Migrant Images
The Constitution of the Drought’s Figurability
by Late-Nineteenth-Century and Early-Twentieth-Century Literature
Recebido: 13 jun. 2016 | Revisto pelo autor: 12 jul. 2016 | Aceito: 28 jul. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/0104-87752017000100010
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 33, n. 61, p. 225-251, jan/abr 2017
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
O uso cotidiano das palavras faz com que as naturalizemos. Ainda mais
quando essa palavra nomeia, indicia e remete para um fenômeno que
costumamos localizar apenas na natureza. A palavra seca, ainda mais na
região Nordeste do Brasil, perde, assim, toda a sua dimensão conceitual,
para ser percebida como um simples nome que tautologicamente se
refere ao que ela é. Além de não ser vista como um conceito, a palavra
seca, notadamente o enunciado seca do Nordeste, é assim desprovido de
sua historicidade e tomado como algo em si mesmo, como algo por si
mesmo evidente, como uma denominação que sempre existiu. Normal- Antes da seca
ser do Nordeste
mente não se faz ideia de que antes da seca ser do Nordeste, ela foi, ela foi
inicialmente, até a chamada grande seca de 1877-1879, seca do Ceará, seca do Ceará,
seca do Norte,
para só nesse momento passar a ser seca do Norte, tornando-se, seca até se tornar
seca do Nordeste,
do Nordeste, apenas quando da criação da Inspetoria Federal de Obras qdo. foi criada a
Inspetoria Federal
Contra as Secas (IFOCS), em 1919.1 de Obras Contra
as Secas, em 1919.
1 A Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (IFOCS) veio substituir a Inspetoria de Obras
Mas o que significa dizer que a palavra seca é um conceito, que o enun-
ciado seca do Nordeste é conceitual e possuem historicidade? Afinal,
o que é um conceito? Para Gilles Deleuze e Félix Guattari, o conceito é
um agregado sensível, é um recorte feito nos mundos possíveis através
do uso da linguagem, o conceito faz ver, ele faz gravitar em torno de um
conjunto gráfico e sonoro um universo de imagens, um arquivo imagé-
tico. Quando usamos o conceito seca do Nordeste, imediatamente re-
metemos o ouvinte para um aglomerado de imagens, para um conjunto
de figuras, que remetem, por sua vez, para dados tempos e para dados
acontecimentos históricos. Daí porque Deleuze e Guattari afirmam que O conceito é um
o conceito é também um acontecimento, tem uma historicidade e é tem historicidade.
acontecimento e
contra as Secas (IOCS) criada em 1909. Era um órgão do governo federal destinado a coor-
denar as políticas de socorro às vítimas das estiagens periódicas que ocorrem no Nordeste
e a realização de obras públicas, como grandes açudes e estradas de rodagem, que seriam
destinadas a combater esse fenômeno.
2 Seguimos aqui os passos de DIDI-HUBERMAN, 2013b, p.16-34, que define a figurabilidade
não apenas como o modo encontrado racionalmente para fazer figura, para apresentar, para
Arqueologia conceitual: escavar as camadas de sentido, as distintas imagens, as variadas figuras e os
tempos em que elas emergiram, que compõem o arquivo suscitado por um dado conceito.
Arqueologia visual
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Durval Muniz de Albuquerque Júnior
2013b, p.16, p.24) para o que seria esse fenômeno e sua ocorrência par-
ticular nesse espaço. É preciso chamar a atenção para o fato de que essas
imagens e essas figuras, mesmo aquelas que advém de temporalidades
outras, são agenciadas e articuladas a partir do jogo social e político
que se desenrola em um dado momento histórico preciso. Os conceitos
estão, por isso mesmo, permanentemente abertos a remanejamentos, a
reordenações das figuras e dos elementos que os compõem, eles estão
em constante reelaboração, em contato com novos materiais discursivos
e dependentes das práticas não discursivas. O conceito é um arranjo
provisório de figuras, é uma arquitetura e uma estrutura mais ou menos
coerente e consistente de imagens, dependente das forças sociais, insti-
tucionais e políticas que o sustentam. Todo conceito obedece, portanto,
a uma política, seja no interior do campo discursivo, seja em relação
aos demais campos da ação humana.
Parte 1: Podemos dizer que a literatura de que vamos tratar, o conjunto de
literatura das secas
textos que compõem o que poderemos nomear de literatura das se-
cas, vem inicialmente responder a um desafio, a um projeto que, já no
nascedouro, é inextricavelmente político e literário: projeto claramente
enunciado em uma carta endereçada a um remetente não nomeado que
o escritor cearense Franklin Távora insere como prefácio do autor ao
seu romance O Cabeleira, publicado em 1876: o projeto de criação, de
escritura de uma literatura do Norte (Távora, 1973, p.21-29).3 De saída,
ao mesmo tempo em que dá a luz ao que seria o primeiro exemplar
dessa literatura, Franklin Távora já propõe um conceito para nomeá-la,
distingui-la, singularizá-la. Ele propõe um recorte no mundo dos dis-
cursos literários para propor a criação de um espaço literário específico
e próprio para o livro que lançava pudesse habitar e, ao mesmo tempo,
endereçava um convite para que outros textos viessem preencher e se
tornar visível, para fazer presença de algo ou de alguém numa dada forma de representação, mas
também o que escapa à consciência, as imagens, as estruturas narrativas que inconscientemente
são utilizadas na hora de tornarmos visíveis, de fazer figura de algo ou alguém. A figurabilidade
como essa articulação particular em uma dada obra de imagens conscientes e inconscientes
que produzem uma dada maneira de ver.
3 TÁVORA, Franklin. O Cabeleira. São Paulo: Editora Três, 1973 (1a edição 1876).
Mas desgraçadamente estas cenas não são geradas por minha fantasia.
São fatos acontecidos há pouco mais de um século. Se só alguns deles
foram recolhidos pela história, quase todos pertencem à tradição que
nô-los legou, antes como límpido espelho, que como tenebrosa notícia
do passado. Não estou imaginando, estou, sim, recordando; e recordar
é instruir, e quase sempre moralizar. Com estas razões considero-me
justificado aos teus olhos, leitor benévolo. (Távora, 1973, p.103-104).
Camada discursiva II
4 O Congresso Agrícola do Recife foi convocado por lideranças políticas e empresariais ligadas
à produção da cana-de-açúcar como uma resposta à promoção por parte do governo imperial
de um Congresso Agrícola no Rio de Janeiro para discutir os problemas ligados à produção
cafeeira localizada nas províncias do Sul, problemas que também afligiriam a produção açu-
careira das províncias do Norte que, no entanto, não são convidadas para o Congresso, como:
substituição da mão-de-obra escrava, renovação tecnológica, meios de transporte, financia-
mento e tributação. Convocado como uma represália ao “abandono do Norte” por parte do
Império, esse Congresso é notabilizado pela emergência de um agressivo discurso regionalista,
com tons até separatistas. Há uma edição fac-similar das Atas do Congresso com o título:
Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife (outubro de 1878). Recife: Imprensa Oficial, 1978.
A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul
dia em dia pelo estrangeiro.
A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças,
as índoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-
se afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua genuína
expressão. (Távora, 1973, p.27).
dônimo usado por Alencar), tais como O Gaúcho e Iracema, aos quais
faltariam o conhecimento da realidade local, incorrendo em graves
erros históricos e na construção de cenários e personagens totalmente
inverossímeis. No prefácio a O Cabeleira, Alencar é sutilmente acusado
de ser um trânsfuga, a medida que ao invés de se dedicar a fazer lite-
ratura apoiada na realidade do Norte, espaço em que nascera, figurava
entre os grandes luminares do que Távora nomeia de literatura austral
(Távora, 1973, p.28). Ao invés de seguir as regras, agora definidas pelo
autor primeiro da literatura do Norte, o autor cearense, em suas obras,
desconhecia os tipos legendários e heroicos produzidos por esse espaço,
os costumes, lendas, poesia, “máscula, vívida e louçã” que nele existiam,
traindo assim o que seria suas origens (Távora, 1973, p.28).
Mas não foi O Cabeleira o romance que inaugurou o que podemos
chamar a literatura das secas. Posteriormente ele será considerado o tex-
to pioneiro em tratar de outra temática central à literatura regionalista
5 PATROCÍNIO, José do. Os Retirantes, 2 vols. São Paulo: Editora Três, 1973 (1a edição 1879).
6 Essas fotografias aparecem ilustrando sua série de artigos para o jornal de que era correspon-
dente, mas não fazem parte de seu texto literário, por isso não são analisadas no âmbito desse
artigo. Essas fotos são analisadas em ANDRADE; LOGATTO, 1994, p.71-83.
12 Para FREUD, 1996, o sintoma pode ser um gesto, um lapso linguístico, uma atitude, um
sonho, uma dor corporal, que realiza um desejo ou manifesta uma emoção, um sentimento,
um trauma de cunho sexual que foi recalcado e que habita o inconsciente. O que interessa
Trecho importante
aqui, da definição de sintoma dada por Freud, é o fato de que ele pode ser tomado como uma
mensagem cifrada, em que imagens e enunciados adquiridos através das várias experiências e
vivências que constituem a vida de um indivíduo numa dada sociedade, bem como adquiridas
através de seu contato com os arquivos de sua cultura, aparecem em dados momentos do
presente, quando da escritura de uma obra literária, por exemplo, como rasgões no tempo,
muitas vezes como imagens condensadas, distorcidas, associadas a novos conteúdos, como
verdadeiras presenças fantasmáticas e anacrônicas, muitas vezes fantasiosas.
13 A recusa à condição carnal, expressa de forma contundente na obra paulina, pode-se cons-
tatar, por exemplo, na Epístola aos Romanos n. 7, notadamente no versículo 7:24: “Miserável
homem que eu sou! Quem me livrará do corpo dessa morte?”.
das sete pragas lançadas contra o Egito pelo Deus hebreu, Patrocínio faz
da seca um momento de ira de um Senhor desafiado por suas criaturas.
Se a via-sacra é composta de quedas, em que o Cristo explicita a
fragilidade da condição humana, momento em que necessita da so-
lidariedade, da piedade e da caridade de um homem comum, valores
cristãos que aparecem representados em alguns personagens da trama,
a literatura da seca também se remete, em quase todas as suas obras,
à queda social de famílias pertencentes ao que seria uma espécie de
tradicional e antiga nobreza rural. Se essa literatura foi fundamental
para construir a seca como um problema político, a merecer a atenção
e intervenção do Estado, se a seca foi descoberta, na chamada grande
seca de 1877-1879, como um problema de âmbito nacional, isso se deve
ao fato de que ela foi a primeira seca que, encontrando esse espaço em
dificuldades econômicas, com o declínio dos preços do açúcar e do al-
godão, principais produtos de exportação, provocou a ruína econômica
de famílias abastadas e consideradas de respeito. Como as finanças das
províncias estivessem abaladas, ao contrário do que ocorrera em secas
anteriores, essas famílias não puderam contar com cargos públicos para
poderem resistir ao período de estiagem. Tal como em secas anterio-
res, como a de 1845, a última a atingir o Ceará e províncias adjacentes,
a perda dos rebanhos e da escravaria significou forte abalado nas fi-
nanças das elites agrárias do sertão, mas desta feita, com a procura de
escravos pelos cafezais que se expandiam no Sul, a venda de escravos
se intensificou e a descapitalização das elites sertanejas se aprofundou
(Albuquerque Jr., 1988, p.15-83; Mello, 1984, p.25-47; Monteiro, 1980,
p.19-66; Teófilo, 2011, p.97; Patrocínio, 1973, p.210). Esses eventos his-
tóricos, testemunhados ou conhecidos através de relatos jornalísticos
ou memorialísticos, vão ser articulados a essa estrutura narrativa de
origem bíblica. A imagem da queda, do desabar do corpo divino na
estrada empoeirada e deserta que levava ao monte estéril do Gólgota,
é agenciada para reaparecer como a queda social de uma elite rural,
que tem agora que perambular pelas estradas como simples retirantes,
indo, alguns deles, terminar nos abarracamentos precários dos campos
de concentração, tendo que realizar trabalhos braçais, como carregar
14 Possivelmente por se referir a uma cidade que deve ter conhecido ou que efetivamente existia,
o autor, durante toda a obra, a nomeia apenas pelas iniciais de seu nome.
15 SALES, Antônio. Aves de arribação. Fortaleza: Edições UFC, 2006 (1a edição 1914).
Agradecimentos
Referências bibliográficas