JOVEM LEITOR
Tatiane Kasparii
Juracy I. Assmann Saraiva**
Ernani Mügge***
RESUMO: A função social da literatura, referida por estudiosos como Antonio Candido, Paul Ricoeur e
Robert Jauss, ainda não é devidamente reconhecida no meio escolar, em que a formação de leitores
figura como um dos principais objetivos, cuja concretização, porém, comumente fracassa, devido a
abordagens inadequadas de materiais didáticos e da falta de reflexão teórica por parte de docentes. Com
base no posicionamento de que a literatura atua na formação da identidade do sujeito e de seu senso
crítico, visto que se enraíza no contexto histórico-social de sua produção e no de sua recepção,
provocando reflexões sobre um e outro, desenvolveu-se o projeto “Texto literário: espaço de reflexão
crítica e de formação de sujeito”, coordenado pela professora Juracy Assmann Saraiva e com a
participação do professor Ernani Mügge. O presente trabalho apresenta um panorama dos estudos
literários que sustentaram o projeto e as repercussões que ele trouxe junto a alunos de segundo ano da
Escola Estadual de Ensino Médio Monsenhor José Becker. Por meio da discussão de roteiros de leitura,
de sua interpretação e do estabelecimento de relações entre as narrativas lidas e as experiências de vida
dos discentes, buscou-se aproximar os alunos da literatura brasileira. A participação dos estudantes nas
atividades propostas e as produções textuais delas decorrentes demonstraram a eficiência da exploração
de textos literários no desenvolvimento de habilidades linguísticas e da capacidade de interpretação.
Além disso, o protagonismo conferido aos alunos colaborou para a adoção de um posicionamento
investigativo e crítico e contribuiu para seu processo de autoconhecimento.
ABSTRACT: The social function of literature, mentioned by scholars such as Antonio Candido, Paul
Ricouer and Robert Jauss, has not yet been duly acknowledged by teachers, one of whose main
objectives is to form readers. This often fails to occur due to the inadequate approaches of teaching
materials and the lack of theoretical reflection among teachers. Based on the position that literature
acts to develop an individual’s identity and their critical sense, since it is rooted in the historical and
social context of their production and their reception, causing reflections about both, the
project “Literary text: a space for critical reflection and individual formation” was
developed, coordinated by Juracy Assmann Saraiva with the participation of Professor Ernani
Mügge. The present work presents an overview of the literary studies that supported the project and its
repercussions on the second-year students of the Escola Estadual de Ensino Médio Monsenhor José
Becker. By discussing reading sequences, their interpretation and establishing relationships between the
narratives read and the students’ life experiences, it was sought to bring students closer to Brazilian
literature. The participation of the students in the proposed activities and resulting texts
produced demonstrated the efficiency of exploring literary texts in the development of language skills and
interpretation abilities. In addition, the role given to students as protagonists helped adopt an
investigative and critical approach and contributed to their self-knowledge process.
INTRODUÇÃO
A inabilidade de grande parcela dos alunos da rede pública brasileira em ler e interpretar
textos é continuamente atestada por exames e programas de avaliação. Os resultados
mais recentes do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), divulgados em
2014, apontam um retrocesso na habilidade leitora dos estudantes em relação à
avaliação anterior, posicionando o país em 55º lugar em um ranking de 65 nações. O
mau desempenho dos alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio
em leitura é um problema que se vincula, além dos de natureza social, a lacunas na
formação de professores e à sua incapacidade de desenvolver estratégias de leitura
eficazes.
Tendo por objetivo aproximar alunos da educação básica da literatura brasileira, geriu-
se uma proposta metodológica que conferisse protagonismo ao leitor, responsável por
mobilizar conhecimentos diversos no processo de interpretação textual. A partir desse
posicionamento, a proposta, além de abrir um espaço de discussão sobre questões
sociais, éticas e estéticas da literatura, orientou-se para a transformação social, por meio
da intervenção na prática docente e por meio do envolvimento direto de professores e de
alunos.
A compreensão da história cultural do Brasil, vista sob um ângulo coletivo, passa pelas
variadas formas de representação da nacionalidade, registrada em conhecimentos,
crenças, valores, costumes, normas de ordenamento social, arte, tecnologia e traços
identitários dos diferentes grupos sociais. Dentre as inúmeras manifestações culturais, a
literatura brasileira se destaca por sua capacidade de dar forma ao multiculturalismo da
nação, expressando modos de ser que caracterizam tempos, espaços e grupos distintos,
mas que, ainda assim, preservam os vínculos da identidade nacional. Ela possibilita a
seus leitores reconhecer-se como parte de uma comunidade, fortalecendo seus laços de
A literatura encontra solo fértil para a sua instalação como fonte de conhecimento, e,
mesmo que não tenha sido criada para ensinar, atende à vontade inata do ser humano de
aprender e de apreender a realidade. Essa característica resulta do fato de a literatura
originar-se na própria condição humana e, ao expor sentimentos, frustrações, decepções,
sonhos, angústias, por meio de representações simbólicas, o texto qualifica-se para
dialogar com o leitor. A partir desse diálogo, quando transfere as palavras da
materialidade do veículo para sua interioridade e as transforma em parte de sua vida
(SARAIVA, 2006, p. 35), o leitor enriquece-se e alimenta-se da vida a favor da própria
vida.
Para Jauss, leitores de uma mesma época recebem de maneira diferente uma mesma
obra por terem vivências e percursos de leitura variados; leitores em épocas distintas
igualmente constroem diferentes leituras motivadas por aspectos que dizem respeito
especialmente aos fatores sociais. Dessa maneira, para Jauss, “a obra literária não é um
objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo
aspecto” (JAUSS, 1994, p. 25).
Iser, por sua vez, também contribui com a Estética da Recepção, particularmente com a
noção do efeito estético, que se desdobra na estrutura de apelo do texto e na concepção
do leitor implícito (ISER, 1999). A estrutura concebida como apelativa tem origem em
A ideia da pluralidade de leituras explica-se, assim, por um lado, pela natureza do texto,
por outro, pela singularidade do leitor, que, entretanto, é influenciado socialmente, pois
se situa em determinado tempo e espaço. Logo, os efeitos do texto verbal sobre o leitor
não se limitam à decodificação de significantes, pois esse ato cognitivo se relaciona à
sua experiência de mundo. Dela depende a maior ou menor eficácia da leitura que,
como trabalho ou prática significante, exige do leitor o preenchimento dos “pontos de
indeterminação” (INGARDEN, 1965, p.269), dos “espaços em branco”, dos
“interstícios” para que o texto “mecanismo preguiçoso” (ECO, 1979, p.37) possa
funcionar.
O novo paradigma tem suas origens em estudos diversos, entre os quais cumpre citar os
de Mikhail Bakhtin e os de Roland Barthes. Segundo o ponto de vista de Bakhtin
(BAKTHIN, 1988), a transferência da ênfase do autor para o leitor decorre da origem
social do signo e a natureza coletiva da linguagem, o que explica o infindável
questionamento que a palavra traz em si e que Bakhtin denomina dialogização. Como o
sujeito da enunciação se expressa a partir do cruzamento de intenções, de opiniões e de
pontos de vista alheios, ele jamais é o representante de si mesmo, instituindo-se como
voz em função de um grupo e do conjunto de ideias que adota ou que contesta. A
natureza dialógica do texto literário determina, segundo Bakhtin, a análise de seus
aspectos composicionais contra o pano de fundo do momento sócio-histórico-cultural
em que surge, fato que imprime dupla orientação à atividade crítica. Em razão dessa
perspectiva dual, o projeto relaciona o texto literário aos fatos sociais, questionando,
porém, o posicionamento que excluía o leitor e seu contexto do exercício crítico-
reflexivo.
Segundo Barthes, o texto se explica pela metáfora da rede, em que o destecer da trama e
o preenchimento dos vazios permitem nova urdidura. A textualidade (BARTHES, 1984,
p.49-53) é, pois, garantida pelo ato de ler que dá lugar à irrupção de intertextos no
próprio texto, cujo movimento constitutivo é a travessia, a passagem, a transferência. A
significação é instituída pelo leitor, responsável pela execução do “jogo” proposto pelo
texto.
O texto concebido como uma rede, cujos pontos de conexão revelam o diálogo com
outros textos e a noção de hipertexto introduzem mudanças nos estudos da literatura e
nas práticas de leitura, uma vez que invocam, pela transferência contínua de seus
limites, a intertextualidade e o hibridismo de linguagens. Ao definir a literatura como
leitura em processo, a intertextualidade prevê a contribuição do leitor competente,
capaz de atualizar as remissões a outros textos, instaladas no texto que ele lê. O
hipertexto, por sua vez, através das conexões construídas por palavras, imagens visuais,
sonoridades, representa, em sua materialidade eletrônica, a emergência plural de textos
Dessa forma, intervenções eficientes no contexto escolar passam pelo professor, cuja
formação continuada deve englobar os debates teóricos atuais a respeito de leitura e de
literatura, frequentemente secundarizados – ou até ausentes – nas discussões
pedagógicas. Para Teresa Colomer, o docente deve compreender que “[...] incentivar a
leitura e ensinar a ler são os dois eixos sobre os quais discorre a inovação no ensino da
literatura” (COLOMER, 2007, p. 198). Nesse cenário, pesquisas apontam que a prática
de maior eficácia na formação de leitores é a realização de projetos prolongados de
leitura, que apresentam vantagens como a articulação entre os momentos de leitura e de
realização de exercícios, de modo que o ato de ler e as tarefas façam parte de uma linha
progressiva de interpretação; a inter-relação entre os processos de leitura e de escrita,
convertendo os alunos em emissores e receptores de uma variedade de textos escritos e
orais e explicitando as habilidades linguísticas comuns a ambas as atividades e o
favorecimento da assimilação das aprendizagens, através da rede de associações
cognitivas e afetivas estabelecidas pelas atividades.
Sob este viés, o projeto “Texto literário: espaço de reflexão crítica e de formação de
sujeito” visou à aproximação dos alunos com a literatura brasileira, por considerá-la um
elo entre a individualidade de cada aluno – que se concretiza, sobremaneira, nas
particularidades de seu percurso de leitura de cada texto – e a coletividade multicultural
da nação a que pertence. Para intervir na realidade escolar, aliou-se a revisão
bibliográfica teórica a reflexões e atividades de ordem prática, englobando processos
O aparato teórico abalizou a seleção das obras literárias a serem trabalhadas em sala de
aula, de modo a favorecer a identificação dos alunos com a temática abordada, a
expressão de aspectos relevantes da cultura brasileira e o trabalho estético com a
linguagem. A partir dos textos, foram elaborados roteiros de leitura, que seguem a
proposta metodológica elaborada pela pesquisadora Juracy Assmann Saraiva, com base
nas fases do processo hermenêutico descritas por Jauss. A metodologia – registrada no
livro Literatura na escola: propostas para o ensino fundamental (SARAIVA; MÜGGE,
2006, p. 48-51) – prevê a exploração do texto literário em três etapas sucessivas, que,
entretanto, se complementam no processo interpretativo. Em um primeiro nível, de
“leitura compreensiva”, o leitor busca descobrir “o que o texto diz” e, considerando as
especificidades de cada obra, esclarecer “como o texto diz aquilo que diz”. No segundo
nível, de “leitura interpretativa”, ocorre a sobreposição de leituras efetuadas pelo leitor,
que, relacionando texto e contexto, busca alcançar “o sentido do texto”. Finalmente, na
“etapa de aplicação”, há a ampliação da experiência literária, por meio da correlação
com outros campos de conhecimento e com formas diversas de manifestações culturais,
de forma a evidenciar “o diálogo [...] entre o texto e o contexto estético-histórico-
cultural atual e o do momento de sua produção”.
O trabalho com roteiros de leitura na Escola Estadual de Ensino Médio Monsenhor José
Becker foi coordenado pelas alunas Jamile Altmmann Ludwig, Greice Luft, Letícia
Mayer Borges e Darlene Nascimento dos Santos, orientadas pela professora Tatiane
Nesse ponto, vale esclarecer que não se ignora o caráter subjetivo do registro desses
resultados, enumerados a partir da observação docente, e que poderia constituir
argumento de objeção ao real êxito do projeto. Todavia, há que se considerar a natureza
subjetiva da própria experiência da leitura literária e de suas ressonâncias na vida do
sujeito. Assim, dada a impossibilidade de mensurar objetiva e numericamente o
desenvolvimento da habilidade leitora dos alunos e de seu envolvimento com a
literatura – a qualidade da leitura não é necessariamente proporcional à quantidade de
livros lidos –, as constatações da professora encontram respaldo no depoimento dos
discentes, que, ao final do projeto, registraram suas impressões e opiniões1ii:
É importante frisar, porém, que as tarefas constantes dos roteiros de leitura oferecidos
aos alunos não se restringiam a questões abertas que estabelecessem relações diretas
entre o texto e a realidade do educando. Questões linguísticas, estilísticas e próprias da
estrutura textual – como a sequencialidade das ações, a configuração do espaço e das
personagens, a distinção entre discurso e história – foram objeto de análise e
proporcionaram um aprofundamento da interpretação dos alunos, pois os recursos
estudados em um texto tornaram-se mais evidentes e facilmente compreensíveis em
outras produções. Esse fato modificou a percepção que alguns alunos possuíam sobre si
mesmos enquanto leitores: “apesar de já possuir o hábito da leitura, vejo-me como ainda
mais leitora, mais investigativa, buscando interpretar as histórias profundamente.”
(Jamile Altmmann Ludwig).
Além disso, o estudo aprofundado dos textos repercutiu na linguagem empregada pelos
discentes – “O vocabulário tornou-se mais rico e aprimorado.” (Greice Luft) – e
favoreceu um aprimoramento nas produções textuais, principalmente escritas. Nestas,
constatou-se uma tentativa de aproximação com a escrita dos autores lidos – brasileiros
e contemporâneos –, modificando-se a habitual busca escolar por uma expressão
rebuscada que impressionasse o docente pela procura por uma linguagem simples,
enxuta, mas muito significativa – como se verifica na redação que consta em anexo a
este artigo.
O maior aprendizado proporcionado pelo projeto, porém, parece estar no outro lado das
carteiras escolares, junto ao docente, que se vê transformado pelo triunfo da literatura
em sala de aula. Da mesma forma que os alunos que atendeu, a professora orientadora
nunca havia participado – como aluna ou docente – de um projeto efetivo de promoção
da leitura. As reflexões teóricas e a abertura exigida pela metodologia proposta
operaram uma mudança conceitual quanto à função social de sua profissão:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo após finalizado o prazo previsto pelo Edital PICMEL, foi manifestado o
interesse dos professores e bolsistas de prosseguirem voluntariamente no projeto. De
forma semelhante, no decorrer das atividades, houve adesão de outros professores e
bolsistas e, consequentemente, a expansão do alcance do projeto a outras instituições de
ensino e cidades. Esse fato evidencia a viabilidade de instituir uma cultura de
construção do conhecimento, em que docentes e alunos assumam o protagonismo da
busca por soluções para problemas de ordem pessoal e social, após uma reflexão crítica
e cuidadosa. O espaço privilegiado para o encontro entre esses atores da educação é o
texto literário, cujo caráter ficcional pode ser importante agente de transformação da
realidade, a começar pelo próprio sistema educacional brasileiro.
ANEXO
BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1984.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul,
2004.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. [Tradução Laura
Sandroni]. São Paulo: Global, 2007.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura – uma teoria do efeito estético. vol. 2 São Paulo: Ed.
34, 1999.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6 ed. São Paulo:
Ática, 2002.
*
Mestre e doutoranda (com bolsa PROSUP – Capes) em “Processos e Manifestações Culturais”, na
Universidade Feevale. Graduada em Letras – Português (Licenciatura Plena), pela Universidade Unisinos.
**Professora e pesquisadora da Universidade Feevale e bolsista em produtividade do CNPq. Doutora em
Teoria Literária pela PUC/RS e Pós-Doutora em Teoria Literária pela UNICAMP.
***Bolsista de Pós-Doutorado – CAPES, na Universidade Feevale. Doutor em Literatura Brasileira,
Portuguesa e Luso-africana pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
1
Todos os trechos citados nesse capítulo foram retirados de produções textuais dos alunos elaboradas
durante o projeto e dos relatórios de avaliação realizados ao final das atividades. A fim de que os
discentes pudessem ter retorno de suas redações, os textos foram digitalizados e arquivados junto ao
relatório final do projeto, encaminhado aos órgãos competentes (CAPES e FAPERGS).