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Notas sobre cachimbos de barro no Brasil (séc.

XVIII e XIX).
Marcony Lopes Alves
Graduando em Antropologia
Universidade Federal de Minas Gerais
marcony.alves@yahoo.com.br

Resumo: Este texto discute a partir e apesar da associação direta feita na Arqueologia brasileira
entre cachimbos de barro e sua utilização por escravos, quando os artefatos são datados do
século XVIII ou XIX. A fonte da argumentação são tanto os elementos materiais, cachimbos
depositados em coleções de museus, e análises presentes na bibliografia, quanto à iconografia
produzida por cronistas e viajantes do período em questão. À guisa de uma conclusão, são
apresentadas algumas relações possíveis entre o uso de cachimbos e o interesse dos escravos por
estes artefatos, ao mesmo tempo em que se crítica o reducionismo da ideia de “cachimbo de
escravo”.

Palavras chave: Cachimbos de barro; Arqueologia histórica; Diáspora africana; Arte; Fumo.

Antes de tudo, é preciso dizer o que estou chamando de “cachimbo de barro”. Os


cachimbos de barro são artefatos de produção colonial e pós-colonial94, feitos a partir de argilas
vermelhas, geralmente de morfologia angular, e cuja haste é, em geral, destacável e de origem
vegetal. Estes artefatos opõem-se aqueles de produção europeia, feitos a partir de argila branca
(caulim) e inseridos numa rede global de comércio. Opto pela expressão “cachimbo de barro”
por ela ser mais específica que “cachimbo cerâmico” e também por saber sobre seu uso corrente
nas lojas de artigos de religiões afro-brasileiras – os únicos lugares onde ainda se encontra dessas
peças. Muitas vezes, fala-se na Arqueologia brasileira que os cachimbos de barro, datados do
período colonial e imperial, eram “cachimbos de escravo”, ou mesmo “cachimbos africanos”95.
Este lugar comum mostra grande essencialismo na relação entre pessoas e coisas e, por isso,
obscurece as possibilidades de entendimento sobre sua decoração e seus diferentes contextos de
uso. Todavia, é possível tirar conclusões positivas a partir da apressada ligação entre cachimbos
de barro e a população escrava negra do Brasil.

94 Prefiro reservar a expressão cachimbo de barro para contextos de influência europeia. Assim, a expressão não
abarca produções ameríndias – estas sim, datadas de milênios antes da invasão ibérica do continente americano.
95 Tal associação pode, por exemplo, ser encontrada em: AGOSTINI, Camilla. Cachimbos de escravos e a reconstrução de

identidades africanas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UNESA, 1997: Monografia (Graduação) Curso de Arqueologia,
Rio de Janeiro: UNESA, 1997. GASPAR, Maria Dulce. “Arqueologia, cultura material e patrimônio. Sambaquis e
cachimbos. In GRANATO, Marcus; RANGEL, Márcio. F (Org). Cultura material e patrimônio da Ciência e Tecnologia.
Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, 2009.374p., 1 CD ROM. pp. 39-52.PAIVA, Zafenathy;
FAGUNDES, Marcelo; BORGES, Joina. “‘Uma baforada sim sinhô’:cachimbos de escravos para se entender a
dinâmica sociocultural da Diamantina oitocentista”. Revista Tarairú. Campina Grande, vol.IV, nº 1, p.165-186, 2015.
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Figura 1. Exemplo de cachimbo de barro com piteira vegetal (Padrão “duas
caras”) Museu Histórico de Sete Lagoas. Foto: Marta Lucena.

O presente trabalho não tem a pretensão de trazer qualquer resultado conclusivo sobre
um tema tão abrangente como os cachimbos de barro e tão pouco estudado no Brasil tanto pela
Arqueologia quanto por áreas afins. Não possuo dados para tal tarefa, nem datações seguras para
os artefatos, mas pretendo fazer algumas sugestões para pesquisas futuras e sintetizar algumas
ideias. A pesquisa basal para este texto foi realizada em 2013, no âmbito de um trabalho final da
disciplina de Métodos e Técnicas em Arqueologia do curso de graduação em Antropologia da
UFMG. Este versou sobre coleções de cachimbos depositadas em museus de Belo Horizonte e
Sete Lagoas, MG. No mesmo ano, realizei uma expansão dos meus conhecimentos, com
materiais escavados pela Scientia Consultoria96 em sítios da primeira metade do século XIX97, no
município de Conceição do Mato Dentro, MG. Em 2014 fiz uma visita ao Museu da Lapinha
(Lagoa Santa, MG), onde pude observar e fotografar uma coleção através da vitrine. Não me
limito, nesta apresentação, aos dados coletados nessas análises para Minas Gerais e me valho de
fontes históricas, icnográficas e análises de outros pesquisadores da arqueologia sobre cachimbos
para construir a argumentação que presume um escopo mais amplo.

96 Realizei todas as minhas pesquisas como pesquisador independente. Não fui remunerado e não tive nenhuma
vinculação direta com o empreendimento realizado em Conceição do Mato Dentro.
97 O método de datação foi o cálculo do período médio de produção da faiança encontrada nos sítios. Não disponho

dos dados que permitiram a datação, nem seus resultados finais.Ainda aguardo o repasse que a empresa me
prometeu.
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Tecnologia e decoração

Os cachimbos são parte de uma complexa rede de comércio e intercâmbio cultural ligada à
produção e ao consumo de tabaco, que se iniciou no século XVI e conectou Europa, América e
África. Em uma sequência de trocas, idas e vindas, o tabaco e os cachimbos difundiram-se como
parte da expansão do capitalismo. Em uma rede de comércio e influência transatlântica, os
cachimbos foram levados da América, ainda nos primeiros anos de colonização, para o
continente europeu. Paralelamente, o tabaco produzido nas colônias americanas e os cachimbos
europeus foram usados como moeda de troca para a obtenção de escravos. Na África, como a
Europa, o gosto pelo tabaco expandiu-se com uma velocidade impressionante. Além disso, no
caso dos cativos, o interesse pelo tabaco foi incitado nos navios negreiros, onde eram distribuídos
cachimbos e tabaco.98

Os cachimbos de barro, ao contrário dos de caulim, estiveram limitados a produção e comércio


locais na África Subsaariana, Estudos Unidos e Brasil. As técnicas empregadas em sua
manufatura foram a moldagem e a modelagem. A primeira consiste no emprego de uma forma de
duas partes na produção das peças (da mesma forma que se faziam os de caulim), enquanto a
outra se vale predominantemente das próprias mãos do artesão. No caso do Brasil, os cachimbos
de barro encontrados em coleções e nas escavações arqueológicas são majoritariamente feitos a
partir de moldes. Nas coleções analisadas de cachimbos de Minas Gerais a grande maioria dos
artefatos inteiros e fragmentos tinham sido produzidos por moldagem (ver Tabela 1).

98HANDLER, Jerome. “The Middle Passage and the Material Culture of Captive Africans”. Slavery and Abolition
.Vol. 30, n. 1., p. 1–26, 2009.
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Figura 2. Terminologia das partes do fornilho.1 Desenho: Marcony
Lopes Alves.

O processo produtivo dos cachimbos de barro no Brasil não foi alvo de nenhum relato
de cronista ou historiador até meados do século XX. O único relato conhecido é o que foi
publicado nos anais da Anpuh por uma historiadora, que descreve a produção de cachimbos de
barro moldados por uma indústria familiar criada pelo imigrante italiano Maximiliano Viviani, no
ano de 1895, em Osasco, SP99. Esse texto, no entanto, descreve o processo produtivo de peças de
um período posterior à maioria das peças depositadas em coleções museológicas ou encontradas
em sítios arqueológicos100. Além disso, o dono da fábrica veio da Itália trazendo as ferramentas de
trabalho e o conhecimento do processo produtivo. Os cachimbos de Osasco apresentam
diferenças evidentes na decoração daqueles geralmente disponíveis para os arqueólogos. A
descrição, mesmo com suas limitações, pode oferecer algumas pistas sobre as técnicas e
procedimentos empregados na produção de cachimbos de barro. As ferramentas101 utilizadas para
o acabamento das peças na fábrica de Viviani podem ser muito semelhantes àquelas empregadas
na produção das peças arqueológicas. A lancheta, instrumento metálico semelhante a uma pazinha,
tinha seu cabo usado para realizar o orifício cilíndrico do porta-boquilha e para tirar a rebarba do

99 WERNER, Helena. “O artesanato no município de Osasco em fins do século XIX”. Anais do Simpósio de Professores
Universitários de História . Franca, p. 251-271 1966.
100 Isso fica evidente por causa das diferenças morfológicas e decorativas das peças da fábrica de Viviani e as peças

analisadas ou descritas na bibliografia arqueológica.


101 Os nomes conhecidos para essas ferramentas eram apenas em italiano.

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molde nas peças. Outra ferramenta metálica, a espina, com uma ponta cônica e cabo de madeira,
era usada para fazer o orifício do fornilho. A morfologia e estrias no interior dos fornilhos
analisados indicam o uso de peças como a espina para sua manufatura, sendo que o mesmo pode
ser dito dos orifícios de porta-boquilha. No entanto, o emprego de chumbo, como ocorre em
Osasco, para a produção dos moldes parece menos plausível, no caso de peças do século XVIII e
início do XIX no Brasil. Talvez, tenham sido empregados moldes de argila, como na fase inicial
da produção de moldes de chumbo. A análise dos cachimbos, principalmente os fragmentos da
Coleção de Conceição do Mato Dentro, permitiu identificar “erros” no processo de produção,
como duplo orifício do porta-boquilha ou emprego de segunda camada de argila para reformar o
fornilho, além da utilização de cachimbos com partes que não foram completamente moldadas.
Outra informação de nível tecnológico foi a abertura do orifício do fornilho antes do orifício do
porta-boquilha.

Coleção Município Peças inteiras Fragmentos Porcentagem


de modelado
Museu de Artes e Belo Horizonte 17 1 94,4%
Ofícios (MAO)*
Setor de Museologia Belo Horizonte 1 2 100%
(MHNJB- UFMG)
Setor de Arqueologia Belo Horizonte 4 2 100%
(MHNJB-UFMG)
Coleção “Raul Tassini” Belo Horizonte 6 0 100%
(MHNJB-UFMG)
Museu Histórico Sete Lagoas 20 3 100%
Museu da Lapinha* Lagoa Santa 26 0 76,9%
Scientia Consultoria Conceição do 12 147 95,0%
Mato Dentro
Tabela 1. Coleções analisadas, a integridade das peças e a porcentagem de peças feitas por modelagem. Os asteriscos
em nomes das coleções indicam que as peças só puderam ser fotografadas e não foi possível manuseá-las. Os sítios
escavados pela Scientia Consultoria com cachimbos analisados foram: Passa Sete III, Passa Sete VIII, Passa Sete XI,
Jabuticabeiras I, Jabuticabeiras II e Dique 71.

A decoração dos cachimbos de barro recebeu mais atenção da Arqueologia – em especial


daquela preocupada com a Diáspora Africana. O motivo disso é a possibilidade de encontrar
ligações entre elementos de origem africana, como escarificações. Minha análise com as peças de
Minas Gerais não apontou nenhum elemento decorativo que poderia ser relacionado
necessariamente aos escravos. Tal tentativa de associação direta a partir da presunção essencialista
dos cachimbos de barro como “cachimbos de escravo” dá poucos frutos também na bibliografia

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arqueológica de Minas Gerais e outros estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Rio
Grande do Sul e Pará. Apenas no pelourinho de Salvador (BA) parece ter sido possível
estabelecer uma relação entre decoração semelhante às escarificações de uma origem específica de
escravos, com uma proporção superior a um décimo da coleção102.

Um dos problemas da pressuposta associação entre escravos e cachimbos é a dificuldade


de aproximar uma decoração “barroca” a influências de mundos africanos. Como resultado disso,
algumas sugestões interpretativas têm tomado certas decorações, que poderiam ser interpretadas
de maneira mais econômica pela sua relação com a importância do Barroco no Brasil, e as
resumido a influências africanas. Um exemplo disso é a tentativa pouco fundamentada de
associar o motivo “estrela” ou “sol” presente em um cachimbo com uma figura de funeral de
negro feita por Chamberlain103. A mesma autora tenta associar um motivo “fitomorfo” e uma
escarificação do povo Dinka. Outros autores tentaram identificar um “rosário” em um padrão
decorativo muito recorrente em Minas Gerais104 – eu o denomino “duas caras”, sendo ele o
mesmo do “tipo antropomorfo 2” de Agostini. Essas tentativas não foram muito bem sucedidas,
bem como a empreitada de Agostini em sua monografia, porque tomavam como dada a relação
entre escravos e cachimbos.

Caso o ponto de partida seja outro, como as próprias peças, acredito que seja possível
explicar mais elementos de sua decoração. Assim, por exemplo, é preciso assumir que a maior
parte das peças possui uma decoração com volutas e figuras antropomorfas semelhantes às
encontradas na arquitetura barroca, como, Frederico Barata105 apontou para Santarém (PA),
Brancante106 para o Sudeste do Brasil e Marcos Torres de Souza107 para Goiás. Há uma grande
diversidade de padrões com volutas, cornucópias, semiesferas e cordas nos cachimbos

102 SOUZA, Marcos André Torres de & AGOSTINI, Camila. “Body Marks, Pots, and Pipes: Some Correlations
between African Scarifications and Pottery Decoration in Eighteenth- and Nineteenth-Century Brazil”. Historical
Archaeology, N. 46(3). pp. 102–123, 2012.
103 AGOSTINI, Camilla. Mundo Atlântico e Clandestinidade: Dinâmica material e simbólica em uma fazenda litorânea no sudeste,

século XIX. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal
Fluminense, p. 110-111, 2011.
104 PAIVA, Zafenathy; FAGUNDES, Marcelo; BORGES, Joina. “‘Uma baforada sim sinhô’:cachimbos de escravos

para se entender a dinâmica sociocultural da Diamantina oitocentista”. Revista Tarairú. Campina Grande, vol.IV, nº 1,
p.165-186, 2015.
105 BARATA, Frederico. Arqueologia. Coleção “As artes plásticas no Brasil”.Tecnoprint gráfica, Rio de Janeiro, 1952.
106 BRANCANTE, E. F. O Brasil e a cerâmica antiga. São Paulo, ano MCMLXXXI. São Paulo: Cia. Lithográfica

Ypiranga, 1981.
107 SOUZA, Marcos André Torres de. Ouro Fino. Arqueologia Histórica de um Arraial de Mineração do Século XVIII, em

Goiás. Goiânia: Dissertação (Mestrado) Programa de Mestrado em História das Sociedades Agrárias, Faculdade de
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2000.
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modelados. As duas figuras antropomorfas presentes no padrão variado “duas caras” 108 (ver
Figura 1) e suas volutas poderiam ser interpretadas como uma forma presente em retábulos
barrocos ou mesmo como variantes (negações?) de anjos e seres “fantásticos”. Os cachimbos
com esse padrão apresentam no fornilho uma figura de rosto grande e, na maioria das vezes, um
corpo em forma de pétala, sem pés, com seios e umbigo. Os braços da figura “feminina”
costumam a se assemelhar asas de anjo. No porta-boquilha, há uma figura diferente, com um
corpo em pétala também. As duas caras poderiam ser uma das “formas exóticas combinando o
humano e o animal, meias-figuras, cujos membros inferiores e\ou superiores são retorcidos
terminando em volutas, em cornucópia, em bulbo, em franjas ou em folhagens de acanto” 109
encontradas em partes de igrejas do Barroco português. Se pensarmos em formas que misturam o
humano e o animal, podemos associar a presença de braços que se assemelham ou são asas. Em
todo o caso, ainda não consegui identificar exatamente o que seriam as “duas caras” presentes
nos cachimbos. Minhas colocações sobre este e outros padrões devem ser tomadas como
sugestões, mas que parecem conseguir explicar mais elementos decorativos.

Figura 3. Cachimbo com fornilho do tipo “cabeça de turco”. Sítio São


Francisco (SP). Imagem obtida em:
<http://www.sitiosaofrancisco.org.br/> Acesso em 29 de junho de
2015.

108Identifiquei em minhas análises mais de uma dezena de variantes deste padrão.


109CAMPOS, Adalgisa. Introdução ao Barroco Mineiro. Belo Horizonte: Crisálida, p. 40, 2006.
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As marcas barrocas nos cachimbos não são o único elemento que aproxima a decoração
dos cachimbos de elementos europeus. O uso dos mesmos padrões dos cachimbos de caulim
mostra que a decoração dos cachimbos não pode ser assumidamente relacionada com os
escravos. Um tipo de cachimbo de caulim muito comum é o “cabeça de turco”, que apresenta
um rosto de homem usando um turbante. Esse mesmo cachimbo pode ser encontrado feito de
barro no Brasil. Os cachimbos com esse padrão podem ter sido importados, como sugerem
Sudbury e Hunt110 para os Estados Unidos. O padrão “Jonas e a baleia” também ocorre tanto
em cachimbos europeus de caulim quanto em cachimbos de barro encontrados no Brasil. Ainda
não é possível dizer quais são as reais consequências desse compartilhamento de padrões, nem
das influências barrocas. É possível que os cachimbos de barro moldados tenham sido
importados prontos, como os de caulim, ou na forma de moldes. A inexistência de referências
dessas peças na Europa pode indicar uma produção destinada a mercados periféricos, como os
do Brasil e da África Subsaariana. Além disso, é preciso abandonar a enganosa pressuposição do
“cachimbo de escravo”, bem como considerar as consequências do uso pelos escravos de
cachimbos com padrões europeus, como coloca Torres de Souza111.

Iconografia e relatos de viajante

Dizer que muitos cachimbos de barro, talvez a maioria deles, não apresenta
elementos “característicos” de mundos africanos diaspóricos; não explica a existência do lugar
comum “cachimbo de escravo”, apenas amplia a complexidade do estudo dos artefatos. A
existência de um lugar comum, seja qual for sua capacidade de explicação, merece atenção e é
preciso explicá-la. Foi nesse intuito que me dediquei a uma pequena revisão da iconografia
produzida por viajantes no final do século XVIII e ao longo do século XIX. Além disso, busquei
ler alguns relatos que poderiam ajudar nesse sentido. A revisão mostrou que a forte associação
dos cachimbos com “os escravos” é importante para pensar os artefatos depositados em coleções
museológicas ou coletados em escavações arqueológicas. Todavia, novas questões também
devem ser tomadas em conta.

110 SUNDBURY, Byron & HUNT Jr., William. “Politics of the Fur Trade: Clay Tobacco Pipes at Fort
Union, North Dakota”. Captado em: <http://www.nps.gov/archeology/sites/npsites/fortUnion.htm> Acesso em
29 de junho de 2015.
111 SOUZA, Marcos André Torres de. Ouro Fino. Arqueologia Histórica de um Arraial de Mineração do Século XVIII, em

Goiás. Goiânia: Dissertação (Mestrado) Programa de Mestrado em História das Sociedades Agrárias, Faculdade de
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2000.
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A revisão contou com a consulta a compilações de imagens produzidas por
cronistas que estiveram no Brasil em A travessia da Calunga Grande112, Enciclopédia Itaú Cultural113,
The Atlantic Slave Trade and Slave Life in the Americas: A Visual Record114, Biblioteca Nacional:
Acervo digital115. A pesquisa também contou com uma visita à Pinacoteca do Estado de São
Paulo. Além disso, revisitei a Viagem Pitoresca ao Brasil de Debret116 e a Viagem Pitoresca através do
Brasil de Rugendas117. Foram identificadas 25118 imagens de escravas e escravos usando cachimbos
em aquarelas, pinturas e uma fotografia, dois homens brancos fumando em cachimbos, além de
duas imagens de mulheres “caipiras” fumando cachimbos de Almeida Júnior (“Nhá Chica” e; no
fundo de “Apertando o estribilho”). A maioria dessas imagens é de cenas da capital fluminense, à
época capital do Brasil. Esse recorte é muito específico, sendo amenizado apenas pelos relatos
escritos dos viajantes (ver abaixo). A análise da iconografia mostrou uma predominância da
figuração de mulheres pitando em cachimbos: treze escravas, além das duas mulheres livres do
final do século XIX em Almeida Júnior. O contexto mais comum é o do ganho nas ruas do Rio
de Janeiro, como em “Vendedoras ambulantes” de Carlos Julião ou em “Negros vendedores de
carvão”. Em “Interior de uma casa do baixo povo”, uma figuração de uma cena de descanso, é
possível ver um homem e uma mulher negros deitados em redes fumando em cachimbos e uma
mulher negra de pé com um cachimbo na mão. Em “Tropeiros pobres de Minas” é possível ver
o que parece ser um local de pouso e venda de artefatos. Há na cena uma gamela cheia de
cachimbos de barro, que parecem estar à venda. Esta é a única cena em que os cachimbos não
estão sendo usados.

A consulta ao livro com uma grande coleção de referência a artefatos, o Equipamentos usos
e costumes da casa brasileira: Objetos119, mostrou que nos textos os cronistas, como Bates, Freiyreyss,
Castelnau, Saint-Hilaire e Martius e Spix notaram o consumo de tabaco em cachimbos destacado

112 MOURA, Carlos Eugênio Marcondes. A travessia da Calunga Grande. Três séculos de imagens sobre o Negro no Brasil.
(1637-1899), São Paulo, Edusp, 2000.
113 ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. Captado em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/> Acesso em 15

de abril de 2015.
114 HANDLER, Jerome & TUITE Jr., Michael. The Atlantic Slave Trade and Slave Life in the Americas: A Visual

Record. Captado em: < http://hitchcock.itc.virginia.edu/Slavery/index.php> Acesso em 15 de abril de 2015.


115 BIBLIOTECA NACIONAL Acervo Digital: <http://bndigital.bn.br/acervodigital> Acesso em 20 de abril de

2015.
116 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.São Paulo: Martins & Edusp,1972.
117RUGENDAS, Johann Mortz. Viagem pitoresca através do Brasil. Tradução Sérgio Millet. 5. ed. São Paulo: Martins,

1954
118 Desconsiderei uma imagem de Maria Graham, duas de Chamberlain e uma de Debret, que eram adaptações de

figuras feitas por outros.


119 GUERRA, José Wilton & SIMÕES, Renata da Silva (org.). Equipamentos usos e costumes da casa brasileira:

Objetos. V. 4. Fichário Ernani Silva Bruno. São Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2001.(ver verbete “Cachimbo”)
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entre as mulheres, em diversas partes do Brasil. Debret não poderia ter sido mais enfático quanto
a esta questão no Rio de Janeiro:

Todas as negras fumam cachimbo, mas os negros preferem os cigarros de fumo


picado. Muitas vezes fabricam êsses cigarros com rapé enrolado em pequeno
tubo de papel, distração que não prejudica em nada a de mascar durante o resto
do dia.120

Outros elementos puderam ser apreendidos também: 14 dos cachimbos presentes na


iconografia são de barro, enquanto 9 eram de caulim e não foi possível precisar no caso de 5
peças. Também foi possível observar a predominância de cachimbos com haste vegetal curta, ao
mesmo tempo, em que aprecem em menor proporção as hastes longas - de um metro, como
relata Freyreyss em Tocantins. O príncipe Maxmiliano chega a mencionar uma espécie de
samambaia usada como fonte de hastes para os cachimbos, a Mertensia dichotoma. Camilla Agostini
identificou uma misteriosa importação de 300 canudos de pito da África por uma loja de secos e
molhados do Rio de Janeiro121. É digno de nota também que o Arraial de Canudos recebeu esse
nome devido a grande presença de uma planta chamada “canudo de pito”.

O príncipe Maxmiliano, num relato detalhado de uma cena em Lagoa Feia e uma
reflexão sobre o uso de cachimbo no Brasil, deixa claro que a utilização de cachimbos de barro
estava tanto associada aos escravos quanto aos pobres:

A dona da cabana em que me alojei era uma mulher loquaz e jovial, de tez
descorada, vestida muito ligeiramente e trazendo à boca um cachimbo, como a
maioria das mulheres das classes baixas do Brasil. Os brasileiros fumam, de
preferência, cigarros feitos de papel, colocando-os atrás da orelha. Essa maneira
de fumar não foi levada ao Brasil pelos europeus, mas veio dos Tupinambás e
de outras tribos do litoral. Costumavam estes enrolar certas folhas aromáticas
numa folha maior, acendendo-as na ponta. Os cachimbos usados pelos
pescadores, como em todo o Brasil, particularmente pelos negros e outras
pessoas das classes mais humildes, constam de um pequeno recipiente de barro
cozido escuro e de um tubo fino e liso, feito da haste de uma espécie de feto,
que cresce a considerável altura, ("samambaia"), a Mertensia dichotoma.
Entretanto, prefere-se geralmente, entre todas as classes do povo brasileiro,
tomar rapé a fumar122.

120 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.São Paulo: Martins & Edusp, p. 205, 1972.
121 AGOSTINI, Camilla. “Cultura material e a experiência africana no sudeste oitocentista: cachimbos de escravos
em imagens, histórias, estilos e listagens”. Topoi, v. 10, n. 18, Rio de Janiero. 2009
122 WIED-NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817. Tradutores Edgard Süssekind de

Mendonça e Flávio Poppe de Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora Brasiliana, 1ª Ed., p.94, 1942.
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Na análise de um processo-crime aberto por um escravo contra outro no Vale do Paraíba
imperial, Camilla Agostini123 identificou a única informação sobre preço de cachimbo de barro no
Brasil. A peça valia 10 tostões, preço muito baixo e acessível a escravos e homens livres pobres, o
que explica seu uso disseminado. Também é preciso considerar que os cachimbos poderiam ser
modelados em pequena escala para atender necessidades pessoais. Seria interessante obter mais
dados sobre o preço dos cachimbos de barro e também dos cachimbos de caulim, para que se
façam comparações.

Considerações Finais

Este texto como uma reunião de “notas” buscou apresentar alguns problemas com a
presunção direta da associação entre escravos e cachimbos de barro. A predominância de
decorações de influências europeias nos cachimbos de barro que podem ter sido usados por
mulheres escravas parece ser uma questão interessante para análise, havendo elementos empíricos
para a discussão. As colocações desses cronistas, a iconografia e outras informações mostram ao
mesmo tempo que a ideia de “cachimbo de escravo” não é nem uma invenção sem base empírica
nem uma realidade dada e simples. Para a análise de material arqueológico coletado em
escavações controladas essa questão pode ser vista a partir do contexto, embora eles não sejam
sempre claros. Muito é preciso ser feito sobre o uso de cachimbos no Brasil dos setecentos e
oitocentos. A imagem do “caipira” pintado por Almeida Júnior em São Paulo e presente na
imagem do Jeca Tatu interpretado por Mazzaropi deve ser uma consequência dos processos dos
dois séculos anteriores. As possibilidades de conexões devem ser traçadas.

Agradecimentos

Agradeço ao professor Marcos Torres pelos comentários e contribuições a minha


apresentação e o apoio que sempre me deu nessa pesquisa. Tenho também muito a agradecer ao
Gustavo Jardel por revisar o texto final.

AGOSTINI, Camilla. “Cultura material e a experiência africana no sudeste oitocentista: cachimbos de escravos
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em imagens, histórias, estilos e listagens”. Topoi, v. 10, n. 18, Rio de Janiero. 2009
Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7 (Suplemento,
2015) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2016. ISSN: 1984-6150 -
www.fafich.ufmg.br/temporalidades
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