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O “RURAL” E O “URBANO” EM ESTUDOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE:

ETNOGRAFIA, AGÊNCIA E MEDIAÇÃO

MARQUES, Roberto1
PERILO, Marcelo2
Resumo

No processo de consolidação dos estudos de gênero e sexualidade no Brasil, marcadores


espaciais e de origem têm sido utilizados para estabelecer comparações, ressaltando a
polaridade rural X urbano. A partir de quatro estudos de cunho etnográfico, buscamos
refletir sobre como gênero e sexualidade têm sido apreendidos de modo a pulverizar tal
polaridade. Observamos como alguns trabalhos localizados na fricção com o "mundo
urbano" ou fora das “grandes metrópoles” potencializam a seus autores a apropriação e
agenciamento de marcadores locais e de origem a partir de diferentes contextos de
produção. Também focamos dinâmicas sexuais e como elas são caracterizadas, além de
destacar como o binarismo rural-urbano sobrevive em suas tensões com narrativas de
condutas sexuais e performances de gênero.

Palavras-chave: Gênero, Sexualidade, Mediação, Rural, Urbano.

CENA 01: Karine é uma moça contumaz na Área Fértil. “Magra, branca e de estatura
baixa (...) utilizava geralmente sandálias, bermudas, blusas com estampas indianas e o
cabelo curto, o que conferia à garota uma notável androginia. Em um dos domingos, um
garoto que ainda não a conhecia lhe perguntou: ‘Você é menino ou menina?’.
Imediatamente, Karine levantou sua blusa até exibir o sutiã” (PERILO, 2012, p. 19).
CENA 02: “Serginha começa a falar sobre os avanços nas lutas de reconhecimento das
travestis locais e argumenta que devido a ação dela e de suas colegas, a cidade hoje se
apresenta promissora quanto a boa convivência social das travestis. Ela nos fala de um
grande reconhecimento do poder público de colocar atualmente em processo a produção
da lei municipal de instituição de um terceiro banheiro em casas comerciais de diversão
noturna. (...)Em uma casa conhecida da cidade (...) alegam que estavam se deslocando

1
Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri (URCA), Pós-
doutorando (IFCS/UFRJ). e-mail: r-marques01@uol.com.br
2
Doutorando em Antropologia Social (IFCH/Unicamp). e-mail: gymp3@hotmail.com
para o banheiro masculino e o vigilante do local disse, com muito respeito, que elas
‘estavam autorizadas a frequentar o banheiro feminino’” (COSTA, 2012, p. 134).
CENA 03: “(...) Os homens daqui, de Goiabeiras, adoram pegar ‘veados’. Tem também
o cemitério. Lá ninguém aborrece a gente! Pois todos têm medo das almas penadas! (...)
Pois é, aproveitamos desse medo do povo daqui e ‘damos uma’ com os ‘machos’!”
(FERREIRA, 2007, p. 383).

As situações descritas acima figuram em etnografias recentes que caracterizam


práticas situadas na vivência de condutas homossexuais3. Se retomarmos a reflexão de
Clifford (2002b) compreenderemos tais descrições como alegorias e, como tal,
dependentes de um contexto, nem sempre evidenciado, do qual, consciente ou
inconscientemente para aquele que descreve, ela aparece como passível de precipitação,
cotejamento, contextualização, seja por exemplaridade, seja por excepcionalidade.
Os exemplos acima seriam, portanto, alegorias daquilo que poderíamos chamar
práticas da diferença. Elas foram relatadas em etnografias realizadas em Goiânia (GO),
Itaqui (RS) e Goiabeiras4 (CE), respectivamente. Poderíamos, talvez precipitando um
pouco a argumentação do presente artigo, dizer que sua localização poderia ser tomada
como excepcional. A prática da diferença deveria supostamente compor uma alegoria de
uma paisagem urbana, metropolitana, como já discutira, por exemplo, Caldeira (2000)5.
Que condições possibilitam tais descrições em etnografias de recantos imaginados como
limites do urbano ou das “grandes metrópoles” é uma questão importante.
As alegorias mencionadas chamam atenção a processos e relações que
supostamente seriam peculiares ao que se poderia tomar como “urbano” ou da
“urbanidade”, sendo que o espaço para que tais situações se manifestassem seria

3
Consideramos a acepção de conduta sexual formulada por Gagnon (2006). Assim, quando mencionamos
"condutas homossexuais" não estamos sugerindo que os interlocutores mencionados tenham apenas
relações afetivo-sexuais com pessoas do mesmo sexo. Admitimos que tenham tido em algum momento
esse tipo de relação.
4
Nome fictício utilizado pelo autor.
O “urbano” como âmbito de expressão e convivência de grupos humanos heterogêneos consiste em uma
5

referência para os estudos socioespaciais ao menos desde Wirth (1967 [1938]) e a Escola de Chicago. A
elaboração de certas vivências da homossexualidade como que referenciada àquilo que concerne ao
“urbano” encontra ressonância nos estudos de gênero e sexualidade.
necessariamente a “cidade”. Contudo, os autores das cenas acima apresentam e refletem
situações onde condutas homossexuais são experimentadas em diferentes modalidades
em espaços bastante diversos daqueles que poderiam ser intitulados como “urbanos”,
apresentando-as como referências exemplares de reflexão sobre a territorialidades de
que falam. Estamos diante de trabalhos que favorecem o questionamento do binarismo
rural-urbano e a problematização da homossexualidade como que alocada em uma
espacialidade ou território específico.
Nesse artigo, propomos então questionar a relação entre homossexualidade e
“urbanidade”, que inclusive pressupõe a heterossexualidade como destino àquilo que
estaria alheio ao “urbano”. Ao fazê-lo estamos considerando a homossexualidade como
um lugar social, ou seja, “‘lugar’ simbólico, aberto a múltiplas incorporações, imagens e
personificações” (CARRARA, 2005, p. 23).
A ênfase na relação entre homossexualidade e “urbanidade” tem relação com
processos que tiveram forte impacto em “grandes metrópoles” – ao menos no Brasil.
Considerando como marco o processo de redemocratização que se estende desde os
últimos anos do governo militar e a promulgação da nova Constituição Federal, na
década de 1980 houve uma reestruturação do então chamado Movimento Homossexual
Brasileiro e a criação de novos grupos e organizações. Também nota-se a elaboração de
espaços de sociabilidade em vias públicas ou em estabelecimentos comerciais, assim
como um esboço das elaborações de políticas destinadas a pessoas com condutas homo
ou bissexual em função da epidemia de Aids nesta década (FACCHINI, 2005;
MACRAE, 2005). Processos intensificados nas décadas seguintes6, quando inclusive se
percebe uma crescente visibilidade da homossexualidade na esfera pública por conta da
ação de diversos atores sociais7 (FACCHINI, 2008).
Tendo em vista que esses processos se estendem nas últimas décadas, cabe
destacar que estes não geram impactos apenas em “grandes metrópoles” – ainda que se

6
Cabe destacar que na década de 1990 a oferta de produtos e serviços destinados a homossexuais é
ampliada. Considerando que o mercado se constitui na relação com o público que atende, em “grandes
metrópoles” também nota-se a oferta de produtos e serviços que atendem e criam consumidores e
demandas cada vez mais específicas (FRANÇA, 2010).
7
A aproximação dessas expressões políticas das noções de direitos civis e cidadania ocasionou também
diferentes formas de tematização do tema em diversos produtos distribuídos nacionalmente pelos meios
de comunicação de massa, precipitando novas experiências de recepção do tema em diferentes contextos.
considere a possibilidade de que ali possam ser percebidos mais intensamente. Esses
processos estão relacionados sobretudo a outras possibilidades de vivência da
homossexualidade, haja vista a recente proposição de políticas públicas e legislação que
atende tal população e ainda outras oportunidades de trânsito pelo espaço urbano.
Contudo, isso tampouco se trata de algo exclusivo ou necessariamente verificado em
“grandes metrópoles”. Dessa feita, neste texto nós atentamos para a relação estabelecida
entre sexualidades e espacialidades e insistimos na dissociação de vivências da
homossexualidade quando estas figuram como específicas de “grandes centros
urbanos”.
Ao retomarmos a homossexualidade como lugar social e, portanto, em constante
disputa (CARRARA, 2005), poderíamos dizer que pressupor que as cenas no início do
texto estariam em uma localização insuspeita ou excepcional configura-se como uma
generalização da experiência homossexual. Dessa forma, essas cenas poderiam ser
entendidas como exceção a uma regra geral e, ao mesmo tempo, instituiriam uma
curiosidade sobre as possibilidades de recepção dessas condutas em diversos contextos,
geralmente ordenados a partir do binarismo rural-urbano.
Insatisfeitos com a polarização entre praticas urbanas e práticas rurais, curiosos
com as relações bastante tematizadas na última década entre sexualidades e
espacialidades, tentaremos aqui perceber como alguns estudos que tematizaram
condutas sexuais e performances de gênero em contextos alheios aos das "grandes
metrópoles" favorecem a problematização do binarismo rural-urbano. Essa tarefa carece
de bastante esforço. Tentaremos, contudo, desempenhá-la recorrendo a um número
limitado de textos, como indicado a seguir.

Diferença das margens


Estabelecida a questão, buscamos descrever, ainda que suscintamente, quais
etnografias amparam as cenas descritas acima, definindo melhor o corpus considerado
nesse trabalho mais analítico que etnográfico.
Em Marques (2011), o autor utiliza o ambiente e ritmo do forró eletrônico para
refletir sobre as imagens frequentes na tematização da região chamada Cariri (CE). A
região, composta por municípios de diferentes climas, topografias e organização
institucional, política, econômica e cultural é logo descrita como região de confluência e
trânsito de vivências muito diversas. Em oposição a isso, imagens da religiosidade e
cultura populares, relações tradicionais de poder, e descrições naturais da Chapada do
Araripe ou do sertão nordestino reapresentam o Cariri em um conjunto recorrente e
limitado de imagens.
O forró eletrônico, ritmo em que convivem inúmeras citações do universo pop,
telenovelas, programas de auditório, shows das divas internacionais e uma batida e
formato inaugurados por Luiz Gonzaga, é utilizado como ambiente em que tal dinâmica
se expressa. Marques recorre, portanto, a momentos em que os marcadores de gênero e
sexualidade são evidenciados nas festas de forró eletrônico. A despeito da forte
marcação da polarização entre masculino e feminino nas performances no palco e nas
letras das canções, a recepção do forró eletrônico na plateia se beneficia desse ambiente
de ebulição social para acessar espaços de luz e sombra, apropriando de forma criativa
tais marcadores. Essas possibilidades são evidentes sobretudo em Marques (2011), onde
a agência dos sujeitos na festa de forró é descrita a partir de um personagem da festa:
seus trânsitos, agenciamentos, deslocamentos incessantes.
A partir de trabalho de campo em Goiabeiras (CE), Ferreira (2008a) revela um
rico universo de práticas na relação entre homens neste município do sertão cearense.
Bastante distante de uma reflexão sobre a importação de modelos urbanos ou a
consolidação de uma identidade homossexual nas últimas décadas, Ferreira se interessa
em relacionar tais práticas a um universo de significação local, em que o “mato”, a
cumplicidade e o silêncio tornam-se elementos de confluência para a viabilização e
perpetuação dessas relações.
Ao mesmo tempo, diante da forma de visibilização e recorrência das práticas,
Ferreira reflete sobre o silêncio que recai sobre as mesmas naquilo que o autor chama de
Texto Brasileiro sobre o Rural, um conjunto articulado de temas (agricultura, família,
etc) que expurga tais “afectos” das dizibilidades sobre as vivências de um universo rural
suposto, perpetuado pela escrita intelectual.
Costa (2012; 2010), por seu turno, recorre a uma metodologia bastante diversa
das citadas acima. Interessado nas territorializações das relações homoeróticas e/ou
homoafetivas em cidades de diferentes portes no interior do Rio Grande do Sul, o autor
recorre a redes acessadas a partir de lideranças do movimento LGBTT e, a partir daí,
realiza grupos de entrevistas com colaboradores nas cidades interioranas de Bagé,
Alegrete, Uruguaiana, Itaqui e Santa Maria. Costa caracteriza cada um desses
municípios a partir dos grupos focais que realiza, utilizando-se de eixos que variam
entre o processo de identificação quanto a homossexualidade, as formas, lugares e
modalidades de encontros entre parceiros, os deslocamentos, ou não, dos colaboradores
em relação a outras cidades do Estado. Ao final de seu texto, chama a atenção para “o
rico universo homoerótico que permeia pequenas e médias, assim como o espaço rural”
(2012, p. 136). Convocando a um aprofundamento em relação às questões de
sexualidade envolvendo a pequena cidade e o espaço rural.
Por fim, Perilo (2012) realiza trabalho etnográfico em espaços de sociabilidade
juvenil a partir de um parque público na cidade de Goiânia. Para essa localidade,
cercada de prédios e equipamentos urbanos usufruídos pelas camadas médias e médias
altas da cidade, confluem adolescentes de estratos populares ou médios-baixos, pretos
ou pardos, moradores de diversos bairros da periferia da cidade. É a partir do desejo de
experimentação e visualização de performances de gênero em espaço público, bem
como das tensões que cercam o convívio entre as diferenças acessadas por esses jovens
naquela área comum que Perilo constrói sua pesquisa.
Para isso, importa a Perilo estabelecer diferenças entre essa área e seus
ocupantes e outra situada no Centro da cidade onde constam estabelecimentos
comerciais destinados ao público homossexual masculino: bares, boates, saunas e
cinemas pornô. A partir dela, pode-se “analisar processos de mudança em grandes
centros urbanos marcados pelo surgimento de espaços para encontro entre jovens com
conduta homo ou bissexuais” (PERILO, p. 1).
Considerando as questões trabalhadas em cada um dos quatro estudos aqui
considerados, podemos afirmar que os mesmos favorecem ao questionamento do
binarismo rural-urbano. Por outro lado, o empreendimento de seus autores talvez exija a
utilização de termos e referenciais que podem tanto reforçar quanto mitigar tal
polarização. Reflitamos um pouco sobre a forma de apresentação das espacialidades
nesses textos.

Dos espaços e suas apresentações


Nas etnografias consultadas constam duas principais modalidades de
apresentação dos espaços dos quais se fala ou/e a partir dos quais se fala. Os termos e
categorias utilizadas são uma dessas modalidades de apresentação dos espaços. Há
também distintas maneiras pelas quais estas localidades são caracterizadas em suas
dimensões e escalas. A polarização urbano-rural torna-se reforçada ou problematizada a
depender dessas maneiras pelas quais esses espaços figuram nos textos em destaque.
Termos como “centro urbano” e “capital do estado” são empregados por Perilo
(2012) a fim da apresentação de Goiânia e municípios circunvizinhos de modo que tais
palavras sinalizariam uma vinculação dessa cidade a uma referência de urbanidade que
não dialogaria com elementos referentes a ruralidades. Em sentido oposto, Ferreira
(2008a) circunscreve Goiabeiras utilizando termos como “vilarejo rural”, “vila” ou
“picada” e “comunidade rural endogâmica”8.
Há textos em que elementos referentes a ruralidades confluem com aqueles que
remetem ao urbano. Em Marques (2011) o “ambiente rural” e o “mundo urbano” estão
em questão para a apresentação de Crato e da região do Cariri, bem como sobre os
processos estudados pelo autor. Em Costa (2012) as cidades de Alegrete, Bagé, Itaqui,
Santa Maria e Uruguaiana são cada qual identificadas mais ou menos próximas de
referenciais de “espaço rural” ou “centro urbano”9 na medida em que o autor as
caracteriza. Cabe destaque também a relação entre “interior” e “capital” trabalhada por
Costa (2012), sendo essa uma das possibilidades utilizadas para apresentação dos outros
municípios mencionados em relação à capital Porto Alegre.
Considerando a modalidade de apresentação em termos de dimensões e escalas,
também são distintas as maneiras pelas quais os autores buscam situar e delimitar os
espaços sobre os quais e por onde falam. Costa (2012) e Marques (2011) apresentam os

8
Há ainda um léxico que conflui para a compreensão de um espaço alheio ou precariamente dotado de
referências de urbanidade: “roça”, “roçado”, “mato” e “sítio” (FERREIRA, 2008a; 2008b; 2007).
9
Também consta no texto a menção a “centro urbano de característica cosmopolita” (COSTA, 2012).
municípios a partir da região onde se encontram, seja a “campanha gaúcha” ou
“noroeste do Rio Grande do Sul” e, respectivamente, a “região do Cariri”. Considerando
que ambos os autores fazem menção a uma região e às cidades que a compõem, também
há o uso de termos que estabelecem uma relação de proporção entre os municípios
mencionados. “Cidades menores” e “cidade média” (COSTA, 2012), além de “cidades
de menor porte” (MARQUES, 2011) são exemplos de uma escala que se estabelece na
relação contingente entre os municípios indicados.
Em Perilo (2012) há menção à “região metropolitana” de Goiânia, mas salvo o
nome de algumas cidades nesta região não há elementos que sugiram dimensão ou
escala entre as mesmas. Marques (2011) menci ona o número de habitantes da cidade de
Crato (122 mil) e Ferreira também o faz com relação à Goiabeiras (5 mil), mas mesmo
que haja esse tipo de informação pouco se discorre acerca das características das
populações englobadas nos limites dos municípios. Em seu turno, Costa (2012) cita o
histórico do povoamento da região sobre a qual fala e também aponta que a mesma está
na fronteira entre o Brasil e Argentina, mas não consta o número de habitantes das
cidades que indica, tampouco da região.
Ferreira (2008a) localiza Goiabeiras no “nordeste do Brasil”, a partir daí
especifica indicando que tal município consta no “meio da caatinga”, mais precisamente
no “sertão do Ceará”. O autor não indica a distância desse município em relação à
“cidade grande” de Fortaleza. Contudo, em Marques (2013), Costa (2012) e Perilo
(2012) é possível ter referências sobre a distância entre as cidades, visto a menção à
quilometragem entre Crato e Fortaleza; a distância apresentada entre algumas cidades
gaúchas; e, respectivamente, a menção a bairros fronteiriços entre Goiânia e outras
cidades da “região metropolitana”. Cabe considerar ainda que nenhum autor faz menção
à área dos municípios indicados.
Nota-se, portanto, usos de referenciais diversos a partir de cada um dos textos a
fim de caracterização dos espaços a que se faz menção, o que vale tanto para o uso de
diferentes termos quanto para as noções apresentadas por seus autores com relação às
dimensões e às escalas consideradas. Contudo, a compreensão dos autores com relação
aos termos utilizados torna-se imprecisa para os leitores, visto que não há algo que
indique o que se pretende dizer com relação a “ambiente rural”, "centro urbano", "vila"
ou "mundo urbano", por exemplo.
Nos textos em destaque consta um hiato entre aquilo que se menciona e a
compreensão sobre os termos que aludem aos espaços. Em alguns momentos esse hiato
se amplia, haja vista a menção a outros termos, tais como “lugar” ou “espaço virtual” –
também imprecisos ou não delimitados. A ausência de uma atenção específica quanto
aos termos e escalas que remetem aos espaços talvez favoreça que as obras em destaque
resvalem em alguns pressupostos na relação entre rural-urbano que pode reforçar ou
problematizar essa oposição.

Agência e mediação
A partir dessa breve descrição e caracterização da forma de apresentação dos
espaços nos quatro estudos considerados neste artigo, pode-se afirmar que eles têm
potencial para favorecer o questionamento de que as práticas da diferença estariam
alocadas específica ou necessariamente em “grandes metrópoles”.
Tal questionamento, vale ressaltar, é construído a partir da justaposição de
alegorias bastante heterogêneas dessas “margens da metrópole”. Como ressaltado
acima, percebamos, por exemplo, que Goiabeiras possui 5 mil habitantes (FERREIRA
2008a) enquanto Goiânia conta com 1.393.57510 habitantes. Tais margens, portanto,
foram aqui aproximadas muito mais por contraste a uma realidade que lhes é externa
que por suas características particulares. Muito mais pelas formas de re(a)presentação
do “rural” e “urbano” que por uma reflexão sobre Goiabeiras, Crato, Santa Cruz, Itajaí e
demais municípios citados. Teríamos, portanto, o que poderíamos chamar de uma forma
de polarização atual entre rural e urbano acionada para localizar vivências, sujeitos,
lugares, precipitando suas identificações11.
Nesse mesmo empreendimento de reflexão, o destaque aos autores e a suas
trajetórias favorece que estes sejam compreendidos como agentes na mediação dos

10
Dados IBGE, 2013.
11
Os estudos antropológicos no Brasil contribuíram na construção dessa polarização. Sobre a
Antropologia Rural no Brasil, ver Ferreira (2008b). Sobre Antropologia Urbana, ver Eckert (2010).
lugares etnografados. Costa12, Ferreira13, Marques14 e Perilo15 nasceram, viveram ou
vivem nas localidades a partir das quais realizaram os estudos aqui considerados. Os
três primeiros desenvolveram as referidas pesquisas em instituições sediadas em Porto
Alegre, Brasília e Rio de Janeiro, respectivamente, sendo estas localidades distintas
daquelas onde nasceram. Esse deslocamento e suas implicações analíticas são
ressaltados em seus textos.
Essa atenção às trajetórias dos autores nos favorece pensar a ênfase que
oferecem no questionamento do imaginário e referências acerca das localidades e
regiões de onde provêm e sobre processos e relações que ali ocorrem. Os autores que
talvez mais se mobilizam no questionamento de imagens galvanizadas sobre as regiões
onde realizaram suas pesquisas são Ferreira e Marques.
Em uma denúncia ao que se escreveu sobre o camponês, Ferreira (2008a; 2008b;
2007) questiona a produção de conhecimento sobre o rural, elaborado em grandes
centros de estudo brasileiros. Em seu turno, Marques (2011) a partir do forró eletrônico
concorre com discursos que circunscrevem o Cariri aos signos de identificação com a
ideia de Nordeste. Em ambos os casos, os estudos rurais estariam amalgamados à
consolidação de um imaginário social sobre a nação e suas margens, em nome dos quais
se calam as vivências, as práticas e simbolizações dissonantes.
O deslocamento da polarização rural X urbano a partir desses autores torna-se
possível quando considerada a mediação que fazem sobre os lugares a partir dos quais
falam. Essa mediação seria, portanto, informada e comprometida em função da
trajetória desses autores, além de outros fatores, como os referenciais teóricos pelos
quais realizaram seus trabalhos, com quem estão dialogando e o que estão criticando.
Dessa feita, torna-se notório como as relações de gênero e sexualidade são
instrumentais para a consolidação dessas pesquisas e desse modo de inflexão sobre as
imagens consolidadas das localidades e cidades descritas. Tendemos a pensar, portanto,

12
Graduado em Geografia, além de mestre e doutor em Geografia(UFRGS).
13
Graduado em Ciências Sociais(UFC), mestre em Antropologia (UnB) e doutorando em Antropologia
pela Université Laval (Canadá).
14
Graduado em Psicologia (UFC), mestre em Sociologia(UFPB) e doutor em Antropologia(IFCS/UFRJ).
15
Graduado em Comunicação Social (UFG) e mestre em Antropologia (UFG),doutorando em
Antropologia Social (UNICAMP).
que a colagem entre cidade e práticas da diferença está ou estaria muito bem
estabelecida, não fossem os deslocamentos dos autores a partir de suas questões
particulares e dos deslocamentos por eles realizados, bem como das reflexões advindas
a partir desses deslocamentos. Se, como disse Clifford (2002a), estamos em um mundo
de etnografia generalizada, as descrições e alcances dessas descrições são tributárias de
jogos de força, relações de poder e confluências institucionais viabilizadas também
pelos corpos dos pesquisadores.
Essa composição de vivências16 a partir do corpo do autor se dá ora por local de
origem, por local de moradia, por compartilhamento de comunidades de destino com os
colaboradores e entrevistados no que diz respeito a relações de sexualidade, mas
também por amparo institucional dessas descrições, visto que esses estudos foram
desenvolvidos em importantes centros de pesquisa acadêmica ou em suas zonas de
influência.

Epílogo
Gostaríamos de finalizar este texto destacando alguns problemas que
acompanharam sua própria elaboração. Como escrever sem recorrer à polarização rural
x urbano? Como refletir sobre espacialidades sem pressupor noções que reforçam
centros e periferias? Como descrever espaços e suas escalas de modo a problematizar
imaginários e referências comuns sobre os mesmos? Como comunicar tais
estilhaçamentos a partir de imagens simples e eficientes na construção de formas de
localização dos sujeitos mais interessante e refinada que nossas formas de polarização
atuais? Aqui, nossa agenda de pesquisa se aproxima mais de uma lista de desafios à
nossa escrita e agenda política. Contudo, como mostram os autores aqui citados, o
alcance dos estudos de gênero e sexualidade, sua variedade de agentes e interlocutores
parecem aliados importantes na estabilização de nossas polarizações e fronteiras.

BIBLIOGRAFIA
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania
em São Paulo. Editora 34, 2005.

16
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