combates corpo a corpo, ela empunhava a lança, a
de Benadad. Sem meios para resistir, capitulou.
repelir o· assalto, e, muitas vezes, foi vista segurando caça-
Começaram a chegar, sem tardança, as delegações dos rolas de cobre, a derramar sobr,e os adversários. o líquido ebu-
países da coligação que iam submeter-se: a Filistéia, o Edom liente e mortífero.
e as tribos árabes do deserto vizinho.
Nas escaladas, a fim de impossibilitar a visão dos inimi-
Para o tártan, escassas ou nulas eram as notícias de gos amparados por enormes escudos, recorria-se ao emprego
nive, mas, por seu turno, Benadad alarmava-se com a inter- da areia candente.
rupção de suas comunicações com a pátria. Impacientava-se
- Coragem, valentes soldados! gritava ela. Matai sem
com a prolongada resistência da cidade, intimada várias vezes
misericórdia! Jogai-os de costas de cima das escadas! Aten-
a render-se. A prudência o aconselhava a levantar o assédio
ção ! A torre vem contra a muralha! Matai! Não escape
e a correr em auxílio do seu reino, não fora aparecerem
nenhum inimigo! Quem matar mais, eu o farei rico ! Avante!
indícios de esgotamento da resistência. Prisioneiros capturados
revelavam o estado de penúria, decorrente da falta de ali- Despreocupada de ostentação, Samura-mat continuava a
mentação. Diziam que não se dera ainda o colapso, em vista percorrer as defesas, acompanhada de mulheres, a animar os
da oposição decidida de Samura-mat, que sustentava o ânimo combatentes, exemplificando audácia, acudindo os pontos fra-
dos combatentes. cos, socorrendo os feridos.
Havia seis meses, Nínive se agüentava heroicamente con- - Chegai para a frente, meus bravos! dizia ela ao passar.
a
tra os assaltos do inimigo. Estava aparelhada resistir muito Não vos afasteis das ameias.
- Conduzimos setas, senhora.
mais tempo, tal a fortaleza das suas muralhas, mas a fome
invadiu as casas, apesar do racionamento imposto como me- - Eu e as mulheres transportaremos as setas e outros
dida de salvação. Os próprios combatentes tinham reduzidas materiais. Ide para o combate!
as rações, e estavam sendo abatidos os últimos cavalos, bovinos No percurso, havia sempre feridos a gritarem de dor.
e camelos. De quando em vez, para maior pesadelo, che- - Coragem, meus bravos! Não desanimeis. Aqui esta-
O'avam
b do lado contrário notícias de vitórias sobre Lécon, e mos para socorrer-vos.
até sua morte foi anunciada com estrépito. Em um momento, cercados pelas mulheres, recebiam cura-
Samura-mat ouvia impassível, mas nos conselhos de gene- tivos de urgência, que os acalmavam.
rais continuava irredutível. Naquele dia, o assalto inimigo tinha, impiedosamente, cas-
- Se ele e seus companheiros morreram, que nos resta tigado os defensores. A rainha retirou-se exausta, pensando
fazer? Morrer, morrer, também! Morrer no nosso posto de que pouco restava à cidade. Nenhuma notícia tivera de Lécon.
bravos! Teria ele morrido, segundo a afirmativa dos sitiantes?
Percorria as muralhas animando os com'batentes. A inércia caíra, com a noite, sobre os membros lassos
- Aqui, ninguém pensa em r·ender-se! dizia ela. Com dos defensores, e Nínive parecia dormir. A canseira e o
a rendição, não podéis esperar misericórdia. O inimigo jurou silêncio dominavam as trevas, com a interrupção, apenas, das
destruir, para sempre, o poder da Assíria. Sereis todos pas- vozes de alerta que se perdiam na distância.
sados a fio de espada; também vossas mulheres e vossos fi- Aos primeiros albores da manhã sanguínea, os vedetas,
lhos. Portanto, morrer por morrer, seja lutando bravamente. estacionados nas guaritas dos muros, notaram a quietude rei-
Organizava legiões de mulheres, encarregadas de alimen- nante no campo inimigo, sempre barulhento.
tar o fogo das fornalhas, onde se ferviam azeite e breu, para Tinham-se apagado as fogueiras, e os primeiros raios de
serem despejados sobre os assaltantes. Quando as escadas se sol iluminavam o acampamento abandonado.
108 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 109

Verificada a ocorrência, os comandantes contra ele todo o poder dos seus carros, aniquilando-lhe
notícia à rainha. Esta não havia dormido, preocupada guarda. O sírio era denodado lutador e atirou-se sobre o
os acontecimentos. Recebeu com alegria a boa nova e carro adversário, golpeando com a lança os cavalos. Teria
gou-se aos devaneios de exaltado otimismo. investido contra o assírio, se uma seta não lhe tivesse atraves-
- Suspenso o assédio, sinal de que Lécon não m()rr'eu tilído o ginete que, empinando, focinhou, num relincho, para
Ele vem em nosso auxílio! Vamos ao seu encontro! morrer. Ao desvencilhar-se, encontrou Lécon de pé, à sua
Beb-Alib, as nossas forças e persegue o inimigo! frente.
amigos, estamos com a vitória à vista! - Estamos em iguais condições, Benadad! gritou ele.
Beb-Alib, à frente do exército, faminto, mas alentado - Não te terno, cão peçonhento!
uma grande esperança, saiu em perseguição dos retirantes, - Defende-te!
haviam tomado o' caminho da Síria e Fenícia. Por interrné(iío Conhecidos desde Damasco, ao tempo de Oanês, sabiam-
dos retardatários aprisionados, ficou sabendo o general se igualmente bravos. Um, o rei, queria vender caro a vida
Benadad corria a salvar a pátria, acossada pelos exén:it()s em sensacional remate; o assírio, temia que alguém lhe to-
vitoriosos de Lécon. masse a glória de abater o famoso rival. Assim,. afastava
Este, depois de receber a rendição de todas as capitais os que se dispunham a ajudá-lo. A um lanceiro, que armara
inimigas, se abalançou ao ·encontro de Benadad, certo de que golpe fatal ao rei sírio, ele, de um salto, o atravessou com
ele estava de regresso, em socorro de Damasco. Antes de a espada.
atravessar o Eufrates nas imediações da cidade de Sírki, o rei Ambos, desprovidos de lanças, caminharam, resolutamente,
sírio defrontou-se com o exército de Lécon, que o esperava. a cruzar as espadas. Em'batendo nos escudos, elas tiniam, e
O tártan mandou-lhe um desafio. todos se imobilizaram, a contemplar a porfia.
- Tua pátria, Benadad, está em poder do meu exército. Saltavam os esgrimistas corno gatos, ·em botes selvagens,
Os teus aliados renderam-se às minhas armas. Não te deixa- aproximando-se ou refugindo para nova investida. Prolon-
rei atravessar o Eufrates, nem o rio Kabur, que te guarda o gava-se a luta sem decisão, aos incitamentos dos assistentes,
flanco direito. Pela retaguarda está Nínive, cujo exército mnigos de Lécon, pois os do rei tinham fugido. Houve um
vem no teu encalço. Não podem escapar. Rende-te t momento de descanso, tal a fadiga, mas, os combatentes se
Feriu-se a batalha com grande encarniçamento. Os sírios, revestiram de maior denodo para o desfecho.
à visão do extermínio, tudo fizeram para romper o cerco, - Estás perdido, Benadad! disse-lhe o assírio. Rende-te!
a fim de alcançarem a pátria, mas não puderam suportar a Poupar-te-ei a vida.
investida dos carros de guerra. Suas linhas cederam, esta- - Benadad não se rende!
belecendo-se a desordem. E recomeçaram. Primeiramente, com certa cautela, mas,
Em sua primeira prova como batalhador, depois dope- aos poucos, os movimentos de ambos se precipitavam baldados
ríodo em que se mostrara meticuloso organizador do exército no anteparo dos escudos. Lécon, com tigrino salto, caiu sobre
assírio, punha Lécon em ação todo o ímpeto da sua mocid~de. o adversário, dando com ele em terra. Desvencilhou-se do
Castigando as fileiras contrárias com a certeira visada escudo e segurou com mão de ferro o braço armado do com-
dos seus arqueiros, colocados atrás das linhas de frente, ele petidor. Imóveis, estáticos como um grupo monumental, em
mesmo, tripulando um carro, encabeçou o ataque, e produziu supremo esforço de subjugação, um procurava desferir o golpe
° desbaratamento das coortes inimigas. Densas formações de fatal, o outro, atento em evitá-lo. Impôs-se, por fim, len-
lanceiros, percutindo corno aríetes, completaram a destruição tamente, o domínio do assírio, que torcia o braço preso, torcia,
das forças organizadas. até que se soltou a espada.
Percebeu o jovem general, desde o início, ° reduto onde Benadad, abandonado o escudo, abraçou-se, com desespero,
se guardava Benadad e não mais o perdeu de vista. Acumu- a Lécon, envolvendo-se os dois em luta corpo a corpo.
110 CAMILO CHAVES
SEMÍRAMIS 111

Já não eram dois homens, mas tigres ferozes Samurat-mat aguardava Lécon, sob suntuoso dosse!, senta-
se próxima estivesse a fêmea. Empregavam, não da no trono, levantado na grande praça fronteira ao palácio real.
Os braços, as mãos, as pernas, mas as cabeças e os dentes. Apeando-se, ele subiu ao estrado e prostrou-se~lhe aos pés, no
sangue corria-lhes pelos talhos e pelas roxas equimoses. que foi obstado por ela com o estender-lhe a mão para beijar.
O sírio começou a dar sinal de esgotamento, - Salve o meu leão! disse-lhe da. As aflições que pas-
esquivar-se da sanha de Lécon, que aos poucos o domin ,':<amos estão compensadas pelas alegrias deste momento, quando
encostando-lhe as espáduas no solo. voltas como nosso salvador. O povo assírio encontrou o conti-
- Rende-te! nuador das glórias do passado e se alegra com ele. Sê, pois,
- Mata-me! benvindo!
- ~s o presente que levo à rainha! Lécon não articulou palavra; ela, colocando-o a seu lado,
O vencido foi amarrado. permitiu que todos os grandes do reino lhe prestassem home-
A batalha se transformara em carnificina, nagem. O pequenino rei Adad-Nirári, ao ver seu velho par-
fugiam em todas as direções, acossados. ceiro de brinquedos, atirou-se-lhe aos braços com grande de-
Como remate, Beb-Alib chegou com seu exército. A p monstração de alegria.
sa de guerra, em prisioneiros e vitualhas, foi total, não esc - É verdade que atravessaste a nado o acampamento ini-
pando nem um rei dos aliados que acompanhavam Benada luigo? Eu nunca pensei que pudesses virar peixe. .. Vais en-
Exultou o povo de Nínive com a retumbante vitória. Ba- sinar-me isso depois ...
dos de gente de todas as idades e condições vieram para E o menino lhe batia nas faces, amigavelmente, com as
ruas, como ébrios, a delirar, a cantar, esquecidos dos est' mãozinhas.
magos vazios. Sarriura-mat, rompendo as formalidades pro Com esta extraordinária glorificação, Samura-mat visava,
tocolares, também saiu à rua, na embriaguez da sua alegria. além da justa recompensa ao mérito, a consagrá-lo com um tí-
- Quero alegrar-me com o meu povo! Viva a Assíria tulo de equivalência real, o de salvador, para a realização de um
- Lembra-te de que és rainha, dizia-lhe o velho Sima velho sonho.
- Agora não sou rainha! Viva Lécon! Viva o her6 Nenhuma dificuldade teve ela em anunciar o seu casamen-
assírio! to com o venturoso guerreiro, e nenhuma voz de censura ou
Irmanada com o povo, cantava, dançava. despeito se levantou na corte. Todos julgaram que a belíssi-
tuava em vibrações de entusiasmo no vitoriar ma soberana era justa recompensa ao triunfador.
sua adorada e heróica rainha. Entretanto, em conselho de Estado, ficara resolvido que
- Viva a nossa salvadora! o consorte não seria rei, para ficar garantida a perpetuação da
- Viva Lécon! respondia ela. dinastia na realeza do pequenino filho de Chamsi-Adad, já
E ,passava adiante a contagiar os grupos da sua alegria. anteriormente reconhecido e proclamado. Mas, como tártan,
No dia seguinte, porém, estava ela encerrada no palácio, Lécon dominava o exército e, portanto, o país.
alcandorada na sua grandeza. Transmitiu ao grão-vizir or- Chegou, finalmente, o dia do consórcio, empolgando todo
dens no sentido de ser recepcionado consagradoramente o tár- o povo. Organizou-se cerimonial semelhante ao executado nas
tan com seu vitorioso exército. bodas de Chamsi-Adad. Desta vez, a rainha, cercada de inú-
Grande multidão foi ao encontro do herói, fora dos muros, meras jovens da nobreza, foi receber :à porta do palácio seu
e trouxe-o em delirante alarido. Substituindo os cavalos, de- noivo, que chegava com brilhante caravana. E ambos, braço
satrelados, muitos braços impeliram o carro, que ele tripulava. dado, marcharam para a grande sala, onde os convidados os
Atrás, cercados por compacta força militar, vinham acorren- esperavam. A rainha subiu ao trono, coberto de riquíssimo
tados milhares de prisioneiros, a cuja frente estavam os de dossel, e Lécon sentou-se, segundo o protocolo, em uma poltro-
maior categoria, reis, príncipes e generais. na colocada em degrau inferior, mas próxima a ela.
112 CAMILO CHAVES
IilEMfltAMIS 113
Iniciou-se o grande banquete. Serviram-se, primeir
te, as viandas mais finas e esquisitas, regadas com capitoso tamento, e podeis ver que a cidade vibra de alegria. Eu vos
nhos de uvas e de tâmaras, com intercalação de número , senhora, e ao vosso esposo, em nome de todo o Império,
danças e ginástica, muito em moda ao tempo. meu, ardentes votos aos deuses tutelares pela vo~sa perene
dade. É costume dos reis da Assíria, em momentos de
O vozerio dominante foi subitamente interrompido por ade como esta, receberem a visita dos vencidos e pri-
gores de trombetas. O arauto real ia anunciar. eiros, em exibição de sua glória. Os reis que. vos prece-
- Aos povos de Nínive, da Assíria e do império! gloriosíssima rainha, poupando-lhes as vidas, cegavam-
habitantes de Nínive! Ouvi, habitantes da Assíria! O com ferro rubro, a fim de que nenhum outrO' espetáculo lhes
habitantes do Império! Ouvi o decreto de nossa senhora a retina, a não ser a apoteQse do vencedor. Aqui está
mura-mat, soberana do mundo! "Eu, Samura-mat, rainha II rei Benadad da Síria, capital inimigo, vencido em batalha
Assíria, por vontade de Assur e favor dos deuses imortais, pelo vosso glorioso esposo, o nosso tártan. Aqui es-
claro, para conhecimento de todos os súditos .do Império e p os famosos reis de Biblos, Sidon e Tiro, senhores do mar;
os efeitos de direito, que tomo por meu esposo ao general da Filestéia, o rei dos amonitas, o rei dos edomitas, _além
con, tártan de todos os exércitos da Assíria. Que se procla xeques, príncipes e generais vencidos. Exercei, pois, (j vos-
por tóda parte e se dê conhecimento aos súditos e a todos os g sagrado furor, ó senhora nossa, para que sirva de escar-
vemos aliados e das províncias. Assinado: Samura-mat." lncnto aos vossos inimigos. .
Cessado o rumor. das aclamações, o· arauto fez semelhari Ultimavam-se os preparativos para o sacrifício dos prisIo-
proclamação de Lécon. nciros enquanto Samura-mat, depois de alguma hesitação, con-
Aprôximando-se, este ajoelhou-se aos pés da noiva e be lluItou Lécon e, com um gesto, chamou o arauto real,.. a quem
jou-lhe a mão que lhe foi estendida. Ela levantou o véü, de ditou uma ordem.
xando ver os olhos levemente oblíquos, numa atitude de inefá Benadad foi quase arrastado para o pé do trono, e quan-
vel ternura. Ele, erguendo-se, osculou-a nas duas faces. do lhe imobilizaram a cabeça para receber a ponta de fogo
- Meu querido, conseguimos, finalmente, o beneplácit nos olhos, as trombetas anunciaram uma proclamação, voci-
dos deuses para0 nosso amor. Vamos, agora, à conquista d ferada em altos brados.
mundo, que é hem pequeno para conter-nos.
- Ouvi,povos de Nínive, da Assíria e do Império! - Ou-
- Ambicionava somente a ti, divina. O que nos derem
os deuses será por acréscimo. vi, habitantes de Nínive! Ouvi, habitantes da Assíria I Ouvi,
povos aliados e vencidos I Samura-mat, rainha invencível,
A assistência aplaudia, freneticamente. a protegida dos deuses, senhora do mundo, manda dizer-vos:
Finalizava a cerimônia, quando os olhares se voltaram "Eu, Samura-mat, rainha da Assíria, pela vontade de Assur,
para o cortejo, que se movia em direção ao trono. Arrastan- senhor do universo e favor dos deuses i~ortais, declaro per-
do pesados gtilhões, vinham à frente alguns prisioneiros, cingi- doados, anistiados e lihertados os reis da Síria, Biblos, Sidon,
dos, por escárnio, de douradas coroas de madeira. Nos sem- Tiro, Amon, Edom e Filestéia, assim como seus súditos em
blantes envelhecidos estampava-se a angústia degradada dos meu poder, para que retornem, sem constrangimento, aos res-
concl,enadOs. pectivos países. Assim o ordeno e se faça cumprir integral-
Tomou a palavra o grão-vizir, enquanto os escravos con- mente. Assinado: Samura-mat".
duziam fogões portáteis, com os braseiros reverberantes a en- Benadad caiu desmaiado.
rubescer .pontas de lanças. Formou-se, entre os convivas, grande damor, oriundo da
- Augustíssima senhora nossa! Realizais, nesta hora, a surpresa do inaudito gesto da rainha. Muitos reprovavam
vossa união matrimonial com o nosso tártan, vosso venturoso a 'excessiva misericórdia, que os privava do' deleite de presen-
escolhido. O povo da Assíria associa-se ao voss() legítimo con- ciarem o suplício dos grandes inimigos da Assíria.
114 CAMILO CHAVES

- Ela é mulher, concordo. Não tem a fortaleza de


coração necessária para este ato violento. Devia mandar o
tártan passar-lhes o ferro nos olhos ... ele, certamente, o fa~
ria com prazer.
- O perdão é um atributo divino. Samura-mat, dizem,
CAPíTULO QUINTO
é uma deusa. É Istar. Está acima da nossa grosseira con~
dição humana.
- Não penso assim. Ainda nos é recente a lembrança BABILôNIA
do cerco da nossa capital. Se eles tivessem vencido, passa-
riam a fio de espada todos os habitantes. Adeus, Assíria I
Era justo, pois, que sofressem as conseqüências das suas mal- Na eterna disputa entre' Nínive e Babilônia, sucediam-
dades. se as guerras com ferocidade. Chamsi-Adad V, preoc?pa~o
Havia alguns, que gritavam exacerbados: "Mata-os I Ma- ainda com a luta interna que sustentara c~mt~a seu lrmao
ta-os !" Assurdaninpal para. garantir .seu título. ?e. reI, tIvera que en-
Benadad e os demais prisioneiros estavam como extasia~ frentar a insubmissão do reI de Babtl~ma, Mardula~balatsu­
dos sem poder acreditar no que viam. Olhando fixamente a ikbi. Foram sete anos de acidentada dlsP1;1t:-,. conclUlda CO~l
soberana na face, deixavam as lágrimas rolarem-lhes dos olhos. a vitória de Dar-Papsukal, em que os babtlomos foram deft-
Nesse encantamento, não percebiam que os soldados os liber- nitivamente derrotados, e sua capital, ocupada.
tavam dos grilhões. Pouco tempo depois, morre? Chamsi-Ad~d, e o refugia-
Benadad pediu permissão para se acercar .do trono e pros- do Mardula, aproveitando a cnse d~ ,s?cessa~ •a<: trono da
trou-se. Assíria, insurgiu-se invadindo o terntono babllomco e asse-
- Senhora, disse, sois bela como grande o vosso cora- nhoreando-se da capital. Samura-mat, de momento, teve qt:e
ção. Eu vos agradeço o haverdes poupado os meus olhos para se conformar, sem, contudo, reconhecer o novo e.stado, de COI-
que eu possa continuar a ver a VOSSa glória e bondade. Eu sas. De fato, persistia a hostilidade entre ?S dOIS palses, e a
nunca mais me sublevarei contra vós e serei vosso vassalo guerra da Síria tornou mais agressivo o reI ~ardula. .
fiel e submisso. Se este tivesse tomado posição mais deftmda no confhto
Começou a procissão dos lib~rtados. Os reis da Fenícia, em que se envolvia a Assíria, talvez outro fosse o d~sfecho.
de joelhos, lhe disseram: Entretanto, pensou Mardula em a~uardar os acont~clmentos,
~ Senhora, as esquadras fenícias levarão o vosso glo-
porque, vencedor, Benadad não. haVIa de qu~rer par~llhar co~
rioso nome e o vosso domínio até o fim da planície equórea um parceiro chegado à ultima hora. AdemaIS, o reI de. BabI-
que elas percorrem. Será este o tributo dos reis da Fenícia. lônia não se havia refeito ainda e procurava consohdar o
reino, à sua feição.
Ao sair pela mão do seu consorte, teve ela esta frase
espontânea: O casamento de Samura-mat se fizera num ambiente de
iminência de guerra, pois que as forças babilônicas promo-
- Meu querido, mmca me senti tão feliz como neste 'mo- viam distúrbios na fronteira, com evidente propósito de pro-
menta. Sou amada por ti, pelos meus súditos, pelos meus vocar.
inimigos.
Vitoriosa a Assíria, podia ela contar. com a va:sala,gem de
Benadad e seus aliados, capaz de garantIr-lhe conslderav~l .re-
forço ao exército, enfraquecido na luta .recente. E~ ~mlve,
os preparativos eram intensos, e redUZIam-se ao mlmmo as
116 CAM1LO CHAVES SEM f R A M 18 117

guarnições de fronteira e de ocupa~o dos países vassalos. perimentar a sorte dá batalha. Saiu da capital, com o objeti-
indústrias bélicas multiplicavam o t~abalho na feitura de vo de atrair os assírios para outros rumos.
teria!. Percebendo-lhe a fraqueza, encaminhou-se Lécon; com seu
~ Os as~írios não recusavam desafios, dentro da sua exército, para Babilônia, ao pé de cujos muros acampou, de-
çao gue~reIra, po~s a razão de ser do seu império residia pois de mandar uma expedição no ericalço do fugitivo rei:
assa:t~ a economI~. das nações.. A paz, para eles, significa Antes de estabelecer o cerco, apresentou-se-lhe uma dele~
penuna e fome; VIVIam do despoJo dos outros povos. gação, chefiada pelo comandante militar, a propor a rendição
- ,Este país, dizia Samura-mat, não corresponde ao m da ci?ade, o 9,ue foi ajustado. Mapdou ocupar os pontos estra-
sonho de dominação; é guerreiro demais. Precisamos de u tégicos e aprisionou as milícias da defesa, mas conservou-se ex-
nação que prospere nas atividades pacíficas do trabalho e tra-muros, à espera de Samura-mat, em caminho do teatro de
economia. Arranja-me, Lécon; uma capital como Babilôn' operações.
Níni;~ é apenas uma fortaleza inexpugnável; eu quero Ela, à frente do exército, entrou triunfalmente em Ba-
empono untversa!. bilônia; cujo povo se associou ao entusiasmo dos vencedores.
As forças militares da Assíria marcharam para o su!. Mandou a rainha convocar os cidadãos de categoria, es-
Embora bravo soldado quando era mister combater, L pecialmente os sacerdotes, os nobres e comerciantes e falou-
con adotou tática contrária aos processos assírios de fazer lhes com benevolência.
guerra. ,S~gui~~o. a orientaç~o de Samura-mat, ao penetr - Eminentes cidadãos, mandei convocar-vos no propósito
nos dommlOs InImIgos, respeItou as propriedades particula de dizer-vos dos meus projetos, relativos à vossa grandiosa me-
e dispensou aos habitantes tratamento humano, convencendo- trópole. Nenhum intuito existe, da minha parte, de danificar a
de que nenhuma aversão nutria contra eles. Batia-se contra cidade, nem tampouco de prejudicar os vossos interesses ma-
rei de Babilônia, mas não queria responsabilizar o povo pel teriais. Nas guerras, um dO$ prêmios da vitória é o saque,
seu~ atos de agr~ssão.' conform~ afirmativa em mensagens q com o complemento dos morticínios. Nada disto se praticou,
f~zIa chegar ao mtenor da capItal. Prometia grandes benef apesar dos magníficos cabedais que estão dentro de Babilônia.
CIOS e concessões aos habitantes, quando entrasse nela. Ao invés, trago comigo a bÓa disposição de colaborar convosco
Estas boas disposições impressionaram favoravelmente pela segurança dás vossas organizações e pela defesa das vos-
sas aspirações e atividades comerciais. Reconheço o grande
população, e o rei perdeu a simpatia e solidariedade de se
papel que Babilônia representa na civilização ·do mundo. Por-
vassalos, convencidos de que nada perderiam com a mudan
tanto, ao contrário de promovier-lhe a ruina, como já o fize-
de senhor. Nova proclamação, desta vez, com a responsabi
ram outros conquistadores, eu me proponho ajudar-vos em tudo
dade do nome da rainha da Assíria, chegou ao centro
o que for útil ao engrandecimento desta terra, protegida de
defesas inimig~s: Além de reafirmar as boas disposições
Marduc e dos demais gênios do espaço. Não penseis que pro-
comandante assmo, prometeu Samura-mat aos babilônios conse
ceda eu com pensamentos e projetos ocultos e hostis. Cogito
var à ~ua capi~al as prerrogativas de empório entre o ocident simplesmente, inspirada no sentimento de harmonia e de paz,
e o ?~Iente, VISto que o povo ninivita não tinha ambições' co
merCIaIS. que Assíria e Babilônia são um e único povo, separadas, até
o presente, por competições políticas. Fui provocada a esta
Consegui~, a~sim, romper a coesão dos inimigos, alcançan guerra, e aqui me encontro em conseqüência dela, pela vontade
do um dos pnmeIros fatores da vitória. Relaxou-se a discipli" de Marduc e favor de 1star, a senhora dos exércitos. Não me
na ent:-e eles, contaminados pelo derrotismo, e começaram considêro intrusa na vossa cidade; ao contrário, ela é o prêmio
deserçoes. da minha fortuna. Pois bem, ouvi-me! Eu trabalho pela união
Entre os chefes militares estabeleceu-se a intriga e a dos dois povos, para .que a Caldéia, unificada, de torne um po-
competições a tal ponto que o rei sentiu-se incapaz de deroso império. Se vós outros quiserdes ajudar-me, eu \TOS
118 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 119

prometo fazer de Babilônia um grande empório comercial e cons- Fazia-o, levada pelo pensamento oculto de facilitar aos seus
truir grandioso templo ao deus Belo, além de outros importantes auxiliares a indicação dos planos e iniciativas que acalentava em
melhoramentos. seu gênio prodigioso. Atenuando-lhes, com a lisonja, os as-
Uma grande aclamação coroou as últimas palavras da ~omos nacionalistas, pretendia, não obedientes cumpridores de
nha, e aqueles. homens partiram encantados com as promessas e, ordens, mas devotados cooperadores.
especialmente, com a beleza dela. Um . dos gene~ais iniciou a di~cussão.
Completa foi a 'submissão, e as últimas forças do rei Mar-
dulabalatsuikbi se dissolveram à aproximação do exército
e
- Gloriõsíssima rainha senhora nossa. Sentimo-nos ufa-
nos por participar' das deliberações deste grande momento da
seguidor. nossa pátria~ Dizeis bem, senhora nossa, que o Supremo Se-
Samura-mat atirou-se à remodelação de Babilônia. nhor das nações há dado de presente' ao nosso pequenino rei
mou de Nínive artífices e arquitetos célebres, um grande país, sem perda de uma só gôta de sangue. Nós
pelos reis Salmanazar III e Chamsi-Adad. Mandou con- aqui viemos provocados, dispostos a lutar. A boa sorte mais
tratar artistas e obreiros na Fenícia e em outros países para as uma vez favoreceu os nossos invencíveis exércitos, o que" deve
grandes construções que planejava. Reuniu os vizires, vin- ser atribuído ao auxilio divino. Este. favor mais se evidencia
dos de Nínive, os generais e pró-homens da Assíria e taJ.ou-lh.es. no bom acolhimento do povo vencido, que esquece velhos anta-
- Vassalos meus e amigos! Deus onipotente acaba de gónismose a ruína da sua nacionalidade. Um glorioso destino
grandecer o reino da Ass'íria com magnífica conquista, pois ~ escancara ao vosso governo, e nós nos sentimos jubilosos
nossas armas não fariam tanto, se não fosse a benevolência e pela' inovação magnânima com que nos dignificais, convidando-
ajuda do Alto. Ainda mais se evidencia esta proteção pelo fato nos· a participar destas deliberações. . Na verdade, como vas-
de termos alcançado esta insigne vitória sem a perda de um salos submissos, estamos acostumados a obedecer aos ditames
único soldado e sem derramamento de sangue. Deus, senhor emanados de nossos gloriosos soberanos. Eu, da minha parte,
do Universo, confundiu os nossos inimigos e dispersou-os. Gra- quero significar-vos, augustíssima senhora, não apenas o meu
ças lhe sejam rendidas! Hoje, todo o vale do Tigre e do Eu- contentamento, mas a minha submissão à vossa vontade, que
frates está unificado sob a soberania do nosso pequeno Adad- visa à glória. e à grandeza do povo assírio. Podeis contar com'
Nirári; isto atesta a grande destinação que o Supremo Senhor a lealdade e dedicação deste soldado, que vos acompanhará até
delegou ao rei menino e ao seu heróico povo. Aqui, nesta aos confins do mundo.
grandiosa ciqade, nos sentimos perfeitamente bem, já pela iden- Levantou-se, em seguida, o general Ibn-Iredin e falou.
tidade da língua, já pela conformação e boa vontade dos ha- - Potentíssima rainha e senhora nossa. As palavras pro-
bitantes. Em bem desta realização, que Deus nos concedeu, feridas pelo prestigioso general Ali-Balaian interpretam, pela
é mister tudo fazermos por consolidá-la, amalgamando os sen- sinceridade e calor, a dedicação do exército à sua gloriosa so-
timentos, os corações e a raça, pela liga do bom entendimento, berana. Tais são os serviços por ele prestados, tais as glórias
para que possamos levar a .efeito outras empresas entre outros que ele há alcançado para a Assíria e para si mesmo, que pode
povos e nações. Concito-vos, pois, a queexpendais parecer no falar em nome do invencível exército, do qual eu também par-
sentido da diretriz a ser tomada. Se altamente haveis contri- ticipo. Faço minhas as suas palavras, acrescentando outras que
buído para a glorificação do rei e da pátria, não prescindo da traduzam o meu entusiasmo, a minha devoção, a minha submis-
vossa colaboração nos grandes cometimentos, que se nos anto- são à autoridade da nossa divina e gloriosa soberana. Na ver-
lham. Dizei, pois, o que vos ocorre. dade, Samura-mat é um presente de Assur ao nosso povo e ao
Impressionaram profundamente as palavras de Samura- mundo. Não duvidemos de que se inicia uma nova era de
mato Contrariando o despotismo dos reis assírios, inaugurava glórias! Somente o favor dos deuses poderia glorificar e afor-
um regime de consulta e colaboração entre o governo e os sú- tunar, pelos dotes físicos e do espírito, a uma criatura humana,
ditos. ao ponto de torná-la árbitro dos destinos do mundo. Nós nos
120 CAMILO CHAVES SEMfRA.MIS 121

envaidecemos da nossa rainha e agradecemos aos deuses bilônia, do Súmer e Akad. :e uma glorificação que lhe devemos
terem mandado. e que todos, certo estou, vão prestar-lhe com entusiasmo e es-
Serenadas as vibrações· da assistência, começou a falar o pírito de justiça.
tártan, saudado com muitas palmas. Lécon era a. grande figu- Grandes aclamações consagraram a proposta do velho vi-
ra, que se projetava pelo valor e pela preferência da rainha. xir. Samura-mat .levantou-se e proferiu, sob geral silêncio.
este breve discurso.
- Companheiros de armas e concidadãos. Assistimos nes-
te momento a um dos grandes acontecimentos da história do - Fidelíssimos vassalos e amigos! Acabamos de ouvir a
mundo. Assl,lr acaba de conceder à nossa augusta soberana, a vossa unânime aprovação às várias propostas dos oradores, e
glória de um triunfo sem par. Graças lhe sejam dadas e aos quero manifestar-vos a m~nha ple~a._ aquiescência. , ~egro-me
A

deuses tutelares da nossa pátria! Grandes deliberações devem por verificar a concordâncIa de oplmao de meus suilitos.e co-
surgir desta reunião que a magnanimidade ~a rainha pr~move, laboradores com a idéia da unidade do império e adoção d~ no-
a fim de ouvir a voz dos seus vassalos e amIgos. Acabamos de vos títulos que se devem acrescentar ao nQsso queridíssimo. rei
realizar um objetivo, há séculos acalentado pelos nossos reis infante Adad-Nirári e a mim própria. Que tudo isto SIrva
e pelo nosso povo. Muitas ?U.erras se feriram por. est~ reali- de sinal e honra a esta geração que vem realizando tãograndio-
zação, sem que se lograsse exltO. Neste trato terTlt?r~al, ba- sos feitos, com a graça e ajuda dos deuses imortais. '. Agrade-
nhado pelos rios Tigre e Eufrates, não podem coexIstIr duas ço-vos a solidariedade e· dedicação. Cumpre-me,. em compt:-
poderosas nações como a Assíria e Ba'bilô~ia. _Tudo fa~a. da .mento às sugestões aprovadas, acrescentar a necessIdade· de en-
união delas, pela natureza da terra, pela sttuaçao geograflca, girmos uma nova capital para os .reinos uni~icados. ~~nive é
pela identidade de língua e de raça, pela afinidade dos seus ha- uma soberba cidade, objeto do cannho dos reIS da ASSIna. E~­
bitantes. A fortuna das nossas armas encontrou a boa von- tretanto, ela, em sua situação geográfica, em relação à amplI-
tade do povo babilônico em colaborar com a nossa rainha e aca- tude e ao conjunto do novo império, pouco pode atender aos re-
tar-lhe as ordens. Pois bem, meus companheiros! Com a clamos da administração. Nenhuma cidade se afigura tão bem.
fadada a encabeçar tão magnífico império, como est~ gran-
prévia anuência de Samura-mat, proponho que se coloque sob
o cetro do nosso rei menino todo o território banhado pelos rios diosa Babilônia, onde se encontram o norte, o sul, o oriente
Tigre e Eufrates, com a denominação de reino da Assíria e. Ba- e o ocidente, no movimento de. intercâmbio dos povos. Nela
construíremos uma ciclópica ddade, que, além de cabeça do
bilônia, e que ao seu título de senhor do mundo e reI da
império, seja, de fato, metrópole do mun~o.Este assunto .se~
Assíria se acrescente o de rei de Babilônia, doSúmer e Akad.
objeto de menção no decreto que, em dia oportunamente mdI-
Começou; em seguida, a falar o grão-vizir Uakim, experi- cl1do, se divulgará 'em toda parte.
mentado homem de governo, encanecido no serviço da pátria.
- Concidadãos e amigos! As palavras de Lécon, o tár-
No dia determinado, procedeu-se à cerimônia comemorati-
va da unificação. Em grande estrado, construído na praça~ron­
tan, encontram grande acolhida tais as ma~ifestações de apro- t€ira ao palácio real, tomaram lugar os grl1ndes .da Assíria e
vação que acabam de receber. Elas concretIzaram grande e ve- Babilônia, com suas
. fartNlias. Ao centro, a multidão' e, late-.
lha aspiração do nosso povo, a de se colocar~m, s?b o cetro do ralmente, as forças do exército. Samura-mát e o pequeno reI
rei da Assíria os territórios adjacentes aos rIOS TIgre e Eufra- chegaram escoltados por pomposo cortejo. Lécon ficou ao lado
tes. Vibrastes, como eu, à idéia de se acrescentar à glória do dela, como príncipe consorte. ..
nosso pequenino rei Adad-Nirári mais um título e uma corc:>a. As aclamações populares misturavam-se aos clangores das
Em seu nome governa com admirávef sabedoria a nossa glorIO- trompas militares, quando se alteou, dominadora,' a voz do
sa Samura-mat, a quem, de fato, pertencem os louros desta ad- arauto real a proclarnllr: .
mirável vitória. Proponho, pois, que ao seu título de regente - Ouvi-me, povos da Assíria, .de Babilônia, do Súmer
do reino e rainha da Assíria se acrescente o de rainha de Ba- e Akad! Ouvi~me, povos situados na direção do sol poente!
122 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 123

Ouvi-me, povos situados sob as constelações da Ursa rológicas, causadoras de secas e penúria. Depois de apalpa-
da Ursa Menor! Ouvi-me, povos, que primeiro recebeis rem a resistência física dos vizinhos, em golpes de força, lm-
raios do sol criador! Ouvi-me, povos que estais ao acalento punha-se-Ihes a necessidade de mudar.
constelação das cinco estrelas do sul! Ouvi-me, povos da
ra! Ouvi a palavra irrevogável de Samura-mat t "Nós, Os lagos e os mares, principalmente os mediterrâneos, ace-
mura-mat, regente do reino,rainhada Assíria, Babilônia, navan: par.a as turbas errantes com a abastança ictiológica, e
Súmer e Akad, decretamos a unificação dos reinos da .0.:,::;1,11<:1. o~ .mals aVisados e valentes plantavam-se à margem deles, defi-
e Babilônia, compreendendo todos os seus territórios e co:nquüi- l1ltIv~men!e, c~n:o ~e fossem cria espontânea daquelas águas.
tas, para ·que formem um único reino, sob a soberania A ~Ituaçao prIvIlegiada destes despertava a cobiça dos super-
Adad-Nirári, senhor do mundo, e regência nossa. Passaremos vementes g:rupos, que se lhes aproximavam das terras e das
intitular-nos reis da Assíria, de Babilônia, do Súmer e águas. Muitas raças, rodando ao azar das vicissitudes con-
e determinamos a constituição da cidade de Babilônia vi~inhavam-se, .trazendo no âmago das tendências opo;tas, o
capital do Reino Unido, Que os governos de ambos os nOJo das aproXimações e da boa vontade. Outras hordas, por-
nos, das províncias e conquistas e todas as autoridades, aCi,rce:m, tadoras de disposições benignas, por força das afinidades de
cumpram e façam cumprir o presente decreto, levando o origem, se entrelaçavam em alianças para os caldeamentos e
conteúdo ao conhecimento de todos· os habitantes da nossa transformações em núcleos mais numerosos, destinados à so-
risdição e soberania". ' brevivência.
A rainha e o reizinho receberam grandiosa Do complexo geográfico do Oriente Médio, no período
popúlar, que se transformou em delírio ao se pr<omlull:;ar originário da civilização, verifica-se a coincidência de chocantes
ato subseqüente, constante de um édito, todos confinações de raças da mais discordante procedência: semitas,
presos políticos, cujo indulto procedia da clemência espon- arianos, etíopes, industânicos, negros, negritos e atlantas.
tânea da rainha, em comemoração do grande acontecimento. Entre as várias deficiências geo-humanas das terras de ori-
Não faltou ao ato expressiva demonstração de força, com g:m so~re~s~i, além da. super~pulação de alguns grupos, o
o desfile de inúmeras coortes em pé de guerra. Uma delega- rIgor chmatlco, a propehr as trIbos para regiões menos áspe-
ção de edis e eminentes cidadãos, tendo à frente ó governa- ras, o que vem confirmar, em favor' do Oriente Médio, a pro-
dor da cidade, aprllsentou-se aos soberanos, entregando à rai- cura e preferência das inúmeras migrações, provindas de eleva-
nhà as chaves das portas de Babilônia. dos sistemas orológicos.
Ao iniciar o homem a sua marcha para a civilização, sen- O h:abitat originário dos arianos lançou, a princípio, se-
tiu-se inquieto e insatisfeito no seu habitat, pela falta de fa- gundo a tradição, as suas ondas migratórias rumo ao sul, isto
cilidades no viver. Não bastava a força de gravidade do ins- é, rumo ao Hindustão, ao planalto iraniano e aos vales da
tintivo amor à terra natal para o reter no seu rincão. Com Anatólia, antes de projetá-las em direitura ao norte e oeste,
o aumento das populações aglutinadas em clãs ou tribos, não de climas mais hostis, onde ficam os países da Europa. Fo-
mais o fartavam os produtos espontâneos da natureza, nem ram, as que irromperam no Oriente Médio, encontrarestabele··
lhe bastavam os irracionais das. selvas e dos campos. A con- cidos os povos semitas, irradiados da península arábica, menos
vizinhança com outros aglómerados humanos, ciosos da sua gle- desértica. Estas, por sua vez, já haviam suplantado povos das
ba, mas igualmente prósperos no sentido populacional, com- raças elamita e sumeriana.
primia-lhe os domínios. A vida ribeirinha dos grandes caudais ofereciam melhores
Premidos os chefes pelas dificuldades de alimentação que possibilidades de subsistência, não somente pelo recurso da pes-
dia a dia, se tornava escassa, precisavam prover ao sustento ca, como pela fertilidade das margens. Sobremodo cômoda,
das tribos nos dias magros do inverno ou nas crises meteo- também, a navegação para as atividades do intercâmbio. As
margens, alagadiças nas cheias, ofereciam boa perspectiva para
124 CAMILO CllAVES SEMfRAMIS 125
as lavouras, ainda que rudimentares, e a experiência ~itou a s invasão dos heteus que, por algum tempo, ocuparam a planí-
Ieção" das espécies cerealíferas. Compreende-se, aSSIm, a yr cie mesopotâmica.
ferência pelas bacias potamográficas, e a sua posse constlt
a mira das migrações, ·e guerras de exteffiÚnio feriram-se A escrita hieroglífica, legada pelos sumerianos, indeci-
margens dos cursos dágua. irada ainda, permite se lhe atribua duvidosa origem, mas a
Os primeiros ádvenas, pelas facilidades encontradas, sua passagem ·está fartamente confirmada pelas inscrições as-
afeiçoaram ao meio, aproveitaram-lhe as vantagens, organizaram? síricas, babilônicas e egípcias.
se socialmente ao ensejo dos problemas suscitados, padronizaram Complicava-se, pelo exposto, o complexo étnico daquela
o trabalho e estabeleceram normas e costumes. Avantajaram-se região, que continuou a receber novos conquistadores, entre
em conhecimentos e experiência, e os' povos ou tribo os quais devem mencionar-se os cassitas, que fundaram uma
imediatamente estabelecidos e vizinhos, conquanto não dis dinastia em Babilônia. Assim, os amorreus, que os antecede-
pusessem das mesmas facilidades, copiaram-lhes os modos d ram no fim do terceiro milênio.
viver. Neste esforço de assimilar, entram em conta a boa orien-
Destaca-se, entre todos, porém, a raça semita, com suas
tação dos chefes, o avanço demográfiéo por força da agluti--' numerosas ramificações, partidas da Arábia. Foram elas, cer-
nação com outros núcleos afins, em favor de maior caldeamento tamente, sob as denominações de assírios e babilônios, que,
e maior natalidade. Atingida a pletora e, numericamente for..
durante dois milênios, ócuparam o vale do Eufrates, erigin-
te, o povo empreendia a conquista do trato geográfico. apete-
do un:a civilização de grande influência para a humanidade,
cido. Favorável a guerra, ele acabava assimilando a melhor
comUnIcando-a a outros povos contemporâneos, modelando o
civilização dos vencidos e iniciava a absorção", destes, no tra-
progresso das gerações posteriores que os substituíram, como
balho multissecular do miscigenismo.
os medo-persas e outros. Nas grandiosas ddades de Nínive
O rio Nilo é um eloqüente cadinho de experimento huma-
e Babilônia, deram mostra de capacidade realizadora mas ou-
no no dissolver as diferentes etnias, que lhe disputavam as mar-
tras ainda floresceram à ação deles: Sipar, Kisch, O~is, Akad,
gens fertilíssimas, entrando na história, com elas unificada'S num
Konta e Akchad, cujas ruínas lhes atestam a importância.
tipo racial. No vale do Eufrates, entretanto, o processo
foi diferente. Primeiramente, ali aportaram os ácades ou su.. Ao tempo desta história, numerosos povos de vária pro-
merianos, assim denominados de acordo' com o nome do país cedência se apresentavam localizados na Ásia anterior. Des-
- Súmer, construindo uma série de cidades, cujos norl1es são ciam do norte e nordeste através de íngremes montanhas, onde
históricos: Nipur, capital, Dr, Druc, Larsa e Lagach. estacionavam, e ensaiavam os .primeiros passos na civilização
Os reis de Dr, no vigésimo quarto século A. c., usavam caldaica. Alguns permaneciam à margem dos lagos, como os
o título de reis de Súmer e Akad. Esse povo não era nem se- armênios e os cáldi do Drartu, assim como os medos e per-
mita nem ariano, mas provavelmente, do trono turc<J-mongó- s~s, localizados à margem do atual lago de Úrmia, que ha-
lico. A margem do rio, eles encontraram condições favoráveis VIam de representar, mais tarde, importante. papel na histó-
e, enquanto o Egito ensaiava as suas primeiras dinastias, os ria do mundo.
sumer'ianos ou ácades emergiam da barbárie e padronizavam . Dm~ das diferenças entre as civilizações caldáica e egíp-
uma çivilização, comunicada aos p~vos que os suceder~~ no d~­ Cia conSIste em que esta se aglutinava e absorvia os seus ele-
r11Ínio da terra. Drenaram os pantanos para a pratIca agn- mentos componentes; aquela se dispersava, comunicando-se a
cola e criaram sinais gráficos para a língua falada, os quais ser- outros po:,~s; humanizando-os, arrastando-os consigo na sua
viram de modelos a outros povos e raças. marcha cIvIhzadora. É que o Egito estava enquistado entre
Os elamitas-cosseus, de procedência indostânica, negróides as montanhas da Libia, da Núbia, mar Vermelho e Mediter-
talvez, foram, no fim do período primitivo de Babilônia, en- Bân~, com uma pequena saída pelo istmo de Suez, por onde
trosar-se na elaboração sumeriana, seguidos, posteriormente, pela faZIa passar as suas algaras de conquista.
126 CAMII,O CHAVES SEMfRAMIS 127

o vale do Eufrates, semelhante ao do Nilo, pela O povo:ti1ento. da região deu-se, em época pré-histórica.
tilidade e pela coincidência do regime das cheias, era, graç Nas escavaçoes maIS profundas, realizadas pelos arqueólogos
à situação geográfica, um ponto privilegiado do planêta, co cllc.ontr~m-se testemunhos da indústria neolítica, como sile;
caminho do oriente e do ocidente. Era uma espécie de aI pohdo, Imp?r~ado das, montanhas. Entretanto, os remanescen-
de todas as migrações e, ao seu contacto, os povos lhe ass tes a.r~~eol~gIcos de epocas posteriores atestam o elevado grau
,milavam a civili7.ação. A sua origem remonta à época qu de clvIhzaçao dos povos ribeirinhos.
ternária, e os dois rios, que o formam, tiveram começo apó Const~uíam-se as cidades em elevações, às vêzes artificiais,
o grande glaciário. Tem por limites naturais: a oeste, o de que as .abngavam das inundações. A cerâmica era muÍto de-
serto arábico, imenso e adusto, onde vagavam tribos nômade ~envol::lda, e, à falta de pedra, construíam-se casas e templos
e selvagens, a surpreenderem os habitantes sedentários do com tIJolos. Trabalhavam-se os metais, principalmente o co-
países limítrofes; ao norte, o planalto da Mesopotâmia, regi~ bree a prata, abriam-se canais e empregavam-se máquinas de
dos assirios; a leste, os primeiros contrafortes montanhos regar as lavouras. Encontram-se' rudes exemplares de arte
que formam a atual fronteira da Pérsia; ao sul, o geilfo Pér escultural, mas, m~it~ c~do, .~uberam gravar o pensamento
sico, o antigo mar Maratu. e a palavra com smaIS IdeologICOs ou fonéticos atestado de
Das montanhas do norte e de leste, grande avanço intelectual sobre os povos convizinhos. Isto
para construção, os metais e madeiras, se deu no terceiro milênio anterior à nossa era, quando semitas
não os produzia. adoradores de Assur, gravavam sinais cuneiformes. '
Os dois rios principais, formadores do vale, eram de na. . A causa primária desse avanço pode-se atribuir à fecun-
tureza diversa. O Eufrates, nascido ao norte do lago Ná' ?Ida~e da terra e à abundância de dois .produtos agrícolas que
re superior (Van) , pr,óximo ao monte Ararat, seguia, e mfl.mram na ~i,:ili::a:ção até aos nossos dias. O trigo' e a
grande arco, entre as montanhas da Armênia, no rumo oeste, ave.la fo\am o:lgmanos da região, de onde se propagaram ao
até descambar na plan'ície, em direção sudeste. O rio Tigre, EgIto e. a índia. ~ra base da alimentação, também, a cevada
nascido ao sul do mesmo lago, no sistema orográfico de Kar.. que, ~le~ de nutnr o homem, se empregava para. alimentar
zan, rumava com seus grandes afluentes Zabu-Elu, contraver- os ammaIs. Conta-se que, no império babilônico,erà consi- .
tente do Araxes e Zabu-Supalu, nascido nas montanhas do derada moeda. corrente muito estimada. Ademais, outros pro-
sul do lado Náiri inferior (Úrmia), infletindo, como o pri- dutos, :rue alI se afeiç.oaram, tiveram largo emprego na ali-
meiro, para o golfo Pérsico, quase confluentes. O Eufrates, mentaçao e na economia. .
com percurso de 2.165 quilômetros, apresentava menor . Não conheciam o centeio, mas produziam o milhete, o ger-
caudal que o do Tigre, cujo curso não excedia de 2.000. gehm, este por causa do óleo e apreciada bebida' cultivavam
Ambos ocupavam a orla oriental do deserto arábico, e o também, a .ta~ar~ueira. e a videira. A figueira' é assinalad~
território colocado entre eles chamava-se Mesopotâmia, planície des.de os pnmordlOs e tmha serventia ritual, como manjar ofe-
desértica, fertilizada pelos transbordamentos, nas cheias, e pelos reCIdo aos deuses. A tamareira, dom divino ao habitante do
extensos canais dêles derivados. deserto, era, pela variedade da sua utilização, a principal ri-
O Tigre, de rápida correnteza, tinha elevados os barran- q~eza do país. Generalizado o uso da cebola e, cerca de três
cos, porque mais resistentes; margens pantanosas, com' cheias mIl anos, antes da no~sa idade, fazia-se menção do cultivo
de princípios de março a meados de junho. O Eufrates, com deste pr?duto.. Assim, do pepino e outras hortaliças.
as enchentes entre meados de março e o mês de setembro, era Canlço.s .g~gantes dos canais serviam, não somente de con-
destituído quase de barrancos, o que favorecia amplos trans- dutos prOVIsonos para a água, como, reduzidos a cinzas, para
bordamentos, fertilizadores das margens. Este fato influiu na a barreIa. DêIes, que constituíam a única madeira a não ser
localização das cidades na. margem mais aJ?ta à agricultura, o a. palmeira da tâmara, construíam-se abrigos e fabrÍcavam-se
que demonstra o senso prático de seus ;primeitos habitadores~ calamos.
128 CA:MIJ;.O CHAVES SE:MfRA:MIS 129
A madeira para construção era objeto de Fiel ao seu objetivo, Samura-mat quis elevar Babilônia
proced,ia das florestas do Líbano e do Táurus, especia,ln: à magnificência, consentânea com a sua situação de metró-
o cedro, do qual se faziam encaixes das portas dos pala~lO pole do mundo, e inaugurou o período das grandes transfor-
utilidades. Os metais, como o ouro, a prata, o cobre, vmh Inações. Mandou, de início, projetar muralhas 'que a'tornas-
das montanhas circunjacentes, assim como os blocos de dior Hem inexpugnável. Seu arquiteto-mor, um fenício de renome
ou de mármore para as estátuas dos reis e dos deuses. universal, apresentou-lhe os projetos de novos canais no rio,
comércio, importavam-se pedras preciosas, principalmente destinados à irrigação de grandes áreas de culturas:
1ndia. - ~ um empreendimento que urge realizar, disse-lhe ela,
Domesticavam 'os caldeus animais selvagens, principalmen para se assegurar a abundância de gêneros alimentícios. Gente
o cavalo e o burro; habitantes das encostas das montanhas, faminta vive com raiva, e eu quero governar um povo alegre.
praticavam a indústria pastoril com os bovinos, s~ínos, ovin Ninguém é alegre se não está farto. Fica, pois, autorizado,
caprinos, canídeos e galináceos. A terra er~ mfestada, TOTUe, a tomar todas as medidas necessárias para execução
animais ferozes ou selvagens, como o leão, o bIsonte, o bufaI deste programa.
o cervo, o leopardo, a cabra; os antílopes, a águia, as serpente - Como vêdes, providíssima rainha, está tudo preparado
o escorpião, peixes e crustáceos. para se entrar em realização.
Samura-mat estava, pois, de posse de um magnífico im - Chamo sua atenção para o fato de começarem as chdas
rio, que ia ilustrar com seu maravilhoso gêni?: Começou ,~e no rio Tigre quinze dias antes que no Eufrates. Por meio do
organização, no dar os postos de responsablh~d~ a asslr.lo canal que liga os dois rios, o nosso Eufrates poderá receber
mas não tardou em admitir ao serviço os' babdomos, que maior contribuição de água, com alguma antecedência, em be-
piravam confiança. Promovia grande,: festas a fim. de ~ nefício das lavouras.
afeiçoar ao meio' e apagar as prevençoes com a aproXImaça -. É uma idéia oportuna, senhora, e vou estudá-Ia.
dos elementos das duas nacionalidades. - Procura o vizir, encarregado das obras públicas, e com-
Parã ã' "nova sede do governo, transferiram-se inúmeraS bina com ele. Mas convém ter em mente a situação 9. 0 nosso
famíliai de Nínive, entre as quais a rainhaconta~ dedicadas rio, em relação à cidade. Autorizo-o a projetar ""ã.. "~onstru­
amizades. Não tardou, também, dada· a '. sua alegrIa e gene.. ção de muralhas que contenham as águas em seu leiFo,' retifi-
cando-lhe o percurso. Assim, evitar-se-ão as inundações. Uma
rosidade, conquistasse novas afeições, principalmente no ele-
mento feminino. grande ponte ligará as duas margens. Quero, também, que se
construa um canal navegável entre o rio e o gólfo Pérsico, pois
Babilônia era uma cidade de aspecto desagradável, vítima que, o curso do Eufrates, na embocadura, se desmancha em man-
de inúmeros assaltos inimigos, que a deterioravam. No seu gues e pantanais, impedindo a navegação.
grande' reCinto bairros inteiros destruídos, onde se amontoa- , - Sereníssima rainha, o que projetais está acima de tudo
vam ruínas. Outros subúrbios· impressionavam pela imundície, o que, até hoje, se há realizado no mundo. Eu sou de uma.
nos arruamentos estreitos e habitações a derruir. Vários po- terra, a nobre Fenícia, onde se luta contra o mar para viver.
vos a dominaram em detrimento da unidade racial, e, como Grandes obras de aterro ali se realizam e outras monumentais
ponto intermediá:io entre o ocidente .e o o.riente, nela ~bu1ia construções, mas tudo aquilo é muito pequeno diante. dos vos-
um conglomerado de aventureiros, comercIantes, refugIados, sos empreendimentos. Necessário é aumentar o meu corpo de
viandantes das caravanas em trânsito e nômades do deserto auxiliares, para que o trabalho não se ressinta da falta de ação.
para a grande disputa do direito de. viver. Em alguns ;e- Neste sentido terei de recorrer à experiência de outros mes-
cantos, parecia feira internacional, onde não faltava O' colondo tres-de-obras na Fenícia.
dos abarracamentos, nem lojas improvisadas nas ruínas do
- Toma, pois, as providências para que' se não interrompa
último assédip. a execução das obras.
131
CAM:ILO CHAVES
130
_ Permiti, senhora minha,. que v~s lembre a neces.sidade escravos e homens livres. Grandes medidas foram tomadas
de aumentar o número, de 'obre1ros, P01S os duzentos ml1, que para o abastecimento dessa população suplementar, que dia a
tendes reunidos, não bastam, se quereis que tudo se processe dia aument?-va. Intensificou-se o comércio, o dinheiro 'cerria
abundante e todos se sentiam felizes na abastança.
com rapidez. d t ~
_ Isto é com o vizir Ibraim, encarrega~o . as cons ruçoes. Contudo, havia consciências onde os despeitos ferviam e
Vou ordenar-lhe que requisite às nossas provmc1as e aos nossos o nacionalismo, irredutível, trabalhava o ódio dos inconformados.
aliados mais trezentos mil escravos e gente do trabalho. . Adeptos do rei exilado, saudosos das pQsiç'ões perdidas, ur-
Cumpre, também, ter em lembrança, ó r:.0derosa ra~­ -diam vinganças e revoltas. Reuniam-se em lugares secretos,
nha o aumento do número de olarias para que nao faltem t1- noite alta, para os conciliábulos das conspirações. Sentiam-;-se
, -
jolos para as construçoes. "
esquecidos e esmagados pela vontade sufocante da rainha,
_ Tudo será providenciado. Digo-te, entretanto, que C~1- no tumultuar das suas atividades renovadoras para novos
. uais reclamo a tua atençao rumos. Conjuravam, na esperança de ressurreição do
sas maiores me mteressam, para as q b'l A • 'd de espírito nacional, com a superveniência de um acontecimento
e en enho Preocupa-me o fato de ser Ba 1 oma uma C1 a_
uen~e e ~ompacta de construções antigas e pesadas,.onde nao capaz de paralisaras possibilidades de reação. Com isso, ser-Ihes-
~ abre o oásis de 'um jardim para refrigério e ~ive:t1mento do :ia possível empolgar a iniciativa e dominar. Desesperavam-se
A' d -me a erlcontrar solução para este mtnncado pro- por verem que Samura-mat crescia na imaginação popular, como
bfe~~ d~uf:rma que perpetue a minha. mem~ria ~tra,:"és dos se fosse uma criatura divina, qestinada a transformar o mundo.
sécul;s. Eu tenho pensado :m constru1r mUltos Jardms so- Ela, somente ela, seria capaz de tanto, na sua predestinação.
bre pilares distribuidos pela c1dade. . , d' d No juízo daqueles fanáticos, a eliminação da rainha teria
_ Isto que idealizais, poderosa ramha, e obra 19 n: d j por deito interromper a transfórmaçãoque se processava.Lan-
um deus pois excede a tudo o que o homem t~m conce 1 o. çavam, nas reuniões, complicados projetos que, a 11lelhor exa-
Nem as' irâmides do Egito, que desafiam os sec~l~s, nez:t .0 me, se reconheciam irrealizáveis, diante das precauções que
rande t~plo de Jerusalém, obra imortal do ge~1~ !emC10, cercavam a rainha, pois o poder assírio era imenso, p~ra\ a fra-
:aderãó,'it8niparar-se aos jardins suspensos de Babl1oma. queza inicial, dos reacioná:rios. O recurso extx:emo· seria a
-:,' Hem, estuda estes assuntos e proje.ta-os, para .que pos- surpresa ou a traição. '
· a' los quanto antes O meu remado e mUlto curto. Havia, entre os conjurados, antigos auxiliares do último
samos r eallZ - P' ~
° •
Durará enquanto pequeno rei se torna homem. rec1samo~ soberano, conhecedores dos repartimentos e' particularidades do
andar depressa. . . h d r palácio real, que ainda servia de habitação à rainha. Um des-
_ Podeis contar comigo, gloriosíss1ma ram a, se me e- ses servidores alvitrou um- golpe 'de mão no palácio, onge se-
des meios de execução. ria ela surpreendida e morta.
_ Ser-te-á dado tudo. A estes projetos deves ac~escen- - Não temos forças, Barcaras, capazes de tomar de assal-
tar os meus dois palácios reais, um de cada lado do to o palácio, fortemente defendido, objetou 0xnais graduado
templo ao deus Belo. da roda. "
_ Tudo será feito segundo a vossa vontade.. f - Isto é eviqente, mas podemos proceder com astúcia e
_ at divulgou os seus projetos e cnoU um che e audácia, respondeu ele.
Samura m . . f de prover
desses melhoramentos, na pessoa de um V1Z1r, a ~r::r anunciar - Como?
os meios de realizaçãO. Este começou por man , - O palácio, disse, Barearas, na parte posterior, possui
em todos os países, a grande oportuni.dad: de trabalho e o con- entradas por onde se fazem serviços discretos. Dão para as
vite àqueles que quisess:~ ~nhar d1~he1ro. . .d D instalações e câmaras particulares dos soberanos. Com au-
, Iniciou-se para Babtloma um penodo de mtens~ v;da. d dácia, pode-se av~çar por esse -caminho e surpreender a rai-
todos os ládos chegavam turmas de trabalho, constitu1 as
132 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 133

nha, antes de qualquer socorro. Morta ela, o resto - Que vai acontecer? Tenho tanto medo! disse ela a
cargo dos patriotas, reunidos em pequ~nos magotes, tremer.
rão a combater e a estabelecer a confusao. - Não te inquietes, tudo sairá bem ...
_ És capaz de realizar essa surpresa? perguntou-lhe - Não te deixarei passar, se não disseres o que pretendes
chefe. fazer! interpôs-se ela, recobrando o ãnÍmo.
_ Reconheço os perigos a enfrentar, mas temos que ~c . - Queres com isto dizer que não me amas, se não con-
fiar, sobretudo, na proteção de Marduc e de todos os gen1 fias em mim. Neste caso, está tudo desfeito entre nós, amea-
dos infernos. çou ele.
_ Mister se torna investigar sobre os costumes da rain - Queres abandonar-me, Barcaras?
para que o plano não se malogre, aconselhou um dos pruden - Prometeste obedecer-me em tudo.
_ Sim, retrucou o autor do plano. Se me derdes com - Eu to jurei. " Mas ela é tão boa! Eu seria a mais
nheiros capazes, vou preparar a ação em suas minúcias. indigna criatura se a traisse.
_ Lembro-te que serás o mais poderoso homem de Babi - Pois bem! Tens que escolher entre nós dois. Ou eu,
nia, depois do rei, se fores bem sucedido, insinuou o chefe. ou ela.
_ Eu tenho grande amor ao nosso augusto soberano e Rendendo-se, ela ainda quis coonestar a traição com uma
falsa promessá.
de tudo farei. Convoco todos os que trabalharam no paI'
- Prometes não lhe fazer mal? Só assim abrirei ...
a participarem da empresa.
- Sim, prometo.
_ Dizem que a rainha goza de especial proteção divina .•.
A porta foi levemente encostada, enquanto da casa fron-
advertiu um timorato. Os assírios lhe chamam filha da deu
teira saíam, discretamente, várias pessoas, armadas de espadas,
Derceto. que foram postar-se em frente à entrada.
_ Acham, no seu fanatismo, que ela é a própria. Istar e. - Por Marduc ! Avante! gritou Barcaras.
camada. comentou outro. Como um tufão, seguido pelos. companheiros, entraram
_ .Fique ela ao alcance do meu punhal, nenhuma dúvi casa a dentro. Verificando-lhes a intenção hostil, a criada deu
tenhais, mandá-Ia-ei para o reino das sombras. um grito, mas eles seguiram por longo e estreito corredor e
a
Assim posto, astutos agentes da traição assediaram fide galgaram, aos saltos, uma escada escura.. Deslizaram por outro
dade dos serviçais de Samura-mat. Certo dia, à hora em q corredor, que ia dar à porta de uma das serviçais da rainha e
cessavam as atividades do trabalho, quando se dispe.nsava a p agarraram-na pela garganta, quando abria, para não gritar.
sença dos servidores e obreiros, o palác~o real apresentava f Feriram-na com uma punhalada, deixando-a no chão a espernear.
bril movimento de retirantes. Estes saIam por uma porta Os aposentos reais estavam próximos. Aplicaram o ou-
serviço, na parte posterior do edifício, que dava para um vido, quando lhes chegaram os sinais de rebate no corpo da
ruamento estreito e mal calçado. Antes que cada um tomas guarda. Barcaras abriu a porta com um empurrão, e entraram.
o seu rumo, reuniam-se em grupos a tagarelar. A rainha não estava. Correram em direção a outra estância e,
Aproveitando a confusão, certa pessoa aproximou-se de escancarando a porta, irromperam em tumulto.
porta, que, ao parecer, jamais se abria. A um sinal discre Uma grande exclamação explodiu diante do quadro que
e convencionado, esta se descerrou, aparecendo uma cabeça surpreenderam. Na piscina de mármore, em forma de concha
minina. gigantesca, Samura-mat banhava-se tranqüilamente. A água
- Que é de a rainha? perguntou ele. jorrava da parede em cascata e caía-lhe, rumorejante, sobre o
- Está nos seus aposentos, Barcaras. corpo nu.
_ Deixa a porta cerrada! ordenou ele, como se se trat Ela, de relance, compreendeu a situação e se manteve
se de coisa combinada. calma, erecta, soberanamente formosa, a fitá-los.
134 CAMILO CHAVES
SEMfRAMI5 135
- Que quereis? perguntou-lhes.
e filhos. O mais radical aconselha a decapitação para todos
Eles continuaram extáticos, como fulminados, até que os partidários do rei.
um deles partiu um brado de terror. - E vós, vizir, que aconselhais?,
- É Istar! - Eu ~ão. 01;1s.o opinar, mir:h~ divina soberana, porque
- Istar! ressoou um grito. me parecem mSIgmfIcantes os SUphCIOS indicados, e eu não en- '
E caíram de joelhos. contro algum que me pareça adequado a tão monstruoso crime.
- Traga-me o manto! ordenou ela à servente etíope, . - O meu escriba já tem lavrada a sentença, que vou auten-
tremendo; se agachava a um canto. tIcar perante vós outros, meus fiéis amigos. Que ela sirva de
Ao cobrir-se surgiu com estrondo o oficial do dia, à exemplo a todos os assassinos e traidores do futuro. Leia, Vi-
te dos soldados. darcas!
- Rendei-vos! gritou ele. O funcionário, entonando a voz, Íeu pausadamente.
Os assassinos se deixaram desarmar, enquanto -- "Eu, Samura-mat, senhora do mundo, rainha regente
mat passou tranqüilamente entre eles em direção à sua calnara. da Assíria, de Babilônia, do Súmer e Akad decreto e ordeno
Os presos tudo confessaram, apontando os nomes dos sejam libertados todos os conjurados contra ~ pessoa.' da rainha
panheiros de conjura, que foram caçados e encarcerados. e declarados isentos de culpa."
confessos, esperavam a morte, que mereciam. - Oooh! foi geral a exclamação. '
Discutia-se, entre amigos fiéis, o gênero de morte que - Quereis perdoar" prudentíssima rainha aos autores des-
convinha aos criminosos para, pelo terror, se dissuadirem se hediondo atentado? perguntou-lhe um dos 'vizires.
novas tentativas. , - Quereis que os condene à morte? perguntou ela.
- Sejam todos decapitados pelo carràsco! disse um - Morte é o que eles merecem! exclamaram a uma voz.
áulicos. . . - Se à morte os condenar; não passarão eles pelo suplí-
CIO de contemplarem a minha glória.
- Isso é muito pouco! interrompeu outro. Eu sugiro
sejam crucificados. E, tomando o estilete, assinou, calmamente: Samura-mat.
- Devem ser esquartejados e, depois, queimados, disse
terceiro. . , ,
- Seja-lhes a dor da morte demorada e pungente,
veio outro. Proponho sejam esfolados vivos.
- Que, além de esfolados vivos, vejam antes a trucidação
de suas mulheres e filhos, emendou ,outro.
- Proponho que sejam enforcados, em massa, todos os
partidários do rei!
- Que estais vós a discutir? perguntou Samura-mat, ao
entrar.
- Estamos a discutir o meio de morte que mais convém aos
miseráveis traidores e assassinos.
- Qual a opinião vencedora? interrogou ela.
- Não chegamos a acordo, felicíssima rainha. Um, quer
que sejam decapitados; outro, crucificados; o terceiro, que se-
jam esquartejados e queimados; aquele, que, além de esquarte-
jados e queimados, assistam ao trucidamento de suas mulheres
SEMiRAMIS 137

ocupavam as cabeceiras dos rios Tigre e Eufrates, nas adjacên-


das do monte Ararat.
CAPÍTULO SEXTO A princípio, a situação, julgada favorável, tomou-se amea-
çadora, porque os assírios tinham que conter duas invasões.
Lécon ",dividiu seu exército para detê-las. ".
A GUERRA DA MÉDIA Comandando uma miriarquia, havia no exército uma re-
cente revelação de militar. Beb-Alib, jovem guerreiro, compa-
nheirode Lécon na coorte de guarda da rainha, destacara-se nas
Havia, na Ásia anterior, um povo que, depois de duas últimas campanhas, pela bravura, prudência e audácia. A
aprendizado de incertezas e desventuras, evolucionava ral)ldõ;)r sua figura de herói entusiasmava a tropa, e a rainha, que o ele-
mente. De origem turaniana, descera ele das margens do vara ao generalato, designou-o para companheiro do tártan.
Cáspio, localizando-se nas cabeceiras do rio Tigre, ao sul Este, no dividir o exército, confiou a Beb-Alib a parte que ha-
lago Náiri, inferior, hoje lago de Úrmia. Cindiu-se ele em via de enfrentar os medos. Com forças insuficientes devia
grupos chamados medos e persas, os quais fizeram vida à conter o inimigo, até que Lécon reduzisse os bárbaros e viesse
te, até que Ciro, mais tarde, os reunisse. O território dos terminar a guerra.
dos era extenso, montanhoso e estéril, constituindo, em Os bárbaros do Urartu, que ensaiavam os primeiros pas-
parte, o deserto da Média, onde jamais chovia. Mas, em seis como nação, eram, talvez, "mais numerosos e aguerridos que
o país era entrecortado de vales férteis, onde se adensava os medos, mas foram mal sucedidos na tentativa de invadir
f>opulação, laboriosa e aguerrida. Ao tempo desta história, a planície e, cautelosos, retrocederam para as posições fortifi-
reino já se tomara poderoso, mais civilizado que o povo persa, ficadas estabelecidas nas montanhas. "
ainda divi~ido em tribos, dominadas por pequenos senhores Na Média, a luta tomara feição mais movimentada com
feudais. a insistência das investidas dos medos, mas Beb-Alib, embora
Medos e persas, mal contidos nas regiões com inferioridade numérica, conseguiu mantê~los nos limites.
olhavam com indisfarçável cobiça as terras férteis da J.VJ.<O'''Jp''- A situação indecisa se prolongava, enquanto .se avolumavam
tâmia, eclodindo, através' dos séculos, em investidas, que os
os preparativos da batalha decisiva. A natureza do terreno
da Assíria e Babilônia, com dificuldade, logravam conter.
não permitia manobras envolventes a não ser" pelos vales dos
Julgado azado o momento, romperam hostilidades contra
Samura-mat. Esta pôs em movimento os seus exércitos para rios. Entretanto, oS meses passavam sem que se chegasse a
conclusão. Resolveu-se o general assírio pela ofensiva, a
conterem o invasor; primeiramente, as coortes localizadas na.
fim de forçar o termo da luta. De fato, seguindo os
Assíria, até que chegassem outras expedidas de Babilônia. A
Bactriana, como aliada, fora convocada a prestar auxílio, mas o" seus hábitos de chocar-se em cheio, Beb-Alib atirou·
rei Númi, embora fiel ao compromisso, nada pôde fazer, por se com vigor ao assalto, e a peleja assumiu épicas propor-
se achar em luta com os povos bárbaros, além do Óxus. ções. O inimigo cedeu terreno lentamente,' até que cnegas-
Lécon, consagrado chefe nas guerras de Babilônia e Síria, sem reservas. Os assírios tinham a vantagem de dispor de
marchou" como tártan da expedição. A tática dos assírios era cavalaria e carros de guerra, mas os medos faziam rolar das
sempre a ofensiva, e ele avançou no intuito ele invadir o montanhas grandes rochedos ou desciam, em ferozes arreme-
território inimigo, mas viu logo modificado o panorama dos tidas, contra os flancos do invasor. Carregando com a cava.-
acontecimentos. Os pequenos estados feudais do Urartu, laria e os carros, os assírios romperam a linha de frente e
unificados recentemente pelo seu rei Mênuas, aproveitaram o perseguiram os fugitivos até uma nova linha estabelecida à re-
ensejo para se atirar sobre a Assíria, o velho e irreconciliável- taguarda. O rompimento desta linha constituía nova etapa da
inimigo. Limítrofes com a Média, pela parte noroeste deste reino, luta.
138 CAMILO CHAVES
139
As vanguardas dos dois exércitos tocavam~se quase, e,
não raro, diálogos de mútuo desafio se trocavam entre as pa- causando preJUlZOS a nós e a vós outros. Podemos conti-
trulhas. nuar a atacar, e vós outros vos sentis fortes para resistir. Nós
- Preparai-vos, ó bárbaros montanheses, para a pró- vos propomos terminá-Ia, mediante combate singular en-
xima arrancada. tre um guerr~iro assírio, e outro, medo. A parte que for der-
- Podeis vir, molengos do pantanal, que não arredare- rotada; se declarará vencida e ficará à mercê do vencedor. A
mos passo. boa solução aproveitará ao que tiver o favor e a ajuda dos
deuses; Aceitais? Beb-Alib".
- Não compreendemos por que nos trouxeram a pele-
jar nesta terra imprestável! Para que conquistar estas serra-
? general assírio, que arcava com à responsabilidade da
e?,presa~ a~sumira essa 'gravíssima deliberação,' premido pelas
nias de pedra? Isto é bom para vós outros, que não tendes
Clrcunstànclas ameaçadoraS para a sorte do reino. Via-se ele
melhor pedaço onde passar a vida. com parcos recursos a enfrentar poderoso inimigo, enquanto
- Não' mereceis a vossa terra privilegiada, por isso ha- outra. parte do exército defrontava. inimigo ainda mais pode-
,vemos de enxotar-vos' de lá. r?so. Se uma das frentes fraquejasse, ,as conseqüências leva-
- Sois como os cabritos monteses, afeitos à vida ingra- ~l~. a outra ao descalabro. Que aconteceria se surgisse novo
ta das pedreiras. Aqui é o vosso lugar, como vassalos da lmmlgo contra o império? Seria o fim. Após muito cal-
Assíria. cular, Beb-Alib resolveu tentar fortuna num Combate sin-
- Não insulteis! gula~, em que seu <;xército, quando, nada, ficaria incólume, ~e
- Não vós tememos! venCIdo o seu paladmo. Isto permitiria negociações para uma
paz honrosa, e ele correria com suas forças a Socorrer Lécon
- Mandaremos um dos nossos' a combater com um dos na luta contra os bárbaros doUrârtu.
vossos para a desafronta.
,. Parece que a situação dos medos era semelhante à dos as-
_ Que venha esse bárbaro sanhudo para a prova, mas slr~os e o encontro foi ajustado, em todas as suas minúcias, com
com a condição de que haveis de levar o seu cadáver... o Juramento solene de as duas partes se conformarem com o
O medo, escolhido, apresentava-se quase nu, embraçan- resultado do combate, para definitiva solução da guerra.
do o escudo, espada na mão. Ao seu encontro ~urgia um as- Cump~ia, agor~, escolher o campeão dos assírios. Beb pro-
sírio, igualmente armado. A trégua era conve~cl?nada, e che- cedeu: a ngorosa mv~stigação sobre os bravos do exército,
gavam guerreiros de um e outro lado para aSSIstirem. exammando-Ihes os feItos, os costumes, a compleição e tem-
'Esses duelos, que terminavam com sorte, vária, consti- pera~~nto. Se lhe indicavam um oficial ou soldado de tal
tuíam o divertimento dos vanguardeiros, entediados das cau- c:ntuna :nandava chamá-lo, sujeitando-o 'a provas e inquiri-
telas contra o inimigo próximo. Acabavam sempre com um çoes. N~o des~enhava ninguém que parec<,;sse capaz.
vencido e, não raro, com os dois adversários estendidos no . HaVIa, porem, um nome que monopolizava todas as sim-
chão. Se os :ânimo~ se exaltavam, a contenda terminava em p~~IaS; a?mlrado pela alta expressão militar, famoso pelos he-
violento entrevero, causador de mortes e ferimentos. rOlCOS feItos, apontado pela sua classe de lutador, destacando-
Por vezes, os medos tentavam forçar as linhas assírias e se, sob~etudo, pela acuidade de espíritb, Beb-Alib começara
investiam como a querer levar tudo à frente. Desciam da por assmalar-se como heptarca na coorte' da rainha. Lécon
montanha como avalanche, a chocar-se nas longas lanças en- notou-lhe. as ap~idões, e não tardou se unissem os dois jovens
ristadas dos assírios. Mas a guerra prolongava-se impacien- por estreIta amIzade. Foram-lhe confiadas delicadas missões
tando os chefes. em cujo desempenho aplicava habilidade e energia, conform~
Certo dia, apresentou-se na linha dos medos, um parla- o caso, .mas sempre com êxito. Quando Lécon, para livrar-
mentário com a seguinte mensagem: "Prolonga-se a guerra, s<;. da ~mgança ?e Chamsi-Adad, planejava a sua eliminação,
nao heSItou em por o amigo no conhecimento da cilada. Beb-Alib
140 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 141

não receou colaborar e ele mesmo participou do lance final, - Não digas tolices, Mábi! Que mais queres?
quando foram presos e eliminados os pseudo-salvadores da. - És invejada por todas as mulheres da Média, disse-
rainha. Na defesa de Nínive teve papel de destaque como lhe a outra.
comandante e, na campanha de Babilônia, comandou a perse- - O coração, minha amiga, tem imposições diferentes,
guição ao rei com tanto acerto, que foi elevado ao posto 'de que preponderam na escolha do nosso companheiro... Não
miriarca. General, não perdeu o contacto com a tropa e cola... falem mais nisso.
borou na reorganização do exército, confirmando as suas qua- - És uma esquisitona, ralhou-lhe a amiga.
lidades de chefe. Alcançou novos louros na guerra da Síria. - Tenho imensa curiosidade de ver o adversário de Sá-
Conc1amado por todos, Beb-Alib anunciou a sua aquies- lub, disse, frivolamente, a princesa.
cência em combater como paladino da Assíria, e o exército vi- - Eu não () conheço, mas o nosso campeão é incompa-
brou com entusiasmo quando soube assentado o nome do seu ravelmente belo, adiantou uma das damas.
campeão. Com isto, cresceu ainda mais a popularidade de No dia combinado, reuniram-se na praça, adrede prepa-
Beb-Alib ou simplesmente Beb, como passou a chamar-se. rada, à maneira de anfiteatro, as figuras exponenciais dos
Os medos, de sua parte, procederam a cuidadosa escolha dois exércitos :de um lado, os assírios, e dó outro, os medos.
00 seu campeão; o rei Cholekan e os demais chefes· puseram Estes formavam grande assistência, instalados em amplo estra-
nisso máxima atenção. Havia entre eles homens de grande âni- do com arquibancadas. Não faltavam, em ambos os lados
mo e de alta envergadura física. Distinguiam-se uns pela agi.. elementos femininos a pintalgarem o quadro guerreiro das co~
lidade, acostumados praticantes das escaladas das montanhas; res vivas do vestuário. A multidão fremia de impaciência en-
outros, eram apontados como célebres lutadores ou esgrimis- quanto chegavam os lutadores.
tas, e outros, pelo porte agigantado, inspiravam confiança. Sálub, o campeão medo, exibindo a rija musculatura dos
A escolha recaiu sobre um jovem príncipe aparentado com a braços e das pernas, vestia uma túnica escura, que lhe dava
família real. Impressionava pela elevada estatura e pelo ardor no joelho. Espada ao cinto, sobraçava o escudo e empunha-
combativo. Aparentemente moroso nos movimentos, dava, v~ cóm a direita uma curta lança de arremesso. Postou-se
contudo, impressão de uma avalanche, quando se desprende dIante do rei em continência e recebeu a palavra de ordem.
da montanha. Além do mais, a sua designação representava . - Vai, meu bravo, disse-lhe C~olekan. Todos nós con-
uma homenagem à família real. Sálub, assim se chamava, fIamos n~ ?ravura do nosso campeão. Tem presente a hon-
era, de fato, um hercúleo guerreiro, capaz de aniquilar o mais ra da MedIa.
valoroso adversário. Era pretendente à mão de uma linda - Boa sorte! disse-lhe Nasákar, pai de Mábi.
jovem, sobrinha do rei. Ele voltou-se para a bela, como a pedir um sorriso Ela
O teu predileto, Mábi, vai tornar-se o maior herói da baixou os. olhos. .
Média, disse-lhe uma das jovens amigas da princesinha. To- Quando Sálub desceu o estrado real e pisou o campo de
das as honras serão poucas para ele, e a maior recompensa luta, ecoou na multidão fronteira um brado poderoso.
será a tua mão.: - Beb-Alib! Beb-Alib!
- E se ele não triunfar? perguntou Mábi, disfarçando. O campo ,medo vibrou ao seu grito de guerra.
- ~le é o maior atleta da nossa pátria, e ninguém o su- - Pela Média! Sâlub! Sálub!
plantará, retrucou a amiga. Nós iremos assistir ao combate, Os adversários caminharam, firmemente, ao encontro um
e a tua presença será um estímulo para ele. d? ~utro. Beb, t~bém, em favor da agilidade, envergava a
- Dizem que o seu adversário é um guapo rapaz, adver- tumca que lhe vmha aos joelhos, deixando a descoberto a
tiu, pensativa, a princesinha. musculatura volumosa dos braços e das pernas peludas. Como
- Estás, porventura, duvidosa da vitória do teu noivo? da convenção,. trazia escudo, espada e lança de arremesso.
- Ele não é meu noivo... Nem sequer o amo ... Não Moreno, o semIta; alourado, o ariano, mas ambos agigantados.
apareceu ainda o meu príncipe encantado.
SEM tRAM I S 143
142 CAMILO C~AVES

Os juízes da pugna, à espera no centro do campo, Os juízes colocaram os. combatentes a distância de arre-
emparelharam, para que, juntos, saudassem a assistência, messo..
gundo a praxe das públicas e~ibições. . Partiram :le~ ~m Dado o sinal, ambos atiraram os dardos, os quais se cra-
reção ao estrado real e, perfllados, fIzeram contlllenCla. varam nos escudos, lestos a apararem o golpe. Imediatamen-
medos aclamaram o seu campeão, incitando-o. te arrancados, foram arremessados novamente ao alvo. Ainda
O elemento feminino exaltava-se à vista .do uma vez as pontas metálicas. atingiram os escudos, que vibra-
gesto dos lutadores. ram ao som seco da pancada. Permitia-se três vezes o ataque,
- Como é soberbo Sálub I exclamava uma. mas, à vista da inutilidade dos lances, os dardos foram retira-
- Que pena, vão matar-se I dizia outra, pesarosa. dos pelos juízes. .
Mábi estava taciturna, quase triste. . Os adversários, sacando das espadas, marcharam a en-
- Como é lindo o assírio! disse ela à companheira. contrar-se e, postos a distância, foi dado o sinal de início.
Os campeões voltaram para o estrado oposto, onde est Quedaram-se um instante, como a medir-se reCIprocamente e,
vam os generais assírios. Estrondeou um brado uníssono em simultâneo movimento, as espadas faiscarám no ar, reu-
saudar o preferido.
nindo em golpes fulminantes, aparados nos escudos. Se um
- Beb-Alibl Beb-Alib I dêles avançava o passo para atacar a fundo, encontrava pela
Perfilaram-se os dois bravos, em continência. frente o escudo e o ferro contrário a anular a estocada, e mal
Voltando eles ao centro do campo, os juízes fizeram tinha tempo de levantar o braço para conter o fendente, que
trompas anunciar o início do combate. Um silêncio opress lhe era mandado em cima do elmo. Renovavam-se os ataques
vo amantou-se no campo, ao .repercutir a· voz estentórea d com fúria e igual destreza, ora avançando um e recuando o
arauto, anunciando as condições da luta. outro, a desviar tim golpe de flanco, ora embatendo-se os es-
- Guerreiros da Assíria e da Média! Guerreiros cudos num empurrão de ombros, para se afastarem de
Média e da Ass'Íria! Ouvi! Vai começar a luta que po salto. E recomeçavam ...
fim à guerra da Média e da Assíria! É campeão da Assír Nenhum deles demonstrava cansaço, mas o suor lhes cor-
Beb-Alib chefe do exército em operações, o seu mais brav ria no rosto e nos braços, tintos do sangue a fluir em mais
guerreiro: vencedor de inúmeros combates, escolhido entre mil de um ponto.
heróis!
Estorcia-se a assistência, emitindo gritos, semelhantes a
Vociferaram as trompas, e uma delirante gritaria inter~ alaridos.
rompeu a proclamação.
- Beb-Alib! retumbava.
- Ouvi, guerreiros! Ouvi! É campeão do reino da Mé-
dia o glorioso Sálub, lutador de nobre - Viva a Média! respondiam.
inúmeros recontros e jamais vencido. Os combatentes pareciam perder as cautelas, tal·o ardor
Irrompeu novamente o clamor das trompas, secundando com que se batiam. Em dado momento, Beb-Alib, revidando
ao ataque do medo, descarregou-lhe sobre o escudo um, dois,
as aclamações frenéticas do campo dos medos.
três e mais golpes poderosos, como se fosse um machadeiro
~ Ouvi, guerreiros! Está convencionado o emprego de
a percutir o tronco de árvore secular. O adversário, precavi-
qualquer das armas que. consigo. conduzem os contendores, a
do, acobertara-se, mas à insistência dos golpes, partiu-se-Ihe
lança e a espada! OUVI, guerreIros! A. derrot,a ~e um d~s o anteparo em dois pedaços, deixando-o descoberto.
campeões importará na derrota ~o respec~lvo exercI.to, q~e. fI-
cará à mercê do vencedor! OUVI, guerreIros! ASSIm fm JUs- Um grito de horror irrompeu do campo dos medos, mas
to e contratado pelas duas partes ! Vai começar o combate! Sálub, como um gato, saltou fora da ação da espada inimiga,
Vai começar! Atenção! bravamente atento a revidar. Com a vantagem do escudo,
144 CAMILO CHAVES SE M f R A MIS 145

o assírio alcançara superioridade capaz de forçar


Esta impressão colhia-se na ansiedade da assistência e t Recrudesceu o tumulto com às contraditórias manifesta-
esperavam o golpe decisivo. Mas uma exclamação expl dos assistentes; rejubilavam-se uns, lamentavam-se outros.
de todos os peitos, diante do acontecimento inaudito. O campo foi invadido pelos mais exaltados, e a família do
Alib, num gesto homérico, atirou o escudo para o m~rto, cercando o cadáver,desgrenhava-se em pranto. . Beb-
avançou contra o adversário. Ahb, carregado em triunfo pelos seus, retirou-se para o es-
trado dos assírios.
Foi empolgan~e, mas os seus temeram pelo resultado,
passo que se reammaram os medos. Seguido da corte, o rei Cholekan abriu caminho na turba
tresloucada e apresentou-se onde se encontrava Beb-Alib a
- Avante, Beb t Liquida o medo t gritavam-lhe de receber no corpo ferido curativos e fricções de óleo e vinagre.
perados.
;Acolhido com deferência, dirigiu-se o rei ao vencedor.
- Aproveita, Sálub! O inimigo desistiu da vantag
. - De acordo com a nossa convenção, disse, e em cum-
berravam os medos.
pnmento dos ditames da honra, eu me declaro vencido nesta
Os adversários mediram-se, mais uma vez, como uma guerra. entre os reinos da Média e da Assíria. Peço-vos, pois,
menagem ao valor recíproco, e as espadas cruzaram-se ao· aI recebaIS, em nome da gloriosa Samura-mat a minha rendição
em baixo, numa tempestade de' golpes. Recorriam a mil f incol1dicion;ll. '
mas de passes de esgrima, sem que nenhum fosse vitalmen - Valoroso rei da Média! Recebo em nome da minha
atingido. Simulavam ataques, mas a espada contrária esta
rainha a vossa palavra. de rendição incondicional, nesta guerra
sempre solerte a aparar a cutilada.
entre a Média e a Assíria, tão felizmente concluída' para esta.
O cansaço dos lutadores já se esboçava na lentidão d Posso adiantar-vos, em nome da rainha, cujos sentimentos'de
movimentos, e o sangue corria-lhes, salpicando 'a grama
humanidade e benevolência conheço, que havemos de estabele-'
pezinhada. Sentindo-se esmorecer, o medo viu a necessida
de pôr termo à luta, antes que o ferro adverso lhe perfura cerequitativas combinações nos negócios dos dois países. Se-
as vísceras.- Tentou uma manobra audaz e fulminante. A gundo a praxe, devíeis ser, neste momento, meu prisioneiro,
chou-se rapidamente e, anovelado, atirou-se como um ari mas nenhum constrangimento recebereis, até à chegada da nos-
sóbre o assíri~, no propósito de atingi-lo por baixo. Beb sa gloriosa soberana, que vos ditará as condições de paz. De-
quivou-se num salto, e a sua espada embebeu-se no flan veis continuar à frente do vosso heróico povo, até receberdes
descoberto do adversário. Sálub tentou levantar-se mas nã dela a palavra definitiva. Exijo, apenas, que dissolvais o vosso
pôde. O sangue corria-lhe aos borbotões, e ele deixou-se eg.,. exército, ficando a vossa capital ocupada por uma força do
tar, estertorando. meu comando. Agora, prestemos homenagem ao glorioso ven-
Beb-Ali'b, levando o punho da espada ao peito, saudou cido.
aquele que se partia. Dirigiram-setodos ao campo onde jazia o cadáver de Sálub.
A rapidez do desfecho deixou suspensos os espectadores. Fizeram semicírculo em torno dele, e uma guarda de honra
Os assírios deliraram de alegria, mas um silêncio pesado de- assíria fez-lhe continência, enquanto era transportado por pes-
nunciava o terror dos medos. As trombetas soaram, e; pas- soas da família.
sado o clamor estuante, o arauto berrava anunciando. Beb-Alib transferiu o seu comando para a capital, e o exér-
~ Ouvi, guerreiro~ da Assíria e da Média, ouvi t O assírio cito aguardava, no acampamento, a chegada de Samura-mat
Beb-Alib, em singular combate, acaba de vencer Sálub, o cam- a fim de acompanhá-la em sua entrada triunfal. Aproveitava o
peão medo t Glória ao vencedor! Ouvi, guerreiros tEstá tempo em aplainar dificuldades e ressentimentos do rei ven-
terminada a guerra da Média com a Assíria, pela VItória' de cido, ·cumulando-o de consideração e cordialidade. Insinuava-
Beb-Alib! Glória ao vencedor! se com seu gênio folgazão, fazendo amizades, conquistando
confiança. Estava enamorado de uma linda princesinha loura,
146 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 147

que, também, se mostrava encantada com o - Eu nunca o namorei. Queriam impor-m~ esse casa-
reprovado pelas amigas. mento.
- Vais casar com o matador de teu noivo? - ~ esse o único motivo da recusa deles?
maldosamente uma delas. Esta pergunta colocou-a em embaraço, pois faltar-lhe à
- Ele não era meu noivo, respondia Mábi. verdade seria desonesto.
- Mas era apontado como teu pretendente. - Não, disse. ela, com acanhamento.
- Eu· nunca lhe dei esperança de casamento. - Qual, "então, o outro motivo?
me casaria com ele t retrucava ela com energia. - Tenho acanhamento em dizer-to, Beb.
- Por que ?Era acaso indigno de ti? - Compreendo... Não sou medo.
- Não o amava. - ~ verdade. Mas não é só ...
- Amas a Beb-Alib? - Não sou de família nobre.? ~ verdade?
Ela corava e silenciava. - Sim, disse ela, ruborizada.
O jovem assírio não perdia oportunidade de avistar-se co - E tu que dizes?
ela. A sua qualidade privilegiada dava-lhe o direito de - Eu não penso assim,. Beb. Eu te quero, a· despeito
apresentar nas reuniões, que ela freqüentasse. O resto fazia de tudo; Julgo-te mais nobre e glorioso que todo mundo, disse
com o gênio prazenteiro: comunicava alegria ao ambiente, di ela numa confissão.
vertia as moças, e sua verve, sempre fértil, projetava-o com - Não és, então, do parecer do teu no1}re pai?
figura indispensável. Jovem, belo, general, prestigiado pel - Não, Beb.
aura do heroísmo, ofuscava qualquer outro competidor. - Amas-me de verdade?
Entretanto, não encontrava o beneplácito da família d Ela corou e silenciou, mas fitou-o como a gritar: Sim !
namorada. Nenhum gesto de aprovação partia dos pais, afe Sim! .
rados a preconceitos de raça e nacionalidade. Ademais, Be A muda afirmativa de Mábi, os lábios deles fundiram-se
não pertencia à casta da nobreza, e não bastavam, àquele num beijo ardente e primeiro.
cultores de glórias das gerações passadas, as do present - És o meu sonho! A minha ~nica ambição, querida I
Nasákar, cunhado do rei, pai de Mábi, chocara-se enormemente Novos beijos selaram aquelas juras de amor.
com a derrota do campeão medo, que ele destinava à filha; - Vou falar a teus pais! disse Beb, resoluto.
Relutava em aceitar a realidade de' tão inesperado desfechoi - Não o tentes para não receberes uma recusa.
Mas o trabalho evolutivo do amor se processava nos dois --- É o meio legítimo de obter a tua mão.
corações, a despeito de tudo. Era assunto atinente ao par de E separaram-se.
namorados, a eles somente. Certo dia, dirigiu Beb a pergunta Beb-Alibencarregou a' um de seus recentes amigos de
.à sua loura princesinha: entender-se com o príncipe Nasákar para pedir a mão de Mábi.
- Por que não me proporcionam teus pais meios de maior Desincumbindo-se da missão, o émissário trouxe-lhe a resposta
aproximação, sabendo que te amo apaixonadamente? negativa. Disse-lhe da irredutibilidade do príncipe, aferrado
- Eles sentem certo constrangimento em admitir a preconceitos de :pátria e de raça. .Ademais, não se confor-
convívio o vitorioso matador do príncipe Sálub. mava com a separação da filha, a quem muito queria. De
- Queres dizer que se opõem à nossa união? .nada valeram as ponderações dele, emissário, sobre a privi-
Ela não quis revelar a extensão das prevenções dos legiada situação do pretendente, verdadeiro senhor da terra,
contra Beb. e que seria um gesto oportuno a sua aprovação. Nasákar
- Não é bem isso, querido. Eles me destinavam para invocara a natureza privada. do assunto.
mulher dele ... - ' Nada posso, portanto, esperar da boa vontade desse.
- Eras, então, prometida a Sálub? perguntou Beb, homem ?perguntou Beb, desolado.
tristeza.
148 CAMILO CHAVES
SEMÍRAMIS 149

- :l! O que parece. . - Lembrai-vos sempre, para vosso comprazimento, con-


O encontro dos namorados, depois deste aconteci clUIU Samura-mat, que muitos herdam títulos e glórias, alcan-
foi doloroso. Mábi chorava copiosamente. . çados por outros, ao passo que a vossa nobreza é conquistada
- Meu amor, abrem-se-me todas as portas da por vós mesmo, pelo vosso valor e heroísmo.
da fortuna, mas sou vítima da fatalidade ao ser derrot Alguns dias após, deu-se a entrada triunfal de Samura-
questão mais grata ao meu coração. Devo renunciar mat na capital dos medos. .Da parte dos assírios foi uma
amor? exibição de força, mas os nacionais receberam-na respeitosa-
-,o tempo vence tudo, querido. Espera m_ente. ~la não quis valer-se do direito de vencedora, para
pouco ... nao .humIlhar, n.er.n a~ seu rei. Segundo a regra, este lhe per-
- Aproxima-se o dia da minha partida, logo cheg tenCia como 'prISIOneIro de guerra, mas ela preferiu tratá-lo
rainha. Não! Não me conformarei! disse ele com veemê como aliado e amigo. Entrou na capital como hóspede, ainda
- Amo-te, querido! Amar-te-ei sempre! declarou que, de fato, ela lhe pertencia. Foi hospedada pelo rei em
num transporte, fitando-o com os olhos azuis, vermelhos seu palácio.
chorar. Como soía acontecer, a presença dela desarmava todas as
- Tens coragem de acompanhar-me? prevenções e malquerenças, empolgando as atenções, extasia-
. Sim. das com a sua finura e prudência. Não lhe foi difícil acertar
Não tens medo de habitar terra estrangeira, com Cholekan, ontem linimigo, as questões que traziam os dois
teus? reinos em desavença. Mediante um tributo de vassalagem, ela
Estarei contente ao teu lado, Beb. manteve toda a situação existente, ficando o rei contentíssimo
Estava anunciada a chegada de Samura-mat. Tod por· não perder a coroa.
exército a acolheu com entusiasmo. O rei da Média es Antes de partir, Samura-mat quis iniciar a construção da
junto ao comandante assírio, em caráter particular, por nova capital da Média, que a tinha deficiente e mal situada.
condição ,de vencido; mas o seu encontro com a rainha
Feito o projeto por um de seus arquitetos e escolhido o local
cordial, dissipando-se, de sua parte, qualquer desconfiança conveniente, foram, perante as duas cortes, lançados os fun-
receio. O primeiro ato da recém-chegada, no dia imediato, damentos. Ecbátana, assim chamada, pela suntuosidade, foi
glorificar o autor da vitória, em presença de todo o exér célebre metrópole da história, destacando-se por seus jardins
e do rei Cholekal'l e sua corte.
suspensos, grandioso legado da soberana assíria.
Havia grande curiosidade, entre os medos, de conhece
rainha. Embora a natureza da homenagem, em desfavor Ordenou ela que Beb-Alib, com o seu exército, seguisse
orgulho dos nacionais, a simpatia de que era alvo B~b-A a combater os bárbaros do Urartu, onde se encontrava a
e a admiração que, naqueles .tempos, despertava todo' fe outra parte, sob o comando de Lécon. Em sua despedida, ao
heróico, faziam com que todos, de bom ânimo, se associass partir para Babilônia, Samura-mat reuniu os altos oficiais, di-
na glorificação do favorecido dos deuses imortais. O ex: rigindo-lhes palavras de encorajamento.
cito prestou continência à rainha; depois chegou Beb escolt - Bravos guerreiros e vassalos! Ao voltar a Babilônia,
por uma turma de atletas, não com a dignidade de gene por despedida, declaro-vos o meu contentamento e os meus
mas com o prestígio imortal e divino do herói, glorifica louvores. Acabais de concluir, gloriosamente, esta campanha
no altar da pátria. Assim, o espetáculo se tornou apoteóti para vossa pátria, e não sei o que mais deva louvar, se o valor
prestando-lhe Samura-mat todas as honras cabíveis, depois e abnegação dos soldados, se a prudência e coragem dos che-
enaltecer-lhe o feito, comparável a uma façanha do próp fes. Eu volto orgulhosa do vosso garbo e, de lá, acompa-
deus da guerra. Premiou-o, regiamente, com dinheiro e c nharei os vossos passos em direção a novas glórias. Os vossos
um feudo, que lhe permitia o ingresso na categoria dos companheiros de armas lutam no ,Urartu com as tribos bárbaras
e dos grandes do reino.
150 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS lS1

e aguerridas daquelas montanhas. É preciso levar-lhes ajuda - Que vais fazer? perguntou ela, curiosa.
o concurso do vosso braço semeador de morte. Alcançada - Quero levar-te comigo. Acompanhas-me?
vitória, que é certa,' voltareis brevemente aos vossos _ Sim. Seguir-te-ei aonde fores.
carregados de rapina e de glória. Eu vos recomendo aos _ Prepara-te, então, para amanhã à noite. Queres?
ses imortais, p'rotetores. da nossa pátria. O vosSQ - Quero-te sobre tudo.
merece referências especiais, e cumpre-me proclamar-lhe a con- Mábi esperou pacientemente a hora da fuga. A prudên-
sumada prudência e bravura. Não fora a, sua ampla visão cia aconselhava nada levasse. Bieb providenciaria tudo. :A
de chefe e a fortuna, que o acompanha, não teríamos chegado meia-noite, em sua C1âmara, estava atenta a todos os ruídos.
aos auspiciosos resultados desta vitória, que nos traz o prêmio O canto do cuco, repetido três vezes, seria a senha para que
'de nova aliança, para robustecimento do nosso prestígio entre ela subisse ao terraço da casa. O coração palpitava-lhe, à
as demais nações. Os meus encômios estendem-se aos pobrezinha. Se ouvia vozes, julgava chegado o momento. Por
bravos soldados que lutam na outra frente de batalha, sob o vêzes ouvia rumores sutis de escalada, e o coração .quase lhe
comando de Lécon, glorioso tártan e dileto companheiro meu. saltava dô peito. Ia deixar seus pais, pensava, e talvez nunca
Eletrizante foi o efeito desta arenga entre os guerreiros mais os visse. Doía-lhe o coração a essa lembrança e desejava
assírios. Em seguida, nos anfractuosos caminhos das monta- desistir. E se se recusasse a ir? Estabelecia-se a luta, dei-
nhas da Média, alinharam-se as ostentosas tr,opas componen- xando-a indecisa.
tes da comitiva de Samura-,mat, de volta a Babilônia, sentada _ A quem mais eu quero? perguntava-se. A meus pais?
sob a tenda escarlate, no dorso do seu gigantesco elefante A Beb? A Beb,' sim, a Beb I . Portanto, devo ir com Beb ...
branco. Ele vem aí... E se fosse pressentido? A luta com os cria-
Beb-Alib ordenou -se aprestasse a marcha em direção ao dos .. , Oh I Beb é invencível! E ó ,escândalo? Ó Deus I
Urartu. 'Concluída a sua missão militar no reino da Média, Ampara-me! rogava ela angustiada.
recebeu, ao afastar-se, grandes homenagens do rei Cholekan Nisto ouviu o canto do cuco. Esperou que cantasse no-
e dos seus súditos. Todos lhe enalteciam a benevolência, sim- vamente.
plicidade e boas maneiras, pois, graças à sua habilidade, tor- _ Duas!... Ele disse: três vezes I...
nou-se suave a ocupação da capital, o que concorreu para a Pela terceira vez o cuco cantou.
_ Seguirei o meu destino... Ajuda~me, Senhor da vida!
boa conclusão dos acordos e tratados.
exclamou ela, numa prece. Eu prometi ...
Somente a loura princesinha se mantinha apreensiva e Deslizou no escuro para a escada que levava ao terraço
triste.
- Aproxima-se a hora da partida, e quero ouvir Mábi, da casa.
a tua: última palavra. ' Beb esperava-a.
- Anda, divina, não há tempo a perder I
-Só vejo que vais partir, disse ela num suspiro.
- Levar-te-ei no coração. E tomou-a nos braços possantes. Ela sentiu no rosto a
- Vais esquecer-me, estou. certa. respiração forte do amante a atuar como um narcótico. E dei-
- Teus pais são os tiranos dos nossos cora.ções. xou-se levar.
A escada estava encostada, e ele desceu por ela com seu
- Eu sou muito infeliz. Nem direito me dão de escolher
precioso fardo. A curta distância estava uma escolta a se-
o meu amor. gurar um cavalo; ele tomou-a à garupa, e partiram. A guar-
- Vais aceitar o que te vão impor? nição assíria de guarda à porta da cidade, de sobreaviso, dei-
- Jamais I É mais fá<:il não me casar. xou passar os retirantes, incorporando-se ela mesma à escolta.
- Hei de alcançar o teu amor, ainda que seja contra o Antes de amanhecer, tinham chegado ao acampamento, onde a
mundo inteiro I esperava bonita tenda de campanha.
SEMfRAMIS 153
152 CAMILO CHAVES

Mas eu sou assírio, e minha esposa é escolhida por


Pouco vais dormir, minha querida, porque não tardará mim.
o exército esteja em marcha, advertiu Beb-Alib. Vim aqui para me desafrontar e espero não me negues
As coortes partiram, e, logo em seguida, empreendeu mar- esta oportunidade. Já trouxe as minhas testemunhas.
cha o séquito de mulheres dos oficiais, escoltadas por eunucos. _ Onde e quando quiserdes, Nasákar. Basta indicardes
Entre as negras tranças das damas assírias sobressaía uma o lugar e as armas. Estes dois oficiais serão as minhas..
cabecinha dourada de ariana. _ O local será aqui e nesta hora. As tuas sentl11elas
A tarde, no acampamento, convocados os oficiais e suas arrebataram..:me as armas; peço-te que mas restituas ou me
famílias, Beb-Alib anunciou-lhes o seu casamento com a prin-
forneças outras.
cesinha Mábi. Esta foi introduzida na grande tenda do co- _ Qual a arma que preferis?
mando por um grupo de mulheres, e, diante de todos, pro-
cedeu-se à cerimônia. . - A espada de combate.
A mando de Beb-Alib, um guarda apresentou-lhes duas
O inesperado acontecimento provocou grande alegria entre
as famílias. espadas.
- Beb-Alib, comentou uma matrona, pregou um logro à _ Escolhei uma. Vou, ·contra vontade, bater-me com o
rainha. Em vez de vir à guerra, veio apenas buscar a noiva ... pai de minha esposa. Faço-o por imposição vossa e para não
A dois dias de marcha, surgiram na retaguarda do exér- faltar ao ditame da honra.
cito três guerreiros pedindo permissão para falar ao coman- _ Defende-te! gritou o príncipe, com raiva.
dante sobre negócio grave e urgente. Beb-Alib recebeu-os, Os adversários mediram-se por um momento, e Nasákar
à tarde, em sua tenda e teve um gesto de s'upresa ao reco- atacou.
nhecer o pai de Mábi. Abruptamente surgiu Mábi, alucinada.
- Sei a que viestes, foi logo dizendo. ...,- Meu pai! não cometais uma loucura! Não consen-
- Não suponhas que tenha vindo 'buscar minha filha.
Vim revidar a afronta ao meu nome. Abusaste da nossa hos- tirei que se matem.
pitalidade, afrontando o rei, raptando-lhe a sobrinha. E atirou-se entre as duas espadas, que estacaram.
- Eu estava na vossa capital não como hóspede, mas -Mulher não entende de assuntos de honra. Afasta-te l
como senhor. Conheceis as leis da guerra. Vencemos e assis- gritou-lhe o pai.
tia-nos o direito de lá permanecermos como donos das vidas _ Não consen.tirei q~e se matem as pessoas a quem
e dos bens de seus habitantes. mais amo.
- Soubeste, entretanto, iludir-nos com a~os de amizade _ Ouvi-lhe as palavras, senhor! disse Beb, conciliante.
simulada; confiei na tua lealdade de guerreiro. Do contrário Não a trouxe para aqui contra sua vontade. Ela quis acom·
teria acobertado minha filha das tuas insídias. panhar-me e, perante o exército, tomei-a por mi?ha esposa.
- Mandei solicitar a mão da princesa Mábi, e vós ma _ Atendei, meu pai, ao meus rogos. Recual o passo e
negastes, acintosamente. • ouvi-me. Eu acompanhei o meu escolhido, de minha espon·
- Eu não podia consentir na sua união com o inimigo tânea vontade. Vós negastes consentimento, mas eu não podia
capital da minha pátria, nem sequer permitir que o matador perdê-lo, porque ele ia para muito longe. Talvez .não mais o
de seu prometido ·esposo viesse a desposá-la. . visse. Perdoai a nossa falta e deponde a vossa Ira.
- Ela nega ter sido noiva do meu adversário. _ Com essas palavras não lavarei a minha honra cons-
- Eu, como pai, havia assumido esse compromisso, o que purcada. Exijo que as testemunhas afastem a minha filha
era bastante. para que a luta continue. . .
- Eu não conheço os costumes dos medos, mas, segundo Mábi, desesperada, fOI afastada aos gntos.
a lei natuml, a e'COlha do, companheiro, cabe ao, interes"'dO'\ _ Defende-te, Beb-Alib! preveniu Nasákar.·
- hw podNe dar na A"iria, não na Média. )

/
154 C AH I L O C D A V E li

Cruzaram-se as espadas, brilhando 'à luz das tochas.


algum tempo, alternavam-se os golpes, sem predomínio de
quer dos esgrimistas; mas aos poucos, Beb acentuou· a
pressão sobre o adversário que recuava. CAPÍTULO SÉTIMO
,..-. Não quero matar-vos! disse ele, de bom humor.
. ,"'-' Faze o que puderes, que t~ não pouparei! URARTU
Nasakar.
E os golpes se intensificaram.
- Vou, apenas, obrigar-vos a cessar de combater,
Beb, zombeteiro. Os semibárbaros habitantes da cadeia de montanhas que
- Não temo!. retorquiu o outro, arrogante. atravessa o planalto do Irã e Pamir constituiram sempre ameaça
Beb precipitou o ataque. Avançou o passo e desencadeou para o reino da Assíria. Este sistema orográfico, centralizado
uma tempestade de golpes fendentes, que o adversário mal pelo monte Ararat, é uma região inóspita pela envergadura
desviava. .Com isto ele prendeu-lhe a atenção e fintou uma de suas elevações denominadas U rartu. Os habitantes que
estocada, que apanhou o pulso adverso, transfixando-o. A es- mourejavam nos seus vales e fraldas eram duros e intratáveis.
pada do príndpe' caiu ao chão, pesadamente. Mal contentes com o meio, olhavam cobiçosamente para a pla-
Sentindo;se desarmado, Nasákar endireitou o corpo, apre- nície e a. contragosto eram contidos pelos povos limítrofes.
sentando o torax. Se lhes aparecia ocasião, lançavam-se à conquista com ímpeto
- Conclui! disse, resoluto. feroz. Aos poucos, assimilaram a civilização mesopotâmica e
- Seria horrível que eu matasse o pai de minha esposa. se' constituíram em país poderoso, sob o mando de seu pri-
Ademais, estais desarmado.
E atirou a espada ao solo. meiro rei Sardúris, que conseguiu' reunir os numerosos prin-
cipados em que se dividia esse povo, conhecido pelo nome de
Com a intervenção das testemunhas cessou o combate.
Mábi, libertada das mãos que a detinham, correu chorando Káldi.
para o pai, agarrando-se a ele. Sardúris mandou buscar em Nínive escribas, que grafa-
- Estais ferido, meu pobre pai! Eu sou a culpada de ram . as crônicas do reino em linguagem assíria. Posterior-
tudo isso! mente, as crônicas continuaram em cuneiforme, mas na língua
- O ferimento não é mortal, disse uma das testemunhas. do país, e estas, traduzidas, revelaram a vida da nova nacio-'
Apenas não poderá continuar a combater. nalidade. Mais tarde, o rei Mênuas, filho do rei Ispuínis,
O físico de Beb procedeu ao penso da ferida aplicando rompendo os tratados com os reis Salmanazar e Chamsi-Adad,
ao pulso uma ligadura. ' abriu hostilidades, mais uma vez, contra a Assíria, com o fito
- Bem, disse o príncipe, liquidaremos o assunto de outra de alcançar o vale. A má-fé dos káldi era conhecida, e, com
feita. Quero retirar-me. Manda acompanhar-me. ela, inúmeras vezes tinham eles descido a serra, para volta-
- Não vos. retireis assim, meu pai! disse-lhe Mábi. Já
rem castigados por severas derrotas. Dissimulavam os seus
desafrontastes a vossa honra. Deus não vos protegeu. Per-
insucessos derivando para outros rumos, para leste ou oeste,
doai aos vossos filhos a leviandade. Eles prometem amar-se
incomodando sempre os vizinhos. Quando se sentiam depau-
muito e vos amarão muito, também. Não lhes negueis a ven-
perados pela guerra recolhiam-se às suas montanhas impene-
tura da vossa benevolência. Eles querem ser felizes.
Ela, de joelhos, aos pés do pai, se debulhava em lágrimas.' tráveis. Eram, de fato, mais salteadores que guerreiros ~
O teimoso deixou-se, finalmente, tocar pela ternura. . viviam ~o saque. '
Os adversários olbaram-se fixamente. Beb adiantou-se ... Aparentavam-se com os georgianos do Cá1.icaso e com os
E aqueles dois corações renderam-se num amplexo. armênÍ{ls,seús aliados, dos quais formavam a retaguarda.
)
156 CAMILO CHAVES
SE:M:fRAMIS 157
Eram considerados adversários, temíveis, não somente pelo ím~
retiravam-se para dentro do seu território, perseguidos até o
peto agressivo, mas, acima de tudo, pela infidelidade aos tra-
vale do Araxes, volumoso tributário do mar Cáspio.
tados e à palavra empenhada.
Concluída a paz, partiu Beb-Alib, em direção ao norte,
Formavam a vanguarda dos citas, tanto ou mais bárbaros margeando o lago de Úrmia, onde a natureza não era tão
que eles, e, escudados no mistério das hordas das estepes, in- hostil. Em sua marcha recebeu a submissão de tribos persas
comodavam todo mundo e dominavam, por vezes, os persas em e de outros povos de costumes rudes. Chegou ao Araxes,
sua fase tribal e os kubúkias, instalados nas vizinhanças do mas, pelas notícias, Lécon se encontrava na parte superior do
lago de Úrmia. rio, descendo em direção a Mazoluch, capital dos káldi, situada
Para atingirem a Assíria, cumpria-lhes passar por sobre à margem do rio. Subiu, portanto, ao encontro do compa-
a Armênia, mas este povo, complacentemente, lhes dava pas- nheiro, o que se deu com grandes celebrações, enquanto o rei
sagem, identificando-se no mesmo desígnio de derrocar o po- Afife-Barac se recolhia, com suas forças, à capital. Com o
derio dos detentores das planícies ribeirinhas do rio Tigre. encontro dos dois corpos expedicionários, elevou-se o moral
Lécon, ao dirigir-se para o norte, devia combater dois da tropa, cansada do caminho.
adversários, o que logo sentiu ao tocar a fronteira armênia, As mulheres dos oficiais e soldados, formando a reta-
já em pé de guerra. Ao separar-se dele, Beb-Alib, com o guarda, reuniram-se com grande alegria, após dois dias de mar-
seu exército, acompanhou o curso do rio Zabu-Supalu, para cha, atrás da linha de frente, enquanto as coortes, em longas
alcançar a Média, além da cordilheira; Lécon, aproveitando o filas pelos caminhos, se aproximavam da famosa praça de
vale, tomou pelo rio Tigre, passando por Nínive, até às cabe- guerra.
ceiras, por cima do lago de Náiri, hoje denominado lago de Nesse estado de coisas, começou a correr nas fileiras assí-
Van. Logo à fronteira, encontrou' a resistência dos armênios. rias a notícia de que a retaguarda havia sido repentinamente
O sistema de lutar desses montanheses era a guerrilha; serviam- atacada e que todas as mulheres haviam sido envolvidas e
se dos ,enrugamentos do solo para desfechar os seus ataques arrebatadas pelos káldi. O fato causou desorientação, e ces-
de surprêsa, desaparecendo nas anfractuosidades, tão logo seno saram as operações. Mais de um dia decorrera até que che-
tiam a reação vigorosa do inimigo. O tártan dispunha, tam- gasse a notícia ao acampamento, e não era possível atinar com
'bém, de tropa afeita à montanha, e esta vinha à frente, em o rumo tomado pelo inimigo com a sua presa. Grande clamor
alas, limpando os caminhos e adjacências., A marcha era lenta, se elevou nas coortes, e o desespero se estampou nos corações
em bem da segurança do exército. O inimigo, batido em dos guerreiros, privados de suas companheiras.
todos os' reoontros, recuava sempre, sem dar azo a uma bata- A surpresa tocou Beb-Alib como o raio. Não podia su-
lha decisiva, desejada pelo chefe assírio. Mas os montanheses portar que a sua' ~ábi tivesse sido ignobilmente arrebatada por
não perdiam ocasião de fazer cair sobre os soldados em marcha, gente bárbara. Não fora a serenidade de Lécon a determinar
nos desfiladeiros, uma saraivada de dardos e grandes blocos ~~di~as de segurança e perseguição, tudo se perderia, se o
de pedra. ' ' mImIgo atacasse. '
As notícias que chegavam da Média não eram anima- Beb-Alib interrogou o mensageiro da triste nova.
doras, porquanto Beb-Alib sentia diante de seu exército toda - Foi uma surpresa fulminante, disse o eunuco. Havía-
a agressividade do inimigo e da montanha, e' os meses passa- mos bivacado na proximidade da montanha. As serras e a
vam sem a perspectiva de uma decisão. Conhecedor da índole natureza transpiravam solidão. A guarda \relaxara a vigilância,
interesseira dos armênios, Lécon resolveu corrompê-los com porque ninguém supunha o inimigo tão p~rto. As mulheres
o ouro, a fim de abrir caminho para o Ura;rtu. A proposta palravam e cantavam alegremente. Em determinado momento
que encaminhou foi bem acolhida, e ele pôde, então, prosseguir as. rochas pare~e:an1 mover-se, e delas se ~esprenderam guer~
na sua marcha para além do lago Náiri superior. Os káldi reIros, a preCIpItarem-se sobre as desqiidadas. Mortos os
guardas, elas se acharam sem destino ~/pâssaram a ser gover-
5EMÍ:RAMIS 159
CAMILO CHAVES
158
Lécon esperava que, nessa batalha em que ia empenhar
nadas pelos bárbaros; mas muitas se revoltavam, e era pre-
todo o seu exército, pudesse dar um golpe final na resistência
ciso que as dominassem à força. . do inimigo, todo ele concentrado na capital.
_ Viste Mábi? perguntou Beb, a medo. A batalha ia começar. Os carros de assalto à frente, e
_ Ela foi uma das que mais trabalho deram aos assal- outras máquinas de cerco, cujos condutores se abrigavam atrás
tantes. Debatia-se como louca nos braç~s daquele q~e a ~~= de grandes escudos, avançavam para se encostarem aos muros.
- I ou Eu que me ocultava perto, OUVI 'bem, quan o o a: Extensas. linhas de arqueiros aguardavam o sinal para' dis-
Po g Ih' d':' "És brava minha bela, mas não te magoarei.
.baro e lZm. , 'd d r" parar as - setas sobre os inimigos, a cavaleiro nas muralhas.
Vais dar-me bom dinheiro no mercado da Cl a e. . Estes esperavam tranqüilos e desafiavam os assaltantes.
Beb-Alib perdeu o ~nimo e entregou-se à S)1a do.r .. Cr~-
A - Que é de vossas mulheres? gritavam, troçando.
. pelo erro de permitir o relaxamento da Vigdancm - Estão sendo vendidas como escravas!. acrescentavam
mmava-se .' 'b'? . t
em tôrno das mulheres. Que sena fel:o de Ma 1. m erro- em altos brados.
Não tinha mais esperança de ve-Ia, porque,. pensava, - Ora, um exército sem mulheres!. .. exclamavam entre
ga~a: . esmo batido e fugitivo, não abandonana a presa gargalhadas.
o ImmIgo, m .' . , da
'f'
magm lca. Agora
. , quando ela sentia os pnmeIrosa smaIS . l' - Agora, sereis mulheres uns dos outros!...
maternidade, necessitava, mais do que nunca,. da sl7 aSSIS en- - Começai! Aqui estamos I
da. Horripilava-se à idéia de que o seu ftlho Viesse a ser Os assírios ficaram sabendo que as suas mulheres estavam
propriedade de um bárbaro, e ela, uma escra~a. Em momen- na cidade.
tos de alucinação, gritava como ·louco. Termmava em. A felicidade do golpe contra a retaguarda reanimou os
de pranto. Outras vezes caía em mutismo profundo.. . bárbaros. Mênuas, senhor de tão pteciosa prêsa, quis tirar
D~balde Lécon tentava reanimá-lo, pois ele n~o reagIa dêle imediato proveito: Mazoluch era famoso mercado hu-
voz da razão. Foi preciso suspe??er.-Ihe as funçoes de mano, e ali vinham senhores dos países vizinhos, especialmente
da Cítia, a fim de adquirir escravos, constantes de prisioneiros
mando, até que recuperasse o eqUlhbrlO.
feitos nas audaciosas incursões dos káldi.
Entregue a si mesmo, desapareceu. , Arautos reais percorriam a cidade anunciando, em altos
Lécon resolveu efetuar o ataque a Mazoluch, no propo- brados, o leilão das mulheres dos assírios. Ninguém admitia
sito de desfazer a má impressão causada 'pela p~rda da sua a hipótese da queda imediata da cidade, de forma que, dentro
retaguarda. Aproveitaria o furor e o desejO de vmgan5a dela, se encontravam muitos forasteiros. Os káldi, em caso
soldados. Fez avançar o exército até os muro~, atras ~os de necessidade, tinham as suas embarcações para a retirada.
quais estava com sl7as forças o rei Mênuas, denommado Aflte- No dia anunciado, a gente se adensava na feira. Em
Barac pelos naturaIS. grande edifício, com amplo saguão, se elevavam múltiplos es-
Mazoluch encostada ao rio Araxes, era uma g:-ande for- trados para a exibição das peças. Os leiloeiros apregoavam
taleza reduto 'último de uma série de pontos de apolO daquel~ a mercadoria humana, chamando a atenção para as mais belas.
vo 'aguerrido. Lécon já os havia reduzi~o, um ~_ um, ate No grande estrado,. cercado de grades, ficavam as mais
pouele limite extremo, atrás do qual só hav:a ~ r;gtao ~esco­ feias e veJhas, que, quase sempre, eram arrematadas em con-
~ecida dos citas. Contudo, a capital dos kaldl nao podIa ~er junto, para fins de trabalho grosseiro. Mas havia estrados
totalmente assediada, por falta de embarcações. . Erad p[ec~~o separados, onde se exibiam verdadeiros tipos de beleza, jovens
atacá-la frontalmente. O inimigo era numerOso e se e en ,la assírias, babilônias, elamitas de cor trigueira, hindus e árabes,
com denodo. Na manobra envolvente, ~xecutada pelo ex,er- tisnadas pelo sol do deserto.
cito assírio, aqueles audazes guerreiros abnam as portas : sa.mm Os pretendentes, entre os quais se viam velhos, jovens
a campo para, em sangrentas refregas, arrebatar as maqumas esquisitamente trajados, gente de todas as raças, examinavam
de assédio. as que lhes mereciam atenção pela beleza do rosto, pelos gran-
160 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 161

Deve dispor-se, amigo, a adquirir tão notável exemplar femi-


des olhos negros, pelo porte elevado ou pela figurinha nino.
nuta. Empregados, práticos nesse gênero de negócios,
- Quero ver mais! dizia o pretendente.
panhavam-nos, procurando despertar-lhes interesse. Se o ma
nata atentava no rosto de uma delas, sucumbida ao peso da Vinha, em seguida, um lote de beduínas sentadas ou dei-
desgraça, logo entrava o pregoeiro. a ~naltecer-Ihe as parti... tadas displicentemente.. Não despertavam interesse.
cularidades. A cor morena, predomínante, era muito estimada entre
_ Veja, amigo, que bonito espécime de mulher! aqueles bárbaros louros, sensíveis aos contrastes e aos caracte-
tem mesmo o faro da boa mercadoria... Eu vou deslumbrá- rísticos discordantes das raças e dos tipos humanos. Entre-
lo, embora esteja acostumado a contemplar a figura da pró- tanto, em frente a um estrado se aglomeravam muitos curiosos
pria deusa da beleza. Vai ver que, no confronto, não sei a contemplar uma jovem coberta por negro manto. O cabelo
se Istar levaria vantagem ... louro e a tez diáfana, levemente tisnada pelo sol reveIavam-
E, dirigindo-se à bela, de joelhos, sentada sobre os cal- lhe a fina procedência. Profunda mágoa lhe desbotava as co-
canhares, convidava-a amavelmente. res do rosto.: realç~ndo a grandeza dos olhos azuis. Naquele
_ Levanta-te, divina criatura, para que este senhor, do- semblante nao havIa uma desproporção. Inclinando a cabeça
tado de magníficos atributos físicos, contemple essas formas ela se esquivava aos olhares indiscretos que a observavam. '
maravilhosas! Abre o rosto a um sorriso, que neste momento O pregoeiro, ao seu lado, procurava animá-la, no intuito
podes alcançar a felicidade, se souberes cativá-lo. de. aumentar a atenção dos presentes. Levantava-lhe o rosto,
Com toda a delicadeza tirava-lhe o manto negro, deixando mImava-a.
exposto à cobiça do fauno um corpo roliço e moreno. - Não fiques sucumbida, formosa deidade!... És se-
Ela levantava, tristemente, os olhos, e dua.s lágrimas nhora de um lindíssimo palmo de cara, capaz de revirar o
resvalavam pelas faces. juízo do mais sisudo potentado. .. Levanta o rosto, mostra-
_ Veja, amigo, que sedutora criatura! Digna de um lhes esse par de olhos que parecem duas luminosas estrelas.
príncipe. . Ela 01~1ava ~ assistência com os olhos marejados de lá-
_ Voltarei a examiná-la, mas quero ver outras. gnmas. VIa mUlta gente que lhe cobiçava os encantos: ve-
E continuavam a percorrer a feira. Adiante, estava uma lh?s obesos e disformes, homens viris, mas imundos, a se de-
jovem de elevada estatura, cabelos e olhos negros, a e~1Ítir leItarem em contemplá-la. Bem à sua frente estava a olhá-la
altas lamentações. fixamente, um homem de enorme barba sujamente vestido ~
°
_ Não chores, meu colo de ganso, enxuga rosto e fita 'cu:pínhar. Que. hor'ror! E. pensava ~ue breve sairia p~la
com benevolência este generoso benfeitor, que se interessa por mao do que ma~s desse, talvez desse velho de longas .barbas~
ti! dizia-lhe o pregoeiro, com meiguice. repelente e cuspmhador. Ela, que procedia de um berço ilus-
Tirou o manto que a envolvia e deixou em exposição a tre ~ que sonhara com um futuro risonho, estava reduzida à
suntuosa nudez da escrava. condIção de escrava... Tivera uma adolescência venturosa
. _ Esta, amigo, devia ser uma princesa na sua pátría. mimada, adorada, disputada e via-se reduzida à mais degra~
Este golpe feliz, que os nossos bravos deram na ret~guarda dante situação humana. Escrava!
assíria, tinha por objetivo deitar mão na formosa ramha da - Se ele soubesse onde me encontro, viria salvar-me!
Assíria e outras princesas, que estavam na caravana. As com- Ele é bravo, é invencível! Não haveria forças humanas ca-
panheiras não as quiseram denunciar. Nós estamos certos de pazes de contê-lo... Beb, onde estás? exclamava alto.
que a famosa soberana se acha entre as mulheres presentes. Seus olhos se fixavam com terror no velho cuspinhador ...
Mas são tantas as que têm porte de rainha!... Esta, por - Como te chamas, minha bela? interrogou o leiloeiro.
exemplo, não lhe parece uma autêntica majestade? V:ja que Ela não respondeu, apesar da insistência.
cabelos! .. , Que olhos!. .. Que quadris!. .. Que selOs! ...
162 CAMILOCRAVES SEMfRAMIS 163
Imundo, feio, mal trajado, a barba enorme, sempre a cuspi-
- Vede, senhores, como é desdenhosa a nossa princesa! ..••.• nhar.
Vou pô-la em leilão! Pertencerá a quem mais der por ela., - Já me dão duzentas rodelas pela linda soberana! Quem
em moedas de ouro, de contado. Preparai-vos para uma sur- mais dá, senhores? Ela vale muito mais! Muito mais!
presa e para a disputa. Vou descobrir-lhe o corpo maravilhoS() Quanto me dão?
para que possais admirar esta incomparável obra de arte. Vede! E parou para ouvir o grande rumor que vinha de fora,
Calmamente, como se estivesse ~ desnudar a estátua de gritos, exclamações.
Istar, tirou-lhe o manto, e, à vista de todos, como um deslum- - É a batalha! gritou um dos assistentes.
bramento, surgiu o ;corpo nu, branco, escultório de Mábi. .. - Os assírios assaltam a cidade! exclamou um dos que
Escapou uma exclamação de todos os peitos. chegavam a correr.
- Oh!. .. O leilão perdeu o interesse com a retirada precipitada
O barbudo imundo contemplava-a com os olhos em fogo, de muitos.
cuspinhando sempre, e o sangue gelou-se-lhe nas veias, à in- - Vou suspender a arrematação, amigos! O momento
feliz. não é propício. A cidade está ameaçada pelo inimigo. Va-
- Jamais passou, amigos, por este mercado, tão bela mos encerrar. Prepare-se, amigo, para a próxima vez.
criatura. É uma autêntica rainha! Observai-lhe, a proporção - Não concordo com o adiamento. O último lance é o
das formas... Deve ser uma vítima do despeito de Istar, a meu; portanto é minha a prisioneira. Aqui estão as duzentas
deusa da beleza. Preparai, pois, o vosso ouro; vou rodelas! Entregue-ma!
o leilão. Est~ jóia será entregue a quem mais der. J á não havia ninguém na sala. Apenas as escravas, en-
ânimo!. . . Quanto me dão pela linda princesa? tregues a estranha agitação. . O próprio leiloeiro, agarrando
Um jovem de boa aparênCia lançou logo a sua oferta. o saco de ouro, saiu a correr. O barbudo, envolvendo a es-
- Uma rodela de ouro! . crava no manto negro, arrastou-a pela mão. Ela soluçava.
- Vê-se bem que o ouro e a juventude não andam Em direção às muralhas a batalha rugia fragorosamente...
mãos dadas. É muito pouco, amigo! A mercadoria é Nas ruas. a confusão era enorme. O barbudo seguiu em
primeira água e não deve ser desmerecida. direção ao rio, de encontro ao povo, que afluia para os mu-
- Dez rodelas! ofertou outro. ros da cidade: gritando, vociferando, empunhando lanças, espa-
- Quinze! emendou um terceiro. das, machados.
- Vinte! aventurou um quarto. Chegados à beira da água, fez a jovem entrar numa bar-
- Estais valorizando a preciosidade, mas é muito pouco! quinha, e ele mesmo remou para a outra margem. Alcançan-
Quanto me dão? Quanto? . .. Quanto? . . . . do-a, desceu o rio, e, muito baixo, pisaram terra.
O barbudo, numa Cusparada, entrou na dIsputa. - "\.gora és minha! disse-lhe ele.
- Trinta rodelas! Aproximou-se de Mábi e cingiu-a num abraço. Ela rea-
- Quarenta! cobriu outro. giu aos gritos, mas nesse momento a barba do fauno despren-
- Cem! lançou o barbudo. deu-se-Ihe, deixando a descoberto um rosto risonho ...
- Agora, sim! Estais aquilatando ~~lhor a jó.i,:t qt;e .vos - Beb-Alib! exclamou ela, assombrada.
é oferecida. Quem mais dá? Aproveltal a ocaSlao umca! E caíram nos braços um do outro.
Quanto dão? . - Eu sabia, dizia ela em transportes de alegria, que não
- Cento e cinqüenta! exclamou um dos presentes. me abandonarias. Tu és o meu Beb glorioso, invencível!
Minha querida! ...
- Duzentas! acudiu, desafiando, o barbudo.
As atenções se voltaram para ele. Quem seria o des- - Como fizeste para descobrir-me?
conhecido? O aspecto não lhe denunciava a riqueza nem a raça. - Seguindo-te as pegadas. Atravessei o rio, desci, entrei
na cidade. Agora, vamos, querida. Preciso combater.
164 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 165

Deixou a esposa na retaguarda e apresentou-se peu, como um tufão, à frente dos seus, deparando com os ini-
leiras. Reconhecido, infundiu novo alento aos combates, e t migos, silenciosos, agrupados no grande pátio interno.
o exército vibrou de entusiasmo. - Rendei-vos! gritou éle.
- Beb-Alib! Beb-Alib! Todos depuseram· as armas no chão. Ele procurou reco-·
E a batalha cresceu de furor. O herói acercou-se de nhecer Mênuas, confundido entre os seus soldados.
das portas e fez agir os 'arietes de madeira como bico - Que é de o vosso rei?
brenze. Movidos a braço, sobre rodas, investiam esses Vários dedos o indicaram. Lécon adiantou-se e tomou-o
genhos de guerra, desafiando a avalan~he de pedra~, de d pelo braço, arrastando-o para o centro da praça. Mênuas es-
dos, de água fervente, que vinham de CIma, e percutiam son perou erecto. O assírio fitou-o nos olhos e desfechou-lhe tre-
ramente a porta maciça. Soldados, com enormes escudos s mendo soco na mandíbula. O bárbaro caiu pesadamente.
bre as costas, formavam aclive, por onde subiam outros p - Traidor! Infame! Chegou, finalmente, a hora da
a escalada dos muros. Longas escadas encostavam-se à m prestação de contas!
ralha, e por elas subiam, denodadamente, os soldados. Vendo que se levantava, avançou para ele com incontida
As imprecações se misturavam às v~z:s de com~ndo, fúria a triturar-lhe o crânio com a sandália ferrada.
gritos e desafios, formadores do pandem011l0 generalIzado. . - Infame! Infame! gritava, alucinado.
arietes não cessavam de malhar, à voz animadora de Beb-AlI Pisava, pisava, repisava.
_ Outra vez! gritava ele, empurrando a máquina potente - Traidor! Covarde!
Bum! E a porta estremecia. As sandálias continuavam a epistar a cabeça do adversá-
---. Mais uma vez! berrava ele, possesso. rio, que, depois de algumas tentativas para se levantar, aquie-
A testada impetuosa, a porta gemeu surdamente, e as do... tou-se, imóvel. Mas a fúria de Lécon não tinha limites, con-
bradiças de bronze se desprenderam. Um grand~ rumor anun- centrada durante muitos meses de' lutas e sofrimentos. Assim,
ciou a abertura da brecha, e uma nuvem de poeIra levantou-se ele, diante dos assistentes estarrecidos, continuou a sapatear,
com a queda da mole de madeira. A gritaria aumentou com a até que o crânio, escamado, se desprendesse do tronco e rodan-
irrupção de troços de .soldados assírios. As muralhas se despo- do como uma bola, ao impulso de um pontapé, fosse parar aos
voaram de defensores, que acudiram aos combates nas ruas. pés dos companheiros.
Com isto os atacantes puderam galgar os muros em vários pon-
tos, enquanto, dentro dos arruamentos, trava~an:-se en;~ntros * * >I<

ferozes. Abertas outras portas, todo o exercIto aSSIno se Os acontecimentos de Urartu causavam grandes apreensões
precipitou contra o inimigo, que recuava em :J~reção ao :io. a Samura-mat. O pequeno resultado das operações, a demora
Beb-Alib compreendeu, desde logo, que os fugItivos tentarIam de uma solução eram de molde a animar novos conflitos inter-
atravessar o curso d'água e avançou com suas forças até a mar- nacionais, comprometedores da existência do império. A rai-
gem conhecida, soltando, ao léu da correnteza, as embar~ações nha, embora absorvida pelas atividades construtoras, promoveu
encostadas. Os bárbaros, na sua disparada, eram acutIlados, a formação de novos exércitos para socorrer os expedicionários.
e muito poucos puderam, nadando, alcançar a margem oposta. Verdade é que a chegada de Beb-Alib ao Urartu com o exército
Lécon superintendia a tudo. Penetrou no mercado de es- vitorioso da Média, transformara a perspectiva da luta. Tudo,
cravos e libertou as mulheres assírias. Em seguida, à frente entretanto, aconselhava o reforço a Lécon, com o objetivo de
de numeroso troço de soldados, pôs cerco ao palácio real, onde aumentar-lhe o prestígio e a força. Ademais, Samura-mat
se refugiara o rei Mênuas com sua guarda pessoal. ~come­ insistia em estar presente ao remate das guerras; quando não
teu com vigor as portas fechadas, até que, de uma das ]~nelas, pudesse acompanhar-lhes ° curso. Transportou-se, com seu
assomou o sinal de rendição. Franqueada a entrada, urom- exército, para o teatro das operações. Deu-se isto quando Beb-
166 CAMILÓ CHAVES S:Ii: M f R A M IS 167

Alib chegou em socorro de Lécon, precipitando a queda de o beduíno era o mal-contente errante dos oásis adustos da
zoluch. Arábia, deserta e arenosa; o cita era o favorecido vaga:bundo
Este resultado entusiasmou as tropas vitoriosas, e das estepes de pastagens naturais, adjacentes aos lagos e rios
empreendimentos surgiram para a dominação de outros piscosos.
A Cítia estava relativamente próxima, e as suas int.enniIlá.reis O árabe criava ovelhas, cavalos e camelos; o cita, tudo isso
estepes invioladas constituíam sedutora miragem para os e mais o gado bovino, caprino e outros animais domésticos.
quistadores. O areal impedia àquele a edificação de habitações fixas, em
Lécon convocou os miriarcas, e, de acordo, resolveram razão da esterilidade do solo; por isso vivia: em abarracamentos
vaI' avante a conquista até ao país misterioso, além do de pano. Mas· o cita tinha as suas cidades sobre rodas que se
e do mar Cáspio. Em vez de afrontarem a cordilheira, deslocavam no cortejo das migrações.
ceram o Araxes e margearam este mar, contornando-o pelo sul, Os assírios, também, deviam sentir-se desambientados nes-
em demanda do rio 6xus, tributário do grande lago de Aral. . se meio e pouco seguros, como habitantes sedentários de uma
Em seu longo itinerário atravessaram terras da Bactriana e terra inteiramente diversa. Na Mesopommia, além das cida-
da Média, países vassalos, e submeteram outros povos como os des de caráter pennanente, havia uma demografia esparsa de
parias, os sogdianos, os persas e hircanos. Após inúmeros tra- pequenos posseiros lavradores, que facilitavam o abastecimen-
balhos entre montanhas, encontraram, inopinadamente, a pla- to dos viajares ou dos exércitos.
nície imensa que ia dar à região dos lagos, em plena CHia. Explodiram, portanto, grandes aclamações ao lobrigarem,
os assírios, do alto da cordilheira as extensas planícies do ho-
Os citas ocupavam grande parte da Europa oriental e da
rizonte. distante, onde às marchas seriam pouco fatigosas e
Ásia setentrional. Como nômades viviam na planicie e o seu onde haveriam de encontrar abundantes suprimentos. Mas, ao
reino não tinha fim. Eram conhecidos no mundo civilizado penetrarem na região, surpreenderam-se pela ausência de plan-
através das incursões qne, de tempos em tempos, realizavam, tações e de gado. Viram e seguiram grandes sulcos na terra,
ora na índia, ora na Ásia anterior. Conta-se que séculos antes à guisa de caminhos, denunciadores do êxodo. Onde os guias
desta história, coincidindo com a grande invasão semita no Egito, anunciavam um povoado, encontravam o terreno descalvado e
um grande chefe cita, Indatirsê, irrompeu na Ásia anterior, ,con- os sinais do afastamento coletivo. As cidades emigravam so-
quistando terras e reinos até o Nilo. Por causa de sua disten- bre rodas, porque, ao sabor da índole inconstante do povo, cos-
são demográfica, tornaram-se fracos e foram gradativamente tumavam viajar, fugir, transplantar-se. O cita entregava-lhes
dominados pelas reações locais. uma terra desabitada e sem recursos, pois levara consigo as fa-
As grandes migrações foram, provavelmente, determina- mílias, o gado e os guerreiros. .
das por terríveis comoções geológicas, de forma que os povos O exército caminhou para o norte até à região dos lagos
atingidos se encontravam aterrorizados no seu meio. Devem- e ali verificou que estava com a retaguarda cortada pelo inimi-
se considerar, também, os distúrbios meteorológicos causado- go vindo através do rio 6xus. Repentinamente grave se tor-
res de secas e da fome. Daí, a necessidade de emigrar. nara a situação, e cumpria tomar um expediente heróico que
O nômade, habituado às especulações pastoris, não podia evitasse o desastre.
afeiçoar-se à região montanhosa. Avesso às atividades agríco- Na reunião dos generais, ficou resolvido que Beb-Alib,
las, preferia a criação de animais, que conduzia nas suas pere- com uma pequena guarda, contornasse o inimigo e voltasse em
grinações através das estepes, para seu alimento. A natureza demav.da de socorro entre os káldi, os medos e bactrianos. Lé-
benigna do solo onde vivia determinava-lhe hábítos a que ele, con com o grosso do exército fez alto, à espera do ataq~e.
jamais, podia renunciar, porque inerentes à sua economia. Va- Beb-Alib rumou em direção ao norte, a marchas forçadas,
gando nas extensas pradarias do seu país, aproveitava-lhes os re- e aproximou-seda mar Cáspio, margeando-o rumo ao sul, sem
cursos naturais para sustento dos seus rebanhos. encontrar obstáculos. Chegado à região montanhosa, comu-
168 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 169

nicou-se com OS medos e bactrianos e dirigiu-se para o Urartu, Observando, COrl.1 cuidado, verificou que os bárbaros se ti-
onde ficara uma. gua.rnição assíria. nham afastado quando lhe chegou um estranho ruído.
Samura-mat, com seu exército, já tinha entrado triunfal- - Ouves, Amoi? perguntou.
mente em Mazoluch e começara logo a desenvolver uma políti- - Sim.
ca de apaziguamento e realizações na capital dos káldi. Com Apenas dois fiéis o acompanhavam.
isto captou a benevolência. do povo, principalmente, com o co- - Ouves, Zelu? tornou a perguntar.
locar à frente do governo o filho do rei Mênuas; A chegada de . - Parece que ainda se batalha por lá.
Beb-Alib veio inteirá-la da difícil situação em que se encontrava - O nosso exército deve estar todo destruído observou
Lécon, e entrou a providenciar a remessa de uma grande parte Lécon. '
do seu exército, em auxíiio de seu general. Na sua aflição, - Como pode ser?
fez oferta aos káldi de entregar-lhes o território conquistado aos - Parece que se aproxima o rumor... . Escuta!
citas. Os káldi eram freqüentemente molestados por estes bár- - Ninguém nos vê. Podemos observar melhor.
baros e, movidos pelo desejo de vingança e pela ambição, in- Acer.caram-se da margem e, por entre os caniços, viram que
corporaram-se ao exército expedicionário, téndo à frente o Seu se aprOXImava uma força em retirada.
jovem rei. - Estão sendo perseguidos, disse Lécon. Breve sabere-
Partiu Beb-Alib com o novo exército, engrossado, no ca- mos quem são.
minho, com novos contingentes de aliados. Samura-mat, com A retirada transformava-se em corrida.
algum retardo, acompanhou, segundo o seu costume de seguir - Os citas fogem, estão derrotados. Quem será o ven-
cedor?
as expedições, a marcha das forças que iam em socorro do
companheiro. Entrementes, Lécon havia sentido a pressão vi- Se fossem os assírios!. . . Podia ser Beb-Alib! ...
gorosa das forças inimigas. Os citas atacaram diàriamente, Há tempo bastante para que Beb-Alib esteja de volta.
sondando a força do adversário, a sua cavalaria punha em cons- Pode ser guerra entre os próprios bárbaros.
tante sobressalto as falanges assírias. Com o correr do tempo, Viva! São assírios! Vejam os nossos emblemas! 'gri-
tou Zelu.
a situação tornou-se insustentável à míngua de vitualhas, ao
. A ~ortandade era enorme, e os citas, no atr01"elo da fuga,
passo que aumentava a combatividade dos citas. caIam n agua como fardos pesados. Zelu e Amoi acutilavam os
Certo dia, generalizou-se a batalha, atingindo o exército que lhes chegavam ao alcance.
pela frente e pela retaguarda. Após muitas horas de combate, - Precisamos tomar a nossa desforra, diziam rindo.
as falanges e a cavalaria começaram a fraquejar, a despeito da Senhores ,novamente. do campo de batalha, Lécon apresen-
ubiqüidade de Lécon, atento em acudir. A superioridade nu- tou-se como tartan. FOI comovente o encontro dos dois ami-
mérica do inimigo prevaleceu, e sobreveio a derrota. Desba- gos.
ratados e em fuga, os assírios, acentuou-se o furor dos bárba- - Já duas vezes me socorres, Beb. Ficas com esse cré-
ros, e começou o morticínio. Muitos soldados, acossados, atira- dito sobre mim. Eu te agradeço e pagarei a dívida.
vam-se ao lago próximo, sob uma saraivada de setas. Poucos dias após, chegou Samura-mat, recebida triunfal-
Assim foi destruído o exército de Lécon. Depois de ba- me~te. Emocionante foi o seu encontro com o esposo, havia
ter-se heroicamente, ele atirou-se ao lago, para não cair nas mUlto dela separado, em serviço de guerra.
mãos do inimigo. - Dest~ ~ez, querida, me livraste da garra do leão. Está
A margem dos lagos da região crescia um caniço, seme- paga a tua dIVIda, disse-lhe ele, beijando-a.
lhante a um bambu, e Lécon lembrou-se de fazer deles um con- a
-,- A minha dívida para contigo aumenta dia dia. Agora-
duto para o ar, enquanto mergulhado. Assim poderia perma- deço aos àeuses imortais por me terem salvo não somen~ o
necer sob a água, até que o inimigo se retirasse. companheiro, mas o meu bravo general.
170 CAMILO CHAVES

Beb-Alib, mais uma vez, foi alvo de grandes homenagens


da parte da. rainha e, nele, o exército saudou o herói da jor-
nada.
Oskáldi tiveram o seu lugar ao sol, emigrando em grande
parte para o território conquistado aos citas. Samura-mat
CAPÍTULO OITAVO
bateu os fundamentos da nova capital do país e, em meinóri.a
do acontecimento, erigiu no lugar da batalha uma este1a da VI-
tória. MÃEI

A notícia da derrota dos citas, considerados invencíveis,


percorreu todo o Oriente, aumentando o prestígio de Samura-
mato Ninguém mais pretendeu disputar-lhe a primazia ou
contrariar-lhe os projetos. Formou-se geral movimento de
submissão, espontânea, antes que os exércitos assírios .se
apresentassem a impô-la. Era um expediente velhaco para se
evitarem complicações ; mas com ele lucraram os povos e cessa-
ram as guerras por algum tempo. Afirmado seja, em louvor
da rainha, que os· seus métodos benévolos concorreram para
a dissipação de prevenções e animosidades, com o aceitarem
todos, de bom ânimo, a sua suserania.
Desta feita, realizou-se a submissão dos povos e nações
contidas entre o mar Cáspio e o índico e entre os rios Eu-
frates e Indo. Alguns deles viviam em regime tribal e, graças
à orientação adotll.da por Samura-mat, foram-se aglutinando
em unidades naciona.is, sob a direção de um soberano. Entre
outros povos, deve-se assinalar o persa, até então fracionado em
pequenos estados feudais'. Com isto, a civilização mesopotâ-
mica infiltrou-se por toda a parte. '
A excursão da rainha acarretou grandes vantagens para
aqueles povos. Coberta de glória, chegou ela a Mazoluch,
antes de voltar a Babilônia,· pois que na capital dos káldi
vários assuntos tinha a resolver; A despeito das manifesta-
ções de regozijo pela sua chegada, havia lágrimas entre as
que tinham perdido os maridos. Para alegrar as viúvas Samu-
ra-mat instituiu prêmios e promoções como incentivo ao casa-
mento de soldados e oficiais.
O entusiasmo dos káldi pela rainha assíria não tinha limi-
tes, e o novo rei Zambor quis, ele mesmo, testemunhar-lhe
gratidão.
172 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 173

- Venturosa rainha, o meu povo, que vos hospeda, marginais do mar Cáspio inferior. Os armênios, que se haviam
alguns meses, aprendeu a admirar-vos o espírito de justiça e declarado hostis, no principio da guerra, aos quais .Lécon havia
sabedoria, a pa'r da incomparável magnificência. Ele dá por pacificado com ouro, vieram, também, pelos seus embaixa-
acertada e devida a colaboração dos Q"uerreiros káldi nos vos- dores, apresentar a Samura-matprotestos de vassalagem e o
sos grandiosos empreendimentos militares. Eu, particular- convite do seu rei para que ela o visitasse na viagem de
mente, vos agradeço a benevolência com· que distinguistes o retorno. Assim os massinécios, macrônios e tibarênios, da
meu nome na escolha do novo rei de Urartu, e quero, neste margem do Ponto Euxino; os pafIagônios, os frígios e cários;
momento, testemunhar-vos, não só agradecimentos, mas a nos- os katpatucas e cilícios. Ofereciam a sua submissão, contanto
sa submissão à onipotente rainha da Assíria e Babilônia, cuja pudessem conservar a independência e o seu rei, em troca de
glória e poder suplantam os de todos os soberanos do universo. um tributo anual e apoio militar. Mazoluch transformou-se,
Os vossos deuses, é evidente, são mais poderosos e vos pro- em poucos meses, em freqüentadíssima capital e, à maneira
tegem. Sejam eles glorificados em vós. de congresso, reunia inúmeras nações a oferecerem vassala-
- Bravo rei do Urartu! respondeu-lhe Samura-mat. As gem à rainha da· Assíria. Ela delegou poderes a Lécon para
vossas ,palavras ecoam gratamente no meu coração, ao reme- resolver a situação e firmar tratados com os países mais pró-
morardes a ajuda vossa e do vosso povo aos meus empreendi- ximos, antes de visitar os da Ásia Menor. Desta viagem, Sa-
mentos guerreiros. Sei apreciar devidamente o vosso gesto mura-~at voltou a Babilônia quase senhora do mundo, então
de submissão e sugiro que ela se positive numa fórmula de conheCIdo.
aliança, porque o meu jugo é suave. Quero se traduza o ato Beb-Alib permaneceu em Mazoluch em conseqüência do
de minha suserania em mais estreita assistência e colaboração mau estado de saúde de Mábi, ressentida do choque,. quando
entre os dois países. Tenho a grande satisfação, em cum- capturada pelos káldi. Ademais, era ele precioso elemento para
primento de promessa feita, de confirmar-vos na posse dos Lécon, no tratar com os emissários dos povos que se subme-
territórios conquistados aos citas. Como coisa vossa, podeis tiam, pois se havia revelado habilíssimo diplomata.
deles utilizar-vos como conquista, ou como nova pátria do vosso Concluídos os entendimentos, os dois· amigos partiram
povo. Podeis estar certos de que ninguém, jamais, se arre- para a Ásia Menor. Mábi permaneceu em Mazoluch, sob a
pendeu da amizade ·e fidelidade ao meu governo, porque o proteção de Amoi.
meu procedimento se funda na benevolência e proteção aos A sua chegada a Babilônia, Samura-mat entregou-se aoS'
nossos aliados e súditos sinceros. trabalhos administrativos. Lá chegaram, também, adesões de
Sábia era a política de Saninra-mat, porque a conquista outros povos, principalmente os confinantes com o mar índico
da Cítia era problemática. A sua ocupação demandava grande os elamitas, que até então se mantinham hostis, homiziand~
emprego de força, motivo de constantes preocupações. Cati- o deposto rei de Babilônia; os persas do sul, os carmanianos,
vando os káldi com a dádiva dos territórios conquistados, ela, as tribos etiópicas ictiófagas de aquém Indo.
de fato, j'Ügava um povo bárbaro contra o outro. Com isto Não tardou que os citas da região dos lagos, renovado
estabelecia o equilíbri'Ü e isentava-se de maiores inquietações. o seu exército, voltassem contra os káldi, destruindo-lhes a
Deliberou mant~r na capital do novo aliado uma pequena guar- reduzida guarnição que havia permanecido na iPlaníéie conquis-
niçã'Ü e uma pessoa de sua CQnfiança. como residente. Lécon, tada. Não contentes de recuperar o território perdido, em-
encarregado da escolha, indicoll o nome de seu amigo Amoi. preenderam guerra contra o Urartu, invadindo as regiões mon-
Já ela planejava voltar a Babilônia, quando começaram tanhosas, já antes percorridas pelos assírios sob o mando de
a chegar embaixadores de inúmeros países do norte e ocidente Lécon e Beb-Alib.
para lhe apresentarem ofertas de submissão. Primeiros a che- Os káldi, ressentidos dos efeitos da última guerra, estavam
gar foram os moscos, situados aos pés dos montes caucásicos; fracos para conter o ímpeto dos bárbaros do norte. Lutavam
os cáspin<; habitantes das margens do rio Círus e os povos nas suas montanhas e Amoi prestou-lhes auxílio, embora pe-
174 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 175

quena a guarnição sob o seu comando.. O inimigo, - Não vos preocupeis, senhora minha, com o que pode
afeito ao terreno acidentado, ressentiu-se, mas acontecer. Tudo está sujeito à vontade do Destino. Não
irrompia por toda a parte. consta esteja por aqui o inimigo. Marchemos, pois, como
Amoi compreendeu a premência da situação e manda a prudência.
pedir socorro a Babilônia; não podia, porém, d;sfalcar-se A fim de não ser suspeitada de conivência com os soldados
soldados e procurava uma pessoa capaz para tao que a acompanhavam, seguiam as duas um pouco separadas
missão. deles e, nos pousos ficavam apartadas.
No quarto dia de viagem, a escolta foi envolvida por uma
Apresentou-se-Ihe Mábi.
patrulha inimiga e toda ela pereceu, combatendo. Algum tem-
- Irei eu buscar auxílio, disse-lhe ela. po depois, chegava Mábi e sua companheira ao local. Foram
_ Quereis empreender tão longa e' arriscada viagem, logo cercadas e apeadas dos animais. Obrigadas a acompanhá-
tal estado? perguntou Amoi, admirado. . los, a pé, os bárbaros ameaçavam-nas porque lerdas.
Mábi encontrava-se em adiantado estado de gravIdez. Pela mímica, eles perguntavam se elas tinham relação com
_ Eu preciso ir ter com meu mar~do, _que 'aqui a escolta. Jnuco dizia que não. Com gestos fazia-os com-
grande risco, no 'caso de se agravar a sItuaçao. preender que ela e a companheira habitavam na montanha
próxima e que tendo sido levados os maridos, à força, para
' - Não suportareis a viagem. A empresa ,r~quer a guerra, procuravam outras regiões, por estarem sozinhas.
forte. Embora cor:J,josa, não tendes robustez ftsIca. Pedia que as deixassem partir, mesmo a pé, mas eles nada
_ Ouvi-me. Eu, talvez, na minha fraqueza, po.ssa respondiam.
penhar melhor a delicada missão; Não despertare! Sm;pejltas Chegaram, por fim, a um acampamento e foram levadas
e de vagar, irei ao destino. à presença do comandante. Mábi dizia, pela gesticulação, que
, 'Amoi estava preocupado com a respons~bi1idade de . não era k4ldi, nem assíria; queria ir para sua terra, muito
rar aquela criatura, que Beb-Alib lhe conÍlara, :_ gostana distante. Perguntada, apontava para o rumo da Média. O
desvencilhar dela principalmente, nessa ocasmo de chefe pareceu compreender, mas nada disse.
:~ras, em que o inim'igo a~a?çava para Mazoluch. Mas o que No dia seguinte, a pequena força se pôs a caminho, e elas
propunha Mábi era temerano. . foram compelidas a acompanhá-los. Mábi era constantemente
_ Pior pode acontecer-me aqui, se os citas ent~arem na ameaçada, porque tardo era o seu andar, e chegou mesmo
a levar uma chicotada. Chegaram, finalmente, ao termo da
cidade, conti1?-uou Mábi. Se vos retirarde~, ~u sereI.sempre
jornada. Foram levadas à presença do comandante, um ho-
um estorvo, por causa do meu estado. DeIXai-me, poIS, par~
tir ue eu me defenderei. Se peus me proteger, como espero, mem de longa barba e cabelos grisalhos, mal trajado, de mau
aspecto. Perto dele estava o intérprete a traduzir os diálogos.
c h ,e
q g. aaormeu
e Idestino.
, Nada tereis. . a .lamentar se me perder, - De onde sois? perguntou.
seja no caminho, seja na mão do ImmIgo.
- Somos moradoras na montanha, a algumas léguas daqui.
Amoi reconhecia a necessidade, de afastar a .mulher de - Aonde íeis, quando fostes capturadas?
. sem melhores meios de segurança, delxou-a par- - Estávamos sozinhas em nosso casebre e, em virtude
seu amIgo e, colta
tir, acompanhada de sua criada e de uma pequena es '. do estado de guerra, resolvemos refugiar-nos no meu país
' Montada em pacífico jumentinho,ao lado ~a es~rava Ílel, distante, eu e minha companheira.
Mábi enveredou pelos ásperos caminhos do desfl1adeIr~ .. - Não sois do Urartu?
_ Eu gostaria, Inuco, de fazer maior. esforço, dIZia ela, O céu nos livre de tamanha desventara! Somos dO'.
na ;nengosa'
ara sairmos, quanto antes, d est a z0:t- . ' mas, apres- Média.
;ando-me, correria risco de não t'uportar a fadIga. Que é dos vossos maridos?
176 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 177

- Foram capturados para a guerra. Ficamos Mábi ficou só e teve medo. No boqueirão próximo o
radas. Eu... neste estado. Os ladrões nos roubaram lobo vociferava. Depois de algum tempo, ouviu um grito.
restando-nos, apenas, dois burricos que não encontraram. Seria InucQ? O fogo se havia apagado. Os gritos conti-
- Onde estão eles? nuaram.
- Estávamos montadas neles, quando nos apanharam os Finalmente, chegou a escrava com dois homens. Eram
vossos soldados. fugitivos.
O chefe cita trocou com o intérprete um estranho lin- Ela prometeu torná-los ricos se eles a ajudassem a pros-
guajar e parecia nervoso. Mas não deu nenhuma solução. seguir· em direção a Babilônia. Movidos pelo interesse, apre-
Mábi dirigiu-se ao intérprete. sentaram-lhe alguma coisa para comer.
- Senhor, pede-lhe que nos deixe seguir o nosso caminho. No dia seguinte, puseram-se a caminho. Enc,ontraram
Não lhe deram resposta. Recolhidas a um pátio, onde patrulhas de observação, estavam na fronteira da Armênia. Os
estavam outros prisioneiros, ali permaneceram durante a noite. homens que as acompanhavam fugiram. .
Mábi, exausta, deixou-se cair numa enxerga e julgou-se per- Mábi pediu aos soldados que a levassem ao comandante.
dida. Reconheceu a razão dos escrúpulos de Amoi em deixá- Vjajaram o dia todo e chegaram a um acampamento, onde o
la partir. Estava frustrada a tentativa de pedir soc.orro. Es- chefe as recebeu. .
tavam todos perdidos. Começou a transitar pela sua mente - Sigo para Babilônia, senhor, disse ela. Peço-vos que
a procissão dos perigos que tinha atravessado. O remate de me forneçais meio de prosseguir a viagem.
tudo .eram lágrimas, muitas lágrimas. - Quem és tu? interrogou ele, insolente.
Pela manhã, o esquadrão de citas iniciou os preparativos Ela entendeu que aquele homem· lhe facilitaria tudo à
po.rn via j::l t", ençilhando os cavalos. Os prisioneiros, colocados simples citação do nome de seu marido, famoso cabo-de-guerra.
um ao lado do outro, formavam linha, enquanto alguns bár- - Sou mulher do general Beb-Alib, respondeu ela.
baros, calmamente, afiavam as adagas nas pedras. A uma - Mulher de Beb-Alib? exclamou o oficial numa estron-
ordem do comandante, adiantavam-se e, tomando o prisioneiro dosa gargalhada.
pela barba, levantavam-lhe o mento e enterravam, de lado, a - Eu vos falo a verdade, senhor. Os citas assaltaram
adaga na garganta, seccionando, de um golpe, a goela e a ca- a minha comitiva e me deixaram só com esta companheira, sem
rótida. Com um impulso para cima, deslocavam a cabeça, em- meios de prosseguirmos. Viajamos a pé e sofremos fome, até
purrando-a com o pé, entre dois jatos de sangue. Era rápido. que a boa sorte nos permitiu encontrar pessoas que nos socor-
Ao aproximar-se o carrasco de um dos prisioneiros, este reram.
.lhe tomou bruscamente a faca e disse em bom assírio: - És uma mentirosa! Como é possível que o general
- Respeite estas barbas, ninguém nunca as tocou com a permitisse umà situação de tantos perigos para sua mulher?
mão! - Ele está em Babilônia. Se conhecesse a minha situação,
Antes que o bárbaro voltasse da surpresa, ele embebeu, viria em meu auxílio.
calmamente, a faca no pescoço, caindo em estertor. - Não acredito! Nem te dou cond1.lção! Não tenho,
Concluída a execução dos prisioneiros, todos se puseram entretanto, interesse em deter-te. Podes ir.
a cavalo, a uma ordem de comando. A outra ordem, puse- Ela pediu ao comandante que lhes desse um lugar onde
ram-se a caminho. pudessem pernoitar, visto a miséria em que se encontravam.'
As duas mulheres encontraram-se sozinhas. Seguiram a Mal-humorado, ele indicou-lhes uma mansarda, onde pas·
pé, com breves paradas para descanço. Ao anoitecer, viram saram a viver, até que pudessem viajar. Inuco esmolava para
uma luz na montanha. a alimentação. Procurava as caravanas em trânsito e fazia
- Eu não posso ir até lá, Inuco. Sinto-me exausta. Vê propostas, ou melhor, fazia promessas, se as quisessem receber
se agüentas subir. Eu esperarei aqui e conduzir.
178 CAMILO CHAVES 179

_ Não vos arrependereis, senhor, insistia a serva. ~ Toalp julgou acertado paralisar a marcha da ~aravana,
um grande serviço que prestais ao poderoso. general . enquanto transitavam na estrada as forças expedicioná-
~ a mulher dele, que se encontra sem meIOs de prosseguIr. rias. Perguntando, veio a saber 'Hue o comandante da ex-
Será a vossa fortuna. Pensai bem! A ocasião é uma só. pedição era o general Beb-Alib. Cumpria, pois, esperar a
_ Eu vou pensar, mas, antes quero conversar com tua sua passagem.
senhora. l\1ábi, com o filhinho, nos braços, esforçava-se/ por desCi:o-
O chefe da caravana ficou decepcionado ao ver o estado bdr entre a soldadesca: o seu querido Beb. ,'Por vezesf jtil- ,
de Mábi. gava reconhecer-lhe o talhe atlético e garboso. Em vão.
-Como poderei aceitar-vos na comitiva? De um mo- As 'coortes continuavam a passar, intermináveis.
mento para outro teremos que suspender a viagem para aten- - Ele deve passar por último" conjeturava lnuco.
dermos à surpresa do parto. Nós não entendemos disto. .~ No, dia seguinte, continuava a procisSão de gente' de
melhor que permanesais aqui, à espera do vosso filho e, depOls, guerra, e Mábi permanecia firme à beira da estrada. Fi-
seguireis viagem. ' . nalmente, reconheceu Beb entre um troço de .cavaleiros.
_ Eu não posso demorar-me, porque levo uma Impor- Embargou-se-Ihe a voz no atropelo das ttmoções e
tante mensagem para Samura-mat e para o meu marido. temeu perder a oportunidade. Se chamasse, não a atenderiam,
O viandante ficou pensativo e, com a insistência das mu- e ele passaria sem a ver. Não era possível que prestasse
lheres, resolveu aceitá-las na caravana. Não acreditava muito at~nção a uma pobre mendiga,. sentada no caminho! Contudo,
no que elas diziam, mas q~1Ís jogar .nas ~antagens. que lhe CrIOU coragem e avançou, postando-se em frente ao grupo de
pudessem advir, se verdadeiras as aftrmaçoes. AssIm pude- cavaleiros, que se avizinhava.
ram partir. . •. , . - Arreda! gritou-lhe um oficial.
Depois de alguns dias, pemOltando em um tuguno a beIra - Quero falar ao general Beb-Alib, gritou ela com voz
da estrada, Mábi foi assaltada pelas dores do parto, e nasceu- fraca.
lhe um menino. Não foi ouvida, mas ela repetiu mais alto.
O acontecimento causou grande contrariedade aos condu- - Quero falar-lhe sobre assunto urgente, insistiu ela.
tores, pelo atraso que ia ocasionar à viagem; mas Toalp, o - Foge do caminho, mendiga!
dono da caravana, compadeceu-se dela, e resolveu esperar qua- Os cavaleiros foram rpassando, distraídos. Desesperada,
tro dias. ela gritou com toda a força dos pulmões.
Prosseguiram viagem, atravessando o país dos armênios, - Beb-Alib! Eeb-Alib!
seguindo pelo vale do rio Tigre até às planícies que caracte- Todos olharam para ela.
rizam o território da Assíria. Máis algumas marchas, entra-
- Beb-Alib! Eeb-Alib!
riam em Nínive onde haviam de encontrar recurso.
Lécon e Beb-Alib já haviam concluído as suas mis- Fizeram parada. Ela correu para ele, mostrando o filho
e gritando.
sões na Asia Menor, recolhendo-se a Babilônia, quando
chegou a. notícia da invasão dos d.tas. Impunha-s~ à As- - Eeb-Alib! Eeb-Alib!
síria o dever de socorrer o povo alIado do Urartu, Julgado - Mábi! exclamou ele reconhecendo-a.
impotente para conter a onda de bárbaros. Em um momento estava ao pé dela, abraçando-a, bei-
Para evitar maiores complicações, convinha detê-los jando-a.
antes que irrompessem em outros países. - Em que estado te encontro, minha Mábi! dizia ele, pe-
Lécon investiu Beb-Alib do comando da expedição. saroso.
Angustiado pela idéia de que Mábi se encontrava na zona Diante de todos, ela contou as suas perip&ias e sofrimen-
perigosa, ele viaj'ava a marchaiS forçadas com seu exército. tos para cumprimento da missão' de que se incumbira.
181
180 CAMILO CHAVES

- Minha brava mulher, quanto tens sofrido! - Não fora a minha situação de rebelde, jamais m~ atre-
veria a revelar-te, Beb. Se grande é a minha falta, maior
ele.
é o crime do indigno Amoi, que abusou da confiança do amigo.
Ela sentia-se desfalecer. Digo-te em breves palavras, porque o assunto é repugnante.
- Beb, disse num supremo esforço, vim para salvar Amai apaixonou-se por Mábi e perdeu-lhe o devido respeito.
sa gente e trazer-te' o nosso tesouro. Beb-Ali cambaleou como fulminado.' Tudo' podia espe-
Apresentou-lhe o filho e caiu sem sentidos. rar, menos essa surpresa. Não podia duvidar da fidelidade
Beb,Ali mandou levá-la para Babilônia, onde do ami2'o e dela. Custava-lhe crer que ela, procedesse tão in-
mat .a cumulou de carinhos. Ele, porém, ao chegar a dignamente. Instintivamente, quis repelir a acusação, mas a
zoluch, encontrou uma situação diferente da que esperava. gravidade dos fatos subseqüentes estava a aconselhar melhor
rei Zambor estava em dissídio com Amoi, o lugar-tenente exame.
rainha. Zelu, o seu grande amigo, se passara para os - Como provas essa afirmativa, Zelu? indagou ele, de-
entre os quais desfrutava de grande influência. pois de longo silêncio.
Portara-se Amai com bravura na critica situação em - Os amores deles eram muito ostensivos, e podes inda-
se encontrava, e a chegada de Beb veio reanimá-lo. gar do rei Zambor, que també~ conhece o criminoso procedi-
Este recebeu, certo dia, convite de Zelu para um enco mento de Amai.
tI'O a fim de lhe serem reveladas coisas importantes. - Deves lembrar-te de que Mábi já 'estava grávidá quan-
, Entre montanhas havia uma gruta apropriada a colóqui do parti.
- Não viso falar sobre a paternidade do filho dela.
íntimos , e os dois amigos ali confabularam.
_ Que fizesté,' Zelu? Cometeste u~a ~r~Içao.
. - O silêncio foi longo.
_ Eu sirvo a. rainha a meu modo e dIa VIra em que ser - Que pretendes fazer, Zelu? interrompeu Beb, oprimi-
justificado. 'do pelas tristes cogitações que o assaltavam.
- Passando-se para o inimigo? - Já consegui pacificar ,os citas e os ká1di. As opera-
ções cessat:am, e estamos de volta aos lagos. Eu irei com
- Fui a isso levado pelas infâmias de Amai. Tanto e
eles.
como o rei Zambor estamos revoltados contra o procediment
- Cometeste uma grande falta. contra a nossa rainha.
dele. ~bem que te afastes, mas nunca te lembres de atacar a tua
- Que agravo te fez ele? pátria. Adeus.
- Além das desatenções pessáais a cada um de nós, há Beb-Alib voltou à cidade com o coração sangrando. Seu
um motivo que nos causa incontida indignação. Ouve-me. ódio a Amoi estava acima de todo outro sentimento~ que ha-
Quando um amigo nos confia um tesouro ou qualquer cai via provado em sua agitada vida. Tinha ímpeto de procurá-
sa de grande estimação para guardar, incorremos em grande: lo imediatamente e estrangulá-lo. Assomava-lhe à mente a
culpa ao faltar à nossa fé. Agrava-se a felonia, se nos preva" figura adorável de Mábi, e pensava no amor entranhado que
lecemos da ausência do amigo para nos apropriarmos do seu lhe tinha, a ela; que arrebatara a um povo adverso, como pre-
tesouro. Eu não pude suportar a repugnância pela in- ço glorioso da sua vitória. Oh! Mábi não seria capaz de traÍ-
dignidade de Amai. Eu e o rei Zambor. Se não chegasses, 10 tão ignobilmente! E esse filho que ela levava nos braços,
Beb-Alib, para restabelecer a situação, ver-se-ia o fato extra.. no encontro do caminho, nascido tão tragicamente, seria de·
ordinário de ficarem citas e káldi contra o infame Amai. le ou de Amoi?' Revoltava-se pela terrível humilhação que
- Zelu, meu amigo, empregaste, até agora, termos e alu" lhe causava o procedimento dela, mas ao relembrar a sua afli-
sões gerais, quando entre nós deve prevalecer a m~nção de. ção, à beira da estrada seu coração se confrangia. Os gri-
atos concretos. Qual foi o crime de Amoi?
182 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 183

tos dela ainda lhe pungiam a alma, como um apelo desesperado: 50S próprios lábios a explicação de tão sigulares eventualidades.
Beb-Alib! Beb-Alib! A dor fazia ferver-lhe o ódio no cora- Para ser claro, parece-me que o estado de guerra existe mas
ção, e ele tinha vontade de trucidá-la. Sim! Havia de matá- contra o chefe assírio. '
la com as suas próprias mãos, para desagravo de sua honra ul- - Agradeço-vos, general, a oportunidade que me ofereceis
trajada. E foi procurar Zambor, rei dos káldi, que tudo lhe para discut~rn:os, esse delicado assunto. Eu e meu povo guar-
havia de contar. da~o~ gratIsslma lembrança da formosa e onipotente rainha da
Zamborera um jovem príncipe, educado nos moldes civi- Assma, orgulhando-nos de participar da comunidade dos súdi-
lizados de Babilônia. Perdera quase tudo dos modos abruta- tos seus, hoje. constituída de todos os habitantes do mundo.
lhados de bárbaro, e o seu porte, afidalgado pela indumentária, Venturosos SOIS por terdes recebido de Assur a' preciosa dádi-
vinda da corte de Samura-mat, tinha muito de agradável e ale- va de tão magnífica .soberana. A nossa atitude para com ela
gre. é 4e ~bsoluta fidelidade, e a vós, glorioso general, recebemos
- Eu vos saúdo, ó bravo rei dos káldi; em nome da nossa com SIncero acatamento e solidariedade, como digno emiss~~rio
augusta rainha e no meu próprio. Que os deuses imortais vos dela;. Sa~~mos apreciar, na devida conta, a importância do
defendam e propiciem um governo glorioso e feliz. auxlho mIlItar, que ela nos. manda por vosso intermédio. O
_ Agradeço-vos, glorioso general, a amável saudação e, que há de verda~e na. si,t,,:ação, que se afigura inconseqüente
retribuindo, peço-vos transmitais à nossa venturosa soberana aos vossos olhos, e o dISSIdlO pessoal entre mim e o vosso resi-
os meus votos cordiais de felicidade e boa fortuna. Sentemo- dente.
nos, vitorioso Beb-Alib, e conversemos amistosamente. Cum- - Podeis, nobre rei, informar-me dos motivos determinan-
pre-me ressaltar que guardo, com ufania, a memória dos dias em tes desse dissídio?
que combati sob o vosso comando na campanha da Cítia, a deci- - Se' me perguntais confiantemente, é mister que vos fale
siva batalha dos lagos. Saúdo, pois, o vitorioso general dessa com sinceridade. O vosso residente Amoi, conquanto bom sol-
memorável jornada. Agradeço-vos, além da alegria de poder dado, teve para comigo infame procedimento, cortejando a vos-
relembrar tão glorioso acontecimento, a circunstância de poder sa esposa, confiada à sua e à minha guarda. Este fato, segundo
oferecer-vos os meus préstimos, uma vez que me declareis a , me consta, causou, igualmente, grande revolta entre'os seus com-
finalidade da vossa amável visita. ' , patriotas. Zelu, especialmente, tomou ostensiva atitude dere-
_ Valoroso rei, meu principal objetivo é prestar-vos ho-
provaç~o.e,. para não sofrer à mão do traidor, refugiou-se no
menagem muito sincera e afirmar-vos a cordialidade dos meus
camyo ImmIgo, onde foi be.o: ~colhi~o. Amoi,. temendo compli-
propósitos. Este encontro nos propiciam ensejo de trocarmos caçoes, mandou para Babdoma a Jovem senhora mesmo em
idéias e impressões para a boa ordem das nossas atribuições. adiantado estado de gravidez, a título de pedir so~orro em vir-
}\ssuntos há, confesso, que, para mim, se mantêm enigmáticos, tude da invasão do meu reino pelos citas. Hoje, o perigo está
o que me faz desejoso de ouvir as vossas impressões, para meu a~astado, e, pela intervenção de Zelu, os nossos inimigos estão
esclarecimento. Aqui cheguei no cumprimento de um dever dISPOStos. a voltar à Cí~ia. Cumpre, pois, afasteis do cargo o
sagrado, o de auxiliar o aliado a repelir o invasor do seu ter- vosso reSIdente, e as COIsas se ajustarão. Desculpai; general, ter
ritório. Vim, a marchas forçadas, com o meu exército, temendo eu abordado assunto tão doloroso para vós, mas o vosso apelo
chegar tarde, em vista da enorme distância a percorrer.Encon- à minha palavra obrigou-me a declarar-vos os fatos como eles são.
trei, entretanto, singular situação, que. impõe esclarecimentos.
Os citas, dentro do vosso território mantêm-se em expectativa, 'e Beb-Alib retirou-se depois de agradecer ao rei a sUa sin-
ceridade. . . ,
vós não os hostilizais. Há, parece, uma trégua nas operações
militares. Noto, de outro lado, estranho desentendimento en- . Conven~id?- da culpa de Amoi, foi procurá-lo. Como bom
tre o vosso governo e Amoi, o residente assírio, sem que o ini- diplomata, diSSimulou a. indignação, com o propósito de melhor
migo aproveite a oportunidade de atacar. Quero ouvir dos vos- esclarecer-se.
SEMfRAM!S 185
184 CAMILO CHAVES

_ Ao chegar aqui, Amoi, encontrei uma situação muito di- .Amoi Qlhava pasmado para o que se passava, PQÍs não
pod1a crer que a tanto chegasse o poder da calúnia e do ódio.
ferente da q)1e esperava. Zelu passou-se para o inimigo; em
Seu olhar esgazeado pe~ssava sobre o mar de <:abeças e lan-
vez de hostilidade dos citas, encontrei Zambor tranqüilo, à es-
ças que Q cercavam. Foi despido da indumentária militar e,
pera de que o invasor se retire. Parece-me, entretanto, que
qu~se nu, amarrado a um poste. O carrasco. aplicou-lhe cem
todos estão em desarmonia contigo. Tenho a impressão de que
chlbatadas c, ao Ser desamarrado, caiu Sem sentidos.
foi inútil esta dispendiosa expedição militar.
_ Os citas, disse Amoi, invadiram o Urartu, com todo o Sentiu-se Beb-Alil). desafrontado e escreveu à rainha sobre
°

ímpeto de sua tática de guerra, e custou-me muito, e ao rei os, ~conte~imentos, especialmente, a respeito da sedução de
Zambor, contê-los. oA situação era muito grave, e acredito não Mabl, pedmdo-Iheque mandasse a sentença de Amoi.
pudéssemos agüentar com os reduzidos recursos militares de Certo dia, uma liteira do palácio real procurou Mábi na
que dispúnhamos. Isto me fez anuir às instâncias da tua Má- mansão de Beh-Alib. Samura-mat recebeu-a com a afabili-
bi, para empreender, ela mesma, viagem a Babilônia, em bus- dade do costume, pois, apiedada das vicissitudes da mulher do
ca de socorro. Encarei todos os perigos e trabalhos que ela seu grande general, quis ouvi-la e dar-lhe consolo.
ia passar durante a viagem, mas pareceram-me menores do que - Senta-te aqui, Mábi, vàmos conversar. Como te sentes?
aqueles decorrentes ode uma derrota provável. Ela já tinha so- - S~nto-me f:liz, nll?ha adorada 'rainha, pelo interesse
frido muito, de outra feita, quando capturada a retaguarda do que . tomalS por mtm. Mmha vida, entretanto, é relembrar
nosso exército. Era uma responsabilidade que pesava sobre sofrImentos e saudades. Ainda não sobrou tempo para o amor
mim, da qual eu, a contragosto, resolvi desvencilhar-me. de m:u querido. . ~~nas .casados, marchamos para a guerra,
_ Mentes, traidor! Eu já me informei de tudo e sei e mUlt? pouco ~lq~el ao pé dele. Não me lamento, porque
que tiveste um procedimento indigno para com minha esposa. ele esta ao serVlço da nossa adorada soberana: Meu consolo
Depois de manchar a honra dela e minha, resolveste devolvê-la é cuidar do nosso filhinho, 'lembrança viva do meu compan;heiro.
para Babilônia, certo de que ela se perderia no caminho. - Minha pobre Mábi, não desesperes. Vou provi<ie~ciar
_ Eu consenti, Beb, depois de ela muito insistir. para que possas, longamente, desfrutar da tompanhia do teu
_ Estás preso, em nome da rainha I amado. Esse amor te tem causado inúmeros aborrecimentos'
basta lembrar que já foste arrematada num leilão de escravas .. :
Ordenou Beb-Alib, possesso, aos seus ajudantes, que levas- Devia ser muito engraçado o Beb arrematar sua própria mu-
sem Amoi para a prisão. lherzinha. -
Cogitava ele, na sua indignação, da maneira como havia A palestra tomou aspecto alegre com a alusão jocosa de
de vingar-se. Debalde lhe chegavam apelos de Amoi para que Samura-mat.
o ouvisse. Quisera matá-lo, ele mesmo, se não fosse a con-
sideração devida a um delegado da rainha. No dia seguinte, - As nossas amarguras, continuou, costumam mais tarde
mandou que se reunissem as suas fôrças na fronteira praça dar ensejo ao riso. A tua permanência em Mazoluch, apesa;
de guerra. O prisioneiro foi conduzido ao estrado central, da~ ~udad_es, não é de duvidar, deve ter dado azo a agradá-
onde se encontravam os generais e as autoridades. Pelo veIS sttuaçoes... ~ o sabor agridoce da vida ...
arauto foi lida a seguinte proclamação. - Oh, minha rainha! Minha vida em Mazoluch foi ~m
tormento. Vivia a chorar. A minha inquietação era tamanha
-'--< Eu, o general Beb-Alib, delegado da rainha Samura-
que ~referi arrostar os s~frimentos de uma caminhada IOl1~
mat no Urartu declaro infame o traidor Amoi, acusando-o
e pengosa a permanecer la por mais tempo. .
do crime de infidelidade aos deveres da honra e da amizade,
e condeno-o à pena de açoite, com cem chibatadas, na praça - Trataram-te mal assim?
pública, depois de degradado de suas insígnias, enquanto es- - Ti~e momentos de angústia mortal. Por que n'ào vos
pera sentença final da rainha da Assíria. acompanhel, senhora, quando viestes para Babilônia?
186 CAMILO CHAVES SE MÍRA lia: IS 187

_ Conta-me isso, minha pobre Mábi. Não chores. Por caminho com uma pequena escolta, em bem da rapidez da via-
muito doloroso que te seja lembrar, conta-o à rainha, tua gem.
amigá. Que se passou contigo? - Vejo, agora, minha amiguinha, que bem dolorosas fo-
Samura-mat, sensibilizada, envolveu-a num abraço e bei- ram' as tuas preocupações nesses dias passados em Mazoluch
Não falemos mais nisso. . ..
jou-a. Mábi, retendo as lágrimas, falou.
_ Ó bondosa rainha e senhora, duro é relembrar coisas - Se me permitis, senh9ra, eu voltarei para casa, onde
tão tristes como dizeis, mas vou contar-vos tudo. Nem Beb me espera o meu adorado filhinho:'
o sabe. Nosso encontro no caminho foi rápido, porque ele - Vai, minha filha.
. À volta do correio a Mazoluch,' Béb·AHbrecebeu a res-
cumpria seu dever junto ao exército.
_ Sempre digno o bravo general ... , interrompeu Sa- posta ?a rainha: "Meu bravo general, foste vítima de um
lamentave1 .engano. Amoi procedeu corretamente e deve ser
mura-mato po~to em hberdade, reparado o agravo que sofreu. O .verda-
. _ Minha permanência em Mazoluch, como sabeis, foi
deIro culpado é ZeIu. Mábi confessou-me tudo, e julg.o-a
determinada nelas minhas péssimas condições de saúde, no inÍ-
cio da g-ravidez. Por ocasião da minha captura na retaguarda ,?erecedora do teu afeto. A Amoi entregarás a mensagem
do exército, tive um aborto que muito me enfraquecera. Beb, Junta. Samura-mat."
- Ó deuses ixp.ortais ! Molu~ I .1star! Como fui en.,.
de partida para a Ásia Menor, confiou-me aos cuidados de
seu amigo Amoi, na esperança de procurar-me pouco tempo ganado! Como fui injusto com o meU amigo! Ó Ze1u, se
te apanhasse! A esta hora estás longe, a caminho da Chia! ...
depois. Miserável! Traidor!
_ Agora começo a compreender, interrompeu a rainha.
Beb z.:tão sabia~omo se justificar perante Amoi. Oagravo
Amoi não procedeu corretamente contigo ...
_ Ao contrário. Tratou-me sempre com respeito e soli- q?e lhe fIzera era Imperdoavel. .cumpria-lhe, porém, peniten-
CIar-se, custasse o que custasse. Era ordem da rainha. To-
citude. Mas outros não tiveram a mesma consideração para
mou, pois, o caminho da prisão, cabisbaixo, sucumbidb.
comigo. A despeito de meu estado, assediavam-me com pro-
Ao defrontar Amoi, preso com cadeias de ferro, confran-
postas indecorosas. geu-se-Ihe o coração, e desviou o olhar, porque se julgou o
_ Queres dizer-me o nome dos importunos?
verdadeiro condenado.
_ Já que perguntais, senhora, vou mencioná-los; apesar
- Be'b-Alib, vieste para anunciar-me a pena de morte.
do vexame que me causa. O principal foi Zelu.
Vai consumar-se a tua vingança, mas eu' não temo a morte.
_ ZeIu? perguntou a rainha surpreendida.
_ Sim, Zelu, o amigo de Beb-Alib. Ele não perdia oca- , - Ao contrário, Am~i,. v~nho .pedir-teperdão pelo meu
sião de importunar-me com propostas atrevidas. e necessidade ternvel engano. Como fUI mJu~to e cruel contigo! Se pu':'
houve de repeli-lo energicamente. Mas não foi éle o único. deres, na tua generosidade, perdoar-me, indica-me a reparação
e desagravo que te bastarem. A rainha, a quem pedi a sen-
As mesmas tentativas e propósitos moveram o rei Zambor.
tença para o teu crime, apontou-me o engano e me indicou os
- O rei? exclamou Samura-mat, admirada.
_ Sim, ele mesmo. Ao se aproximarem os citas, eu, verdadeiros criminosos. Como somos errados os homens nos
nossos julgamentos! "
desesperada, resolvi propor a Amoi a minha viagem, para
Amoi olhava.,o estupefato.
trazer-vos notícias ,e pedir socorro. Notei que ele se contur-
bou, a princípio, com a minha proposta, mas, ao anuir final- - Não me dizes nada? Ah! esquecia-me! Meu primeiro
dever era livrar-te dessas cadeias. Solta-o' solta-o carcereiro!
mente, compreendi que ele desejava livrar-me dos meus per-
Amoi desatou a chorar. A custo pôd~ falar. '
seguidores e, também, afastar-me da capital, no caso de vir
- O que mais sente o guerreiro é o enxovalho à sua
a ser conquistada pelo inimigo. Ele não supunha que os citas
estivessem próximos no seu avanço, daí, o ter-me posto a dignidade de homem. Eu sou um homem maculado. Apanhei,
188 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 189

publicamente, vergastadas infamantes. Fui degradado. Já não suas longínquas estepes. Regozijaram-se os bárbaros com a
tenho mais razão para viver. Fui arrastado por uma força adesão do general assírio, valente conhecedor da arte da guerra.
coletiva que não me permitiu nem o direito de morrer lutando Zelu, de fato, começou logo a modificar-lhes os costumes
pela minha dignidade. Beb-Alib, só há. uma saída para esta e a brav:za natur~I. Sem lhes contrariar os pendores para
situação. Mata-me! . o nomadlsmo,ens111qu-lhes procedimento social e convenceu-
- Amoi, o que me dizes .. é imensamente doloroso. Ja- os de que deviam escolher um rei entre os' seus mais desta-
mais farei o que pedes. êad?~ chefes de !ribo. C?m isso .tomaram ~aior expressão
- Que me vale viver? Não há lugar no mundo onde pobÍlca como naçao orgamzada. Percorreu nllmerosas tribos
possa esconder a minha vergonha: nem refugiado entre os lançando as suas idéias, convencendo, aproximando os gn;pos
bárbaros, nem escondido nas grutas das montanhas. Porque pela troca de uma hospitalidade pacificado!l"a. Ensinou-Ihles
essa dor ternvel jamais se afastará de mim. Mata-me! hábitos ?e asseio, aconselhando-os a viver à margem dos lagos
Mata-me! . e ?OS rIOs. Ele, que tão desastradamente ensaiara uma con-
qU1s~a. amorosa, em Mazoluch, encontrou uma graciosa figura
- Acalma-te, Amoi, e não' te ,entregues ao desespero.
femtn111a que lhe tocou () coração decepcionado.
Nós dois havemos de resolver nobremente o nosso doloroso
caso. Lê a mensagem da nossa augusta soberana. . Cíntia era uma moçoila loura, de maçãs do rosto um pouco
E entregou-lhe a tabuinha onde se viá o selo real. sahentes como boa eslava, mas, no seu tipo, era. bonita e bar-
- Não posso ler, a luz é pouca, disse Amoi. baramente amorosa. Segundo o hábito daquela gente que, ape-
- Um archote! gritou Beb. sar dos rudes costumes, tinha algo de cavalheiresco a noiva
A luz trazida pelo carcereiro, Amoi leu, trêmulo de emo- devia ser empolgada pelo namorado e conduzida à fo:ça. Zelu
ção: U Ao fidelíssimo Amoi possa a confiança de sua sobe- negaceou-a muito tempo, que era esquiva, apesar do namoro.
rana sanar os agravos e suspeitas dos homens com a nomeação Tinha que ser conquistada como adarvada praça de guerra.
de governador da cidade de Babilônia. Samura-mat." De uma feita, as jovens da tribo banhavam-se nas águas
- Se queres algum desagravo de minha parte, dize-mo, do caudaloso Iaxartes, rio tributá.rio do lago de Aral. Cmtia,
Amoi, propôs novamente Beb-Alib. :vendo que alguns cavaleiros se aproximavam a galope, reco-
Amoi chorava copiosamente. nheceu entre eles o garboso Zelu. Temerosa, empreendeu
- Beb, meu amigo, perdoa-te. nad.o para a margem oposta, seguida das demais jovens que lhe
Um amplexo selou entre eles a paz. E ficaram mais ami~ fazIam companhia. Aqueles càvaleiros, que· tinham ali as suas
gos do que nunca. Só então Beb ficou sabendo dos aconteci- amadas, precipitaram os cavalos no rio, seguindo-as. ZeIu, que
mentos e da razão por que o seu amigo havia consentido na ia fito na sua antia, alcançou-a em pleno nado e tomou-a
viagem de Mábi. Amoi ameaçara Zelu de prendê-lo, se ten- pelo braço, arrastando-a à flor da água. Ela pedia que a
tasse seguir-lhe os passos. Zelll, desertando, refugiara-se no deixasse, mas ele endireitou-a na garupa e deu-lhe a caPa como
campo inimigo. . abrigo: .Vencida, a beldade agarrou-se-lhe às costas, e· parti-
Entretanto, os interesses superiores do Estado não aconse- ram a. galope para formar o seu lar.
lhavam um atrito com o rei Zambor, também comprometido.
Tudo regulado e reafirmados os compromissos de Urartu para
com a Assíria, Beb-Alib colocou outro general como residente
na corte do rei Zambor.
Os dois amigos partiram com seu exército, de retorno à
Babilônia. Desse episódio sangrento na terra dos káldi, resta
uma referência a Zelu, que acompanhou o exército cita às
Sl!:l\I[ÍRAMIS 191

Um dos grandes escolhos para a segurança militar, na-


queles tempos primitivos, era a questão sexual. As guerraS
eram totais e, para vencer, todos. os meios eram empregados.
Muitas vezes, exércitos vitoriosos penetravam nas cidades ini-
migas, entregues a toda sorte de excessos. Além (\0 saque
CAPÍTULO NONO e do morticínio, como' prêmio da vitória, via1entavam as mu-
lheres. Mas o vencido, antes de rétirar-se ou render-se, con-
o MAR VERMELHO taminava-as de vírus venéreos, quepo!; sua vez se comunicavam
à soldadesca infrene. Em poucos dias, o vencedor estava re-
duzido à pior situação sanitária. O resultado era a derrota.
A beleza, sabedoria e poder militar de Samura-mat pro- Este o segredo' do insucesso de muitas campanhas que come-
jetavam-lhe o nome em todo o mundo conhecido. Engran- çavamvitoriosas.
decida pelas trombetas da fama, sua personalidade amesqui- Com o fim de resguardar a saúde dos soldados, foi orga-
nhava, em paralelo, os demais soberanos da terra. Estes, nizado perfeito serviço preservativo. Não era possível evitar
reconhecendo-lhe a ascendência, ofereciam-lhe' vassalagem e o saque ,para incitamento da fúria combativa da tropa, mas
tributo, meio cômodo de evitàr os azares de futuros conflitos. este se processava em forma requisitória, assim como se repar-
Com isto, crescia o império assirio, sem guerras, sem sangue, tia escrupulosamente o resultado das apropriações de bens
sem opressões. Compatível com a época, formava-se uma públicos e particulares. Desta forma, tornava-se possível con-
espécie de confederação universal, dirigida por uma suprema ter os soldados no acampamento, enquanto se requisitavam
cabeça, com real proV'eito para todos. mulheres para servirem, depois' de cuidadosamente exàminadas.
Sem jamais se prevalecer da força, a grande rainha dis- Este grave problema era controlado pelos próprios oficiais.
tribuía justiça com isenção e acerto. Respeitava os costumes Com medidas essenciais como esta. e outras de igual im-
e organizações dos povos, colaborando com os respectivos reis, portância, orgulhava-se Samura-mat do seu exército,.:que não
no sentido de melhorar-lhes as condições sociais e econômicas. encontrava competidor np mundo. .
Antes, cada país, temendo a cobiça dos vizinhos, encerrava-se Com igual' competência procedia ela nos outros ramos da
dentro de recintos montanhosos e inexpugnáveis. Ela, porém, administração. A justiça era ministrada com isenção e sabe-
não consentia que seus vassalos e aliados se guerreassem e o doria, principalmente na parte referente. à ordem e ao direito
mundo entrou num período de paz, estimuladora de trabalho privado. Digno de nota é o fato de uma cidade da enverga-
e riqueza. Incrementou a construção de ótimos caminhos, que dura de Babilônia, tendo agravados os seus problemas policiais
facilitaram o intercâmbio e as boas relações entre os países, com o aumento vertiginoso de sua população, se manter tran-
mesmo os mais distantes. qüÍla durante este reinado, especialmente, nas longas ausências
A vassalagem dos povos enchia-lhe as arcas do tesouro da soberana.
com a contribuição tributária. Nisto consistiam os recursos Não menos digna de atenção é a inteligência com que
para a transformação de Babilônia e mantença dos exércitos. se enfrentavam os problemas de saúde pública, para preser-
Aos poucos ela renovava os métodos administrativos em vação das' moléstias epidêmicas e endêmicas daquele tropical e
sentido prático, valendo-se da grande intuição de que era do- paludoso país. Eram eles prementes como hoje, se não mais,
tada para a escolha de auxiliares competentes e responsáveis. pelas deficiências de meios e conhecimentos científicos,
Os vizires eram os ministros de hoje. A testa do exército
Os serviços de reformas e construções, apesar de grandio-
estava a consumada eficiência de Lécon aplicado em dar-lhe
sos, mantinham-se ativos e constantes, e Babilônia crescia,
perfeita organização, para o bom desempenho de sua função
creSCia.
internacional.
192 CAM:ILO CHAVES SEM:ÍRAM:IS 193

Os limites do império já atingiam o mar Vermelho, mas Convocara os seus aliados (assim os tratava) da Fenícia,
Samura-mat queria ir além, .muito além, até aonde pudesse da Síria, do Aram, da Filistéia, da Cilícia, de Amon,· de Ama-
alcançar o poder humano. Ainda havia o Egito, a Etiópia, lec e outros, para se incorporarem à expedição em trânsito
a Líbia e outros,ao norte, para incorporar à sua jurisdição e por aqueles países. Igual convite fizera. a todos os chefes do
soberania. Depois do ocidente havia a índia e alhures ... govêrno da península. de Anatólia, cujas forças, também, de-
Colocando as nações sob o seu domínio, não mais ocorreriam viam aguardar a sua. passagem. Os reis da Armênia, do U rar~
guerras, abortadas com a sua intervenção oportuna. Todos sa- tu e da Média, que ficavam fora do itinerário, deviam chegar
tisfeitos, ninguém havia de rebelar-se, a paz imperaria, as ati- do oriente com suas tropas.
vidades aumentariam, e a humanidade havia de progredir e Ela mesma, assistida por Lécon, assumiu o .comando de
civilizar-se. Ela seria a providência desse estado de coisas, todas as forças e, fiel ao seu programa de visita aos reinos vas-
como figura escolhida pelos deuses para a gloriosa realização. salos, iniciou a excursão. pela Asia Menor, subindo o vale do
Outro problema tremendo, diante da amplitude do impé·
Eufrates e atravessando o maCiço da Armênia. Margeou o
Ponto Euxino, o mar Negro de hoje, atravessou a Paflagônia,
rio e do grande número de nações submissas, era o de manter
ao Capadócia e a Frígia. Atingido o He1esponto, acompanhou
em todas· as capitais guarnições para garantia dos residentes
a costa do mar Egeu, atra.. . és da. Misia, da Lídia, da Cátia
assírios. Isto desfalcava imenso o exército de campanha em e da Cilícia. Neste país já encabeçava um grande exército,
detrimento da sua força unitária. Em parte, o inconveniente engrossado, nos reinos percorridos, com a agregação dos res-
era contornado com o engajamento de mercenários, mas, na pectivos soberanos.
ocasião de ações guer~eiras, era mister convocar os reis vas-
salos com suas forças para delas participarem. De fato, as No ponto denominado Portas Cilícias, à margem do rio
monções militares de Samura-mat eram um conglomerado de Cidno, onde o sistema. dos montes Táurusabre passagem entre
exércitos, cómandados por testas coroadas, gente de muitas a Ásia Menor e as regiões do Eufrates e da península arábica,
raças e línguas bizarramente discordantes. Ela ia à frente das quis ela celebrar o acontecimento com a construção de uma
expediçq(}s, centralizando imenso poder em benefício de sua cidade. Com grande pompa, bateu a pedra fundamental da
própria segurança, pois sé permanecesse na capital sem apóio cidade de Tarso, célebre na antiguidade. Ali deixol1<ttma colô-
suficiente, Corria o risco de ser eliminada por um golpe de nia de árgios e continuou a marcha para a Fenícia.·
audácia. No meio do exército, ninguém se atreveria a pro- O rei de Biblos recebeu-a com grandes festas, e ele mesmo
mover insurreições pela óbvia razão de que ela dispunha de a acompanhou a Tiro, onde novas solenidades a acolheram.
amplos recursos de r~ressão. Tendo os reis vassalO's ao seu Com os reís destas duas cidades, encaminhou-se para Sidon.
lado, nó exército, sabia controlá-los, fazendo malograr, nos Na Fenícia, Samura-mat impressionou-se com a indústria
mais irrequietos, as cogita<;ões de insubrtüssão. especializada de construções navais. Ela andava preocupada
Começou Samura-mat por ordenar a marchá para o 'Üci- com as deficiências do ,poderio babilônico, quanto a navios de
dente. Já navia comissionado como embaixador no Egito o comércio e de guerra. Ó seu país, banhado por dois rios com
seu grande general e diplomata Beb-Ali1?, a :fim de lhe pre- valesdesértícos, não dispunha de florestas fornecedoras de
parar os passos. Sabia da hostilidade. que, pessoalmente, lhe madeiras para construção.
votava o faraó Ramis e não hesitou em colocar-lhe à frente Jamais Babilônia possuíra uma esquadra e, embora vizi-
a sua melhor figura com poderes extraordinários. Entretanto, nha do mar, dele se mantinha isolada, à míngua de um estuá-
ela esperava atrair o Egito à sua órbita, sem o recurso extremo rio no Eufrates. Esta falta já estava sendo sanada com aber-
da. guerra. Beb-AliI> já se encontrava em plena atuação, no tura de um canal de ligação entre este rio e o golfo Pérsico.
seu posto em Tânis, quando se movimentou o exército assirio- Os reis de Bib1os, Tiro e Sidon governavam a confede-
babilômco. ração fenída e a rainha aproveitou a ocasião do encontro para
194 CAMILO CHAVÊS SEMfRAM!S 195

visitar os estaleiros e estudar o problema da construção de - Integrando a· minha expedição, cada um de vós co-
uma esquadra. mandará o seu contingente de artífices.
- Invejo-vos os excelentes barcos que possuís, dizia ela, - Seja féita a vossa vontade.
lisonjeando-os. Com eles, sois senhores dos mares e (; mundo Samura-mat não pôde conter o seu entusiasmo.
vos deve muito pelo conforto e utilidades que distribuís atra-
vés da navegação. Se vos apertam por terrà, podeis distender - Admiro os fenídos pelo muito de que são capazes.
o vosso reino pelo mar, e ninguém vos apanhará. Na minha capital ji estão inúmeros deles à testa das grandes
construções que determinei. Pena. seja tão pequeno o país!
- Altíssima rainha, disse o rei de Biblos, vejo que vos
Eu governaria o mundo com os seus navios e com a fõrça
preocupais demasiado com o nosso poder marítimo, quando
do seu engenho.
dispondes do mais poderoso exérçito do mundo e todas a~
nações vos prestam homenagem. - Graçásvos rendemos; senhora nossa, pelo encômio.
- Sim, tenho o maior exército do mundo, mas gostaria Entie eles' combinaram construir a esquadra de Samúra-
de ter uma esquadra correspondente. mat ná costa da .Etiópia, assim como se comprometeram a,
:...:... Tendes sob o vosso mando as esquadras fenícias ... fornecer-lhe, oportunamente,. UfIla esquadra que a levasse à
disse o rei de Tiro num galanteio. Etrúria, na Itália.
- Isso, no Mediterrâneo. Mas, no mar fndico? Como Uma excursão à ilha de Chipre permitiu à rainha de Ba-
poderei atingir as longínquas terras do oriente, sem superar bilônia viver o bucolismo da· vida rústica, cOnvidativo para
as cordilheiras que as cercam? Com uma esquadra igual à os labores dos Campos e dos vinhedos. Em Palítiro, nas pro-
vossa, naquele mar,eu conquistaria o desconhecido ... ximidades de Tiro, visitou o famoso templo de Hércules, no
- Não sei, poderosa rainha, disse-lhe o rei de Sidon, se quál bebeu as inspiráções para o monumental templo de Belo,
naquele oceano· haverá opositores marítimos ao vosso poder. que mandara construir na 'sua capital.
- Melhor! atalhou ela. Os navios transportariam pro-
dutos da indústria e do comércio. - Queró-o tão belo, porém mais grandioso! excla:mou ela.
-"Entretanto, disse ele, há meios de cumprirdes os vos- A comitiva expedicionária,' acrescida dos soberanos fení-
sos desejos. cios, rumou para Damasco, de onde se dirigiu ao país dos amo-
- Como? indagou ela. As costas da Arábia são desér- nitas; Fugindo à direção do istmo, que ligava a Arábia ao
ticas; igualmente as banhadas pelo golfo Pérsico e as que vão Egito, deixaram os excursionistas, à direita, a cadeia dos mon-'
dar à fndia. Não existem cedros nesses litorais, segundo me tes Sinai e' desceram, margeando o golfo de Acabá e o mar
consta. Vermelho, até defrontarem a Etiópia.
-. Na África não há cedros, disse o rei de Tiro, mas NegociaçÕes com o ,rei deste país permitiram que parte
o ébano é abundante. A costa africana do mar Vermelho é das tropas. de Sa,mura-mat se transferissem para a ma~gem
rica de florestas virgens. africana, a fim de darem início à construção de estaleiros e
- Tendes razão, meu amigo... E vós me ajudareis a navios de guerra. .
construir os meus navios? Naturais da terra se empregaram em abater agigantados
- Magnífica rainha! disse o rei de Biblos, todo fení- troncos e trazê-los para a margem do mar, onde eram redu-
cio é um armador de navios. Se os reis de Sidon e Tiro zidos a' pranchas e tábuas.
ajudarem, em br~ve tempo construiremos a vossa poderosa Ali pôs a rainha em açãl,:> a .sua atiVidade e inteligência
esquadra. no acompanhar e prover a organização de uma indústria im-
- Certamente auxiliarão, não é verdade, meus amigos? provisaôa, {)nde faleciam recursos de toda ordem.. Ao mesmo
- Sim, poderosa rainha, obedeceremos às vossas deter- tempo ela dispunha os negócios do im~rio, através da cor-
minações, responderam eles. respondêndaoom os seus vizires em Babilônia.
196 CAMILO CHAVES
SEMÍRAMIS 197
Na banda da Etiópia, surgiu, de improviso, uma pequena
aproximação, mobilizava-se a espionagem do elemento femi-
cidade, transformada em corte da rainha de Babilônia. Os nino alarmado e, muitas vezes, pacatos maridos caíam na mur-
abarracamento" iniciais f()t"am-se transformando em casas de muração mordaz dos maledicentes, criando ridículas atitudes
madeira, tijolos e pedras, onde se aglomeravam famílias de das esposas desconfiadas.
oficiais e altos funcionários. A corte, propriamente, era cons-
Mas a atenção de Fátima, caprichosa na escolha dos seus
tituída de outras cortes com os respectivos reis, rainhas, prín-
tipos preferidos, prendia-se a altíssimo fruto proibido. Lécon
dpes, funcionários e serviçais.
embora não cingisse uma coroa, era, na qualidade de consort~
O mar Vermelho, de si mesmo tranqüilo e pouco fre· de Samura-mat, o sol daquela aglomeração humana. Era ele
qüentado, inesperadamente se .encheu de navios, que o cruza- chefe supremo dos exércitos, e, à sua ordem, serviam os reis.
vam em todas as direções, na faina de adestramento de biso- Durante o dia ele se multiplicava em atividades administrativas,
nhas guarnições para a vida do mar. Belas pandas ou galeras dando ordens, despachando, inspecionando serviços, mas du-
movidas a remo, reunidas em flotilhas, antes de se lançarem rante a noite ia para junto da esposa, e todos louvavam a
à travessia do Oceano, cujos vagalhões, em vigorosos aco- harmonia do casal. Ademais, Lécon não era dado à vida
metimentos, nas portas do estreito, faziam tremer as rígidas fútil da sociedade e, nos serões palacianos, quando podia, es-
carenas, pervagavam no tentallje de improvisar marinheiros. tava
. .
sempre ao lado da rainha. Além da natural austeridade ,
ImpreSSIOnava pela fama de grande general. É sabido que a
Samura-~'lat honrava as famílias reais de seus aliados e mulher é sumamente susceptível de ilusões e entusiasmos diante
reunia, em torno do seu trono, uma sociedade mesclada de dos tipos heróicos, principalmente, a mulher árabe" cUJo a vida
muitas raças e idiomas. Nos seus grandes afazeres, reser- .' \ .

restnta a caravana, a torna impressionável aos lances de bra-


vava tempo, também, para atender e distrair as famílias expe- vur~ d?s atrevi~os nôm~des do dese;to. Fátima perturbava-
dicionárias, acantonadas nessa região semi-selvagem, inspira- se a. VIsta da fIgura .mascula e glonosa do guerreiro assírio
dora de tédio. Mandou contratar em várias capitais artistas e . deI~ava-Ihe olhos c;smadores, que ele mal podia suportar.
de toda ordem, ginastas, atores, cantores, músicos, prestidi- FIeI ~ sua companheI~a, ele se esquivava à cobiça da sereia
gitadores e bailarinas. Organizavam festas palacianas, ex- e retirava-se, nas ocaSIões em que' ela freqüentava os saraus.
cursões no mar Vermelho, visitas, no interior do continente, Não ~ra ela a primeira a assediá-lo, mas sobre tudo temia
a magnatas etíopes, recepções a xeques nômades da costa as leVIandades da princesa etíope, insistente no seu propósito.
arábica e outros divertimentos. O palácio real (chamemos ~e Lécon: P?r motivo de ?e.rviço, se encaminhava para o palá~
assim às instalações provisórias de Samura-mat) era o ponto CIO do reI etIope, ela o adlVmhava, cercando-o de mil atenções.
preferido, em tomo do qual gravitava aquela sociedade irre- Não podia o guerreiro ser insensível às s~duções e encan-
quieta e sequiosa de distração. Teciam-se ali enredos em- tos daquela carne moça que se lhe oferecia, mas na fidelidade
polgantes .das comédias da futilidade ou dos dramas da intriga. e carinhos da esposa encontrava resistências que o salvavam
Fátima era uma princesa aparentada com o rei da Etió- nas horas decisivas. Samura-mat era a perfeição moral e
pia. A dinastia reinante no país era de raça árabe, demo- física, a quem não se podia comparar outra mulher, e ele
graficamente predominante. Pela afinidade racial e pelo uso se gloriava de ser o seu único amor.
quase geral da língua árabe, ela se afeiçoou à magnificência
da corte babilônica le passou a freqüentar assiduamente o
.o
.Gerto di~, casal foi convidado pelo rei etíope para uma
partIda venatona. Nas savanas do planalto vagavam enormes
palácio. Jovem, morena, de grandes olhos negros, agradava ma?adas de cervídeos, cuja perseguição constituía grato entre-
a todos pela graça do seu temperamento. Vivaz em excesso, temmento aos amantes das fortes emoções da caça. No dia
não media conseqüências nas suas artes de sedução, transtor-. aprazado, Samura-mat e Lécon, montando fogosos corcéis ára-
nava a cabeça dos homens, fossem eles reis, príncipes ou vi- bes, reuniram-se à comitiva, constituída de reis e príndpes.
zires, Ocasionando a acrimônia ciumenta das mulheres. À sua Os veadores do rei já tinham localizado numeroso grupo dos
198 C_A M I L O. CH AVE S SEMfRAMIS 199

velozes animais e, plira lá, se dirigiu a turma de caçadores, Os cavalos, ao toque das rédeas, viraram nos cascos e
encabeçada pelo soberano etíope. c?meçarama courer desabaladamente, campo afora. Lécon
Estas corridas constituíam, -além da prática recreativa, ele- VIU quando a fera,espirrando da moita em formidando salto
gante exibição da arte de cavalgar, e tanto homens como mu- caiu so.bre a anca do cavalo branco. Este arriou ao peso d~
lheres punham em' evidência aptidões de destreza e coragem. carga mesperada e foi ao chão, cuspindo fora a amazona.
Fátima, cavalgando fogoso ginete branco, distinguia-se pelo Ele, na carreira, passou-lhe perto e tomou-a pela mão, arras-
garbo e pelaàJacridade da indumentária. tando-a para fora do alcance da fera, entretida com o cavalo.
Dispensavam-se as matilhas neste gênero de caçadas; a Em .!>reve parada, fê-l~ subir de um salto à garupa, enquanto
perseguição se faúa em vertiginosa disparada, e os cervos, em o leao, cortada a carotida, chupava o sangue do belo cavalo
plena fuga, deviam ser abatidos a golpéS de pequenos dardos. branco. E entrou a correr, de retorno à comitiva.
Entretinha-se a manada descuidosa sob o arvoredo es- Segura! gritava ele.
parso. A sutil aproximação dos caçadores, inexplicável ner- Fátima atarrachava-se-Ihe às costas.
vosismo apoderou-se dá turba, e um de~es, ~omo a observ~r, . - ~ meno;; que surja outro inimigo inesperado, não há
projetou-se para cima em salto enorme, ImedIatamente seguIdo maIS pengo. Ja estamos perto da comitiva.
por outros, de tal forma que a manada toda, contaminada pelo - Que pena! disse ela.
dessultórÍa.·°
estranho procedimento, oferecia: divertido espetáculo de arte
rei da Etiópia iniciou o assalto, e todos os
caçadores investiram com ímpeto o bando alarmado. Durante
- Por que?
- Porque eu qUIsera permanecer agarrada a ti eterna-
mente.
algum tempo, só se ouvia o tropel da disparada ~lu:dnant~, .e
gritos a disciplinar os ginetes. Entretanto, no. Irr;pu.lso m;l- . - Fátima! admoestou ele.
cial, os perseguidos levavam vantagem, mas a resIstencIa devia - Só assim posso estar próxima de ti, Lécon. Não per-
vencer a-prova.Muitos cavaleiros, notadamente mulheres, de- c~bes meu_amor? Não vês a loucura que tenho por ti? Ben-
sanimados, interrompiam a perseguição ; poucos insistiam. aI?ro- vmdo o leao que me atirou nos teus braços. .. Pára, Lécon!
ximando-se dos fugitivos, quando :LéCon, no seu veloclsslmo 0t;ve-me! Já se me passou o susto. Quero dizer-te, quero
'cavalo negro, já vibrava certeiras cutiladas. Ele ia sempre grItar-te que te amo.
adiante, seguindo, golpeando os tímidos animais, enquanto ou- - Não vês que nosso amor é impossível se sou casado
tros, contentes com as presas abatidas, iam desistindo. e amo minha esposa?
Notou Lécon que apenas um cavaleiro o seguia, mas atento - Feliz Samura-mat, que recebe única os teus carinhos!
na perseguição, não o reconheceu. Foi quando o leão, invi- Eu o sei, mas quero-te a despeito d~ tudo: Não me negues
sível espremeu um rugido rouco, tonitruante. Impossível 10- a' tua carícia, Lécon! Tem pena de mim!
caliz~r a fera, que parecia saltar de todas as moitas e anfrac- A formosa beduína dizia-lhe ao ouvido aquelas palavras
tuosidades, tala impressão de ubiqüidade que lhe dá o sevo de fogo, e ele sentiu incender-se o coração ao ver-lhe os olhos
roncar, que tudo estremece. Lécon interrompeu a carreira para chamejantes e suplices. Interrompeu a marcha e voltando-
observar, yisto· ser iminente a agressão. Só. então reconheceu se, recebeu na boca o beijo ardente daquele vampi~o, sedento
quem o acompanhava - Fátima. Ela estacou o corcel junto de amor... E amaram-se, ali mesmo, em plena natureza.
a ele, 'como a pedir amparo. No seu rosto estampava-se 11) Depois ... , sentada sob a fronde, olhos luminosos de feli-
pavor. ci~ade, ela sustinha sobre as pernas a cabeça do varão, em-
- Fátima! exclamou ele. bnaga?o de uma doce sonolência. Contemplava-lhe os braços
- Acode-me, Lécon·! suplicou ela. musculosos, onde se enroscavam túmidas veias ...
- Calma! Retrocedamos 1 Ecoaram os gritos ,dos veadores, preocupados com a au-
sência dos extraviados, a interromperem os amantes.
200 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 201

No seguinte dia, Lécon ausentou-se para o combinado en~ dou chamá-lo. Estava ausente, e ninguém o vira durante o
'contro. Sentia-se preso aos amavios daquela mulher diabó- dia.
lica e tinha a impressão de que ela era feita de matéria vis- A noite, chamado, mandou dizer a súa mulher que tra-
cosa, à qual ele estava aderido. Repugn~va-lhe? _procedi- balhara muito na inspeção do fornecimento de madeiras para
mento infiel relativo à sua Samura-mat, cUJa perfelçao, como os navios. Estava extenuado, ia dormir. No seu entranhado
mulher estava acima de tudo. Relutava em ceder àquela ma- amor pela esposa, não se sentia com coragem para juntar dois
nia m~s sentia-se envolvido e lembrava-se do triste destino afetos discordantes, um, puro e sincero, e outro, indigno e
da; avezinhas diante do poder mágico das serpentes. Fátima pecamino~o. Preferia não procurá-la.
já era a sua obsessão e sem mais preocupações foi cair ílQS A escrava Núbia, que presenciava esses acontecimentos
braços da sereia. Nesse dia, marchou ele confiante para o íntimos do casal, tomou-se de compaixão pela sua senhora.
recanto maravilhoso, onde o esperava uma deliciosa hora de Via-a tão boa, tão sincera e confiante, e não mais pôde si-
amor. lenciar.
N os dias seguintes, o fato foi notado por um testemunho - Núbia ama muito sua senhora. Tem pena da traição
qualquer, e os passos de Lécon passaram a ser observados, que lhe fazem. Aquela, mulher quer tomar seu marido. Ele
apesar de os amantes nunca se julgarem objeto de atenção. vai na cantiga dela... É o que· todo mundo está dizendo ...
A maledicência rompeu bisbilhoteira nos cantos do palá- Chocou-se a rainha com o que ouvia, mas tentou des-
do real, e em todas as bocas se esboçava um sorriso, sibilando culpar.
o diabolismo mortal da malícia. O fato era conhecido de - Isso só pode ser intriga, Núbia. Não conheces o ca-
todos, menos de Samura-mat, e ela comentava na intimidade: ráter do teu senhor?
- Há dois dias não vejo o meu querido amigo. Nem - Senhor muito bom, dizia ela na sua linguagem imper-
à noite tem ele aparecido como de costume .•. feita, mas a mulher é filha do diabo. Ela é bonita, senhora!
- Naturalmente o cansaço o impossibilita de visitar-vos, Faz virar a cabeça dos homens... Ela toma seu marido, se-
senhora. , nhora!. ..
Isto lhe dizia a fidelíssima Sinefru, no propósito de pou~ - Ela quem, N úbia? perguntou Samura-mat, ansiosa.
par sua ama a um desgosto. - A parenta do rei ...
- Sabes, Sinefru, que a presença dele constitui para - Aqui há varios reis... Qual deles?
mim a maior ventura? Tenho a impressão de que, se ele me - < Ora, senhora!... Fátima! Fátima!
faltar, ruirá toda a minha fortaleza, pois é a figura acabada Foi como se ela recebesse uma pancada na cabeça. Cai-
do homem, do guerreiro e do político. Não era possível edi~, ria, se estivesse em pé, mas se conteve a considerar.
ficar-se o império, de Samura-mat, se faltasse a figura pri- - Como soubeste isto? perguntou, mansamente.
vilegiada de Locon. Ele é a minha estrela, o meu fanal, a - Todo mundo fala, senhora minha. Aquela bedu'ína é
minha preocupaç'ão. muito capaz dessa traição. É mulher fatal, senhora! Meu
- Ele vos conquistou ao leão, senhora ... , gracejou a pobre senhor! Caiu na rede daquele morcego sl1gador ...
velha ama. A noite, Samura-mat passou-a em vigília. Grande tris-
- Ele é o meu leão! emendou Samura-mat, com orgulho. teza a invadiu. Procedeu à revisão de sua condição de mu-
Tornara-se pensativa e desculpava o esquivo. lher. .. Não estava envelhecida; ao contrário, com trinta anos,
- Meu pobre Lécon! Naturalmente tem trabalhado julgava~se moça, em plena pujança de sua beleza. Ela enten-
muito ... dia que o amor devia ser espontâneo para ser sincem; indene
No terceiro dia, seu companheiro continuou arredio. Ela, de interesses e convencionalismos. Cumpria à ITlUlher fazer-
alta noite, mandou saber notícias dele, em seus apQsentos. se desejada e amada por seu par; cumpria-lhe defender seu
Dormia profundamente. No dia seguinte, estava aflita. Man- amor com diligência e carinho, para não cair em abandono.
202 CAMILO CHAVES
SEMfRAMIS 203
Amava ternamente' seu companheiro, mas queria merecer igual Edificaremos um reino para ~ós. " Ouviste?.. P ara nos > ...
afeto. Tudo fazia por assegurar a sua posse, e jamais lhe S eremos os únicos soberanos ...
ocorrera que viesse a cair no enfado e que ele a substituísse
Bem no ouvido, destilava-lhe sedução.
no tálamo.
Espírito bem orientado e livre de preconceitos, não en- - Queres, . meu amor? Fujamos d;:tqui! Fujamos!
Vem comigo! Vem!
contrava ela, em si mesma, a causa do tédio do marido. Mi-
rava-se no espelho grande, mas 'este lhe bradava, na exihição . Ele silenciàva, olhos fechados. Ela, como a qUerer devas-
de suas formas :esculturais: "És magnlífica!" Assaltava-a, sar-lhe os pensamentos, observava-lhe as contrações do rosto.
por vezes, a idéia negativa de- que Lécon talvez a suportasse - Nada me dizes? perguntava. Estás po~venturafar-
por ser uma rainha... "Não, não !", bradava-lhe o espelho. t o.? . E m tao- poucos d'Ias? . . Op" infeliz "de mim, que não
"És a. rainha das belas!" Para Lécon, ela não queria ser conSIgo prender o. meu amor!... Dei-te tudo; amor, beleza,
rainha, mas simplesmente mulher ... todo o meu ser! Ingrato, não te comove a'minha ternura? ..
, No dia seguinte, mandou segui-lo e obteve a confirmação . O seu rosto se incendiava de indignação ao sentir-se fe-
do que temia. rI~a no. ~eu orgulho de mulher; os seus olhos despediam lam-
peJos SI?lstros. ~evantou-se, como se a movesse oculta mola,
Lécon já se tinha convencido da falsa situação em que se
~, ~escUldada do mdumento, postou-se nua diante do guerreiro
metera. No leito adúltero pensava em sua esposa e no con- mdIferente.
fronto entre uma e outra reconhecia a imensa superioridade
. - Preferes a rainha!... Não porque seja mais bela do
dela.
~e eu••.. Porque .tem uma Coroa à cabeça... Os homens
Fátima, porque ele 'estava triste, temia perdê-lo; multi- sao sempre ~nteresseIros. .. Vis, muito vis são os homens! .
plicava-se em carícias e punha em aç:ão todas as suas artes Louca. de illlm, que ousei disputar à rainha o seu homem! .
de loba ciosa. Agarrava-se-Ihe em paroxismos de luxúria, como LanceI-me. a uma ~i~puta desigual, em que o prêmio é um
a querer devorá-lo. macho chelO de astucla e ambição.
- Amo-te, querido, acima de tudo que mais amo ... Lécon, chicoteado pelo sarcasmo, levantou-se, vestiu a cota
Quero-te para. mim por todo o sempre... Não te deixa~ de malha, colocou o elmo e cingiu a espada... .
rei fugir... Nunca! - Basta! disse. Isto não pode continuar. Podes gabar-
Ele recebia aqueles afagos com tédio; Fátima era uma te de haver cons.eguido o que nenhuma outra mulher logrou:
taça de vinho capitoso, que ele sorvera. até o fundo. Era, afa~tar-me da mmha esposa, que amo de toda a minha alma.
agora, uma taça vazia ... Esta encerrada. a nossa aventura.. Esquece-me!
Ela se insinuava, mansamente. Ela ficou aterrada, sem poder falar.
_ Estás triste, meu amor? Que ocorre contigo? Con- ?- Então, ~ verdade!? disse ela, por fim. Vais deixar-
ta-me . as tuas contrariedades... Desavenças em teu lar? me. : i . Oh, nao me abandones! Só penso em ti! Só vivo
Conta-me, querido! ... de tt ....
Ele se quedava silencioso, enquanto ela o olhava atenta- Prostrou-se ao pé dele, súplice, lacrimosa.
mente e lhe dava um longo beijo. - Perdoa-me! Perdoa, Lécon, as minhas loucas pala-
_ Queres, meu amor? continuava ela. Fugiremos da- vras! Proferi-as na veemência do meu ciúme ...
qui. " para muito longe... Lá seremos um do outro, exc1u 4
Soluçando, enlaçou-o pela cintura, num 6ltimo apelo.
slvamente. .. Onde não se ouça falar em Babilônra... , nem - Não te vás, Lécon! Perdoa-me!
na Iremos o . desconhecido da Áfri- - Não esperes que eu volte! Adeus!
ca ... nasce o Nilo ... Fátima levantou-se indignada e apontou-lhe a porta.
204 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 205
- Vai!. .. Que eu nunca mais te veja, alma de chacal! Não vês que eu sou a chacota dos súditos e dos ser-
Antes não te conhecesse nunca 1 Por que não deixaste que o viçais? Isto me ofende e amesquinha.
leão me devorasse? Sentes o acontecido, só pelo orgulho magoado?
E caiu, aos gritos, sobre o leito. Não, Lécon, é porque pertences, agora, a uma prin-
partiu como se fosse para a batalha. Encaminhou- cesa etíope ...
oS seus aposentos, descontente consigo mesmo. ' Havia O sarcasmo doeu-lhe como uma chicotada; contudo tentou
S~: avistava com Samura-mat. Não sabia como
uma justificativa, que lhe brotou espontânea.
ntltn mesmo como se apresentar a ela.
- Fui enfeitiçado por ela. Não a quero mais, querida.
IiYcl'lUlmt no divã. Eu quero é a ti, a ti somente!
Estiveste doente? Ela quase se comoveu, mas tão grande era a sua indigna-
ção, que não quis ceder.
- Entre nós está tudo acabado, disse.
Lécon permaneceu estático' e afastou-se, lentamente. VaI·
no campo de t011 aos seus aposentos e sentiu-se desarvorado. Não podia
Lécon está conformar-se com a atitude de sua mulher. Pedira-lhe perdão,
todos estes estava arrependido e se libertara da feiticeira. Sem o amor
de Samura-mat não encontrava mais razão de viver. A sua
Que fazer? Con- noite foi terrível.
pedir-lhe perdão.
tflf"IlI{lf No dia seguinte, procurou sufocar no trabalho seu des-
pondo-se de joelhos. gosto.
À noite, estava exausto, mas não dormiu. Tinha ímpeto
contra ti! ... de procurar, novamente, Samura-mat, ela, porém, fora brutal
,t perdoar-te, Lécon; o amor é livre e para com ele, e temia sofrer igual humilhação. Passaram-se os
seu alto preço. A falta dele, o dias e nem uma só vez pôde vê-Ia. Trabalhava, trabalhava
uma ignóbil comédia no querer simulá- para não se lembrar do acontecido. Fátima mandara chamá·
nitrito nos amamos, mas agora não mais me que- lo, algumas vezes, mas ele sentia repulsão por ela. Tinha de
e estás livre!... eu me considero substituída. matá-Ia.
O teu ciúme vai a esse ponto, Samura? perguntou ele;:. Esperava arrefecesse a ira da esposa, e, então, talvez fos-
Chamas ciúme à dignidade da mulher... Não tenho se possível a reconciliação. Mas, os dias passavam ...
tanto que te restituo a liberdade. Ela, desde a ocasião do rompimento, estava encerrada nos
És cruel para comigo. Entretanto, na tua intolerância, seus aposentos. Ninguém a via a não ser a fiel Sinefru. A
esqueces que, apesar do amor jurado, pertenceste a um gene- cena com Lécon abalara-a, profundamente. Quando ele se
ral, primeiramente; depois, a um rei. Tudo isso suportei sem retirava, quis bradar-lhe que voltasse mas o seu orgulho impe-
me queixar. Mantive-me sempre fiel à minha promessa. diu o gesto conciliatório.
Ela não esperava ser tão rudemente exprobrada e irri-
Deixou-se cair no leito, em soluços. Reconhecia-se uma
tou-se.
- Eu não merecia o teu amor, porque faltei a ele. Não obstinada, que não sabia perdoar. Que havia feito ela? Vi-
devias aceitá-lo, apesar de não ter eu amado a ninguém, senão ver sem Lécon?
a ti. Mas ele era a sua vida, o segredo da sua fortuna.
- Por isso te recebi. Faltei agora e pedi perdão. Por - O que está feito, está feito, pensava.
que me tratas tão rudemente? . A noite, não podia dormir. Sofria-intermitências de choro.
206 C A M I LO C Ir A 11 ES SEMiRAMIS

Não se alimentava, e as cores da face empalideciam. O - Mande chamá-lo, menina, que ele VIra.
rosto, até então perfeito, deu o primeiro sinal de decadência. - Isso não o farei Tenh d
Sentia grande fraqueza minar-lhe o organismo à corrosão do recusa.. Seria a minha r~í~~ o me o: .. , medo de sua
íntimo desgosto. jo de desistir das minhas .... Sabes, Smefru, .tenho dese-
'. conqUIstas e voltar para. Babilônia.
Não obstante se comprazia, por vezes, à recordação dos
- SerIa a sua derrota, menina I Deus a 1" d
venturosos dias do oásis dos Peregrinos e da cena épica· dos passo I . lvre esse mau
leões, quando Lécon a salvou. Os amores inocentes, em Da-
masco, e as recíprocas juras assaltavam-lhe a ménte com ter- - Sem Lécon, não posso continuar.
nura. Vinha-lhe, então, à lembrança, tomo U11l espinho acra- -: A menina quer o marido ou o general?
var-se-lhe no coração, o caso doloroso da sua falsidade ..• rigir ~l~fru, como mãe de criação, tinha liberdade de se dí-
Oanês! Este homem a tornara perjura... Ela devia ter re- _ amara como se fora. ainda a sua pequena pupila.
sistido. às considerações de seu pai. .. Depois. " o rei- Cham- Um e outro. Como companheiro' . .
si-Adád. ~entia-se como uma boneca na mão inflexível do oomo general, é a minha glMia. ' e a mmha vIda;
destino. Brotava de seu !íntimo' U11la voz misteriosa a insi- Lécon, também, desesperava-se com o silênci d
nuar: -'- "Se não fosse assim, não serias senhora do mundo. Estava convencido de que ela r' d o a esposa.
Que se'ria de tí se fiel fosses ao teu Lécon?" De outra feita, via e nada Ih h
. '
.o a IJara. o coração. Não a
e cegava a respeIto dela Tal - .
a voz interior argüia: - "Perjura foste duas vezes: a pri- alnda afastado do comand' _ . vez nao o tIvesse
meira, faltando à promessa a Lécon;a segunda, sacrificando mas acabaria iPO r demiti_fo.e;;~en~~~h aoS serviços prestados,
o teu segundo marido... Por que, agora, és tão rigorosa?" desse por exonerado I' or que ele. mesmo se
Era como se um punhal a tr~pas~asse. . falar no nome dela '1' na para um lugar onde nem ouvisse
Outra vez, a inexorável voz interior lhe dizia: "Estás so- Antes de dar ~ ;a~:afi~af°rte? nas ~egiões hiperbóreas.
frendo muito? Lembra-te de quanto fizeste sofrer a Lécon, Tarabat, varão sábio e rud ,qUIS OUVli seu velho amigo
e
quando vivias nos braços de um general.. .ou de um rei ... mais delicados problema~ Ce:ltd , aO quallhcost?mava expor os
. eu da ve a tempera ad "
Ele quase se matou de desgosto". ra nos conhecimentos de um a ' A ' I ,qUIrt-
- Sineiro, dizia ela, não suporto mais o remorso. Como mórdios do Súmer o 't cd1encla. ocu ta, provinda dos pri-
, concel o a 'eqüidade no 'uI 'd
fui cruel com Lécon! Estou arrependida do que fiz. Nós problemas e a. sabedoria do b e ' J gamento os
todos temos as nossas quedas, nãQ me lembrei disso... Mi- instruíra seu jovem discípulo 00 V1V~. ,Desde a juventude,
nha infidelidade a ele foi muito màis grave. Traí o amor ju- tes dos mistérios de Marduc n~s con eCJ1Uentos. transcenden-
rado. . . Casei-me duas vezes, contra os ditames do coração. lador dos homens e das naçÕe~ ~:Sra~ur~o, CrIador e regu-.
Nem por isso ele me repudiou, quando eu o quis. Não tenho te da toogonia caldaica mas . a nao era um sacerdo-
coragem de procurá-lo.. Sou eu quem deve pedir-lhe perdão. dos mistérios da alm~ d um n;ago, conhecedor profundo
discípulo que ao d e o umverso, Afeiçoara-se-lhe o
Ele, com razão; não me perdoará... Não há de querer-me. , ascen er aos postos de m d ..A

sempre ao seu lado não' . - an 0, qUIS te'-ló


- Não acredito lhe tenha ele tomado aversão, retrucou a conselheiro. ' como um servIçal, mas como amigo e
escrava. ~leama-a sobre tudo ..•
- Pensas assim, Sinefru? Tarabat, meu amigo ch .'. .
slstencia.' Minha situação a' ,e~el a? ten;n~ da mInha re-
• A -

- Ninguém o vê a não ser no trabalho. De noite, não E A. , • o pe a raInha e Insustentável


sai. Sinal de sofrimento, senhora!... Quem sofre ama..• _xpos .ao sablo ~ várias circunstâncias da questão. .
- Eu também sofro... 1t porque o amo... Não sei VeJo , me~ amIgo, respondeu o velho Tarabat que '
mUI't'o bom guerreIro mas , . d' ,e
devia prever os acodtecime;;;:~m:ist~p~~~:~~ t~~~:~~:~~~nte,
como possa ser rainha sem ele. . . Ele é um verdadeiro reL
11 um verdade~ro leão, o meu leão, a minha glória ..•
CAMILO CHAVES
SEMfRAMIS 209
208
~~U~t~:~~oT:r:::\~lhgl.um ó~ropara a ~ua segurança.
_ Fugi quanto pude da tentação.
_ Devia ter deixado o leão proceder ...
Recebe
d' . _ ce e a nossa amIzade
~;n:~-t~oq~e~ut:~r~~;~ mlq~~s:::;,
avises a
º
to~os qu~ ~~:~
os
_ Como, Tarabat? . . a remuneraçao de cada um
~ Ele se propôs livrá-le de um óbice... Era um agen- - J a está de partida? .
te do destino. Na derrota, nessa batalha com sua mulher,
-: Sim.. Amànhã c~do, tomarei O navio ue me levar'
comprometeu a retirada e está em via de completo malogro. ao EgIto. La, embarcareI para as Gálias Gu~d . t a
_ Fatalidade, meu amigo! ... segredo. Adeus. . a 1S ° como
_ Nas guerras com as mulheres a tática. é diferente e
inútil é o querer provocar desfecho em uma única batalha. A - Bons fados o acompanhem, magnífico Lécon
mulher procede com surpresa. e usa a tática das guerrilhas. ; . , Tarabat meditou a noite toda Não d' f'
com o maIo ro d . . . po ta con armar-se
com ataques inesperados, com retiradas simuladas. Não se fie diência à r~nha ep~~u aml o· Na manhã seguinte, pediu au-
g
nas aparências, meu amigo, nem se amofine tanto com os . . a assun t o urgente. Samura-mat sabia-o
amIgo de Leco~ _e ench~~-se de curiosidade, esperando, talvez
alguma pro~slçao :onclhatória. Recebeu-o, nessa manhã. '
amuos da 'bela. .
_ Sabes que a rainha é mulher diferente, mulher única?
_ Sim. Nenhuma outra se lhe assemelha, porque ela rança- deGlOrIosa
. ramha, resolvi pedir-vos au dOA'tenCla na espe~
tem duas personalidades: uma, divina; outra, humana. Es- mentos. serVIr-vos . Se me per ml'(Ird es, exporei os aconted-
tão todos acostumados a considerá-la deusa, quando ela é mu-
lher em todo o significado da expressão. As deusas são - Fala!
.capriChosas, porque· são mulheres. Você, meu amigo, preterin- - Meu amigo Lécon partiu hoje, pela madrugada.
do-a por outra, ofendeu, gravemente, o amor-próprio dela, f . Sa~ura:mat levantou-se, de chofre. Transtorn~u-se-lhe a
mas a ofendida foi a deusa. Com os deuses não se brinca, é lSlOnomm, a exclamação que brotou espontânea
preciso paciência... v: ocê está precipitando os acontecimen- - Partiu? .
tos.
Já fiz tudo o que podia fazer. Humi1hei~me, expli- - Sim, minha rainha.
quei-lhe, pedi.lhe perdão. Foi inflexível. Expulsou-me da sua - Como o soubeste?
presença e nunca mais a vi. - Ele, ontem_à noite, anunciou-me a partida para hoje.
_ Ótimo sintoma! O amuo há de passar. - Por que nao me participaste ontem mesmo?
_ Mas, com o desfavor da rainha, a minha situação no - .Ele mo. proibiu. Além disto, à hora em que o soube
exército é humilhante. Já me olham com ironia e não me não sena recebIdo. '
tratam c<lm a deferência de antes. Mais de uma vez me te-
- Para onde foi?
nho validados punhos, para me fazer obedecer. Estou à es-
pera de que a rainha me demita, para seguir o meu destino; - Para o Egito, em direção às Gálias.
mas, como está tardando, não esperarei mais. S<m1ura-mat já tinha adquirido o sangue frio. Meditou
_ Afinal, que pretende fazer? perguntou Tarabat. algum tempo para tomar resolução.
_ Quero afastar-me discretamente. .- É mister alcançá-lo e trazê-lo de volta. Que venha
_ Para onde vai? aqUI o meu mordomo! Sinefru, chama o meu morda'mo' Ago-
_ Para algum lugar, onde 'viva ignorado e esquecido. ra mesmo. .

~cal~: j:tTi.é~~'o~d;: ~e ~~i~~~~::~~~ : :~~: !:l~~~t::


_ Grave erro comete, meu amigo. Eu não posso acom-
panhá-lo, porque estou muito velho para suportar novas fa-
digas. . mesmo arabat foi o ~nsageiro. .
210 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 211

Dias de angústia passou Samura-mat à espera. Contava- - Além do colapso n~:rabalho, dizia o gr'ão-vizir, rela-
os em sobressalto, temendo infrutífera ou tardia a sua inter- xou-se a moral. ~ competIça~ entre os chefes transforma-se
venção. Quando vencia o prazo calculado para retorno da ex- em ameaças e atItudes agressIvas.' Os próprios reis mobili-
pedição, ela, sobre um pequeno promontório à beira do mar, zam. forças para a eventualidade de choques armados. Se não
perscrutava o horizonte, na esperança de ver o pequeno ponto de reagtrdes, senh~ra, sobre o vosso desânimo e não vos mostrar-
uma vela distànte, que lhe devolvesse a felicidade. Nada de novo d~s se.gu:-a da Imensa fortuna que vos diviniza entre os mor-
ocorreu, e ela recolheu-se triste. No dia seguinte, vieram co- t~IS, fIcaI certa de que presidireis ao maior desastre jamais ha-
municar-lhe a aproximação de um barco, proveniente do norte. VIdo no mundo. '
As suas preocupações aumentaram coma expectativa. Se ele Samura-mat .fixava-o impassível. Nenhuma contração no
não voltasse? Na sua afliç'ão estava convencida de que não r:>s~o lhe denunCiava o efeito da grave exposição d - _
suportaria a perda do companheiro amado. VIZIr. o grao
Chamou Sinefrit e as suas serviçais. Queria ataviar-se -Perdoai-me, augusta senhora, se me atrevo a falar-vos
com a melhor indumentária. Escrava especializada frisava-lhe c0;o. clareza. Trata-se de salvar o vosso império, a vossa
os cabelos; outra lhe aformoseava as linhas do rosto, pondo glOrIa, a vossa coroa. Ouvi a palavra fiel do v{)sso servo!
em relevo os olhos negros. Tingiram-se-Ihe os lábios com
. - Que me importa tudo isso? Foi-se a alma que mo-
púrpura e,discretamente, se lhe avivaram as cores da face. VImentava as min~as atividades. A nada mais aspiro; está
Ela se mirava embevecida no grande espelho de cobre. Não que- encerrado o meu CIcIo.
ria ser rainha. Apenas, mulher ...
- .Não vos entregueis ao desespero, senhora. Quem é
Não quis dar caráter festivo ao acontecimento, que a fe- verdadeIramente
licitava. Mandou que todos se retirassem e esperou seu ama- , . favorecida dos deuses sois vo's', L'econ era
apenas um satelIte da vossa fortuna.
do nos aposentos.
- Ele é o meu leão. Sem ele nada sou. É preciso que
Decorreram as horas, e a dúvida causou-lhe angústia. ele venha. Vamos buscá-lo!
Trouxeram-lhe notícia; segundo mensageiro de Tarabat, de
que Lécon havia partido para a Gália em um navio fenício. - Como, senhora, se o oceano nos separa?
Sentiu-se desarvorada. Não mais se afastou dos seus aposen- - Chamai-me os reis de Biblos, Sidon e Tiro.
tos. Não recebia ninguém. À hora convencionada, chegaram os três cor{)ados da Fe-
Se lhe diziam que iam maIos negócios do Estado, mos- nícia, principais dirigentes dos estaleiros onde se construía a
trava-se indiferente. De fato, afrouxou-se a disciplina e im- esquadra do mar índico. Samura-mat recebeu-os solenemen-
plantou-se a desordem naquele imenso estaleiro de construção te, sentada no seu trono, e mandou que se sentassem em três
náutica. Via-se logo que o 'máximo empreendimento huma- sólios menores, próximos ao dela.
no da antiguidade, carecia de direção. Faltava Lécon com a Feitas as saudações protocolares, a rainha entrou logo no
capacidade de comando, e todos lastimavam o fracasso da em- assunto.
presa, fadada a imortalizar o nome da rainha. Dizia-se, em - Meus reais amigos e aliados, cumpre-me comunicar-
confirmação do desânimo geral, que ela ia desistir dos seus vos que novos p~ojet~s me s~rgem à mente, inspirados por
projetos e voltar a Babilônia, abandonando nas praias do mar Marduc. Pa.ra dIlataçao da mmha fortuna e do meu império,
Vermelho a ossatura desarticulada dos navios em .construção. novas conqUIstas se me deparam. Há muito, projeto uma
O fidelíssimo Uakim, certo dia, apresentou-se 'no palá- excursão à região itálica, onde se elabora magnífica civiliza-
cio, insistindo por ser recebido. Expôs:o velho servidor à rai- ~ão, sob os auspícios do ventUrDSO rei da Etrúria. Pretendo
nha, a situação de descalabro em que se encontrava a expe- I~corporar à minha ~ona d.e influência, não somente aquela pe-
dição. ,nmsula, como os pmses sItuados mais ao norte, denominados
212 CAMILO CHAVES
213
,.. b" Germ:ama e out 1'05 .ale'm" Mandarei mobilizar
e~1a,. e vos
A ,

Galia, ' me f. o rnecereis os vossos navlOS para - Permiti, senhora, vos pergunte: tínheis antes os olhos
imenso I exercito A
fitos no Oriente. Assim. o compreendemos, diante dos prepara-
.
transfen-lo , do Mediterraneo.
atraves , .
lh'o tivos em realização. De outra forma não podemos interpretar
Responde,u~lhe o, reI . e n~o~~' nossa, que os deuses imor-
. d S'd como o maIS ve . as construções náuticas destinadas ao oceano índieo. Como
- MagmfIca ramha e ~e d' A empresa que leais servidores, vos rogamos declareis as razões da VOssa mn-
os ompotentes ese]os. ~ dança de objetivos, para que, identificados com o vosso pen-
tais secundem os voss da vossa grandeza. Nao
anunciais é digna do vosso gen~o eustar a dilatação do vosso
A'
'samento, possamos servir-vos melhor.
há obstáculos humano.s cadPazes e sm vossas mãos os meios - Dizeis bem, meus caros aliados, e eu me explico. An-
. d ' porque eten des e tes, animava-me a ambição de glória e COlJ.quísta, mas há, hoje,
Imenso po erIO, ssos deSlgmos.
,. Levantareis'certamente,
maior exército jamais VIsto, dl~
.. para mim coisa de maior valia. .Vou buscar, pois, ainda que
para alcançar ?S vo
pára esta grandIosa emp~esa °d s resistências. Entretanto, seja Com as armas, o meu tesouro perdido. Agora, sujeitare-
d
ante o quaI se dobrarao
A'
to as
'mister se aconsidere a eXIgUl
, "'da de at ua1 °
mos norte e, se preciso, submeteremos o Oriente, o Ocidente,
onde eu possa encontrá-lo.
em bem do bom exJto, ,e, Podemos é verdade, aumentar as
das esquadras da FemcJa, d Libano reservatório imenso Todos compreenderam a alusão da rainha ao seu companhei-
nossas frot~s; em
' t os nos montes o ' É ro, que havia partido. Comentários sobre o acontecimento
tranformaremos em carenas.
de cedros gIgantescos e os d ue .construamos uma esqua- empolgavam a opinião de todos os hahitantes da capital impro-
indispensável, senho:a do ~un ~~ ~osso exército, mas isto de- visada do mar Vermelho. Dizia-se do desespero dela, com
dra correspondente a gran eza verdadeira admiração pela fidelidade ao seu amor. De outro
manda tempo, u nobre a1iàdo. Impõe-se lado, Lécon era considerado o verdadeiro autor da fortuna de
- Nãod·hát temp?~ perder~
Del-me' nao h a, possI'bilidade de trans-
me Samura-mat, pelo valor e pela prudência, como chefe militar.
outro expe len e. .IZ 'd mar Vermelho para o Me- Como conseqüência, surgiu a convicção de que se que-
portarmos os b~rcos cons!~~~a~:;oàs vossas armadas? brava a força de ânimo da rainha, e tomou corpo a idéia da
diterrâneo, a fIm de ~se } f' 'I ma nífica senhora. Poder-se- emancipação de alguns chefes e reis, que participavam, a contra-
gosto, do que eles chamavam .de "loucu~as da rainha", Desa::.
- A empresa nao ;. ~~: neg;o empreendimento jamais
ia contornar todo o con m I também demandaria tempo, e parecido o seu leão, como o chamava,ah, naquele recanto geo-
tentado por ser hum bano.
ão é certo que os arcos a sl~~nçassem as colunas hespérides.. gráfico, seria fáCil um gotpe de mão, que libertasse o mundo
da opressão assíria. Suprimida a rainha, esboroar-se-ia, com
n Áf . . quase se tocam. estrondo, o império. Os chefes descontentes faziam proseli-
onde Europa e nca .. d u nobre aliado. Impõe-se
- Não há tempo a per ~er, m~
tismo e concertavam planos para a ação libertadora,
' 1'da .para transportar
ocorre outro melO, ' de execuçao maIS rap , Uakim, embora a sua posição de vizir, de certo modo
• d ? alheio aos Círculos militares, percebeu a ação subterrânea dos
os meus solda
' os.arássemos a Á' SIa da África , a fim de d.ar-
S revoltosos e tomou medidas de resistência. Inteirou de suas
- o se sepNeste caso abnnam " os um canal que pusesse
A desconfianças os reis fenícios, cuja lealdade não era duvido-
lhes passagem.
. ~ o os mares·Vermelho . e Mediterraneo.. ? sa, e pôs de vigilância as forças fiéis.
em comumcaça
- Quantos homens neceSSI aIs 't' para esse empreendImento. Nesse ínterim, chegou à rainha uma mensagem de Tara.
bat anunciando a volta de Lécon, dentro de breves dias. Par-
- Meio milhão. . 'lh~ de traba Ihadores . Mandarei trans- .Jiriam, juntos, no' primeiro navio. A notícia ecoou no exér-
- Tereis. melO mI ao . . ha capital. Ordeno ao
feri-los das ob ras q~e se .realIzam na
ue mm
tudo se faça cito de vários modos. Os conspiradores alarmaram-se, pois
grão-vizir que prOVIdencIe para q . sabiam que iam ter pela frente inimigo resoluto. Certos de
porque não há tempo a perder. que Lécon seria capaz de lhes transtornar os planos, dispuse-
ram-se a abreviar o movimento para antes da Sua chegada.
2'14 CAMILO CHAVES SEMfRA"MIS 215

Com a notícia do retorno do companheiro, Samura-mat Os atacantes abriam passagem, ou melhor, os carros de
criara ânimo e, em poucos dias, recobrara o viço e as cores pri- guerra, puxados por ferozes cavalos, arrasavam tudo, deixan-
mitivas; mas a sua impaciência era enorme, ao ponto de insti- do atrás de si uma esteira de cadáveres. Muitos dos defen-
tuir um prêmio a quem lhe anunciasse primeiro a aproxima- sores se refugiaram dentro do palácio, cujas portas. se fecha-
ção do barco que o trazia. ram com estrondo, à aproximação do inimigo.
Havia tempo, circulavam boatos de traições e revoltas,
Atingido o pátio, os ocupantes dos carros iniciaram a ma-
mas certa manhã, passou a circular a versão de que grande
tança dos fugitivos desorientados. A gritaria acrescida da
parte do exército se sublevara e as forças se concentravam para
confusão motivada pelos cavalos em disparada frenética, com
dar batalha e atacar o palácio da rainha.
os carros vazios, criou uma situação alueinante, até que fos-
Uakim, prevenido, dera ordem à esquadra para se apro-
sem eles mortos pelo primeiro que lograsse meter-lhes a lança
ximar da Capital e mandara um navio ao encontro de Lécon, entre as costelas.
prevenindo-o do perigo que corria a rainha.
As forças assírias e fenícias tornaram posição nas proxi- Tudo perdido. O palácio estava entregue à própria sorte,
midades do palácio real, na expectativa do ataque. Os rebel- portas e janelas fechadas, prenhe de defensores desmoraliza-
des, compreendidos árabes do grande deserto e da penín~ula do dos. A sua conquista seria o epílogo daquele extraordinário
golpe de audácia.
Sinai edomituJ Iélmonilas, filisteus, nômades da regIão do
Kada~ moabitas da margem do mar Morto e sírios, marcha- Entretanto, novo aspecto tomou a batalha com a chegada
ram ;0 encontro dos defensores. Segundo a tática habitual, súbita de reforços fiéis à rainha. Eram os soldados da es-
os árabes empregavam a cavalaria em cargas, que iam estn:- quadra, que recomeçavam a refrega, apanhando o inimigo de-
lar-se nas formações maciças dos assírios; mas a luta nada tI- sordenado, entregue à preocupação de perseguir os fugitivos.
nha de semelhança com uma batalha travada nos moldes usuais, Chegavam eles em cOIlliPactas falanges esmagando as resistên-
faltando aos combatentes armas e método, pois era evidente o cias, tendo à frente o seu chefe, de espada em punho, a abrir
tumulto ocasionado pela multiplicidade de comandos. A preo· caminho.
'cupação dos r'evoltosos era aprisionar a rainh~,. an~es que .lhe - Avante! Chegamos a tempo! Salvemos a rainha!
chegassem socorros, julgando que, pela precIpIJ;açao, P?dIam Viva a rainha! Viva a Assíria! Viva Samura-mat!
adiantar-se. Temiam a chegada das tropas leaIS, localIzadas Partiu ao seu encontro o chefe contrário, que encabeçara
no litoral arábico ou embarcadas nos navios. o ataque dos carros.
De fato, a luta tomou aspecto duvidoso, com o ímpeto ~ Enganas-te, Lécon. Che~aste tarde! O palácio arde
inicial dos atacantes, mais numerosos a principio. Os defen- em todos os cantos. Ela há de ficar reduzida a cinzas.
sores mantiveram-se firmes, a não ser em um ou outro ponto. Lécon, de relance, viu as colunas de fumo que se eleva-
A situação pareceu agravar-se com a chegada de reforços vam em todos os ângulos da grande mole de madeira. Não
ao inimigo, sinal de novas adesões. Irrompeu, bem à frente havia' tempo a perder. Avançou contra o adversário, que o
dos fenícios, que ocupavam a praça fronteira ao palácio, esperava firme, com a espada em riste. A fúria do assírio
uma seç'ão de carros de assalto, com 'Ímpeto arrasador. Vinha não tinha limites e aos primeiros golpes de esgrima, deixou-o
na dianteira sobre possante carro, vistoso na armadura relu- trespassado. Seguido de um grupo, foi esbarrar na porta do
zente, valoroso chefe a animar os soldados com gritos e ob- palácio.
jurgatórias.
- Abri! Abri! gritava ele, bàtendo com o conto da es-
- Para a frente, soldados! Avancemos com vigor, que pada. Em nome "da rainha, abri!
a rainha está em nossa mão! Corramos! Sejamos os pri-
meiros a chegar! O império assírio vai cair! . Eia, para a Igual intimação foi feita nas demais entradas.
frente! Morra Samura-mat! - Abri, que o palácio está em chamas! Fugi! Fugi I
216 CAMILO CHAVES 'S E:Di i R A M I S
217

Pelos surdos rumores de gritos no interior, notaram gran- , Soergueu-se, entre os feridos, um soldado que interpelou
de confusão. Por fim as portas abriram-se, vo~itando alu- ? tartan. Pela anl1adura brilhante, denuncio~-se logo como
dnados defensores, em pânico. As portas não eTam sufi- u;.u..dos chefes revoltosos e Lécon o reconheceu co~o o d _
cientes para. a saída, e pelas janelas, também, se precipitavam sano que abatera. a ver
os fugitivos, aos gritos de: - fogo! fogo 1 - Venceste, Lécon! Os fados mais uma t
E' vez e socor-
Não tardou, tal a pr,ecipitação, que saíssem os últimos, e rem. . . u esperava ofer~cer-te a dádiva das cinzas da tua
amada. . . Ela é invencível'
já nessa hora, densos rolos de fumo envolviam o palácio.
Aquela voz, tinha para ei,~' ~m timbre conhecido...
Mas faltava entre os retirantes a figura central do drama. - Quem es tu?
Lécon lembrou-se logo de que Samura-mat estivesse'bloqueada , . Avanç?u p'ara o ferido, mas este ficara imóvel. Uma ter-
pelas chamas, se já. não tivesse sucumbido. Atirou-se como rlve1 suspeIta assaltou-lhe a mente, e, a um pontapé, des ren-
louco dentro .do saguão de entrada, mas a ala que ia dar nos deu-se o elmo ao cadáver. p
aposentos dela estava envolvida pela fumaça e pelas labaredas. - Fátima!
Retrocedeu e enveredou por outro corredor em direção con-
trária, passando por comp1!-rtimentos onde urravam as chamas
na fúria de devorar a madeira. A correr, foi dar no pátio
eentral, onde deparou com um quadro extraordinário.
Samura-mat estava, majestosamente sentada no seu trono,
e,' a seus pés, tranqüilamente acocoradas, Sinefro e duas es-
cravas iiúbias.· .
- Samura! exclamou Lécon.
- Lécon!
- Que fazes aí? Queres morrer?
- Quero ser incinerada na pira' do templo da minha
glória!. ..
Lécon tomou-a nos braços possantes.
- Vamos daqui!
Retomou o caminho percorrido, mas encontrou as dificul-
dades agravadas. As chamas esguichavam pelas frestas das
portas, como a abatê-las, e o teto parecia desabar. O calor
abrasava o ambiente, e a fumaça embargava a respiração.
Sem medir o perigo, ele avançou sobre a zona interditada num
esforço desesperado, chegando à porta de entrada como um
tufão. Uma lufada de ar fresco inundou-lhe os pulmões, e
ele, reanimado, apresentou à multidão a rainha desmaiada.
- Viva a rainha!
- Vitória!
o grande brado ,ecoou como uma sentença para os que
teimavam em lutar.
SEMfRAMIS

duradouras, mas as substituições assinalavam-se por


SOCIaIS.
Foram, oportunamente, focalizados os aaDn1eecimenlol!!
lativos á sucessão faraônica, em que o príncipe Ramis
CAPÍTULO DÉCIMO polgou o trono do Egito, contra determinação
de seu pai, o extinto faraó. Mau governante e violento, o
A VOZ DA ESFINGE seu reino de injustiças o incompatibilizou com os seus súditos.
Pela falfa de correspondência da parte dos vassalos, mantinha
ele, em tomo de si, inúmeros servidores, colhidos na sociedade
dos ambiciosos e louvaminheiros. Estabeleceu, assim, um re-
o Egito que, no início desta história, desempenhou papel gime de favoritismo e de peculato, de suspeita e perseguição,
importante pela contribuição intelectual e humana, tinha que a afligir o povo. O príncipe Saiad, que, anteriormente, en-
ser envolvido na trama dos acontecimentos extraordinários, carnava as esperanças, continuava na prisão, em 'bem da tran-
modificadores da face do mundo. Verdade é que a vida no qüiTidade do usurpador, temente da sua impopularidade. A
país das pirâmides não se modificara na proporção do evo- casta sacerdotal, em que se fundava o prestígio da realeza,
lucionar assírio. A sua natureza tranqüila, quase estática, co- mantinha com o soberanocolaboraçãó e atitudes discretas, como
municava-se aos habitantes, elaborando um processo social e se não quisesse solidarizar-se com os desmandos e suas con d

político muito diferente das' formas ativas e violentas dos rei- seqüências.
nos da Mesopotâmia. As pirâmides e masta:bas convidavam Senhor do trono, o faraó Ramis começou por mover per-
à vida contemplativa e conformada ao fatalismo religioso, ao seguição aos partidários do príncipe Saiad, que, no caso, eram
passo que as arenosas planícies marginais do Tigre e Eufrates os amigos e protegidos do falecido, de forma que, na corte,
eram o palco das competições sangrentas dos povos expelidos se operou radical transformação com o afastamento da socie-
pelas hostilidades das cordilheiras adjacentes. O Egito, no dade conservadora e brilhante que cerCava seu velho genitor.
seu quase isolamento geográfico, afastado das grandes cor- Simas, o novo faraó procurou substituí-lo como renunciante
rentes migratórias, pôde formar um ambiente mais tranqüilo; ao cargo e, não encontrando cordialidade entre a clerezia, pôs
determinante da índole pouco belicosa dos, nilotas. Ali, as suas vistas na figura prestigiosa do sacerdote Ámond-Hermés,
divindades eram dotadas de atributos mais brandos, infensas um velhinho alquebrado, presidente do Conselho de Sacerdotes.
aos ritos sangrentos de propicia~ão, se bem que não eram elas A avançada idade não lhe permitia atitudes altivas e pessoais,
que se sublimavam pela' brandura do culto, mas o próprio o que alimentava a esperança do soberano de afeiçoá-lo à sua
homem, já emancipado das tendências inferiores da animali- política.
dade. Na Assíria e Babilônia, aplacavam-se os deuses com os Prudentíssimo varão era' Ámond, conhecedor, em longo
holocaustos; Belo ou Marduc eram devoradores de criaturas ministério, de todos os trâmites da escala sacerdotal. No tiro-
humanas. No E,gito, os faraós se educavam na paz conven- cínio disciplinar, como se alcançasse uma segunda natureza,
tual das pirâmides, quando, na Assíria e Babilônia, os ptíncipes apropriara-se do espírito de fidelidade à grei e aos compa-
cresciam na agitada vida dos acampamentos militares. nheiros. Falho foi o raciocínio do faraó no estribar-se na
franqueza do velho sa'cerdote e jamais podia pensar que este
Com este paralelo, pode-se calcular a discordância de ín-
pudesse constituir-se em quebra-mar dos caprichos de sua von-
dole destes dois povos. Não obstante, é bom se não tome a tade absoluta.
rigor esta assertiva, porque o Egito ;passo~, também, por fas~s
Manifestada a preferência real pelo velho Ámond, o Con-
e transições agitadas, embora pouco freqüentes. As suas dI-
selho Sacerdotal, para não criar animadversões, concordou
nastias, marcando períodos históricos, eram mais ou menos
com sua eleição, mas, particularmente, estabeleceu que o cargo
220 CAMILO CHAVES
SEMfRAMIS 221
seria ocupado,. enquanto não se apresentasse o grão-sacerdote - Contam-se a respeito dela coisas que só a grande ísis
Simas. poderia realizar. Pela formosura e pela sabedoria conquistou
Assim, o papel do grão-sacerdote Ámond devia consistir o trono, e, hoje, se lhe rendem todos os povos. Tão grande
em tolerar, passivamente, os destemperos do faraó, o que seria o seu prestígio e glória, que os reis, espontaneamente, se sub-
levado em conta da avançada idade daquele. metem, pagam tributos e lhe mandam soldados.
Como se vê, idéias e projetos muito particulares tinha a - Mais se me confirma a desconfiança, com esse gentil
corporação clerical erri relação às coisas do Egito. Ao Grande desejo de -aproximação ... , insistiu o faraó. Que me diz o
Conselho viera aviso secreto de Simas sobre a ;próxima che 4
nosso sábio Ámond tão silencioso"? É ele quem pocle. escla-
gada, ao Egito, de um embaixador de Samura-mat, para o recer-nos com a prudência de sua. opinião.
qual pedia bom. acolhimento e auxílio à sua missão. - Ao contrário do que dizeis, augusto senhor, muito pou-
O faraó, notificado oficialmente do desejo da rainha da co posso inforniar sobre a rainha de Babilônia. Sei que é
Assíria e Babilônia de manter um embaixador na corte eg.ípcia, filha desta terra e do grão-sacerdote Simas.
comentava com os ministros o acontecimento. - Simas? Dizeis Simas? Aquele traidor fugitivo?
- Quanto menos relações, dizia ele, com essa gente da - Sei, senhor, que desapareceu misteriosamente, dando
Mesopotâmia, melhor... Preferível é que não nos conheçam, origem à vaga que imerecidamente ocupo por liberalidade vossa.
em vez de estabelecer conosco um convívio incomodativo e - Sim! Repito: traidor! Porque ele conspirava con-
perIgoso. tra mim, favorecendo a ascensão de Sáiad, meu infiel irmão,
- A carta da rainha, disse o primeiro ministro, é per- ao trono. Se apanhasse, tê-lo-ia aniquilado com o. punho
feitamente cortes e não tem nada dos modos desabridos poderoso do meu ódio. Quereis, então, que eu receba um emis-
dos reis daqueles países bárbaros. sário dessa rainha, o qual vem, talvez, tramara minha de-
- Bár'baros ... , não é bem o termo; emendou o chan- posição? Simas não ,estará movendo os fios de uma urdi-
ce1er. Eles têm a sua civilização. dura infernal contra mim?
- Dizeis bem, completou o faraó. Eles não são atrasa- - Permiti, majestade, interveio um novo interlocutor, que
dos, mas violentos e agressivos. Eu não quero ver-me em com- eu lance a advertência sobre a descortesia pela recusa ao pe_
plicaçÕes com eles e gostaria que aqui não viessem observa- dido da rainha de Babilônia. Na verdade, jamais dela partiu
dores ou espiões, salvaguardados por garantias internacionais. um gesto de malevolência ou agressão ao Egito. Eu acredito
- A mensagem, entretanto, exprime sincero desejo de seja este simpático proceder decorrente do grande afeto que
concórdia. Os reis da Assíria, sempre arrogantes, jamais se ela nutre por nosso país, onde ela também nasceu e foi edu-
dirigiram a outros, a não ser na sua própria língua. Observai cada. Quem sabe se desta aproximação surgirá um entendi-
que a missiva da rainha Samura-mat está escrita em idioma mento que beneficie a todos os povos? Samura-mat é uma
e caracteres egípcios. verdadeira predestinada, que bebeu, ao pé da Esfinge, a sabe-
À observação do ministro, todos se precipitaram sobre a doria da doutrina secreta. Penso que não devemos temê-la.
carta. - E Simas? perguntou o faraó.
- É verdade ... · Corretamente redigida, comentou um - Não creio que Simas queira interferir em nossas coisas,
deles. preocupado em dar assistência à filha. Não mais lhe convém
vir para o Egito, quando dispõe de maior campo de ação. A
- Não é de admirar, se· ela é egípcia, segundo consta.
meu ver, para nós caminha uma Babilônia que já é um pouco
- Egípcia a rainha de Babilônia? perguntou, admirado, egípcia.
o faraó.
- Eu não creio no bom ânimo de ninguém, repisou o
- Dizem que nasceu em Mênfis e foi iniciada nos mis- faraó. O que há é interesse. Vejo, porém, que sou o único
térios da Esfinge. a relutar em aceder ao desejo da rainha e considero-me ven-
222 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 223

cido. Mas manterei esse emissário sob a mais constante vi- - Espero, interveio, rindo, um dos interlocutores, que
gilânda. Notário, responde aceitando a proposta da rainha de a nobre raça do Egito não se queira misturar com essa bár-
Babilônia. bara gente da Caldéia, cujo deus se alimenta de crianças.
Algum tempo após, correu nos m.eios palacia~o~ a not!ic~a - Que coisa horrível! exclamou ela. Já estou com medo
da chegada de um embaixador da ramha da A~slr:a e BabI- dele.
lônia. .Comentava-se o acontecimento como pre?UnClO de uma - Não precisais temê-lo, que esse gosto de comer carne
era de cordialidade entre os .dois governos, aspm:n.tes ao pre- humana é privativo do deus Belo.
domínio sobre a Síria, Fenída e outros povos vIzmhos. Nesse momento entrou () faraó,. sentado no seu trono por-
No dia da recepção do anunciado embaixador, reuniu-se tátil, ao ombró de robustos camareiros. As atenções se vol-
no palácio o escol da sociedade, ansiosa ~e ve.r e con~~cer o taram para ele. Envergava o traje real, tiara à cabeça, so-
representante de uma rainha largamente ~lscut1da.. MIU1stros: berbamente impassível, como quem se julgava, de fato, filho
milital'es, príncipes, damas rica:n~n.te trajadas, ah estavam a do sol; nenhum gesto, nenhum olhar, nenhum ricto lhe alte-
espera. Os comentários contradttonos davam causa a um gra- rava a fisionomia. Dava a impressão de uma estátua de ala-
ve sussurro na assistência. bastro. entronizada num andor, movendo-se quando deposita-
- Dizem que o embaixador é uma das mais gloriosas ram o trono no pavimento de mármore. .
patentes do exército babilônico. Em seguida, a sua guarda, composta de núbios gigantes-
cos, elmos reluzentes à cabeça, empunhando longos escudos e
- Muito jovem, conquistou, pelo valor, os mais altos
lanças: abriu alas para formar o arruamento por onde deve-
postos militares.
ria passar o embaixador e seu séquito. Este aguardava, à
- É' vencedor de muitas e rudes batalhas~ afirmou um
entrada do palácio, quando o chanceler, avisado, o convidou
terceiro. a subir.
_ Segundo me afirmaram, é o vencedor da Mé~ia: do Beb-Alib assomou à entrada do salão e, seguido do chan-
Urartu e da longínqua Cítia. Note-se que, sobre a Medm, a celer, caminhou marcialmente em direção ao trono. Trajava
sua vitória é pessoal. como general assírio, elmo dourado à cabeça, espada à. cinta.
_ Como assim? Comandava ele o exército assírio? A ampla veste ricamente bordada a fios de ouro, com franjas
_ As duas partes ajustaram em que a guer~a seria deci- cor de púrpura, quase lhe chegava aos pés, deixando ver as
dida de acordo com o resultado de um combate smgular entre sandálias douradas.
um guerreiro assírio e um medo. Ele, pessoalmente, venceu Logo atrás, vinha suaespósa, entre duas gentis damas
o ad-V'ersário. egípcias. A entrada de Mábi causou enorm€' sensação pela
- Deve ser um carrancudo batalhador... comentou uma novidade da cor e beleza.
- Como é bonita!
dama.
- Loura, loura!
- Ao contrário, passa por gentilíssimo homem. - Parece um raio de aurora..
- Como se chama? perguntou outra assistente. - É da cor da deusà 1star.
- Já me disseram o seu nome, ~as é uu: tanto difícil
- Onipotente filho do sol, disse o chanceler como intro-
de pronunciar-se. Se me não engano e Beb-Ahb., . dutor, aqui vos apresento o glorioso Beb-Alib, embaixador de
O informante se esforçava por acertar a pronu~cm.
sua majestade a rainha da Assíria e Babilônia, do Súmer e
- Beb-Alib! Que nome engraçado! Beb-Ahb! Beb- Akad.
A.lib! Beb-Alib! - Folgo em receber-vos, general, principalmente, por vos
• Ela repetia, como se não quis~sse olvidá-lo. apr-esentardes cheio de glória, como portador de uma mensa-
- É casado? ousou uma cunosa. gem de paz e amIza . de. J
224 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 225

_ Nenhum outro propósito inspira a minha gloriosa rai- que hoje lhe ocupa o lugar, mas ao ensejo da minha vinda,
nha senão o de testemunhar-vos, por meu intermédio, ó afor- recomendou-me vos apresentasse pessoalmente as suas home-
tun~do senhor do Alto e Baixo-Egito, a afeição que ela dedica nagens, dever que cumpro, muito honrado.
à formosa terra egípcia, onde nasceu, e ao seu magnífico so~ - Agradeço-vos, general, a atenciosa homenagem, que
berano. vos peço retribuir ao nosso saudoso chefe e amigo. Devo afir-
_ Peço-vos, general, retrucou o faraó, lhe transmitais, .a mar-vos, em cumprimento da recomendação contida na vossa
ela, as minhas córdiais saudações e os votos que faço pela feh~ mensagem, que deveis contar com a nossa melhor acolhida
cidade sua e de seu grande povo. e com o apoio da nossa sociedade sacerdotal. Simas é um nome
Beb-Alib apresentou Mábi ao faraó; e este se mostrou pouco compreendido, para não dizer detestado· na corte, e só
maravilhado com a sua originalidade e formosura. discretamente, entre· nós, deve ser mencionado o seu nome.
O casal -foi, ali mesmo, apresentado à sociedade egl?Cla, Isto, em benefício da vossa missão junto ao faraó. Até ao
que manifestava grande interesse e simpatia pelos estrangel~os. presente, a minha corporação guarda fidelidade e afeto ao ve-
Mábi, naquele meio de gente morena, tomou-se. objeto nerando s~cerdote, que, algum dia, há de voltar.
da contemplação geral. Os seus cabelos dourados, bnlhava~ - Regozijo-me pelas vossas palavras, venerável pontífice,
como um feixe de raios solares e o faraó, como estatua, trazIa e verifico, com alegria, que o meu amigo e mestre exilado
os olhos fitos nela. . não se enganou quanto à confiança e lealdade, que lhe dedicam
A princesa Chams agarrou-se a Mábi, a quem fez mIl os seus companheiros de classe. Isto, que ouço de vossos lá-
perguntas sobre Samura-mat. ' . . bios, vale por uma afirmativa de honestidade, que enaltece a
. _ Ela lhe manda recomendações e a afirmação do desejO vossa grei. Devo adiantar-vos, entretanto, que levarei ao vosso
de rever a sua grande amiga, de quem não se esquece. soberano os empenhos de Samura-mat, a fim de ser readmi-
_ Querida Samara! exclamou a princesa. Como sou fe- tido no lugar o antigo detentor. É uma legítima aspiração da
liz! Seremos amigas, Mábi, porque me fazes lembrar :Samara, filha querer cumprir os anseios do velho pai, que não se es-
Ela não é loura como tu, mas a sua tez, cor de marfIm, con- quece da bela terra do Egito e do convívio de seus compa-
trasta com as morenas egípcias, pardas como a areia do deserto. nheiros.
A primeira visita a Mábi foi a de .Chams, e o. g~sto da - Louvo o vosso propósito, general, e, mais ainda, a pie-
irmã do faraó foi ordem para que a SOCIedade de TanIS acor- dade filial da vossa bondosa rainha. Rogo ao Senhor dos
resse à magnífica habitação de Beb-Alib. Este, ~proveitando mundos, que abranda os corações e os retifica, faça com que o
. o ensejo, pôs em ação tôda a diligência .eI?_ sedUZIr ~ agradar. vosso apelo encontre ressonância no coração do faraó. Peç~
A magnificência e liberalidade dos, anfttTl.oes _conq':lstaram a vos me ponhais a par dos acontecimentos e vos asseguro in-
admiração e boa vontade dos consplcuoS cldadaos t;tlotas, tor-
teira cooperação.
nando-os figuras, necessárias nas festas. O farao of~receu~
1hes uma linda festa no seu rico barco real, em passeIO pelo Beb-Alio retirou-se contente, certo de que a sua missão
Nilo. Todo mundo âizia, à boca pequena, que. o sober:u:o es- seria facilitada com a boa vontade e auxílio da classe sacer~otal,
tava enfeitiçado pela embaixatriz. Mábi sabIa-se admIrada, principalmente do sucessor de Simas.
mas a sua conduta era sempre digna e cortes. Entre os militares, houve evidente interesse pelo herói de
Certo dia, Beb-Alio apresentou-se na residência;, do grão- inúmeras batalhas. Afeiçoadíssimo tornou-se-lhe o comandan-
sacerdote para lhe render homenagens. O bom velhmho o re- te-geral do exército, diante das atenções especiais que lhe de-
cebeu, com a simplicidade de verdadeiro sábio. . dicava o assírio. Igual consideração dispensava ao coman-
_ Trago-vos, ilustríssimo padre, u~a me~sagem mUlto dante da praça de Tànis. No desempenho de sua missão, ofe-
cordial do meu mestre e amigo Simas, paI da mmha soberana. receu em sua residência, regiamente instalada, uma festa aos
Ele me falava sempre, com carinho, do bom sacerdote Ámot,\d, militares, na qual pôs em nelevo todos os requintes do bom
226 CA :M: I L O C H AVES SEMfRAMIS 227

gosto e da liberalidade. A cada dama presente foi oferecido - Eu me deixei roubar... respondeu Mábi ingenua-
um mimo de valor, provocando grande alegria entre os con- mente.
vidados. Enorme gargalhada estourou no grupo que a cercava.
Mábi era a figura dominante daquela sociedade e mostra- B~b-Alib,em uma roda de oficiais, deleitava-os com piadas
va-se, pela gentileza e pela originalidade do traje, eficiente guerreIras.
colaboradora do marido. Chams, presente, apresentou-lhe um A história dos amores de Mábi foi o assunto heróico da
robusto oficial que, pelos modos, fazia parte da aristocracia, noite e o venturoso par se agigantou' na fantasia dos rotineiros
dando a entender ser ele o seu predileto, embora; até a oca- praianos do Nilo.
sião, refratária ao casamento.
Grande' rumor estabeleceu-se na sala, e soou uma excla-
- Quer dizer, disse Mábi com malícia, que brevemente mação partida de todos os peitos: Faraó I Faraó !
iremos assistir às bodas principescas?
A surpresa provocou grande confusão. Beb, com Mábi
Chams corou e disfarçou. pela mão, precipitou-se a receber o augusto visitante.
- Nazur é um gentil amigo ...
. - Não sei, sapientíssimo filho de Amon, o que mais con-
A mulher do generalíssimo egípcio' comentava, em uma SIderar, se a honra inesperada que nos concedeis, se a com-
roda a discordância racial entre Beb e Mábi. Esta, que, no pl~cência do vosso gesto em aceitar a nossa modesta hospi-
mo~ento, passava, bela como uma rainha, foi interpelada pela talIdade, grata, apenas, a militares, afeitos ao simples conforto
matrona. de uma tenda de campanha. .
- Estamos a comentar, senhora embaixatriz, os caract~­ - Eu sou o chefe do exército, atalhou o faraó; portanto,
nsticos raciais vossos e de vosso marido; Ele é, evidentemente, me sinto à vontade entre os soldados. .
um semita moreno, peludo, forte; vós, rosada e loira como
- Viva o faraó! gritou alguém, com grande repercussão
uma espi~ de trigo. Estamos curiosíssimas por co?hecer a na sala.
intriga amorosa que ocasionou essa, aparentemente, dIscordan-
te união. Podeis esclarecer-nos? . - Viva o nosso general!
- Dizeis bem: aparentemente, discordante umao, porque ' - Não .esperávamos, altíssimo senhor, tão cativante hon-
somos eternos namorados. É um caso' de amor à primeira ra, e eu e minha mulher nos sentimos pesarosos de não poder
corresponder à vossa magnificência.
vista. Isto se deu, quando ele, em singplar combate, derrotou
o campeão da Média, tornando-se, em virtude. do ajuste, se- . - Não vos apoquenteis por isto, porquanto me sinto per-
nhor do país. Eu o vi e amei-o; ele me V1U e amou-me. feItamente honrado pela cordialidade vossa e dos meus bravos
soldadm
Pediu-me em casamento, mas meu pai se opôs por orgulho
de raça.,porque era irmão do rei dos medos e, também, por- Sentado no trono, que robustos lacaios haviam trazido da
que tinha escrúpulo de casar-me com o vencedor daquele a liteira real, o faraó mostrava-se prazenteiro e feliz. Todos
quem, à minha revelia, me havia prometido. Que fazer? comentavam que ele jamais tivera tão extraordinária condes-
- Não era ele o vencedor? Devia fazer valer os seus cendência para com quem quer que fosse.
direitos, argumentou a matrona, adivinhando. Contaram-lhe o caso de amor de Mábi, e ele mesmo quis
- Beb achou deselegante o processo... comentar o acontecimento. Chamou-a e fê-la sentar-se ao seu.
lado, pedindo-lhe que contasse coisas do remoto reino da Média.
- Então? perguntou a curiosa. Depois de ouvi-la sobre vários assuntos, declarou:
.- Na véspera da partida dele, com seu exército, furtou- - Não sabia que sois de família real. De agora em
me a meu pai. dia~te, sereis considerados na minha corte como príncipes
- Mas, insistiu a curiosa matrona, vós oonsentistes? reais. .
228 CAMlLO CflAVES SEMÍRAMIS 229

~ Já nos cumulastes, senhor, respond~u Mábi, de ~an­ atuado no sentido de desfazer ambições e amenizar despeitos.
des honras acrescidas, agora, com este requmte da vossa hbe- Daí, ter-me resolvido, confiadl) na vossa real magnanimidade, a
ralidade real. Eu e meu marido nos sentimos sumamente .pe- ifledir-vos perdão e mercê para o velho Simas.
nhorados, e vou, neste instante, participar-lhe a: gratíssllna
~ Objeto de consideração da minha parte será o vosso
concessão vossa.
pedido de indulto, convi:q.do lembrar-vos que o lugar de grão-
~ Não não vos afasteis. Depois lho direis... Eu que- sacerdote está proficientemente ·ocupado pelo nosso fidelíssimo
ro continuar' a ver-vos. .. disse o faraó numa quase confissão. Ámond. Iguais palavras de apaziguamento espero ouvir de
A cena era curiosamente observada, principalmente pelo vossos próprios lábios a respeito de assunto que me traz preo-
elemento feminino, solerte nas intrigas de amor. cupado.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . '0 t<ll
- Podeis estar certo, augusto filho do sol, de que meus
Faraó recebeu Beb-Alib em seu salão de trabalho. lábios jamais deram trânsito à mentira e ao engano. Podeis
contar com a minha franqueza a serviço da verdade.
~
Ámon vos guarde, senhor embaixador; que as potên-
cias do Alto vos aplainem o caminho! ~Muito bem! Gosto de ouvir as vossas palavras asse-
- Iguais votos eu vos apresento, aug~s~o senhor, e for- curatórias de um bom entendimento. Chegam-me notícias de
mulo rogativas aos meus deuses vos propXClem um governo que Samura-mat caminha, com um grande exército, em direção
tranqüilo, de perene felicidade. .. . ao Egito. Depois de atravessar a Ásia Menor, cujos povos
- A que devo o prazer da vossa vIsIta, senhor embaI- lhe prestaram vassalagem, percorre, agora, a Síria e Fenícia
xador? em direção ao Nilo. Não há entre nós desentendimentos e
~ Agradecendo, desde já, a vossa s~licitude, c1eme~tís­
questões. A vossa permanência na minha corte e o acata-
simo senhor, !prometo não tomar em demaSIa o vosso preclOSO mento que vos é dispensado atestam o grau de cordialidade
tempo. Ao designar-me para vi~ até a vós, minha rainha orde- existente entre os dois países. Não conheço as intenções da
nou-mé vos significasse seu imenso agrado pelo retQrno ao ° rainha Samura, e preocupa-se o meu governo com tão ex-
traordinário movimento militar, merecedor de objetivos de
Egito de seu venerando pai, que desempenhou, nesta terra,
importante cargo sacerdotal. grande envergadura. Digo mais: tamanho aparelhamento de
- Referi-vos ao grão-sacerdote Simas? guerra só pode corresponder ao poderio egípcio. .Impõem-se,
da nossa parte, medidas de precaução, mas alimento a espe-
-'- Exatamente. Com a velhice a bater-lhe à porta, o bon~
rança de ouvir da boca do embaixador da Assíria e Babilônia,
doso sacerdote se mostra saudoso da pátria e deseja voltar.
que muito me merece em consideração e afeto, as explicações
Como podeis aquilatar, poderoso senhor, é ju.stís:imo o e~pe­ de tão estranhos acontecimentos.
nho da filha em querer satisfazer a gra~de aspn:açao ~o ~ell1tor.
Venho, pois, transmitir-vos o seu .ifledi~o de mdulgencIa par~ - Magnífico faraó, as vossas palavras têm para mim
o velho Simas. Se porventura, JulgaIS, senhor, esta merce o cunho da sinceridade e confiança. Cumpre-me, pois, usar
digna de compensação, ela vos pede a especifiqueis, ~diantando para convosco de afirmações verdadeiras, que estou apto a
o compromisso de se tornar fiadora dos atos do pato . emitir. A expedição de minha augusta soberana tem uma
- Recordo-me, sim... Foi Simas um dos conspIrado- grande finalidade política e militar, conquanto não vise a guer-
res para colocar no trono do Egito ~ meu :>-mbicioso ir:não Saiad. rear ninguém. Ela percorre inúmeros países, que já lhe pres-
Fracassou-lhes a tentativa, e ele se expatnou, voluntanamente ... taram,espontaneamente, vassalagem e tributo. É justo admi-
- Atenua grandemente a sua falta a circunstância de não tais, altíssimo rei, venha ela em toda a sua glória e poderio,
ter ele contra si uma sentença condenatória. .. Mais de dez anos para aprazimento dos povos que a honram e glorificam. Esse
nos separam desses acontecimentos e, acredito, tenha o tempo geral movimento de submissão vem- até os povos do mar Ver-
melho' mas posso afirmar-vos, ó glorioso faraó, nenhum sen-
230 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 231

timento hostil ela tem para com o nobre país do Nilo, que - Se me permite opinião sàbre o vosso país encantador,
sabiamente governais. dir-Ihe-ei que esse estado de ânimo se deve, em boa parte, ao
Podeis dar-me a vossa palavra de honra? perguntou o soberano, que imprime a própria feição ao seu r·einado. Por-
ventura é ele pouco liberal?
faraó.
Dou-vo-Ia, sim, com inteira consciência da minha res- - Eu não ousaria dizer-Ihé, meu amigo, se não me per-
ponsabilidade. guntasse. Vejo que é muito arguto nas suas observações ...
Fique isto entre nós: Ele passa por grande avarento e nin-
- Muito bem, senhor embaixador! Eu acredito na honra guém lhe aponta um gesto de' liberalidade.
da vossa palavra e declaro encerrado o assunto.
--:- Portanto, pode-se deduzir que ele é impopular. A mu-
- Minha missão, no vosso reino, é de paz, poderoso
nificência é o grande atributo da realeza. .
senhor. Incumbido vim pela minha rainha de trabalhar pela
aproximação e boa harmonia dos nossos países e espero con- - E até odiado pelo povo. " Se ele se mantém no trono
segui-lo, se me ajudardes. é porque destrói, implacavelmente, os desa;fetos e o pov;
- Transmiti à vossa gloriosa soberana os meus efusivos egípcio é tímido e Comodista.
votos de ventura e os protestos da minha boa vontade. - Eu não quero meter-me nas vossas coisas... Entre-
Beb-Alib compreendeu o insucesso da sua tentativa. O tant;> me surge espo~tânea a pergunta. Não há homens, por
faraó estava temeroso de uma surpresa agressiva. De fato, aqUI, capazes de chefIar um movimento que substitua o odiado
não tardou que mandasse seu exército ocupar a região do soberano?
istmo,. ponto de contacto do Egito com os países do oriente. - Há, sim, mas ninguém quer incomodar-se.
Beb-Alib apertou o cerco em torno do comandante da .- Não há uI'? príncipe que disponha de popularidade para
praça, que aos poucos, se tornou assíduo freqüentador de sua chefIar uma rebehão?
casa. - Há um, queridíssimo, mas está no fundo de um cár-
_ Banza, hoje, que nos unem laços de amizade, deve cere, porque o irmão faraó teme que ele venha a destroná-lo.
haver entre nós perfeita confiança. Aos poucos, me 'vou in- - Por que não fazem dele uma bandeira?
teirando das coisas deste maravilhoso país, das quais algumas - É sempre o comodismo que impera... Eu, por exem-
me parecem incongruentes. plo, estou bem colocado, e não me convém arriscar-me. Mas
_ Meu caro general Beb-Alib, .espero que saiba ver em sinc.eramente, havia de gostar que mudasse este estado de coisas:
mim um amigo leal e devotado que jamais se esquece de suas - Eu· penso, insinuou Beb, que você, Banza, é o homem
afirmações de amizade. Lembro-me, constantemente, da bene- que pode mudar esta situação... O exército está na fron-
volência do meu amigo estrangeiro, ao passo que me amargam teira, e você é o senhor absoluto da guarnição· da capital. Se
as injustiças e preterições que rec-ebo dos meus compatriotas. puser no trono outro faraó, o resto do exército; pela mesma
Beb já havia compreendido· a avareza do general egípcio razão do comodismo, aceitará o fato consumado ...
e não se admirou de que' este se mostrasse agradecido pelos - Não havia pensado nisso ...
presentes, que recebera em ,ouro e jóias. . - Consideremos, insistiu Beb. A classe sacerdotal, res-
- Não falemos nisso, Banza. Na minha terra os amigos senttda pela destituição do grão-sacerdote Simas, apenas tolera
se retribuem com grande munificência de donativos, como éxce- o atual. soberano. Não há dúvida de que a gente do templo
lente meio de solidificar as amizades. receberá com muito agrado a elevação do príncipe Saiad, que
- Como é diferente o Egito! exclamou o general. Aqui, dizem possuidor de ótimos predicados para governar.
os homens são muito mesquinhos. , - Isso para mim seria fáciL.. Sei onde ele está ...
É só libertá-lo...
232 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 233

- O general que isso fizesse, calcule, seria guindado, - Estais fatalmente apaixonado, meu real senhor, e con-
imediatamente, à condição de primeiro ministro... Seria o vém leveis preces a Amon-Ra para que vos isente de um fei-
maior homem do reino, abaixo do faraó. tiço que vos pode perder.
Os olhos de Banza brilhavam à insinuação de Beb. - Sou capaz, Nunotep, de dar o trono por uma mulher ...
- Isso tudo é possível, mas, como lhe disse, nós, os egíp- Nunca amei como deve amar um faraó. Agora sinto que um
cios, somos pouco arrojados. estranho fogo me devora o coração. Encontrei a minha fa-
- Considere que o momento é propício e o destino lhe raona, Nunotep!... Não posso passar sem vê-la, 'desespero-
pôs na mão uma grande oportunidade. Sabe que a oportuni- me de não possuí-la! .... 6 numes do Espaço, ó lsis divina,
dade se apresenta uma única vez? Pense se deve aproveitar ... ajudai-me a conquistar o meu amor! Eu quero arrebatá-la
Beb-Alib mudou de assunto. Levou o amigo para um para mim! Para mim!... Para mim! ...
compartimento onde guardava o seu tesouro, composto de jóias O faraó, desvairado, fazia grandes exclamações. De-
de alto preço e ouro amoedado. As rodelas se empilhavam pois ... como a pensar, dirigia-se ao conselheiro sobressaltado.
dentro de uma arca, e os olhos do comandante de Tânis cin- - Ouve-me, Nunotep. O marido raptou-a, tirou-a da
tilaram ao vê-Ias louras e reluzentes. casa dos pais... Eu, também, tenho o direito de roubá-la
- Pense bem, Banza. Se você se resolver, além do cilr- para mim... Colocá-Ia-ei num palácio' digno de uma deusa
gó de primeiro ~inistro, tudo isto será seu ... e lá irei adorá-la, como faço à divina 1si5. Deixarei, a seus
- Será possível? Vai dar-me tudo isso? 6 meu Deus! pés, de ser o faraó para aniquilar-me no meu êxtase de amor,
Vai dar-me tudo? É verdade? .. como Osíris se fundia na alma rutilante de sua esposa-irmã ...
- Eu to prometo, disse Beb. - Perdoai, magnífico senhq,r, se vos falo com a voz da
- Você é um deus descido à terra em forma de homem! experiência e da lealdade. Deveis considerar que se trata da
exclamou o egípcio, com entusiasmo. Sou todo seu! Con- esposa do embaixador da mais poderosa rainha do mundo. O
duza-me com a sua grande sabedoria. rapto de tão categorizada pessoa será caso de guerra, que porá
- Pois bem! Mostrar-Ihe-ei o caminho para alcançar a em perigo o Egito e o vosso trono. Afastai de vós, senhor,
celebridade e a fortuna. essa tentação, insuflada por um dos gênios do mal.
Banza partiu, bêôedo de ambição e de sonhos. . - Não importa, Nunotep. Afrontarei as potências' dos
- Se os outros fazem, monologava pelo caminho, pur que céus e .dos infernos para consegui-la. Eu estou à espera da:
não posso eu fazer o mesmo? É a minha oportunidade, como guerra com a rainha de Babilônia, que se dirige com poderoso
diz o glorioso Beb-Alib... exército contra o Egito... Nenhum escrúpulo, nenhuma lei
me impede de afrontar o embaixador, porque a guerra vem
aí. .. Não seja isso obstáculo para que eu dê uma faraona
ao Egito ...
Conversava Faraó com seu conselheiro.
- N:io posso esquecer-me da loura embaixatriz. Vivo a ---. Neste caso, senhor, é muito ;fácil mandar raptá-la.
Basta que o ordeneis.
sonhar com ela, e meu pensamento não se aparta da sua divina
figura. Difícil é imaginar-se uma tão bela e sedutora cria- ...:.... Sim, vamos arranjar isso, Nunotep... Como és com-
tura humana. Créu até numa humanização da divindade ... preensivo, meu amigo... Compreensivo! ...
Deve ser parenta do sol, que lhe enieitou a cabeça com uma " .. lO "!'" " ............................................... • ' ' : .. t

cabeleira dourada... Pertence a uma raça que jamais se tos-


tou nos areais ardentes do deserto... 11 branca como a es- A tarde, ch~gando a casa, o embaixador soube que Mábi
puma do mar, rosada como a manhã nascente... Perfumada havia sido procurada por um emissário da princesa' Chams,
como o cálice de uma flor ... em cuja liteira havia partido.
234 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 235

A noite descera silenciosa sobre a casaria branca de Tânis, Os revoltosos, 'correndo, passaram adiante e abriam, pre-
envolvida na neblina do Nilo. Beb se impacientava à espera cipitadamente, as portas, e os criados, abobados, estáticos, os
da esposa. Nenhuma justificativa chegava da insólita demora. deixavam passar. Em uma galeria, na parte posterior do pa-
Mandou a sua liteira procurá-la no palácio da princesa, mas lácio, surpreenderam o faraó em trajos de alcova, de pé, en-
os lacaios voltaram com a notícia de que lá não estava. Com- frentado por uma jovem de faca em punho.
preendeu, então, a cilada. Havia muito" se aperceberá. da cri- - Nenhum passo! dizia ela.
minosa intenção do faraó, embora lhe custasse crer em tal - Não brigues com mulher, poltrão! gritou-lhe o irmão.
audácia. Pensando melhor, chegou à conclusão de que o fato
- Saiad! exclamou o fa;raó 1! Que vieste fazer aqui?
de estar o exército egípcio concentrado na fronteira, à espera Prendam-no! Prendam-no!
das forças assírio-babilônicas, demonstrava que o faraó não
Não compreendeu, de momento, a situação. Vendo pes-
tinha dúvida quanto à intenção agressiva de Samura-mat. Daí,
soas conhecidas, entre as quais estava Banza, ordenou que
a falta de respeito à pragmática entre os países e seus gover- prendessem o irmão.
nantes. Essa afronta era a luva que lhe atiravam ao rosto.
- Chegou, finalmente, o dia do acerto, disse-lhe Saiad.
Tirando-lhe a sua' Mábi, atingiam-no tão profundamente, que
Há de ser aqui mesmo. Dê-lhe a espada! ordenou a um dos
ele se sentiu desorientado, e um grande assomo de ódio bor- oficiais.
bulhou em seu coração. Queria ir em socorro dela. ma: sen-
Entrego-te o poder sem resistência, Sáiad. Não me
tia-se impotente diante da mole inexpugnável do podeno fa- mates!
raônico. E Banza?, Cumpriria ele o prometJ'd? o. S ' VI-
ena •
Quero matar-te, covarde, em igualdade de condições!
tima, também, de um engano da parte do governador?
Trêmulo, acovardado, o faraó dificilmente se defendia, mas
Nada mais podia ele fazer que esperar, mas desesperava-
Saiad sentia-se fraco pela inatividade no cárcere. ' Aos poucos,
se. Tomara todas as providências possíveis em tão grave en;er- o faraó se reanimou, pensando em vender caro a vida. A
gência. Terrível angústia lhe seviciou <: ~oração ao. c.onslde- luta tomou aspecto desordenado, sem cuidado nem arte, tal o
rar que Mábi fora arrebatada ,em uma hteIra do palaclO real.
OOio e a, ânsia dos rivais. Em simultâneo movimento, os con-'
Onde estaria ela a essa hora? Morta? Enxovalhada? tendores avançaram, tocando-se mutuamente. O faraó, atin-
lO .. ,. '" '" ,. .. lO '" .. '",. .. ,. '" .. ,.,. .. '" lO: ,. ,. ,. .. '" ,. '" .. '" .. ,. .. \O
gido no coração, caiu e logo expirou. O príncipe Saiad,
ferido, também, no baixo ventre, sentiu-se desfalecer e foi am-
A meia-noite, o comandante da praça, seguido de' uma es- parado pelos oficiais.
colta, dirigiu-se à prisão onde estava o príncipe Saia?: ~eu - Senhorael11baixatriz, vou mandar levá-la a sua casa,
a senha e entrou. Pouco depois voltou trazendo o pnslOneIro disse-lhe Banza.
em sua companhia. As forças militares já estavam de pron- - Agradeço-vos, general, pelo socorro salvador que me
tidão e, com eles, marcharam rumo ao palácio real. As ruas trouxest~s.
estavam desertas, e o tropel da tropa ecoava r;o .c~lçament? O encontro de Beb e de Mábi foi emocionante.
de pedra. Pessoas curiosas, desperta.d~s pelo m~oh:o mOVI- - Os homens teimam em roubar o meu tesouro! Mi-
mento assomavam às janelas. O palaclO do farao, a madru- ;Iha pobre Mábi! Minha brava companheira I
gada, 'incubava o mistério ::Io, p~der e da força. Intimada, a - Beb, meu querido I
O"uarda rendeu-se sem reslstencla. Ela chorava copiosamente, abraçada ao marido.
b Um dos plantões, imediatos aos aposentos do .faraó, cor- - Retém as lágrimas e conta-me o acontecido.
reu a anunciar-lhe a novidade, mas encontrou o lelto deserto. - A história é simples. Uma liteira procurou:'me da parte
Logo chegaram, a correr, de espada em' punho. da princesa Chams, e eu, crédu1a~ acompanhei os servos do
~ Que é de o faraó? faraó, sendo leváda para o palácio real, onde permaneci, so-
- Não está aqui, senhor. zinha, grande parte da noite. Pela madrugada, entrou o fa-
236 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 237

raó no aposento. Julgava-me perdida, mas ensinaste-me a ma- dariedade. Lembranças a Mábi. Estou sozinha e gostaria de
nejar o cutelo, e, com ele ameacei-o, quando tentava abraçar- tê-la comigo. Eu gClno ía11(to dela! Far"me-ia companhia
me. Felizmente, nessa hora, ,çhegou-me salvamento pelo irmão neste transe doloroso.
'do faraó e do nosso amigo Banza. Assisti ao combate que - Vou transmitir-lhe o vosso desejo, princesa. Ela está
deu fim ao tirano. ' um pouco nervosa, mas, se puder, virá.
Ciente das ocorrências, Be'b-Alib tomou a liteira e dirigiu-
Como principal figura do movimento Banza assomou à
se à casa do grão-sacerdote, a quem fez acordar.
janela, fazendo menção de falar. As tr~mbetas impuseram
- Ilustríssimo padre, acabo de saber que o Egito ama- silêncio.
nheceu cüm outro faraó e adiantei-me em trazer-vüs a boa
nova. - Cidadãos do Egito! Acaba de entrar no reino da
E contou-lhe os acontecimentos. imo~talidade nosso senhor, o faraó Ramis. Que Osíris o en-
- Não se sabe, disse, se o príncipe Saiad poderá sobre- cammhe_ na nova vi:Ia, integrado em Ámon-Ra segundo a lei da
viver ao ferimento recebido. Os vossos conhecimentos mé~ ren~vaçao. ~n~nClO-V?S a subida do novo faraó, na pessoa
dicos e a assistência espirituai lhe são necessários. do Ilustre pnnClpe Sarad, sobre quem paira o beneplácito do
_ Em um mümento estarei pronto para seguir, meu amigo. Senhor dos mundos e dos homens. Viva Saiad, nosso sobe-
r~no e senhor! Que as potências benéficas do infinito o auxi-
_ Esperar-vos-ei, se quiserdes aproveitar a minha liteira.
hem a governar sabiamente para glória do Egito.
_ Muito grato, embaixador. Aceito para evitar delongas.
Rugiu a multidão.
Quando Beb e o grão-sacerdote Ámoild chegaram ao pa-
lácio, era enorme a afluência de gente. A guarda fazia es~ Banza assumiu, imediatamente, as funções de primeiro
forços para evitar a intrusão de elementos indesejáveis. Os ministro nomeado pelo novo soberano e entrou a tomar me-
ministros do falecido soberano eram presos :à medida que che- didas de urgência.
gavam. Amond estava à cabeceira do ferido. Em bem da salva-
_ Passagem para o grão-sacerdote Ámond! gritava o guia ção do doente, exigiu se evacuasse a sala repleta de curiosos.
da liteira, abrindo caminho com dificuldade. Apenas permaneceram ele e Chams, além dos serviçais neces-
- Passagem para o embaixador Beb-Alib! insistiu o ba- sários. Solenemente impôs as mãos sobre a água de um taça
e chegou-a aos lábios do enfermo.
tedor.
Beb foi ao comandante Banza agradecer o socorro pres- Chams passava a mãozinha morena sobre a testa do irmão
tado a Mábi, pedindo-lhe que transmitisse ao príncipe Saiad a acariciá-lo. '
a sua gratidão pelo salvamento da ,esposa. - Meu querido Saiad!
- Você tem uma heróica mulher. Ela ameaçava o faraó Ele olhava para ela, mas não podia falar, porque lhe
com a faca, quando nós chegamos. Parabéns t vinham náuseas.
_ Eu o felicito pelo êxito do golpe. Foi magistral. Meu N? dia segu.inte, apareceu a febre. Amond compreendeu
amigo Banza fêz jus ao reconhecimento do povo egípcio. Vai- a graVIdade da sItuação e ordenou se fizessem preces em todos
me permitir, caro amigü, que volte a minha casa, onde deixei os templos pela saúde do faraó. Afastados os criados fa-
Mábi sozinha e nervosa. Já vos entreguei o grão-sacerdote, lou-lhe. '
cuja presença me pareceu necessária. Adeus. - Meu augusto soberano, estais gravemente ferido e nós
Quando Beb' entrava na liteira, viu Chams, que descia de ro~amos a?s. divinos tutores do Egito que velem por vossa
outra. Ele retrocedeu para cumprimentá-la. saude, canSSIma ao povo. Haveis pre,stado à nossa terra o
- Que desgraça, senhor embaixador! Que tragédia! maior ,?enefício, .1iv.rando-a de um chefe prepotente e injusto.
Seja. o que Ámon quiser. Agradeço-lhe a gentileza da soli- É preCISO que VIVaIS para ° bem do Egito.
238 CAMILO CHAVES

- Venerável padre, respondeu, ofegante, O soberano. Agora, a princesa se desolava ao pensamento


Agradeço-vos as preces e a assistêrn.cia. Não sei se poderei perda dó irmão predileto. O trono iria para um pnnClpe,
resistir ao ferimento. Lastimo que não possa prestar maiores rente afastado dela. De certo modo, consolava-se com a
serviços ao meu povo. Sou o último varão da nossa linhagem, de que podia afastar-se 'da corte, das intrigas e da hipocrisia
e a minha morte dará, talvez, motivo a guerras e revoltas ... que cercavam o trono. Iria viver, esquecida, em sua proprie.
Eu não desejo que isto aconteça... Aconselhai-me, santo dade à margem do Nilo, onde, talvez, encontrasse sossego.
varão 1 E depois ... quem sabe? .Ela pensava em um príncipe, cuja
- Louvo o vosso cuidado, senhor. Permita o divino amorável companhia lhe iluminasse' de felicidade os dias soli-
Osíris vos seja adiada a partida.' Entretanto, o bem da nossa tários.
comunidade aconselha prudência e previdência. Andais sa- O doente agitou-se no leito e deu um gemido~ Ela cor-
biamente, procurando salvaguardar a paz dos egípCios, no caso reu a auxiliá-lo, com um arranjo, uma çarícia, um olhar mei-
de serdes chamado para a mansão do divino Ra. Podeis rea- go. Ele fitou-a demoradamente e apertou a mão que ela lhe
lizar o vosso intento, fazendo disposições da vossa vontade, oferecia.' .
indicando o vosso sucessor. Assim as lutas serão evitadas e - Chams, coragem! Pelo Egito! disse-lhe, quase imper-
a paz reinará. ceptivelmente.
- Venha o notário! Ela desatou a chorar.
Passado algum tempo, chegou o escriba, sobraçando um As contrações intestinais amiudavam-se; a náusea, o lí-
grosso volume de folhas de papiros. Banza foi chamado e os quido escuro brotava às golfadas. Aos poucos foi diminuin-
quatro se encerraram demoradamente na c:âmara real, e, por do a respiração até se tornar opressiva. A um violento espas-
fim, foram convocadas duas pessoas de categoria para assina- mo, o. doente quedou-se imóvel. .
rem como testemunhas, sem conhe.cimento do texto. Os presentes estavam pasmados pela decepção, e o silên-
cio era· quebrado por soluços. Chams çaiu em lamentações,
Chams passou a residir no palácio para melhor atender ao
sobre o cadáver do irmão, e Mábi afastou-a, carinhosamente,
enfermo, cujo estado se agravava, visivelmente. A infecção de-
daquela cena dolorosa. .
flagrou com o aparecimento de vômitos negros.
Gente de toda ordem se aglomerava no palácio, militares,
Diariamente, a princesa mandava a sua liteira buscar Mábi príncipes, damas da aristocracia, populares, todos a lastimarem o
de quem não se· podia afastar. acontecimento. Filas de sacerdotes chegavam empunhando es-
- Mábi, dizia ela, vou perder meu irmão derradeiro. Fi- tandartes, e o grão-sacerdote, cercado por acólitos e turiferários,
carei sozinha no mundo; tu serás minha irmã. . És tão boa! A procedia às recomendações e esconjuras do ritual, para que os
tua presença me faz lembrar a mimosa Samara. Quem sabe, peritos na arte de embalsamar procedessem à mumificação.
algum dia, irei visitar minha amiga? Passada a confusão, reuniram-se na sala de trono o escól
Chams não quisera casar; recusou, sempre, numerosos pre- social, os ministros, as autoridades civis e militares, convoca-
tendentes que a reqüestavam. Chocara-se com a prisão de das para ouvirem a leitura do testamento do extinto famó. O
Saiade, muitas vezes, intercedera por ele ao faraó, seu irmão; trono estava vazio.
mas este era infLexível. Com isto, ela vivia quase isolada e A tensão dos ,ânimos era evidente. Diante do incógnito
só aparecia no palácio, convocada' por moti~os protocolares. l~gado, muitos dos presentes acalentavam esperanças, fundadas
Conseguira,após muito rogar, permissão para visitar o prisio- em remoto parentesco com o morto. Os áulicos passeavam os
neiro, o que, constantemente fazia, levando-lhe roupas, livros olhos por aqueles príncipes, procurando adivinhar o futuro
e guloseimas. Grande amizade os ligava desde a infância, e, faraó. \
embora lastimasse o acontecido, ela ficou contente com a liber- Chams, sentada, cobria o rosto a chorar; Amond a conso-
tação de Saiad e sua' subida ao trono. lava, secundando as palavras animadoras de Mábi.
CAMILO CHAVES
240
Bem ao centro da sala, Banza, primeiro ministro, anun-
ciou o triste acontecimento, que enlutava o trono ,e o reino.
Disse que o morto faraó, valendo-se de um direito milenar, ha-
via testado as suas últimas vontades e disposições; que ia man-
dar o notário quebrar o selo do testamento na presença de todos CAPiTULO DÉCIMO PRIMEIRO
e lacerar-Ihe o invólucro, para ser lido e cumprido. ~
O escriba leu pausadamente, quase aos gritos os vários le- A FILHA DO SOL
gados, terminando por esta última disposição: "Declaro de mi-
nha última e categórica vontade qUle, em virtude de não ter
filhos ou irmãos varões, hei por bem designar como meu her- Um dos primeiros atos da nova soberana foi mandar re-
deiro e sucessor no trono a minha irmã Chams, cuja prudência c~lh:r aos quartéis as tropas estacionadas na fronteira, fato que
e sabedoria são penhor de felicidade para o povo egípcio, ao d~ssIpou. os temores de próximo conflito armado com a Babilô-
qual reco,mendo-Ihe preste obediência, vassalagem e amor, ~l1a._ DIVul~ou:se que as ra~n?as dos dois países eram amigas,
Sáiad, faraó". Irmas de cnaçao e compatncIas, o que impossibilitava a guer-
O arauto calou-se. O silêncio continuou. A surpresa foi r~. Começou para o Egito uma era de paz, fundada na con-
geral. fIança e no trabalho.
_ Viva a faraona! gritou Banza. . <?hams não. ti~ha experiência administrativa, mas escolheu
A sala quase ruiu à explosão das exclamações. a~uClhares experImentados, colocando Banza como primeiro mi-
_ Chams! Faraona! Viva! mstro, em recompensa à sua atuação eficiente nos acontecimen-
Todos louvavam o acerto da escolha. O primeiro a pro- tos que modificaram o curso das cousas. Aconselhava-se com
curá-la foi o grão-sacerdote, que se lhe prostrou aos pés e bei- o bom velhinho Amond Hermes, fonte de sabedoria e bom-
jou-lhes as mãos. senso. Beb-Alib e Mábi tornaram-se figuras indispensáveis,
_ Filha da deusa, disse, a palavra do morto consagra porque neles. a faraona encontrava, além do afeto, a palavra e .
a afirmativa da ísis divina, alguns anos há, em Guizé, ao mar- ° conselho, Isentos de prevenções e preferências.
car-vos com uma grande destinação. Revista-se de coragem l?e uma feita, Amond dirigiu a Chams as seguintes pon-
quem recebeu a essência e o entendimento dos mistério~ que re- deraçoes.
gem o mundo! Eu vos felicito, concitando-vos a aceItardes a
investidura, em nome da nossa ordem,para o bem da sagrada - Afortunada rainha e senhora. Os raios brancos de nu-
merosas l~as transcorridas se acumularam na cabeça do vosso
terra do Egito. velho servIdor. Este fato é sintoma de decadência física e es-
_ Estou pronta a cumprir o destino, venerando pontífice,
gotamento de .v,0ntade. Há muito, o vosso servo devia ter
respondeu ela com simplicidade. a?andonado ~ pa do trabalho, para esperar o chamado de Osí-
Amond tomou-a pela mão e fê-la sentar-se no trono, e a
rIS, nosso paI e senhor. Por determinação do Grande Conse-
aristocracia egípcia, ali reunida, tocada de respeito e carinho,
lho Sa.cerdotal, venho ocupando o posto de grão-saoerdote, na
A

processionou diante da nova soberana. ausenCIa do ve~dadeiro detentor do título, expulso do país por
Mábi levou-a, em seguida, para os seus aposentos, a fim
vosso augusto Irmão, o faraó Ramis. Acontece que eu preciso
de que, depois de paramentada, surgisse diante do povo em toda descansar, e desaparecem as incompatibilidades que mantinham
a majestade do cargo. afas!ado o grão-saoerdote Simas. Venho, pois, pedir-vos con-
Beb-Alib aproximou-se de Amond, num gesto cordial. s:n!Imento para exonerar-me, sugerindo a reintegração daquele
_ Felicito-vos peta sabedoria com que vos houvestes. Si- sablO.
mas não procederia com mais acerto.
SEMfRAMIS 243
242 CAMILO CHAVES

_ Venerável pai e amigo, disse a rainha. As vossas - Vou dar-te a ponta da verdade, para que adivinhes.
Não é faraó, é faraona ...
ponderadas palavras me despertan; e~?ções constrangedo~?-s.
Habituada aos vossos conselhos e as hçoes da vossa expenen- - Chamsl
cia, assusto-me à hipótese de ver-me privada dos vossos con- - Sim, Chams, a minha querida amiga de infância. Ago-
selhos. Como fraca mulher, atrevo-me a envergar esta. peno- ra iremos ao Egito e seremos recebidos como amigos. É.
sa investidura, confiada no auxílio vosso e de ou.tros leaIS con- verdade. Os dois maiores tronos do mundo, ocupados por
selheiros. Evocais grata lembrança de uma quenda e venerada duas mulheres aleitadas ao pé da Esfinge... E, muito
personalidade, violentamente prderida e exilada. Iniciada nos amigas I... Mas não é só isso qüe me participou Beb-Alib ...
mistérios de ísis e Osíris, cumpre-me acatar a vossa palavra e - Que mais, minha filha? Ótimas conseqüências po-
eu o faço autorizando-vos a encaminhar ao ~rande Conselho demos esperar deste auspicioso acontecimento.
Sacerdotal a vossa renúncia, para que possaIs repo~sar dos
longos trabalhos. Assim, satisfazendo ao vosso deseJo, en!ie- - Veio ordem para devolver ao Egito um senhor, não
jaremos um ato de reparação e justiça, repondo no posto de digo velho, mas um tanto idoso, chamado Simas, para· ocupar
grão-sacerdote o nosso sempre ~embrado Simas, em '<.luem o seu verdadeiro cargo ...
encontrarei, também, conselho e arnmo, como o vosso substItuto. - Ó divino Osíris, como és magnânimo. Ó Amon-Ra,
_ Agradeço-vos, augusta senhora e rainha, a merc~ ~o demiurgo e senhor dos mundos, como é grande o teu poder I
reconhecimento dos meus dilatados trabalhos e da permlssao Como são sábios os teus caminhos I Eu vos agradeço pela
para que o vosso servo descanse das lutas. . vossa complacência para com o vosso servo I...
_ Isto, entretanto, deverá ocorrer quando o nosso quen- Simas estava de joelhos, estático, banhado em lágrimas.
do Simas reassumir o posto. - Meu bom pai, eu não vos disse estas coisas para en-
_ Se me permitis, senhora, levarei ao embaixador Beb- tristecer-vos, disse-lhe a filha, penalizada.
Alib a autorização para chamar Simas na corte de Samura- - São lágrimas de alegria! São lágrimas de alegria I
mat, onde se encontra. Vou rever o nosso Egito I Vou ouvir a voz do passado,
_ Autorizo-vos a assim proceder, dizendo-lhe que este cantando nas quinas das pirâmides sagradas. Agora, posso
ato representa afetuosa homenagem ao pai da minha saudosa morrer, ó divino Osíris!
amiga, a rainha, sua filha. - Vê como são as contingências humanas... Eu es-
Beb-Alib, depois de ouvir a confirmação da ordem dada tou triste com a notícia... Vou perder a companhia do meu
a Ámond encaminhou a Samura-mat a boa nova. Esta es- querido pai, qtie se vai embora... Quem será, agora, o meu
tava na Etiópia, inspecionando a construção da sua esquadra, sábio conselheiro?
onde recebeu a notícia. O semblante de Samura-mat anuviou-se de tristeza.
_ Acabo de receber, querido pai, auspiciosas notícias ~o - Não vais comigo? Como posso ir sem ti? Não, não,
Egito. Beb-Alib tem desempenh~do ~on:o mestre a sua lt~­ minha filha I Eu não te abandonarei nunca!
cumbência. Organizou a revoluçao vItonosa cont:a o farao, O bom velho chorava copiosamente.
que nos fez sair da nossa .ter:,a. O pr~ncipe Sàtad, na su~ - Mas fico triste de não voltar ao Egito... Como são
sede de vingança, matou o Irmao, mas ft~u mortal~ente fe vãs e contraditórias as venturas do mundo! ...
rido, morrendo poucos dias depois. Imagma quem e o novo
- Eu não ficarei só, meu querido pai. Tenho o meu
faraó? admirável amigo e conselheiro, em quem ponho todo o amor
_ Não .posso adivinhar, minha filha. O que sei é que e confiança. Vai, que o Egito precisa de ti.
estás muito contente.
SEM1RAM!S
CAMILO CHAVES
244
- Tenho, querida Mábi grande
_ Sei... Falas de Lécon. Tens razão... Com ele mim, o que muito me preocu~a. Sou o
irás aos confins da terra, e o mundo será o teu reino. da nossa dinastia, e da desaparecerá se eu não der sucessor ao
_ Então, irás para o Egito? Está resolvido! dizia ela, trono.
.d Tenho " pois que me casar. Q uero encontrar um ma-
'batendo IKtlmas, contente como uma criança. n o que me ,a?rade.. Sinto que, em torno de mim, se trama
_ Seja feit:;t a vontade do Todo-Poderoso! uma grande teia de mteresses, visando à conquista do o"ra d
~
post~ de m~rido da. rainha. Desde a minha ascensão a~ t~o~
no VI a cobiça fervllhar nos olhos dos príncipes e dos nob~es
" O" " lO "," lO lO /I li' i" ,. I> .. I> O" ..

Heb-Alib adquirira na corte egípcia grande influência, mas estou alerta para não me deixar envolver. '
que procurava disfarçar para evitar despeitos e malquerenças. - Pe~so que, v,ocê, minha bela esquiva, já fez a sua es-
Banza alcançara o apogeu do prestígio, graças à discre- colha. " dIsse Mabl, com malícia.
ta interferência do assírio. Chams o confirmara no posto de - ~oje,. vou receber uma visita muito grata ...
primeiro ministro, além de dar-lhe outras honorificências.- Mos- - Ja sel... É Nazur.
trava-se sumamente grato ao amigo. - ,Dizes bem. Fico muito contente quando o vejo. Na-
Quem se encontrava, porém, em situação extraordinária zur, .~lem ?e valoroso soldado, éum perfeito gentil homem
era a ariana Mábi; a faraona não lhe dispensava a compa- Eu . Ja' fdeVia estar casada
. ' há muito . . . Mas nunca me sur-.
nhia. Beb, lisonjeado na sua vaidade, com a importância da gIU a r,ente o meu Ideal masculino. Fui muito cortejada
mulher, fingia-se de despeitado. sem que o meu coração tenha sido tocado pela flecha do a '
_ Já três vezes o meu tesouro foi roubado... Na pri- Com N~z~r.é di.ferente... Tão logo o vi, senti-me pre:o~
meira fui eu mesmo o ladrão; na segunda, foram os Káldi; ele. ~abl, Jamars me externei neste &entido com quem quer
na terceira, foi o faraó. Temo que me seja roubado pela que seja.
quarta vez ... - Quer dizer que, breve, casará?
_ Quem será o ladrão? perguntou Chams, a rir., - Sim, estou acalentando esse grande sonho Deseja-
- A faraona! va ce~ebrar as ~inhas bodas antes da coroação, m~s ele não
E Chams divertia-se 'com as facécias do embaixador. podera ser farao, segundo o nosso estatuto político E ~
_ Como foi ela raptada pelos bárbaros? Eu não co- quero, s.er co~oa da sem que, como meu marido, participe.
. u nao
O
nheço esse episódio. contrarIO
. Q para ele uma diminuiça~o . . . Casar-nos-emos
serIa
_ Foi na guerra do Urartu, respondeu Mábi. Os Káldi depols.. . ue achas, Mábi?
capturaram a retaguarda dos assírios, onde estavam as mu- Penso que você procede com muita nobreza.
lheres dos oficiais. Entre elas estava eu. Levaram-nos para - Eu quisera que ele fosse faraó.
a capital deles e nos puseram em leilão como escravas. Eu - Sê-lo-á, indiretamente.
fui arrematada pela quantia de duzentas moedas de ouro por
---=- Ele é muito nobre, Mábi. Com a minha inesperada
um senhor sujo, barbudo, cuspinhador... As intenções dele
as~ensao, afastou-se de mim. Antes, me procurava com assi·
se revelaram ,quando ficamos sós, no querer beijar-me, mas,
dU1da~e; mas agora se sente desanimado diante do prestígio
nesse momento, se lhe desprendeu a barbaça, aparecendo-me a
da ramha.
cara risonha de Beb-Alib ... - Sinal de altivez e sinceridade ...
A faraona deu uma gargalhada.
_ Qualquer dia não lhe devolvo mais a sua Mábi ... - Com isto, mais lhe quero.
_ Mudo-me para o palácio, gracejou ele. - Mande-lhe dizer que o espera.
Quando as duas amigas estavam confidenciavam. - Hoje, ele virá ver-me.
246 CAMILO CHAVES

Chamsse impacientava à espera da hora indicada para o jada. Havia, porém, entre eles um
encontro com o namorado. Apr.esentava-se trajada discreta- o rapaz amasse a Chams, estava diante dele a hU:~lnm\.,
mente, segundo a moda egípcia, preocupada em não parecer ~ Agora virás ver-me amiúde, não é verdad{;?
rainha. Uma túnica, que lhe vinha aos pés, de linho branco receberei quando quiseres ...
estampado de figurinhas negras de bonecos jogando bolas, ve· Hesitou um pouco, mas venceu~se a si mesma, no im.-
lava-lhes as formas modeladas e túmidas. As mangas com- pulso para o varão que amava. . .
pridas, mas justas, lhe denunciavam os braços bem torneados
~ Não deixes dt( vir, querido. Não te faças esquivo ...
e o cinto dourado lhe arredondava as ancas opulentas.
Os pés, bem guardados nas sandálias de ouro com incrustações Ela compreendia ser preciso encorajá-lo .paraque alijas-
de ouro, mal se expunha sob a túnica em movimento. Um se o respeito que os separava. Ob"servava-o com interésse e
colar negro de contas de ônix se lhe ajustava ao colo, como achava-o formoso, digno de ser o seu par, o seu faraó, o seu
nota de simplicidade. A cabeleira, basta e postiça, à moda Osíris.
egípcia, com o penteado embutido, dava-lhe à face morena, Despertou néle o instinto varonil, que não conhece fron~
de olhos negros, aparência quase infantiL.. Chams não era teiras nem preconceitos.
gorda, nem alta, nem baixa, e estava' numa idade em que a mu- - Virei! Tu me fascinas, Isis divina. Se
lher tem atingido o apogeu da forma. res, ficarei junto de ti para todo o sempre, num encatltc)
Olhou-se ao grande espelho de metal e achou-se provo- crente.
cante e bem mulher. Ficou contente por não parecer rainha. Ela sentiu a vi:bração daquela jura e não se COllte-vlil,
Assim se apresentou a Nazur, que a esperava na sala reser- - Meu amor! Meu delicioso faraó I
vada. Caindo-lhe aos pés, da o enlaçou, e os
Ele sentiu.-se deslumbrado e se pôs de joelhos diante procuraram, Se colaram na efusão de um beijo.
dela, tomando-lhe a mão para beijar. deslumbrados, falavam-se na muda linguagem do êx
~ Rainha e senhora minha! exclamou. vamente, se fundiam em transportes de amor.
~ Levanta-te, Nazur, aqui está apenas Chams, não a Estava' transposta a barreira do preconceito.
faraona. Tenho muito gosto em receber-te, intimamente; xando de ser a faraona, inacessível aos homens, S1.1
assim conversaremos à vontade. na glória da mulher amada. Ele, também, ébrio
- Não sei, na minha admiração, se vejo a rainha ou a prin- sentia que se lhe desmoronava o conçeito de reale
cesa. Venero a primeira com todo o méu entusiasmo de sú- de altíssimas muralhas, no desnudar a re~l11dlade,
dito; amo a segunda com todo o meu afeto. te dominadora da fêmea desejada.
- Quero que vejas Chains, apenas ... - Quando voltas? perguntou Chams.
Havia muito Nazur cortejava a princesa, mas sem arris- - Amanhã! respondeu ele, transformado.
car uma declaração. Sabia-a muito altiva, pelo desprezo com
que tratava os pretendentes. Agora, quando ela estava muito ................ ... , .
mais alto, admirava-se de· que descesse tanto até ele. Apos-
sou-se de sua mãozinha e beijou-a com efusão, sem que ela· a As festas da coroação se aproximavam,
retirasse. sociedade egípcia se mobilizava para o grande
- Chams divina, como me sinto enlevado neste meu so- Raríssimas vezes, durante milênios, havia cabid
nho de f e l i c i d a d e ! ' lher a invejada situação. Chams era uma cria
Ela jamais provara a delícia de uma desejada confissão de pela bondade e bom senso e jamais cometera u
amor, e, agora, se sentia em frente do seu Osíris, ansiando povo sentia-se contente, na confiança de que
por que ele a abraçasse e a beijasse, a ela que nunca fora bei- adviria no governo dela.
SEMíRAMlS
248 CAMILO CHAVES

Tebas, onde dormem, na paz dos templos trmHl'


Entrementes, Simas se aproximava do Egito, em sua via- cendentes fastos do passado, e, aqui mesmo, vos o
gem de regresso. A despedida entre ele e a filha fora como- alto cargo, que já era vosso e, agora, se confirma pela expres-
vente. sa vontade da nossa bem inspirada soberana. Sede bem-vindo
_ Quando penso no Egito, minha filha, dizia ele entre à terra do Egito, ó venerável Simas!
lágrimas, quero voar para lá. Estes anos de ausência me
exacerbaram as saudades. Tudo ali tem uma linguagem di- . - Venerando Ámond, recebo da vossa boca as boas-
vina que me deleita a alma em inefáveis consolações. vmdas d~ nossos. companheiros de ministério sagrado e sin-
_ Vá, meu querido pai, vá para a nossa terra, onde a to-me felIz por VIrem elas pela palavra autorizada de um be-
sua velhice transcorra feliz e abençoada, entre oscompanhei- nemérito ministro do Onipotente, que, pelos numerosos anos
ros do templo. de desempenho, maior soma de benemerências reúne. J á que
_ Entretanto, se penso em ti, já n'ão quero ir, quero a bondade .de Ámon-Ra o pe:mite, já que a vossa generosida-
ficar. Como poderei viver longe de ti? Eu acalentei a tua de o autorIza, assumo, neste mstante, as funçôes e poderes do
meninice, animei a tua juventude e acompanhei a tua gloriosa sumo sacerdócio. Afirmo-vos que, nos 10nO"os
A • • ~
anos de au-
ascensão .. , Jamais nos separamos! Ó senhor dos mundos senCIa, me pu.nglram a alma cruéis saudades dos meus queri-
e dos corações, dai-me força e coragem para resolver a minha dos companheIros do templo, e recebo, como grande mercê divi-
na, a alegria de poder voltar ao meu ministério. Aqui, entre vós
dúvida!
_ A sua sabedoria e assistência, meu adorado pai, foram outros, espero se escoem os últimos tempos de minha vida de
o roteiro da minha fortuna. Meu coração fica alanceado pela trabalhos. Ao dar-vos o meu amplexo, quero, de modo formal,
dor, se se afastar de mim; mas assiste-lhe, pela virtude e tra- apresentar ao virtuoso Ámond-Hermes, não somente a ex-
balho realizados, o direito à reabilitação. Agradece a Ámon- pressão do meu afeto, mas o testemunho do meu reconheci-
Ra a mercê alcançada, de restaurar-lhe a paz de espírito nos mento pela fidelidade incorruptível ao companheiro ausente.
seus últimos dias. Cesse em mim o egoísmo de filha no que- Iniciou Simas visita~ão aos numerosos centros religiosos,
rer retê-lo, para que chegue a recompensa ao lutador. Vá notadamente Karnac, Abldos e Vale dos Reis, junto de Te-
e não se preocupe comigo. Breve nos veremos no Egito, on- bas, Guizé e Mênfis e ao grande templo de Ámon, no deser-
de me esperam, também, grandes alegrias. to, assim como aos estabelecimentos situados nos numerosos
Simas partiu. Tomou pequeno barco e desceu o leito oásis, para o lado das montanhas; mas, enquanto desempenha-
acidentado do Nilo. Vencida a primeira catarata, em Elefan- ~a o seu ministério, precisou interrompê-lo, a fim de presidir
tina, tomou a galera do grão-sacerdote, que o esperava. a coroação da faraona.
A sua chegada a Tebas foi triunfal. Lá estava Ámond à !ransport~u-se a corte para Mênfis, onde .a. praxe esta-
frente das corporações sacerdotais, para recebê-lo. E falou- beleCIa se realtzasse a cerimônia. Grandiosas eram as festi-
lhe assim: vid~des. da coroação de um faraó, que tinham, certamente,
_ Amado pai, muitos plenilúnios percorreram o céu de- maIOr. ~n:er~sse, <;lue a~ da sagração do grão-sacerdote, pela
pois que deixastes a boa terra do Egito, levando saudades magmftce?~Ia : lIberalIdade do soberano, e maior amplitude,
convosco, deixando-nos saudades vossas. Muitas amarguras pel.~ ?artIClp~ç~O de delegações estrangeiras, como a' Líbia,
provou a nossa gente, enquanto vos amargavam as vicissitudes EtlOpta e Nubla, as dos grandes xeques das tribos do grande
de uma longa peregrinação. Quis a vontade de Ámon-Ra, deserto; as da Filistéia, dos Amonitas de Israel da Síria da
em sua alta sabedoria, que me coubesse a mim a honra e o en- Fenícia, do país de Malkat e dos amal~citas' das ~ribos da ~or­
cargo de ocupar o posto máximo de grão-sacerdote, que exer- dilheira do Sinai e da Arábia Feliz. Desta' vez Assíria e Ba-
cíeis por legítima eleição do Alto e dos vossos companheiros. bilônia se representavam por brilhante embaixada, chefiada
J::í depus nas mãos do Grande Conselho o mandato interino pelo famoso general Beb-Alib.
para que o reassumísseis. Hoje, pisais a terra sagrada de
250 CAMILO CHAVES SEMíRAMIS 251

o brilho das solenidades excedeu a tudo quanto se ti- - Você, dizia, tem muito tempo para recuperar a alegria
nha visto até então, no Egito, quando a faraona Chams, pela de viver... Tudo passa neste mundo, inclusive os pesares.
mão do grão-sacerdote Simas, cingiu a tiara de duas coroas, Você está moça, bonita, e poderosa; não faltará um bravo
como rainha do Alto e do Baixo-Egito. egípcio que a enfeitice novamente.
Ainda perduravam os ecos das festividades, quando Mên- - Não creio, Mábi. Você Viu o desbarato dos meus pri-
fis, foi abalada por triste acontecimento. O velhi~ho Ámond meiros sonhos. Nem me foi permitido o gosto de castigar o
Hermés, inesperadamente, sentira enfermar-se. VlU logo que autor de minha desventura.
seu término havia chegado e reuniu toda a congregação para
- A 1sis divina, de sua d.evoção, há de restituír-lhe a
despedir-se. Simas assistiu-o até ao último momento. O p~á­ felicidade. '
cido moribundo, recordando o seu labutar, em que reumra
boa cópia de ações meritórias, mostrava-se confiante e prepa· Os dias correram. Chams dedicou-se, inteiramente, aos
radopara enfrentar o tribunal presidido pelo divino Osíris. afazeres administrativos. A acuidade compreensiva, adquiri-
,.- Simas, dizia ofegante, não importa viver muito, o da em Guízé, lhe abrandara o caráter para a prática da pa-
qlleé necessário é viver bem. Eu não tenho de que... me ciência e tolerância, o que lhe valeu a admiração dos súditos,
queixar ... sedentos de justiça e benevolência. Disto se aproveitaram os
E foi-se. ambiciosos que se aproximavam dela, numa atitude aparente-
E fizeram-lhe grandes funerais, e a sua memona foi ce- mente sincera.
lebrada em toda a extensão da terra dos faraós. Mandifar, ex-primeiro ministro do faraó Ramis, que ti-
1> ' lO o-o ," lO 0.0 .
vera fim tão infeliz, era apontadó como insuflador dos piores
atos do monarca. Desinteressado dos acontecimentos, que se
Passada a coroação, Chams tratou de realizar o seu casa· desenrolaram no reino, ou tomado de receio, ele retirou-se à
mento. Nazur se tornara, pelo favor da rainha, uma grande vida privada na sua propriedade rural. Após algum tempo,
personalidade no posto de lugar-tenente do reino. . pedira àudiência à rainha, sendo cordialmente recebido como
Aproximava-se o dia da cerimônia, para a qual havia.: velho servidor. Daí em diante, visitava seguidamente o palá-
grand~ aparato na corte. Freqüentador assíduo do palácio cio real e fez desaparecer as prevenções. Era mesmo distin-
real pàra visitar sua prometida, o noivo deixou, certo dia, de guido pela faraona.
aparecer. O fato foi atribuí,do a alguma indisposição, mas ao - Folgo muito, nobre Mandifar, em vê-lo, e espero que
fim do segundo dia, Chams mandou procurá-lo. Na casa do não se esquive de dar-me a colaboração da sua experiência.
jovem havia iguais apreensões por motivo de seu desapareci- - Magnífica rainha, os acontecimentos que puseram ter-
mento. Outras procuras não deram resultado. mo à vida do meu querido senhor, impuseram-me certo re-
Passaram-se dias de angústia para Chams. Tornou-se traimento", como protesto contra o feio proceder dos revoltosos.
triste e indiferente a tudo, à medida que os dias transcorridos - Sei, disse Chams. Reconheço em seu digno gesto o
sem notícias do seu amado a convenciam da sua morte. índice de um caráter superior. Mas não me cabe a mim culpa
- Mábi, dizia ela à amiga, a coroa é um fardo muito pe- alguma nas ocorrências havidas, cujas causas estão nos d~
sado. Eu gostaria de viver a minha vida anterior, tranqüila sígnios do Senhor do Universo. Eu mesma fui surpreendida
e descuidosa. Eu nunca fui amiga do fausto e das come- pelos toques de trompa do destino, chamando-me para o posto
morações alegrf's, mas encontrei em Nazur um incentivo às supremo.
festas, porque também meu coração vivia em festa. Com o - Fostes magnificamente contemplada, gloriosa senhora,
desaparecimento dele dô número dos vivos, convenço-me de pelo favor de Ámon, ao ser designada para tão elevado cargo.
quão efêmeros são os prazeres e esperanças deste mundo. ./
Deveis alegrar-vos pela exceção, que vos tocou, na escala su-
Mábi procurava consolá-la, apesar da escassez de razões. cessória dos monarcas egípcios.
252 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 253

Submeto-me, apenas, aos desígnios do Alto. Prefe- contra o meu escolhido. Está. autorizado a expender o seu
riria viver tranqüila na minha herdade, porquanto, hoje, me juízo, ã guisa de conselho à sua rainha.'
sinto mais solitária na corte que naquele bom tempo em que Ele tomou ânimo e continuou.
desfrutava os lazeres do meu retraimento. :"-"Meu parecer é que não recueis do dever de contrair
- Permiti, senhora, que vos mostre as inúmeras possi- núpcias em bem da vossa dinastia e da paz interna do Pais.
bilidades que vos assistem' de regalos na vida. Cercando-vos É a cota do vosso sacrifício pela nação que vos coube a sorte
a afeição dos vossos súditos, mil formas se oferecem para de governar. ,Há. muitos nobres, repito, do mais glorioso san-
glória do vosso nome e para a vossa felicidade. gue, dignos da. vossa escolha. .
- Nem tanto, Mandífar. A vida àrtificial de uma rai- - Está bem, Mandifar, vou refletir.
nha quase nunca proporciona felicidade. Está aí patente o Chams impressionou-se com o argumento do ex-ministro
fracasso dos meus sonhos de ordem afetiva. Havia escolhido e passou a admitir a necessidade de casar, por puro sentimento
o companheiro que me amenizasse os dias da vida com carinho de ~e~er. Sugest~onou-se a este pensamento, discutia-o com
e dedicação. Entretanto, a mão criminosa de um despeitado o os mtImos, especIalmente com sua amiga Mábi. Mandifar
afastou violentamente do meu caminho ... apresentou-se-Ihe após alguns dias insistindo no propósito de
- Não vos apoquenteis, senhora, por esse insucesso, mo- dominar a fortaleza.
tivo aparente de infortúnio. Se quiserdes, podeis alijar esse - Já notava a sua demora, nobre Mandifar. Achei inte-
desgosto, contanto que encareis a vida em sentido menos sen- ressant~ o assunto da nossa última palestra e tenho pensado
timentaL Existem, no Egito, numerosos jovens da melhor no- a respeIto.
breza, entre os quais podeis escolher um prendado esposo. - .Alegr~-me, senhora, por vo~ ter sugerido razões dignas
Para falar-vos verdade, o infortunado Nazur não constituía de consIderaçao.
partido à altura da nossa excelsa soberana. Era membro da -_ Ten~o, ;entretanto, a desconfiança de que aquela gran-
pequena nobreza e um tímido; os seus dotes de espírito, e de ~azao nao e o que o leva a insistir em demover-me do
mesmo os físicos, não o recomendavam à privilegiada missão. desejO de permanecer solteira.
- Quer aconselhar-me a procurar marido? perguntou ela - Porque tenho interesse nisso.
num gesto de çensura. - Como assim?
Mandifar, compreendendo, resolveu afrontar a situação . - ~ara qu~ se me ~bra a oportunidade de depositar aos
com a sua audácia costumada. vossos pes o preIto da mmha dedicação e do meu amor.
--' Se permitis, ilustre rainha, a um submisso vassalo, que - Você? exclamou Chams, admirada.
tantos anos dedicou ao serviço da realeza, manifeste com sin- . - .E?, ~inha senho.ra! ~sse amor é um sentimento que
ceridade o seu parecer sobre este importante assunto para a dedIqueI a lInda e esqUIva pnncesa Chams desde os tempos
dinastia, ele insistirá no vosso ,deve'r de dar ao Egito um filho do vosso irm~o. Fostes a loucura dos meus sonhos, e, mui-
e sucessor. tas v:zes, estIve a. ponto de prostrar-me aos vossos pés para
-:- Com que título se atreve você a insinuar-me coisas a maIS. pura conftssão. Temia, porém, ser mal recebido, e,
que pertencem ao meu foro íntimo? retorquiu ela com ve- p~ra ~ao ver desmoronarem-se as minhas esperanças, acabava
,emência. sIlenCIando .0 meu .feto. Hoje, que nada sou, quero afrontar
°
- Com o de haver servido lealmente vosso irmão faraó. o meu destmo, abrmdo-vos o meu coração, à espera da vossa
sentença.
Ela sentiU-se subjugada pela firmeza daquele homem enér-
gico. Ela sentiu-se lisonjeada ao ver aquele jovem a seus pés
- Está. bem, Mandifar, desculpe-me. A revolta me ir- e pareceu-l~e ~elo. Na sua argúcia de mulher, jamais sus-
rompe do coração ao lembrar-me da odiosa vingança praticada peItara da mchnação amorosa do ministro do Faraó Ramis.
254 CAMILO CHAVES SEM Í R A M l"S 255
Estava confusa no interpretar a atitude do novo pretendente. assíduo visitante. Diz ser velho namorado meu, desde o rei..
Ora lhe parecia ser ele movido por um sentimento de audácia nado de meu irmão. Nunca percebi nada.
e cinismo, ora admitia a sinceridade das suas afirmativas.
. - Realmente, é uma sedutora situação a de consorte da
- Não recebo com hostilidade a sua afirmação, nobre ramha... Vejo, com satisfação, que está precavida contra
Mandifar, mas persiste em mim o estado de dúvida, sobre a as tentações do aventureiro.
conveniência de dar esse passo importante. Pode, entretanto,
cOhtinuar a vir visitar-me. - Tenho pensado muito, Mábi. Momentos há, esse ho-
~em me. causa repugnância. Seus olhos têm fulgurações si-
Este colóquio era realizado a portas fechadas, mas a assi- lllstras. . . É um grande tentador, Mábi. É belo no físico
duidade de Mandifar no palácio causava entre os familiares
e insinuante. Eu não quero deixar-me empolgar, mas tenho
da rainha a mais estranha impressão. Sabia-se que os áulicos,
medo de não resistir. Não tenho razão :para lhe recusar
exploradores do faraó Ramis, estavam afastados da nova cor-
audiência, mas gostaria de que ele aqui não viesse mais ...
rente que cercava Chams. A primeira visita de Mandifar pu-
Mas. " a sua falta me torna triste... Não! Ele deve ser
sera todos intrigado, e começou a espionagem em torno dele. um homem fatal.
Durante os seus colóquios com a rainha, ouvidos curiosos se
colavam às portas ou escutavam atentos por trás dos repos- Mábi transmitia ao marido as impressões da amiga.
teiros. O assunto era comentado à boca pequena, e a notícia Mandifar, porém, insistia em não deixar escapar a presa.
chegou a Beb-Alib por intermédio de Mábi. Havia muito - Permiti, divina filha do sol, permiti que eu venha mais
que o embaixador se preocupava em descobrir a trama que uma vez contemplar-vos .a face radiosa. Se lícito me fora,
urdira o sacrifício de Nazur, e sua atenção estava voltada para gostaria de permanecer prostrado aos vossos pés, em eterno
o grupo que apoiara o morto faraó. Não encontrara, contudo, enlêvo. .. 6 Ísis divina, quisera eu ser o vosso amado Osi-
a ponta da meada, apesar da intuição que tinha de que esse ris!. . . Concedei-me, a mim, simples mortal, a ventura de
assassínio fora motivado pelo ódio e despeito dos que haviam per- compartilhar a felicidade que vos envolve ...
dido as posições. Em vez do retraimento a que se tinham Chams, na sua vaidade de mulher, sentia-se e111 bala,da pela
votado, ocorria a mudança de tática.. Nazur seria um obs- sensação de ser querida. .
táculo à realizaç1ão deste intento. Estava, pois, iniciado o . ---: Não é a rainha, dizia ele, que me empolga a alma
assalto às ;posições, levadas em conta a fraqueza da faraona mcendlda de amor. É a mulher em todo c seu esplendor de
e a falta do seu conselheiro. 'bele~a e encantamento. Am9-a pela pureza das linhas har-
Estas considerações vieram confirmar as suspeitas de Beb- momosas do s~u r?sto divino e pela luz de seus grandes
Alib, disposto a entrar em campo. Banza foi posto ao cor- olhos, que me l1ummam a alma de cismas deliciosas... Os
rente destas conjeturas, e a vigilância se estreitou em torno de seus ~~bios, a lhe modelarem a boca, cheia de promessas e
Mandifar. de beiJOS, me fazem sonhar com as delícias da fusão eterna
Confiado hO seu poder de sedução, este se tornou assíduo d: nossas almas, que se completam. Perdoai-me, Chams di-
freqüentador do palácio, onde entrava com a arrogância de vma, se ouso externar as sensações que me incendeiam o co-
antes. Tolerava-o Chams, mas, no seu íntimo, surgia sempre - I
raçao. Per doal-me,
. .
mmha faraona! Perdoai-me, mulher"
uma desconfiança sobre as intenções do visitante. amada!
. - Sabe, Mábi, que tenho um novo pretendente? , .Chan:s jama~s ouvira aquela linguagem maravilhosa, que
- Felicito-a com sinceridade. Encontrou, finalmente, um l~le mvadJa as velas como uma torrente de água quente. Sen-
no~o príncipe encantado? ., . tIa-se enlanguecer num deleite desconhecido.
- Não lhe sei dizer nada. Apareceu-me o pnmelro mI- - Não me fale assim, Mandifar. Faz-me maL.. Você
nistro de meu irmão Ramis e vive a assediar-me com propos- se apossa de mim com o domínio absoluto da sua vontade ...
tas de casamento. A princípio, fugiu do palácio e, agora, é As suas palavras me enlevam ..•
256 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 257

Repentinamente, ocorria-lhe algo que a tornava retraída - É o anseio que me aproxima de vós, Mandifar. Se
e triste. me quereis encaminhar, será este mais um laço que nos vai
- Há pouco tempo, Nazur me foi arrebatado... Não ligar. Vou, quanto antes, demitir-me das minhas funções
é possível cogitarmos agora, de casamento. junto a Banza para poder dedicar-me, inteiramente, à nova
Mandifar mostrou-se exasperado. . tarefa.
- Maldito Nazur, que se atravessa no caminho da minha
felicidade! Ó divina criatura, não mais suporto o suplício - Ao contrário, disse Mandifar, em vez de te demitires,
de viver afastado da vossa presença!... Prefiro morrer! deves :permanecer junto dele, para observar-lhe os movimentos
Rompendo com todas as conveniências, de se precipitou e atitudes. Nós, conhecendo-lhe os passos, podemos agir com
mais acerto.
aos pés de Chams numa atitude de adoração. Nela predo-
minava ora a altivez da rainha, ora a vaidade da mulher que - Vejo quão sensato é o vosso alvitre. Continuarei ao
se sente amada. pé do imoralíssimo Banza, a espionar-lhe os pensamentos e
- Levante-se, Mandifar, levante-se, eu lho peço. " Não ações.
continue.. , insistia ela fracamente.
. - Não recuseis, lsis divina, a ventura suprema ao vosso - Com isto, prestarás grande serviço à nossa causa, e
teu trabalho te será levado à conta. Preciso saber, de ante-
amante! ...
mão, se meu nome é mencionado nas conversações da inti-
Ela sentiu-se envolver por urna indolência irresistível e midade ,do teu chefe.
deleitosa. Intumesceram-lhe as veias, os membros se lhe re-
laxaram. .. e os olhos amorteceram-se-Ihe num abandono de - A propósito, lembro-me de ter ouvido qualquer coisa...
êxtase.. - Mandifarvitorioso envolveu~a num abraço de Fala-se da vossa assiduidade no palácio real e que tentais enfei-
fauno, e os lábios de ambos se colaram na suprema delícia tiçar a rainha. Esta Se mostra sugestionada ...
de dois corpos que se fundem num só ... - Han, han! Falam nisso?
Depois. .. ela, com os olhos brilhantes, lhe passava a mão,
ternamente, pelos cabelos desalinhados ... - Temem que ela propenda para °
inimigo comum.
- Está bem. Continua a ouvir e traze-me as novidades.
......... . ....... . . . ........... ... .......... . . . .. .. .. .. .. . .. .. Vou apresentar-te aos companheiros, esta noite.
A vigilância em torno de Mandifar continuava; os agentes Na reunião desse dia, Mandifar se mostrava radiante.
de Banza já tinham localizado os pontos das reuniões secretas - Tenho grande notícia a dar-vos, meus amigos. Penso
do grupo de conspiradores, que, cautelosos, não as realizavam que não teremos necessidade de recorrer à mão armada, para
no mesmo local, seguidamente. Antes de qualquer providên- conseguirmos o nosso intento. Posso afirmar-vos que tpe apos-
cia, convinha conhecer os componentes do grupo, e para essa sei do ânimo da rainha.
delicada missão foi escolhido Serelep, dedicado a Banza. Tra- - O vosso trabalho é extraordinário, ilustre Mandifar,
tou ele de reatar relações com o antigo ministro do farao disse um dos mais categorizados do grupo. Nossos louvores
Ramis. Apresentou-se-Ihe queixoso de Banza, cujas injusti- são entusiásticos, e, se nos é lícito saber, revelai-nos os fatos
ças, dizia, contrastavam com os bons tempos ~m que Mandifar que vos tornam confiante nos auspiciosos resultados que
dirigia os negócios públicos. Regozijou-se este pela volta do anunciais.
amigo, que muito podia ajudá-lo. Depois de algum tempo
- Vou casar com a faraona. Ela já me pertence, e não
de observação, abriu-se com de. há forças que me tolham a vitória.
- Há um grupo de patriotas que se dedicam a libertar
Isto que nos adiantais é maravilhoso. Como conse-
a noss:;l. terra das mãos dos tiranos que envolvem a rainha. guistes, venturoso Mandifar?
Querespartieipar desse movimento t
258 CAMILO CHAVES 259

_ Com corngetn e persistência. Um belo dia, a.presen· . - N~s:es di~s em que a doença me reteve, só pensei em
tei.me a ela e, entre outras coisas, fiz-lhe uma declaração de vos, magmfIca rainha. Quisera voar até vós adorar-vos de-
vorar-vos com os meus beijos. ' ,
amor.
Ela, apaziguada, deixou-se abraçar e beijar.
Ecoou enorme gargalhada entre os presentes.
Sabes que tenho pensado muito em ti?
_ Não suponhais que ela é fácil de conquistar; é uma. Como sou venturoso, ó divina criatura I
potentíssíma. fortaleza, quase inexpugnável. Mas é Uma' mu- - Sim, minha alma está cheia de ti, po'r ISSO mandei
lher de trinta anos que, por ser justamente uma cidadela, não chamar-te.
está acostumada a um assédio persistente e às escaladas atre- - Eu sonho com o d'Ia em que nao -maiS' me apartarei
vidas. Minhas declarações fizeram um efeito arrasador na- de vós.
quela virtude austera... - .Tenho pensado nisso, Mandifar. Tenho-te escolhido'
- Quereis dizer que a faraona é vossa presa? para pai de meus filhos.
_ Não me forceis a confissões indiscretas... Posso - Ó !~ande e poderoso Ámon, sinto-me divinizado pelo
garantir-vos que, brevemente, será anunciado o nosso casa- teu beneplacIto e rendo-te graças para sempre!
mento. Então, meus amigos, sereis recompensados dos vossos Os namorados se mantinham enlevados em mútua con-
templação.
trabalhos e da vossa dedicação.
_ Permiti-me uma pergunta, nobre Mandifar. Vós vos - Vou a~unciar o nosso casamento, disse Chams.
A corte fOI co?vocada e convites foram expedidos a todos
contentais com ser marido da faraona? perguntou-lhe, de cho-
os ~r~nd;s do EgIto. . Até então, a rainha se mantivera re-
fre, um indiscreto. fratarIa ~s festas, motIvo por que o acontecimento despertou
..- Deveis compreender, disse outro, que não há herdeiro enorme Interesse. N? dia determinado, os salões do palácio
do trono e que a ocasião é azada para se, iniciar uma nova co.lmavam-se de conVIdados, reunidos sem distinções políticas
dinastia. ~lllstur:ndo-se os ~ulicos habituais com elementos pertencente~
-JSóis um grande manobrista, vitorioso Mandifad ex- a facçao do faleCIdo faraó Ramis. Estes mostravam-se ale-
clamou um outro companheiro. Quem diria que iríeis arre- gres e altivos, participando das conversações~ infiltrando-se em
batar o cetro ao malogrado Nazud todas as rodas.
Ao entrar no salão, Chams foi vivamente aclamada res-
Silêncio! Não se toca neste nome! pondendo, alegr~, às manifestações de carinho que lhe diri~iam.
Ia alta a madrugada, quando os conspiradores se sepa-
~o seu lado" vmha o nobre Mandifar, arrogante, como se já
raram. tIvesse aos pes o mundo egípcio. Serenadas as expansões da
.................................... • 4'_ 11 0·0 ,
assistência, o ministro Banza tomou a palavra.
Nobres egípcios, encontramo-nos aqui para celebrar um
gran~e acontecimento, não somente para o nosso país, mas,
Durante alguns dias, Mandifar não apareceu no palácio.
espeCialmente, para a nossa gloriosa soberana. Ela, obediente
Chams mandou-lhe recado para que a procurasse. Ao pene·
trar .ele naquelas galerias monumentais, sentia-se radiante e aos .ditat;1es do coração e· em cumprimento do dever de ga-
rantIr a perpetuação da sua gloriosa dinastia, vem de escolher
caminhava como em terra de sua conquista.
o seu preferido entre inúmeras figuras de relevo da nossa
Chams recebeu-o, um pouco amuada.
terra. O nobre Mandifar, que tenho a honra de apresentar-
_ Não parece que a faraona o tenha impressionado, como vos, será o consorte da nossa querida faraona, e em sua honra
disse ... é celebrada esta brilhante solenidade festiva. Trata-se de um
Ele, de joelhos, beijava-lhe as mãos, como um adolescente. velho conhecido nosso, dedicado servidor da nação, rebento
·
.
CAMILOCHAVES 5EMfRAMIS 261

de uma nobilíssima. família que tem: ilustrado amplamente os , . -: Não. vos agasteis, por favor. .. Aqui, o lugar é pro-
fastos do Egito. Em nome· do po:,o egípcio e interpretando pICIO as maIS serenas confissões, como aos mais ocultos aten-
os sentimentos amistosos de todos os presentes, manifesto ao' t~d?s. Como sabeis, o Nilo está muito próximo e é fide-
venturoso casal os nossos sinceros votos de felicidade. Salve hssImo guardadorde segredos... Não há muito, aqui, nesta
Chams, a nossa querida soberana! Salve ° nobre Mandifar. mesma h~rdade, veio atraído um nobre egípcio, que trazia a
Mandifar, prestigiado, tornou-se a primeira figura da reu- alma cheIa de sonhos e de ·esperanças, como noivo de uma
nião, e, com man~festo desdém, recebia as reverências e lison4
potentíssima rainha. Esse :príncipe resolveu não aparecer mais
jas daqueles 'que antes o desprezavam. . na c?rte e ninguém sabe aonde foi refugiar-se. Talvez, o nos-
Dois dias depois, Serelep procurou Mandlfar. so no sagrado pudesse desvendar o mistério ...
_ Nobre senhor, os nossos companheiros insistem em Mandifar estava sucumbido.
realizar uma última reunião do grupo. - Que quereis de mim? perguntou.
- Já lhes disse desnecessárias novas reuniões, que, pelo ~ Queremos que nos expliqueis, senhor, este intricado
fato de serem secretas e realizadas à noite, podem ocasionar caso que o Nilo teima em ocultar...
màl-entendidos. Hoje, felizmente, tudo pode ser conversado - Eu nada sei disso a que vos referis.
sem cautelas, porque o noivo da rainha dispõe de imensa força, - É impossível, nobre Mandifar, que desconheçais o fato
superior _à' do primeiro ministro. O traidor Banza tem que que abalou profundamente a rainha e a sociedade egípcia.' Tra-
se avir comigo ... ta-se do desaparecimento do nobre Nazur, noivo da rainha
_ Eles insistem, senhor, em realizar esta última, como Chams. .
despedida do seu glorioso chefe, que vai ser elevado à maior - Ouvi falar nisso como toda gente.
situação que pode alcançar um egípcio. - Na mesma noite em que ele desapareceu, houve aqui
- Está bem, irei. Qual o local escolhido? uma reunião movimentada, que durou quase a noite toda. Foi
- A herdade à margem do Nilo, ela presidida pelo nobre Mandifar.
À hora costumada, chegou Mandifar e, sem tempo de re- - É mentira t É mentira I Eu jamais vim aqui.
troceder, encontrou-se cercado de gente desconhecida e de mau - Entretanto acertastes com o caminho a uma simples
indicação...
aspecto.
Mandifar viu-se apanhado e reconheceu-se vítima da es.
_ Que desejais de mim? perguntou receoso, mas arro- pionagem de Serelep.
gante. - Quem sois vós? ,perguntou ele ao seu interlocutor.
- Não é mister vos agasteis, senhor. Vamos conversar, - Sou irmão do nobre Nazur.
calmamente, sobre assunto de máximo interesse. Sentai-vos, - Que desejais?
por favor. - Queremos que confesseis francamente o crime para
Era inútil reagir. Mandifar sentou-se, certo de haver receberdes o merecido castigo.
caído em uma cilada. -- Eu nada tenho que confessar.
- Pelo que percebo, vim aqui enganado, mas previno-vos - É inútil negar. Nós temos provas dos fatos ocorridos;
de que, se algum agràvo me fizerdes, sereis severamente pU 4
queremos qu~ os relateis com a vossa própria boca.
nidos. - - Nunca o direi! Sei que fui vítima de uma emboscada.
_ Estamos certos disso, nobre Mandifar. Mas, antes de Podeis matar-me, mas nunca me acusarei.
afastar-vos, queremos ouvir-vos a respeito de um aconteci- - Estais muito arrogante, senhor. Vamos lançar mão
mento que vem burlando a astúcia da real justiça, empenhada de nossos meios de obter confissões.
em esclarecê-lo. Quatro robustos guardas o despojaram das vestes e lhe
- Eu não tenho que vos dar conta de nada, traidores. ataram as mãos.
262 ' CAMILO CHAVES

- Nós vos aconselhamos a confessar para poderdes mor- Os guardas subjugaram o preso, e, como gritasse deses-
rer tranqüilo. É um conselho... Do contrário teremos que pera~amente, aplicaram-lhe uma mordaça. Colocado o pesco-
empregar meios capazes de arrancar as mais escondidas ver- ço sobre uma peça de madeira, a cabeça caiu-lhe truncada,
dades... Isto n.ão vos convém. de um golpe.
- Matai-me, então! O intestino levou .largo co!J;e para evitar o timpanismo
- Confessais a autoria da morte do nobre Nazur? e a conseqüente levitação.
- Não! Não! Não! O Nilo, rio sagrado, guardou no seu bojo profundo mais
- Aplicai-lhe a compressão dos testículos, ordenou o jul- um mistério... .
gador. Na tarde desse mesmo dia, a venturosa e perfumada
O paciente gritava lancinantemente, à aplicação de tena:r. Chams, envergando finíssimo indumento, aguardava a visita
de ferro. do noivo.
- Matai-me! gritava, desesperado. Cansada de esperar, mandou saber notícias. A resposta
- Confessais a autoria da morte do nobre Nazur. foi que, à noite, ele saíra só e que não voltara.
- Não! No dia seguinte a resposta foi a mesma.
E os gritos ecoavam lugubremente. - Não compreendo, disse ela a Mábi, que tenha viajado
- Eu confesso!... Eu con ... fes ... so !. .. sem me mandar uma palavra.
- Retirai a tenaz! ordenou o julgador. - Naturalmente, disse a amiga, para acalmá-la, houve
- Por que cometeste o crime? razão muito poderosa para que ele guardasse silêncio.
- Porque era meu concorrente ... Passou-se outro dia, mais outro... Passaram-se muitos
- Tinhas-lhe ódio? dias. Banza não conseguia, com todo o seu corpo de segu-
- Não! Removi um obstáculo para a conquista do rança, desvendar o mistério.
trono. Chams estava inconsoláveI.
- Por que sonhaste ocupar o trono do Egito? - Veja, Mábi. A fatalidade me envolve. Não tenho
- Ele estava ao alcance do mais esperto. o direito de amar.. . . Que me vale ser faraona, com todo o
- Ouvis, amigos? Ele o confessa. meu poder? O destino é mais potente... Infeliz de mim!
- Sim, sim! Confesso ... , gemia ele~ prostrado.
- Nobre Mandifar, ainda que não quisésseis confessar,
nós conhecía~os a vossa responsabilidade. Tínhamos espião
na vossa conjura.
- Sim! O infame e traidor Serelep.
- Infame e traidor fostes vós, que atraístes a este mesmo
local o meu pobre Nazur para lhe dar morte e sepultá-lo no
fundo do Nilo. Estamos contentes porque falastes a verdade.
O mesmo vai acontecer-vos, nobre Mandifar. Idêntico mis-
tério cercará o vosso desaparecimento ...
_ Perdoai-me!... Eu me arrependo! Renunciarei a
tudo, contanto me poupeis a vida.
- Isto não pode ser, no pé em que estão as coisas.
Sabemos o que farieis se vos déssemos liberdade. É verdade
que a vossa 'rainha não vos quereria mais... Carrasco, exe-
cuta o criminoso!
SEMfRAMIS 265

de Chams passava em revista a prOmessa econômica do Egito,


e ela se sentia orgulhosa da rique.la do seu povo. As pirâ-
mides, perfiladas no horizonte, contemplavam as naves itine-
rantes que, como bandos de cisnes, singravam, ao movimento
cadenciado dos remos, o espelho luminoso. . Vários dias de-
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO correram até que alcançassem a primeira catarata, e ali espe-
raram.
íSIS E ISTAR Samura-mat poderia ter seguido, por mar, até ao istmo,
que separa o mar Vermelho do Mediterrâneo. Seria, de fato,
mais cômodo e natural que ela, partindo da Etiópia, pelo golfo
Heropólita, alcançasse a cidade de Serápeum. Restar-lhe-ia
Anunciava-se, no Egito, a visita da rainha de Babilônia, um pequeno trajeto até Tânis, feito por terra. Porém, qaeria
acontecimento inaudito nos fastos dos povos egípcio e babi- fazer a excursão pelo rio sagrado, queria aspirar o ar do de-
lônico, separados por perpétua rivalidade. ,:;erto e percorrer as magníficas paragens que tinha na memória.
Na preocupação da chegada da amiga, Chams esqueceu Na segunda catarata, tomou um barco ou, melhor, uma
os pesàres. Empregava o tempo em providenciar e fiscalizar eSJuadra de pequenos barcos, e desceu até o ponto onde Chams
os preparativos. Reservou uma das dependências do. p~lácio a esperava.
.real para a comitiva visitante e, mesmo com a premenCIa de O encontro das duas soberanas foi de uma efusão emo-
tempo, mandou que ali se fizess·em importantes reformas, a cionante.
fim de poder receber a sua amiga com a pompa correspon- - Chams, querida amiga, como estou contente de ver-te!
dente à estima que lhe votava. Mandou engalanar a galera real
e novas embarcações foram incorporadas à esquadra. A socie- - Samara, o Todo-Poderoso é muito bom em conceder-
dade foi concitada à exibição das melhores prendas e do má- me a graça de rever-te gloriosa e bela. Agora, estás nova-
ximo requinte de luxo e cortesia. mente em tua casa, onde vais reviver os dias felizes da tua
infância. Sê benvinda à nossa terra do Egito!
Ficou combinado com Beb-Alib que uma pequena guar- - Ámon tem-me cumulado de favores, Chams, mas crê
nição do exército assírio acompanharia Samura-mat em sua que a alegria deste momento é uma das mais sonhadas recom-
visita. Mábi servia de orientadora quanto aos costumes da pensas da minha vida de peregrinação.
corte assíria, especialmente quanto às predileções da rainha
Simas abraçou-se, chorando, à filha.
visitante.
Encarregou-se o próprio Simas da parte religiosa, como - Meu bom pai! Reintegrado! Amon mandou-nos
Chams para te fazer justiça.
a visita às cidades santas e aos templos famosos.
A esquadra, com a faraona e a corte, partiu para ~le­ A descida pelo rio foi um ,passeio triunfal. Em cada
fantina, junto à primeira catarata, ao encontro da comItIva volta, havia um templo que falava de um episódio histórico
visitante. Nesse período, ° Nilo tinha quase terminado o ou de um faraó. O passado parecia aplaudir os viajantes pela
figura angulosa de uma pirâmide ou pela mancha verde de
escoamento das inundações costumadas. Ao longo das mar-
gens, restavam lagos mais ou menos extensos, enfeitando ? um oásis distante. Os barrancos acenavam um saudar amigo,
panorama desértico de espelhantes estrados aq~osos. Em mUl- com o simbolismo de alvos pedaços de linho, agitados por
tos pontos, derivavam do grande curso canaIS portadores de milhares de mãos. Em cada cidade por que passavam reno-
água a pontos distantes, para efeito de ir.rigação. A perder vavam-se as manifestações de alegria, quando os habitantes
de vista, os trigais, em fase germinativa, formando extensa em pequenas embarcações vinham ao encontro, cercando a
pradaria, cobriam de verde as margens do rio. A esquadra galera real com vibrantes aclamações, que as rainhas agra-
CAMILO CHAVES
5EMfRAMIS 267
266
. d amurada Sucediam-se as cidades e aldeias, ale- pai, nas excursões usuais como grão-sacerdote. O porto, aS
decmm a . , . ' '1' R d . , D 'b casas, o templo de Etá, as pirâmides, agrupadas em fila na
remente enumeradas: Suanu, Nublt, Sl1s~ lS, o e~le, e u,
~ekab, Zorit e Hermântis, de onde se podl~ ver aÁsl1hueta~~ fralda do deserto, lhe falavam de sua despreocupada infância.
Respirou, a grandes haustos, os ares santificados das pirâmi-
Tebas, projetando os templos monumenta.ls de mono . 1: des, percorreu-as uma a uma, ouvindo a voz misteriosa de
estava a ilha grande, fronteira à cidade, a dIlatar a perspectIva,
além na outra margem, os colossos de Memnon, os, t~mplos cada faraó: Amenenhet, Snofru, Sesóstris, Pépi lI, Mereure,
, d R ' de Tutmósis IV de TutmoslS III, Pépi I, Unas, Zozer, Neferehere, Saure ...
de Morenta, e amses, . ' . , l'
,. .. d· XIV e XVI dmastms. MaIs a em, Latejava, entretanto, no coração de Samura-mat uma sau-
de Setl e os JazIgos as . -
múmias de inúmeros monarcas, na assocmçao dade mais vivaz, concentrada em outro ponto do rio sagrado,
repodt:sav~m as d XI da XII da XVII; de outro lado,. os onde foi postar-se a esquadra, depois da peregrinação a Mên-
de mastIas: os , a " , 1
da III e IX; aquém, os da XVIII. Ao longe, os ~mu os fis. Guizé era o ancoradouro onde portavam os visitantes do
dos reis rânsidas e, como fundo do quadro, ,a~ elevaçoes g~a- planalto. Uma excelente estrada levou-as ao grupo de pirâ-
'ticas ao pé das quais se erguiam as mag111flcas construçoes mides famosas, encontrando erecta, como sempre, excedendo a
111 . todas em volume e majestade, a eterna Keops, escoltada pelas
conventuais do Vale dos reIS. T b I
Como lhe pareceu solene o silêncio monumental ,d~ .e '.~. suas companheiras Kefren, Mencheure e Mikerinos. Perto da
., d . eiro e medlo 1m )e- de Keops estacionava a Esfinge,com seu olhar sev~ro a fitar
Ali, tumultuou, outrora, na epoca o pnm ... at
. vl'da da metrópole de cem portas; mas Samura m o deserto. O colosso tinha a mesma expressão, que lhe cau-
nos a .. d f a dos sava terror na adolescência: meio fera, quase mulher ...
er~orria, agora, uma tranqüila cidade que VIVl~ a am
;antuários e da afluência devocional dos peregrmos. ,~onten;- Samura-mat avançou, fascinada, para o monstro de pedra,
lando aquele panorama, testemunha de tantas glonas, e a que parecia chamá-la para lhe dizer o grande segredo não
p. . - d s se'culos e ao desembarcar entre alas de revelado ainda... Aproximou-se. De perto, a mole perdera
V1U a proClssao o ' . f d
hierofantes e clérigos, sentiu-se envolvl.da numa ~t;nos era e muito da sua aparência monstruosa: era quase um aglomerado
como não sentira desde a sua partida de GUlze. de blocos de granito. Ocorreu-lhe que, de longe, o mistério
paz, A nência na cidade foi de três dias, durante os é mais fascinante, porque indecifrado ...
perma 1 - d onumen-
uais sofreu intensas emoções na eDntemp açao. os m A pata da leoa, que se projetava para a frente do corpo,
q dos Saturou-se da religiosidade ambIente, no rapto escancarava-se à entrada, já conhecida. Samura-mat, Chams,
tos sagra . . . d' enhor de todas
sublime de adoração a Ámon-Ra, o em1Urgo, s Simas penetraram no corredor subterrâneo e, não tardou, en-
as coisas. . 1 d duplo ali-' contraram-se na sala das colunas, onde se aglomerava grande
Ao perpassar, pro"cesslDnalmente, ao .ongo o. - d multidão de iniciados, vestidos de branco. O recinto vibrou
nhamento de esfinges, postadas na. ave111d~ de hgaçao .os aos acentos suaves de um cântico místico. Restabelecido o
Luxer e Karnac sentia-se objeto de expreSSIva silêncio, as mãos se protenderam num gesto firme, ao ser
templ~sd edntr~os colossos com; a lhe ,significarem misteriosas emitida a vibração mágica de encantamento.
cunOSl a e , . - os percor-
singularidades do seu destino. VlU, entao, os p;ss a - Aaaauuuum! Aaaauuuum! Aaaauuum!
ridos no seU peregrinar e reconheceu-se e.scala a para u:n Entraram no recinto seis ruerofantes, cingidos com os
nde destinarão. Nesse momento, parecIa-lhe que o VISO barretes cônicos, envergando grandes capas .azuis. Postados
gra , S as fitava encaravam~
enigmático delas se adulçorava... , e , . ' . as~ nas laterais da mesa central, convidaram as duas rainhas a
na cóm benevolência; .algumas, porem, permaneciam lmp ocuparem as cabeceiras. IEm frente, no fundo da sala, a
grande estátua granítica de' ísis mantinha-se muda, coberta
sívei~~. is de Tebas, Hermápolis e Mênfis. Esta cida~e, 110
com o véu indevassável, tendo sóbre o joelho o livro jamais
po. . b d de uma atmosfera' de santIdade,
seu conceito, estava 111m a a acom anhava seu lido por mortal algum. Lá estava o dístico da sabedoria, que
impressão trazida dos bons tempos em que P
268 CAMILO CHAVES 269

Samura-mat tinha sempre em mente nos momentos graves: Foi hospedada no palácio real de Tânis, onde as duas
14 Ver-Ouvir-CaIar-Ousar".
amigas, em suaves tertúlias, se entregaram a confidenciar Im-
pressões e saudades.
O hino do mistério ecoou na voz evocativa da assistência:
Isis, Isis divina ... Samura-mat já trazia o propósito de levar além a sua
excursão. Expediu emissários à Líbia e à Itália, a fim de
E Derceto falou pelo vidente.
- Reúnem-se, aqui, hoje, o Oriente e o Ocidente, num estudarem o assunto e consultarem os respectivos governos.
gesto de àmor e fraternidade entre os povos..- A divina pro- Em razão destes novos projetos, que dilatavam a sua ausência
'. vidência aproxima as nações pelo gesto dos seus enviados, em cuidou em consolidar a situação em Babilônia, para evitar sur~
missão de apaziguamento e progresso humano. Este grande presas e rebeliões. O nome que lhe ocorreu foi· o de Beb-
trabalho do destino se realiza pela predestinação de duas mU 4
Alib a quem entregou o comando dos Exércitos, com ordem
lheres, iniciadas nos mistérios transcendentes de !sis e Osíris. de aguardá-la naquela capital. O' grande exército que esta-
Cumpriu-se o vaticínio proferido nesta casa. Nós, do espaço cionava ná Fenícia, na Síria, na Arábia e na Etiópia, devia
infinito, nos regozijamos por este festivo encontro e alme- retornar a Babil~nia, selecionando-se uma pequena força para
acompanhar a ramha em sUa viagem.
jamos possa o acontecimento frutificar entre os reis da terra.
Que o Todo-Poderoso abençoe este generoso movimento de. Chams queixava-se da resolução da amiga.
boa vontade e concórdia, que se inicia. Às duas rainhas, es- - Com os teus projetos, querida Samara, sou eu quem
colhidas' para a grande missão, apresento o nosso benevolente saíu prejudicada, pois me fazes perder a companhia da minha
saudar ... excelente Mábi. Tanto me acostumei a ela, que muita falta
Às visitantes dirigiu-se, por sua vez, o reitor do Colégio. vai fazer-me. Além disso, devo confessar-te, o esposo dela
- Homenageamos, agora, duas ex-alunas deste estabele- é o mais sábio e sagaz conselheiro que me assiste.
cimento de educação; ambas iniciadas nos mistérios sagrados. - Chams, eu preciso, neste momento em que me afasto
Incumbem-lhes, por impositivo divino, tarefas de governo e demasiado da minha capital, de solidificar o meu governo. É
direção de povos. Grande é a responsabilidade. que incide só- verdaâe que lá tenho excelentes auxiliares e ministros, mas
bre nossas irmãs, mas confiantes estamos em' que as lições, eles devem sentir-se mais garantiqos, se apoiados em substan-
aqui recebidas, hão de ministrar-lhes a sabedoria necessária cioso auxílio militar. Beb-Alib é o general de minha con-
para o bom desempenho da grande investidura. Rogamos ao fiança; é quem melhor pode substituir Lécón, que vai comigo.
Todo-Poderoso transforme as alegrias deste dia em bênçãos, Chams despediu-se dos amigos com uma grande festa,
para que elas mereçam grandes recompensas pelas realizações durante a qual eles receberam expressivas hJomenagens da
que fizerem em proveito da humanidade. Em nome de todos sociedade tanita.
os iniciados nos mistérios sagrados, saudamos, com afeto, as
Beb-Alib organizou uma pequena caravana de nove pes-
duas eleitas pelo Destino, aqui presentes. Salve!
soas, inclusive Mábi. Pretendia atravessar um pequeno' trato
O dia foi consagrado ao regozijo da casa e dos iniciados. de deserto, até o embarcadouro no mar Vermelho, onde. o
As duas rainhas puderam, assim, reviver os dias felizes em esperava um navio da esquadra.
que eram alunas. Trajaram' o vestido branco das noviças e,
na intimidade, despiram-se das prerrogativas, para melhor go- Subiram os viajantes o rio Nilo, na galera real, até a
zar o simplismo da vida no claustro.. pequena cidade de Troiu, e, aí, tomaram camelos com destina
Samura-mat sentiu-se renovada e esqueceu as vicissitudes ao porto de Clisma, num ápice do golfo Heropólita.
da sua vida tumultuosa e as glórias efêmeras do mundQ. De- Caminhava a caravana, ao passo cadenciado dos' camelos.
liciou-se na despreocupação dos quinze anos, e, para ela, Ba- Mábi, envergando o branco albornoz dos viajantes do deserto,
bilônia era um sonho distante ... comentava a precipitada partida de Tânis.
270 CAMILO CHAVES SEMIRAMIS 271

- Levo grande pesar, Beb, por deixar a nossa boa amiga Mandou, por precaução, parara comitiva e dirigiu-se aos
Chams que nos cumulava de tantas atenções. Babilônia é uma seus homens.
imensa cidade, mas Tânis, conquanto inferior, tem para mim - Aguardemos que passem os viandantes que de lá vêm.
singular encanto. Contrista-me a idéia de não voltarmos mais S.omos po~cos para eles, senos quiserem agredir. Devemos
ao Egito. ficar reumd,?s para melhor defesa. Um de costas para o
- QliandQ voltar a Ba.bilônk a nossa rainha, ficarás ao outro e um em cada ponta. Mábi, atrás de mim.
seu lado e te sentirás fartamente compensada. Eu acho Sa-' O c~elo não é bom animal de combate, pela lentidão
mura-mat uma criatura quase divina, e o seu favor é incom· dos m?Vlmentos. Apearam-se todos, postando-se na forma
parável. determmada, enquanto se aproximava' a caravana contrária.
- Vou dizer-te, Beb, à puridade. Samura-mat é uma Destacaram-se dez homens a confabular.
soberana benévola e magnífica, diante da qual eu me sinto ín- . - Quero falar ao general Beb-Alib, disse um déIes, adian-.
tando-se. .
fima, quase. uma criancinha. Amo-a. como a minha mãe e
- Sou teu. Como sabeis que eu vinha. neste caminho?
diante dela não tenho personalidade. Junto a Chams eu sou
- Recebemos a:iso de Tânis e aqui o temos aguardado.
mais senhora de mim, porque não a ve,io como faraona, mas
:I'!: o que nos cumpna fazer para conseguirmos este encontro
dileta irmã. Se perto de Samura-mat, sinto que a amo e res- que, est?u certo, apenas nós desejamos. Nem sempre se pode,
peito; ao lado de Chams, penso que é minha irmã e confidente.
. Deves, pois, compreender que, enquanto aguardo a volta da.
::nesmo com eng~no, obter uma entrevista em lugar solitário,
~ margem do NtIo, durante a noite. .. Mas, no deserto via-
nossa formosa rainha, choro o nosso afastamento do Egito. Jando em sentido contrário, logra-se, também, um acer~o de
- Vejo que és uma criatura muito hábil, querida Mábi. contas com quem não tem nenhum interesse em prestá-las.
Não admira que a faraona tenha encontrado em ti uma amiga -:. Quem sois?
dileta. - Sou irmão de um nobre egípcio trucidado barbara-
- Como Chams é boa! Lastimo que ela se encontre em mente e sepultado nas águas do Nilo, em uma noite miste-
meio tão insincero como a corte do Egito. Eu quisera ficar riosa, ..
ao seu lado para orientá-la e fazer-lhe companhia, porque pode - Que desejais?
ser enganada, em virtude da sua boa fé. - . Conversar seriamente com o inspirador daquela cilada
- Não te preocupes que Samura-mat há de' instruí-la que pnvo~ o :neu, i~ão de viver mais alguns anos no goz;
convenientemente. de uma sItuaçao Ulllca neste país, como esposo da faraona e
- Isso mesmo eu lhe' pedi, ao despedir-me. soberano de fato. Nós, os seus parentes, tivemos com isso
A atenção de ambos foi desviada para uma caravana, em conside:~v:l. prejuízo, privados das vantagens da participação
direção oposta. No deserto, é sempre objeto de éuriosidade nos pnvllegtos dele ...
o encontro de duas comitivas, quando os homens, entediados do - Quereis, pois, um desforço? perguntou Beb-Alib com
isolamento dos caminhos, sentem necessidade de palestra e con- calma. .
fraternização. - .Não ~ própriamente isso... :I'!: o justiçamento do
- Essa' caravana é maior que a nossa, observou Beb. verdadeIro cnmmoso. Meu parente viu-se sozinho e 'sem
Compõe-se de trinta pessoas'. Curioso, não dispõem de baga~ defesa no meio d3. numerosa turba .de malfeitores mas nós
gemo Os ladrões do' deserto é que dispensam os animais de proporcionamos ao seu assassino o ensejo de defe~der-se.
carga, em benefício da rapidez. . - Mandifar foi justiçado do mesmo modo por que matara
- São salteadores? perguntou Mábi, inquieta. o outro ;pretendente à m'ão da faraona.
- Aqui não é região infestada de bandidos. A vigilân- - E vós sereis justiçado pelo que lhe fizestes a ele.
CIa das autoridades é efetiva. Pensáveis, estrangeiro, que voltaríeis impune para o vosso
país?
272 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 273

_ É bom saibais que estou habituado à luta e não vos Um grito ecoou, e Mábi caiu varada. Ela, ao ver a morte
temo, por mais numerosos que sejais. iminente do marido,int~pôs-se de um salto, recebendo o
_ Parece que é suficiente o nosso número ... golpe no peito, justamente. quando Beb atravessava o ventre
De um salto, Beb-Alib afastou-se do camelo, e o mesmo do adversário, que o enfrentava. Beb-Alib voltou-se como
fizeram os companheiros, agrupando-se em torno dele. O ata- impulsionado por uma mola e aparou novo golpe armado con-
que partiu dos assírios, antes que os adversários se puse~sem tra ele.
em guarda. Este fato deu vantagem a Beb, que, ImedIata- - Covarde I Matador de mulher I Defende-te e prepara-
mente, transpassou com a espada o seu interlocutor. te para empreender a grande' viagem ...
Lutadores adestrados os seus companheiros acometeram Dominou-o o furor, e ele parecia o gênio da destruição.
os egípcios com vigor, e' vários destes foram logo abatidos. Feriu o inimigo, cutilando-o várias vezes, sem prestar atenção
Beb, como um raio, enfrentou outro que, tentando esgrImIr, à mulher. Como um touro bravo, avançou para o mais pró-
foi golpeado no peito. Puseram-se em fuga os re.~anescentes, ximo; mas este, aterrorizado, fugiu. Investiu contra outro,
mas ao seu encontro vieram os restantes da comItIva, que os atarefado em esgrimir com um assírio, mas esse, também, dei-
fizeram voltar. No intervalo da luta, Beb-Alib reuniu os tou a correr.
companheiros, organizando-os para a defesa. Os fugitivos tomaram à pressa os camelos e fugiram no
Os inimigos, reforçados, atiraram-se contra o pequeno passo desconjuntado dos pobres animais. Um dos compa-
grupo, que se defendia com arte e cautela. Os ~olpes cho- nheiros de Beb, sem nada dizer, montou rapidamente, apro-
viam sobre eles, mas não tardou Beb abatesse maIS um. veitando a trégua, e partiu em direção a Traiu. Beb e seu
_ Não percais tempo, companheiros, metei-l~es a esp:da último companheiro tinham que. enfrentar seis inimigos, por-
no coração! Estes poltrões são poucos para nos. Se nao, que, verificando estes, depois de fugir, que tinham de avir-se
vede! unicamente com dois adversários, voltaram com a intenção
Mais um tombou em convulsões. Outros inimigos, fe- de liquidá-los. Quatro deles correram para Beb, enquanto
ridos, se afastavam de rasto, a escorrer sangue; outros de- outros dois partiram contra o seu companheiro, firme, a espe-
rá-los.
bandavam, à falta de comando.
. -,
_ Isso, rapazes! gritava Beb. EsganaI esses caes .... - Agüenta firme, Penartas! Confia em mim! gritou
Fazei como eu, não os poupo... Mais este está comendo ele.
areia ... Ao se aproximarem os quatro sicários, Beb deitou a cór-
A batalha era quase silenciosa, ouvindo-se apenas o tinir rer e, na perseguição, um deles se adiantou. O assírio, es-
dos ferros a se chocarem, ou exclamações dos feridos. ~e­ tacando, inesperadamente, atravessou-o com a espada. Ao
nhum dos assírios fora ainda atingido de morte, quando mUltos aproximar-se o inimigo, que lhe' vinha no encalço, ele, vól-
adversários estavam fora de combate. Estes atacavam, atro- tando-se, abateu-o com uma estocada no peito.
peladamente; com prejuízo da eficiência, ao passo que os. de Os outros dois o perseguiam, à porfia, mas Beb era um
Beb, colocados em ordem e defendidos. pela.s costa~,. c~mbatIam grande corredor e usava a tática de separar os inimigos, e,1
com mais proveito. E não tardou que maIS um ImmIgo mor· ao que se adiantara, ele o abateu antes que o outro chegasse.
desse a areia. - Agora, podemos divertir-nos à vontade, disse ele ao
Acumulando-se dois contra o imediato, colocado na ponta perseguidor.
da fila, foi este atingido quando abatia um dos agressores. Mediram-se os adversários um instante, e os ferros se
Aberta a brecha, o adversário adiantou-se para Beb com o cruzaram a tinir. Estavam ambos - cansados, e a luta entre
sabre armado contra as suas costas. eles perdeu a agilidade dos lances.
274 CAMILO CHAVES 275

_ Vai3 ser o último a morrer, porque o meu compa~ panhá-Ia à sepultura porque o seu ferimento se agravara,
ameaçando-o de morte.
nheiro já liquidou os dois que o tomaram a conta, disse Beb,
intencionalmente. . - Quero morrer!... exclamava no seu delírio. Quero
O adversário chocou-se com a fala de Beb, e, voltando:se, ir para junto de Mábi. ..
deu azo a que a espada contrária se lhe embebesse no peIto. Levantava-se na exaltação febril e arrancava as ataduras,
E caiu. , . b descobrindo as chagas sangrantes. A febre lhe cozinhava o
De fato, o companheiro deIe, usando a mesma tabca, a a- organismo e a razão, sendo necessário grande vigilância para
teu o primeiro inimigo e dominou o segundo em combate que se não matasse. .
normal. Ao cabo de cinco dias chegava a galera real para trans-
O general voltou, a passo tardo, pa;a ~ comitiva, c~jos portá-lo a. Tânis. Junto vinha Simas, que pôs em ação as
camel{)s aguardavam pacientemente o termmo d{) confhto; suas aptidões curativas. Ao chegarem à capital, a febre havia
ajoelhou.-se diante da companheira ofegante,. pTOstrada na passado. mas o doente continuava sucumbido pela fraqueza e
areta. pela má(l'oa. Chams dera ordem para que ele fósse hospedado
_ Minha pobre Mábi! Feriram-te cruelmente.. Por que no palácio real, e ela mesma e Samura-mat assistiam ao ferido.
não deixaste para mim o golpe que te alcançou? .
_ Eu não podia deixar... que te matassem... quendo. - Minha doença é mais moral que física. Sem Mábi
não me interessa viver. Por isso, minha alma quer fugir para
_ Sem ti não me interessa viver, disse-lhe ele. ela.
E procurava estancar o sangue que corria da cesura.
_ É inútil, Beb... Vou morrer... Falta-me o ar . - Pobre Beb! disse-lhe Chams. Como eu tenho pena
Como fui feliz contigo... A tua Mábi ... já ... se . de ti! Sei avaliar a perda da tua incomparável companheira.
vai... Ajuda a nossa ... amiga ... Tenho-a chorado, também. porque lhe queria muito. Partiu
_ Samura-mat? perguntou ele. daqui. cheia de vida... Pobre Mábi!
_ Chams... Ela ... não ... tem ... quem ... a ajude ... Chams' procurava sustar as lágrimas que lhe brotavam.
Adeus! dos olhos. .
Beb debruçou-se sobre a sua querida morta, a beijá~la Beb teve uma convalescença ag-radável. Sob as vistas das
com frenesi. Mas ele mesmo sentia-se esvair, e uma tonteIra duas rainhas, pôde minorar as saudades da extinta esposa.
quase o prostrou. Notou que o companheiro,. também, estava Chams, especialmente, se esforçava por distraí-lo. incentivando
ferido e prOCl\rOU soaorrê-Io. Das capas. bzeram ata,dulras as manifestações de simpatia do elemento social, onde ele
para estancar o sangue. Reanimados, ele contou os cadaveres aliás, contava com muitas amizades.' ,
e notou a falta de um.
Chegou o dia em que ele, sentindo-se reconstituído, se
- Fugiu esse poltrão!... . apresentou a Samura-mat.
Não havia notado que ele parbra a correr, montado n?
camelo. Trataram de voltar a Troiu. Com os albornozes ft- - Minha rainha e senhora, já estou apto para o serviço.
zeram uma rede, presa à corcova de dois camelos, sobre a Sinto que· os acontecimentos me tenham inibido de cumprir
qual conduziram o cadáver de ~ábi. Em caminho, foram as vossas determinações. Agora terei mais precaução ...
socorridos pelas autoridades da CIdade, sabedoras do aconte- - Não te apoquentes por isso, meu bravo general. As.
cimento pelo companheiro fugitivo. . , decisões do destino são fatais e nós não podemos removê-las.
Beb pediu que Mábi foss~ levad~ ~ a . GUlze e sepulta~a Conforma-te, pois. Mantenho a minha ordem a fim de que
na outra margem do rio, ao pe da plramlde, ?nde ~ ele,. maIs assumas o comando do exército que retoma a Babilônia, e lá
tarde, faria construir.a mastaba. Ele mesmo nao pode acom- aguardarás a minha volta.
276 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 277

Nesse mesmo dia, Samura-mat comunicou a Chams a pró- N~o pôde ela reter as lágrimas e debruçou o rosto no colo
xima partid~ de Beh-Alib. Uma exclamação espontânea ir- da amiga.
rompeu da boca da faraona. - Nada valem, continuou, as glórias do mundo, quando
- Que pena! nos faltam as verdadeiras alegrias do coração. .
- Por que? inquiriu a amiga. Pobre amiga! Como estás sofrendo!... Mas para
- Eu desejava que ele não se fosse. tudo há remédio... Que posso eu fazer por ti?.. Queres
que eu o interrogue?
A expressão de pesar manifestada pela amiga chegou ao
- Isso não! Eu não aceitaria que ele se comiserasse do
entendimento de Samura-mat' como um raio de luz.
meu amor. Eu quisera conquistá-lo, Samara, porque aspiro
_ Amas, por acaso, o meu bravo guerreiro? perguntou a ser amada... como tu. Como és feliz! Como te invejo!
sorridente. - Que queres, então? perguntou a amiga.
Chams enleou-se, ruborizada. - ,Eu quisera que ele ficasse por aqui, para que eu pu-
- Sim, Samara, disse por fim. Agora me dou conta desse ve-lo ...
de que o amo. Creio que o teria amado sempre, se não fora - :f: muito fácil. Ele continuará como embaixador.
a figura extraordinária de Mábi. O teu embaixador é um tipo - Como és boa, minha querida!
heróico que desde o princípio me impressionou. Chams, num impulso de contentamento, abraçou e bei-
- Não haverá transtornos políticos pela tua ligação com um jou a amiga.
estrangeiro? O povo egípcio não se escandalizaria, ferido no - Vais ver que não será difíciL.. Os homens rendem-
seu orgu1Ílo nacional? se facilmente ;às promessas de uns belos olhos. . . Tu os tens
- O óbice não seria esse, pois a minha autoridade é maravilhosos.
absoluta, como a tua. O maior obstáculo encontro nele mes- Samura-mat revogou a decisão de comissionar Beb-Alib
mo que, lembrado da sua amada Mábi, não há de querer-me. no comando do exército.
- Já lhe fizeste sentir a tua afeição? perguntou Samu- Ficarás aqui, como embaixador, até a minha volta da
r~"ma~. Itália.
_ Não, este sentimento guardo-o para mim. Suponho· - Persistis ainda, magnífica senhora, em excursionar por
que ele não desconfiou de nada. Agora se vai... mais urna esses países selvagens, cuja existência mal conhecemos? pergun-
desilusão, Samara! tou-lhe Beb-Alib. Nós não queremos perder a nossa rainha.
A fisionomia de Chams se anuviou de tristeza. Eu vos conjuro a que não tenteis tão incerta empresa.
_ Eu tenho sido uma infeliz nas minhas inclinações amo- - Lembra-te da fortuna de Samura-mat ...
rosas continuou ela. A princípio, pouco me interessavam os - Sim, creio que vos amparam os deuses imortais, a me-
hom~ns, quando eu era apenas simples princesa. Sob:evi- nos que não sejais, vós mesma, uma deusa em visita à terra.
nham os pretendentes, mas não me impressionavam. Ram:ha, - Missão minha é levar uma mensagem de confraterni-
senti a necessidade de perpetuar a dinastia e encontrei um jo- zação a todos os povos. Cumpro o meu dever. Levarei um
vem que me despertou afeição; mas ele misteriosame~te desa- pequeno exército, que me sirva de cortejo, não como desafio a
pareceu. Em seguida, senti viva simpatia po; um digno au- outras nações.
xiliar do faraó Ramis, meu irmão. Ele, tambem, ~esaparec:u, A marcha <ia rainha da Assíria e Babilônia sobre a Líbia
sem deixar vestígio. Creio, Samara, que o Nilo conspira foi triunfal. À sua passagem, conforme avançava no litoral
contra mim... Agora, quando começo a alimentar nova es- africano, vinham nativos, com seus chefes, prestar-lhe homena-
perança, o meu sonho se esvai, depois de iluminar meu cora- gem. A esquadra fenícia acompanhava a expedição com su-
ção com o seu jato de luz. primentos e assistência.
278 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 279

Chegando ao local, que os naturais denominavam Cartago, mente considerar Q concurso daqueles pequeninos senhores ter-
Samura-mat castrametou para receber vassalagem. Subindo ritoriais, os reis de Tiro, Sidon e Biblos, que dominam o Me-
ao promontório, que dominava a baía, onde se abrigavam as naus diterrâneo, embora como meus agentes.
fenícias dos reis de Tiro, Sidon, e Biblos, contemplou aquela - O teu conceito revela grande visão dominadora. Não
floresta de mastros encipoados de cordas. E sua visão se pro- tens esquadras no Mediterrâneo, mas pões ao teu serviço 05
jetou para o futuro. fenícios com os seus navios... Assim, estás preparada para
- Vejo, Lécon, como é grandiosa a missão civilizadora dos dominar o ocidente e o oriente...
fenícios. Este mar imenso, que contemplamos, é o palco de
suas heróicas atividades, como pioneiros do progresso humano. - Se grande é a minha vontade de dominar, o meu jugo
Algo me, diz que, aqui, neste mesmo lugar, surgirá uma grande é suave. Não faço guerras de conquista, não destruo naçõe~,
metrópole, como síntese do gênio comercial e como ponto de jamais consentirei na escravização dos vencidos. Respeito a
irradiação do intercâmbio entre os povos. Os seus tentáculos, ordem política e os costumes de todos os povos e ajudo-os a
pela ação longímana dos seus barcos, levantarão alhures, pelos resolver os seus problemas. Estás vendo que uma aura, de
continentes, novos reinos, que hão de debelar a barbárie. Sim, benevolência cerca .o meu nome, até às mais longínquas
meu amigo, vejo-a grandiosa ao lado desta baía, a movimentar paragens. Ninguém me' teme, e não preciso de batalhas para
inúmeras naus, como se fossem presas por mágico ligamento ao receber a submissão universal, espontânea e sincera. Ainda
centro nervoso de seu cérebro potente. Navios que estão an- agora hás visto que o rei Asênicus da Etrúria se propõe
corados, embarcações que chegam e partem, velas que mal di- receber-nos cordialmente. Lá, iremos para conhecer essa singular
viso nos mares, como pontos negros, a levarem utilidades ... civilização que se ergue na península itálica. Eu tenho o parecer,
Como será grande a metrópole do ouro! Todas as gentes lhe Lécon, de que palmilhamos, agora,o cenário de uma grande
acorrerão ao parque de atividades para o concurso mercenário fase futura do evolucionar humano. .
do trabalho. Mas este amontoado de etnias lhe lausará a ruí- Samura-mat reuniu todos os xeques das tribos vizinhas e
na, pela pletora. . . Vejo a sua rival, mais pobre, mais virtuo- fê-los sentir o seu desejo de que ali se fundasse uma colônia
sa, mais homogênea, arrebatar-lhe o domínio do mundo ... Cer- de fenícios, e, com promessas de auxílios, os induziu a concor-
cada, Cartago cede ao vigor dos assaltos... Adianta-se um dar com a sua sugestão. Os colonos primeiros do novo est~­
guerreiro,facho em punho, a atear fogo à metrópole vencida... belecimento desceram dos navios e se agruparam em torno da
Tudo reduzido a cinzas!... Mas... mas, ó assombro! O baía com o nome gentílico de Cartago.
guerreiro se parece contigo, Lécon! ... Exigia-se uma grande esquadra para transportar à Itália
- Não há motivo de entusiasmo pela obra secular dos fe- o exército de Samura-mat, composto de sessenta mil homens.
nícios, quando tu mesma, SamUra-111é11t, hás realizado obra Jamais se selecionara tropa tão luzida. Além dessa força e
pessoal muito mais importante. N os montes Líbano, encon- de seu equipamento cumpria embarcar quinhentos elefantes,
tram os fenícios material para os seus navios, ao passo que milhares de camelos e cavalos, e numeroso cortejo de mulhe-
tu te abalançaste até à Etiópia distante, para a emprêsa, ja- res de oficiais e soldados.
mais realizada, de construir, para a tua glória, a mais poderosa
esquadra do mundo, que, hoje, se balouça tranqüila nas águas A. fim de evitar mar grosso a imensa esquadra fenícia
do mar Vermelho. Breve, pelos cordéis da tua vontade, 05 conduzindo Samura-mat e sua fortuna rumou para o norte
teus navios farão chegar às mais distantes nações do oriente- bordejando as ilhas Sardenha e Córsega. Ao norte desta ilha:
o sinal do teu poder. pende~ para leste passando à vista da ilha de Elba, segundo a
- Sim, Lécon, eu farei no mar das índias o que os fe- denom;nação moderna. Descendo o litoral da península itáli-
nídos realizam no Mediterrâneo. Como poderíamos fundár c~, f 01 encontrar ancoradouro em 6stia, pequena cidade pró-
tão grande império, ,.;em o domínio dos mares? Sei devida- xIma à embocadura do rio Tihre.
SEMÍRAMIS 281
280 CAMILO CHAVES

terra, e todos se sentem felizes pela ação da vossa sabedoria,


Ante o exibicionismo magnificente, os habitantes recebe-
pois que não oprimis a ninguém, e os vossos exércitos inven-
ram a expedição com expressões de pasmo, mas não tardou
cíveis excursionam triunfalmente entre amigos e aliados.
cheaassem mensaaeiros da próxima cidade de Alba Longa com Pisais, portanto, senhora do mundo, pisais, nesta hora, terra
con~ites do rei e Samura-mat foi acolhida com entusiasmo pel~s amiga, onde, em cada habitante, encontrais um vassalo e um
populações latinas. Descendo os montes Alban?s, a expeo.l- devoto servidor, a começar pelo seu rei.
ção entrou na planície um tanto -pantanosa e fOI acampar so-
bre sete colinas, à margem do TIbre.. ' - Hospitaleiro rei, que benevolamente me recebeis I...
Da sua tenda, plantada sobre o outeIro escar~ad.o, pode Não vim até a vós com objetivo de conquista. Trago comigo
ela contemplar o panorama agreste, povoado de ru~t1cos pe- uma pequena fração do meu exército, como séquito indispensá-
gureiros. O Tibre coleava na planícIe que se perdIa n? h~. vel da rainha. Não viso a aumentar o meu império, ao preço
rizonte, e, no fundo do quadro, os montes Albanos se l1unll- do sangue e do saque. A adesão e vassalagem que me tribu-
navam com os últimos fulgores do sol poente. tam os povos é espontânea, e isso o fazem, certos de que
E a visão de Samura-mat se dilatou para o futuro . lhes conservo a organização e independência. Se todos me
_ Vejo, Lécon, uma loba aleitand<: dois menin~s . reconhecem a suserania, já não poderá haver guerras entre
Aqui, deste outeiro, dedicado ao deus do ralO, co~templo lmcn· eles. O mundo vive em paz e feliz. Venho, apenas, fazer-
sa cidade, que se espalha pelo vale, sobre as COI111~S.:. . Sete vos uma visita e trazer as homenagens da civilização babilôni-
colinas .. , Seu nome significa força... Duas rIVaIS dISpu- ca à civilização etrusca que floresce nesta península. Aceitai
tam o domínio do mundo... Esta· será a vitoriosa.:., sen a minha homenagem e a minha saudação cordial, como rainha
creneral é recebido em triunfo. É aquele mesmo que VI e qne do império Assírio-babilônico.
~e parece contigo, Lécon... Vejo-a imensa, agora. É a. no- Samura-mat n'ão tinha, de fato, interesse em dominar as
va Babilônia, senhora e dominadora do mu~do:.. , ~lante longínquas paragens italiotas. As suas palavras repercutiram
dela ruirão impérios... Dentro dela nasce.rao lmpenos: .. agradavelmente entre os etruscos temerosos, na sua fraqueza,
°
Será chamada cidade eterna. . . Como é' subhme que veJo... de um golpe de astúcia dessa rainha que os visitava com ta-
o que verei, Lécon... O que veremos ... manho aparato militar. Tranqüilizados, expandiram-se, povo
Lécon estava acostumado às visões de Samura-mat e ou- e govêrno, em manifestações de simpatia e admiração. Assim,
via silencioso. A • •
pôde ela apreciar e adquirir as obras de arte etrusca, que, na
Dali entraram na Etrúria. A magnificencIa do cortejO época, constituíam padrão de originalidade, principalmente no
empolgou aqueles povos que jamais tinham visto el~fant.es. ou que concernia à escultura e pintura.
camelos. Ao penetrar na capital do :país, o seu reI ASen1Cl~lS Etrúria é o equivalente latino de Tirrênia. Foi um po-
veio ao encontro da conquistadora, diante de quem se sentm vo, o etrusco, que iluminou as trevas da barbárie daquela épo-
mesquinho. . . . . ca remotíssima, com o clarão da sua cultura e da sua arte. Fi-
_ Rainha e senhora nossa, dIsse ele. A fama da vossa cou-lhe o lugar na história, como um enigma de progresso hu-
onipotência precedeu de muito a vossa ch.cgada. Agra?ece- mano. Geograficamente, deixou perpetuado o seu nome na
mos a Júpiter, pai de todos os deuses, o ter-nos prO?c:rclOna. península italiana, em uma província e um mar, além de ou-
do a ventura de contemplar a majestade da vossa glona e da tros sinais menores da sua passagem.
vossa beleza. A vossa chegada, divina senhora, não .nos traz Os etruscos eram, talvez, descendentes de gregos arcaicos,
ameacas nem opressão, porque, venturosos, nos reummos a~s isto é, dos egeus ou pelásgios. Segundo' a tradição um gru-
demais povos do mundo que reconhecem a v?ssa suserama. po expedicionário de pelásgios teria desembarcado nas proxi-
A sombra do vosso patrocínio sentem-se todos l~gados 'p~l.o de-
ver de união, que afasta o ódio dos corações e I:nPOSslblhta
guerm3 mortíferas. Com o vosso advento, rema a paz na,
a: midades da embocadura do rio PÓ, e dali se teria espalhado
pelo norte e média Itália. Eles mesmos se julgavam forastei-
282 CA M I L O C HA V E S SEMÍRAMIS 283

ros na península. Nada, entretanto, autoriza, em definitivo, doze ddades reuniam-se em assembléia num templo, nas ViZI-
atribuir-se-lhes procedência caucásica, ou melhor, 'indo-germâ- nhanças do lago Vadimon, com fim legislativo e para a cele-
nica. Mas a sua civilização tinha muito de grega, principal-o bração de jogos e de festas religiosas. Ali se nomeavam os
mente no sentido teogônico e cultural, como na escultura e generais, em caso de guerra, e se elegiam os grão-sacerdotes.
pintura, cujos modelos persistem. A língua não apresentava O que se conhece da vida dos etruscos vem através de es-
analogia com os idiomas dos outros povos italiotas,' nem com critores romanos, cuja p.átria muito lhes herdou na teogonia,
as línguas arianas. As conclusões de estudos etnológicos e nos ~ostumes, na orgamzação social e política e, sobretudo,
arqueológicos, realizados em crânios encontrados em, túmulos pela mtrusão do sangue, em virtude do mestiçamento.
etruscos opinam por uma raça mesclada, mas sem vestígios A viagem de retorno da esquadra fenícia realizou-se pela
indo-europeus ou semitas. Trata-se,' pois, de quisto racial con- costa sul da península itálica e pela Sicília, de cuja extremi-
firmado pelas inscrições idiomáticas, ainda indecifráveis na dade alcançou a costa africana. .
atualidade. . Samura-mat foi recebida em Tânis pela faraona, como se
A influência grega nas artes e na cultura deve-se atribuir tivesse voltado ~e emp,rê~a tenierária. Os dias, em que per-
à vizinhança da Magna Grécia, localizada na parte inferior da maneceu na capital egIpcIa, foram empregados em preparati-
península itálica. Nada das civilizações egípcia, fenícia ou vos para a volta a Babilônia.
caldaica, a não ser na representação de produtos ou utilidades . Grandes forças, estacionadas na Arábia, e na Etiópia, já
importados daqueles países por via marítima. haVIam regressado, quando Samura-mat se despediu de sua.
No apogeu da expansão, os limites da terra etrusca com- amiga Chams.
preendiam o território entre os Alpes e o Tibre; mas, ao - Minha irmã, disse-lhe, volto a Babilônia cativa da tua
norte, os gauleses irromperam instalando-se, em prejuízo dos hospitalidade. Dias felicíssimos passei ao teu' lado e aqui
primeiros, no trato geográfico entre os Alpes e o Pó. Retraí- pude reviver a fase venturosa da infância. '"
dos, sob a pressão gaulesa, expandiram-se pelo lado do mar, -: Agradeço ~~ Todo-Poderoso a benevolência, que me
construindo navios, e estabeleceram colônias nas ilhas Sarde- confenu.' ao permItir-me abraçar a minha querida Samara,
nha e Córsega. Inauguraram, assim, uma época. marítima de que eu Julgava para sempre afastada de mim. O destino con-
intercâmbio e ações guerreiras. Levaram a outros povos pro- f~mou, pela nossa amizade fraterna, a paz que impera nas na-
dutos de fcrro e estanho do norte, adquirindo ouro e marfim çoes do mundo, porque, j untas e irmanadas, ninguém se atre-
no oriente ou na costa africana. Preferiam ser intermediá- verá a atacar-nos.
rios no comércio, a serem industriais; mas dedicavam-se à agri- - Seremos irmãs, e nada nos separará. Duas mulheres
cultura e à silvicultura. dirigem os destinos do. mundo e trabalharão para que os ho-
A influência marítima dos etruscos se' exercia não somen- mens se entendam.
te no mar Tirreno, mas atingia, ao norte, a costa da Gália, e, - Minha irmã, antes de partires, tenho um pedido a fa-
repetidas vezes, intervieram, militarmente, em conflitos de ou- zer-te.
tros povos italiotas litorâneos, principalmente na Sicília, onde - Não há limites para a minha vontade de servir-te.
não lograram êxito. Tinham pela frente as esquadrfs fení- Dize, O1ams, o que desejas.
cia e grega, poderosíssimas na época. Na competição pelo - Quero que me dês o teu grande general. Nós nos
domínio do mar foram vencidos' e encerrados no litoral ita- amamos e queremos casar. Depende de ti que ele se afaste do
liano. teu serviço.
Compunha-se o país de doze cidades, cabeças de provín- - ~ntenderam-se, então? Pedes-me uma coisa preciosa,
cia: era governado por soberanos vitalícios, -e os cidadãos se que mUlto prezo.. Mas palavra de rainha não volta atrás.
dividiam em duas classes, a doS! lucumones, composta de l}obres De agora em diante não será mais meu vassalo. Será, para
e homens livres, e a dos servos, gente ínfima. Delegados das mim, o faraó do Egito.
284 CAMILO CHAVES

- Mas será sempre teu general, pela aliança e solidarie~


dade que vai ligar o Egito a Samura-mat.
- Concordo. Ficas, desde já, convidada para, com teu
espuso, visitar Samura-mat em Babilônia, onde ela vai reunir
todos os reis e aliados do império, a fim de lhes mostrar a
sua nova capital. CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO
- Está prometido, minha irmã.
Elas se abraçaram com ternura. À partida, Chams esta- BABEL
va ao lado de Beb-Alib, seu noivo, oficialmente anunciad?
Chamschorava. Beb-Alib adiantou-se e, joelho em terra, beI-
jou a mão da sua ex-rainha. . Difícil tentativa é a de se descrever a cidade reconstruí-
- Sede felizes, meus amigos! da por Samura-mat para capital do seu imenso império. En-
Samura-mat embarcou na galera e partiu rumo a Sidon, tretanto, a despeito do tempo decorrido e da falta de notícias
na Fenícia. sobre aqueles povos bizarros, pode-se imaginar que os pro-
blemas atinentes à vida urbana seriam idênticos ou mais gra-
ves do que os das maiores metrópoles atuais. Do contrário,
não seria possível acumular-se tanta gente.
Convergiam para Babilônia todas as atividades, tornan-
do-a senhora do comércio do mundo. Os programas admi-
nistrativos da rainha se fundavam em boas estradas, cujo
valor econômico ela apreendeu à altura da conceituação
moderna. Assim se incrementaram as indústrias e os produtos
exorbitantes do consumo interno, em razão da facilidade dos
transportes, encontravam mercado, principalmente em Babilônia,
capital-empório.
É bom pensar nos prodígios realizados pela administra-
ção, em garantia do abastecimento daquele aglomerado huma-
no, ou nos métodos da prática da higiene, da qual dependia a
saúde do povo, em época em que se afiguram impossíveis co-
nhecimentos sobre profilaxia. A defesa contra as epidemias,
comuns no oriente, indica quão adequadas deviam ser as me-
didas de preservação para uma cidade como aquela; onde o
próprio clima não era propício.
Babilônia, cidade plana à margem do rio, condição deter-
minante do seu destino privilegiado. Daí, a necessidade de
distribuir a água do rio para a servidão e esgotos, por meio
de canais subterrâneos. As bombas de pressão para elevar
água, usualmente se acionavam pelo braço humano ou por ani-
malS
286 CAMILO CHAVES SE M Í R A M I S 287

Para fins de irrigar, aumentar as lavouras, suprir a ci- Nas ruas, praças e jardins fervilhava gente de todos os
dade, foram abertos numerosos canais, entre outros o que li- países; em. f~stiva algazarra, lembrando o abstruso linguajar
gava os rios Tigre e Eufrates. dos dias blbhcos da confusão das línguas.
.S.amura-mat convidara todos os soberanos do império para
Organizado ° serviço, que se pode denominar PI;ofilático, parttclparem
. I d U' das solenidades da exaltação de Bab'l' . a ca-
I oma,
regulou-se o meretrício, nesse meio de obreiros e especulado- pita o _mverso. . N.o~enta dias foram destinados às festivas
res. Somente deste modo se pode compreender a prosperi- 1Da~g~raçoes dos clcIopICOS empreendimentos. Chamados das
dade de uma capital, onde a população crescia aos milhões e capI:al~ confederadas, governadores e residentes integraram as
onde a moral não era cristã. comlssoes de festejos.
Os problemas do trânsito seriam mais prementes do que Multidões, . c.onsoante o gosto oriental, se aglomeravarn
os das atuais metrópoles, onde os subúrbios afastados provo- em torno. de adlVmhos e prestidigitadores; de tiradores de sor-
cam a dispersão demográfica, em favor das exigências da te e fascmadores de serpentes; de músicos, equilibristas e do-
moradia e subsistências. Bairros de antigos arruamentos madores de. fera:,. Vendedores ambulantes, puxando carri-
foram demolidos, e novas casas alinhadas em vias retilíneas, r:hos, ofereCiam hIdromel, refresco de tâmara, de coco, vinhos
mudaram-lhes o aspecto vetusto e desordenado. lIcores, que o calor tornava disputadíssimos. '
Babilônia se continha dentro das muralhas, e no plano de De ~ez em quando, o som de guizos e gritos de batedo-
reconstrução figuravam novos muros de defesas com a en- res, garndam~nte vestidos, atraíam a atenção, anunciando a
vergadura aproximada de cem quilômetros. Afirma-se, até, que passagem de ncas caravanas de potentados, cujas escoltas mon-
a imensa cidade dispunha de quatrocentas portas de bronze, tavam camelos. O real visitante passava, indiferente, senta-
ao passo que a Roma imperial tinha apenas sete .. , . do no do~so de tar~ígrado elefante. Os curiosos, formando
alas, avahavam a Importância do cortejo pelo número de
Grandiosas pontes ligavam as margens do rio, retificado acompanhamento, contando os proboscídeos.
na extensão de trinta quilômetros de cais. A área urbana, - Um, dois, três ... enumerava um dos assistentes. Três
acrescida em virtude do afastamento das muralhas, incorpo- elefantes!
rou novos subúrbios. - O maior é o do rei.
Em razão da lei determinante da afluência para os pontos - O da rainha é muito rico também ... , comentava
centrais, onde fervilham os negócios, os habitantes eram atraí- outro.
dos para onde pudessem satisfazer os seus pendores espe~la­ - No elefante pequeno vem o príncipe herdeiro... Que
tivos, visto que os estabelecimentos públicos ou comerciais têm . graça!
vocação gregária. Grandes bazares de comerciantes da Cal- .-. Não sei como a nossa rainha vai acomodar tantos reis
déia, da índia, da Fenícia e da Pérsia ofereciam, pela voz esten- e pnnclpes.
tórea dos pregoeiros, utilidades expostas, de vária procedên- - É muita gente! concordou o vizinho. E as comitivas?
cia: tapetes, quinquilharias, tecidos de linho e seda, ferra- . - S~be que Babilônia está preparada para hospedar cem
gens, amuletos, artigos de toucador, indumentos masculinos e caSaIS reaIS e as respectivas comitivas? Isto me afirmou um
femininos, sandálias, armas e panacéias. Grandes depósitos dos eunucos do palácio, meu amigo.
exibiam montões de hortaliças, verduras, frutas e outros gê- - Os gastos vão ser imensos... obtemperou o interlo-
neros alimentícios. cutor.
Tornara-se, pois, Babilônia uma grande colméia humana, . - J:. ~ossa poderos~ :ainha tudo previu. Nos dois palá-
com seus dez milhões de habitantes, acrescidos de inúmeros fo- CI?S alOJara. todos os VISItantes. Colocou as nações a seus
rasteiros, atraídos pelas notícias dos acontecimentos inaugu- pes-, e os ~nbutos que recebe dão para isso e muito mais. Só
aSSIm podia construir a nossa gloriosa Babilônia.
raIS.
288 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 289

De fato dois palácios foram edificados nas duas margens Samura-mat, tendo iPróximo o reizinho Adad-Nirári. cer-
do rio, com' comunicação subterrânea, ambos de formato cú- cada de cem elefantes, cada um conduzindo um rei' e uma rai-
bico com ilnensos terraços e pátios internos, cercados por al- nha, se destacava dominadora, no dorso de enorme paquider-
tíssi~as muralhas, sobre as quais podiam transitar carros e me branco.
milícias. Grandes torres, sobrepujando as ameias, davam ao? Como fortalezas ambulantes, a encerrar o desfile, passa-
conjunto aspecto de fortalezas. Amplas port,a~ e abert?ras ogt- vam gigantescas figuras de proboscídeo$, em esquadrões regu:
vais feitas de madeiras provindas da Femcla, amemzavam a lares, levando às costas castelos guarnecidos de arqueiros.
arq~iteturapesada da época. Um, se chamav~ pa1ác~o do - Cinco mil elefantes! Contei! exclamava um entu-
Oriente e o outro, do Ocidente, onde estavam as mstalaçoes de siasta.
Samura-mat. • . - Cinco mil! Cinco mil! todas as bocas comentavam.
Na praça fronteira ao palácio, Sam~ra-mat, com lmen.so Depois da exibição do poderio militar, a magnificência.
'cortejo de reis e rainhas,. passou em revIs~a as tropas sedIa- Nesse mesmo dia, Samura-mat homenageou seus hóspedes
das na capital e os contmgentes estrangeIros., Patenteou-~e, reais com suntuoso banquete. Havia no palácio do Ocidente
em concurso, a diversidade de povos e costumes ?e seu va~h~­ grandiosa sala, em que o arquiteto fenício pusera toda a sua
simo império. Vozes de comando eram profendas em mu- genialidade. Tudo ali era cicJópico e de apuradíssima inspi-
meros idiomas, e soldados de variadíssimos. tipos ~ raças, com ração, o teto, com relevos de artísticos desenhos; paredes de-
armas e vestimentas originais dos respectIvos paIses, presta- coradas com episódios e figuras de deuses, em cores berrantes,
vam continência ao mais famoso ajuntamento de soberanos. de de púrpura, de verde, amarelo, azul-celeste. Postavam-se à
todos os tempos. Cada quiliarquia, dividida e~ hectarq~l~s, monumental entrada colossais esfinges babilônicas, bustos de
se armava segundo a tática condicionada ao me~o geograftco homens barbados e corpo de leão, ao pé das quais os transeun-
de cada nação: arqueiros, fundibulários; infantana armada de tes pareciam pigmeus. Acompanhando as paredes, em alas so-
lanças, com escudos ovais; outras formações armadas de ma- bre o marmóreo pavimento, dispunham-se enormes ~sculturas
chados, de davas, com grandes escudos; lançadores de red:s de leões sobre pedestais de mármore branco, provindo das ilhas
destinadas a envolver o adversário; esquadrões de cavalarIa: domar Egeu. Leões em todas as posturas, em pé, em guar-
com longas lanças; troços de árabes do deserto, montando ca- da, deitados sóbre as patas, ensaiando saltos, empolgando a
melas' carros de guerra, puxados por cavalos. presa, bebendo, dormindo, soltando a voz, a leoa com leõezi-
O exército assírio-babilônico impressionou pe.lo garbo. nhos ou a estorcer-se, ferida no flanco por um dardo. Com
Quiliarquias de infantes sucediam-s~ com reg:l1ar:d.ad~, em especial destaque, comemorava-se o episódio conhecido do jo-
massas compactas; batalhões de arqueIros e fundIbulanos, con~ vem com a lança apontada à goela escancarada. do leão assal-
tingentes de assalto, armados de grandes escudos e espa?~s, tante. Ali, Samura-mat mandou armar as instalações para o
carros de guerra, máquinas de arremêsso, torres de~ as~edlO. banquete. Seu trono ficava no centro, ao pé do monumento
carreo-ando as respectivas escadas de assalto;. esquadroes ~nter­ em que o leão era ferido pela lança do efebo. Duzento~ ou-
miná~eis da famosa cavalaria assíria; guarmções de sentmelas tros se armaram para os casais reais, além de duas mil pol-
do deserto, em camelos. '. , tronas destinadas a príncipes, princesas, generais, vizires, sa-
No meio de formação maciça, cercado de I~u~eros ge- cerdotes, arquitetos e administradores das obras de Babilônia.
nerais, Lécon, o tártan, comandante-geral do exercIto. mon- Como especial deferência, colocou a seu lado Chams, sua ami-
tando fogoso cavalc negro. . .' ga de infância, rainha do Egito, ladeada por Beb-Alib, seu es-
O entusiasmo popular não tmha lm:lltes, mas r:crudesceu poso. Lécon, também, estava ao lado. da esposa.
quando as trompas anunciaram o grandIOSO a~ontecImento do Indescritível a exibição de riquezas não sendo possível de-
dia. Surgiu o desfile das majestades, entromzadas no dorso finir o que mais admirar se a expressiva hierarquia humana
de elefantes. reunida, ::e a magnificência do conjunto. Crer-se-ia presen-
290 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 291

, A nova muralha defensiva de Babilônia constituía a pe-


te a uma assembléia de deuses, tal a glória encarnada naquelas
d.ra de. t~<I..ue do pode~ de Samura-mat e devia merecer espe-
testas coroadas. O elemento feminino realçava, ainda mais,
CIal eXIblçao. No trajeto de cem quilômetros se estendia a
o brilho da festa, com a rutilância das jóias e com o deslum-
m?le ameaçadora, .que desafiava a investida de quaisquer ini-
bramento de tanta carne moça. Todos sabiam da formosura
Imgos. No lado mterno, rente aos muros, imensos quartéis
de Samura-mat, e aqueles reis não haviam de querer mostrar
as suas velhas esposas. Desfazendo-se delas, uniam-se a jo- para a~. trop~s de guarnição, normalmente superiores a duzen-
vens fidalgas, para honrarem a corte da rainha de Babilônia. tas qU1harqU1a~; as portas de bronze, defendidas por altíssi-
~as torres; seIS carros, emparelhados, podiam transitar sôbre
Eunucos imberbes, de formas roliças, precipitavam-se, se- o terraço da muralha.
minus, entre as mesas, a oferecer iguarias, especialmente assa-
dos de bois, de leões, de antílopes, de aves; em terrinas com Samura-mat encabeçava o cortejo no seu carro de guerra
decorações cretenses, serviam ensopados de línguas de tigres la~eado pelo da sua amiga Chams, pelo de Lécon e de Beb~
reais, ou hortaliças em bandeijas floridas. Efebos, coroados de Ahb. O percurso não seria interrompido, nem sobre o Eu-
rosas, percorriam as mesas com ânforas de vinho, a colmar as f:ates, atra;e~sad;> pela grandiosa construção, conservados os
taças de ouro. vaos nec;ssanos ~s embarcações. Três dias foram necessários
O ambiente estuava alacridade, e jovens convivas, trans- a eXCUrSI?nar, pms grandes homenagens assinalavam os pontos
tornados ;pelo espírito do vinho, diziam chalaças às bailarinas, de pernoIte.
que ostentavam as formas impecáveis e meneios coreográfi- Os visitantes percorreram trinta quilômetros do rio retifi-
cos, ao som dos címbalos, das cítaras e de melancólicas violas. ;ado po,:- duplos cais, destinados a garantir a cidade contra as
Os' licores consumaram, a obra de tresvario, e alguns comen- mundaçoes. Outro dia se dedicou a excursão mais extensa
sais, na avidez da gula, empunhavam ossos recobertos de as- qua?d,o, .subindo o rio, percorreram a rede de canais e área~
sados, a devorá-los com fúria. Soberanos, deixando cair as cultIvavels.
coroas malseguras, levantavam-se das mesas a discutir; alguns,
embriagados, cantavam tresloucadamente, e outros, relembran-' . Outro número do programa era a visita ao Panteão, des-
do fatos tristes, choravam como crianças. Não faltavam ce- tI~ado a guardar os despojos dos heróis e grandes homens do
nas de faunesco realismo, terminadas em atitudes bestiais. remo. Era uma grandiosa necrópole, única no gênero, reve-
O vinho era reclamado em altas vozes, e os copeiros cor- ladora do grande .apreço ~a rainha pelos bons serviços presta-
riam a servir os foliões que, já sem forças para beber, der- dos pelos seus amIgos. La estava o seu túmulo e o de Lécon
ramavam o líquido retinto nas vestes, até caírem, inconscien- seu companheiro. '
tes, sob as mesas. ~ar'!ciparam os habitantes de Babilônia da inauguração
As mulheres mais sóbrias contemplavam a degradação dos dos JardInS suspensos, não somente pela originalidade como
seus reais companheiros; algumas, porém, participavam dos ?e10 COl1~O~O proporcionado nos dias de calor. Estes feste-
excessos. JOS constItUlram a parte mais alegre e entusiástica.' Séculos
Samura-mat aproveitou a ocasião para retirar-se. d.epois, Babilônia ainda se jactava dos seus jardins suspensos,
_ Vamos, Chams! Vamos, Lécon! Aqui já não nos cIt;~os com~ uma das sete maravilhas do mundo. Eram a
cabe. gl~na d? rei Nab?codonozor, segundo a Bíblia judaica. Este
Outras mulheres, que se mantinham em perfeito juízo, reI dommou. na , segunda metade do século quinto, antes da
Mm o exemplo da rainha, retiraram-se, deixando o paVImen- nossa era,. dOIS seculos, mais ou menos, depois de Samura-mat,
to juncado de criaturas, como se fossem restos cadavéricos de a v.erdadeIra c?nstrutora. dos céleb:-es jardins, façanha que re-
devastado campo de batalha. r.etlU em Ecbatana, capItal do remo da Média, que ela edi-
fICOU.
E prosseguiram as inaugurações.
CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 293

o plano, ainda que arrojado, estava conce~ido com má· - Contudo, vejo um rio a correr sobre um deserto, tal
xima sabedoria e em nada atentava c?ntra ~ s~ud~ da popul~. qual o Nilo, respondeu a faraona.
ção. Não era um jardim, eram mUltas, distnbUldos pela CI- - Todo o passado de vosso povo, pelo testemunho dos
dade. Dispunham-se em estrados suspensos sobre ;olunas,. a monumentos, está à margem, explicou Samura-mat.
cavaleiro do casaria. Assim não ocupavam grandes areas a m- - Vejo ruínas aqui tambe 1" respondeu Chams.
terditar o sol e a ventilação. Extensos canteiros elevados agru- - Sim, aqui há ruínas, lá, os monumentos são eternos
pavam-se em vários pontos, ligados por pequenas pontes. N~o porque de pedras. Aqui, as edificações são feitas de tijolos:
suportavam grandes troncos de árvores, mas, segundo a tradI- pouco du.radouras. Estamos vendo as ruínas de Ur, capital
ção, exibiam flôres, gramíneas e arb~stos. Em cada estrado se de um remo anterior ao de Babilônia.
particularizavam três ou quatro qualIdades de flores. , . Inúmeros canais derivavam do rio para o areal a ferti-
Construída sobre areia, era mister trazer terra ferül de lizar as adjacências, onde as lavouras atapetavam d: verde a
longe, o que se fez pelo rio, em ?"ufas. A •água para a rega, . p~anície. Vegetações espess~ e característica, formada de jun-
procedente do Eufrates em canaIS subterraneos, era elevada caceas e carnosos bambuzaIs, assinalavam as reentrânciàs do
por meio de bombas. . . pantanal. Na terra firme complicavam-se os bamburrais on-
Sob as arcadas, que sustentavam os patamar~s aJardma- de. sobressaíam as tamareiras, cobrindo grandes tl;atos. Mais
dos, estabelecíam-se lojas de artigos finos, especmlmente te- adi:nte, ao. longe, o deserto, os areais pardacentos e, além, eJe-
cidos, tapetes, vestuários para homem e mulher. ._ vaçoes azUiS, como fundo do quadro.
De então para o futuro,. nas cálídas t,a:des da:ruela :egmo Ao aproximar-se do mar,' o rio perdia o Jeito, se trans-
desértica as crianças se deleitavam na praüca de Jogos mfan- formava em mangues. Tanto o Tigre como o Eufrates sem
tis, que 'ali abundavam. ~ar~ os adu:t~s não, faltava o con- <1:I.ta ou estuário, chegavam ao mar despercebidos, imimssi-
fôrto de refrigerantes e hgeIras refeiçoes. hI11tando a naveg~ção. Foi aberto um canal de dezoito quilô-
Anuncíou-se, finalmente, a excursão ao golfo Pérsico, on- met.r~s de c?mpnmento, por duzentos metros de largura, que
de se encontrava a esquadra construída por Samura-mat, um clefmm o leito do rio.
dos pontos essenciais do programa. Ela já havia ~ostrad.o.~s A jangada real, com seu cortejo de guias, penetrou afi~
defesas inexpugnáveis de Babilônia, demonstrara a mvencibllI- nal, as águas cerúleas do golfo Pérsico, motivo de entusias-
dade do seu exército e, agora, queda exibir ao mundo êsse mo. Encontrou em formação de batalha a grande esquadra.
novo aspecto do seu poderio milítar. O espet~culo deslumbrava pela bela aparência daqueles barcos
Inúmeras gufas postas à disposição dos excursionistas, e que, havm pouco, eram troncos nas florestas da Etiópia. Tão
uma grande jangada, com pavimento de tábuas, transport~­ logo saíam dos estaleiros, formavam frotas e, sob o comando
ram a rainha e os convidados reais. Sob o tóldo, que cobna de um almirante, desciam o mar Vermelho atravessavam o
o estrado flutuante, reis e rainhas se entretinham em contem- estrejto de Bab-el-Mandeb e, pelo oceano índico, margeavam a
plar ás margens do Eufrates, enquanto remadores da esq~a­ península arábica até penetrarem no golfo Pérsico, onde se
dra empunhando longas varas, apoiadas no fundo do no, concentravam.
co~peliam e aceleravam a descida. As gufa~ velozes ador,- . _ Aoent~ar a jangada real por entre filas de barcos, as guar-
nadas de flores como se fossem cestos flondos a flutuar, mçoes perilladas saudavam com gritos bélicos.
aproximavam-se a cantar e a vitoríar os visitante~.. Sobre os conveses de muitas naus, formou~se extenso ta-
Babilônia afastava-se lentamente, e novas plamoes se des- blado, que abrigou toda a corte, a contemplar o empolgante
dobravam à vista. desfile dos navios de guerra.
_ O nosso panorama é bem diverso do vosso Egito, O rei da Média, tomado de emoção, dirigiu-se a Samu-
Chams. ra-mat.
294 CAMILO CHAVES 295

Poderosíssima rainha, é a vez primeira que eu e meus . -..,. Agradeço-vos, amigos, as palavras de encomlO. Di-
súditos vemos o oceano. Vivemos apertados entre montanhas zeIS bem e acertadamente, agradecendo ao Todo-Poderoso ter
e desconhecemos a planície. Deslumbra-me o soberbo espetá· pôsto a Sua complacência na sua serva. Estas realizações que
culo que se desdobra a meus olhos e reconheço que o vosso deslumbram o vosso entendimento são efeito das bênçãos do
deus vós investiu de imensa autoridade. Não tem limites o ~nipotente. Não seja o império de Babilônia motivo de opres-
vosso império, que se desdobra por mares e continentes, e o sao aos poyos, mas penhor de paz e ordem. Vós outros viestes
sinal do vosso domínio toca o desconhecido. Estais sagrada so- a mim, não por obediência e temor, mas por espontânea ~eso­
berana da terra e dos mares, e eu vos saúdo com efusão e com lução. Ao p,é da fortaleza do meu império encontrais segu-
a alegria de' pertencer ao grupo dos vossos súditos e aliados. rança. Há muito tempo não ocorrem guerras entre nós ou
Tomou a palavra o rei de Sidon. entre vós outros e meus aliados. Espero que este período de
- A vossa esquadra do Indico, felicíssima rainha, vos paz se perpetue entre os povos e venha em seguida o apazi-
a.bre as portas do Oriente. Poderão dizer os malévolos que guar dos corações. Muito de violência e ódio há de ensom-
não tendes naus no Ocidente. Mas eu vos afirmo e a todos os ~rar, nos séc.ulos vindouros: a su~erfície do planeta; mas seja
presentes que a esquadra fenícia é vossa também, e ela vos este meu remado a tentatIva prImeira de paz entre os hD-
devassa as terras do Mediterrâneo e além. Salve, senhora do mens. Quero agradecer-vos o prazer e a honra do vosso com-
mundo e rainha dos reis! parecimento à apoteose de Babilônia e que jamais se turbe en-
Interveio o rei da Síria. tre mim e v.ós, assim comD entre vós outrDs, a paz que neste
- Estais; meus reais companheiros, a fazer a apologia da momento rema nas nossas nações.
força e da guerra, mas lembrai-vos de que não há guerras na Indescritível era a alegria a bordo, e as águas' marulho-
atualidade e todos nos sentimos tranqüilos e felizes à som- sas do Dceano Índico, desacostumadas das veemências da con-
bra da magnânima rainha, que preside às nações do mundo. fraternização, ouviram, para levarem alhures, no desconheci-
- Gloriosíssima rainha, elevamos graças aos deuses pró- do, as promessas de entençIimento que se inaugurava no
vidos, por ;presenciarmos este inaudito acontecimento. Juro; processo evolutivo dos ideais e da boa vontade.
por esses mesmos deuses, que sois um presente do céu, man- Aproximava-se do fim o período das inaugurações. Des-
dado à terra. . pertavam singular interesse as solenidades no grandioso tem-
- Tanto poder e tanta magnificência somente podem en- plo de Belo o Deus da Caldéia. Samura-mat era ladina po-
feixar-se na encarnação de uma deusa! exclamou uma voz. lítica e sentia necessidade de homenagear a casta sacerdotal
e a crendice popular. Ela mesma, como iniciada nos misté-
- Istar! Istar! responderam muitas vozes.'
rios da Esfinge, nenhuma predileção sentia pelas sanl'Uiná-
- Viva Istar! rias divindades de Babilônia.. Grande horror lhe causav~m os
Chams, a faraona, empunhando a taça, também se diri-
bárbaros sacrifícios do culto caldeu, e tinha ímpetos de des-
giu à amiga. tr;tí-lo ou modificá-Ia. Quando nada, era um projeto, que
- Eu sou a voz do Egito, .que se levanta para saudar-vos, alImentava para o futuro. Com a construção do grande tem-.
á minha amiga e aliada. Recebestes de Ámon-Rá. uma inves- pIo de Belo, pretendeu apaziguar as recriminações contra a
tidura divina. Se na eloqüência do pretérito o Egito é glo- sua falta de piedade. Sabiam-na egípcia de nascimento e co-
rificado, Babilônia merece preito universal, pela magnificên- nheciam a condição sacerdotal de Simas, no misterioso país
cia e sabedoria da sua rainha. Eu vos saúdo com toda a banhado pelo Nilo. Não escondiam mesmo a antipatia ao grão-
efusão de minha alma de irmã e companheira'- sacerdote de Ámon, que se interpunha entre eles e ela. Não é
Longo seria mencionar as glorificações ao nome de Sa- pois, estranháve1 movessem surda guerra à própria rai~ha e s~
mura-mato alistassem na turma dos descontentes, como .propugnadores da
Por fim, ela falou. chamada libertação do jugo assírio. Entre todos se destacava
296 CA'MILO ClIAVES SE'MfRA'MIS 297

o grão-sacerdote .de B~lo, Sérur, conhecido como irredutível ini- _ Samura-mat se abstivera sempre de freqüentar as fun-
migo de Samura-mat. Acastelado no cargo, ele se isentava das ço.e~ ?o culto do deus, pela repugnância que lhe causava o sa-
medidas saneadoras da polícia, embora conhecidas as suas ma- cnf~clo humano; mas, diante da insistência dos sacerdotes
nobras. aqUIesceu em participar da festividade. '
Belo ou Baal era um deus sumeriano ou semita, adorado A .principal porta da entrada, em frente ao amplo terraço
na Caldéia. desde os mais remotos tempos. A teogonia Caldai- esta:va InterdItada ,por dois cordéis, tecidos de linho e seda, qu~
ca teve lenta evolução e, ao se apossarem do país, os semitas ~e lIgavam por .ham.=tlos engatados. Os sacerdotes esperavam
adotaram-na integralmente. Admitiam uma trindade suprema, a porta a ~pr?Xlmaçao do cortejo da rainha. O sumo pontífi-
cujas divindades, sem se chocarem, tinham atribuições defini- ce decIar~na Inaugurado o templo ao abrir o elo simbólico para
das. Eram eles, Anu, Belo e Éa. Anu, o céu, o antigo pai que ela Ingressasse no recinto.
dos deuses, senhor do mundo inferior, dono das trevas e dos te- Samu~a-mat er~ conhecedora da hostilidade do sumo sa-
souros ocultos, tinha a figura de um homem com cabeça de cerd;>te e. tl?ha conSIgo mesma deliberado dar-lhe uma demons-
águia, tocado com cabeça de peixe, cujo corpo lhe recaia sobre traça~ ?~bhca de desapreço. Quando ela se aproximava, Sé-
as costas e sobre os rins. rur dmgm-Ihe a palavra.
Belo, o demiurgo, senhor do mundo, dono de todos os paí- . - Magnífica rainha e senhora nossa, em nome do deus
ses, soberano dos espíritos, era representado como um rei, sen- ompotent: que preside a este templo, declaro-vos aberta a pas-
tado no trono. Éa era o guia inteligente, senhor do mundo vi- sagem e Inaugurado o santuário que mandastes edificar.
sível, dono da glória, da ciência e da vida; era um gênio munido A~t.es de qu~lquer movimento para separar os cordéis, o
dê quatro asas, como um querubim. ato fOI mterrompldo por um aceno da rainha
Belo tinha a primazia na devoção popular, e seu culto se - Sérur, decl~ro-vos defeso de inaugur~r o ,templo do
estendia à Assíria, Arábia, Palestina e Fenícia. Neste país, de;ls protetor da CIdade e não consentirei jamais que profa-
era adorado em majestoso templo, propagando esta prefe'- neIS esta habitação divina com as vossas mãos conspurcadas
rência às colônias, notadamente Cartago, onde era adorado com de maldades.
a denominação de Moloc. Atônitos ~?m a violellta atitude, ela se adiantou e, sepa-
O templo de Belo foi uma das maravilhas da capital do rando os co.r~els, voltou-se para o cortejo num convite.
mundo. Inspirado na arquitetura do templo de Hércules, nas .-=-
Bablloma!
.Esta maugurado o templo de Belo, deus e senhor de
proximidades de Tiro, excedia o modelo em grandiosidade. Ti-
nha forma oval, visto a distância, como se fôra a metade de um . O Sumo .Pontífice ficou como fulminado, e seus compa-
ovo, partido ao longo. Sobrepujava as demais construções n~elros, orgamzados em procissão, moveram-se à testa do cor-
pela altura de oitenta metros, por oitenta de largura e cento e teJo. Sen: ,sa~er o que f~zer, ele retirou-se, solitário, para
vinte de comprimento. A imagem do deus, feita de pedra, es- a. sua res.ldencIa. O substItuto passou a presidir às cerimô-
tava colocada no centro do recinto, com quarenta metros de al- mas do ntual.
tura por quinze de bojo. Fisionomia impassível, Belo se apre- Samura-mat e os reis que a acompanhavam tomaram lu-
sentava nu, sentado como um Buda, pernas e braços cruzados. gar no~ respectivos tronos, e o coro de vozes humanas entoa-
Dentro dele, por trás do altar, ficava a fornalha onde Se in- :~ ? hmo ao nume. Se~uido de vistoso séquito, o· oficiante
cineravam as vítimas. Pela fenda, na cabeça do ídolo, evola- 111lClOU ~ função, incensando com o turíbulo de ouro a rainha
va-se a fumaça, que encontrava saída pela abertura circular na e demaIS soberanos.
abóbada do templo. Ao ritmo dos pandeiros, dos címbalos, dos pifaros, das
No dia da inauguração, além da parte reservada ao servi- harpas, ~a sambuca, da sinfonia e demais instrumentos de sô~
ço do culto, armaram-se tronos correspondentes aos soberanos pro, des1Jzavam no marmóreo pavimento esbeltas sacerdotisas
que se propunham assistir ao cerimonial. que, em simultâneos requebros e flexões, figuravam atitud~
298 CAMILO CHAVES
SEMfRAMIS

coreográficas de propiciação. No simbolismo da mímica n-


tual, parecia que as almas, na simplicidade da sua nudez, se O sacerdote prendeu-o, oom força entre os braços, en-
tregando-o ao oficiante. '
projetavam para o alto com a forçados 'anélitos radiantes
dos corações. Debatia-se com indizível horror, enquanto o despoJ'avam
das vestes.
Um dos rituais repugnantes do culto de Belo era o sacri-
fício humano. Sumamente feroz, o deus era suscetível de Com a ajuda dos acólitos foi o pobrezinho içado ao alt
abrandamento, mediante o sangue das vítimas, criancinhas de sobre a pedra do sacrifício. ' ar,
dois ou três anos, escolhidas à sorte ou designadas pelo sumo Soaram os tan;b.ores, e um brado, enorme partiu dos de-
pontífice, se ele quisesse prevalecer-se do direito que lhe assis-
tia. Havia no templo sacerdotes encarregados de atrair as
vot~s com o proposlto de abafar o último grito da 'f .
Apltc?u-Ihe o oficia~te rijo golpe, cortando a carótid:
11::
criancinhas por meio de brinquedos e divertimentos. Os pro- goela, enquanto o ajudante aparava o sangue num re " t
de ouro. clp1en e
cessos de sedução tinham caráter permanente, e estes minis-
tros do culto conquistavam a confiança dos meninos. Na oca- O pequeno cadáver foi conduzido a'
'd I d parte posterior do
sião própria, sorteavam-se as inocentes vítimas do sacrifício. 1 o o e epositado sobre a grelha.
Destinavam-lhes mimos especiais que ainda mais as prendiam. hO ~error se estampou nas fisionomias. Samura-mat, acom-
an
Os pais eram notificados do ocorrido, quando requisitados os Pb ~n, o a cena tenebrosa, teve ímpeto de interromper o rito
filhinhos, definitivamente entregues ao patrocínio do templo. a ommavel.
Conformados ou não, aceitavam o irremediável. . Nova vítima f?i levada, e a cena terrível, cruamente re-
Quando o oficiante anunciava a hora solene da propiciação pettda. ,yma te.rcelra, ainda, padeceu a imolação, e, quando
pelo sacrifício, o preceptor, acenando com maiores promessas, o corpozmho ,f01 depositado na grelha, o oficinte ordenou se
levava uma a uma, até três, as despreocupadas criaturinhas. ateasse fogo a lenha da fornalha.
- Vamos, queridinho, fazer uma visita ao templo? Va- T?d.os olharam a face impassível e severa do ídolo: do
mos ver Deus? Lá há muita gente, muita música, muita luz, seu cramo se evolava um tufo de rumo.
mqito doce. Você gosta de doce? O ~?n!unto ~~ral ,entoou a deprecação coletiva.
- Gosto, respondia o pequerrucho. B b';' Se prop1clo, o nume supremo, ao nosso povo e cobre
- Então, vamos todos! Eu levarei um, de cada vez, no a I om~ com o escudo do teu poder ... "
meu braço. Agora vai você, depois este, depois este. O sumo . RUgIU, no recinto, o clamor angustiante dos
pontífice tem, para cada um, um boneco do tamanho de você ... pettr: crentes a re-
- Eu vou brincar com ele? - "Sê propício, ó nume supremo ... "
- Sim, será seu. Baal,. ~mbrio o aspecto, mantinha-se indecifrável.
- Então, eu vou. C? mmlstro do culto levantou a bacia de ouro, com o san-
- Nós, também, queremos ir! gritaram todos. gue amda quente, numa súplice oblata.
- Fiquem quietinhos, que virei buscá-los. . - Eu te esconjuro, ó nume benévolo, por este sangue
O sacerdote entrou no templo com o menino ao braço. A vott~~, que ~mpares o teu povo e defendas a rainha dos gênios
multidão observava o pobrezinho com infinito dó. Muitos cho- n:a:e~lcos; ltvra-nos dos nossos inimigos e glorifica a tua Ba-
ravam, mas, ele, admirado, segurando o boneco, observava a blloma, para sempre!
assistência. Ao aproximar-se do altar, assaltou-o incontido
pressentimento, e fez menção de voltar. A assistência vociferava o sagrado estribilho, como a ar-
rombar a porta da eterna morada do d .
Relutou com bravura, aos gritos. "S' , . emlUrgo ...
O silêncio tornou-se mortal.- . ,-:- e propICIO ao povo, Ó supremo nume, e cobre Ba-
bJ10ma com o escudo do teu poder!"
SEMfRAMIS 301

~e5, n~ ascensão a. mais elevadas altitudes. O ar se. refinava


a medId,a que subIam, e, nas noites sombrias dos vales deso-
lados, sIlvava um ve~t? gela~o, fazendo tiritar os viajantes
e os camelos, ~ue ~mItIam. tn~tes grunhidos. No último dia
de .marcha, a sItuaçao era mteIramente diferente; não sofriam
mUlto pelo ~alo.r, enquanto incomodativo era o frio. Atraves-
CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO
sada a cordIlheIra, se envolviam nos caracóis da imensa massa
montanhosa que dominava o horizonte.
o TRONO DO ALTíSSIMO Atrás da cáfila seguiam dois viajantes entretidos a
versar. ,con-
A -: Aproximamo-nos, me~ filho, do ponto visado, Há
A canícula escaldava. O cansaço, resultante da monotonia tres ,dIas coste~mos e~ta cordIlheira, à procura da montanha
do deserto e da distância percorrida, convidava ao bivaque, CUlmI?ante, EIS, aqUI está ela, sobranceira e prestigiosa a
Os camelos, alongado o pescoço, enterravam na areia as patas desafIar os elementos e as idades. '
malseguras, como se estivessem a tatear, gemendo ao peso Um velho, encapuçado em branco albornoz, dirigia-se ao
da carga, rapaz, atento ao que lhe dizia.
Muitos dias após a partida de Tânis, surgiu-lhes pela - Sapientíssimo pai, há muitos dias partimos d MA r
frente, aos viajores, o lençol azul do mar de Quíti, que deviam e percorremo~ e~tes inóspitos desertos, sem me ser ~erm~~dI~
margear, até defrontarem a massa escura da cordilheira. Es- conhecer. a. fm~ltdade da viagem. Muitas coisas aprendi das
tavam na terra dos Madianitas e cruzavam com miseráveis ma- vossas sabIas ltções, .mas não po,s_so atin~r com as vantagens
gotes de beduínos que viviam da pesca no- mar próximo. In- que nos possam adVIr nesta regIao estérIl e desabitada A o
fletia a vagarosa caravana em direção ao sistema do Sinai, l1:enos o nome destas montanhas eu gostaria de saber Pod'
que se arrevesa,. na planura de areal, em crispadas formações dIzer-mo? . eIS
graníticas, na península arábica. Alguns dias, ainda, havia - Si,m, Baruc, nisto. não há segr~do. Estamos marg-ean-
que caminhar, mas o negro travessão se lhes plantava à frente, d.o a cadeIa dos montes Smai e está à nossa frente a sua -prin-
como a querer barrar-lhes a passagem, crescendo, crescendo à cI?al. :nontanha, que encerra, nas suas rugosidades altaneiras.
medida que decorriam os dias. mIste:lO~ de ~rande transcendência. Aqui, há alguns séculos'
O domínio da areia era angustiante, pela visão do intér~ o -,?-ltIssImo dItou um c?~ig? de eternos preceitos a um iniciado:
mino e pela refração causticante do calor solar. As noites FOI bem no alto, no SIlenCIO da solidão, depois do roncar dos
eram calmas e mais ou menos frescas, mas os dias se tornavam elementos, ~ue se manifestou a palavra divina. Nos arcanos
verdadeiro tormento, pelas elevadas gradações térmicas. Como d~ sabedOrIa hermética: este é o ponto de contado do De-
protesto da natureza contra a monotonia do panorama, surgiam m1U;go com as suas CrIaturas. Aqui viemos, meu filho, para
do solo, aos poucos, massas escuras de granito, constituindo OUVIr a voz do Alto, e estamos pisando terra santificada.
grupos, como manadas de búfalos em descanso. À medida que _ Of companheiro " do velho embora em camI"nho d e " .
mIcta-
avançavam os viandantes, esses pedroiços davam aparência de çao, .ora escol?Ido para acompanhá-lo, pelas suas condições
amontoados membros de monstros, fossilizados à ação muIti- receptIvas de VIdente.
milenária dos ventos, das águas e das temperaturas oscilantes. Ao pé da montanha, contrastando com o aspecto desolado
Em seguida, a fisionomia da rocha se barbarizava em da mural~~ rocho:a, se enquistava, na reentrância, sobre a
agressividades de barranCús e despenhadeiros, ou em maciças ~eCOmP?SIç~O erodIda dos granitos, oásis viçoso, regado pela
construções de fantásticas fortalezas. Agora, enveredavam pe- lInfa crIstalma de um regato provindo da altura. Lugar para
las gargantas de torturadas circunvoluções em torno dos acli-
302 CAMILO CHAVES SEMfRAMI5 303

o descanço e para a meditação. Ali, estiveram, outrora, os afastados,


, llhes '
enxergamos apenas as cristas' o que e' com-
hebreus à espera do seu guia que confabulava com Jeová, seu preenSIve se consI~erarmos a forma globosa da Terra.
, . - Tendes razao, meu pai. 'Claro é o vosso raciocínio
deus.
Escondia-se o sol atrás da ·barreira rochosa, e' o velho- MUlto ~e~ho aprendido nesta viagem, em que vos sobra temp;
para mmIstrar-me conhecimentos.
viajor deu ordem de parada. Os camelos foram I descarrega-
dos, enquanto ·se armavam as tendas. -O velho afastou-se ,O olh~r. do anci~o ~ixou-se em ponto distante no horizonte
em companhia do discípulo, à -procura de um ponto' eminente, onde se d!VISaVam smaIs de uma caravana. '
de onde pudesse observar o horizonte. Subido a um penhasco, - Ves? Lá na volta do caminho'.. . . Deve ser e1a ...
11 ela!
olhava para o lado do oriente e, preocupado, parecia esperar
- E!a? Quem, meu pai? Esperais alguém?
alguém. - ~I~, esp~ro-a. A Samara, minha filha.
Agora, livre do capuz, reconhecemos a face bondosa de O dIscIpulo Ign?raV~a que o velho Simas tivesse uma filha
Simas, com a sua longa barba branca. Enquanto observava, e. encheu-se de. admmi.?a? Recolhido a um educandário reli-
A

do posto sobranceiro, expandia-se com o noviço. glO~ de MenfIs, o neohto desconhecia certas particularidades
_ Vou revelar-te um segredo, meu filho. Já estás qua- da VIda dos sacerdotes.
se preparado para as provas da iniciação e já podes sabê-lo. - Não sabia que tínheis uma filha ...
O nosso sapientíssimo mestre Hermes Trismegisto, quando - Voltando ao assunto primitivo, sobre a instituição da
ilustrou a terra com a sua sabedoria, veio aqui receber a pa- Ordem dos Magos, apesar dos séculos que nos separam do
lavra e instituiu a ordem dos Magos, composta de iniciados l\;íestre, ela perd~r.a int~cta, e seus conhecimentos secretos são
nos mistérios da vida e da morte. Grande poder, misterioso fIel:nente transmIt1dos a cadeia de iniciados através d _
e divino, foi enfeixado nas mãos dessas criaturas predesti- raçoes. Esta .divina instituição é dirigida ~r três g::nâ:s
nadas, que presidem às causas e efeitos dos acontecimentos magos, .que V1Vem separadame~te: um, na índia, outro, na
do globo. E~ropa '. outro" n? EgIto, s~permtendendo não sôment~ a êste
_ Referi-vos ao nosso mundo? paIS, mas a Arabl~, a Palestma; a Assíria, Babilônia, Asia Me-
_ Sim, ao planeta em que vivemos a nossa vida material nor e todos os paIses, aquém do rio Indo.
a Terra. Os ignorantes julgam que a terra é plana, mas - Já sei, meu pai, sois o grande mago do Egito ...
ela é redonda como uma bola e gira no espaço em torno do A :-' Quando, no mundo, ocorrem fatos de grande transcen-
sol. dencta, eles três, inspirados por uma diretiva superior reu
_ Como se pode ter disso certeza, meu pai, se nós vemos nem-se e, com.a sua presença, homenageiam o indíget~ en~
que o sol é que se move? Ele caminha no espaço sobre nos- carregado de mIssão na Terra. Está anunciado por exe:Uplo
sas cabeças, e sua ausência nos dá o fenômeno da noite. um grande aconted;nento para a humanidade,' daqui a oito~
_ É uma ilusão generalizada. A noite é prova de que cen!os anos. Os tres magos não faltarão à entrevista e pres-
a terra é redonda, porque, nesse período, o sol ilumina o tarao homenagem ao Enviado. .
globo na parte oposta à em que estamos. Podes deduzir esta . ,- Quereis dizer que a Ordem dos Magos não s
gUlra?
r-
e ex m
verdade pela analogia, pois os astros que vemos são, redondos.
Este assunto comporta maior desenvolvimento, e, agora, não . . - Jamais. Ela percorrerá os séculos e os milênios di-
é oportuno. Em Mênfis, comprometo-me a dar-te prova ex- ngIda pelos grandes mentores da Humanidade. Mas nin~uém
perimental do fato. Temos, porém, aqui, a certeza da minha coI nhece os grandes magos a não ser o iniciado. Na hora exata
afirmativa. Esta cadeia de montanhas, que se charila Sinai, e es aparecem.
rasga, de sul a norte, a península formada pelos dois golfos EI Bem 1?ró,xima a caravana, o ancião não a perdia de vista.
superiores do mar de Quíti. Observa ,que, aos montes mais e e o dlsclpulo voltaram ao acampamento.
CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 305
304

Os recém-chegados desceram dos camelos, come~ando. in:e- Chegaram a uma gruta profunda, talhada na rocha, onde
diatamente a descarga. Armaram as tendas nas Imedlaçoes penetraram e permaneceram. Dentro, havia cinza de foguei-
do acampamento de Simas. ras, sinal de que outros hóspedes ali haviam aportado. Ines-·
Entre os viajores apeou-se uma mulher, envolta em branco peradamente, cessou o vento frio, que silvava nas quinas dos
manto, dirigindo-se à tenda do ancião. rochedos, e começou a soprar branda brisa do ocidente, e os
- Minha filha! nimbos engrossaram rodeando a montanha, ameaçadores.
_ Meu querido pai! . - Viemos deixar aqui, disse o velho, mais um vestígio
_ Eu sabia que virias, meu pai. . de peregrinação. Somente iniciados aportam a esta gruta.
_ Não podia faltar ao teu chamado. MUlto .temos que Outros que vierem, daqui a séculos, hão de encontrar o nosso
conversar, depois de longa separação. Senta-te aquI, bem per- vestígio pela cinza do nosso fogão. Podeis observar sinais
to de mim... Como estou contente ~e. ver-t:!,.. A: res- visíveis de remoto passado. Aqui esteve, por exemplo, o ini-
ponsabilidades, parece, marcaram-te a fISlOnOmIa... Nao e~­ ciado escolhido para assistir e encaminhar o povo hebreu ...
tás velha, não. Ao contrário, sempre formosa. _Um pOU(UI- Moisés esteve nesta gruta quarenta dias e recebeu de Deus
nho amadurecida, é natural... Os trabalhos sao tantos .... um mandamento sublime, que, gravado na pedra, transmitiu
Não é verdade? Td ao seu povo e aos séculos vindouros. Isto ocorreu há meio
_ Meu pai sabe que gosto. das gr~n~e~ responsabll a- milênio. As cinzas da sua fogueira são estas, talvez... Há
des .. , Não suportaria uma vida de lr:ercIa. Portanto, a outras, anteriores. .. Esta, cujo vestígio está quase apagando,
ação e o trabalho estão condicionados. à mmha ~atureza. remonta a passado mais distante... A Hermes Trismegisto,
_ É verdade, minha filha. Eu, que te sigo os passos provàvelmente ...
desde menina, posso afirmá-lo. Mas dize-me o que te preo- O discípulo do ancião reuniu lenha, colhida aqui, ali e,
cupa? ferindo a pedra, tirou faíscas,que se comunkaram à mecha
_ Marquei este encontro aqui, porque O assunto n:~re.ce de pano mal queimado. Não tardou, as chamas crepitaram,
ser tratado na montanha sagrada. Sabes que, em Ba~lloll1a, iluminando o ambiente.
não há outros iniciados a não ser eu, sendo, portant.o' llnpos- Contrariando a natureza desértica, refratária à umidade.
sível auscultar a voz do Alto. Agradeço-te o teres vmdo, ape- rútilas fulgurações irromperam do choque das nuvens, e o tro-
sar das fadigas da viagem. . .' _ vão reboou solene, repetido pelas quebrada~ da cordilheira.
_ Como não havia de Vir, mmha fIlha, se o coraçao me - Moisés ouviu a voz de Deus no roncar da montanha.
impele para ti? Aqui estou, pois,· muit~ cont.ente a? teu lado. Ouvimos, neste momento, o sinal da divindade. .. Lugar san-
A noite, depois da ceia frugal, for ~edlcada a ~roca de to! Lugar santo!... Ajoelhemo-nos!
impressões e comentários. No dia segumte, encammharam- No deserto, os elementos, posto que avaros, eclodem com
se os dois, acompanhados do vidente,. para a m?ntanha, co~ fúria e quase de improviso. O vento rugia no obstáculo da
o indispensável para permanência superIor a uma Jornada. .1111- montanha, e as lufadas, iluminadas pela luz dos relâmpagos,
ciaram a penosa escalada, subindo as rochas COr:10 .cabrItos. invadiam o recinto de pedra, sufocando os peregrinos, obri-
A princípio encontraram espessa vegetação mas, atmgldo certo gados a retrair-se para o fundo da gruta.
po~to, esta 'se tornou escassa e raquítica, deixando a descob~rto - Deus, senhor dos mundos, criador dos homens e das
a pedra nua. Estavam a .cavaleiro de uma grande persp:cttv~~ coisas, juiz indefectível, nós nos submetemos à tua vontade
Entre os picos e cordilheIras despontava o monte Oreb, m~b onipotente e te proclamamos dono das nossas vidas e das nos-
longe, o espelho prateado do mar Vermelho e as elevaç(~es sas almas. Tudo, na natureza, proclama o teu pOder, e nós
esfumadas da terra do Egito; do outro lado, o golfo el~mIta invocamos a tua clemência e o teu beneplácito, a ti, que és
e o mar pardacento de areia da Arábia .Feliz. O sol declmava imenso, que és santo, que és misericordioso. Nós nos con-
uo horizonte, lá para as bandas do Egito. fiamos à tua proteção, porque és' único senhor. Dirigimos-
306 CAMILO CHAVES
307
te a nossa prece humilde, no pedestal do teu trono, de onde própria força. Tanto o ocidente como o norte e o oriente,
te comprazes em falar aos homens,. e às nações, ó Demiurgo, são caudatários. do seu poder e domínio. Falta-lhe o oriente
ó poderoso e único. Dize-nos a tua palavra para que possa- remoto, onde ela põe os olhos cobiçosos. É-me permitido es-
mos cumpri-la com a fidelidade da nossa submissão. tender até lá a minha conquista?
Transfigurou-se o vidente, como bafejado por uma aura ~ Ja~ais, no mundo, se articulou tamanho império como
divina, e pôs-se de pé, enquanto os dois aguardavam a palavra o teu.. FOI uma delegação que recebeste do Altíssimo. Deste
do Alto. acontecimento resultaram benefícios de abrandamento da crue-
- Meus filhos, aqui estou enviada por um poder supe- za hu~ana: _os homens .não conheciam a palavra bondade, apli-
rior, a cujo serviço me dedico com outros inúmeros serv6s; . cada as naçoes. Os reis da Assíria e Babilônia eram expoen-
Dizei o motivo da vossa peregrinação ao trono de Deus, Todo- tes da crueldade. Inauguraste um período de paz e tolerância
Poderoso. Dirijo-me especialmente a ti, minha filha, pois- co" . para, todos os povos; os reis se sentem seguros e tranqüilos
nheço as tuas preocupações. no Circulo da tua suserania. Queres, agora, dePois da vitória,
- Mãe e senhora minha, agradeço-te a constante assis- quebrar a$ normas da longanimidade?
tência que me tens dado e, de modo especial, suplico-te con- - A 1ndia se .conserva arredia e rebelde ...
selho e proteção para os meus projetos. . - É um at? da sua vontade. Contenta-te com o que te
- O beneplácito divino te acompanha em todas as tuas concedeu o destmo. A 1ndia está fora da tua órbita. És
ações. Podes reconhecer a felicidade das tuas empresas· como produto de uma de~tinação, c:>ndicionada aos poderes do gran-
testemunho do teu grande destino. Acabas de receber a maior de Mago, que preSide ao Egito e aos países aquém do Indo
g1:orifirnção que pode ilustrar um st1r humano. IMagfnífica Sabes quem é o grande Mago do Egito? .
foste denominada, e nenhuma idéia criminosa maculou a tua - Sir~1aS, o. grão-sacerdote, meu pai.
glória. A tua capital é, hoje, um título de imortalidade para . - POIS b:m, a tua .missão está limitada à alçada hermé-
o teu reinado. Apenas uma única falta mareou o brilho do ~Ica de :eu paI. A 1ndia está fora deste âmbito e obedece
teu merecimento... a do grao-sacerdote, que vive nas grandes montanhas além
- Qual? perguntou ela, aflita. do Ganges. Lá, te é vedado intervir. '
- O templo de Belo. O sacrifício humano é o maior - Procurarei, mãe e senhora, obediente ao teu conselho
atentado contra a bondade de Deus cr.iador. sustar a força expansionista do meu povo. '
- Penitencio-me, senhora e mãe, de ter sido a promo- Acalmada a tempestade, assomaram os peregTitlos à bôca
tora da infame construção. Aspirei à popularidade, por meio da !5ruta e foram iluminados pelo sol de uma manhã radiósa.
de um engodo à má fé e crueldade dos falsos sacerdotes. Apos o d.escenso, permaneceram um dia no oási~ verdejante.
- Sim, minha filha, foi esta a tua única fdta na tarefa Reumdas .as ~aravanas, marcharam para o norte, acompa-
que te foi confiada. nhando a cordIlheira, até alcançar a estrada que ligava o Egito
- Perdoa-me! à Síria. Ali, pai e filha deviam separar-se.
Samura-mat, colocada diante da consciência nua, sentia . . Tenho pressentimento, minha filha, de que não te ve-
todo o peso do seu pecado. Com os olhos lacrimosos revia a re: maIs. .Estou velho e alquebrado, e vai chegar o dia da
cena monstruosa do sacrifício dos inocentes e, na sua dor, mmha partIda para as regiões do além, a fim de me preparar
estorcia os braços num olhar de súplica. para novos trabalhos na minha volta ao planêta. Quisera ficar
- Muito tens, ainda, que fazer, em cumprimento da tua Junto de ti, mas ~everes sagrados me prendem à terra do Egito.
missão. Procede de bom ânimo e não atentes mais contra os Rogo a, Deus ompo!ente te acompanhe e proteja.
ditames da Lei. Samura-mat caIU nos braços do pai.
- Permite, ó mãe, me reporte ao assunto que aqui me o - Qua~ta f.alta me fazes, ó meu querido pai. Solitária,
traz. Babilônia cresceu tanto, que sofre as conseqüências da VIVO em melO dIverso do nosso. Lá, tudo é diferente, até
SEMfRAMIS
CAMILO cHAVES

Os generais presentes manifestaram-se, calorosamente, em


mesmo os deuses. Sinto-me abandonada e triste. Como era
feliz no tempo em que pastorava .as ovelhas.t Qu~nta cous~ apoio das considerações de Uakim.
já se passou depois desse tempo ditoso t Qmsera ViVer ao pe - Proponho, insistiu ele, com a devida deferência da
de ti, meu querido pai e conselheiro. _ nossa rainha, que se empregue todo o poderio militar na am-
Simas mimava-lhe a face, como se ela nao fosse a grande pliação do império assírio-babilônico.
rainha. Tornara a ser a sua dileta Samara dos bons tempos, Samura-mflt, temendo contrariar o oráculo, procurava dis-
em que viviam no Oásis <tos Peregrinos. suadi-los.
_ Não desanimes, dizia, consolando-a. Tens um bravo - Aonde iremos mais, meus amigos, dizia. A Ocidente
companheiro que muito te 'quer e te defen~erá. estão o Egito e a Etiópia, que já fazem parte, como aliados,
_ Sim, ele é meu amIgo e nele confIo, mas a sua for- da nossa confederação. Além, está· o grande deserto e as
mação é a de um assírio e jamais poderá apreender o con- tribos selvagens da África. Para o norte, pouco temos que
junto moral de uma iniciada. Como eu gosto de Lécon! Qui- esperar dos povos semibárbaros da Europa. A Nordeste,-es-
sera ficar contigo, mas anseio por chegar até ele, apes~r de tão as tribos nômades e indomáveis da Cítia. Para o Oriente,
ser denodado guerreiro que só compreende as razões ditadas a índia misteriosa, que dizem organizada, mas de civilização
pela espada. inteiramente diversa. Devemos render graças aos deuses imor-
_ Ao seu lado VIves feliz, e ele é o segredo da tua tais por havermos enfeixado em nossas mãos a parte do mundo,
capaz de unificar-se, embora a diversi.dade de raças e idiomas.
fortuna.
°
Separaram-se, partindo uma, para o oriente; outro, Ipara
O império é demasiadamente vasto, e nenhum perigo ameaça
as fronteiras. Portanto, eu sou pela paz.
o ocidente.
Samura-mat em obediência à voz do Sinai, estava resol- Entendeu ela, com o seu parecer, encerrar o assunto, mas
vida a desistir de qualquer emprêsa guerreira. Na primeira interveio outro vizir, encarnando a opinião dos generais.
reunião com seus vizires e generais, após a sua chegada, deba- - A nossa rainha focalizou muito bem a questão. Para
teu-se a questão da paz e da guerra.. A m~iori~ .opinav~ p~r o lado sul temos o oceano; para o ocidente, nada mais nos
que fôsse dilatado o â.mbito territOrIal do Impeno, na ansra convém; o norte não nos interessa; 'mas a índia constitui uma
de novas glórias. O próprio Lécon,. tão identificado com a porção geográfica que deve ficar dependente de Babilônia. É
real esposa, batia-se por novas conqUIstas. um povo civilizado e belicoso que, a qualquer momento, pode
_ A guerra, dizia ela, é um recurso ~xtremo e jugo atirar-se sobre o nosso império. Stratobatés é um rei irre-
apertado em que um tem que perder. M~rt~s ve~es, uma quieto e valoroso, mas nós temos meios para dominá-lo defi-
campanha começada sob os melhores prognostrcos fIca com- nitivamente. Temos poderosíssimo exército e possante esqua-
prometida por circunstâncias fortuitas. . dra, que anseiam por levar muito mais longe o domínio da
O grão-vizir, homem dado à grandeza, embora fIel à nossa glóriosa rainha.
rainha contrariava-lhe a opinião. Grande aclamação coroou as palavras do vizir.
-.:.. Podeis gabar-vos, magnífica senhora, d«; ;tue nin~lém, - Para a índia! Para a lndia!
até ao presente, logrou tamanho sucesso e glona. :tt mIster Samura-mat foi impotente para conter o ímpeto guer-
têrmos em vista, que dispondes do mais aparelhado e po~er:,so reiro dos seus conselheiros e generais, e a contragosto, teve que
exército ansioso por novas conquistas. Uma poderosIsslma adotar a decisão pleiteada por todos.
frota d~ guerra imobiliza-se, apertad~ nas águas ?lá?idas do - Muito bem! Adoto o vosso parecer unânime, mas
O"olío Pérsico. Estas forças, por efeIto de seu propno pode-
quero ressaltar que sou contra a guerra, a fim de que o insu-
~io n'ão se resignam a permanecer inertes. Ao contrário, re-
cesso não me seja imputado.
c1a~am movimentação e atividades guerreiras.
310 CAMILO CHAVES SEMfRAMIS 311

Imediatamente, Lécon, como tártan, começou a providen- A História se refere sempre a invasões no sentido do
ciar sobre a próxima expedição. Comunicou-se com Beb-Alib, oriente para o ocidente, em obediência a um determinismo
convidando-o a participar. Foi dada ordem a todos os go- étnico; mas, desta vez, ocorreu o inverso ao movimentar-se,
vernos aliados e submissos para mobilizarem seus exércitos,
rumo ao nascente, essa gigantesca monção, constituída de inú-
assinaladas as rotas e pontos de concentração. Grande en-
meros povos. Atravessados os rios Tigre, Gande e Euleus,
tusiasmo apossou-se do povo babilônico, ao saber da atitude
governamental; os aliados, também, acolheram com alegria o
atingiram os invasores a capital e ° país do Elam, que, tam-
bém, participava da coalizão, e seguiram pelo litoral. Passada
convite, que consideravam como passeio triunfal pelas para-
a Carmânia e a Cedrósia, regiões habitadas por tribos ictió-
gens desconhecidas do Hindustão. Por correios especiais che-
fagas e negros asiáticos, fizeram junção cornos aliados do
gavam a Babilônia as afirmações de solidariedade à rainha e
mar Cáspio, próximo à Gordilheira do írus, da Indo-Cítia. A
firmeza das promessas de cooperação. Cada exército viria
comandado pelo respectivo soberano.
esquadra, costeando ° litoral, viera para as bocas do Ind0 e~
Grande estudo se fez quanto à rota a seguir, pois que
com ° auxílio dela, fez-se a travessia do rio. Encontra 'am
um país indefeso e avançaram em direção ao norte, passando
os rumos diretos tinham pela frente altíssimas cadeias de mon~
pelas regiões abandonadas e lavouras destruídas.
tarrhas e grandes desertos a dificultarem a marcha. Foi ado-
tado o itinerário marginal do oceano índico, onde a natureza °
As notícias chegadas ao comando localizavam inimigo ao
se mostrava mais benigna. norte, por trás das montanhas que delimitavam o vale do Indo.
Estabelecida a concentração de forças nas imediações de Grande coalizão se organizara entre os vários príncipes
Babilônia, foram chegando grandes massas de soldados; pri- indostânicos com o fito de rechaçar o invasor. A frente desse
meiramente, as de procedência das nações vizinhas, como a exército estava o rei Stratobatés, famoso cabo-de-guerra.
Síria, Fenícia, Filestéia, Israel, Amalec, Iduméia, Moab, Ma- Em obediência à estratégia de destruir o inimigo, antes
dian; em seguida, as da Etiópia, do Egito e tribos da Arábia de tudo, os invasores marcharam diretamente sôbre a zona
Pétrea. onde Stratobatés os aguardava. Para chegarem até ele, era
Grande entusiasmo despertou a chegada de Beb-Alib, co- mister atravessar extenso desfiladeiro. Descuidados, os ex-
mandando as tropas egípcias. Chams ficou adida à corte de ploradores não procederam com a devida precaução e decla-
Samura-mat, a fim de estarem sempre juntas. raram o caminho isento de fortificações e livre a passagem.
As citadas forças eram mandadas para a frente, a fim Tranqüilamente, os invasores enveredaram pela angustura mon-
de darem lugar a outras, procedentes dos países da Anatólia, tanhosa, e o inimigo, oculto, apanhou o exército babilônico
como a Cilícia, a Panfília, a Cária, a Lícia, a Lídia, a Frígia, coiu a surpresa de uma tremenda agressão. Grandes blocos,
a Bitínia, a Galácia, a Paflagônia e Capadócia. Descendo com estrépito, rolavam sobre a soldadesca desorientada, e as
pelos vales do Tigre e do Eufrates, chegaram os armênios, os setas sibilavam às costas dos fugitivos. Estabeleceu-se con-
káldi do U rartu, enquanto os medos, os persas, os partas fusão, e, em muitos pontos, o inimigo, descendo com ímpeto,
desciam em direção a Susa, para se incorporarem ao exército atirava-se contra as falanges mal-alinhadas. Impossível voltar
principal. Aos sogdianos, bactrianos, margianos, drangianos e e, mal podendo conter a investida, o exército suportou, à
tribos semibárbaras das praias do mar Cáspio, foi determinado custa de muitas perdas,. a luta desproporcionada. Compreen-
que descessem margeando os montes 1rus, para se encontrarem dendo a impossibilidade de destruir os babilônios, o inimigo
com o grosso das forças, próximo à embocadura do Indo. renunciou à montanha e correu a engrossar as forças de Stra-
Sob o comando de Samura-mat, moveu-se o imenso exér- tobatés, que esperavam na planície, para a batalha decisiva.
dto, cujos efetivos, segundo a tradição, orçavam em dois mi- Poucos dias antes destes acontecimentos, chegara a notí-
lhões de soldados. Seguia-o grande retaguarda, composta das cia do desbarato da esquadra por terrível vendaval, quando
mulheres dos oficiais. ela policiava° deIta do Indo. Começaram a aparecer graves
312 CAMILO CHAVÉS SEMfRAMIS 313

erros cometidos no preparo da expedição. Entre outros, des- N<Jva leva de ~lefantes era lançada sobre as linhas do
tacava-se a ausência de elefantes,que havia aos milhares. Por centro babilônico, que deram sinal de não pOderS\lportar a
motivo do extenso percurso, foi desprezada a importante arma investida; mas Lécon, veloz, intervinha nos pontos fracos e
de guerra, decisiva no resultado das batalhas. Procurando sa- reanimava os combatentes. Entretanto, os egípcios ·da ala
nar o erro, Samura-mat, sempre fértil em estratagemas, mandou direita, guiados por Beb-Alib, portavam-se galhardamente. Ao
sacrificar dezenas de milhares de bois do abastecimento do exemplo do chefe incomparável, acossaram a ala inimiga, re-
exército e, com suas peles sobre grades de madeira, no dorso pelindo-a. Aproveitando-se da debandada, perseguindo-a, al-
de milhares de camelos, simulou o arcabouço de pesados ele- cançaram a retaguarda do centro dos índios, onde estava o
fantes. Por esse meio pretendeu amedrontar o inimigo, que pr6prio Stratobatés, rodeado de numeroso grupo de oficiais.
dispunha de paquidermes verdadeiros, e tê-lo-ia conseguido, Beb-Alib .não podia desprezar a oportunidade de tirar grande
se não fosse o insucesso do desfiladeiro, onde os agressores proveito do encontro com o capitão inimigo. Atirou-se, como
tiveram oportunidade de observar o engano. um leão, contra o grupo e abriu caminho até ao seu real adver-
Stratobatés já estava à espera. Lécon dispôs o exército sário, cutilando à direita e esquerda. Defrontados, estabele-
em ordem de batalha. Ele mesmo comandava, ao centro, os ceu-se entre ambos duelo mortal. Mas, mal-escudado dos seus,
soldados assírios e babilônios, cuidadosamente adestrados. Na ql1e se haviam atrasado, o valente Beb-Alib viu-se envolvido
ala direita, colocara Beb-Alib com os seus egípcios; à esquerda por centenas de inimigos, que acorreram em socorro do seu
postavam-se os demàis aliados. Reservara para o remate for- rei. Ao cair ferido Stratobatés, ele, também, traspassado por
ças de cavalaria árabes e babilônicas. muitas espadas, tombou heroicamente.
Com O ferimento do chefe, estabeleceu-se o desânimo entre
Aguardou, firme, a arremetida dos índios, lançados à ba- os índios que o retiraram do campo com grande alarido.
talha em .massas compactas, facilmente repelidas. Contra- Samura-mat, compreendendo o risco de uma derrota total,
atacou com os carros de guerra, que desbarataram as forma- mandou ordem a Lécon para que iniciasse a retirada. Lécon
ções de infantaria inimiga; ultrapassadas estas, acometiam as chegou-se a: ela, dizendo não haver motivo para recuo.
linhas dos arqueiros. Os índios não davam sinal de fraqueza - A prudência manda, disse a rainha; salvemos, ao me-
e opunham novas levas de combatentes, a atestar os seus vas- nos, parte do exército, ameaçado de ruína total.
tos recursos em homens. A ala esquerda do exército invasor, ~ Devemos combater enquanto vida tivermos. :É o dever
composta de bárbaros, não suportou o choque dos índios, ape- do soldado.
sar da firmeza do centro e da direita. Aproveitando a oca- - Mas o dever da rainha consiste em zelar pela salvação
sião, Stratobatés lançou na luta a sua cavalaria, e· as linhas dos seus soldados.
fTaquejantes da esquerda foram destroçadas. Fez secundar a - :É preferível sirvam os nossos cadáveres de pasto aos
cavalaria pelos elefantes, que, quebradas as últimas resistências corvos a fugirmos como covardes.
dos bárbaros, infletiram sobre· o centro de Lécon. Os pro- Neste momento chegou a notícia da morte de Beb-Alib,
boscídeos avançavam sobre as falanges como um rolo com· deixando todos abalados. Chams deu um grito e caiu des-
pressor, rompendo-as, desorganizando-as, enquanto os arquei- maiada.
ros, acastelados nos dorsos negros, despediam setas mortíferas. Samura-mat calculou o desânimo nas fileiras, com a morte
Mas vigorosa era a resistência dos babilônios. Soldados adestra- do valoroso general, e a sua resolução foi inabalável.
dos, fingindo-se mortos, se estendiam no solo e, ao passarem - Que se faça a retirada! :É a rainha quem manda!
sobre eies os colossos, levantavam-se e cravavam-lhes nos ven- Conformou-se Lécon e partiu a cumprir a ordem. Apro-
tres indefesos as longas espadas. Os monstros, feridos de veitou a indecisão do adversário, e a retirada se processou em
morte, pesadamente se empinavam, aos guinchos, e caíam, es- ordem. Com isto o exército hindu tomou alento e, conven-
parramando a carga mortífera. cido de haver levado a melhor, entregou-se a uma alegria deli-
314 {; A 1'<1: I L O C II A V E S-

rante, desistindo da perseguição ao inimigo. Talvez se sen-


tisse impossibilitado de acossá-lo, em conseqüência das avul-
tadas baixas sofridas.
Reunidas as forças que lhe restavam, Lécon voltou pelo
mesmo caminho e repassou o desfi1adei~o sem ser .molestado.
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO
Antes havia mandado propor ao rei Stratobatés o resgate do
cadáver do 'general Beb-Alib, a fim de ser entregue à faraona
do Egito. o LEÃO VENCIDO
Chams atirou~se, como alucinada, ao cadáver do esposo
e passou a acompanhar a viatura' que o conduzia, não se afas-
tando dele nem nos penloites. Clamava dia e noite a sua des- . ~i~teriosa perso~agem havia chegado por aquele tempo a
graça, terminando por se entregar a um desalento perigoso, que BabI1oma. . Trajava a moda da índia, e o globo do enorme
muito preocupava a Samura-mat. turbante mmguava-Ihe o rosto rapado com avantajados bigodes
O exército babilônio estava reduzido -à metade, mas ainda pendentes como se usava naquele afastado país. De vez em
era uma força respeitável nas mãos de um hábil general. Lé- quando, era visto sentado num canto de ruá, a tocar pifara.
con reorganizou-o para que pudesse enfrentar novos ataques, Com o tempo, tornou-Se popular, e,' em torno dele reu-
mas os índios, parece, ficaram contentes de que o inimigo' se nia-se o povo, atraído pela sua música, algo langorosa, con-
fosse e não mais o incomodaram. trastante com o estilo marcial e cadenciado dos semitas da
Samura-mat sentiu profundamente seu primeiro revés e Mesopotâmia. tO músico tocava, tocava, num convite. Sob
voltou para Babilônia disposta a encerrar as atividades mili- as dobras do pano do cesto, em frente, assomava a cabeça
tares. Lembrava-se dos erros e sentia a punição que a atin- triangular de um ofídio, como a. observar em torno. Em
gira. Costumava, nas suas conversações com Lécon, dizer; rápido movimento, ele se desvencilhava do cesto, e seu corpo
"Fomos vítimas dos nossos próprios erros. Como pudemos escorregava no solo, defronte ao flautista, indiferente a tocar.
desprezar os nossos elefantes?" Sob a influência da melodia, a cabeça do ofídio se elevava,
a marcar com bamboleios a cadência musical. Mais e mais
s: erguia, apoiado à cauda, deslizando, a vibrar, a silvar, a
gI~a: como magnetizado pela magia da canção. Em seguida, o
mUSICO mod~lava uma melodia triste, em estranha linguagem,
quando surgia do cesto outra serpente, que imediatamente se
levantava sobre a cauda, a tremer, a dançar, emparelhada à
companheira.
Novas canções faziam surgir outra, outra, mais outra ser-
pente, e, emparelhadas iniciavam, ao ritmo do mágico flautim,
a dança das serpentes. Com movimentos flexuosos, marcavam
a cadência, giravam processionalmente, rodavam sobre si mes-
mas,
, .
silvando, para se recolherem lestas ao cesto ' cessada a
mUSIca.
Aproveitando o entusiasmo dos presentes, o mágico, em
um prato de barro, recolhia as moedas de cobre, que lhe lar-
gavam os mais generosos. Dissolvido o ajuntamento, o doma-
316 CAMILO CHAVES 317

cos sobre acontecimentos futuros. Para exaltar as esperan-


dor de serpentes instalava-se noutro ponto, onde se repetia o
espetáculo. ças do ambicioso, dirigia-lhe sempre uma saudação, que era um
preconício.
Savarta,assim se chamava, alcançara popularidade, e os
- Salve, Ó favorecido da fortuna I Que os gemos do
transeuntes o tratavam com benevolência, apesar do pouco
Espaço vos sagrem o preferido nas predileções do Senhor do
interesse pela exibição pitônica, excessivamente repetida. <?a- mundo!
nhara mesmO algumas amizades; entre outras, a de um vahdo
do jovem rei Adad' Nirári. - Vou recompensar-te, retrucava o valido, pela sinceri-
- Dar-te-ei uma fortuna, se fjzeres com que essa ser- dadedos votos.
pente se aninhe no leito de alguém que eu conheço. Savarta. não desdenhava a moeda que lhe era oferecida.
- Meu senhor, as minhas cobras obedecem-me cegamen- Certo dia, Euxórius, saindo pela porta dos fundos do pa-
te e posso mandá-las aonde eu quiser. ~ão terrivelmen.te pe- lácio real, deu com o hindu a conversar com os criados.
çonhentas e ai de quem for por elas pIcado! - Que fazes por aqui? perguntou, suspeitoso.
Pessoas como Savarta são, hoje, conhecidas cOm o nome -'-- Altíssimo senhor, estava na esperança. de encontrar-
de faquires. Viviam de expedientes, mu~t~s. vezes c:iminosos. vos e perguntava por vós.
Encarregavam-se de empreitadas, como Slcanos da vmgança e - Como soubeste da minha permanência no paço real?
do ódio, e nisto lhes consistia o maior provento. Savarta en- - Quem não conhece, em Babilônia, o e1egantíssimo Eu-
controu sem dificuldade, parceiros_ nas suas torpes especula- xórius? Só se fala na sua pessoa, prendada e feliz.
ções, d~vendo-se notar, entre outros, o suntuoso Euxó.rius, q~e, - Que me queres?
magnificamente vestído, passeava pelas ruas a sua Importan- - Há vários dias, meu senhor, não tenho a ventura de
cia e o seu desdém. pousar em vós o meu olhar. Isto me trouxe um grande vácuo
- Duvido que as tuas. serpentes, disse ele com despr~zo, na alma e vim saber notícias vossas. Não me conformo com
'tenham mais peçonha que a objeta criatura a que me rehro. a suposição de ficar privado da vossa benevolência. Tanto
- Dizei-me, magnífico senhor, o seu nome. Faremos a mais se me aguçou o desejo de ver-vos quanto os meus gênios
experiência, e não ficareis decepcionado~ protetores me fizeram ver os perigos que corre a vossa pessoa.
- Não posso tratar com quem nao conheço. Isto fica Alarmou-se Euxórius. Savarta tocara na chaga interior
para quando me deres conta de ti. . do vaidoso que só em si pensava e _temia pela própria segu-
- Ordenai, senhor, que sereis cegamente obedecIdo. rança e posição.
Euxórius, cheio de si mesmo, seguiu o seu ca~inho., . - Que te disseram eles? indagou inquieto.
Savarta, entretanto, experiente na escola. do mfortunlo, '- Não seria aqui, meu senhor, o lugar próprio para
havia lobrigado nele 'O homem de quem necessltava. À apro- revelar-vos coisas tão graves.
ximação do valido do jovem rei, desfazia-se em mesuras, sau- - Vem comigo à minha câmara. Lá, ninguém nos per-
dando-o, ostentosamente, à moda oriental. . . tUA·bará.
- Salve nobre Euxórius! Que os deuses ImortaIS se- Subiram por uma escada particular e percorreram amplos
jam louvado; pelo que de beleza e magnificênCia vos~ libera.. corredores.
lizaram. Felizes os que podem gozar da vossa proteçao e da '- Aqui estamos, disse-lhe Euxórius. Nesta parte do pa-
vossa generosidade! • ~ lácio -mora o rei Adad, meu senhor. A minha câmara está
Empavonava-se, ainda mais, o enfatuado, ao OUVIr tao bem perto dos compartimentos dele.
maviosas palavras, e tornou-se freqüen~e nos encon!ros com - Como sois feliz, senhor, por lhe merecerdes- confiança!
o hindu. _ Savarta contava-lhe coisas mIrab.olantes, dIante. das Amanhã será ele o dominador do mundo, e vós compartilha-
quais os magos caldeus não passavam de SImples embustel;o~. reis a sua glória.
Revelava-lhe particularidades intimas ou sedutores prognostl-
318 CAMILO CHAVES
SEMÍRAMIS 31~

- Sim. Não tardará assuma ele as rédeas do governo,


porque rei ele já o é. Dize-me, agora~ ~os t~us receios a - Julgo que sim, porque isso representará. para ele os-
tracismo e desprestígio.
meu respeito, segundo as revelações do gemo amigo.
Savarta sentiu chegado o momento e concentrou-se na Está posta a questão sob os vossos olhos, futuro grão-
vizir.
sua astúcia.
- Correis real perigo, senhor, porque a vossa fortuna é Que queres. dizer? perguntou Euxórius, aflito.
dependente da do rei Adad-Nirá.;i.. Ele c?rre imenso perigo. -:-' Nada vou dizer-vos, senhor, que me é defeso; mas
- Explica-te! atalhou Euxonus, anslOSO. vou amda formular-vos outra pergunta: se o rei Adad-Nirá-
- Vou explicar-me através do exame dos fatos.,. Há. ri perder o trono, sereis prejudicado?
alguém prejudicado com a ascénsão do novo rei? - Livrem-me os deuses de tal desgraça.
Euxórius titubeou em responder, temendo entrar no ca· - Podeis, então, compreender o. meu empenho em pou-
minho das revelações inconvenientes. Mas o outro adiantou-se. par-vos a tamanha desgraça.
- Há. duas pessoas que muito hão de perder, quando Q - Queres dizer que o rei, meu senhor, está na iminência
rei assumir as rédeas do governo. São elas a rainha e o seu de ser assassinado?
consorte, que é, na verdade, um rei. Vamos dizer o termo - Eu não afirmo nada, senhor:. Os gênios amigos cos-
exato: eles serão destronados ... tumam apontar-me fatos, que, muita vez, se realizam... Fiz
- Continua. mal em vir denunciar-vos isto, movido, como disse, pelo de-
- Permitis, senhor, que eu ouse considerar o assunto com sejo de livrar-vos de um fracasso.
franqueza? - Fizeste bem, e eu te agradeço. Vou meditar sobre as
- Continua! ordenou o -outro com fisionomia severa. tuas sugestões, prometendo-te todo o segredo.
- Julgais, senhor, que a rainha tenha .interesse em obstar _ --: Se virdes, s.enhor, que os alvitres dos gênios amigos
a ascensão do rei seu filho? sao dignos de consIderação,· outras coisas eu tenho a dizer,
- ·Não digo nada. Fala! mas são de tal relevância, que somente ao vosso::feal amo
- Senhor, estou empenhado, pela simpatia que me 1n- posso comunicá-Ias. Neste caso, eu vos peço me encaminheis
fundis, em prestar-vos algum auxílio. Nada vos peço por isso, a ele.
mas não quero sofrer se, por acaso, incidir no vosso desagrado. - Eu to prometo.
Neste caso, perdoai-me, mas não continuarei. Retiro-me, de-
Savarta retirQu-se contente e aguardou os acontecimentos.
sejando-vos boa sorte.
Alguns dias se passaram, e foi levado à presença de Adad-
A Euxórius, grande dissimulado, não lhe convinha de- Nirári, por ordem de Euxórius. Deparou-se-Ihe um jovem
nunciar suas opiniões. Conhecia muito bem as conseqüências imberbe,. a quem atribuiu dezessete anos, moreno claro, olhos
das intrigas palacianas para arriscar uma indiscrição, mas, ao negros, "porte elevado, maravilhosamente belo. O seu olhar
ver Savarta na disposição de retirar-se, conteve-o. um tanto sombrio dava-lhe aspecto enigmático mas daro e
- Não te vás. Continua e nada temas. Vejo que se- simpático o riso. Dominou-o forte impressão a~ ver-se diante
guro é o teu raciocínio, e interessado estou em ouvir-te. daquele inexperiente rapaz que ia receber o maior império
- Que os deuses imortais vos guiem e protejam. ,ne- do mundo. Prostrou-se, como do protocolo, e beijou-lhe os
veis, agora, responder à minha pergunta anterlO: : JulgaIS a pés.
rainha empenhada em arrebatar o trono a seu fllho?
- Não me parece, porque muito o ama. Salve, rei dos reis, senhor do mundo! Que as po-
- Julgais que o esposo da rainha tenha interesse em tências do firmamento se congreguem sobre o vosso maanÍ-
evitar a ascensão do rei Adad-Nirári? fico destino t a fim de que maior seja a vossa glória e ~a­
jestade.
320 CAMILO CHAVES SltMÍRAMIS 321

_ Ora bem, Sa~arta, Euxórius disse-me que assunto


. im- a cila~a e. aproveit~ndo ~ confusão, se esgueirou por uma
portante tens a revelar-me. Aqui estou para üUVIr-te. Pro- porta mtenor e fugiU, prImeiramente, para as montanhas da
cede sem receio, falando-me a pura verdade. Média e, depois, para a índia, onde eu o acolhi. O menino
_ Meu real senhor, que as iras dos gênios do mal se de então, dizia-me, deve ser hoje robusto rapaz e não tardará
congreguem sobre a minha cabeça em todas as formas ?e em ser o rei. Quero que lhe digas, Savarta, que ele vive
maldição, se eu for capaz de mentir-vos e enganar-vos. VIm entre os assassinos do pai dele, o grande rei Chamsi-Adad.
da índia, minha patria, ansiando por contemplar a vossa face O verdadeiro mandante do assassínio do rei é o próprio Lécon,
divina, porque a vossa fama atravessou o Indo e alcançou que casou com a rainha Samura-mat. Eis a revelação que
o Himalaia. vos mandou o único sobrevivente do tenebroso atentado an-
_ Qual o objetivo da tua vinda a Babil~nia? siando por restabelecer a verdade. '
_ Vim exclusivamente para falar-vos, reI dos reis. Adad-Nirári suava de angústia ao ouvir o estranho relato
- Sobre qual assunto? . mas invadiu-o a desconfiança, quanto a uma possível intriga:
_ Para cumprir' um juramento feito a um mOrIbundo, Como poderei acreditar nessa terrível acusação? As
trazer-vos a mensagem que ele me transmitiu ao morrer. versões oficiais que conheço, descrevem de outra forma os
_ Interessante o que me dizes... Continua. acontecimentos.
_ É mister, real senhor, que faça uma pequena digressão. ~ Ele mesmo indicou-me sugerisse o meio de verificar-
Eu fui e sou domador de serpentes.' Vivo a divertir os tran- des, senhor, a veracidade da sua afirmativa, mandando pro-
seuntes nas ruas, para merecer algumas magras moedinhas ceder à investigação sobre Seminaras, oficial da guarda da
de cobre. Entretanto, apareceu-me, certo dia, um pobre ra- rainha.
paz, andrajoso e faminto, a. pedi~-me, alimento e proteção. - Verificada a autenticidade' do testemunho, ainda ficará
Nunca pensei em poder proteger mnguem; m~ o seu esta~~ de pé a dúvida quanto à veracidade do relato.
era verdadeiramente penoso e moveu-me à pIedade. AdmItI - Isto é convosco, sapientissimo rei, mas acabais de rece-
Seminaras na minha companhia, e, juntos, fazíamos as nossas ber a voz de um sepulcro.
exibições mágicas. lfiterrbgad~,. disse-me pro~edefite de ~í­ O jovem rei ficou sucumbido com o que ouvira e emude-
nive, capital do reino da Assma, e que fugIra por mot~vo ceu por alguns minutos, a pensar.
de perseguição do governo. Passaran:-~~ os. anos, e a sau~e - Está bem, Savarta. Vou estudar o assunto.
de Seminalras a1rruinou-se, sem possIbIlIdade de restabelecI- . Chamou um oficial e deu-lhe ordem para que levasse o
mento. Chegado o seu último dia, chamou-me dizendo que hl11du ao tesoureiro, a fim de que este lhe desse cem moedas
tinha um último pedido afazer-me, mas que some.nte me reve- de ouro.
laria o segredo se eu me comprometesse, sob Juramento, a Savarta saiu radiante com o rumo que tomavam os seus
cumpri-lo. Aqui estou, filho de Marduc,. para dar~vos conhe- negócios e sentiu-se confortado,
cimento da mensagem do meu bom Semmaras. Algum tempo depois, Euxórius voltou de Nínive com as
_ Estás .autorizado a transmiH-Ia. informações relativas a Seminaras, um dos assassinos do rei.
_ Disse-me que fora. oficial da guarda da rainha, em misteriosamente desaparecido na ocasião do crime. Era ofi~
Nínive. Seduzido pelas promessas e intrigas. do comandante, cial da guardada rainha, com boas referências.
cujo nome era Lécon, ele e o?tros co~panhelros foram c?!?- Diante disto, justificavam-se as informações de Savarta.
pelidos a agredir e matar o reI Cha:nsI-Adad, que, na ocaSlao, Como podia o hindu conhecer esses pormenores, lá na índia
altercava com a rainha. Morto o reI, foram eles cercados pelo longínqua, se não pelo depoimento pessoal de Seminaras? Ade-
restante da guarda, sob o comando do. mesmo Lécon" e su- mais. a morte do rei ficara sempre ohscura, visto (Iue todos
mariamente chaciqados. Salvou-se Semmara.s que, percebendo os cúmplice~ morreram na hora do crime, e o proc~sso, sem
322 CAMILO CHAVES 5EMfRAMIS 323

réus vivos, baseou-se nos depoimentos de testemunhas, agora d~ 9ue o nome de nosso real soberano não pode aparecer, em
incriminadas de suspeição, como Lécon, os soldados da guarda, hIpotese alguma, p~rque é pessoa sagrada, a ser colocada adma
os funcionários do serviço da rainha. Apurou Euxórius que, de qualquer suspeIta, para que nos possa amparar em mo-
à boca pequena, havia quem afirmasse serem a rainha e Lécon m,ento de desgraça. Eu servirei de intermediário entre ele e
os organizadores do plano, temendo a vingança de Chamsi- vos.
Adad.. Foi esta maledicência, talvez, a causa da transferência Levantou-se um jovem, em atitude agitada.
da corte para Babilônia. Companheiros, acabamos de ouvir o nobre Euxórius,
Criou-se no córação do jovem rei uma grande mágoa, e mas. de suas pal~vras nada de concreto apareceu. Nós nos
acendeu-se nele um violento ódio contra Lécon: Não tinha .reummos clandestmamente e aceitamos os riscos da nossa ati-
mais dúvida de que fora este o mandante do crime que viti- tu~e.. Não nos convém proceder sem determinação e sem
maraseu pai. Os jovens, que o cercavam, sequiosos de glória ~bJetI;os, que nos levem ao fim colimado. Encontrar o obje-
e de mando, destilavam nos ouvidos do futuro monarca pala- tlvo e facI!. No caso, o que importa é elevarmos ao trono
vras de revolta, atribuindo-lhe capacidade de governar sozinho. o nosso querido. rei e ~enhor. Qual o meio necessário para
Ao pensar na união de sua mãe com o grande criminoso, alcançarmos o fIm de;se]ado? Nisto consiste o nosso esforço
via-se obrigado a reconhecê-la culpada, o que vinha chocar-se e trabal~o.. ~espondeI-me, quais são os meios? Já pensastes
com os deveres de filho extremoso e obediente. Contra Lécon, nas resls~enctas e contratempos que podem surgir? Nada
porém, nada o impedia de proceder como vingador da morte q~ero adIanta:, mas espero a palavra dos mais autorizados.
de seu pai. Tornou-se taciturno e arredio. Debalde sua mãe FIcarmos aquI a conspirar, empiricamenfe, representa um ris-
o aconselhava a retomar os hábitos alegres, próprios da ju- co, sem nenhuma possibilidade de resultado.
ventude, convidando-o para as suas festas, mas havia uma - ~u posso adiantar! gritou um rapaz do grupo, ao pôr-
chaga no seu coração. se de pe, No meu entender, é preciso anular as resistências
Formou, à parte, a sua corte, em que os áulícos não se da rainha. Não lhe _convém renunciar voluntariamente ao
misturavam com os da rainha. Extremaram-se dois partidos, mando. Ela já governou muitos anos e jamais desistirá por
em que uns se diziam do rei e outros de Samura-mat. Or- sua e~pontanea vontade. Portanto, temos que abater' o poder
ganizaram-se clubes em que só se admitiam amigos de Adad- da ramha, que é sem dúvida uma grande soberana.
Nirári, e não tardou que nessas reuniões se tramasse o afas- - Por ser grande, aparteou um dos assistentes, não se
tamento da rainha da direção dos públicos neg'ócios. Ini- negue que usurpe o poder ao próprio filho.
ciou-se contra Lécon campanha surda, na qual era envolvida - Argumenta-se contra nós que o rei Adad-Nirâri não
a sua esposa em episódios de ridículo e de calúnia. Alguns atingiu ~inda a maioridade. Nós temos a opor que esta é
adeptos, mais extremados, organizaram-se em sociedade secreta estab.ele.clda pela sua cal?acidade, É uma situação de fato, não
para o concerto de medidas criminosas de caráter extremo. O d; . dlrelt~. O nosso reI está na plenitude do desenvolvimento
próprio Adad-Nirári não era estranho a essa conspiração, cuja f,:slco e 111~electual; as suas qualidades do caráter e coração
chefia estava em mãos de Euxórius, elo que ligava o rei aos sc: o .conhecIdas: Ocorre, ainda, que o trono lhe pertence de
conspiradores. Entre outros fazia parte do agrupamento a dIrelt?, como fIlho e herdeiro do rei batalhador, Chamsi-Adad.
conhecida figura de Savarta. ~ ramha é apenas regente e deverá entregar o cetro ao legí-
_ Eu vos prometo, dizia aos companheiros o valido do tImo dono.
rei, eu vos prometo trazer aqui o próprio rei, se a vossa de- . - Dizei! Dizei! exclamou outro, interrompendo. Sois
dicação o recomendar. Não se pode expor, levianamente, a capazes de abater o poder da rainha?
pessoa do rei a um risco igual ao nosso; mas, no momento Grande silêncio...
oportuno, a sua divina figura nos aparecerá, neste recinto, para - Sabeis, oontinuou, se o novo soberano recebe'rá de
ratificar as nossas deliberações. Ficai, entretanto, bem certos 'bom ânimo qualquer violência. contra sua augusta. mãe?
324 CAMILO CHAVES SEMÍRAMIS 325

Silêncio. " Por fim, surgiu um grito na assistência. poder, ou ele mesmo proclamar-se rei. Corriam na corte boa-
- Achei! Achei! tos, capazes de precipitar um gesto preventivo de Lécon, ao
- Dize, pois! qual se atribuía força para tomar qualquer atitude, pois que
- A fortaleza da rainha reside no esposo, que domina dispunha do exército e contava com a dedicação dos generais.
o exército. É homem bravo e de grande ação. Nada vos Os partidários do jovem rei se tornaram inquietos e ameaça-
adiantará abater a rainha, se tiverdes' pela frente a figura dores, chegando ao conhecimento da rainha a notícia de movi-
máscula de Lécon, que poõe, para si mesmo, empolgar a tiara mentos reivindicatórios em favor do filho. Mandou chamá-lo.
real. Avisada, esperou-o no gabinete de trabalho.
- Sim! gritaram muitos. O grande obstáculo é Lécon., .. . Samura-mat amava ternamente o filho que, sob os seus
Abaixo Lécon! cmdados, recebera esmerada educação. Desde tenra idade se
- Vejo, retomou a palavra o orador antecedente, vejo a~en.tuaram .nele, com a vivaddade intelectual e magnífico porte,
que entramos em terreno prático, enfrentando a situação, em Sl11aIS promIssores de grande personalidade. Sua mãe se com-
,suas causas. Lécon, na verdade" é o verdadeiro escolho que prazia em admirar-lhe o garbo juvenil. Assim, idealizavã. nele
temos pela frente. A rainha é presa ao filho pelos laços afe- a majestade do homem divinizado pela realeza.
tivos de mãe; mas a Lécon, nenhum sentimento dessa ordem No propósito de miriorar-Ihe os atavismos de ferocidade
o prende ao filho de Chamsi-Adad. Portanto, companheiros, guerreira dos reis assírios, foi ele confiado a preceptores, que
se quisermos vencer, temos que remover o grande obstáculo, lhe aprimoraram o intelecto e lhe inculcaram a ética de bem
que é Lécon. Sem ele, a rainha se conformará com tudo; governar. Agora, com seus dezoito anos, cursava o ginásio e
com ele, será irredutível. escolas militares. Exercitava-se, com entusiasmo, na arte de
• lO,.
Euxórius tomou a palavra. esgnmlr e manejar as armas de guerra.
-:- Hoje; amigos. avançamos muito nos nossos 'trabalhos. -Quero jogar melhor à espada que Lécon, dizia ele
De ac'ordo com a realidade, que todos sentimos,conseguimos desde pequeno.
caracterizar o nosso verdadeiro objetivo. Cumpre-nos, agora,
A mãe procuraVââespertar-lhe a emulação.
'meditar profundamente para entrarmos no terreno prático.
Vou, pois, encerrar esta reunião convocando-vos para outra, - Lécon é o primeiro, não somente na esgrima, mas nin-
no mesmo dia e hora da próxima semana. guém o iguala no lançamento de dardo, no montar a cavalo
Temendo que os acontecimentos se precipitassem, Euxórius ou no· dirigir um carro de combate.
procurou ganhar tempo para se comunicar com Adad-Nirâri. - Hei de superá-lo, e serei chamado 'o deus da guerra.
Este iá se encontrava psicologicamente preparado para ir à Ao lembrar-se de tudo isso, Samura-mat contemplou-lhe
revohição ou ao assassínio; mas as conseqüências podiam set' a beleza máscula.
fatais, se esse ato se consuma.sse sem as devidas precauções. - Meu filho, estava com saudades de ti. Tornas-te es-
Sabia o favorito que o rei estava convencido da responsabi 4
quivo e dias se passam sem que te veja.
lidade de Lécon no assassínio do pai. Como justo desafogo - Os preceptores me dão muito tx-abalho e tempo não
aos impulsos de seu amor fili~l e do ódio terrível que lhe do- me sobra.
minava o coração, seria o rei capaz de estrangular o assassino
com suas próprias mãos; mas havia. nisso tudo, grande bar- - .Os amigos, esses te vêem sempre, porque te procuram
não é verdade? '
reira - sua mãe! Nestas considerações fundou-se a inde-
cisão de Euxórius ao adiar os acontecimentos. - Sim, o tempo que me sobra dos estudos eles o tomam.
No cérebro de Adad-Nirári e de seus partidários começou - Estou quase com ciúmes de teus amigos, que me to-
a atuar a suposição de que Lécon viesse, por sua vez, a r;ta.m° filho. Não te esqueças nunca de tua mãe, a criatura
eliminar o herdeiro do trono, para perpetuar a mulher no umca com quem podes contar, .
326 CAMILO CHAVES
SEMÍRAMIS 327
Não posso prescindir das amizades, minha mãe. Ama-
nhã, quando eu governar, eles constituirão a minha corte. Pre- . ...,- En~ão, ~efreia o· exagero dos amigos em fomentar in-
dso tanto deles como do carinho de minha mãe. tngas e cnar sItuações imaginárias entre ti e os que te são
realmente afeiçoados.
- Sim, estou de acordo. Entretanto, constitui objeto de
grande sabedoria a escolha dos amigos. Eles se acercam com Comp~ee~deu o rapaz que devia amenizar a situação.
entusia~mo, principalmente, quando lobrigam na qualidade do . Maezl~ha quenda, recebo com toda a humildade a
benfeitor meios de alcançar fortuna e honras. Alguns são sin- repnmenda, dtsse ele ao abraçá-la e beijá-la. Vou comprar
ceros e fiéis; entretanto, há-os, também, destituídos de pru- uma rolha para .cada um desses criançolas, os meus amigos.
dência e de senso de responsabilidade. Estes são em maior - Faze aSSIm e seremos felizes.
número. Assomou à porta Lécon.
- Quereis, porventura, fazer alusão aos meus compa- - Quero participar desse ambiente de amor e felicidade.
nheiros? Certamente, sobrará para mim um
pouquinho dessas carícias.
- Sim, meu filho, quero aconselhar-te prudência... Há " - Para ti, meu querido, há sempre um abraço e um
amigos que te comprometem. Na sua leviandade, propalam betJo. Toma!
boatos de incompatibilidade e aversões, em que não poupam . Adad-Nirari
. hesitou
. .. . M as, com o exemplo da mãe
tua própria mãe e Lécon, teu grande amigo. Eles pensam, adlantou-~e e de~sitou na face de Lécon um ósculo mecânico'
segundo os seus pendores de infiéis, que pretendemos arre- sem efusao. VelO-lhe à lembrança Chamsi-Adad .'
Q d ' seu pa!. ..
batar-te o trono. Tecem intrigas, articulam revoltas, fundadas - . uero ar-te, Samura, uma notícia, que te vai causar
em falso pressuposto. Pensa bem! Tua mãe, até hoje, tem desvaneclln:~to. -:"-ca?o. de sa?er pelo professor de armas ue
cuidado de guardar-te o trono, que te pertence, para o entregar Ou nios~o retzmho e habtl esgnmista. É o melhor aluno. ~i-
quando tiveres a necessária idade. .O tempo da minha regên- q e tao contente, que eu mesmo estou dispost 'f'
cia eu o tenho aproveitado em aumentar o teu império como . progresso do rapaz. o a ven tcar o
jamais o fez outro rei da Assíria. Tudo para ti, meu filho! "- Contigo, disse o rapaz, não é possível esgrimir se és a
me Ih oI' espada do império... '.
- E Lécon?
Esta pergunta, irrompida do subconsciente do rapaz, veio - "!-s muito ~c:.ço, mas espero chegarás a igualar-me.
Da~-te-et algumas ltçoes. É mister aprimores o teu preparo
revelar a Samura-mat a grande prevenção, que havia contra
a fm1 de te tomares o maior monarca da história d A ' . '
o esposo. Talvez nisso consistisse o eixo de toda aquela tra- Falta' a ssma.
m, ape~a~, tres anos, não é verdade?' Uma vez estejas
ma de intrigas.
no 'trono, .n?s Iremos descansar, minha querida esposa e eu
- Desconfias, porventura, de Lécon? Digo-te que ele . ~ deltclOsa cena de intimidade alegrou o casal; mas Ad~d­
tem qualidades para ser um grande rei. Se fosse um ambi- ~Iran encapsulou-se no mutismo, denunciador da sua contra-
cioso vulgar, já se teria apossado do trono, talo poder que nedade. É que não lhe saía da mente a denúncia de Savarta.
desfruta, como tartan. Nem tu, nem eu lhe poderíamos em- A~uele homem que lhe estava próximo, além de matar-lhe o
bargar a ambição. Analisa-lhe, entretanto, a fidelidade à es- paI, se apossara do coração de sua mãe. Como podiam viver
posa e, sobretudo, a ti, colocado como sentinela do que é teu. sob_ o mesmo teto ele e Lécon? Por mais que considerasse as
És testemunha do carinho dele para contigo, e mais parece razoes ?e sua mãe, não podia perdoar ao assassino.
teu pai, que padrasto. , :,alU daquele encontro com este dilema terrível posto no
- Eu creio em ti, minha mãe. espmto: ?u coonestava o :ríme do padrasto ou vingava a mor-
Esta ambígua resposta velou o verdadeiro sentimento do te do pa!. Tornou-se mtsantropo, parecia enfermar. Debal-
rapaz, como o dissimulado que se mostrou durante o reinado. de os amigos procuravam. des~obrir a causa do mal. Alg-uns,
percebendo-lhe a batalha mtenor, excitavam-lhe a ambição de
328 .CAMILO CRAVES SEMÍRAMIS 329

mando, capacitando-o de uma aptidão prematura. Euxórius, Dizem que é o melhor esgrimista do império. " con-
conhecedor do seu drama íntimo, aconselhava-o a tomar o po- siderou um dos presentes.
der e a vingar a morte dó pai. - Não é certo, disse outro, que uin só possa abatê-lo em
- Não tenho poder para tanto Lécon tem o exército na luta igual, mas vários lograrão.
mão. Perderei a vida se tentar. - Quantos?
- Por, que não matais a Lécon? É a solução. - Dois, talvez, não bastem... obtemperou outro.
Conro hei de fazer? perguntava ele na sua .angústia. - Três! propôs um terceiro.
- Se me autorizais, senhor, eu providenciarei. - Proponho, disse Euxórius, que se escolham seis ho-
- Sim, faze o que quiseres, contanto fique eu livre des- mens valentes para enfrentá-lo. Assim, ele certamente mor-
rerá.
se homem nefasto. Não o posso suportar. Não o posso ver!
Prestais grande honra a esse bravo ... , advertiu al-
Euxórius reuniu os conspiradores.
guém.
- Temos, hoje, assunto grave a resolver, motivo desta Importa que ele morra.
convocação. Conheço a vossa fidelidade ao nosso rei. Sei - Precisamos, pois, de seis homens. QuaiSSétáo eles?
que sois capazes de expor as vossas vidas para lhe assegurar Grande silêncio acolheu a interrogação.
o trono; mas como o caso não permite hesitação torna-se ne- - Contratar sicários é de efeito duvidoso e pode ser des-
cessário novo juramento de lealdade a Adad-Nirari e a mim, coberto. Penso que esses homens devem sair do nosso gru-
como preposto seu. Depois disto declararei a decisão tomada po. Há aqui bravos guerreiros ...
por ele. O silêncio continuou.
- Nós o juramos! Por Marduc! gritaram todos. - Lembrai-vos de que esses seis homens ocuparão os
. - O nosso rei está disposto, ouvi bem! Está disposto grandes postos do futuro reinado.
a tomar o governo e vai dar o golpe. - Então, o primeiro sois vós, nobre Euxórius.
Explodiu em todos os peitos uma grande ovação. - Não fugirei a essa responsabilidade. Ofereço-me ...
- Viva o rei! Viva o rei! Faltam cinco. Quem se oferece?
- É mister, remover um g.rande obstáculo para alcan- Silêncio.
çarmos o nosso intento. O rei já se sente capaz de governar, - Proponho se resolva a dificuldade pela sorte, disse
mas há uina pessoa que desfruta de grande prestígio no exér- Euxórius. Venham os dados! Somos trinta e um ... , me~
cito e se opõe. . . . nos eu, que já me ofereci. Dividiremos os presentes em cin-
- Lécon! Lécon ! Morra Lécon! co grupos de seis pessoas. De cada grupo será escolhido o
- Lécon! Lécon! Morra. Lécon! de maior número. Os dados!
- Já o indicastes... continuou Eux·órius. É preciso li- Assim se fez, e foram sorteados os outros cinco.
quidar Lécon. - Quem nos garante que o rei aprova este procedimen-
Generalizou-se a sentença no brado unânime. to? perguntou um dos sorteados.
-:-' Morte a Lécon! -Tenho-vos dito, respondeu o valido, que o rei não
- É melhor suprimir uma vida que muitas outras. pode expor-se aos azares de uma conspiração. Isto, em pro-
- Morte a Lécon! gritaram. veito .da causa e em nosso proveito. Posso, entre~anto, dar-vos
- Supondes fácil matá-lo? Ele cerca-se de precauções... um S111'1.1. fazendo com que ele apareça neste recmto por pou-
- Morte a Lécon! cos minutos.
- É um bravo lutador e guerreiro... Sente-se algum - Assim estaremos certos de que ele aprova o 110SS(1
de vós com coragem de enfrentá-lp? ~esto
CAMILO CHAVES
SEMÍRAMIS 331
330
Agora, tinha que se haver contra quatro e, para fugir ao
Convoco-vos, então, para amanhã.
cerco, se multiplicava em agilidade, recuando, saltando. Os
Na hora convencionada, estavam todos reunidos. Euxó- ferros retiniam, e os gritos dos combatentes se repetiam em
rius abriu a sessão e anunciou que o rei tinha anuído em apro- ecos, na acústica da sala enorme. Lécon conseguiu tocar ou-
var, com a sua presença, o deliberado na reunião ar:terior. tro adversário, que se contorceu amparando o ventre com as
De fato, Adad-Nirari, acompanhado de pequeno corteJo, pe- mã?s; mas, nele mesmo, em mais de um ponto brotava o sangue
netrou na sala e todos, de pé, gritaram: Viva o rei! e tmha vermelha a roupa. Aumentava a fúria dos assaltantes,
Precipitaram-se muitos a beijar-lhe a mão que ele esten- q~e, como cães enraivecidos, no assédio à presa, procuravam fe-
deu aos presentes. n-Io mortalmente, sem arte nem rodeio. Gotejando sangue per-
_ Nada temais, disse ele, quanto às conseqüências do corriam a sala aos gritos.
vosso gesto. O rei jamais abandonará os seus fiéis s<;:rvido- - Traidores! bradava Lécon. Matar-vos-ei a todos!
res. Entr.etanto, ele sentia-se enfraquecer com a perda de san-
Ficou combinado, tão logo se realizasse o atentado, os con- gue e qUlS, num. supremo esforço, abater outro inimigo, na es-
jurados, munidos de lanças e espadas, saissem à rua e conci- perança de dommar os demais. Ao que se apresentou desco-
tassem o povo à rebelião. berto dirigiu a' ponta da espada, diretamente ao flanco mas
Houve uma pausa na agitação, o que foi atribuído pela foi atingido no peito, não sobre o coração. O sangue brotou
rainha à conversa que mantivera com o filho. Este se mos- da cesura, e ele viu próximo o fim. Dobrou o joelho em ter-
trava mais amável com a mãe e, com Lécon, mais comunicati- ra, sempre a esgrimir, mas os adversários, aproveitando o mo-
vo. Os hábitos de intimidade da família real tornaram-se ob- mento de. fraqueza: vibr~ram-Ihe rep;tidos golpes, sob os quais
jeto de comentários. Diariamente, o tartan deixava os compar- o guerreIro se fOI aqUIetando, aqUIetando, a cabeça apoiada
timentos onde morava e se dirigia a visitar a rainha. na dobra do pedestal do monumento da leoa ferida.
Estava morto Lécon como um soldado, que, afinal, encon-
Vinha despreocupado através dos grandes corredores e
trara o que sempre teve à frente em sua gloriosa vida de lu-
penetrou na sala dos leões, famosa pelos belo~ monumentos de tador.
mármore, a relembrar atitudes características do rei do de-
serto. Percorreu com a vista as· várias posturas dos felinos e
A desordem estava estabelecida no palácio, com ° rumor
d? combate. A guarda chegou a tempo de prender os assas-
notou movimento suspeito, por trás de um dos pedestais de smos sobreviventes, refugiados na câmara de Euxórius. '
mármore, e encaminhou-se para verificar. . Samur~-mat estava tranqüila em seus aposentos, quando
Saiu-lhe ao encontro um guerreiro, de espada em pu- OUVIU o grtto de alarme.
nho. Lécon percebeu a cilada e gritou: - Mataram Lécon!
- Euxórius! ~ ~la, como ;ulminada, sentiu-se sem forças para andar,
Mal teve tempo de desembainhar a espada e tirar a capa. nao dIsse uma so palavra e ficou hirta onde estava.
De outros pedestais dos monumentos surgiram mais cinco ini- Grande multidão se aglomerava na sala, teatro da luta'
migos que arremeteram contra ele. Diante da desproporção empregados no palácio. soldados e mulheres. Foram chegan~
do número, precisava agir com rapidez. Enfrentou Euxó- do, em seguida, os dignitários do governo, vizires, generais,
rius, atirando~lhe a capa ao rosto e, ato contínuo, aproveitandõ mas ninguém tocava nos cadáveres, aguardando a chegada da
a falta de visão, traspassou-o com um golpe de espada. ~r­ rainha.
rancou-Ihe o. escudo e cobriu-se com ele. Os golpes chOViam Esta estava cercada de pessoas amigas, Que a animavam.
sobre a rodela, enquanto ele cutilava por baixo. Um adver- Entre ?S ~ue chegaram, estava o rei Adad-Nirari, que osculou
sário, atingido no ventre, afastou-se, gritando, para tombar sua mae merte. Depois... ele foi contemplar o campo de
batalha.
IQgo adiante.
332 CAMILO CH.AVES

C desforço Samura-mat dirigiu-se, amparada.


om gran e ~ , ando ao é de Lécon, mirou o bra-
!para a sala do.s leoes. b ~eg A espa~a estava bem perto da
vo companheIro ~om a . nenhuma contração. Inva-
~ f" . nomla serena, sem dá
mao ... , lS.lO ., . ela se deixou cair sobre o ca -
diu-a uma ternura mf1ruta, e .~ b" ndo-Ihe a fron-
ver' tomando-lhe a cabeça entre as maos, l'belJa' · Só então a CApfTULO DÉCIMO SEXTO
te 'os olhos semi-abertos, a face, os a lOS ...
li~gua desatou-se-Ihe. o úLTIMO BRAMIDO DA LEOA
, I - !
FOl-se o meu eao,· 'd d Levou
' h toda a sua autor! a e.
Agora, já era a ra:n a em la mesma quis prestar-lhe os
o cadáver para a sua camara, e e r-ao VI'zir que lhe era de- Magnificentíssimos foram os funerais de Lécon. Samu-
. 'd d Chamou o g - ,
derradeIros
, dCUl
t a 'os,
u prOVI. 'dA'
encms, tendo, antes, posto a Ta-mat pôs em ação todo o seu poder e os recursos para que
dIcado e e er:n:no ndou mensagem às coortes para que seu amado fosse honrado e glorificado.
guarda de prontxdao. Ma, d evolta E ficou senhora da
abafassem qualquer tentatlva e r . A trasladação dos despojos para o Panteão foi feita com
situação. . grandiosa solenidade. A rainha, ao pé da carreta, seguia o
Mas a leoa estava fenda de morte, cortejo, constituído do que de mais eminente havia em Babi-
lônia. ' Grande massa popular, condoída do desgosto da sobe- .
rana, a quem amava por seu espírito de justiça, bondade e,
sobretudo, pelo grande amor à sua capital, associou-'se às ho-
menagens fúnebres, dando ao espetáculo uma imponência ja-
mais vista.
Milhares de carpideiras misturavam os ais aos c1angores
das trompas militares e às funéreas sa1modias dos cantores do
templo de Belo. Samura-mat, no estoicismo de sua alma, ace-
rada nas vicissitudes superlativas da vida, assistia impassível
ao triste espetáculo. Enquanto se recolhia ao monumento o
cadáver do seu grande amigo, parecia isenta de dor e senti-
mento, como uma estátua, ensimesmada na genial postura em
que foi cinzelada.
Mais tarde, um monumento de grandes proporções, exe-
cutado por artistas fenícios, veio imortalizar as figuras do amo-
roso casal, ela, representada pela sua dor; ele, celebrado como
guerreiro e, estadista sem par. Assim dizia o epitáfio: "Pára,
transeunte! pensa na glória que aqui jaz. Lécon, o guerreiro in-
vencível, foi o construtor do império de Samura-mat, inconso-
Iável por havê-Ia perdido."
Entrementes, a justiça do reino, pelas figuras mais COO~
ceituadas, procedia à feitura do processo sobre a: morte do
genera1.
334 GAMILO CRAVES
SEMfRAMI5 335
No momento do atentado, foram presos os dois sobrevi-
ventes do mortífero combate. A guarda do paládo intercep- - Quem é, Uakim? perguntou-lhe a rainha.
tou-os, quando tentavam fugir. Feridos, deixaram-se agar- Chama-se ~avarta. e se diz de nacionalidade hindu.
rar aqueles que primeiro chegaram ao compartimento onde - Vamos, poIS, OUVI-lo.
se ocultavam: Submetidos a interrogatório nada acrescenta- . hNo dia seguinte, Savarta foi conduzido à presença da
ram ao que toda gente sabia, mas a tortura obrigou-os a falar. ramf a. Chegou magro, andrajoso, mal arrastando as cadeias
Assim, surgiram os nomes dos cúmplices, cujo número exce- d e erro.
dia às previsões. Ficou evidente que a conspiração fora mui- - Salve, ~ereníssima rainha! disse ele, prostrando-se.
to importante, pela expressão das figuras nela envolvidas. na - Quem es tu?
maioria jovens da grande sociedade. Samura-mat que, de - Sou um pobre diabo em vésperas de encerrar os seus
outra feita, fora misericordiosa para com os seus agressores, infortúnios. Sou conhecido 'pelo nome de Savarta.
mostrava-se severa com os juízes, encarregados da instrução - És hindu?
do processo, exigindo-lhes diligências e rigor. Centenas de - Sou e não sou.
pessoas comprometidas foram presas e encarceradas, a despei- - Que queres dizer?
to de sua categoria social. Ficou apurado que a agressão era - Quero fazer-vos uma revelação, senhora, antes de ser
o princípio de um movimento mais vasto, abortado com a re- pendurado no poste. .
pressão violenta dos distúrbios irrotnpidos, em .coincidência - Vejo que és um cínico.
com a morte de' Lécon. Apurou-se que a finalidade precípua - Não sou bem isso, senhora. Sou um homem infelici-
da insurreição seria elevar ao trono o rei Adad-Nirari. Não tado pelo sofrimento. Dentro em
melhor ... pouco me qualificareis
ficou, entretanto, provada a conivência dele. talvez porque
não conviesse à justiça comprovar a responsabilidade do futuro - Tens cúmplices a denunciar?
monarca. t . Eu não queria começar por ~í, mas, como mepergun-
Tornou-se suspeita a situação do jovem rei, e, sentindo- aIS, vou ;esponder-vos. Tenho um apenas. '
se ele constrangido, ficou silencioso e arredio. É que estava DIze o nome dele.
mal com todos: com o governo pela suspeição que pesava so- - O rei Adad-Nirari.
bre ele; com os seus partidários, porque não lhes podia prestar .. SaI~ura~mat empalideceu e silenciou por algum tempo. O
o auxílio prometido. Nada podia fazer, em vista da vigilân- pnslOnelro VIU que a estocada ferira fundo e aguardou o efeito~
cia em torno dele; assim se resignava a assistir ao sacrifício r ' 1- ~or que o.acusas agora, se niriguém quis responsabi-
dos seus amigos e partidários. Era um rei sem palavra, que Iza- o pe o acontecIdo? Nem tu mesmo o fizeste
na primeira atitude ficara desmoralizado. Procedi c,o;n0 os outros, na esperança de ~ue ele vies-
O processo teve como desfecho a condenação de oitenta se em nosso auxllto, s~gundo sua promessa, quando concerta-'
conjurados à forca. A rainha confirmou a sentença. mos o· atentado. Inf:hz~ente. ele é COmo todos: um traidQr.
Começaram os preparativos para a execução. N a praça ' - Sabes se algu:m mduzlu o rei a tomar atitude contra
L econ ou contra a ramha?
em frente ao palácio real elevavam-se oitenta patíbulos que, - Eu.
silenciosa!11ente, aguardavam os condenados; e Babilônia, em - Tu?.. Explica-te!
peso, se preparava para assistir ao espetáculo.
Fiz-lhe ver qu.e Lécon preparava um golp(' para se
Nesse ínterim, chegou à rainha o pedido de audiência de apossar do trono, depoIS de matar o legítimo herdeiro.
um dos condenados, que prometia fazer revelações. O grão- - Quem te ~present?u ao rei? indagou ela.
vizir em pessoa levou o pedido, na esperança de novidades im- - Meu fal~cldo amIgo Euxórius. Isto se deu há aI-
portantes. ?um tempo, e taIs foram meus argumentos que ele se atirou
a aventura.
CAMILO C:a.AVES SEMÍRAMIS 337
336

_ Por que induziste meu filho contra Lécon? precauções e, na noite· seguinte, conseguiu sair da cidade. Es-
condia-se durante o dia e marchava à noite. Subiu as monta-
- Para vingar-me. nhas da Média, onde foi acolhido por um pegureiro. Dali
_ Recebestes agravos de Lécon? partiu para a índia, onde se fez domador de serpentes, ado-
_ A mais negra traição. tando o nome que pertencia ao seu falecido mestre. Voltando a
_ Por vingança vens denunciar o rei? Babilônia, adquiriu conhecimentos que lhe deram ensejo ao
_ Sim, para vingar-me da sua traição aos companhei- ajuste de contas.
ros e para ferir outra pessoa. - Já sei, Seminaras, tomaste vingança do comandante da
- Quem? guarda e, agora, queres vingar-te da rainha e de seu filho ..•
- Vós, poderosa senhora. - Compreendeis, senhora, a justiça do meu proceder ...
Eu era jovem, entusiasta, dotado de nobre ambição de pro-
- Eu? por que? .
_ Vou reavivar-vos a lembrança com uma pequena hIS- gredir na vida. Perdi o meu futuro e caí na desgraça e na
tória. Havia um rei e uma rainha em uma capital distante. miséria para o resto dos meus dias.
Ele era bravo, autoritário e bárbaro; da, linda, boa e genero- - Reconheço-te o j.usto ressentimento contra teus perse-
sa. A rainha morava em seu palácio, com sua corte e sua guidores. As terríveis circunstâncias daquela ocasião Ieva-
guarda, na qual se engajavam rapazes garb~sos ~ ?evotados a r:'lm-me a cometer grandes erros, dos quais, h<)je, me peniten-
ela. O comandante da guarda era-lhe multo alelçoado, e a ClO. Entretanto, contra mim já não poderás proceder, porque,
maledicência atribuía a ambos ilícita relações. Mas a guard~ breve, estarás pendurado na forca.
não acreditava nessas intrigas, principalmente um jovem oft- - Estais enganada, poderosa senhora! A minha vin-
cial que, animado pelo comandante, organizara um. grupo de gança não falhará.
jovens destemidos, presos por juramento, com ,o ~lm ?e de- -Esm hem vingado~com a morte de Lécon. Atffigiste
fender a vida da rainha, ainda que contra o propno reI. Este mais a mim do que a ele.
costumava visitá-la amiúde, porque a amava. en~ranhadamen­ _. Não basta. Armei o braço de alguém, que vos é muito
te. Tendo-lhe chegado ao conhecimento as mtngas. sobre as ca;o, para vingar-me. Eu poderei morrer, mas ele fará por
relações da rainha com o comandante da guarda, ~elo ele, en- num.
óumado e enfurecido, procurá-la para tom~r vmgança.. O - Que lhe disseste? perguntou Samura-mat, pálida e
comandante avisou o grupo dedicado, do pengo que corna a aflita.
rainha. Um jovem oficial, por nome S~minaras: e seus com- - Disse-lhe que Lécon e a rainha· foram os assassinos
panheiros, acudindo, encontraram o reI em atItude ameaça- do pai dele.
.dora contra sua esposa. Reagindo ele, a pequena força ;Ieu- - Ah! exclamou ela, levando a mão ao coração.
lhe morte, ali mesmo. Logo após, os libertadores se.VIram -- Ele jamais poderá ;perdoar-vos, senhora.
cercados e foram massacrados como rev.oltosos. Semmaras, -- Lembra-te de que eu posso perdoar-te.
aproveitando a confusão do n;omento, es~uelrou-se por ?ma por- - Não temo a forca e parto deste mundo bem certo
ta particular da rainha e, de camara em camara, conse.guIU ganhar de que vosso filho fará justiça por mim.
o corredor, que o levou à porta. de saída, sem .ser mcomodado. - Retira-te, então.
Procurou a sua habitação, despIU a farda ~ dlsf~rç<:u-se para
fugir. Perqmneceuna cidade dur~nte anOlte e mtelrou~se do
°
Deu ordem aos guardas para que conduzissem preso ao
cárcere. Com o olhar triste ela acompanhou o tinido das ca-
noticiário que atribuía aos amotmados a morte do. re~ e a deias do condenado, que, ao transpor a porta, gargalhou uma
morte deles pelos guardas fiéis. sob as ordens do T'rorno co-
última ironia. Isto lhe repercutiu, dolorosamente, no cérebro.
mandante. Contava a fuga do chefe dos revoltosos, em
Ela retirou-se para os seus aposentos, e chorou.
cujo encalço estavam as autoridades. Seminaras redobrou as
338 CAMILO CHAVES
SEMÍRAMIS 339

No dia seguinte, recebeu Uakim, o grão-vizir a quem ha- e~ses homens s~ bateram por um objetivo que, mais tarde, te-
VIa mandado chamar.
na a sua reahzação natural. Cometeram uma loucura mi-
nha mãe. Querem ver-me no trono... Portanto, a s;nten-
- Acabo de ouvir em audiência o preso Savarta, conde-
ça ?e morte para esses oitenta conspiradores representa um
nado à forca. De todos os implicados na morte de Lécon, é castIgo aos amigos e partidários do rei, teu filho. Não te pa-
o único que tinha motivo pessoal de vingança, pois dele re- rece que este estado de coisas coloca muito mal o futuro mo-
cebeu, em outros tempos, um agravo mortal. Ouvi-o aten- narca? Depois de muito ponderar, resolvi pedir-te mãe uma
tamente, e estou convencida de que devo indultá-lo. Só a solução branda para o caso. Os homens foram ~onde~ados
ele. Os outros procederam sem razão, devem morrer. seus bens confiscados e esperam a execução' da sentença d~
- Senhora, disse Uakim, muito nobre é o vosso gesto de morte. Um ato de clemência da rainha, no último momento
demência, uma vez que se funda em boas razões. Pode-se perdoando-lhes, ,viria elevar, ainda mais, a admiração de qu~
divulgar o agravo por ele recebido? ela goza no selO do povo. Isto a colocaria bem a ela e a
- Não. É coisa íntima, que não deve ser conhecida nem seu filho. '
comentada. - ,Meu filho, vens propor-me uma indignidade, que
- No meu entender, não é recomendável que o indulto eu .jamaIS cometerei. Esses criminosos mataram meu esposo,
seja puro e simples, pelo odioso da exceção, num crime coleti- deltberadamente, e queres que eu lhes perdoe? Mil vidas ti-
vo em que as circunstâncias São idênticas ... vessem eles, poucas seriam para reparar a mágoa e o dano
- Não quero que esse homem morra. que me causaram.
- Eu aconselharia à vossa generosi rlade que mandasse sol- Samura-mat caiu em pranto.
tá-lo, e fosse da.do como morto. - Considera, minha mãe, que esses homens se sacrifica,-
- Ficais encarregado de providenciar nesse sentido. Que raro pelo seu rei e reclamam a minha proteção. Ficarei de-
esse homem desapareça para sempre! sautorado se não puder salvá-los.
No dia seguinte, o rei Adad-Nirari procurou a rainha, sua - A verdade é que tu os incitaste ao crime, com a plro-
mãe. Esta o recebeu nos seus aposentos particulares, a fim messa de recompensa e irresponsabilidade.
de conversarem mais à vontade. Chegou ele prazenteiro e os- - Quereis, porventura, responsabilizar-me por esses
culou sua mãe, como de costume. acontecimentos? Nenhum dos acusados ousou envolver o meu
- Querida mãezinha, vim ver-te, porque aumentaram as nome, a despeito das torturas que lhes foram aplicadas.'
saudades. - Dei ordem para que se não fizesse diligência sobre a
Samura':mat olhou-o com tristeza. tua participação no crime. 05 presos não foram inquiridos
- Já sei que pretendes algo ... , disse ela, num sorriso sobre este ponto. Não é, porém, preciso muita argúcia para.
triste. Nos encontros familiares verEam-se todos os assun- se ver a. mão que empurrou os criminosos para. o assassínio e
tos, uma vez dispensáveis a etiqueta e as convenções. Dize para a sublevação. Euxórius era o teu valido, e ele não so-
logo o que desejas... . mente chefiava o bando de conspiradores, como encabeçou os
- Eu quero abrir-me c?m minha mãe, ,a. única pe~soa c~­ sicários na agressão.
paz de compreender-me e VIr em meu auxIlto. . A mmha SI- - Fez tudo à minha revelia.
tuação, em referência aos últimos acontecimentos, é deveras - Estou mais inf~mnada do que pensas .. , Depois de
incômoda e falsa. Estou diante de criminosos, sujeitos à pu- escalados os executores do plano sinistro, tu compareceste pes-
nição da lei; mas, bem considerado, a razão que os levou ao soalmente, a animá-los com promessas. Aqui estás, agora, no
crime é o amor que votam ao seu rei. Esperavam que, bem cumprimento do ·prometido, a interceder peios condenados.
sucedidos, seriam galardoados e exaltados. Co.mo adversa lhes - Não é verdade!
foi a sorte, invocam o sacrifício feito pelo rei. Na verdade,
CAMILO CHAVES SEMfRAMIS

_ Um dos condenados esteve 01\tem comigo e contou-me ra de todo o ser. Os áulicos lhe tinham explorado essa fra-
haver ele mesmo feito a ti a revelação de que Lécon e eu fomos queza do coração, e não podia compreender nada que não fos-
os autores da morte de Chamsi-Adad. se o seu eu.
- Savarta! Ele esteve aqui? - Espero, minha mãe, não ireis divulgar que não sou
_ Sim, .contou-me tudo. filho de Chamsi-Adad ... ·
Adacl-Nirari estava preso num círculo de ferro. Não. - É úm segredo que ele e eu guardamos, em· teu bene-
mais era possível dissimular. fício.
- Vinguei a mOrte ~ meu pai. ~ Perante o meu povo eu serei sempre o filho de Cham-
_ Ele não era o teu pai. Teu pai era Lécon. si-Adad. .
- Lécon, meu :pai!? . ~ Por que te repugna a paternidade de Lécon? Acaso
- Vê o que fizeste! Mataste teu pai. julgas ser e1einferior a Chamsi-Adad? Estás enga.nado. Ele
Acometeu-a um ácesso de choro, que deixou em suspen- era um coração generoso a serviço de uma alma de guerreiro
so aquéla situação extrema. Adad-Nirari empalideceu e foi destemido, ao passo que o rei era um déspota desumano, que
tomado de violento tremor. Chocavam-se-Ihe os dentes ... se permitia as mais torpes ações. Era um malvado com uma
Enxugando as lágrimas, Samura~mat mal pôde retomar a tiara n~ cabeça.
palavra. - Entretanto, Lécon foi o infame, roubando-lhe a mu-
-:. Ouve, meu filho... Não notavas o amor entranhado lher e a vida ...
que Lécon te votava ? Colmava-te de mimos e carícias. Acom- - Com isto atiras o labéu de infame, também, a tua
panhou-te na meninice com o máximo interes~e; a tua juv~~­ mãe. l1s muito moço e não sabes avaliar as grandes razões
tude e a tua educação fm-am para ele motIvo de eSpeCiaIS do coração humano. Eu me julgo vítima de Chamsi-Adad,
cuidados, porque queria fazer-te o. mais poderoso e sábio sobe- que com o seu despotismo me requisitou para sua mulher,
rano do mundo.. Colaborou comigo na edificação do maior mandando matar meu marido. O destino arrastou-me por um
império da terra para entregá-lo a ti. Se ele quisesse,pode- caminho tortuoso que me afastou dos rumos direitos da vida.
ria ser o rei. . . Ele era digno de ser rei, embora o fosse de O meu primeiro e único amor foi Lécon. Ninguém, no mun-
fato. Faltava-lhe, apenas, o título ... do, seria capaz de arrabatar-me, e, por éle eu desprezaria todas
Interrompeu-a novo acesso de choro. as honras e perigos. Ninguém me parecia mais belo, bravo, ge-
-:- Em teu· nome, continuou ela, governei durante a tua neroso e amoráve1.
minoridade, para que tudo te fosse entregue a s~u te:u po . - Já o conhecias antes de ser de comandante de guarda?
Preferiste seguir os aventureiros e insensatos que te mduzIram - Vou contar-te, meu filho. Era eu moçoila, no oásis
a matar teu pai. Se bem sucedido o golpe, a rainha, também, dos Pereg-rinos, na Síria. Meu pai era pegureiro, e eu, sim-
seria ;punida com a morte... Vê, meu filho, os teus erros! ples pastora, feliz no trat5 dos rebanhos. Certo dia, quando
E queres perdão para esses homens? pastorava as minhas ovelhas, passou por mim uma comitiva
- Fui um néscio, minha mãe! de guerra, e, ao defrontar-me, garboso jovem, dirigindo o
__ Tu és criminoso como eles. Se eu aplicasse a im- seu carro, estalou o chicote para mim, como a dar-me um sinal.
placável justiça dos reis assírios, certamente serias pendurado Os guerreiros iam à caça e, logo adiante, soltaram as mati-
na forca. Bem sabes que um rei assírio não conhecia a pala- lhas. Não tardou, empenharam-se em luta com os leões, que
vra perdão ... incursionavam na região. Lécon abateu um casal de feras,
Adad-Nirari se 'chocara profundamente com as revela- que lhe sacrificaram os cavalos e o condutor. Voltava de,
ções da mãe. Na alma turbilhonavam os. mais contraditórios sozinho, em direção à comitiva e notou que os leões me assal-
sentimentos. O orgulho, apesar da pouca Idade se lhe apossa- tavam o rebanho. A con fusão era enorme, e eu, como louca,
342 SEMfRAMIS 343

oorri para ele, pedindo socorro. O leão nos viu e nos veio - Chamsi-Adad, formado na escola inexorável de seu pai
ao encontro. Librou no ar, em salto desmedido, mas Lécon Salmanazar e de seus avós, esgotou a vitalidade do povo as-
introduziu-lhe o dardo na boca escancarada. O felino deu em sírio, pela continuidade das guerras de conquista. Por esse
terra e ricocheteou para o alto, caindo a tremer, como se processo, jamais conseguiu dilatar as fronteiras.. Os venci-
quisesse vomitar a arma. Este .foi. o n~s:o primeiro encon- dos de hoje eram os revoltosos de amanhã. Lécon e eu tor-
tro, e desde então eu lhe pertencla. lnCOndlClOnalmente. t~m~s namos o exército muito mais poderoso que então. Após as
casar, quando o general Oanês, aproveitando-se da ausencI~ guerras dos primeiros tempos, às quais fomos arrastados, rea-
de Lécon, pôs sobre mim o seu olhar de déspota e eu prefe:l lizamos, pacificamente, o que nenhum conquistador assírio al~
ser esposa a ir para o seu harém. Nã? tardou q~e Chamsl- cançou. Os limites do império abrangem os territ6rios entre
Adad me reqüestasse para rainha,. depOls de assa~smar o seu o Indo e o Nilo. Não derramamos sangue, não destruimos
velho general. Rainha reencontrei o meu .:sc~lhldo, e, devo povos; ao contrário: nossos vassalos espontâneos estão conten-
confessar-te, não sinto remorsos na consclencla. pelos acon- tes conosco e nos colmam'o tesouro de contribuições. Isto me
tecimentos que culminaram na morte de Chamsl-.Adad. Eu, possibilitol;l reedificar uma Babilônia, cuja fama há de per-
de fato e de coração, pertencia a Lécon, e ele a mlm.._ Eu t:- durar através das idades.
ria superado todos os óbices para realizar a nossa umao. Nao - Eu admiro, minha mãe, a glória decorrente dos atos
há lei, não há· convenções, não há perigos que .detenham a da guerra. Na paz não há glória. Por isso me extasio diante
atração irresistível de duas almas que verdadeiramente. ~e da glória guerreira de Chamsi-Adad.
buscam. Ele foi o meu talismã e a minha fortuna, n.? ~ngJr - Ouve, então: não conseguirás conservar a herança que
este grande império que vais herdar. A sua competen;la, a te preparamos, Lécon e eu.
sua fidelidade, os seus conselhos foram a grande razao do - Voltarei para Nínive, capital da. pátria dos assírios I
meu· êxito. .. - Meu pobre filho, como te lamento!... Quão balda-
_ O. sigilo guardado por vós ~utros sobre a minha fJha- dos foram os meus esforços por dar-te uma índole generosa
ção mostra que, para todos os efeitos, devo ser considerado e compreensiva I Quis faZer de ti um rei sábio, e saíste um
filho de Chamsi-Adad. . ' truculento. .
_ É uma questão que deve ser resolvida. por tI. r,a - Já vi, minha mãe, que não nos entendemos. Aguardo
ocasião do teu nascimento, se divulgada a :patermdade. de Le- o dia em que tenha de assumir as rédeas do governo e, então, o
con, novos rumos seriam dados aos destmos. do pais. ~or mundo sentirá o poder de minha vontade.
isso, guardamos segredo, mesmo de ti. Se qU1~eres ser ~llho - Aviso-te de que não repitas a tentativa de te aposSa-
d Chamsi-Adad serás rei. Se quiseres ser fllho de Lecon, res do governo. Não consentirei desordens, e tenho força
s:rás rei, també~, porque eu te garantirei. De qualquer for- para reprimir qualquer insurreição. Aguarda com paciência
ma, serás rei. o teu dia e prepara-te. Então, farás o que quiseres.
_ Eu prefiro ser filho de Chamsi-Adad: .. Adad-Nirari retirou-se arrebatadamente. Samura-mat
._ Não te gabo o gosto. Renegas a linhagem de um sofreu um dos mais demolidores golpes em suas esperanças e
grande homem, como Lécon, para adotares a de um mOl:arca . ilusões. A sua noite foi regada por lágrimas de desespero.
. , . e t'lrano. Sangue deste não tens' eu te afJrmo. Se a morte de Lécon lhe alanceou o coração, o desentendi-
sangumano mento com o filho tornou-a perplexa. Invadiu-a a tristeza
Que lhe não adotes as más qualidades!... .
e a apatia fê-Ia desinteressar-se dos públicos negócios. A ad-
_ Chamas de tirano e sanguinário um grande rei que ~e ministração ficou ao alvitre exclusivo dos vizires, cujos ins-
distinguiu pela bravura e pela energ~a indo~ável no de~trUlr tintos politiqueiros entraram em ebulição. Uakim, o grão-
os inul1igos da sua pátria. Eu o admiro por ISSO e o. conSidero vizir, o fiel servidor da rainha, procurava fiscalizar os atos go-
muito maior que Lécon. vernamentais, mas en·contrava a má vontade dos companhei-
CAMILO CHAVES SEMfRAMIS

ros, dosos de suas prerrogativas. Procuravam incompatibi- tod()s os ~stímulos. Por vezes, abjurava as concepções ele-
lizar o grão-vizir com a soberana, a fim de poderem proceder vada~dà vida, crente na inutilidade dos postulados ,de progres-
à vontade, nesse fim de regime. so humano. Preferia o rudimentarismo dos brlltos, pouco
O único interesse demonstrado pela rainha foi o da exe- sensíveis aos. toques do infortúnio.
cução da pena de morte contra os conspiradores e assassinos . Lembrava-se dos dias distantes do Egito e do mistério
de Lécon. Ela mesma quis presenciar o espetácído e mandou indev~sável das pirâmides, onde o passado dormia no silên-
armar o seu trono em frente ao palácio, .Na enorme praça cio das r.ochas. O enigma devorador da Esfinge lhe alabara-
fronteira, destinada à parada das grandes aglomerações mili- va a alma com o fogo da dúvida e das :ânsias de penetrar o
tares, elevavam-se as forcas. Grandes filas de soldados fo- incognoscíve1. Que lhe valera a iniciação, se esbarrava, nos
ram postas no correr das laterais da praça. O povo ficava ~ecretos inflexiveis do destino? Prometeram-Uw umá inves-
no centro, quase próximo aos patíbulos, alinhados, espetrais. tidura quase messiânica, para astiblimação do s~ntimento hu-
Samura-mat ocupou o seu trono sem uma palàvra, sem um !Dano pela elevação das mentes ao páramo das causas e, no
gesto. Tal era o silêncio, que o desfile se encaminhava para fim da sua jornada,' contemplava os destroços de umà' ool;1s·
o ponto central sem uma voz, sem· estrépito, à não ser o re- trução sem base... O destino!... Ele, no aceno derris6rio
tinir do ferro das cadeias dos condenados ... de uma felicidade apenas libada, se COmpraz em arrebatar o
O arauto real IeUj a sentença e os nomes dos sentenciados. cálice do líquido capitoso da vida. Procede com as criaturas,
Oitenta carrascos, cada um ao pé de um patíbulo, iam colo- como o tutor severo, no querer arrancar à criança uma gulo-
cando a corda, a um pescoço, depois de vestir a vítima com seima, em troça de mimos, que não lhe interessam. Ela al-
longa túnica branca. A maioria dos condenados se portava .cançara a glória, a fortllna, a realeza e o companheiro, 'mas,
com mais ou menos coragem; mas alguns desfaleciam, provo- , em vez de lhe ser deixado este" onde residia a sua razão de
cando blasfêmias aos executores, obrigados a arrastá-los até viver, levando-O, deixaram-lhe o desengano na inutilidade, das
o ponto onde seriam levantados. A um sinal, as cordas cor- demais conquistas. Sim, daria tudo em troca do seu complê-
reram nos carretéis, erguendo os corpos a espernear. Uma das mento eterno, buscado, encontrado, perdido...
forcas permanecia vaga, e o arauto' real anunciou que o con- Nesses íntimos arrazoados ouvia a argüição de uma voz
denado Savarta havia morrido no cárcere. julgadora, que a deixava perplexa. '
A multidão assistia silenciosa. - Exageras as recriminações... Se atentares bem, és
Samura-mat retirou-se e foi chorar no seu palácio, na tu a culpada de todo o teu infortúnio. Tiveste um inicio pro-
outra margem do Eufrates. missor -e uma grande missão, a de humanizar povos embrute-
Durante uma semana os cadáveres levantados empestaram cidos, insensíveis aos sentimentos redentores da bondade e da
os ares de Babilônia com a sua p~ridão para escarmento dos mútua cooperação. O Altíssimo, na sua providência pater~
revoltosos. nal, manda aos homens, a espaços, um missionário; que lhes
Começou para ela a agonia de sua imensa dor; nada a con- dê, pelo exemplo, incentivos de ,aperfeiçoamento moral. Tu
fortava, nem a morte dos assassinos... Veríficava que na foste enviada a povos. que só conheciam os métodos da força
vingança não havia consolaçz.o e sentia a inutilidade de toda e da crueldade. A brandura, somente por uma mulher podia
a sua obra de grandeza humana. Perdera em um momento processar-se; .uma rainha, que fosse bela para encantar e boa
os incentivos da glória e da ambição. Quisera retornar ao para enternecer. O preço da tua missão era a renúncia às
simplismo dos dias de moça quando não havia ainda provado preferências afetivas, começada com o sacrifício do teu gran-
o travo da amargura e do desengano. Ouvira fatar no futuro de amor. Eras o encanto dos vassalos, que confundiam a
glorioso que a esperava: na consagração dos séculos, mas. ao harmonia das formas com a' bondade da alma. Colocada em
contemplar a obra realizada, via quão efêmera e ilusória fora. frente à tentação, não quiseste persistir no preço redentor da
A sua ventura era o companheiro adorado, que levara consigo tua missão - a renúncia. Preferiste alcançar a felicidade.
346 CAMILO CHAVES
347

por um ato criminoso, sacrificando as mansas normas da hones- - ú Deus, senhor dos mundos e das criaturas tira-me a
vida e o ser, que desespero!... . ,
tidade, com a impunidade do poder e da onipotência. Teu
companheiro foi justiçado em virtude do 'Seu próprio cri- . . Coragem! retorquiu-lhe a voz interior. Impossí';e1 é o
me. És uma iniciada e conheces o mistério da vida e da mor- amqullamento. Tens uma grande trajetória a percorrer ...
te. .. Ademais, lembra-te de que não extirpaste o sacrifício Um~,w
dia serás mais eficiente e cumprirás"com
.mérito
l I nO"a'"V 0.11

mlssoes... . .
humano nos ritos de Baal... O sacrifício humano constitui
uma das mais broncas manifestações do atraso moral. Tua Os áulicosviam, alarmados, que a saúde da rainha se
missão foi de humanizar os homens e os deuses. Podias fa- ar~inav~. . Conc:,ntrada numa ind~ferença inquietante, os ne-
zê-Io, tal a força... Preferiste, com a tolerância criminosa goclospubhcos nao lhe despertavam interesse. Perdera aque-
adquirir a boa vontade dos sacerdotes. ' 1~ ativida?e vivaz q~e. a tudo dava uma nota pessoal e que tra·
- Ai de mim! exclamou Samura-mat. Que me to- 21a submiSSOS os mlntstros e quem com ela tratava.
cará ?. . . Acuso-me no altar da minha consciência... Pe- Os ministros sentiam-se, agora, à vontade para deIibe-
quei ! Pequei! ~r segundo .os seus caprichos, porque contavam com a passi-
A voz continuou, severa. VIdade da ramha. O grã()-vizir Uakim, o único que procedia
- E a 1ndia? A invasão da índia? Foste ouvir a pa- com leal~a:Ie, defendendo-Ih~ o prestígio, era hostilizado pelos
lavrado Altíssimo no seu trono pétreo... Desobedeceste e outros VlZlres, quando a ramha era convocada a deriroir os
tiveste na derrot::t a expiação do teu crime ... con.flitos. Por vezes ela despertava da apatia e fazia sentir a
- Foram os generais que me impuseram a guerra contra sua personalidade, e" nestas ocasiões, o fiel Uakim levava a
a minha vontade. Eles e os ministros ... melhor, porque era eI: que estava certo. Seu próprio filho,
- Mas a responsabilidade é tua... Enfim, és uma ini- por quem sempre se l?teressara,. sofria a sua indiferença, e
ciada e podias ter dado um grande passo no sentido do pro- ~le, por sua vez, sentmdo o abismo que os separava, vivia
gresso moral humano. Mas falhaste, em parte. a parte.
- Falhei! Falhei, meu Deus! Vem ajudar-me! Perdera Adad-Niràri a nata de seus partidários, enforéa-
A voz continuou. dos por motivo da conspiração contra Lécon, mas outros am-
- Por mais que não o queira o orgulho dos reis, impende- biciosos e despeitados se lhe acercaram, encontrando-o já mal
lhes grande responsabilidade perante o futuro... Todavia, disposto contra a mãe. A medida que evo1udonava para a
Assíria, .Babilônia e os inúmeros povos. que te obedecem pouco virilidade, o· jovem rei adquiria tendências despótíca,s. Jul-
progrediram moralmente... O teu reinado devia ser um gava-se espoliado nos seus direitos, e, para ele, sua mãe era
marco decisivo de evolução humana, porém mal será lembra- uma usurpadora. Cercado de uma juventude, inexperiente como
do no correr dos milênios, à guisa de lenda ... ele, de sacerdotes despeitados e de aventureiros, fazia revi-
ver-lhe no espírito as reivindicações da nacionalidade assíria,
Samura-mat vertia abundantes lágrimas. Sentia o peso desprestigiada pelo esplendor incomparável de Babilônia. En-
da argüição terrível. Via, agora, quão efêmero fora o seu
cabeçava ele a campanha de retorno a Nínive e queria que a
reinado. soberania da Assíria, sobre o resto do mundo, fosse única e
- Estou :perdida! Falhei como rainha, como mulher!. .. indisputada. '
Fui conivente com Lécon no assassínio do meu esposo.;. N ~s conciliábulos, onde se debatiam, com irritação, os
Perdoa-me, ó Deus onipotente! acontecimentos e perspectivas, começou a surgir a hipótese do
A voi íntima respondeu-lhe, inexorável. afastamento da rainha para que o rei assumisse o poder. Fi-
- O perdão é uma conquista tua, porque a justiça é in- guravam-se situações, discutiam-se planos, que quase sempre
flexível. Terás que sofrer as conseqüências de tuas faltas... esbarravam em 1}ma poderosa verdade: a rainha· era queridís-
Será a tua expiação. sima dos babilônios e contava com a fidelidade do exército,
CAMIL.0 CHAVES SEMÍRAMIS 349

-.:.. Afinal de contas, não temos meios para dominar a si- A sorte determinou os três emissários, e estes se apre-
tuação, dizia um deles. Esbarramos sempt~ numa muralha sentaram ao rei.
invencível. Não há muito, vimos companheiros balançar na - Senhor nosso muito querido, nós, os vossos servos sub-
forca •.. missos, nos preocupamos com vossa ascensão ao trono do
- Há um meio umco, insinuou outro. mundo. Ansiamos por ver-vos à frente deste império
- Qual? imenso, que vos pertence por heninçét e direito divino. Se
- Não sei se deva dizer... Não me atrevo. nos permitis, expor-vos-emos as sugestões dos vossos dedica-
- Fala. EStamos conversando ... dos servidores, dispostos a dar a vida por vós, ó filho de
- O meio único de abreviar a subida do rei Adad-Ni- Marduc.
rari é sacrificar a rainha. - Falai.
, Mal se atrevera a lançar a idéia, que estava no íntimo de
cada um, já outro companheiro quis precisar ~. sugestão. - Considerando as vanas hipóteses de uma ação decisi-
~ Quereis dizer que se deve matar a rallma.?
va e proveitosa, chegamos à conclusão de que é muito proble-
- Achais outro meio? Estou. apenas. considerando a mático o golpe que destitua a vossa mãe do poder. Neste
verdadeira situação. tt provável qeu o rei não aprove a vio- pressuposto, nos detemos diante de uma única possibilidade _
lência contra sua mãe. . . Portanto, não insisto no assunto. a de se eliminar a rainha. Como está em jogo a felicidade do
- t t preciso que o r~i saiba dest.as po?derações. porque império e a vossa elevação ao trono, nada podemos fazer sem
está em jogo a sorte do remo e a sua mvesttdura real. ouvir a vossa palavra. Nenhum dos vossos amigos se atre-
- Como se poderia urdir a trama? perguntou um dos veria a proceder contra vossa augusta genitora. O meio in-
presentes. dicado seria o emprego de um sicário. Queremos ouvir a
- O meio único é o atentado. . vossa palavra de ordem, senhor, porque nada faremos sem a
vossa aquiescência.
- Quem seria capaz de ferir a rainha?
- Eu não o farei.,. tt uma mulher. - Fizestes bem em vir consultar-me, disse o rei. Não vos
- Nen'I· eu, disse outro. Seria um crime, que sempre me levo a mal pelas conclusões a que chegastes, porque se justifi-
seria argüido, em meu desfàvor. '." -. cam na consideração dos altos destinos do império. Eu, como
- Eu, também, não me atrevena, para nao mCldlr na rei, por direito humano e divino, tenho poderes para resolver
ira do rei, objetou outro. . a situação. Louvo o vosso escrúpulo em tocar a pessoa sa-
- Enfim, não se encontra entre nós quem se atreva a grada da rainha, minha augusta mãe. Nem pela.mão do sicá-
levantar a mão contra ela. Teríamos, então, que nos valer rio podeis arrebatar-lhe a vida, ainda que movidos pelos mais
de sicários. justificados motivos. Compete ao rei solucionar o caso. Vol-
- Sicários, não, basta um... tt uma mulher ... tai, pois, aos companheiros e aguardai.
- Mas é muito bem guardada. - Quereis porventura, senhor, matar vossa mãe? per-
- Melhor! o trabalho é mais fácil a um. . guntou um deles, horrorizado.
- Fica, então, combinado, que se fale ao rei a tal respeIto. - O rei é o representante de Belo na terra e pode to-
Quem irá falar-lhe? mar a atitude que 'convenha, em bem da comunidade a que
- Eu, não! preside.
- Nem eu. "- Sois onipotente e podeis dispor da vida e da morte
- Que vá uma comlssao de três. dos vossos vassalos, disse Sérur, grão-sacerdote de Belo, mem-
....... 1t mais acertado. bro da comissão. Haveis invocado o grande deus, senhor do
- Escolhamos à sorte. universo, por isso, peço-vos permissão, como ministro seu,
- Os dados! para dizer-vos ~Iguma coisa.
350 C A 111[1 L O C H AVE S
351
- Estou pronto a ouvir-vos.
Recebeu-o com um sorriso triste.
Retirando-se OS· companheiros, o sacerdote tomou a pa-
lavra. - Vim ver-vos, 'minha mãe, porque desejo continuar a
nossa última Conversação.
- Lançais mão, senhor e rei, de um poder e de um direito
conferidos pela divindade. O rei, na terra, é a figura da auto- -:-' Guardo dolorósa lembrança daqueles momentos de de-
ridade divina. Tudo lhe é permitido, se invocada uma razão silusão e sofrimento. Que mais desejas?
superior. Podeis sacrificar a yossa própria mãe, em bem do - Vim re~ o' trono que me pertence. Faço-o, em
itripério e em nome de Belo. Os sacerdotes de Belo devem nome do povo assmo, que reclama a hegemonia do' império.
à vossa augusta mãe uma grande homenagem por haver cons- Há grandes ressentimentos pela .rainha estrangeira, que tenta
truído o majestoso templo do Deus. Ela é uma grande raipha .caldear duas substânCias que não se fundem: os povos assírio
e teve glorioso reinado. Queremos, pois, elevá-la à categoria e babilôn~co.. Jamais lhe será. perçoado o haver provocado o
de deusa, como merece. . de~apareclmento da nação assíria, absorvida pela de Babilônia,
-Que quereis dizer? hOJe no apogeu da glória, ao passo que Nínive se consome
- Quero dizer que ela não morrerá. Será arrebatada na decadência. Matastes,' com vosso amante, o legítimo rei
ao céu, ou, melhor, voará como uma pomba para ~ seio da assírio e vos apossastes do trono, para:' satisfazer a vossa am-
divindade. Será igual a lstar e aos outros deuses imortais. bição. Tamanha foi a vossa traição, que' já não se fala mais
Basta tenhais o cuidado de consumir-lhe os despojos. Os sa- no reino da Assíria, mas no, de Babilônia.'
cerdotes de Belo farão a grande revelação. O povo acredi- --. Ouve, meu filho. Estás exaltado. Tua mãe não tem
tará. E subireis, prestigiado, ao trono de vossos pais... E o .apego, que pensas, às pompas. da realeza. Hoje, é, para
ela será imortalizada através dos séculos. mIm, grande demais o encargo de dirigir 1:1 império. A. tua
- Seja como propondes ... , consentiu Adad-Nirari. acusação é muito desabrida; mas t<>nsidera que este império,
Passaram-se muitos dias. Cessaram os boatos, e todos, na que vais herdar, grande como o mundo' conhecido, eu o edi:.
corte, ac,l::~ditavam que a paz voltara aos círculos governamen- fiquei com a minha atividade e sabedoria. Bem ~tiiieno era
tais. Sâmura-mat .continuava indiferente a tudo, entregue às o reino da Assíria, que me veio às mãos pelo rei .Chamsi-
suas meditações. Pensava em retirar-se da pública açlminis- Adad, e o país estava esgotado na luta inglória de conservar
tração, a fim de consumir-se na sua dor, na sua saudade. O parcas conquistas. Bem diferente é o panorama atual da tua
palácio real,' outrora movimentado, se despovoara de áulicos herança. .. Em vez de rei da 'Assíria, serás o rei do mundo.
e postulantes. O silêncio e o tédio dominavam' as salas e os Considera que a capital ,que convinha ao império era Babilônia,
corredores. pela sua importância, como ponto de encontro .do oriente com
Estava ela nos seus aposentos, quando lhe anunciaram a o ocidente. Eu te pr~rei uma x:ealeza, diante da qual se
visita do filho. Não se viam, desde a entrevista do rompi- amesquinham todos os reis da terra. Em vez de rei do mundo,
mento. Adorava-o, porque ele, além de tudo, era a perso- queres voltar a ser o reizinho da Assíria. Como eu quis en-
nificação de Lécon. Os traços físicos de ambos se asseme- grandecer-te, meu filho! Como persistes em ser pequeno! Eu
lhavam, e ela, ao contemplá-lo, descobria na sua vigorosa fi- quis formar um gigante e saíste um pigmeu.. .
gura muitos dos modos e particularidades· de seu bravo leão,
..:- Seja como for~ eu quero ser o rei da Assíria e venho
como costumava chamá-lo. Todavia, ao ouvir-lhe o nome pela
tomar-vos o trono. Basta qe governar! Agora é a minha vez.
voz da camareira, sentiu como uma punhalada a traspassar-
Tenho dezoito anos, sou homem, capaz de dirigir.
lhe o coração. As desavenças com o filho eram uma das
causas que á acabrunhavam, e mal podia pensar que ele tivesse - Não penses que, por me veres entregue à dor, não
renegado p pai .•• tenha energia para reprimir as tuas ameaças e insolências.
Mandarei prender-te e aos teus amigos.
352 CAMILO CHAVES

- É escusado. A vossa guarda já vos não obedece. Su-


bornei-a.
- Minha guarda não se vende!
Samura-mat encaminhou-se para aparta, no propósito de
chamar a guarda, mas Adad-Nirari cercou-a e, num gesto
brusco, enterrou-lhe o punhal no coração. " CONCLUSÃO
Ela esbugalhou os oihos numa expressão de espanto.
- Meu -filho! exclamou.
E tombou "morta. Adad-Nirari voltou para Nínive e passou, depois de um
rein~do tempestuoso, empenhado em conservar as imensas
conquistas de sua mãe. Passou Salmanazar, seu filho, e
Assurdan IH, seu neto. Passou Sargão e sua dinastia.
Decorreram duzentos anos, e foi Nínive reduzida a escombros.
Desapareceu o reino "da Assíria pela espada dos medos e
babilônios.
Babilônia, independente, cresceu e dominou. Depois de
Nabucodonozor veio Baltazar, contra quem o dedo fatídico
traçou o Mane-Tecel-Fares. E com ele tombou a grande ci-
dade, pela espada vitoriosa de Ciro, rei dos persas.
Novos reinos, novos impérios surgiram e desapareceram
na voragem do tempo. A noite do esquecimento e dos séculos
desceu sobre as ruínas dessa remota civilização.
Posteriormente, ao norte da Rélade, no reino da Mace-
dônia, na Cidade de Pela, ao correr do ano 356 A. C., brotou
um novo conquistador, que havia de transformar o mundo.
Chamava-se Alexandre, que a História sagrou com o apelido
de Grande. Depois de submeter a Grécia, atravessou o He- "
lespanto e dominou a Pérsia com as vitórias de Granico, Issus,
Cunaxa e Arbelas. Meditou sobre as ruínas desoladas de
Nínive e ressuscitou Babilônia para sede do seu imenso im-
pério.
Como putrora a grande conquistadora e rainha,· ele mandou
sua esquadra, do golfo Pérsico às bocas do Indo, margeando
a costa. Ele mesmo, repetindo o itinerário, partiu de Babi-
lônia com o exército e seguiu, via Susa, Persépolis e Passa-
garda, até à foz do grande rio. Transposto o Indo, margeou-o
até às cabeceiras, bateu o rei Poro, voltou, atravessou a cadeia
do 1rus e inv:estiu para o Nort€, pela Sogdiana, até à margem
do rio Iaxartes, tributário do lago Axiano. onde castrametou.
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354 CAMILO CHAVES

Impressionou-se com os caracteres cuneiformes de uma LENDAS DE OSIRIS


língua extinta, gravados num, marco de pedra. Encarregou seu
intérprete pers;:t, versado em línguas orientais, de decifrar a Carlos de Brito Imbassahy
tnensagem. da estela. Uma obra que não se restringe a contar apenas belas
Realizàva-se brilhante festividade em que Juzida turma de e miticas histórias de uma cultura tão rica quanto exótica
oficiais, osténtando couracas douradas e elmos arrogantes, cer- como a egipcia.
cavfUIl o grande Alexandre. Vai além: perscruta-lhe os enigmas, estuda seus co-
O intérprete persa Pediu licença para falar. nhecimentos e expõe o fundamento filosófico daquele
- Grande rei e senhor. do mundo I Em cumprimento da povo reencarnacionista.
vossa vontade, procedi à decifração do marco com sinais cunei-
formes' de uma extinta língua da Caldéia e passo a ler-vos a o CASTELO DAS AVES fERIDAS
tradução. Tri:tta-se. de uma antiga rainha da Assíria e Ba-
bilônia, que viveu· há· quatro. ou cinco' séculos. Eis o que ela Nancy Puhlmann di Girolamo
diz: - "Deu-me a natureza forma de mulher,' mas as minhas A autora escreveu sobre o que conhece e experimen-
ações me igualarám aos maiores homens. Eu regi o império ta em seu dia a dia. Produziu, todavia, uma obra para ser
de Adad-Nirári, que, a oeste, toca o rio Hinaman, ao sul, o lida por todos, e não apenas p~r pais e parentes de
'país do incenso e da mirra; ao norte, os sarcos e os sogdianos. excepcionais.
Antes de mim, nenhum assírio tinha visto o mar; eu vi quatro O leitor, além de ter o seu universo mais ampliado,
oceanos, aos quais ninguém .atingira, tão distantes são. Eu acaba gratificado: este é um livro lindo.
obriguei os rios a correr aonde eu querià e não os quis senão
nos lugares onde fóssem úteis. Elevei fortalezas inexpugná- SEMíRAMIS
veis; rasguei estradas tom o ferro através de rochas impra-
ticáveis. Abri às minhas carruagens caminhos que as mesmas (Rainha da Assíria, da Babilônia do Súmer e Akad)
bestas ferozes jamais tinham percorrido. E no meio destas Camilo Chaves
ocupações eu tive tempo para os prazeres e para os amigos.
Samura-mat... Romance histórico, extremamente bem escrito, exi-
Alexandre deu uni murro na mesa, fazendo tremer os con- bindo um impecável trabalho de pesquisa.
vivas. O reinado e os conflitos de uma muíher - Semiramis -
- Na Tessâ1ia, disse, reclamei de meu pai que, se de que viveu há cerca de oito séculos antes de Cristo.
conquistasse a Pérsia, eu nada teria que fazer quando rei~ Exemplo raro - em vista da época - de mulher e gover"
Mal pensava eu que há vários séculos se realizara o meu feito nante.
e, talvez mais... Por uma mulher! ...
E proferiu um impropério. A GôNDOLA PRATEADA
M.B. Tamassía
Retorno da boneca Marly, "a pequena estafeta", que
viaja com seus amigos numa gôndola espacial para um
lugar habitado apenas por animais.
Em meio a muitas aventuras, presenciam o julga-
mento dos homens pelos animais.
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FRONTE~RAS DO ESPIRITISMO E DA CIÊNCIA


Carlos Toledo Rizzini
Estudo profundo e esclarecedor a respeito da origem
e a evolução do pensamento humano, abrangendo a filo-
sofia e o desenvolvimento ,cientifico.
'Obra indispensável para a compreensão do estágio
evolutivo do Homem na atualidade.

ESPIRITISMO E OBSESSÃO
Rino Curti
Trabalho científico sobre a obsessão - seu cc,(1ceito,
causas e intervenções - em que são sintetizados tipos
de subjugação, obsessão na sexualidade, efeitos das
alucinações nos alcoólatras e nos drogados, vampirismo,'
etc., em interpretações seguras e valiosas.

O CENTRO ESPIRITA
J. Herculano Pires
Um dos maiores experts em Doutrina Espírita, o autor
produziu uma vasta biblíografia onde despontam obras
que já são consideradas verdadeiros clássicos.
Neste livro, ele aborda a função, significação e os
serviços do Centro, a comunidade, as raízes africanas,
Deus, as almas frágeis, a disciplina, os problemas reli-
giosos, as curas, etc.

SALTO NO ESCURO
Helena Maurício Craveiro Carvalho
Uma obra com compromisso com a originalidade e o
novo. Sem abrir mão de uma opção feita há anos, qual
seja a de desvelar a mensagem perene da Doutrina Espí-
rita, a autora ousa e se arrisca. E se dá bem. E ganha o
leitor.
Enfim, um livro natural e expontâneo, forte e envol-
vente.
Impresso pelo Depto Gráfico do
CENTRO DE ESTUDOS VIDA E CONSCIÊNCIA EDITORA LTDA
R. Santo Irineu, 170/ F.: 549-8344
,
SEMIRDMIS
Rainha da Assiria t de Babilônia
do Súmer e Akad

Camilo Chaves
É o relato de um reinado e a luta pessoal de
Semíramis que influenciou consideravelmente as an-
tigas civilizações babilônica e assíria t pelo seu cará-
ter t humanidade e sabedoria.
Certamente ela foi uma predestinada, já trazendo
de dentro de sí conceitos e princípios morais - isso
por volta de 824 Antes de Cristo - .
Um romance extraordinário capaz de surpreender
o leitor pela grande coerência que esse misto de
deusa, mulher e governante nos apresenta ante o
poder e a dignidade de tê-lo; ante o amor e a sabe-
doria de quando renunciá-lo; ante a ambição e a ca-
pacidade de contorná-Ia ...
Camilo Chaves traz à tona através de um tra-
balho árduo de pesquisa histórica uma brilhante lição
de vida e dever.

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