Anda di halaman 1dari 283

ISSN 1517-2422

cadernos

metrópole
representação política
e governança metropolitana

Cadernos Metrópole
v. 14, n. 27, pp. 1-282
jan/jun 2012
Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP

Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–,

Semestral
ISSN 1517-2422
A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22

1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos.


I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles

CDD 300.5
Periódico indexado na Library of Congress – Washington

Cadernos Metrópole

Profa. Dra. Lucia Bógus


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles
Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes
05015-001 – São Paulo – SP – Brasil

Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro


Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles
Av. Pedro Calmon, 550 – sala 537 – Ilha do Fundão
21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970


São Paulo – SP – Brasil
Telefax: (55-11) 3368.3755
cadernosmetropole@terra.com.br
http://web.observatoriodasmetropoles.net
Secretária
Raquel Cerqueira
rrepresentação
epresentação p política
olítica
eg
governança
o v e r n a n ç a metropolitana
m e t ro p o l i t a n a
PUC-SP
Reitor
Dirceu de Mello

EDUC – Editora da PUC-SP


Direção
Miguel Wady Chaia

Conselho Editorial
Ana Maria Rapassi, Cibele Isaac Saad Rodrigues, Dino Preti, Dirceu de Mello (Presidente),
Marcelo da Rocha, Marcelo Figueiredo, Maria do Carmo Guedes, Maria Eliza Mazzilli Pereira,
Maura Pardini Bicudo Véras, Onésimo de Oliveira Cardoso

Coordenação Editorial
Sonia Montone
Revisão de português
Eveline Bouteiller
Revisão de inglês
Carolina Siqueira M. Ventura
Projeto gráfico, editoração e capa
Raquel Cerqueira

Rua Monte Alegre, 984, sala S-16


05014-901 São Paulo - SP - Brasil
Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085
educ@pucsp.br
www.pucsp.br/educ
cadernos
metrópole
EDITORES
Lucia Bógus (PUC-SP)
Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ)

COMISSÃO EDITORIAL
Eustógio Wanderley Correia Dantas (UFC, Fortaleza/Ceará/Brasil) Luciana Teixeira Andrade (PUC-MG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil)
Orlando Alves dos Santos Júnior (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Sérgio de Azevedo (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/
Brasil) Suzana Pasternak (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil)

CONSELHO EDITORIAL
Adauto Lucio Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Aldo Paviani (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El
Colegio Mexiquense, Toluca/Estado del México/México) Ana Fani Alessandri Carlos (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ana Lucia Nogueira de
P. Britto (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (UFBa, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi (UNGS, Los
Polvorines/Provincia de Buenos Aires/Argentina) Anna Alabart Villà (UB, Barcelona/Espanha) Arlete Moyses Rodrigues (Unicamp, Campinas/São
Paulo/Brasil) Brasilmar Ferreira Nunes (UFF, Niterói/Rio de Janeiro, Brasil) Carlos Antonio de Mattos (PUC, Santiago/Chile) Carlos José Cândido
G. Fortuna (UC, Coimbra/Portugal) Cristina López Villanueva (UB, Barcelona/Espanha) Edna Maria Ramos de Castro (UFPA, Belém/Pará/Brasil)
Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA, Belém/Pará/Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Félix Ramon Ruiz
Sánchez (PUCSP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Fernando Nunes da Silva (UTL, Lisboa/Portugal) Frederico Rosa Borges de Holanda (UnB, Brasília/
Distrito Federal/Brasil) Geraldo Magela Costa (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Gilda Collet Bruna (UPM, São Paulo/São Paulo/Brasil)
Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (PUCSP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heliana Comin Vargas (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heloísa
Soares de Moura Costa (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Jesús Leal (UCM, Madri/Espanha) José Antônio F. Alonso (FEE, Porto
Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) José Machado Pais (UL, Lisboa/Portugal) José Marcos Pinto da Cunha (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil)
José Maria Carvalho Ferreira (UTL, Lisboa/Portugal) José Tavares Correia Lira (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Leila Christina Duarte Dias
(UFSC, Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corrêa do Lago (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luís Antonio Machado da Silva
(Iuperj, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (UFC, Fortaleza/Ceará/Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBa,
Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria do Livramento M. Clementino (UFRN, Natal/Rio
Grande do Norte/Brasil) Marília Steinberger (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Nadia Somekh (UPM, São Paulo/São Paulo/Brasil) Nelson
Baltrusis (UCSAL, Salvador/Bahia/Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Raquel Rolnik (USP, São
Paulo/São Paulo/Brasil) Ricardo Toledo Silva (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (UFMG, Belo Horizonte/
Minas Gerais/Brasil) Rosa Maria Moura da Silva (Ipardes, Curitiba/Paraná/Brasil) Rosana Baeninger (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil)
Sarah Feldman (USP, São Carlos/São Paulo/Brasil) Tamara Benakouche (UFSC, Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia
(PUCSP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Wrana Maria Panizzi (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil)
COLABORADORES AD HOC

Benny Schvasberg (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Denise Cunha Tavares Terra (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/
Brasil) Eduardo César Leão Marques (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Eduardo Marandola Junior (Unicamp, Campinas/São Paulo/
Brasil) Elzira Lúcia de Oliveira (UFF, Niterói/Rio de Janeiro/Brasil) Felipe Link Lazo (UDP, Santiago/Chile) Fernando Garrefa (UFU,
Uberlândia/Minas Gerais/Brasil) Francisco de Assis Comaru (UFABC, Santo André/São Paulo/Brasil) Gislene Aparecida dos Santos
(UFPR, Curitiba/Paraná/Brasil) Gustavo Henrique Naves Givisiez (UFF, Niterói/Rio de Janeiro/Brasil) Humberto Miranda do Nascimento
(Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Isabel Aparecida Pinto Alvarez (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) João Carlos Ferreira de Seixas
(UL, Lisboa/Portugal) João Farias Rovati (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) João Manuel Machado Ferrão (UL, Lisboa/
Portugal) Jorge da Silva Macaísta Malheiros (UL, Lisboa/Portugal) Jorge Manuel Gonçalves (UTL, Lisboa/Portugal) José Geraldo Simões
Junior (Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Laura Machado de M. Bueno (PUCCampinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Lia de Mattos
Rocha (UERJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Lúcia Cony Faria Cidade (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Luciane Soares da
Silva (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/Brasil) Luciano Joel Fedozzi (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) Luís
António Vicente Baptista (UNL, Lisboa/Portugal) Márcia da Silva Pereira Leite (UERJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Marcia Maria
Cabreira M. de Souza (PUC-SP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Márcio Moraes Valença (UFRN, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Maria
Augusta Justi Pisani (Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria Lucia Refinetti R. Martins (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Marísia
Margarida Santiago Buitoni (PUC-SP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Marta Domínguez Pérez (UCM, Madri/Espanha) Marta Dora Grostein
(USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Milena Kanashiro (UEL, Londrina/Paraná/Brasil) Neio Lúcio de Oliveira Camps (UnB, Brasília/Distrito
Federal/Brasil) Norma Lacerda (UFPE, Recife/Pernambuco/Brasil) Olga Lucia Castreghini de F. Firkowski (UFPR, Curitiba/Paraná/Brasil)
Paulo Jorge Marques Peixoto (UC, Coimbra/Portugal) Paulo Roberto Rodrigues Soares (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil)
Regina Maria Prosperi Meyer (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Renato Cymbalista (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Ricardo
Libanez Farret (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Ricardo Ojima (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Rosana Denaldi (UFABC,
Santo André/São Paulo/Brasil) Sérgio Manuel Merêncio Martins (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Silvana Maria Pintaudi
(Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Sonia Lúcio Rodrigues de Lima (UFF, Niterói/Rio de Janeiro/Brasil) Sylvio Carlos Bandeira de
Mello e Silva (UCSal, Salvador/Bahia/Brasil) Vitor Matias Ferreira (ISCTE-UL, Lisboa, Portugal) Weber Soares (UFMG, Belo Horizonte/
Minas Gerais/Brasil)
sumário

9 Apresentação

dossiê: representação política


e governança metropolitana

A er neoliberaliza on? 15 Após a neoliberalização?


Neil Brenner
Jamie Peck
Nik Theodore

Governance and territorializa on: local welfare 41 Governance e territorialização: o welfare local
in Italy between fragmenta on and innova on na Itália entre fragmentação e inovação
Lavinia Bifulco

Electoral strategy under open-list 59 A estratégia eleitoral na representação


propor onal representa on proporcional com lista aberta
Barry Ames

The weight of the metropolitan vote: 89 O peso do voto metropolitano: a representa vidade
the representa veness of metropolitan regions das regiões metropolitanas na Assembleia
in the Legisla ve Assembly of Paraná Legisla va do Paraná
Jéferson Soares Damascena
Celene Tonella

Habitus, planning and public governance 115 Habitus, planejamento e governança urbana
Nilton Ricoy Torres

Nego a ng the territory: the formula on 135 Negociando o território: a formulação do Plano
of the Strategic Master Plan of São Paulo Diretor Estratégico de São Paulo (2002-2004)
(2002-2004) Sidney Piochi Bernardini

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 1-282, jan/jun 2012 7
artigos

The tendency towards a degrading spa ality 155 A espacialidade degradante tendencial e o horizonte
and the horizon for poli cal space educa on de uma educação polí ca do espaço
Ulysses da Cunha Baggio

Gated communi es, me, space and society: 171 Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade:
a historical perspec ve uma perspec va histórica
Rita Raposo

Brasília: the straight lines in reverse 197 Brasília: as linhas retas pelo avesso
or the intersec on of usage ou no entrecortar do uso
Rosângela Vieira Neri Viana
Karla Chris na Ba sta de França
Ananda de Melo Mar ns

Urban planning and flooding in Dourados: 217 O planejamento urbano e as enchentes


the distance between reality and legality em Dourados: a distância entre a realidade
e a legalidade
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski
Maria Aparecida Mar ns Alves
Luciana Ferreira da Silva
Joelson Gonçalves Pereira

Changes in the socio-occupa onal structure 233 Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das
of the Brazilian metropolises, 1991-2000 metrópoles brasileiras, 1991-2000
Suzana Pasternak

279 Instruções aos autores

8 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 1-282, jan/jun 2012
Apresentação

Reunindo tanto trabalhos de natureza teórica como investigações empíricas, o dossiê do


Cadernos Metrópole n. 27 centra-se em tema de inquestionável relevância para a vida presente
e futura das metrópoles: com pontos de partida diversos – seja no que se refere aos problemas
teóricos discutidos, como às realidades empíricas analisadas –, os artigos aqui reunidos convergem
para um denominador comum, a saber, a relação nem sempre linear e positiva observada entre
os caminhos da Governança Metropolitana e a dinâmica da Representação Política. Da leitura
dos artigos que fazem parte do presente dossiê, é possível se identificar um conjunto de indícios
preciosos sobre o impacto fundamental dos mecanismos de representação sobre os limites,
prospectos e possibilidades de uma governança de natureza metropolitana.
Sabem os estudiosos dos modelos de representação e de democracia que as instituições
políticas variam de acordo com grau em que fragmentam e dispersam recursos de poder,
ou agregam e concentram esses recursos. Denominam-se consociativos aqueles modelos de
democracia que produzem incentivos à fragmentação, e majoritários os que têm por efeito a
concentração desses recursos. Sem entrarmos no campo extenso do debate sobre as virtudes
e mazelas dos dois modelos, é suficiente aqui assinalar que, para um número considerável de
analistas, os arranjos consociativos estariam na raiz de uma série de disfuncionalidades observadas
nos sistemas políticos inspirados por essa matriz institucional: pulverização e atomização excessiva
dos atores políticos, multiplicação dos pontos de veto, custos de cooperação aumentados,
resultados subótimos de política, notadamente, a subprovisão de bens públicos. Não é preciso
dizer que os arranjos dessa natureza se traduziriam em fortes desincentivos à montagem de
mecanismos de governança metropolitana, os quais a um só tempo demandariam e ocasionariam
a concentração de recursos de poder no âmbito das regiões metropolitanas, introduzindo nessas
regiões uma dinâmica institucional de natureza majoritária.
Ora, as críticas ao funcionamento do sistema político brasileiro recaem exatamente
sobre o forte componente consociativo presente no interior de nossa matriz institucional, mais
precisamente, o federalismo robusto – que a um só tempo amplia o papel dos entes municipais e

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012 9
Apresentação

das minorias estaduais – o multipartidarismo e a personalização do mandato parlamentar. Fazendo


coro à linha crítica que associa a fragmentação do sistema político brasileiro a desafios no campo
da governabilidade, Barry Ames traz contribuição inovadora às investigações sobre geografia do
voto e representação; em trabalho pioneiro aqui publicado, o artigo “A estratégia eleitoral na
representação proporcional com lista aberta”, Ames observa que, no caso do sistema proporcional
brasileiro, os deputados podem traçar diferentes estratégias para obtenção do mandato, com
resultados diversos no espaço: concentram votos em determinadas áreas e nelas são majoritários;
concentram votos, mas não são majoritários; fragmentam os votos e são majoritários em
determinadas áreas e, por fim, fragmentam os votos, mas sem dominarem essas áreas.
Com essa taxonomia, Ames descreve os quatro distritos “de fato”, a partir de onde se
elegeriam nossos representantes e constata que aqueles representantes oriundos de áreas onde são
eleitoralmente majoritários pautam sua conduta no legislativo por motivações paroquiais, priorizando
políticas distributivas e a obtenção de benefícios desagregados para suas respectivas bases.
Na sequência do trabalho de Ames, investigações do Observatório das Metrópoles
identificaram nas regiões metropolitanas deputados eleitos com base geográfica concentrada
em um único município ou em áreas ainda mais limitadas no interior de um único município
(perfil comum à quase totalidade dos deputados ali eleitos); identificou-se, assim, um novo
localismo de corte municipal ou inframunicipal que produz desincentivos ao tratamento da
agenda metropolitana nas instâncias legislativas. Assim, no que se refere à metrópole, nosso
sistema representativo reforça e reafirma a fragmentação da dinâmica política, dinâmica avessa à
governança metropolitana.
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella testam e confirmam a hipótese do localismo
e paroquialismo metropolitano no estado do Paraná: deputados com votação espacialmente
concentrada e atuação paroquialista no âmbito da Assembleia Legislativa priorizam políticas
distributivistas e ignoram a temática metropolitana. Verificam ainda no caso do Paraná a
replicação de uma segunda consequência perversa da operacionalização de nosso sistema
eleitoral: a sub-representação das áreas metropolitanas em benefício de áreas mais atrasadas.
Embora circunscritos à análise do município de São Paulo, os trabalhos de Nilton Ricoy
Torres e Sidney Piochi Bernardini exploram duas dimensões ou possibilidades – até certo ponto
contraditórias – de definição do sentido da governança urbana: governança definida como
instância de racionalidade e de planejamento vertical, de um lado, e governança entendida
como instância de articulação e processamento dos interesses dos atores sociais, de outro.
Valendo-se de conceitos centrais da teórica sociológica de Bourdieu, como habitus, campo e
dinâmicas de luta pelo poder e dominação, Torres identifica e analisa uma concepção específica
de governança urbana, regulada por normas e orientações próprias, a saber, a governança
entendida como planejamento. Observa que, limitada à gramática do planejamento, a
governança urbana teria sua orientação definida ex ante : caberia ao agente-planejador nada
mais do que articular racionalmente meios ao fim de disciplinar e dirigir o objeto de sua ação – o
urbano. Compreender a governança como planejamento requer, por seu turno, o mapeamento

10 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012
Apresentação

da dinâmica dos conflitos no interior do campo e a identificação, no tempo, da variação no grau


de autonomia do campo vis-à-vis os atores sociais – questões que apresentam um novo marco de
análise para as investigações da governança urbana.
O artigo de Sidney Piochi Bernardini focaliza uma outra variável – situada fora do âmbito
estatal – com impacto sobre a governança urbana: a dimensão da participação e interação dos
atores sociais. A partir de rica e detalhada descrição das diversas etapas de formulação do Plano
Diretor Estratégico de São Paulo, Bernardini analisa o grau de mobilização participação, de um
lado, e a natureza dos interesses, de outro, de três atores sociais centrais no curso do processo
de formulação do plano diretor: os representantes do setor imobiliário, as associações de bairro
e os movimentos sociais por moradia. Por meio da análise das diversas etapas que culminaram
na formulação do plano, tenta-se responder a duas questões maiores: a) o planejamento urbano
pode mobilizar participação da sociedade? b) a participação dos diversos atores sociais produz
consequências no que diz respeito ao planejamento?
O artigo responde de maneira afirmativa às duas questões. Ao longo das diversas etapas
que marcaram a formulação do plano diretor de São Paulo, a participação popular se mostrou
crescente, alcançando ao fim o universo de 3.000 entidades e 50.000 pessoas. A pressão dos grupos
envolvidos, por sua vez, importou em alterações significativas na minuta formulada pelo Executivo,
seja na definição da abrangência da regulamentação, seja na especificação de aspectos pontuais
como a delimitação do potencial construtivo ou na definição do número de zonas especiais de
interesse social. O PDE de São Paulo aparece, assim, como exemplo de formulação de instrumento
de política urbana ou, se quisermos, de governança urbana pela via democrática.
Se a perspectiva da construção de uma governança metropolitana sofre importantes
constrangimentos internos decorrentes de nossa matriz institucional, orientada pelo
consociativismo e pela pulverização dos recursos de poder, pela fragmentação dos atores
políticos, experiências comparadas de modelos semelhantes podem sugerir outros desfechos. O
artigo de Lavinia Bifulco é exemplar neste sentido: trazendo a experiência da descentralização
experimentada pela Itália nas últimas décadas. Em “Governance e territorialização: o welfare local
na Itália entre fragmentação e inovação”, Bifulco vai chamar a atenção, com base na experiência
de descentralização que vem ocorrendo naquele país, para o fato de que a descentralização não
está fadada a se traduzir em ações de governança que impedem a cooperação ou que acentuem
desigualdades regionais; se a descentralização, via de regra, traz essas implicações, abre, no
entanto, possibilidades novas e virtuosas de governança.
Descreve o artigo movimento linear de descentralização que vem reduzindo o escopo de
funções do estado-nacional no território: a Europa das regiões caminhou na direção da Europa
das cidades; ao mesmo tempo, o âmbito do Estado de Bem-Estar deslocou-se do estado nacional
para esferas subnacionais, em particular, para os municípios. Inscreve-se esse movimento não só
no marco da globalização, mas igualmente nos processos de reforma do setor-público, orientados
à ampliação do escopo do mercado, em que custos e responsabilidades, outrora localizados no

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012 11
Apresentação

Estado central, deslocam-se para autoridades locais. Nesse percurso, cristaliza-se a realidade de
um sentido contratual da cidadania social, em que prima o cidadão-consumidor sobre o cidadão
sujeito de direitos.
Na Itália, sublinha Bifulco, o movimento descentralizador elevou ao primeiro plano as
municipalidades e seus respectivos agentes: “o papel encenado pela política está ligado sobretudo
aos novos prefeitos, cujos poderes cresceram de maneira decisiva... com relação às políticas a
escala local é sem dúvida um elemento chave dessa renovação”. Importa notar aqui que, no
caso italiano, a fragmentação não implicou necessariamente a geração de uma governança
subótima, ao contrário, produziram-se vias inovadoras de gestão pública. A partir da análise de
duas ações de intervenção pública, sob o regime de contratos, a reforma dos serviços sociais e
os contratos de bairro, confirmou-se a última hipótese, em que prevaleceram incentivos a uma
quase institucionalização, mesmo sob a forma de contratos, de mecanismos de integração vertical
e horizontal de governança. O caso italiano fornece exemplos, portanto, de novos mecanismos de
governança desenhados a partir da reforma do estado, a qual não se traduz assim no abando da
vida social à lógica do mercado, com consequente fragmentação dos atores e sub-provisão de bens
públicos: “aconteceram processos de aprendizado institucional, graças aos quais as agregações
intermunicipais começaram a agir e a serem reconhecidas como novos atores públicos... em
alguns casos, planos e contratos dão prova de uma elevada capacidade integrativa”.
De alguma forma, deve-se assinalar que o artigo de Neil Brenner, Jamie Peck e Nik
Theodore – “Após a neoliberalização?” – fornece instrumental novo para a compreensão dos
constrangimentos externos às estruturas de governança nos estados nacionais e em suas
subunidades. Cabe assinalar, desde já, que a semântica proposta pelos autores não é isenta de
propósitos: ao recusar o conceito de neoliberalismo e lançar mão do conceito de neoliberalização,
pretendem assinalar que a implementação de novas práticas regulatórias a partir da década de
1970, orientadas para a extensão do escopo das estruturas do mercado, deve ser lida, antes de
mais nada, como processo. Um processo com dinâmicas distintas no espaço, temporalmente
descontínuo e permeado por tendências experimentais e híbridas. Antes de produzir algo como um
“regime liberal” – plenamente formado e que progressivamente se estenderia até compreender
todo o espaço regulatório global –, o processo de neoliberalização se articulou de maneira desigual
ao longo de lugares, territórios e escalas.
Assinalam, os autores, que esse desenvolvimento desigual da neoliberalização antes de
tratar-se de condição temporária, produto de uma institucionalização incompleta, representa uma
de suas características constitutivas. Conclusão óbvia quando se tem em vista que se trata de
processos dependentes da trajetória de origem (path dependency origin): na medida em que colide
com diversos cenários regulatórios herdados de rodadas anteriores (nacional-desenvolvimentismo,
socialismo e fordismo), o formato de articulação e institucionalização se caracterizará pela
heterogeneidade. Processos de neoliberalização têm seu formato definido tanto pela diversidade
dos contextos, como pelas distintas trajetórias de origem.

12 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012
Apresentação

Antecipadas as importantes pontuações que distanciam a compreensão do processo de


neoliberalização dos modelos difusionistas, os quais preconizam o modelo de convergência de
política, os autores constroem um mapa genérico com as diferentes etapas e características do
processo de neoliberalização nas últimas décadas. De forma condensada, vale aqui chamar a
atenção para os pontos polares do mapa: a) na década de 1970, o processo de neoliberalizaçãos se
caracteriza por um processo desarticulado de experimentos regulatórios voltados ao alargamento
do escopo do mercado, em escala específica, em lugares e territórios; tantos os sistemas
juridiscionais de transferência de políticas como organismos globais (OCDE, BIRD, FMI) ainda se
orientavam por parâmetros neokeynesianos; b) na década de 1990, o aprofundamento do processo
de neoliberalização se evidencia menos pela intensificação dos experimentos regulatórios
orientados para a expansão do mercado e mais pelo redesenho de instituições supranacionais
como a OCDE, OMC, FMI e blocos regionais como a UE e NAFTA, na direção de condicionarem – na
direção do livre mercado – as formas nacionais e subnacionais de regulação.
“Após a neoliberalização? ” apresenta quatro cenários de reestruturação regulatória –
desde a acomodação e prosseguimento do processo de neoliberalização até a ruptura com o
processo. Se todos os cenários se mostram viáveis para os autores, a hipótese da completa ruptura
implicaria o completo desmantelamento do regime de regras neoliberais que hoje hegemonizam
agências supranacionais.
Menos pelo desenho dos cenários futuros, e mais pelo tratamento sofisticado das restrições
externas à governança nacional ou subnacional, o artigo “Após a neoliberalização?” afigura-se de
leitura obrigatória.
O Cadernos Metrópole 27 prossegue em sua opção de, não se limitando ao dossiê, divulgar
artigos que tragam contribuição substantiva para a compreensão da dinâmica urbana/metropolitana,
em temas que se reportem tanto a facetas do planejamento, como à morfologia desses espaços.
É o caso dos demais artigos que compõem o presente volume. Em “A espacialidade degradante
tendencial e horizonte de uma educação política do espaço”, Ulysses da Cunha Baggio explora e
detalha a macrodinâmica da urbanização contemporânea – marcada pela segregação – e indica
uma lacuna que estaria a reiterar essa dinâmica: a ausência de uma educação política do espaço.
Rita Raposo, no artigo “Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade: uma perspectiva
histórica”, refaz, a partir de exame empírico rico e minucioso, o percurso histórico e os contextos
sociais que produziram uma das manifestações mais contundentes da urbanização traduzida em
segregação, a saber, os condomínios fechados.
Em “Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso”, Rosângela Vieira Neri
Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins, com base no estudo empírico
do Plano Piloto de Brasília e com enfoque fenomenológico, trazem importantes elementos de
verificação de contradições urbanísticas inerentes à descontinuidade entre o planejamento e o
uso da cidade.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012 13
Apresentação

Outra de linha de descontinuidade é analisada no artigo “O planejamento urbano e


as enchentes em Dourados: a distância entre a realidade e a legalidade”, de Bianca Rafaela
Fiori Tamporoski, Maria Aparecida Martins Alves, Luciana Ferreira da Silva e Joelson Gonçalves
Pereira. O artigo explora o déficit de planejamento, marca das cidades brasileiras, a partir da
resposta setorial e precária do poder público à incidência de inundações no município: no lugar
de um planejamento integrado da cidade, os gestores se limitam à realocação das populações
invasoras de áreas de risco.
Por fim, o artigo de Susana Pasternak, “Mudanças na estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles brasileiras, 1991-2000”, testa para o conjunto das metrópoles brasileiras
a pertinência da hipótese central derivada do conceito de global city, a saber, a hipótese do
agravamento da dualização social decorrente da alteração da estrutura ocupacional própria das
economias pós-fordistas.

Nelson Rojas de Carvalho


Sérgio de Azevedo
Comissão Editorial
Cadernos Metrópole

14 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 9-13, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?*
After neoliberalization?

Neil Brenner
Jamie Peck
Nik Theodore

Resumo
À luz dos debates sobre as origens e implicações da Abstract
crise econômica global de 2008-2009, este ensaio Against the background of debates on the origins
apresenta um arcabouço teórico para analisar pro- and implications of the global economic crisis
cessos de reestruturação regulatória no contexto of 2008-2009, this essay presents a theoretical
do capitalismo contemporâneo. A análise gira em framework for analyzing processes of regulatory
torno do conceito de neoliberalização, que conside- restructuring under contemporary capitalism.
ramos ser uma palavra-chave para se compreender The analysis is framed around the concept of
as transformações regulatórias da nossa época. neoliberalization, which we view as a keyword
Inicialmente, oferecemos uma série de explicações for understanding the regulatory transformations
a respeito das definições que sustentam nossa con- of our time. We begin with a series of definitional
ceituação de neoliberalização como um processo clarifications that underpin our conceptualization
diversificado, geograficamente desigual e depen- of neoliberalization as a variegated, geographically
dente da trajetória. Nessa base, distinguimos três uneven and path-dependent process. On this basis,
dimensões dos processos de neoliberalização – we distinguish three dimensions of neoliberalization
experimentação regulatória; transferência interju- processes – regulatory experimentation; inter-
risdicional de políticas; e formação de regimes de jurisdictional policy transfer; and the formation of
normas transnacionais. Tais distinções formam a transnational rule-regimes. Such distinctions form
base para uma periodização esquemática de como the basis for a schematic periodization of how
os processos de neoliberalização têm se arraigado neoliberalization processes have been entrenched
em várias escalas espaciais e como se estendem at various spatial scales and extended across the
pela economia mundial desde a década de 1980. world economy since the 1980s. They also generate
Também geram uma perspectiva analítica para se an analytical perspective from which to explore
explorar vários cenários para formas contraneoli- several scenarios for counter-neoliberalizing forms
beralizadoras de reestruturação regulatória. of regulatory restructuring.
Palavras-chave: neoliberalização; contraneolibe- Keywords: neoliberalization; counter-
ralização; experimentos regulatórios; transferência neoliberalization; regulatory experiments; policy
de políticas; regimes de normas. transfer; rule regimes.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

Debates sobre transformações regulató-


Introdução
rias animam os campos da economia política
Na esteira da crise econômica global de 2008- heterodoxa e dos estudos críticos urbanos e
2009, muitos comentaristas proeminentes têm regionais há várias décadas, além de desem-
defendido que as ideologias e práticas do ca- penhar um papel importante nas literaturas
pitalismo de livre mercado, ou “neoliberalis- sobre, entre outros tópicos, pós-fordismo, glo-
mo”, estão desacreditadas, e que uma nova balização, triadização, governança multinível,
era de reforma regulatória, baseada no inter- financialização, redimensionamento do esta-
vencionismo agressivo do estado para restrin- do, o novo regionalismo, empreendedorismo
gir as forças do mercado, está se iniciando urbano e, mais recentemente, neoliberalismo/
(Altvater, 2009; Stiglitz, 2008; Wallerstein, neoliberalização. Para os propósitos deste arti-
2008). Entretanto, tais avaliações geralmente go, baseamo-nos em discussões sobre a última
se baseiam em suposições insustentavelmente questão – neoliberalização – para conceituar
monolíticas quanto ao sistema regulatório que processos de reestruturação regulatória no
herdamos e que agora está supostamente em capitalismo pós-década de 1970 e pós-2008.
crise, levando a interpretar a crise atual como Conforme argumentamos em outra obra, o uso
um colapso sistêmico, análogo ao desmantela- generalizado dos conceitos de neoliberalismo
mento do Muro de Berlim duas décadas atrás e neoliberalização tem sido acompanhado de
(Peck et al., 2009). De maneira geral, qualquer imprecisão, confusão e controvérsia – com efei-
que seja a interpretação das tendências de to, tais conceitos se tornaram rascal concepts
crise contemporâneas, os principais relatos do (conceitos malandros) (Brenner et al., 2010).
colapso financeiro de 2008-2009 dependem A despeito desses perigos, argumentamos que
de suposições definidas, mas frequentemen- um conceito de neoliberalização rigorosamente
te não investigadas, sobre as formações (ou definido pode iluminar as transformações regu-
a formação) regulatórias que existiam antes latórias de nossa época.
dessa última série de reestruturações induzi- Inicialmente, apresentamos uma sé-
das pela crise. Por essa razão, este é um mo- rie de explicações para as definições que
mento oportuno para se refletir sobre os pro- sustentam nossa conceituação de neolibe-
cessos de reestruturação regulatória que se ralização. Distin gui mos suas três principais
desenvolvem desde o colapso do fordismo do dimensões – (1) experimentação regulatória;
Atlântico Norte, mais de 40 anos atrás. Acre- (2) transferência interjurisdicional de políticas;
ditamos que tal reflexão é essencial para as e (3) formação de regimes de normas trans-
atuais tentativas de decifrar padrões emergen- nacionais. Tais distinções formam a base para
tes de formação de crise no capitalismo pós- uma periodização esquemática de como os
2008. Além disso, há implicações considerá- processos de neoliberalização se estenderam
veis para a compreensão das paisagens urba- e se arraigaram na economia mundial. Essas
nas contemporâneas, que são profundamente considerações geram uma perspectiva analí-
remodeladas através das transformações e tica a partir da qual se pode explorar vários
contestações regulatórias contemporâneas. cenários para formas contraneoliberalizadoras

16 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

de reestruturação regulatória em configura-


Neoliberalismo em questão
ções contemporâneas e futuras do capitalis-
mo. Para os propósitos desta discussão, não
Desde o final da década de 1980, os debates
oferecemos uma descrição detalhada da crise
sobre o neoliberalismo têm sido mencionados
econômica global contemporânea, nem de
de maneira proeminente na economia política
suas implicações de médio ou longo prazo. Ao
heterodoxa. Inspirados por várias vertentes do
invés disso, esta análise destina-se a servir a
pensamento neomarxista, neogramsciano, neo-
um propósito metateórico – a saber, estimular
polanyiano, neoinstitucionalista e pós-estrutu-
debates sobre qual deve ser o arcabouço ana-
ralista, esses conceitos têm sido centrais para
lítico para se abordar tais questões.
discussões sobre a crise da ordem capitalista no
Embora a nossa análise não considere
pós-guerra – denominada fordismo do Atlânti-
os efeitos dessas transformações regulatórias
co Norte, liberalismo incrustado (embedded
sobre paisagens urbanas específicas, nossa
liberalism), ou desenvolvimentismo nacional –
abordagem possui implicações para os atuais e sobre os padrões pós-1970 de reorganização
esforços para decifrá-las. Conforme argumen- institucional e espacial. Quaisquer que sejam
tamos abaixo, os processos de neoliberaliza- as diferenças entre eles, contudo, todos os usos
ção assumem formas específicas de acordo prevalentes da noção de neoliberalismo en-
com o local dentro de cidades e cidades-re- volvem referências à ampliação tendencial da
giões, mas isso tem ocorrido cada vez mais competição baseada no mercado e de proces-
em um contexto georregulatório definido por sos de comodificação em direção a domínios
tendências sistêmicas voltadas para reformas previamente isolados de vida político-econô-
institucionais para disciplinar o mercado, pela mica. Os usos erudito e prático-político do ter-
formação de teias transnacionais de transfe- mo neoliberalismo pareceriam, assim, fornecer
rência de políticas orientadas para o merca- uma base inicial comprovativa da proposição
do, por padrões cada vez mais profundos de de que processos de mercantilização e como-
formação de crises e por ciclos acelerados de dificação de fato se ampliaram, se aceleraram e
experimentação de políticas impulsionada pe- se intensificaram em décadas recentes, mais ou
la crise. Contra esse pano de fundo, a análise menos após a recessão global que ocorreu em
macroespacial apresentada aqui pode servir meados da década de 1970.
como um ponto de referência útil não apenas Não podemos proceder, aqui, a uma
para análises localizadas e sensíveis ao con- revisão das diversas posições epistemológi-
texto, mas também para estratégias políticas cas, metodológicas e políticas que têm sido
contra-neoliberalizadoras emergentes, tanto articuladas através dessas discussões sobre
em escala urbana como supraurbana. a reestruturação regulatória pós-1970 (mas

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 17
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

conforme Clarke, 2008; Peck, 2004; Saad-Filho em que necessariamente colidem com diversas
e Johnston, 2005; assim como Brenner et al., paisagens regulatórias herdadas de formações
2010). Ao invés disso, passamos diretamente e contestações regulatórias anteriores (incluin-
para um panorama de nossa própria orienta- do o fordismo, o nacional-desenvolvimentismo
ção teórica, que será, então, elaborada mais e o socialismo de estado), suas formas de arti-
detalhadamente em relação ao problema da culação e institucionalização são bastante he-
periodização, com referência aos desafios de se terogêneas. Assim, ao invés de esperar alguma
decifrar os desenvolvimentos contemporâneos forma pura, prototípica, de neoliberalização
(para declarações anteriores, conforme Brenner prevalente em contextos divergentes, conside-
e Theodore, 2002; Peck e Theodore, 2007; Peck ramos a diversificação – diferenciação sistêmi-
e Tickell, 2002). ca geoinstitucional – como um de seus aspec-
No nível mais geral, conceituamos neoli- tos essenciais e duradouros.
beralização como uma dentre várias tendências De acordo com Mittelman (2000, p. 4),
de mudança regulatória que foram desenca- a globalização representa “não um fenômeno
deadas no sistema capitalista global desde a único, unificado, mas uma síndrome de pro-
década de 1970: prioriza respostas baseadas cessos e atividades”. Sugerimos que é possível
no mercado, orientadas para o mercado ou conceituar a neoliberalização de maneira aná-
disciplinadas pelo mercado para problemas loga: ela também é mais bem entendida como
regulatórios; esforça-se para intensificar a uma síndrome do que como uma entidade, es-
comodificação em todos os domínios da vida sência ou totalidade singular. Desse ponto de
social; e, frequentemente, mobiliza instrumen- vista, uma tarefa-chave para qualquer analista
tos financeiros especulativos para abrir novas da neoliberalização é especificar o “padrão de
arenas para a realização capitalista de lucros. atividades relacionadas [...] dentro da econo-
Em nosso trabalho anterior, levantamos ques- mia política global” (Mittelman, 2000, p. 4) que
tões críticas sobre explicações estruturalistas constituem e reproduzem essa síndrome em
que veem a neoliberalização como um bloco lugares, locais, territórios e escalas que são, de
hegemônico abrangente, e também os argu- outro modo, diversos.
mentos pós-estruturalistas que enfatizam a
particularidade contextual radical de práticas
regulatórias e formas de subjetivação neoli- Definindo a neoliberalização
beralizadoras. Em contraste, consideramos a
neoliberalização uma forma diversificada de Como uma primeira abordagem a esta tarefa,
reestruturação regulatória: produz diferencia- propomos a seguinte formulação: a neolibe-
ção geoinstitucional em lugares, territórios e ralização representa uma tendência historica-
escalas; mas faz isso sistemicamente, como um mente específica, desenvolvida de maneira de-
aspecto penetrante, endêmico, de sua lógica sigual, híbrida e padronizada de reestruturação
operacional básica. Concomitantemente, enfa- regulatória disciplinada pelo mercado. Cada
tizamos a profunda dependência da trajetória elemento dessa afirmação necessita ser espe-
dos processos de neoliberalização: na medida cificado de maneira mais precisa.

18 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

● Reestruturação regulatória disciplinada pelo 2010a). O processo de neoliberalização come-


mercado. Como Polanyi (1944, pp. 140-141) çou a se desenvolver no início dos anos 1970,
muito ironicamente observou, “a estrada para após uma fase relativamente longue durée de
um mercado livre foi aberta e mantida aberta liberalismo incrustado, na qual processos de
por um enorme aumento no intervencionismo mercantilização e comodificação haviam sido
contínuo, centralmente organizado e controla- tendencialmente reprimidos por meio de vários
do”. Analogamente, acreditamos que os pro- arranjos regulatórios globais e nacionais – por
cessos de mercantilização e comodificação no exemplo, o sistema Bretton Woods e vários ti-
capitalismo (esforços para ampliar a disciplina pos de intervenção estatal nacional-desenvol-
de mercado) são sempre mediados através de vimentista e assistencialista. Assim entendidas,
instituições do estado em uma variedade de formas especificamente neoliberalizadoras de
arenas políticas (por exemplo, trabalho, dinhei- reestruturação regulatória começaram a se
ro, capital, proteção social, educação, moradia, desenvolver juntamente com o que alguns cha-
terra, meio-ambiente e assim por diante). Por maram de a “segunda grande transformação”,
essa razão, concebemos a neoliberalização co- o processo de reestruturação capitalista mun-
mo uma forma particular de reorganização re- dial que acontece desde o colapso da ordem
gulatória: envolve a recalibração de modos de geoeconômica pós-Segunda Guerra Mundial
governança institucionalizados, que obrigam (McMichael, 1996). Como resultado daquela
coletivamente e, de modo mais geral, das re- crise, a neoliberalização surgiu como um pro-
lações estado-economia, para impor, ampliar cesso dominante, senão hegemônico, de rees-
ou consolidar formas mercantilizadas e co- truturação regulatória na economia mundial.
modificadas de vida social. Como tal, a neo- Não seria inteiramente inadequado referir-
liberalização pode ser analiticamente oposta -se a esse processo de mudança regulatória
aos processos regulatórios que contrariam a orientada para o mercado simplesmente como
mercantilização e a comodificação, ou àqueles “mercantilização” ou “comodificação”, uma
que envolvem agendas diferentes em termos vez que, como já sugerimos, uma de suas ca-
qualitativos – por exemplo, formas normativas racterísticas é o projeto de ampliar as relações
de alocação coletiva de recursos e coordenação sociais baseadas no mercado e comodificadas.
socioinstitucional. Contudo, optamos pelo termo neoliberalização
● Historicamente específica. As raízes ideoló- para sublinhar as homologias entre padrões
gicas e doutrinais da neoliberalização podem pós-1970 de reestruturação regulatória e o
ser encontradas no projeto liberal clássico de projeto anterior de liberalização clássica que
construir mercados auto-regulados durante a estava associado ao imperialismo britânico do
belle époque do imperialismo britânico do final século XIX e início do XX. Entretanto, paralelos
do século XIX e início do século XX (Polanyi, com aquela época não devem ser empregados
1944), assim como nas intervenções subse- exageradamente. O processo de neoliberaliza-
quentes realizadas no pós-guerra por econo- ção não representa um “retorno” a um arca-
mistas do livre mercado que eram renegados bouço anterior de desenvolvimento capitalista,
naquela época, como Hayek e Friedman (Peck, ou uma reinvenção contemporânea de formas

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 19
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

institucionais, arranjos regulatórios ou com- de sua evolução, o “mapa em movimento” dos


promissos políticos liberais clássicos (Silver e processos de neoliberalização (Harvey, 2005,
Arrighi, 2003). A neoliberalização surgiu sob p. 88) tem sido diversificado e continuamente
condições geopolíticas e geoeconômicas qua- rediferenciado através de uma rápida suces-
litativamente diferentes, em resposta a fracas- são de projetos e contraprojetos regulatórios,
sos regulatórios e lutas políticas historicamen- neoliberalizadores ou não. O desenvolvimento
te específicos, e em paisagens institucionais desigual da neoliberalização não é, portanto,
arraigadas. uma condição temporária, um produto de sua
● Desenvolvida de maneira desigual. A neolibe- institucionalização “incompleta”, mas uma
ralização é geralmente associada a certos ex- de suas características constitutivas. A dife-
perimentos regulatórios paradigmáticos – por renciação geoinstitucional é, ao mesmo tem-
exemplo, privatização, desregulamentação, li- po, um meio e um produto dos processos de
beralização do comércio, financeirização, ajuste neoliberalização.
estrutural, reforma da previdência e tratamento ● Tendência. Embora os processos de neoli-
de choque monetarista. Porém, por mais que beralização retrabalhem sistematicamente as
esses projetos de reorganização regulatória paisagens regulatórias herdadas, não devem
tenham se tornado prototípicos, sua prolife- ser vistos como representando uma totalidade
ração no capitalismo pós-1970 não pode ser que abarque todos os aspectos da reestrutura-
compreendida através de simples modelos de ção regulatória em qualquer contexto, local ou
“difusão”. Pois, ao invés de envolver a cons- escala. Ao invés disso, a neoliberalização é um
trução de um estado de neoliberalismo total- dentre vários processos concorrentes de rees-
mente formado, que funcione coerentemente, truturação regulatória que têm sido articula-
“semelhante a um regime”, e que tenha se dos no capitalismo pós-1970 (Jessop, 2002;
expandido progressivamente para abranger o Streeck e Thelen, 2005) – embora seja um pro-
espaço regulatório global, o processo de neo- cesso que venha tendo consequências político-
liberalização tem sido articulado de maneira -institucionais particularmente duradouras e
desigual em lugares, territórios e escalas. O multiescalares.
desenvolvimento desigual da neoliberalização ● Híbrida. A neoliberalização nunca se ma-
resulta, por um lado, da contínua colisão entre nifesta em uma forma pura, como um todo
projetos de neoliberalização contextualmente regulatório abrangente. As tendências de neo-
específicos e em constante evolução, e de ar- liberalização só podem ser articuladas em mo-
ranjos político-institucionais herdados, em es- dalidades incompletas, híbridas, que podem se
cala global, nacional ou local. Ao mesmo tem- cristalizar em certas formações regulatórias,
po, através dessa colisão, os processos de neo- mas que são, não obstante, contínua e ecleti-
liberalização retrabalham formas herdadas de camente retrabalhadas de maneiras contex-
organização regulatória e espacial, incluindo tualmente específicas. Consequentemente, as
aquelas das próprias instituições estatais, para evidências empíricas que ressaltam o caráter
produzir novas formas de diferenciação geoins- paralisado, incompleto, descontínuo ou dife-
titucional. Consequentemente, a cada estágio renciado de projetos para impor as regras do

20 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

mercado, ou sua coexistência ao lado de proje-


Quatro implicações
tos potencialmente antagonísticos (por exem-
plo, a democracia social), não fornecem base
metodológicas
suficiente para se questionar suas dimensões
neoliberalizadas e neoliberalizadoras. Essa conceituação de neoliberalização possui
● Padronizada. Os processos de neoliberali- várias implicações metodológicas que contras-
zação inicialmente ganharam impulso e tam fortemente com certas pressuposições e
momentum em resposta a uma gama de ten- orientações interpretativas que têm permeado
dências de crise herdadas da ordem político- discussões acadêmicas recentes (Brenner et al.,
-econômica do pós-guerra. Durante a década 2010):
de 1970, os processos de neoliberalização re- ● ao contrário de acadêmicos que igualam a
trabalharam paisagens keynesianas nacionais- neoliberalização a uma homogeneização mun-
-desenvolvimentistas através de uma série de dial de sistemas regulatórios, pretendemos que
colisões entre arcabouços institucionais her- nossa conceituação ilumine as maneiras pelas
dados e projetos de reorganização regulatória quais as formas disciplinadas pelo mercado de
recentemente mobilizados. Tais colisões, e suas reestruturação regulatória na verdade intensi-
consequências político-institucionais duradou- ficaram a diferença geoinstitucional. Segue-se
ras, embora imprevisíveis, há muito tempo ani- a isso que nem mesmo as expressões político-
mam o desenvolvimento desigual dos proces- -institucionais de neoliberalização mais hiper-
sos de neoliberalização. No entanto, é crucial trofiadas – como aquelas exploradas na aná-
perceber que, embora os processos de neolibe- lise de Naomi Klein (2007) sobre a “doutrina
ralização tenham sido articulados de maneira de choque” neoliberal no Chile pós-golpe e
desigual, não envolveram um “acúmulo” for- no Iraque ocupado – deveriam ser igualadas
tuito de experimentos regulatórios desconecta- a expectativas de simples convergência em
dos, contidos em contextos. Ao invés disso, os uma ordem de mercado unificada e singular, à
processos de neoliberalização geraram efeitos maneira da formulação jornalística de Thomas
significativos, marcadamente padronizados e Friedman (2005) a respeito da globalização da
cumulativos sobre a configuração georregu- terra plana;
latória do capitalismo. Desse ponto de vista, ● a conceituação de neoliberalização aqui pro-
a trajetória dos processos de neoliberalização posta fornece uma base a partir da qual é pos-
desde a década de 1970 pode ser mais bem sível compreender as trajetórias evolucionárias
entendida como um processo de articulação re- de médio e longo prazo dos próprios projetos
lacional semelhante a uma onda, no qual cada regulatórios disciplinados pelo mercado, com
série sucessiva de projetos neoliberalizadores referência particular aos impactos cumulativos
transforma as configurações institucionais e erráticos e frequentemente contraditórios que
ideológicas nas quais séries subsequentes de produzem sobre as paisagens políticas, institu-
reestruturação regulatória se desenvolvem. cionais e discursivas que aspiram reorganizar.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 21
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

Os processos de neoliberalização derivam mui- próprias condições socioinstitucionais e polí-


to de seu ímpeto e de sua lógica precisamente tico-econômicas necessárias para sua imple-
das paisagens regulatórias desiguais que com- mentação bem-sucedida (Gill, 2003; Harvey,
bativamente encontram, e subsequentemen- 1995). Consequentemente, a falha das políticas
te refazem, de uma maneira dependente da não é apenas central para o modus operandi
trajetória, embora experimental. Isso significa, exploratório dos processos de neoliberalização;
por sua vez, que a diferenciação espacial e os fornece um ímpeto adicional e poderoso para
caminhos evolucionários dos processos de neo- sua proliferação acelerada e reinvenção contí-
liberalização não podem ser compreendidos nua em locais e escalas. Assim, é crucial notar
como uma simples difusão territorial na qual que a falha endêmica das políticas na verda-
um modelo pré-fornecido é instalado, ampliado de tende a estimular outras séries de reformas
e/ou replicado em uma área cada vez maior; dentro de parâmetros políticos e institucionais
● dada a nossa ênfase na dependência da amplamente neoliberalizados: desencadeia a
trajetória dos processos de neoliberalização, reinvenção contínua dos repertórios de polí-
nossa abordagem sublinha a necessidade de ticas neoliberais, ao invés de seu abandono
investigações de padrões de experimentação (Peck, 2010a).
regulatória que sejam sensíveis ao contexto.
Contudo, nossa conceituação pode ser distin-
guida das abordagens puramente “de baixo
para cima”, indutivas ou conscientemente “ra-
Em direção
sas” a estudos de neoliberalização que são, às
a um “mapa em movimento”
vezes, associados a modos pós-estruturalistas da neoliberalização
de análise. Conforme entendido aqui, os espa-
ços de mudança regulatória – unidades jurisdi- Harvey (2005, p. 87) ressaltou as dificuldades de
cionais que abarcam bairros, cidades, regiões, se construir um “mapa em movimento do pro-
estados nacionais e zonas multinacionais – são gresso da neoliberalização no cenário mundial
relacionalmente interconectados dentro de um desde 1970”. O autor enfatiza especialmente o
sistema de governança transnacional, senão caráter parcial e desigual dos realinhamentos
global. Os processos de neoliberalização assu- das políticas neoliberais nos estados nacionais
mem, necessariamente, formas contextualmen- individuais; a frequência de “inversões lentas”
te específicas e dependentes da trajetória, mas e mobilizações políticas contrárias em resposta
raramente se originam de um único local; suas a investidas neoliberais iniciais, mais radicais e
consequências político-institucionais geralmen- induzidas pela crise; e as vicissitudes das lutas
te transcendem qualquer contexto, e há seme- pelo poder político que se desenrolam junta-
lhanças de família significativas entre eles. mente com mudanças de políticas neoliberali-
● finalmente, concebemos os processos de zadoras e transformações institucionais, além
neoliberalização como sendo intrinsecamente das tendências de crise associadas. O desafio,
contraditórios – isto é, envolvem estratégias propõe Harvey (2005, p. 87), é “entender co-
regulatórias que frequentemente minam as mo as transformações locais se relacionam a

22 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

tendências mais amplas”, localizando as “cor- caráter constitutivamente desigual dos proces-
rentes turbulentas do desenvolvimento geográ- sos de neoliberalização, conforme delineado
fico desigual” que são produzidas através dos acima. Embora descrições globalistas tenham
processos de neoliberalização. enfatizado produtivamente a capacidade de
Como enfrentar esse desafio? Como se- atores e instituições hegemônicos de impor
ria um mapa em movimento dos processos de parâmetros disciplinados pelo mercado so-
neoliberalização que ocorreram durante os úl- bre instituições subordinadas e configurações
timos 30 anos? Com algumas exceções dignas regulatórias, relatos sintonizados localmen-
de nota, as literaturas existentes sobre neolibe- te e regionalmente têm focado, em geral, as
ralização têm produzido não mais do que res- transformações regulatórias que parecem ser
postas parciais a esse desafio, principalmente circunscritas a territórios subnacionais par-
devido a suas conceituações inadequadas de ticulares ou nichos escalares. O conceito de
desenvolvimento regulatório desigual (Brenner neoliberalização propiciou que pesquisadores
et al., 2010). Embora tenham identificado as em ambas as vertentes desta discussão vin-
características-chave das paisagens perpe- culassem suas análises a metanarrativas mais
tuamente mutantes da mudança regulatória amplas sobre formas pós-1970 de reestrutura-
pós-1970 disciplinada pelo mercado, a maioria ção e reorganização regulatória induzidas pela
das explicações não se preocupa muito em re- crise. Contudo, esse conceito é frequentemente
lacionar esses elementos uns aos outros, nem empregado imprecisamente ou sem a devida
às “correntes mais amplas de desenvolvimento reflexão, como se fosse um explanans autoevi-
geográfico desigual” às quais Harvey se refere. dente, ao passo que os próprios processos aos
Por exemplo, a maior parte da literatura quais se refere requerem interrogação e expla-
sobre neoliberalização ainda focaliza os reali- nação continuadas.
nhamentos de políticas em nível nacional. Tais O trabalho recente de Simmons, Dobbin
relatos frequentemente aludem a contextos e Garrett (2008) aborda muito mais explici-
geoeconômicos e geopolíticos, mas tendem tamente a questão de como os processos de
a pressupor a suposição metodologicamente neoliberalização evoluíram ao longo do tempo
nacionalista de que os estados nacionais repre- e do espaço. Sua análise examina os diferen-
sentam a unidade natural ou primária da trans- tes impactos de quatro mecanismos causais
formação regulatória (para críticas, cf. Brenner, distintos – coerção, competição, aprendizado
2004; Peck e Theodore, 2007). Tais tendências e emulação – ao explicarem o que os autores
metodologicamente nacionalistas têm sido caracterizam como a “difusão” do liberalismo
neutralizadas com sucesso quando a neolibera- econômico no final do século XX (Simmons et
lização é tratada como um bloco globalmente al., 2008, p. 2, passim). Entretanto, a preocupa-
hegemônico, assim como em trabalhos mais ção dos autores em adjudicar entre esses me-
recentes sobre a neoliberalização da governan- canismos causais é acompanhada de uma teo-
ça urbana e regional. No entanto, por mais va- rização pouco desenvolvida do próprio proces-
liosos que sejam tais engajamentos, nenhuma so de neoliberalização, que é retratado como
vertente da discussão abordou plenamente o uma “disseminação” de protótipos de políticas

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 23
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

orientadas para o mercado em territórios na- qualquer esforço para se construir o “mapa em
cionais, dentro de um sistema internacional movimento” da neoliberalização visualizado
interdependente (para uma crítica bem-argu- por Harvey (2005).1
mentada, cf. Peck, 2010b). Além das tendências
metodologicamente nacionalistas dessa abor-
dagem, a metáfora da difusão contém sérias
limitações como base para se compreender as
Três dimensões analíticas
geografias desiguais dos processos de neolibe-
ralização durante os últimos 40 anos. A neo- Para abordar essas tarefas, distinguimos três
liberalização não foi simplesmente inventada dimensões analíticas centrais dos processos de
em um local (nacional) e depois projetada – neoliberalização:2
por coerção, competição, aprendizado, imitação ● experimentos regulatórios: projetos específi-
ou qualquer outro mecanismo – em círculos cos de locais, territórios e escalas, elaborados
progressivamente maiores de influência territo- para impor, intensificar ou reproduzir modalida-
rial. Ao invés disso, “assemelha-se mais a um des de governança disciplinadas pelo mercado.
regime multipolar de (re)mobilização contínua, Tais projetos são necessariamente dependentes
que é animado e reanimado tanto pelas falhas da trajetória, e geralmente envolvem tanto um
das ondas anteriores de intervenção e regula- momento destrutivo (esforços para reverter ar-
ção inadequadas, como por visões estratégicas ranjos regulatórios não-mercado, antimercado,
inovadoras” (Peck, 2010b, p. 29). ou que restringem o mercado) como um mo-
Assim compreendidas, as geografias da mento criativo (estratégias para promover uma
neoliberalização não emanam para fora a par- nova infraestrutura político-institucional para
tir de um ponto de origem para “preencher” formas regulatórias mercantilizadas) (Brenner e
outras zonas de regulação geograficamente Theodore, 2002; Peck e Tickell, 2002). Esse as-
dispersas. Ao invés disso, como enfatizamos pecto da neoliberalização tem sido investigado
em nosso esboço, estamos lidando com um de forma abrangente pela vasta literatura ba-
processo multicêntrico e dependente da tra- seada em estudos de caso sobre exemplos na-
jetória, cuja dinâmica evolucionária e conse- cionais, regionais e locais da forma regulatória
quências político-institucionais transformam neoliberal.
continuamente as condições globais, nacionais ● sistemas de transferência interjurisdicional
e locais sob as quais as estratégias subsequen- de políticas: mecanismos institucionais e re-
tes de reestruturação regulatória emergem e des de compartilhamento de conhecimentos
se desenvolvem em todas as escalas espaciais. através dos quais protótipos de políticas neoli-
Também é crucial perceber que os processos de berais circulam por locais, territórios e escalas,
neoliberalização são espacialmente desiguais, geralmente transnacionalmente, para serem
temporalmente descontínuos e permeados por reempregados em outro local. Ao estabelecer
tendências experimentais, híbridas e frequente- certos tipos de estratégias regulatórias como
mente autoenfraquecedoras. Acreditamos que “prototípicas”, tais redes aumentam a legiti-
tais considerações devem estar no centro de midade ideológica dos modelos de políticas

24 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

neoliberais, ao mesmo tempo em que ampliam e transnacionais, esse aspecto da neoliberali-


sua disponibilidade como “soluções” pronta- zação também foi investigado por Bockman
mente acessíveis para qualquer problema e e Eyal (2002) no contexto da Europa Oriental,
crise regulatórios contextualmente específicos. por Dezalay e Garth (2002) no contexto latino-
Contudo, até mesmo as formas mais aparente- -americano e, em um nível mais geral, pela lite-
mente “prototípicas” de políticas neoliberais ratura sobre transferência de “políticas rápidas’
são transformadas qualitativamente através (Peck, 2010b; Peck e Theodore 2001, 2010).
de sua circulação por essas redes. Embora pa- ● regimes de normas transnacionais: arran-
reçam estar prontamente disponíveis para uma jos institucionais em larga escala, arcabouços
transferência suave em uma rede circulatória regulatórios, sistemas legais e revezamentos
que se move rapidamente e, portanto, pare- de políticas que impõem as “regras do jogo”
çam ser capazes de promover uma homoge- em formas contextualmente específicas de
neização do espaço regulatório, tais mobilida- experimentação de políticas e reorganização
des das políticas permanecem incrustadas em regulatória, enquadrando, assim, as ativida-
contextos político-institucionais que modelam des de atores e instituições em parâmetros
sua forma, conteúdo, recepção e evolução, político-institucionais específicos. Esse aspec-
geralmente levando a resultados imprevisí- to “parametrizante” da neoliberalização foi
veis, não-intencionais e intensamente diversi- analisado por Gill (2003) em sua descrição
ficados (Peck, 2010b). Assim, no contexto dos do novo constitucionalismo. Para Gill, o novo
processos de neoliberalização, a transferência constitucionalismo representa um projeto para
interjurisdicional de políticas é um mecanismo institucionalizar preceitos de políticas neolibe-
importante, não apenas de consolidação espa- rais em longo prazo, e globalmente, por meio
cial, mas também de diferenciação institucio- de vários dispositivos legais supranacionais.
nal. Uma das primeiras investigações sobre as Trabalha para obrigar os estados nacionais e
formas neoliberalizadoras da transferência de todas as outras instituições políticas subordina-
políticas foi o estudo clássico de Tabb (1982) das a adotar preceitos de políticas neoliberali-
sobre as políticas de austeridade fiscal na ci- zadas em esferas regulatórias importantes (por
dade de Nova York durante a década de 1970. exemplo, comércio, investimento de capitais,
Esse estudo esboça paradigmaticamente como trabalho, direitos de propriedade).3 Trabalhos
uma resposta localmente específica a uma crise recentes de Holman (2004) e Harmes (2006),
administrativa foi transformada em um mode- juntamente com o estudo de Peet et al. (2003)
lo de reforma mais geral, subsequentemente sobre a OMC, o FMI e o Banco Mundial, tam-
“exportada” para outros municípios atingidos bém ressaltaram o papel dos arranjos de go-
pela crise nos EUA. O estudo de Peck (2001) es- vernança multiníveis na construção, imposição
boça uma narrativa formalmente análoga, mas e reprodução de arranjos regulatórios neoli-
transnacional, com referência às geografias da beralizados e disciplinados pelo mercado em
transferência de políticas rápidas de assistên- arenas nacionais e subnacionais. Tais regimes
cia ao trabalho em regiões e estados nacionais de normas multiníveis servem para promover
desde a década de 1980. Em escalas nacionais “mecanismos institucionais circunscritivos para

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 25
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

separar o econômico e o político sob condições A Figura 1 apresenta uma periodização


de democracia” (Harmes, 2006, p. 732). Dessa estilizada dos processos de neoliberalização
forma, servem para criar e manter parâmetros que deriva das distinções introduzidas acima.
precisos e disciplinados pelo mercado ao redor Nessa figura, as três dimensões da reestrutura-
de formas subordinadas de contestação de po- ção regulatória não mais servem como catego-
líticas e desenvolvimento institucional. rias ideais-típicas, mas são agora mobilizadas
para iluminar a evolução histórico-geográfica
dos próprios processos de neoliberalização. A
linha superior da figura apresenta cada uma
Paisagens inquietas das três distinções especificadas acima, enten-
de neoliberalização didas como dimensões interligadas da rees-
truturação regulatória sob condições de neoli-
Qualquer mapeamento dos processos de neo- beralização em andamento. A primeira coluna
liberalização derivado dessas distinções con- especifica uma linha do tempo genérica, basea-
trastaria fortemente com os modelos difusio- da em décadas, de 1970 até a década de 2000.
nistas que prevalecem na literatura ortodoxa, As células sombreadas denotam as dimen-
os quais são estreitamente alinhados à anteci- sões da reestruturação regulatória nas quais,
pação da convergência de políticas e a várias segundo a nossa leitura, a neoliberalização
formas de nacionalismo metodológico. Mas tal tem sido mais pronunciada desde sua elabo-
mapeamento não poderia, por si só, iluminar ração institucional inicial na década de 1970.
cada aspecto concreto das paisagens da neo- Concomitantemente, as células brancas nos
liberalização, em diferentes contextos espaciais quadrantes superiores da figura denotam zo-
e temporais. No entanto, em um nível mais abs- nas de atividade regulatória que, durante a(s)
trato, tal abordagem pode servir como uma ba- década(s) correspondente(s) especificada(s) na
se analítica a partir da qual interpretar as traje- primeira coluna foram largamente configura-
tórias criativamente destrutivas e o desenvolvi- das de acordo com princípios de restrição de
mento desigual dos processos de neoliberaliza- mercado (keynesianismo, “constitucionalismo
ção desde o início da década de 1970. E, como progressivo”).4 A cada década sucessiva, as zo-
sugerimos abaixo, também há implicações nas sombreadas na figura são alargadas para
úteis para se decifrar possíveis alternativas às incluir uma coluna adicional. Isso denota o que
formas regulatórias neoliberalizadas na estei- consideramos uma mudança tendencial, ma-
ra da crise econômica global de 2008-2009. croespacial, de formas desarticuladas a formas
Aqui, esboçamos essas manobras interpretati- aprofundadas de neoliberalização.5 Para simpli-
vas com pinceladas relativamente grossas; sua ficar, delineamos essa série de transformações
elaboração e refinamento concretos aguardam década a década, mas aqui, também, uma es-
pesquisa e análise mais detalhadas. pecificação mais precisa é necessária.

26 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

Conforme retratado na segunda linha transnacionais (derivadas da economia austría-


da Figura 1, a neoliberalização desarticulada ca, do Ordoliberalismo, Manchesterismo e da
cristalizou-se durante a década de 1970, e se economia da Escola de Chicago), as paisagens
baseou predominantemente em formas de institucionais com as quais colidiram haviam
experimentação regulatória disciplinada pelo sido moldadas por agendas regulatórias opos-
mercado específicas de locais, territórios e es- tas, intervencionistas de estado e redistributi-
calas. Obviamente, a doutrina neoliberal havia vas – incluindo, principalmente, o keynesianis-
surgido durante as décadas de 1930 e 1940, mo e o nacional-desenvolvimentismo. “Locais”
quando foi mobilizada predominantemente conjunturalmente específicos para esses expe-
como uma crítica à ordem político-econômica rimentos regulatórios neoliberalizadores incluí-
keynesiana, que se consolidava (Peck, 2010a). ram o Chile pós-nacionalização de Pinochet, a
Contudo, foi apenas no início da década de Grã-Bretanha pós-resgate do FMI, os EUA em
1970 que os experimentos de neoliberalização processo de desindustrialização de Reagan e
em tempo real foram elaborados, embora em várias cidades e regiões atingidas pela crise no
um contexto geoeconômico largamente hostil, mundo capitalista mais antigo, que estavam
definido por arranjos regulatórios keynesianos tentando atrair investimento de capital trans-
posteriores e estratégias de gerenciamento de nacional “livre” por meio de várias formas de
crise. Embora baseadas em redes intelectuais arbitragem regulatória.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 27
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

Figura 1 – Da neoliberalização desarticulada


à neoliberalização profunda/aprofundada: um esboço estilizado

Formas contextualmente específicas Sistemas de transferência Regimes de normas e processos de


de experimentação regulatória interjurisdicional de políticas parametrização
Intensificação de formas neokeynesianas de transferência transjuridicional de
Neoliberalização desarticulada
políticas em resposta à volatilidade geoeconômica penetrante, especialmente
na zona da OCDE
Os projetos de neoliberalização
assumem formas específicas
Década Tendência de surgimento de formas neoliberalizadoras de transferência de
de lugares, territórios e escalas
de 1970 políticas em vetores geopolíticos intersticiais (e.g. de Chicago para Santiago)
em um contexto geoeconômico
‘hostil’, ainda definido por arranjos
Aceleração das críticas ideológicas às doutrinas econômicas keynesianas:
regulatórios keynesianos e
sinais cada vez mais evidentes de crise sistêmica no regime de normas
tendências emergentes de crises
internacional do liberalismo incrustado do pós-guerra
Intensificação contínua das formas impulsionadas pelo mercado de
experimentação regulatória e reforma institucional em várias escalas Tendência à destruição do
espaciais e em zonas estratégicas (e.g. EUA, Reino Unido, América Latina) ‘constitucionalismo progressivo’ em
escalas globais, supranacionais e
Tendência de enfraquecimento/exaustão das redes neokeynesianas de nacionais
transferência de políticas, em conjunto com buscas intensamente contestadas
Década por novas ‘correções institucionais’ para resolver crises georregulatórias Tendência à consolidação de um
de 1980 persistentes ‘novo constitucionalismo’ pela
redefinição impulsionada pelo
Tendência ao adensamento, transnacionalização, recursão mútua, mercado de várias instituições
integração programática e coevolução de redes de políticas orientadas para regulatórias globais, supranacionais
experimentos regulatórios e reformas institucionais impulsionados pelo e nacionais
mercado (e.g. monetarismo, liberalização, privatização, empreendedorismo
urbano, governança reinventada)
Neoliberalização Profunda/Aprofundada
Sendo ou não explicitamente impulsionadas pelo mercado ou restritoras do mercado, as formas contextualmente
específicas da experimentação regulatória e da reforma institucional são cada vez mais moldadas dentro de
parâmetros amplamente neoliberalizados ou das ‘regras do jogo’

Década
Sistemas neoliberalizados de transferência de políticas são cada vez mais mobilizados para abordar as tendências
de 1990
de crise e as contradições engendradas através de séries anteriores de reestruturação regulatória impulsionada pelo
mercado

Arcabouços institucionais macroespaciais passam a ser remodelados em termos neoliberalizados – parâmetros


baseados no mercado são, assim, cada vez mais impostos a escalas subordinadas de experimentação regulatória

Nota: as células sombreadas denotam as dimensões da reestruturação regulatória nas quais as tendências de neoliberalização
têm sido mais pronunciadas. Mesmo nas células sombreadas, contudo, outras formas de reestruturação regulatória coexistem
junto a tendências de neoliberalização.

28 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

Durante a década de 1980, uma nova novos revezamentos políticos e extrajurisdicio-


fronteira de neoliberalização foi aberta quando nais foram construídos. Tais redes de políticas
um repertório de modelos de políticas neolibe- rápidas foram reforçadas no final da década
rais começou a circular transnacionalmente e a de 1980, logo após a crise da dívida latino-
adquirir o status de soluções “milagrosas” para -americana e, subsequentemente, o colapso
qualquer problema regulatório e tendência de do Bloco Soviético. A formação da neolibera-
crise (Figura 1, fileira 2). lização desarticulada foi, assim, transformada
Embora isso tenha ocorrido em parte em uma formação organizada em rede e or-
através de uma “colonização” de redes exis- questrada transnacionalmente de estratégias
tentes e neokeynesianas de transferência de de reformas de políticas mutuamente recursi-
políticas (por exemplo, no OCDE, Banco Mun- vas e interreferenciais. Nessas circunstâncias,
dial e FMI), também envolveu a construção de os projetos de neoliberalização não mais sur-
novos circuitos interjurisdicionais para a pro- giam como exemplos relativamente isolados
moção, legitimação e entrega dos modelos de de experimentação regulatória disciplinada
políticas neoliberais, mediadas por um quadro pelo mercado, alojados em um ambiente polí-
cada vez mais influente de peritos e líderes po- tico-econômico hostil. Ao invés disso, padrões
líticos com habilidades técnicas, como os infa- de influência, coordenação e troca recíprocas
mes Chicago Boys. Por meio de uma série de foram estabelecidos entre programas de refor-
manobras, manipulações, negociações e lutas ma neoliberalizadores em contextos e escalas
do tipo tentativa-e-erro, muitos dos principais jurisdicionais diversos. Cada vez mais, tais pro-
experimentos regulatórios neoliberalizadores gramas foram interconectados recursivamente
da década de 1970 – como privatização, finan- para acelerar, aprofundar e intensificar sua cir-
ceirização, liberalização, assistência ao traba- culação e implementação transnacionais.
lho e empreendedorismo urbano – adquiriram, Esse aprofundamento da formação da
subsequentemente, algo próximo ao status neoliberalização consolidou-se ainda mais du-
“prototípico”, e se tornaram pontos de refe- rante a década de 1990, quando as agendas de
rência importantes para projetos posteriores reformas disciplinadas pelo mercado foram ins-
de neoliberalização. Formas neoliberalizadoras titucionalizadas em escala mundial através de
de reestruturação regulatória foram, assim, uma série de reformas e rearranjos jurídico-ins-
mobilizadas em diversas arenas de políticas titucionais mundiais, multilaterais, multiníveis e
por instituições nacionais, regionais e locais, supranacionais. Essa tendência é retratada na
não apenas na América do Norte e na Europa linha inferior, totalmente sombreada, da Figu-
Ocidental, mas também em um patchwork de- ra 1, que delineia as tendências de aprofunda-
sigual e globalmente disperso de estados pós- mento da neoliberalização dentro de cada uma
-desenvolvimentais e zonas pós-Comunistas da das três principais dimensões da reestruturação
América Latina, Sul da Ásia e África subsaaria- regulatória, agora incluindo aquela dos regi-
na, incluindo Europa Oriental e Ásia. Para fa- mes de normas e processos de parametrização.
cilitar a circulação, imposição e legitimação de Antes desse período, instituições regulatórias
estratégias de reforma baseadas no mercado, do pós-guerra, como o FMI, o Banco Mundial,

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 29
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

o GATT e, até o início da década de 1970, o são projetados para impor parâmetros disci-
acordo de Bretton Woods, haviam estabelecido plinados pelo mercado a instituições e forma-
um arcabouço amplamente keynesiano para a ções políticas nacionais e subnacionais, talvez
produção e o comércio mundiais, um regime de possa ser considerada uma das consequências
normas que tem sido descrito como “liberalis- de maior alcance das últimas três décadas de
mo incrustado” (Ruggie, 1982) ou “constitucio- reforma político-econômica neoliberalizadora.
nalismo progressivo” (Gill, 2003). Embora tais As cartografias dinâmicas da neolibe-
arranjos tenham sido desestabilizados durante ralização aqui esboçadas envolvem rastrear
as décadas de 1970 e 1980, somente na déca- sistematicamente o desenvolvimento desigual
da de 1990 um regime de normas pós-keyne- e a circulação transnacional dos modelos de
siano, neoliberalizado e global foi consolidado. políticas neoliberalizadas, além de seus impac-
Através da construção do redesenho discipli- tos diversificados, dependentes da trajetória e
nado pelo mercado dos arranjos institucionais contextualmente específicos, em locais, territó-
globais e supranacionais, incluindo-se desde a rios e escalas diversos. Contudo, embora esse
OCDE, o Banco Mundial e o FMI até a OMC, desenvolvimento desigual dos processos de
a CE pós-Maastricht e o NAFTA, entre outros, neoliberalização tenha sido claramente essen-
os processos de neoliberalização passaram a cial para a paisagem global da reestruturação
impactar e reestruturar os próprios arcabou- regulatória pós-1970, representa apenas uma
ços geoinstitucionais que governam as formas camada dentro de um processo multidimensio-
nacionais e subnacionais de experimentação nal de destruição criativa institucional e espa-
regulatória. Essa configuração geoinstitucional cial. Pois, como indica a linha inferior da Figura
tendencialmente neoliberalizada é frequente- 1, os processos de neoliberalização também
mente referida como o “Consenso de Washing- transformaram os próprios arcabouços geoins-
ton”, mas seus elementos regulatórios e suas titucionais dentro dos quais o desenvolvimento
geografias político-econômicas não podem ser regulatório desigual se desenrola, fazendo com
reduzidos a um projeto hegemônico puramen- que formas contextualmente específicas de ex-
te baseado nos EUA. Ao invés disso, o “novo perimentação regulatória e transferência inter-
constitucionalismo” associado ao regime de jurisdicional de políticas sejam canalizadas ao
normas global, neoliberalizado e ascendente longo de caminhos com tendência a serem dis-
também depende de acordos de condiciona- ciplinados pelo mercado. Esse regime de nor-
lidade impostos pela OMC; órgãos regulató- mas certamente não diminuiu nem dissolveu a
rios supranacionais e zonas regionais de livre dependência endêmica da trajetória e a espe-
comércio, como a CE, NAFTA, CAFTA, APEC e cificidade contextual dos projetos de reforma
ASEAN; organizações multinacionais como o neoliberalizadores. Porém, transformou qualita-
G8 e a OCDE; assim como órgãos econômicos tivamente o que poderia ser chamado o “con-
globais quase independentes, como o Banco texto do contexto”, isto é, o terreno político,
de Compensações Internacionais (Gill, 2003). institucional e jurídico dentro do qual os cami-
A consolidação desses regimes de normas nhos local, regional e nacionalmente específi-
neoliberalizados globais e supranacionais, que cos da reestruturação regulatória são forjados.

30 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

Acreditamos que nenhum mapa em movimento regulatória. Conforme indicado pelo padrão
da neoliberalização pode ser completo se não sombreado na figura, cada um dos quatro ce-
der atenção a esses arcabouços macroespaciais nários envolve um grau diferente de neolibera-
e parâmetros político-institucionais, pois têm lização, definido, em cada caso, com referên-
implicações cruciais para os processos contex- cia a uma combinação entre as três dimensões
tualmente situados de experimentação regula- listadas na linha superior.
tória, sejam eles disciplinados pelo mercado ou O cenário da neoliberalização zumbi é
controladores do mercado. retratado na primeira linha. Nesse cenário, ape-
sar de suas consequências disruptivas e destru-
tivas, a crise econômica global de 2008-2009
não mina significativamente as tendências
Cenários de neoliberalização das últimas três décadas
de contraneoliberalização (Peck, 2009). O regime de normas neolibera-
lizado que havia sido consolidado durante a
As trajetórias de médio e longo prazo dos pa- década de 1990 e o início da década de 2000
drões contemporâneos da reestruturação regu- pode ser recalibrado ou reconstituído para
latória são inerentemente imprevisíveis; neces- restringir certas formas de especulação finan-
sitam ser iniciadas através de lutas incrustadas ceira, mas sua orientação básica em direção
em conjunturas específicas, provocadas pelas à imposição de parâmetros disciplinados pelo
contradições das primeiras ocorrências de neo- mercado sobre economias supranacionais, na-
liberalização. Todavia, as considerações acima cionais, regionais e locais permanece dominan-
sugerem uma abordagem para confrontar tais te. A ideologia neoliberal ortodoxa é cada vez
questões – uma abordagem que dê atenção, mais questionada, mas a maquinaria política
simultaneamente, a choques regulatórios glo- da disciplina de mercado imposta pelo estado
bais e suas ramificações em locais, territórios permanece essencialmente intacta; as agendas
e escalas específicos, e que, ao mesmo tempo, de políticas sociais e econômicas continuam
evite modelos dualísticos de transição e decla- a ser subordinadas à prioridade de manter a
rações a respeito da morte do neoliberalismo. confiança do investidor e uma atmosfera boa
Esboçamos aqui vários cenários possíveis para para os negócios; e as agendas de políticas co-
as trajetórias futuras da reestruturação regula- mo livre comércio, privatização, mercados de
tória. Esses são resumidos na Figura 2. trabalho flexíveis e competitividade territorial
A Figura 2 está organizada em parale- urbana continuam a ser tidas como certas. Nes-
lo à Figura 1, com exceção de que a posição se cenário, como propõe Bond (2009, p. 193),
das células sombreadas que retratam as três o resultado mais provável da atual crise geo-
dimensões da neoliberalização foi inverti- econômica é um “neoliberalismo e um impe-
da. A linha superior apresenta cada uma das rialismo relegitimados”. Consequentemente,
três dimensões da neoliberalização; a coluna há um maior arraigamento dos arranjos re-
mais à esquerda lista quatro cenários distintos gulatórios disciplinados pelo mercado, uma
para os futuros caminhos da reestruturação maior lubrificação e aceleração dos sistemas

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 31
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

neoliberalizados de transferência interjurisdi- maior das formas neoliberalizadas de experi-


cional de políticas e um arraigamento ainda mentação regulatória em diferentes contextos.

Figura 2 – Contraneoliberalização: caminhos e cenários futuros

Regulatória Políticas Parametrização


A ideologia neoliberal ortodoxa é gravemente abalada, mas há uma neoliberalização contínua de cada
uma das três dimensões da reestruturação regulatória, frequentemente por meios tecnocráticos.
Cenário 1:
neoliberalização zumbi As tendências de crise e as falhas dos arranjos regulatórios impulsionados pelo mercado contribuem
para um arraigamento ainda maior dos projetos de neoliberalização como “soluções” putativas a
dilemas regulatórios persistentes em escalas, territórios e contextos
Neoliberalização contínua de sistemas de transferência de políticas
e regimes de normas transnacionais

Tendência à mobilização de
Os projetos de contraliberalização permanecem relativamente
experimentos regulatórios
fragmentados, desconectados e insuficientemente coordenados
Cenário 2: redistributivos, restritores
– não se infiltraram significativamente em arenas institucionais
contraliberalização do mercado e/ou regressivos
multilaterais, supranacionais ou globais
desarticulada em contextos dispersos e
desarticulados, em escalas
Regimes de normas macroespaciais continuam a ser dominados
locais, regionais e nacionais
pela lógica do mercado, apesar de críticas persistentes realizadas a
partir de locais extrainstitucionais e de “instâncias inferiores” (e.g.
o movimento de justiça global)
Neoliberalização continuada
dos regimes de normas: os
Intensificação da orquestração, recursão mútua e coevolução
projetos de contraliberalização
tendencial de experimentos regulatórios redistributivos e restritores
podem começar a se infiltrar
Cenário 3: do mercado em contextos cada vez mais interligados
em instituições macroespaciais
contra-liberalização
que estabelecem as regras
orquestrada Adensamento, intensificação e ampliação das redes de
(e.g. Banco Mundial, União
transferência de políticas com base em alternativas (progressivas
Europeia), mas não conseguem
ou regressivas) ao regime de mercado
reorientar suas tendências
básicas voltadas ao mercado
Intensificação continuada de (formas progressivas ou reacionárias de) experimentação regulatória
redistributiva, socializadora, reinscrustadora e restritora do mercado

Elaboração contínua e consolidação transnacional de formas de transferência transjuridicional de


Cenário 4:
políticas que são redistributivas, socializadoras e restritoras do mercado
socialização profunda

Desestabilização/desmantelamento de regimes de normas neoliberais: construção de arcabouços


alternativos, restritores do mercado, redistributivos e socializadores para a organização regulatória
macroespacial

Nota: As células sombreadas denotam as esferas da reestruturação regulatória nas quais a neoliberalização
seria mais pronunciada.

32 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

Em um segundo cenário, a contraneolibe- neoliberalizada. Mas, a menos que estejam in-


ralização desarticulada, um regime de normas terconectadas em lugares, territórios e escalas,
neoliberalizado e os sistemas associados de e ligadas a recalibrações institucionais, essas
transferência de políticas neoliberais persistem, iniciativas confrontam restrições sistêmicas que
mas nesse meio tempo, a crise econômica glo- podem minar sua reprodutibilidade em médio
bal oferece novas oportunidades estratégicas, e longo prazo, circunscrevendo sua capacidade
embora dentro de arenas político-institucionais de generalização interespacial.
relativamente dispersas, para forças sociais e Em um terceiro cenário, as formas or-
alianças políticas preocupadas em promover questradas de experimentação regulatória con-
estratégias regulatórias que restrinjam ou que traneoliberalização e restritoras do mercado
transcendam o mercado. Mesmo antes da cri- não mais ocorrem isoladamente, como “postos
se financeira global mais recente, havia muita avançados” de dissidência relativamente fe-
oposição organizada às políticas neoliberais, chados em si mesmos, mas são recursivamente
realizada pelos movimentos de trabalhadores, interconectadas em lugares, territórios e esca-
movimentos de camponeses, movimentos ur- las. Nessas condições, há esforços sustentados
banos, por várias vertentes do movimento an- para criar redes antissistêmicas de comparti-
tiglobalização e, em alguns casos, por partidos lhamento de conhecimentos, transferência de
políticos oficiais social-democráticos, comunis- políticas e construção de instituições entre os
tas e populistas (Amoore, 2005; Leitner et al., diversos locais e escalas de mobilização con-
2007). Na esteira da crise econômica atual, traneoliberal. Esse cenário pode assumir uma
pode haver novas aberturas estratégicas para forma relativamente estatista – por exemplo,
tais movimentos sociais e organizações políti- uma coalizão de governos nacionais, regionais
cas perseguirem essas agendas que restringem ou locais neokeynesianos, socialdemocratas ou
o mercado, enquanto disseminam críticas mais ecossocialistas, talvez dentro ou entre regiões
amplamente produtivas ao capitalismo neolibe- globais importantes. Tal cenário também pode
ralizado. Nesse cenário, contudo, esses projetos assumir uma forma baseada em movimento –
contraneoliberalizadores permanecem relativa- por exemplo, aquela do Fórum Social Mundial,
mente desarticulados – isto é, são confinados a com seu projeto de criar uma rede alternativa
parâmetros localizados, regionalizados ou, em de transferência progressiva de políticas, vin-
alguns casos, nacionalizados e, ao mesmo tem- culando ativistas e formuladores de políticas
po, ainda permanecem incrustados em contex- de diversas instituições, setores e contextos no
tos geoinstitucionais dominados por arranjos sistema mundial (Marcuse, 2005). Impulsiona-
regulatórios disciplinados pelo mercado e por das pelo estado ou levadas pelos movimentos,
redes de transferência de políticas. Claramente, tais redes ganham significado e se tornam cada
os experimentos regulatórios contextualmente vez mais coordenadas nesse cenário, levando,
específicos associados a formas desarticula- possivelmente, ao desenvolvimento de novas
das de contraneoliberalização são uma fron- visões, solidárias e ecologicamente sãs, para a
teira estrategicamente essencial para explo- regulação econômica global e para as relações
rar alternativas a uma ordem geoeconômica interespaciais. Como argumentamos acima, a

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 33
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

criação de redes transnacionais para a transfe- à saúde e utilidades públicas. Das cinzas do
rência de conhecimentos e políticas foi essen- regime de normas global neoliberalizado surge
cial para a consolidação, reprodução e evolu- um modelo de regulamentação global alterna-
ção dos processos neoliberalizadores durante tivo, social-democrático, solidário e/ou ecos-
as três últimas décadas, e tais redes certamen- socialista. O conteúdo político significativo
te serão igualmente essenciais para qualquer de tal regime de normas é – na verdade, tem
projeto que aspire a desestabilizar os arranjos sido há muito tempo – uma questão de deba-
georregulatórios disciplinados pelo mercado. te intenso dentro da Esquerda global (cf., por
No entanto, no cenário da contraneoliberaliza- exemplo, Amin, 2009; Gorz, 1988; Holloway,
ção orquestrada, as redes de transferência de 2002). Mas um de seus elementos principais
políticas contraneoliberalizadoras recentemen- seria uma democratização radical das toma-
te estabelecidas e cada vez mais coordenadas das de decisões e capacidades de alocação em
ainda não têm a capacidade de se infiltrar nos todas as escalas espaciais – uma possibilidade
escalões do poder político-econômico global, que contrasta fortemente com os princípios
como as agências multilaterais, os blocos de da disciplina de mercado e regra corporativa
comércio supranacionais e governos nacionais nos quais a neoliberalização se baseia (Harvey,
poderosos. Consequentemente, embora o re- 2008; Purcell, 2008).
gime de normas global neoliberalizado possa Também deve ser enfatizado que nem
tender a ser desestabilizado, sobrevive intacto. todas as alternativas a um regime de normas
Será que um regime de normas global neoliberalizado envolvem essa visão normativa
alternativo pode ser forjado? Em um quarto progressiva, solidária e radicalmente democrá-
cenário, socialização profunda, o regime de tica. Como Brie (2009) indica, qualquer número
normas global neoliberalizado é sujeito a um de cenários regressivos, até mesmo bárbaros,
maior escrutínio público e à crítica popular. é possível, incluindo várias formas de reação,
Subsequentemente, os arcabouços institucio- hiperpolarização, neoimperialismo, remilitari-
nais da neoliberalização que foram herdados zação e degradação ecológica neoconserva-
são infiltrados em todas as escalas espaciais doras, neototalitárias e neofundamentalistas.
por forças sociais e alianças políticas orienta- Questões básicas também podem ser coloca-
das para agendas alternativas que restringem das em relação à configuração geográfica de
o mercado. Essas poderiam incluir controles qualquer regime de normas global futuro. Se-
de capital e de trocas; perdão de dívidas; re- rá cada vez mais China-cêntrico, como prevê
gimes de impostos progressivos; esquemas Arrighi (2007)? Será fundamentado em uma
de crédito de base não-lucrativa, governados ordem mundial multipolar, como espera Amin
por cooperativas e desglobalizados; redistri- (2009)? Envolverá um arquipélago de redes in-
buição global mais sistemática; investimentos terurbanas ou interregionais progressivamente
em obras públicas; e a descomodificação e orientadas, em conjunto com novas formas de
desglobalização das necessidades sociais bási- exclusão socioespacial mundial, como Scott
cas, como abrigo, água, transporte, assistência (1998) antecipa? Ou envolverá alguma outra

34 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

formação ainda não visualizada de desenvolvi- experimentação regulatória, os sistemas inter-


mento espacial desigual? Essas perguntas não jurisdicionais de transferência de políticas e os
podem ser respondidas aqui; destinam-se sim- regimes de normas globais.
plesmente a provocar reflexão e debate sobre Experimentos regulatórios contraneoli-
as possíveis consequências de médio e longo beralizadores permanecem estrategicamente
prazo dos projetos de contraneoliberalização cruciais, especialmente no contexto urbano,
dentro de cada uma das três dimensões da re- mas na ausência de redes orquestradas de
estruturação regulatória. transferência de políticas contraneoliberaliza-
doras, provavelmente permanecerão confina-
dos em locais, escalas e territórios específicos.
Também é importante notar que a construção
Conclusões de sistemas contraneoliberalizadores de trans-
ferência de políticas, tanto em meio a movi-
Esta linha de análise é, reconhecidamente, mentos sociais, como em cidades, regiões ou
especulativa, e ainda há muito trabalho a ser estados, representa um grande passo à frente
feito em um nível mais concreto para operacio- para os ativistas e os formuladores de políti-
nalizar algumas das orientações metodológi- cas progressistas. Porém, na ausência de uma
cas aqui apresentadas, principalmente com re- visão plausível para um regime de normas
ferência às últimas três décadas dos processos global alternativo, tais redes provavelmente
de neoliberalização e com referência à conjun- permanecerão intersticiais, meros incômodos
tura contemporânea da formação de crises, à maquinaria global da neoliberalização, ao in-
particularmente em relação às transformações vés de ameaças que poderiam transformar sua
dos tipos de paisagens urbanas que estão em influência hegemônica.
discussão nesta questão. Em nossa conceitua- Entretanto, nossa intenção aqui não é
ção, a neoliberalização não é uma totalidade priorizar nenhum dos três níveis de engaja-
global que abarca tudo, mas sim um padrão mento político – todos são estrategicamente
de reestruturação desenvolvido de maneira essenciais e possuem ramificações estruturais
desigual que tem sido produzido através de significativas. Claramente, na ausência de ex-
uma sucessão de colisões dependentes da tra- perimentos regulatórios viáveis, contextual-
jetória entre projetos regulatórios emergentes, mente específicos, nossa imaginação em rela-
disciplinados pelo mercado e paisagens insti- ção a como poderia ser uma alternativa global
tucionais herdadas em locais, territórios e es- à neoliberalização permanecerá seriamente
calas. Consequentemente, para considerar as limitada. Mas também é importante notar que,
possibilidades contemporâneas de transcender se analistas urbanos e ativistas progressivos
ou inverter a influência dos processos de neoli- focalizarem seus esforços predominantemente
beralização, tanto dentro como entre cidades, sobre “economias alternativas” local e regio-
é necessário distinguir várias dimensões de nalmente específicas, e vincularem os sistemas
sua articulação espacial-temporal, incluindo a mais amplos de transferência de políticas e

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 35
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

os arcabouços geoinstitucionais que impõem regulatória. Essa é a razão da ênfase que colo-
as regras do jogo a tais contextos, também camos aqui nas dialéticas inter e extralocais da
estarão limitando seriamente sua habilidade de transformação regulatória.
imaginar – e perceber – um mundo em que os Assim, nossa análise aponta para duas
processos de acumulação de capital não deter- conclusões gerais para estudos de paisagens
minem as condições básicas da existência hu- regulatórias urbanas e, de maneira mais geral,
mana. Portanto, em nosso ponto de vista, arca- para o estudo de transformações regulatórias
bouços interpretativos do “grande cenário” são supraurbanas. Em primeiro lugar, podemos
mais essenciais do que nunca, não apenas para antecipar que as trajetórias da reestruturação
analisar as origens, expressões e consequên- regulatória pós-2008 serão moldadas podero-
cias da crise financeira global contemporânea, samente pelas formas político-institucionais
mas também como pontos de referência estru- específicas de locais, territórios e escalas nas
turais e estratégicos para mobilizar alternati- quais as séries anteriores de neoliberalização
vas contra-hegemônicas às práticas político- foram articuladas. Em segundo lugar, nossa
-econômicas atualmente dominantes (para discussão sugere que, na ausência de estra-
uma versão anterior dessa argumentação, cf. tégias contraneoliberalizadoras para fraturar,
Peck e Tickell, 1994). É claro que os experimen- desestabilizar, reconfigurar e finalmente su-
tos locais têm importância, e devem ser enca- plantar os regimes de normas disciplinados pe-
rados seriamente, mas o mesmo se aplica aos lo mercado que prevalecem globalmente des-
regimes de normas institucionais mais amplos de o final da década de 1980, os parâmetros
e aos revezamentos interlocalidades de políti- para formas alternativas de experimentação
cas que enquadram e coconstituem caminhos regulatória nacional, regional e local conti-
contextualmente específicos da reorganização nuarão a ser intensamente circunscritos.

Neil Brenner
Professor of Sociology and Metropolitan Studies at New York University, USA. New York, EUA.
neil.brenner@nyu.edu

Jamie Peck
Canada Research Chair in Urban and Regional Political Economy and Professor of Geography at the
University of British Columbia, Canada. Columbia, Canada.
jamie.peck@ubc.ca

Nik Theodore
Director of the Center for Urban Economic Development (CUED) and Associate Professor in the
Department of Urban Planning and Policy at the University of Illinois at Chicago, USA. Chicago, EUA.
theodore@uic.edu

36 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

Notas
(*) Texto publicado no periódico Globaliza ons, 2010, v. 7, n. 3, pp. 327-345. Revisão técnica de
Carolina Siqueira M. Ventura.

((1) As análises empíricas apresentadas por Simmons, Dobbin e Garret (2008) são, na verdade,
muito mais complexas institucionalmente e matizadas geograficamente do que seu próprio
uso da metáfora de “difusão” dá a entender. É interessante notar que, em suas discussões
mais concretas sobre cada um dos quatro mecanismos de difusão, os autores sinalizam uma
conceituação alterna va da neoliberalização que enfa za a reorganização regulatória mul nível
e mul cêntrica, a heterogeneidade ins tucional, a contestação de polí cas e a dependência
da trajetória. Dessa forma, seu relato na verdade rompe substancialmente com a literatura
difusionista ao redor da qual constroem sua narra va.

(2) Esse conjunto de dis nções pode ser aplicável a outras formações de reestruturação regulatória –
e.g. ao “liberalismo incrustado” (Ruggie, 1982) ou “cons tucionalismo progressivo” (Gill, 2000)
no capitalismo fordista-keynesiano do pós-guerra, ou ao liberalismo clássico do final do século
XIX (Silver e Arrighi, 2003). Para os nossos propósitos neste ar go, contudo, são entendidas
como dimensões da reestruturação regulatória associadas à neoliberalização transnacional.

(3) Dentre as questões mais per nentes a serem perseguidas na inves gação empírica dos regimes
de normas estão: (a) Qual é seu escopo, i.e. quão amplamente ou estreitamente se estendem
pelo espaço geográfico? (b) Qual é seu formato, i.e. abarcam o espaço de forma abrangente
ou desigual? (c) Qual é seu nível de intensidade, i.e. quão fortemente ou frouxamente
circunscrevem as dinâmicas regulatórias intrassistêmicas? (d) Qual é seu nível de variabilidade
interna, i.e. que pos de diferenças polí co-ins tucionais são possíveis dentro deles? e (e) Qual
é seu grau de maleabilidade, i.e. até que ponto podem ser redefinidos por meio de negociações
ou lutas polí cas?

(4) Essa representação não se des na a negar a presença de projetos regulatórios que restringem o
mercado dentro das zonas sombreadas da figura, nem tampouco sugerir que os processos de
neoliberalização não figuraram de maneira alguma dentro dos quadrantes brancos. O obje vo,
ao invés disso, é demarcar analiticamente a trajetória geral da reestruturação regulatória
disciplinada pelo mercado.

(5) Em um ar go relacionado, analisamos esses processos transforma vos como uma mudança do
desenvolvimento desigual da neoliberalização para a neoliberalização do desenvolvimento
regulatório desigual (Brenner et al., 2010).

Referências
ALTVATER, E. (2009). Postneoliberalism or postcapitalism. Development Dialogue, 51(1), pp. 73–88.

AMIN, S. (2009). The world we wish to see. Nova York, Monthly Review Press.

AMOORE, L. (ed.) (2005). The global resistance reader. Nova York, Routledge.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 37
Neil Brenner, Jamie Peck e Nik Theodore

ARRIGHI, G. (2007). Adam Smith in Beijing. Nova York, Verso.

BOCKMAN, J. e EYAL, G. (2002). Eastern Europe as a laboratory for economic knowledge: the
transna onal roots of neo-liberalism. American Journal of Sociology, 108(2), pp. 310–352.

BOND, P. (2009). Realis c postneoliberalism. Development Dialogue, 51(1), pp. 193–211.

BRENNER, N. (2004). New State Spaces. Oxford, Oxford University Press.

BRENNER, N., PECK, J. e THEODORE, N. (2010). Variegated neoliberaliza on: geographies, modali es,
pathways. Global Networks, 10(2), pp. 182–222.

BRENNER, N. e THEODORE, N. (2002). Ci es and the geographies of ‘actually exis ng neoliberalism’.


An pode, 34(3), pp. 349–379.

BRIE, M. (2009). Ways out of the crisis of neoliberalism. Development Dialogue, 51(1), pp. 15–32.

CLARKE, J. (2008). Living with/in and without neo-liberalism. Focaal, 51(1), pp. 135–147.

DEZELAY, Y. e GARTH, B. G. (2002). The Interna onaliza on of Palace Wars. Chicago, University of
Chicago Press.

FRIEDMAN, T. (2005). The World is Flat. Nova York, Farrar Straus & Giroux.

GILL, S. (2003). Power and resistance in the new world order. Londres, Palgrave.

GORZ, A. (1988). Cri que of economic reason. Nova York, Verso.

HARMES, A. (2006). Neoliberalism and multilevel governance. Review of International Political


Economy, 13(5), pp. 725–749.

HARVEY, D. (2005). A brief history of neoliberalism. Oxford, Oxford University Press.

______ (2008). The right to the city. New Le Review, 53, pp. 23–40.

HOLLOWAY, J. (2002). Change the World Without Taking Power. Londres, Pluto.

HOLMAN, O. (2004). Asymmetrical regula on and mul level governance in the European Union.
Review of Interna onal Poli cal Economy, 11(4), pp. 714–735.

JESSOP, B. (2002). Liberalism, neoliberalism and urban governance. An pode, 34(3), pp. 452–472.

KLEIN, N. (2007). Shock doctrine. Nova York, Metropolitan Books.

LEITNER, H., PECK, J. e SHEPPARD, E. (eds) (2007). Contes ng neoliberalism: urban fron ers. Nova
York, Guilford.

MARCUSE, P. (2005). Are social forums the future of social movements? Interna onal Journal of Urban
and Regional Research, 29(2), pp. 417–424.

McMICHAEL, P. (1996). Development and social change. Londres, Sage.

MITTELMAN, R. H. (2000). The globaliza on syndrome. Princeton/NJ, Princeton University Press.

PECK, J. (2001). Workfare States. Nova York, Guilford.

______ (2004). Geography and public policy: construc ons of neoliberalism. Progress in Human
Geography, 28(3), pp. 392–405.

______ (2009). Zombie neoliberalism and the ambidextrous state. Theore cal Criminology, 13(3), pp.
104–110.

38 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012
Após a neoliberalização?

PECK, J. (2010a). Construc ons of neoliberal reason. Oxford, Oxford University Press.

______ (2010b). Geographies of policy: from transfer and diffusion to mobility and muta on. Mimeo
Department of Geography, University of Bri sh Columbia.

PECK, J. e THEODORE, N. (2001). Expor ng workfare/impor ng welfare-to-work. Poli cal Geography,


20(4), pp. 427–460.

______ (2007). Variegated capitalism. Progress in Human Geography, 31(6), pp. 731–772.

______ (2010). Recombinant workfare, across the Americas. Geoforum, 41(2), pp. 195–208.

PECK, J., THEODORE, N. e BRENNER, N. (2009). Postneoliberalism and its malcontents. An pode, 41(6),
pp. 1236–1258.

PECK, J. e TICKELL, A. (1994). “Searching for a new ins tu onal fix: the a er-Fordist crisis and the
global-local disorder”. In: AMIN, A. (ed.). Post-Fordism: a Reader. Londres, Blackwell.

______ (2002). Neoliberalizing space. An pode, 34(3), pp. 380–404.

PEET, R. et al. (2003). Unholy Trinity: the IMF, World Bank and WTO. Londres, Zed.

POLANYI, K. (1944). The great transforma on. Boston, Beacon Press.

PURCELL, M. (2008). Recapturing democracy. Nova York, Routledge.

RUGGIE, J. G. (1982). Interna onal regimes, transac ons, and change. Interna onal Organiza on,
36(2), pp. 379–415.

SAAD-FILHO, A. e JOHNSTON, D. (eds) (2005). Neoliberalism: a cri cal reader. Londres, Pluto Press.

SCOTT, A. J. (1998). Regions in the world economy. Nova York, Oxford University Press.

SILVER, B. J. e ARRIGHI, G. (2003). Polanyi’s ‘double movement’: the belle epoques of Bri sh and U.S.
Hegemony compared. Poli cs & Society, 31(2), pp. 325–355.

SIMMONS, B. A.; DOBBIN, F. e GARRETT, G. (2008). “Introduc on: the diffusion of liberaliza on”. In:
SIMMONS, B. A.; DOBBIN, F. e GARRETT, G. (eds). The global diffusion of markets and democracy.
Nova York, Cambridge University Press.

STIGLITZ, J. E. (2008). The end of neo-liberalism? Project Syndicate Commentary. Disponível em: h p://
www.project-syndicate.org.

STREECK, W. e THELEN, K. (2005). “Introduc on: ins tu onal change in advanced capitalist economies”.
In: STREECK, W. e THELEN, K. (eds.). Beyond con nuity. Oxford, Oxford University Press.

TABB, W. (1982). The long default. Nova York, Monthly Review Press.

WALLERSTEIN, I. (2008). The demise of neoliberal globaliza on. MRZine, February. Disponível em:
h p://www.mrzine.monthlyreview.org.

Texto recebido em 25/ago/2011


Texto aprovado em 15/set/2011

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 15-39, jan/jun 2012 39
Governance e territorialização:
o welfare local na Itália
entre fragmentação e inovação*
Governance and territorialization: local welfare
in Italy between fragmentation and innovation

Lavinia Bifulco

Resumo Abstract
Colocado de maneira simples, a territorialização Briefly put, the territorialization is a puzzle. The
é um enigma. O conceito cobre dois fenômenos concept covers two principal phenomena: the
principais: o processo de reorganização territorial process of territorial reorganization which has
que tem afetado diferentes níveis de ações affected different levels of public action and their
públicas e suas relações, e a tendência de tomar o relations; the trend of taking the territory as the
território como o ponto de referência para políticas reference point for policies and interventions.
e intervenções. Esses fenômenos são, ao mesmo These phenomena are at the same time distinct
tempo, distintos, porém ligados, e compartilham but linked, and share the same consequences,
as mesmas consequências, mobilizando novos mobilizing new actors / arenas and politicizing
atores/arenas e politizando uma gama bastante quite a wide range of issues. The aim of the paper is
ampla de questões. O objetivo deste artigo é duplo: twofold: to outline an analytical scheme regarding
delinear um esquema analítico do território como the territory as the medium of the present
o ambiente da relação atual entre cidadania e relationship between citizenship and governance;
governança; focalizar problemas e oportunidades to focus on problems and opportunities that are
que são desencadeados pelo welfare local na Itália. triggered by local welfare in Italy.
Palavras-chave: governança; territorialização; Keywords: governance; territorialization;
cidadania; welfare local; Itália. citizenship; local welfare; Italy.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Lavinia Bifulco

ação pública está sob pressão, de um lado para


Introdução
a intensificação dos processos de internaciona-
lização, de outro para o reemergir de dinâmicas
Desde os anos 80, a ação pública na Europa foi de diferenciação territorial (Ferrarese, 2011).
de interesse de um processo de territorializa- Neste ensaio, levarei em consideração a
ção cada vez mais intenso. Em termos gerais, reorganização territorial como um componen-
a territorialização refere-se a dois fenômenos te chave da governance (Gualini, 2006). Cien-
principais: o processo de reorganização terri- te da ambiguidade desta noção, preciso que,
torial que tocou os diversos níveis de governo no meu ponto de vista, a governance não equi-
e as suas relações; a orientação para assumir vale ao desaparecimento do Estado, concomi-
o território como referência de políticas e in- tantemente com a mudança das relações entre
tervenções. O primeiro está ligado às dinâmi- público e privado e entre local/central/supra-
cas de rescaling do Estado (Brenner, 2004). nacional (Le Galès, 2002). Isso não resolve,
O segundo se entrelaça ao desenvolvimento evidentemente, a questão da ambiguidade. É
de abordagens e instrumentos de policy que verdade que, enquanto até alguns anos atrás,
tendem a considerar os contextos em que se o conceito de governance era, em sua maior
desenvolvem as intervenções como recursos, parte, associado a orientações ‘‘pró-mercado’’,
targets e atores (Bifulco et al., 2008). Trata-se o debate atual mostra uma maior focalização
de fenômenos distintos, mas intrincados entre em temas como a participação dos cidadãos
si, que têm como efeitos comuns a mobilização e das comunidades locais, a construção de
de novos atores e a politicização de um leque parcerias entre atores públicos e privados, a
amplo de issues. Tornou-se evidente, parale- difusão de práticas deliberativas.1 É também
lamente, o fato de que o território não é uma verdade que a governance subentende uma
realidade dada e inerte, mas é repleto de rela- nova maneira de olhar para a reconstrução das
ções sociais, poderes e capacidade de agency. estruturas escalares do Estado que “are now
É necessário levar em consideração, mais understood to be historically malleable; they
precisamente, a copresença de processos de may be ruptured and rewoven through the
desterritorialização e de reterritorialização. Co- very political strategies they enable” (Brenner,
mo é sabido, o Estado tomou forma, na Europa, 2009, p. 126).
através da neutralização das dinâmicas locais A governance , por isso, torna mani-
e a escala estatal/nacional esteve na base da festada a valência política das dinâmicas que
democracia moderna (Ferrarese, 2011). Hoje a estão moldando a organização do Estado, das
relação entre Estado e território é mais com- instituições, das políticas, ativando e redistri-
plicada. A globalização, de fato, dá lugar a buindo poderes.
novas montagens entre território, autoridade Um campo de mudanças relacionado é
e direitos e os processos de desnacionalização o da cidadania. De acordo com o modelo clás-
em curso abrem novas possibilidades da geo- sico, a cidadania é “a relationship between
grafia política em níveis supra e subnacional individuals and political authorities inside an
(Sassen, 2006). Por isso, a escala nacional da undifferentiated state territory” (Bauböck

42 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização

e Guiraudon, 2009, p. 440). Como nunca


O quadro europeu
correspondeu totalmente à verdade, tal mode-
lo dominou uma parte significativa da história
da territorialização
institucional europeia. Hoje, graças à integra-
ção europeia, os confins territoriais da cidada- A reorganização territorial que começou há
nia são mais permeáveis e as raízes nacionais cerca de trinta anos, coincidindo com o lança-
são menos importantes do que em outro tem- mento da assim chamada Europa das regiões
po para o exercício de alguns direitos (Ferrera, da presidência europeia de Jacques Delors,
2005). Paralelamente, tomam forma maneiras produziu uma recomposição profunda do es-
regionais e urbanas de cidadania, simultanea- paço político e das políticas, graças à qual
mente à difusão de instrumentos de policy lo- “the nationalizing, spatially redistributive
calizados, que pretendem envolver cidadãos e orientation of post-war urban and regional
comunidades na vida pública (García, 2006). policies has been largely superseded” (Brenner,
Isto pode, obviamente, ajudar o processo de- 2009, p. 128). Abriu-se, desde então, uma fase
mocrático. Mas pode também contribuir para o de “reinvenção do território” (Keating, 1997)
crescimento das desigualdades territoriais. durante a qual o próprio significado da noção
O ensaio aborda a relação entre gover- de território se enriqueceu e se complicou,
nance e cidadania, colocando em foco os pro- identificando não mais somente um espaço ad-
cessos de territorialização. O objetivo é duplo: ministrativo, mas também (ou principalmente)
delinear um esquema analítico relativo ao terri- um leque de capacidades de ação coletiva.
tório como mediador da relação atual entre ci- Os eixos da mudança são dois. Um é a
dadania e governance; colocar em foco os pro- regionalização. Na análise clássica de Michael
blemas e as oportunidades que a governance e Keating (1997), trata-se de uma “nova on-
a territorialização – no seu duplo sentido – pro- da de regionalismo” que, diferentemente do
vocam na Itália, referindo-me principalmente passado, não tem lugar dentro dos Estados
ao welfare local. Unidos, mas tem como contexto a União Eu-
Começarei deIineando o quadro inter- ropeia e o mercado global. Para seu desenvol-
pretativo relativo ao contexto europeu, ilus- vimento concorrem três fatores: a mudança
trando o duplo significado de territorialização funcional (solicitada pela globalização e pela
das políticas e as geometrias variáveis da cida- necessidade de confronto com o mercado in-
dania que daí surgem. Passarei então à análise ternacional), a reorganização institucional
do caso italiano, apresentando dois instrumen- (principalmente a descentralização e a inte-
tos de policy mais significativos com relação gração europeia) e a mobilização política no
aos temas indagados: os Planos sociais de zona interior das Regiões (ibidem).
e os Contratos de bairro. A chave analítica prin- Desse ponto de vista, a regionalização
cipal que usarei refere-se ao cruzamento ambi- tem como efeito principal ativar novas arenas
valente de estímulos à inovação e estímulos à políticas e novos atores da política. As regiões
fragmentação que dá forma ao quebra-cabeças jogam, de fato, uma parte de primeiro plano
2
da territorialização. na política e, em alguns casos, na europeia,

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 43
Lavinia Bifulco

experimentando novas formas da ação coletiva próprias cidades como atores coletivos reco-
e da regulação territorial. O que implica o fim nhecíveis ao externo como tais;
definitivo da ideia naturalizada do território. ● a exigência de se levar em consideração a in-
Torna-se evidente, de fato, que a região não é terdependência entre os fatores dos quais de-
uma entidade natural, mas é uma construção pende o bem-estar, por exemplo a habitação, o
social e um espaço político (ibidem). É dito, trabalho, o acesso aos serviços de saúde;
com este propósito, que a descentralização ● o deslocamento da atenção pública da ques-
na Europa avançou um pouco por toda parte. tão social à questão urbana, identificada pela
Na Itália, há uma versão parcial de devolution evidência assumida pelos problemas do tra-
à espera de ser completada. Modelos federais balho, da insegurança e das minorias étnicas
são aplicados, por exemplo, na Alemanha, Bél- (Donzelot, 2006);
gica, Áustria, Espanha (García, 2006; Moreno, ● a ideia de que a escala local favorece a rea-
McEwen, 2005). lização de intervenções integradas e mais cor-
Junto às regiões, as cidades são atores respondentes às necessidades e às demandas
de primeiro plano na nova ordem territorial. específicas de uma coletividade (Benassi e
O protagonismo das cidades na Europa é lido Mingione, 2002).
à luz do papel encenado pela União Europeia. Um dos pontos cruciais é, obviamen-
De fato, a Europa das regiões foi rapidamen- te, a disponibilidade de recursos adequados e
te substituída por uma Europa das cidades. de mecanismos alocativos em nível nacional,
Aproveitando as oportunidades oferecidas pela mas também, às vezes, supranacionais, que
União (principalmente pelas políticas dos fun- sustentam as responsabilidades locais. Muito
dos estruturais), as cidades se tornaram atores frequente é a combinação entre recursos escas-
políticos no espaço europeu, à procura de le- sos e responsabilidades elevadas. Uma questão
gitimidade e de lugares de representação (Le ligada à estrutura das relações entre setor pú-
Galès, 2002, p. 90). Graças às políticas urbanas blico, família, terceiro setor – e mercado – com
e regionais que desenvolveu nos últimos trinta relação a intervenções de welfare e às relativas
anos, a União Europeia modificou o contexto responsabilidades (Saraceno, 2002). Em muitos
institucional e econômico no qual as cidades países europeus, as reorganizações recentes
estão inseridas, institucionalizando alguns pa- do welfare se inspiraram no princípio da sub-
râmetros dos quais dependem as modalidades sidiariedade. Mas a subsidiariedade tem impli-
da governance urbana (ibidem, p. 85). cações diferentes, de acordo com os contextos.
Um dos aspectos mais significativos des- Nos welfares mediterrâneos, a subsidiariedade
se desenvolvimento das cidades e das regiões é associada a mecanismos reguladores que, por
como espaço político é o assim chamado um lado, enfatizam o papel da família e, em
welfare local. Essencialmente, o welfare local uma certa medida, do terceiro setor, por outro
indica: lado, sustentam pouco e mal estes sujeitos a
● o papel que, nos processos de decisão, as- quem enfrentam (Kazepov, 2009).
sumem os administradores locais (regionais Segundo Ferrera (2005), um efeito impor-
e municipais), as redes público-privadas, as tante da nova fase das relações entre centro

44 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização

e periferia concretizada pelo welfare local foi claros de como a referência a uma área territo-
a crescente politização dos issues relativos às rial se presta a enfatizar objetivos de ativação
transferências e às solidariedades interterrito- e participação.
riais. Os governos subnacionais tornaram-se, de Apesar de uma certa redundância de
fato, muito mais atentos a questões financeiras significados, a territorialização pode ser sinte-
nas suas relações com os governos centrais e tizada em dois núcleos com interseção entre
muito mais propensos a mobilizar-se. si: o território como colocação em jogo de uma
Por um ponto de vista deliciosamente reorganização política; o território como instru-
sociológico, o welfare local ilumina os modos mento de policy. Ambos colocam uma série de
como as políticas interagem com os processos questões. Geografias localizadas da política e
de organização e reorganização (Bagnasco, das políticas podem reduzir os efeitos equali-
2003). Uma vez ressurgido o papel político das zadores, já fracos, do Estado central e colocar
cidades, aumenta também a influência que as à prova tanto a integridade territorial quanto a
políticas (locais) podem ter no grau de inte- responsabilidade democrática (Keating, 1997).
gração das sociedades locais. Mais ainda se as Questões específicas voltadas à cidadania, co-
políticas assumem explicitamente o território mo veremos no parágrafo seguinte.
como target.
Remetemo-nos, desta maneira, às lógicas
da territorialização incorporadas nas relações Cidadania: geometrias variáveis
de policy em diversos setores (o desenvolvi-
mento local, as políticas contra a exclusão Neste quadro, pode-se identificar quatro ques-
social, a requalificação urbana). Neste caso, tões principais relativas à cidadania:
trata-se da tendência a enfrentar, de manei- ● a diferenciação territorial que coloca em dis-
ra integrada, um conjunto de problemas – de cussão o modelo da cidadania como perten-
natureza social, física e econômica – em áreas cente à comunidade definida pelo espaço do
circunscritas. As fórmulas são várias. Bastante estado-nação;
difusas são as intervenções que assumem co- ● o aumento de pessoas que não gozam de
mo targets territórios em desvantagem, com o direitos ou são denizens,4 por causa do cresci-
objetivo de redistribuir e equalizar as oportu- mento dos processos migratórios;
nidades. Além disso, a territorialização é con- ● uma europeização embrionária dos direitos
siderada uma condição favorável à realização derivados da integração europeia;
de políticas ativas, um tema chave na agenda ● o desenvolvimento de novas oportunidades
das políticas sociais na Europa.3 Pensa-se que para os cidadãos nos contextos da governance
a escala circunscrita e a aproximação física local.
entre serviços e cidadãos favoreçam processos Como sustentam Bauböck e Guiraudon
de inclusão e de empowerment, assim como (2009), a União Europeia tornou-se um labo-
anunciado por princípios de subsidiariedade. ratório para a experimentação de uma cidada-
As intervenções em bairros desenvolvidos, em nia diferenciada e “realinhada”: ”If citizenship
muitos países europeus, são exemplos bastante is membership in a bounded policy, then the

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 45
Lavinia Bifulco

boundaries of polities in Europe have certainly direito de participar do confronto democrático


not vanished but have become increasingly entre ideias e a possibilidade de influir sobre as
overlapping, nested and blurred. What we decisões coletivas.
have called ‘realignments of citizenship’ Todavia, as práticas locais se apresen-
refers both to macro level processes changing tam bastante frágeis e são colocadas à prova
constellations of political boundaries and to por diversas questões. Uma questão refere-se
the individual level of vertical relations with aos mecanismos de comercialização (marketi-
political authorities and horizontal ties among zation) que se iniciaram no sulco do neolibe-
5
co-citizens” (ibidem, p. 440). rismo. A descentralização e a comercialização
A análise de Ferrera (2005) sobre os con- constituem, de fato, o coração dos projetos de
fins do welfare aprofunda as mudanças que reforma do setor público iniciados na Europa
tocam, em especial, a cidadania social. O pro- no rastro aberto pelo Reino Unido. Projetos que
cesso de integração europeia redefiniu a arqui- objetivaram a redução ou, mais ainda, a racio-
tetura espacial da cidadania social, provocando nalização da despesa, por meio de mecanismos
uma disjunção parcial entre direitos sociais e bastante punitivos de descarga dos custos e
território nacional. Mas, se observarmos os das responsabilidades sobre as autoridades e
níveis subnacionais, veremos que, em muitos as coletividades locais. Além disso, a afirmação
casos, a relação entre direitos e território se do mercado como modelo regulador e a evolu-
reforça. Enquanto essas dinâmicas estão ain- ção no sentido contratual da cidadania social
da em partes obscuras, pode-se concordar com deram vida à figura do cidadão/consumidor,
o fato de que não se trata de uma mudança pouco protegido pelo welfare público e pouco
radical e que as novas formas de cidadania se preparado para participar do espaço públi-
aproximam das tradicionais, sem substituí-las co das decisões coletivas. Esta figura, de fato,
(Keating, 2009, p. 511). radicou-se em uma relação de compra e venda
Um dos efeitos visíveis é a mistura dos comercial, por isso não possui as prerrogativas
confins entre a cidadania política e a cidada- e as atribuições que contradistinguem formal-
nia social. Mais precisamente, o welfare local é mente o papel do cidadão.
um terreno potencial de cultura das inovações A Figura 1 sintetiza o que foi dito até
da cidadania que são encorajadas conjunta- aqui. No modelo do government, o território
mente pelas dinâmicas de modificação terri- nacional representa o mediador cristalizado
torial e pela difusão de abordagens de policy dos direitos, da solidariedade (e dos respecti-
baseadas no território. Em alguns casos, essas vos mecanismos redistribuitivos) e da demo-
inovações, além de potencializar o acesso a cracia. A cidadania, nos termos teorizados por
serviços e intervenções, acrescentam a agency Thomas H. Marshall (1950), é um status basea-
e a voice na cena pública (García, 2006; Bifulco do no pertencer à coletividade nacional. No se-
e Centemeri, 2008; Newman e Clarke, 2009). gundo modelo, que define como “governance
Consequentemente, a cidadania social tende comercializada” (marketized governance), o
a assumir uma valência política, implicando o território representa recursos a explorar, como

46 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização

acontece nos mecanismos de descarga das tradicionalmente fazem a distinção entre di-
responsabilidades, e a cidadania é concebida mensão social e dimensão política. Isto é evi-
como um contrato. No modelo da governance dente nas experiências que reforçam simulta-
participativa, o território constitui um sistema neamente entitlements sociais e voice.
de ação e um recurso mobilizável por uma Os três modelos têm, obviamente, o ob-
variedade de atores, inclusos os cidadãos e, jetivo de enfatizar as diferenças e as questões.
em alguns casos, os denizens. A cidadania é Na realidade empírica, encontramos combina-
um processo: constrói-se, ao menos em par- ções de problemas e oportunidades bastante
te, na prática e muda no tempo e no espaço. confusas também no caso de experiências ins-
Além dos seus confins espaciais, são colocados piradas na participação dos cidadãos, como ve-
em discussão os confins que, em seu interior, remos a seguir.

Figura 1 – Governance, território e cidadania

Government Governance comercializada Governance participativa


(marketized)

Território nacional como Território como recursos Território como sistema de


mediador cristializado dos a explorar ação e recurso mobilizável
direitos, da solidariedade e
da democracia

Cidadania como status Cidadania como contrato Cidadania como processo

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 47
Lavinia Bifulco

Uma linha de mudança ligada remete ao


A Itália: contexto
processo de rescaling. Esse processo, na Itália,
e instrumentos de policy segue o caminho de uma localização marcada
e investe simultaneamente a política, as políti-
Passarei agora a ilustrar o contexto italiano,
cas e a estrutura do Estado. O papel encenado
primeiramente delineando a fase de policy
pela política está ligado sobretudo aos “novos
change que começou a partir da metade dos prefeitos”, cujos poderes cresceram de modo
anos 90 e analisando sucessivamente dois ins-
decisivo após a mudança do sistema eleito-
trumentos centrais nesta fase: o Plano Social
ral e dos mecanismos da representação local.
de Zona e o Contrato de Bairro.
Com relação às políticas, a escala local é, sem
dúvida, um elemento chave dessa estação de
O contexto renovação. Dois casos para todos são a reforma
dos serviços sociais, aprovada em 2000 (Biful-
A estação de renovação da ação pública que co, Centemeri, 2008; Bifulco et al., 2008) e as
acompanhou a Itália em direção ao novo mi- políticas para o desenvolvimento baseadas na
lênio viu a afirmação de novas abordagens e programação negociada (Piselli, 2005; Magnati
instrumentos de policy. Como observado vá- et al., 2005; Trigilia, 2005). Na importância as-
rias vezes por Bobbio (2000, 2006), crescem sumida pela escala local, caem tanto perspec-
principalmente as práticas de negócios, basea- tivas institucionais de mudança que refletem a
das na estipulação de acordos formalizados exigência de valorizar a autonomia dos órgãos
e voluntários que empregam reciprocamente locais quanto a demanda difusa de espaços
múltiplos atores, públicos e privados, em busca descentralizados de discussão e decisão; tanto,
de um interesse coletivo. Uma atenção espe- enfim, a ideia de que as políticas devem ativar
cial é dedicada a abordagens de negócios que os recursos de ação presentes ou latentes nas
possam favorecer as logísticas integrativas, sociedades locais e nos contextos territoriais.
fundamentadas em comportamentos recipro- É considerado, então, o processo de descen-
camente orientados, ao invés das distributi- tralização que, através do percurso iniciado
vas, orientadas para a repartição de recursos. nos anos 70, aterrou em 2001, na reforma do
A buscar a mudança é uma série de fatores, título V da Constituição, que introduz mecanis-
exógenos e endógenos. Novos “instrumentos mos de poder legislativo, que concorre entre
para governar” encontraram no espaço euro- Estado e Regiões em algumas matérias (entre
peu vetores bastante potentes que ajudaram eles os socioassistenciais, a saúde, a instru-
na sua difusão (Lascoumes e Le Galès, 2004). ção e a formação profissional).6 A autonomia
Em nível nacional, fez-se advertir a necessi- que, em diferente grau, adquiriram o nível re-
dade de lubrificar os mecanismos ordinários gional e o municipal pode favorecer a experi-
do consenso, muito bloqueados sobretudo no mentação de vias inovadoras da ação pública.
caso das intervenções com grande impacto Como foi observado a propósito das políticas
ambiental e social, e de enfrentar a crise da da programação negociada, trata-se de opor-
representação democrática. tunidades de mudança situadas em um nível

48 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização

“baixo” da política (também espacialmente) mecanismos de integração em vertical (entre o


que se contrapõem ao quadro apresentado nível central, regional e municipal de governo)
pela ”alta” política, fundado na ausência de e em horizontal (entre administrações e entre
confronto (Bobbio, 2006) e exposto aos proble- administrações e sociedades locais). Em espe-
mas da democracia mediática e do populismo cial, este instrumento compromete os municí-
(Crouch, 2003; Ginsborg, 2006). Esta autono- pios em programar e governar de maneira inte-
mia alimenta, por outro lado, também o risco grada o sistema territorial dos serviços socioas-
do exacerbar-se das disparidades. A regionali- sistenciais com o envolvimento de cidadãos e
zação italiana, de fato, fica em equilíbrio entre terceiro setor (Bifulco e Centemeri, 2008). Mais
a valorização das autonomias territoriais e o precisamente, o plano de zona, normalmente
aumento das desigualdades. Além disso, as ex- adotado através de um acordo de programa
perimentações se apresentam frágeis e muito pelos municípios que voltam para o mesmo
dependentes da iniciativa política local. âmbito territorial tem a tarefa de identificar
Esse quadro explica por que as oportu- (Legge 328/2000, art. 19):
nidades de inovação podem facilmente arrui- a) os objetivos estratégicos e as prioridades
nar-se em novos e mais robustos mecanismos de intervenção, além dos instrumentos para
de fragmentação. sua realização;
Na realidade, discutiu-se e se discute b) as modalidades organizacionais dos servi-
ainda sobre quais são os elementos efetivos de ços, os recursos, os requisitos de qualidade;
novidades desse quadro com relação à tradição c) as modalidades para a integração entre ser-
italiana, caracterizada por uma longa história viços e prestações;
de práticas de negócios além do tipo específico. d) as modalidades para a coordenação dos mu-
A diferença é – deveria ser – principalmente a nicípios com outras administrações:
transparência: a ideia ou a intenção é, de fa- e) as modalidades para a colaboração dos ser-
to, que a negociação deva ser feita não mais à viços territoriais com as organizações do tercei-
sombra da hierarquia, mas em plena luz e se- ro setor e as comunidades locais;
gundo princípios de accountability que impõem f) as formas de ensaio com a unidade de saúde local.
a percepção do que se faz e se segue (Bifulco e Conforme texto da lei, o Plano social de
de Leonardis, 2003). zona é voltado a “favorecer a formação de sis-
temas locais de intervenção fundamentados
em serviços e prestações complementares e fle-
Os Planos Sociais de Zona xíveis, estimulando principalmente os recursos
e os Contratos de bairro locais de solidariedade e de autoajuda, além de
responsabilizar os cidadãos pela programação
É a reforma dos serviços sociais ocorrida em e verificação dos serviços” (art. 19).
2000, primeiro aceno, que introduz o Plano so- Esse instrumento é, por isso, candida-
cial de zona. Trata-se do eixo principal do novo to a promover modalidades de programação
sistema de regulação das políticas socioassis- integradas e inclusivas. Sua importância se
tenciais, desenhado com o intento de assegurar apoia, precisamente, em quatro ideias base:

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 49
Lavinia Bifulco

a referência ao território como sistema de intervenção. Trata-se, de fato, de contextos em


recursos a ativar e valorizar; a ação associada que a degradação física dos imóveis e dos es-
entre municípios, que requer capacidades de paços públicos e a escassez das infraestruturas
coordenação interinstitucional;7 a negociação, se juntam a condições de incômodo e vulne-
que valoriza métodos consensuais de tomada rabilidade social. As tipologias projetuais mais
de decisões e a participação dos cidadãos e recorrentes são relativas a intervenções em
das organizações do terceiro setor; a direção, porções até amplas de edilícia residencial pú-
que solicita aos municípios assegurar coerên- blica, que normalmente se aproximam da rea-
cia e continuidade à construção do sistema lo- lização de infraestruturas e a construção e/ou
cal de serviços. recuperação de espaços coletivos, para a vida
Em linha geral, a ideia é que decisões social e cultural, para atividades comerciais e
baseadas na construção de cooperativas são de empreendimento. Desde a edição de 1998,
preferíveis, tanto às ideias fundamentadas o mecanismo de financiamento, com base con-
na autoridade quanto às ideias baseadas na cursal, aproveita as capacidades projetuais das
agregação de preferências. De fato, ganhariam administrações locais, privilegiando, ao mesmo
simultaneamente sua legitimidade e a demo- tempo, a construção de uma arquitetura ins-
cracidade das decisões. Na realidade, os muni- titucional de tipo parceria. Os municípios são,
cípios se associam não por escolha, mas pela de fato, os sujeitos titulados a apresentar o
força. A alternativa, de fato, é a exclusão pelos projeto de recuperação, mas são chamados a
financiamentos nacionais. Deve-se acrescentar envolver outros atores, públicos e privados, na
que, após a reforma constitucional de 2001, os realização de uma perspectiva de desenvolvi-
atores políticos principais são as regiões. No mento complexivo do bairro. Acrescenta-se que
confronto, tanto o Estado como os municípios a instalação do primeiro programa, baseado
aparecem como atores secundários. fundamentalmente em financiamentos nacio-
Os Contratos de bairro também são co- nais, atribui ao nível central tanto a emanação
locados na moldura dos processos de regiona- do anúncio quanto os mecanismos de avalia-
lização. Introduzidos no fim de 1998 por inicia- ção e seleção. A segunda edição, lançada ofi-
tiva do Ministério dos trabalhos públicos, com cialmente em 2001, tem algumas mudanças. É
o objetivo de requalificar os bairros de edilícia reforçado o papel dos cidadãos, já a partir da
pública, estes instrumentos voltam ao filão dos definição dos objetivos do contrato. Paralela-
programas urbanos complexos, recuperando mente, crescem as prerrogativas das Regiões.
como ideia chave a necessidade de superar A terceira edição, lançada em 2008 e em vi-
a centralidade da intervenção urbanístico- gor atualmente, acentuou essas prerrogativas,
-arquitetônica a favor do tratamento integrado demandando as escolhas mais relevantes aos
das dimensões físicas, sociais e econômicas da anúncios regionais.
requalificação (Bricocoli, 2007; Briata et al., Quanto à filosofia do instrumento, a mes-
2009). São as mesmas características das áreas ma denominação oficial enfatiza os elementos
interessadas pelas intervenções de recupe- principais: a subscrição de um acordo formali-
ração a invocar modalidades integradas de zado e a assunção de compromissos recíprocos.

50 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização

O contrato, desse ponto de vista, deveria favo- envolvimento dos cidadãos são vagas e a di-
recer a responsabilização dos atores envolvidos reção desenvolvida pelas administrações pode
e a transparência dos mecanismos de decisão. ser fraca. Nos Contratos de bairro, um campo
Além disso, deveria consentir a adição de recur- de tensão é aquela dupla alma mencionada an-
sos adicionais, privados e públicos. Os critérios teriormente.
de financiamento enfatizam uma espécie de Para se compreender melhor esses e ou-
“dupla alma” da medida, ligada à copresença tros problemas, passarei agora à implementa-
de uma abordagem de discriminação positiva, ção, concentrando-me nas dinâmicas de inte-
que atribui prioridade às áreas desavantajadas, gração e nas de participação.
e procedimentos de admissão aos financia-
mentos, baseados na seleção após um anúncio
(Bricocoli, 2007). Efeitos de integração
Sendo de fato uma obrigação, os Planos
de zona, ao contrário dos Contratos de bair- Um dos efeitos “virtuosos” dos dois instru-
ro, foram feitos em todo o território nacional. mentos é a institucionalização de espaços para
Quanto aos territórios de referência (os assim a coordenação. No âmbito dos Planos de zo-
chamados âmbitos territoriais ou sociais), na na, muitos municípios investiram nas relações
maior parte dos casos, compreendem uma intermunicipais mais do que por obrigação ou
população entre 50.0000 e 100.000 habitan- pela conveniência de se associar. Ainda que de
tes (43,6%) (ISFOL, 2006). Quanto aos Con- maneira não linear, aconteceram processos de
tratos de bairro, um primeiro dado significati- aprendizado institucional, graças aos quais as
vo é o crescimento, no tempo, das propostas, agregações intermunicipais começaram a agir
tanto das apresentadas quanto das finan- e a serem reconhecidas como novos atores
ciadas. Entre a primeira e a segunda edição, públicos. Em alguns casos, Planos e Contratos
passa-se de 57 projetos admitidos para os dão prova de uma elevada capacidade integra-
financiamentos (em 126 propostos) a 192 (em tiva. Tratou-se das coalisões instauradas entre
cerca de 500 propostos). Um segundo dado é instituições e serviços como das colaborações
o crescimento do peso dos recursos regionais entre administrações e terceiro setor. Planos
que, substancialmente ausentes na primeira e Contratos inclinaram-se a sustentar proces-
edição, na segunda edição totalizam 35% dos sos de organização de partes mais ou menos
recursos complexivos. amplas da sociedade local. Em alguns territó-
Não levando em conta as diferenças, rios e em diversos bairros, desenvolveram-se
não só de ordem quantitativa, a importância dinâmicas associativas que reanimaram uma
dada ao território e as modalidades que par- sociedade civil desagregada (Bifulco e Cen-
ticipam de elaboração de projeto é claramen- temeri, 2008). O nascimento de agregações
te reconhecível como um núcleo cognitivo e que reúnem as organizações que operam em
normativo comum aos dois instrumentos. Há, um território (como os fóruns do terceiro se-
porém, aspectos que complicam o quadro. Com tor) frequentemente foi desejado “pelo alto” e
relação aos Planos de zona, as modalidades do “pelo baixo”.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 51
Lavinia Bifulco

Como foi evidenciado, a propósito de grau de coordenação são também abertas e


uma experimentação em curso em algumas acessíveis por parte de uma variedade de ato-
áreas de Friuli-Venezia Giulia (De Leonardis e res. E nem sempre os atores que participam de-
Monteleone, 2007; Bifulco et al., 2008), pode las têm o poder de influir em decisões tomadas.
haver efeitos de integração social relativas di- As pesquisas realizadas evidenciam
retamente aos habitantes de um bairro. Esses uma variedade de práticas que se diferenciam
efeitos parecem ser favorecidos pela contigui- entre si quanto os atores chave, o objeto, os
dade física entre os serviços empenhados nas espaços e as regras da negociação (Savoldi,
intervenções e os seus destinatários, além do 2006; Bifulco e Centemeri, 2008; Paci, 2008;
grau de articulação das atividades. Na experi- Polizzi, 2008). Tal variedade torna manifes-
mentação em questão, as intervenções são re- ta a interdependência entre alguns fatores.
lativas tanto à elaboração de projetos de inter- Contam tanto os fatores de contexto, como
venção personalizados, moldados nas especifi- as arquiteturas político-institucionais e os mo-
cidades da pessoa e do seu contexto de vida, delos de organização social; quanto fatores
quanto a organização miúda da vida cotidiana que intervêm diretamente nos processos de
em um bairro (por exemplo, a organização de policy, como as culturas e as leaderships po-
cursos de ginástica e de cozinha, autogeridos líticas, o design e as regras da participação.
pelos habitantes), como também a promoção Contam também, obviamente, as bases sociais
de iniciativas de uma certa relevância coletiva da participação. Um aspecto de base é a força
(festas de bairro, intervenções de recuperação de atração exercida pela ideia da participação
de praças e áreas verdes, etc.). como prática de revitalização da democracia
Naturalmente, pode-se também produ- local. Essa ideia não tem uma realização uní-
zir e reforçar fragmentações. No âmbito das voca. As interações entre instituições e socie-
relações entre municipalidades, além dos dade local podem resultar na criação de are-
cleavages da formação política, as fragmenta- nas seletivas que, sob a etiqueta da participa-
ções executam práticas paroquiais radicadas ção, reforçam desigualdades e configurações
na estrutura administrativa italiana ou refletem de elite dos processos decisionais. Mas podem
a relação normalmente desigual entre munici- também implicar um envolvimento amplo de
palidades maiores e mais dotadas de recursos e cidadãos e organizações de terceiro setor e um
municipalidades menores e dependentes. papel bastante incisivo a redistribuir o poder
relativo para as decisões públicas. Em alguns
Contratos de bairro, isso significa, por exem-
A participação plo, que os atores institucionais promovem
interações muito frequentes e adaptadas aos
O tema da participação é o banco de prova habitantes já em fase de idealização das inter-
mais controverso das orientações em campo venções, aprendendo a confrontar-se com uma
nos Planos e nos Contratos, principalmente multiplicidade de vozes, às vezes conflituosas
com relação à inclusividade e incisividade da (Bricocoli, 2007). Um elemento que joga a
participação. Nem sempre arenas com um bom favor é a presença, nos bairros, de formas de

52 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização

organização dos habitantes que ativam uma âmbitos territoriais, a leadership enfatizou a
pluralidade de pontos de vista, sem querer conotação pública da programação social e
representá-la. Em todo caso, a experiência dos sua centralização com relação a estratégias de
Contratos documenta claramente a importân- crescimento da democracia local. Alguns atores
cia do papel que as administrações municipais públicos viram nesse instrumento a oportu-
são chamadas a exercer ao sustentar, reconhe- nidade para renovar a política e deram prio-
cer e mediar essa pluralidade (ibidem). ridade à construção de um sistema orgânico
É necessário, então, considerar que as de programação, capaz de incluir uma plateia
políticas socioassistenciais, assim como as de ampla de sujeitos. Deve-se dizer que se trata
recuperação urbana são relacionadas normal- somente de algumas experiências, ligadas ao
mente a pessoas e contextos em condições ciclo político do momento. Não sendo isoladas
precárias e situações em que não estão certos (em muitas municipalidades iniciaram-se práti-
nem os recursos necessários para participar cas de participação de tipos variados, como os
nem o interesse para tal fim (Borghi, 2006). O Balanços participativos), constroem situações
envolvimento dos cidadãos e seu peso “polí- efêmeras. Todavia, são suficientes para lançar
tico” dependem de modo determinante das uma tendência bastante inédita na Itália, que
oportunidades que as formas institucionaliza- coloca em campo um perfil ativo da leadership
das da negociação oferecem para o desenvol- política local e sua propensão a empreender
vimento da agency e da voice. O que significa mudanças para a democracia. Em termos me-
ter acesso àquele tipo de recursos (recursos nos nítidos, é o que aparece também nas pes-
materiais, informações e conhecimentos, di- quisas conduzidas sobre os Contratos de bairro.
reitos, legitimidades) que permitem exprimir- No conjunto, nesse modo, ativam-se dinâmi-
-se e contar na cena decisional pública. O que cas sociais e institucionais que acrescentam,
evidencia a observação da experimentação de maneira interdependente, as condições de
em Friuli mencionada anteriormente. Nesse bem-estar (well-being) e as condições de exer-
caso, é a redistribuição do poder de se decidir cício da voice, revitalizando a relação entre jus-
relativamente sobre as próprias condições de tiça social e democracia.
saúde e de vida que torna incisiva a partici-
pação. Uma redistribuição que é promovida e
sustentada pela administração pública, princi- Conclusões
palmente em nome da efetiva realização dos
direitos à saúde dos cidadãos. Embora talvez abusada, a imagem das geome-
A participação parece manter suas pro- trias variáveis exprime eficazmente a mobili-
messas se e quando ocorrem conjuntamente dade e a incerteza que marcam as dinâmicas
processos de aprendizado institucional e pro- atuais da governance, da territorialização e
cessos de aprendizado social. Com relação aos da cidadania. Após apresentar característi-
Planos de zona, foi evidenciado muito clara- cas e problemas principais dessas geometrias,
mente que a leadership política local é decisiva concentrei-me em alguns casos de governance
para que isso ocorra (Paci, 2008). Em alguns local na Itália especialmente significativos com

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 53
Lavinia Bifulco

relação ao duplo fenômeno implicado pela ter- na prática. Por isso, a abertura, a inclusivida-
ritorialização: a reorganização territorial entre de e a pluralidade das sedes decisionais e
escalas de governo; a ancoragem de políticas e projetuais são dimensões a se indagar de perto
intervenções no território. e com atenção;
A análise mostra a coexistência entre ● quanto à redistribuição do poder, os resul-
oportunidades de inovação e riscos de poste- tados mais inovadores – em termos tanto de
riores fragmentações. Mais precisamente: novos atores legitimados a participarem das
● como vimos a respeito dos Contratos de negociações, quanto de lógicas e efeitos da
bairro e dos Planos sociais de zona, toma vida negociação – são levantados onde o ator pú-
uma variedade de arenas institucionais. Nes- blico tende a exercer um papel de promoção
sa variedade, expressam-se os processos de e mediação. Às vezes, é a leadership política
institution building que dinamizam o desenho que domina a cena, sustentando, de modo ex-
e a implementação das políticas nos contextos plícito, uma opção de melhoria da democracia
locais. O alimento principal é a capacidade de que aponta para uma declinação participada
estabelecer molduras normativas e visões com- da programação;
partilhadas capazes de suportar as interações ● os mecanismos da localização, de um lado,
cooperativas intra e interinstitucionais em tor- criam um terreno favorável para as inovações,
no de problemas comuns (Donolo, 1997). Em de outro, arriscam reforçar antigos problemas
muitos aspectos, trata-se de “quase-institui- italianos, como a fragmentação institucional,
ções”, a partir do momento que a sua existên- a incerteza dos direitos e a autarquia local. Os
cia é condicionada pela vontade dos diversos problemas podem ser especialmente agudos
partners que contribuem para sua constituição quando faltam mecanismos redistributivos
(Vino, 2003); interterritoriais. Além disso, em alguns casos,
● graças às práticas inovadoras da cidadania os governos locais acabam por ter maiores res-
que se realizam localmente, as questões de jus- ponsabilidades, mas em ausência de recursos
tiça social assumem um peso decisivo com re- adequados, segundo os mecanismos típicos da
lação ao processo democrático. Essas práticas, “descentralização da penúria” que tornam vã
porém, realizam-se de modo não homogêneo qualquer atribuição de liberdade de ação.
no território nacional e têm recaídas pouco ge- A territorialização é um quebra-cabeça e
neralizáveis. O problema é que a referência à será necessário certo tempo para se entender
escala local – como todas as referências terri- melhor como combinar problemas e oportuni-
toriais – tem um poder inclusivo, mas também dades. Lembrando que um excesso de individua-
efeitos de exclusão. Além disso, a participação lização no espaço causa localismo (Bagnasco,
promete tanto a princípio quanto é complicada 2003), o mais insidioso dos problemas.

Lavinia Bifulco
Professora associada de sociologia da Faculdade de Sociologia da Universidade de Milano-Bicocca.
Milão, Itália.
lavinia.bifulco@unimib.it

54 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização

Notas
(*) Revisão técnica de Patacom Consultoria Linguís ca.

(1) Como observa Janet Newman (2005), sobretudo as versões da teoria da governance emergente
na Europa con nental estão, em geral, muito atentas ao “social” e tendem a conceitualizar
modelos de governo e de regulação baseados na interação estado-sociedade.

(2) Os Planos sociais de zona foram indagados no curso do trabalho cole vo de pesquisa desenvolvido
em vários anos (financiamentos MIUR) no âmbito do Laboratório Sui Generis, da Universidade
de Milão-Bicocca, coordenado por Ota de Leonardis. Mais precisamente, foram analisados dois
Planos de zona na Campania, no sul da Itália, dois Planos de zona na Lombardia, no norte da
Itália, e dois distritos sociossanitários em Friuli-Venezia Giulia, no nordeste. A escolha das três
regiões levou em consideração a combinação entre três dimensões: a macroárea territorial; o
modelo de governance regional; os recursos públicos de welfare. Para uma apresentação mais
sistemática dos resultados de pesquisa ver Bifulco (2005); Monteleone (2007). Quanto aos
Contratos de bairro, trata-se de análise de po secundário que fazem referência, principalmente,
ao conjunto das experiências da Lombardia realizadas no âmbito do segundo anúncio.

(3) Um tema tão importante quanto ambíguo. A a vação, de fato, pode ser entendida de maneiras
diferentes: como par cipação no mercado de trabalho; como empowerment; como cidadania
a va (van Berkel e Møller, eds., 2002).

(4) Isto é, estrangeiros que gozam somente de uma parte de direitos.

(5) Neste quadro, a dupla dinâmica de desterritorialização e reterritorialização se manifesta muito


claramente na emergência de um regime que assegura liberdade de movimento aos cidadãos da
União Europeia, enquanto reforça os controles sobre os migrantes (Bauböck e Guiraudon, 2009).

(6) Atualmente se encontra em vias de definição um sistema de federalismo fiscal.

(7) Na maior parte dos casos, de fato, a tarefa de elaborar o Plano é confiada às associações entre
municípios e não aos municípios sozinhos.

Referências
BAGNASCO, A. (2003). Società fuori squadra. Bologna, Il Mulino.

BAUBÖCK R. e GUIRAUDON, V. (2009). Introduc on: realignments of ci zenship: reassessing rights


in the age of plural memberships and mul -level governance. Ci zenship Studies, v. 13, n. 5,
pp. 439-450.

BENASSI, D. e MINGIONE, E. (2002). Welfare locale, lo a all'esclusione sociale e riforma dell'assistenza


in Italia. Economia & lavoro, v. 36, n. 1, pp. 79-95.

BIFULCO, L. (org.) (2005). Le poli che sociali. Roma, Officina.

BIFULCO, L.; BRICOCOLI, M. e MONTELEONE, R. (2008). Ac va on and Local Welfare in Italy: trends,
issues and a case study. Social Policy&Administra on, n. 2, pp. 143-159.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 55
Lavinia Bifulco

BIFULCO, L. e CENTEMERI, L. (2008). Governance and Par cipa on in Local Welfare. The Case of the
Italian Piani di zona (Area Plans). Social Policy & Administra on, n. 3, pp. 211-227.

BIFULCO, L. e DE LEONARDIS, O. (2003). “Partecipazione o partnership. Una conversazione sul tema”.


In: KARRER, F. e ARNOFI, S. (org.). Lo spazio europeo fra pianificazione e governance. Firenze,
Alinea.

BOBBIO, L. (2000). Produzione di poli che a mezzi di contra nella pubblica amministrazione italiana.
Stato e Mercato, n. 1, pp. 111-141.

______ (2006). “Le poli che contra ualizzate”. In: DONOLO, C. (org.). Il futuro delle poli che pubbliche.
Milano, Bruno Mondadori.

BORGHI, V. (2006). Tra ci adini e is tuzioni. La Rivista delle Poli che Sociali, n. 2, pp. 147-182.

BRENNER, N. (2004). New state spaces: urban governance and the rescaling of statehood. Oxford,
Oxford University Press.

______ (2009). Open ques ons on state rescaling. Cambridge Journal of Regions, Economy and Society,
n. 2, pp. 123–139.

BRIATA, P.; BRICOCOLI, M. e TEDESCO, C. (2009). Ci à in periferia. Poli che urbane e proge locali in
Francia, Gran Bretagna e Italia. Roma, Carocci.

BRICOCOLI, M. (2007). “Territorio, contra ualizzazione e poli che urbane”. In: MONTELEONE, R. (org).
La contra ualizzazione nelle poli che sociali. Roma, Officina Edizioni.

CALISE, M. (2006). La Terza Repubblica. Roma-Bari, Laterza.

CROUCH, C. (2003). Postdemocrazia. Roma- Bari, Laterza.

DE LEONARDIS, O. e MONTELEONE, R. (2007). “Dai luoghi della cura alla cura dei luoghi”. In: MONTELEONE
R. (org.). La contra ualizzazione nelle poli che sociali. Roma, Officina Edizioni.

DONOLO, C. (1997). L’intelligenza delle is tuzioni. Milano, Feltrinelli.

DONZELOT, J. (2006). Quand la ville se défait. Paris, Le Seuil.

FERRARESE, M. R. (2011). “La governance e la democrazia postmoderna”. In: PIZZORNO, A. (org). La


democrazia di fronte allo Stato. Milano, Feltrinelli.

FERRERA, M. (2005). The Boundaries of Welfare. European Integra on and the New Spa al Poli cs of
Social Protec on. Oxford, Oxford University Press.

GARCÍA, M. (2006). Ci zenship prac ces and urban governance in european ci es. Urban Studies,
v. 43, n. 4, pp. 745-765.

GINSBORG, P. (2006). La democrazia che non c’è. Torino, Einaudi.

GUALINI, E. (2006). The Rescaling of Governance in Europe: New Spa al and Ins tu onal Ra onales.
European Planning Studies, v. 14, n. 7, pp. 991-904.

ISFOL (2006). Il monitoraggio dei Piani di zona: prime evidenze. Roma, www.isfol.it.

KAZEPOV, Y. (2009). “La sussidiarizzazione delle poli che sociali in Italia”. In: KAZEPOV, Y. (org.). La
dimensione territoriale delle poli che sociali in Italia. Roma, Carocci.

KEATING, M. (1997). The inven on of regions: poli cal restructuring and territorial government in
Western Europe. Environment and Planning C, v. 15, n. 4, pp. 383-398.

56 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012
Governance e territorialização

______ (2009). Social citizenship, solidarity and welfare in regionalized and plurinational states.
Ci zenship Studies, v. 13, n. 5, pp. 501-513.

LASCOUMES, P. e LE GALÈS, P. (org.). (2004). Gouverner par les instruments. Paris, Presses de
Sciences-Po.

LE GALÈS, P. (2002). European Ci es. Oxford University Press, Oxford.

MAGNATTI, P.; RAMELLA, F.; TRIGILIA, C. e VIESTI, G. (2005). Pa territoriali. Bologna, Il Mulino.

MARSHALL, T. H. (1950). Ci zenship and social class and other essays. Cambridge, CUP.

MONTELEONE, R. (org.) (2007). La contra ualizzazione delle poli che sociali. Roma, Officina.

MORENO, L. e MCEWEN, N. (2005). “Exploring the Territorial Poli cs of Welfare”. In: McEWEN, N. e
Moreno, L. (org.). The territorial poli cs of welfare. Londres, Routledge.

NEWMAN, J. (2005). Remaking governance: peoples, poli cs and the public sphere. Bristol, Policy
Press.

NEWMAN, J. e CLARKE, J. (2009). Publics, poli cs and power: remaking the public in public services.
Londres, Sage.

PACI, M. (org.) (2008). Welfare locale e democrazia partecipa va. Bologna, Il Mulino.

PICHIERRI, A. (2001). Concertazione e sviluppo locale. Stato e mercato, n. 62, pp. 237-266.

PISELLI, F. (2005). Capitale sociale e società civile nei nuovi modelli di governance locale. Stato e
Mercato, n. 3, pp. 455-485.

POLIZZI, E. (2008). Programmazione locale e piani di zona. Costruire le poli che sociali con la società
civile. Autonomie Locali e Servizi Sociali, n. 3, pp. 437-456

PURCELL, M. (2006). Urban democracy and the local trap. Urban Studies, v. 43, n. 11, pp. 1921-1941.

SARACENO, C. (org.) (2002). Social assistance dynamics in Europe: na onal and local poverty regimes.
Bristol, Policy Press.

SASSEN, S. (2006). Territory, authority, rights: from medieval to global assemblages. Princeton,
Princeton University Press.

SAVOLDI. P. (2006). Giochi di partecipazione. Milano, Franco Angeli.

TRIGILIA, C. (2005). Sviluppo locale. Bari-Roma, Laterza.

VAN BERKEL, R. e MØLLER, I. H. (org.) (2002). Ac ve social policies in the EU. Bristol, Policy Press.

VINO, A. (2003). Proge azione delle poli che pubbliche e proge azione is tuzionale: su di alcune
competenze emergen della dirigenza pubblica, mimeo.

Texto recebido em 12/jul/2011


Texto aprovado em 26/ago/2011

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 41-57, jan/jun 2012 57
A estratégia eleitoral na representação
proporcional com lista aberta*
Electoral strategy under open-list proportional representation

Barry Ames

Resumo
Este texto revela de forma inovadora traço
distintivo do nosso sistema eleitoral proporcional Abstract
de lista aberta, a saber, a existência de quatro The current paper discloses a distinctive trait
modalidades de distribuição espacial do voto a of the open-list proportional representation
partir das quais se elegem quatro tipos de repre- adopted in Brazil. In such a system, congressmen
sentantes para nossas casas legislativas: deputa- are in fact elected from four spatial patterns
dos com votação concentrada e dominante, de- or constituencies : concentrated - dominant
putados com base fragmentada e dominante, municipalities, concentrated-shared
deputados com votação concentrada e partilhada municipalities, scattered-shared municipalities
e deputados com votação fragmentada e par- and scattered-dominant municipalities. Through
tilhada. O texto aponta, por meio da análise de the analysis of budgetary amendments made
emendas ao orçamento, o incentivo ao distribu- by congressmen the article sheds light on pork
tivismo e a práticas clientelistas decorrentes de barrel practices that stem from our electoral
propriedades de nosso sistema eleitoral. Correla- system. The article also correlates variables of
ciona dados de carreira política às modalidades political career with spatial patterns of vote
diversas de distribuição do voto, discrimina as distribution, tries to discriminate safe seats in
circunscrições eleitorais seguras e avalia, por fim, Brazil and, finally, the payoff of distributive and
o retorno eleitoral de práticas distributivas. parochial attitudes.
Palavras-chave: geografia; voto; localismo; Keywords: geography; vote; parochialism; pork
distributivismo. barrel.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
Barry Ames

Teoria: Este artigo desenvolve uma teo- procurar obter benefícios políticos e enfraquece
ria sobre estratégias de candidatos com base os programas e a disciplina dos partidos.
em princípios da escolha social e no funciona- A América Latina, em meados da déca-
mento da representação proporcional com lista da de 1990, é uma região marcada pelo oti-
aberta. A teoria é utilizada para explicar o com- mismo. Democracias incipientes sobrevivem;
portamento na campanha e os padrões espa- economias se estabilizam e crescem. Mas o
ciais de distribuição dos votos dos candidatos à Brasil continua a ser um enigma. Enquanto os
Câmara dos Deputados brasileira. preços sobem 30% ao mês e a distribuição de
Hipóteses : As estratégias de campa- renda piora, o legislativo obstrui as tentativas
nha são avaliadas com modelos que preveem de estabilização até que o executivo forneça
quando os deputados submeterão emendas empregos de baixo nível para os correligioná-
orçamentárias para beneficiar municípios- rios. Uma corrupção sem precedentes faz com
-alvo cujos votos querem garantir nas eleições que o Congresso afaste o primeiro presidente
subsequentes. Os municípios-alvo são escolhi- eleito pelo povo em 30 anos; um ano depois,
dos em função do custo de erguer barreiras à um novo escândalo de corrupção abala o pró-
entrada de outros candidatos, da dominação prio Congresso.
do deputado no município, da concentração Cada vez mais, os observadores culpam
espacial da votação estadual do deputado, as instituições políticas brasileiras. Considere o
da vulnerabilidade do município à invasão de sistema partidário e o legislativo. Mesmo pelos
candidatos de fora, da fragilidade do deputa- padrões latino-americanos, o sistema parti-
do na última eleição e da carreira política an- dário brasileiro é frágil (Mainwaring e Scully,
terior do deputado. 1992). Poucos partidos têm raízes genuínas na
Métodos: Regressão logística das emen- sociedade. A parte dos votos que cabe a cada
das ao orçamento nacional brasileiro em 1989 partido é volátil ao longo do tempo e entre
e 1990 e regressão OLS dos resultados eleito- eleições presidenciais e legislativas. No Con-
rais no nível municipal para a Câmara dos De- gresso, os líderes dos partidos exercem pouco
putados brasileira nas eleições de 1990. controle sobre suas delegações. Muitos depu-
Resultados : Os deputados buscam re- tados, senão a maioria, gastam a maior parte
dutos eleitorais seguros, procuram municípios de seu tempo arranjando empregos e projetos
vulneráveis e lutam para superar suas próprias governamentais que rendam benefícios a seus
fragilidades eleitorais por meio de práticas benfeitores e eleitores. Embora partidos bem-
clientelistas. As táticas dos candidatos variam, -sucedidos nas eleições abranjam uma ampla
em parte, porque os passados políticos são di- gama ideológica, alguns dos maiores partidos
ferentes e em parte porque os diferentes con- “de centro” são, na verdade, apenas cascas pa-
textos demográficos e econômicos dos estados ra deputados sem nenhum interesse em políti-
brasileiros recompensam algumas táticas e ca. Poucos partidos se organizam em torno de
penalizam outras. O comportamento dos can- questões de nível nacional; consequentemente,
didatos dificulta o controle dos eleitores so- o Congresso raramente aborda questões so-
bre os deputados, aumenta os incentivos para ciais e econômicas sérias.

60 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

Os presidentes do Brasil se beneficiam e os problemas do legislativo e do executivo.


pouco da fragilidade do Congresso. Com chan- Este artigo examina as eleições para a Câmara
ces mínimas de obter apoio legislativo estável, dos Deputados. Focalizo as consequências da
o executivo enfrenta governadores indepen- versão brasileira de representação proporcional
dentes, um calendário eleitoral que impõe elei- com lista aberta para estratégias individuais de
ções em três de cada cinco anos, municípios campanha e para os tipos de deputados que
que dependem, para sua própria sobrevivência, ganham cadeiras no legislativo, e investigo as
da generosidade federal e uma quantidade maneiras como as estratégias de campanha
substancial de deputados que valorizam sua atuam em estados com diferentes característi-
própria renda em primeiro lugar, a reeleição em cas sociais e econômicas. Minha exposição tem
segundo e a política pública em um distante início com um esboço do sistema eleitoral e
terceiro lugar. Os presidentes governam for- uma taxonomia dos padrões espaciais de votos.
mando coalizões baseadas em nomeações para Em seguida, apresento uma teoria que explica
o gabinete. Pelo fato dessas nomeações terem as estratégias adotadas por diferentes candida-
que satisfazer tanto as demandas do partido tos à Câmara dos Deputados. A teoria se baseia
quanto as demandas regionais, os gabinetes em noções de estratégia desenvolvidas na lite-
tendem a ser bastante inclusivos (Abranches, ratura sobre escolha social, adaptadas ao con-
1988). Os programas governamentais cliente- texto político e social do Brasil. Testar a teoria
listas necessários para mantê-los são dispen- exige medir as intenções dos deputados. Utilizo
diosos e inovações nas políticas são extrema- as emendas orçamentárias: os deputados sub-
mente difíceis. metem emendas para beneficiar localidades
No cerne da crise institucional do Brasil onde buscam recompensar aliados e recrutar
está o sistema eleitoral. Um conjunto singular novos eleitores. Assim, a análise empírica tem
de regras, geralmente conhecido como “re- início com um modelo que prediz a chance de
presentação proporcional com lista aberta”, que um determinado deputado submeta uma
governa as eleições legislativas. Pesquisadores emenda orçamentária beneficiando um deter-
têm investigado a versão brasileira da repre- minado município. Em seguida, testo a eficácia
sentação proporcional com lista aberta, mas a das estratégias dos candidatos elaborando um
ausência de dados apropriados tem limitado as modelo dos totais de votos obtidos pelos depu-
pesquisas tanto em termos de escopo como em tados na eleição legislativa de 1990. Na con-
1
profundidade (cf. De Souza e Lamounier, 1992; clusão, enfatiso três amplas consequências do
Fleischer, 1973, 1976, 1977; Kinzo, 1987; Lima comportamento estratégico dos deputados: o
Junior, 1991; Mainwaring, 1993). afrouxamento do vínculo mandante-mandatá-
Em resumo, é possível que a consolida- rio entre eleitores e deputados, a intensificação
ção da democracia no Brasil dependa de nossa dos incentivos para tentativas de obtenção de
compreensão da relação entre estruturas ins- benefícios políticos e o enfraquecimento dos
titucionais, especialmente o sistema eleitoral, programas e da disciplina partidários.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 61
Barry Ames

Os regulamentos das campanhas bra-


O sistema eleitoral brasileiro
sileiras são, ao mesmo tempo, restritivos e
permissivos. Por exemplo, os candidatos não
Nas eleições para a Câmara Nacional dos De-
podem comprar publicidade no rádio ou na te-
putados, cada estado brasileiro é um distrito
levisão. A maioria dos candidatos publica anún-
único, representativo do conjunto da popula-
cios em jornais, mas a publicidade impressa
ção e constituído por vários deputados. O nú-
produz pouco impacto (Straubhaar, 1993). Os
mero de cadeiras por estado varia de oito a 70.
candidatos colocam outdoors e cartazes nas
Estados pouco povoados são sobrerrepresenta-
paredes, mas geralmente o fazem em conjunto
dos; estados muito povoados, principalmente
com outros esforços de campanha, tais como
São Paulo, são sub-representados. As leis elei-
participação em comícios ou entrega de obras
torais permitem reeleição ilimitada, e os parti-
públicas a líderes locais. Leis de gastos permis-
dos não podem se recusar a propor novamente
sivas possibilitam que candidatos à legislatura
a candidatura de deputados que estão exercen-
federal financiem as campanhas dos candida-
do o mandato. Os eleitores votam, em cédulas
tos às assembleias legislativas estaduais. Pelo
únicas, ou na legenda do partido – nesse ca-
fato de que os distritos de assembleias esta-
so, seu voto apenas se soma ao total do par-
duais também abrangem estados inteiros, e os
tido – ou em candidatos individuais. A maioria
deputados são eleitos para representar toda a
vota em indivíduos. Os nomes dos candidatos
população do estado, os políticos se engajam
não aparecem em lugar nenhum na cédula; ao
em dobradinhas, nas quais candidatos ao legis-
invés disso, o eleitor precisa escrever o nome
lativo federal pagam pela literatura de campa-
ou código do candidato. O método D’Hondt de-
nha dos candidatos a assembleias cujas bases
termina quantas cadeiras cada partido ganha;
de apoio ficam distantes. Os candidatos a as-
a ordenação individual dos votos determina
sembleias retribuem instruindo os correligioná-
quais candidatos recebem as cadeiras.2
rios a votar em seu benfeitor para o legislativo
Outros países, incluindo a Finlândia e o
nacional. Obviamente, tais acordos não acres-
Chile pré-1973, adotaram a representação pro-
centam muito aos vínculos entre os represen-
porcional com lista aberta, mas a versão do
tantes e seus eleitores.
Brasil é diferente em dois aspectos: no Brasil,
partidos estaduais, não nacionais, selecionam
candidatos legislativos, e o distrito eleitoral (o Uma taxonomia
estado) é uma arena política importante por si de padrões espaciais
mesmo. Em alguns estados, governadores po-
derosos controlam lançamentos de candidatu- Em termos legais, os candidatos buscam votos
ras e dominam campanhas; em outros, líderes em todos os lugares dentro de seus estados,
locais entregam blocos de votos a candidatos mas na realidade a maioria limita suas campa-
dispostos a fazer acordos; em outros ainda, nhas geograficamente. Os padrões espaciais
nem os governadores, nem os chefes locais têm resultantes possuem duas dimensões no nível
3
muita influência sobre os votos individuais. estadual, cada uma baseada em desempenho

62 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

municipal. Suponha que, para todos os can- dominar seus municípios-chave; aqueles com
didatos em cada município, calculemos Vix , a médias ponderadas mais baixas compartilham
quota do candidato i de todos os votos dados seus municípios-chave com outros candidatos.
no município x. Definimos a dominação muni- Assim, “dominação-compartilhamento” é a
cipal de cada candidato como a quota do can- primeira dimensão do apoio espacial.
didato dos votos totais dados aos membros de A segunda dimensão também se inicia
todos os partidos. Essas quotas representam a com Vix , a quota do candidato i do total de
dominação dos candidatos no nível municipal.4 votos dados em cada município, mas essa di-
Agora, suponha que usemos Vix para calcular mensão avalia a distribuição espacial dos mu-
D i , a dominação média para cada candidato nicípios em que o candidato se sai bem. Esses
em todos os municípios do estado, ponderada municípios podem estar concentrados, como
pela porcentagem dos votos totais do candi- vizinhos próximos ou contíguos, ou dispersos.
dato fornecida por cada município. Candidatos A combinação das duas dimensões produz
com médias ponderadas mais altas tendem a quatro padrões espaciais:

Figura 1 – Distribuição de votos concentrada-dominante:


quota municipal de votos de Laire Rosado Maia, PMDB-RN

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 63
Barry Ames

Municípios concentrados-dominados . Rosado Maia recebe todos os seus votos nes-


Esse é o clássico “reduto” brasileiro, onde um sa região e, além disso, outros candidatos
deputado domina um grupo de municípios raramente ousam competir em seu reduto
contíguos. As famílias dos candidatos podem impermeável.
ter tradições de poder na região; pode ser que Municípios concentrados-compartilha-
eles galguem os degraus da política a partir dos . Em grandes áreas metropolitanas tais
de empregos locais; talvez façam acordos com como a Grande São Paulo, uma determinada
chefes locais. A Figura 1 mapeia os votos do coorte de eleitores pode ser suficiente para
deputado Laire Rosado Maia na eleição de eleger muitos candidatos. Os candidatos da
5
1990, ilustrando concentração extrema. Ro- classe trabalhadora, por exemplo, frequen-
sado Maia recebeu quase todos seus votos na temente recebem três quartos de sua vota-
Tromba do Elefante, a seção ocidental do Rio ção estadual total de um único município, a
Grande do Norte. Os Maias controlam o Oeste cidade de São Paulo. Mas talvez eles nunca
há tempos – há até uma cidade com o nome recebam mais do que 5% dos votos dados na
da família. Note que nos locais onde Rosado cidade ou em qualquer outro município, pois
Maia recebeu votos, ele ganhou uma média de compartilham esses municípios com muitos
pelo menos 50% de todos os votos. Portanto, outros candidatos.

Figura 2 – Distribuição de votos dispersa-dominante:


quota municipal de votos de João Alves, PFL-Bahia

80
60
40
20
0

64 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

Municípios dispersos-compartilhados .
Uma teoria sobre
Alguns candidatos recorrem a coortes de elei-
tores cujo apoio é numericamente pequeno
as estratégias dos candidatos
dentro de um único município. Dois exemplos sob a representação
comuns são os nipo-brasileiros e os evangéli- proporcional com lista aberta
cos, protestantes que tipicamente votam em
candidatos evangélicos. Essas coortes são coe- As estratégias ideais de campanha diferem in-
sas e leais, mas não são muito grandes; assim, tensamente entre sistemas eleitorais proporcio-
os candidatos que dependem desses eleitores nais e majoritários. Pelo fato de que pequenas
constroem coalizões compostas de pequenas fatias do eleitorado podem garantir a vitória
6
fatias de muitos municípios. nas eleições proporcionais, os candidatos que
Municípios dispersos-dominados . Esse querem se eleger concentram-se não no eleitor
padrão se ajusta a candidatos que alguma vez médio, mas em coortes distintas de eleitores
tiveram cargos burocráticos de nível estadual, (Cox, 1990). Como os candidatos definem essas
como secretário de educação, um cargo que coortes depende, obviamente, do tamanho dos
tem um potencial clientelista substancial. O pa- alvos potenciais e do total de votos necessá-
drão também é típico de candidatos que fazem rio para serem eleitos. As estratégias também
acordos com líderes locais. A Figura 2 apresen- dependem do custo das campanhas conforme
ta os votos de João Alves, um político baiano os candidatos se distanciam dos principais
dos velhos tempos, na eleição de 1990. A força correligionários, da existência de líderes locais
dos votos de Alves se dispersou pelo estado, procurando por patronagem, da concentração
mas ele recebeu muitos votos nesses locais. espacial do início das carreiras políticas dos
João Alves conquistou 70-80% dos votos em candidatos, e da simultaneidade das eleições
municípios tão dispersos fazendo acordos onde para outros níveis de governo.
quer que encontrasse chefes locais disponíveis.
Alves distribuía benefícios; os chefes retribuíam
com votos. João Alves presidia a Comissão Como os candidatos calculam
Orçamentária do Congresso. Em 1993, investi- os custos e benefícios dos apelos
gadores do congresso o acusaram de receber aos eleitores
dezenas de milhões de dólares em propinas de
construtoras. João Alves chegou ao Congresso Os candidatos sabem aproximadamente quan-
em 1966 sem dinheiro; no início da década de tos votos garantem uma cadeira na delegação
1990, possuía milhões de dólares em imóveis e congressista do seu estado. Esse mínimo de-
um avião de $6 milhões.7 pende do resultado esperado e do número de

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 65
Barry Ames

votos recebidos pelos candidatos mais popula- cidade e a ser mais deferentes em relação aos
8
res do seu partido. Dada uma meta de votos, proprietários. Esses trabalhadores apóiam can-
os candidatos imaginam várias maneiras de didatos que oferecem benefícios particularistas
construir coalizões vencedoras. Seus cálculos ao invés de candidatos que prometem fazer a
estratégicos centralizam-se nos custos e be- reforma social.9
nefícios de apelar a qualquer grupo potencial. A identificação com a comunidade, es-
Esta seção examina alguns princípios que afe- pecialmente em pequenas comunidades, acon-
tam os cálculos dos candidatos sob as regras tece de modo quase automático. Os políticos
eleitorais brasileiras. Esses princípios operam locais tentam fortalecer a identificação com a
em todo o país, isto é, independentemente de comunidade porque sua própria influência de-
contextos subnacionais. Em seguida, abordo pende de conseguir votos para os candidatos. A
aspectos da política brasileira que variam en- centralidade de cargos governamentais facilita
tre estados. a mobilização dos eleitores em pequenas co-
Eleitores como membros de grupos po- munidades, e o fato de a proteção do serviço
litizados. Um candidato racional procura gas- público restringir-se a posições de baixo nível
tar a menor quantidade de recursos e obter o politiza os cargos em setores públicos. Devido
maior apoio possível. O alvo ideal é um mem- ao fato de que as eleições para cargos executi-
bro consciente de si mesmo pertencente a um vos locais e para cargos legislativos são escalo-
grande grupo que possua uma identificação nadas, as autoridades locais sabem que estarão
ou queixa politizada. Os nipo-brasileiros, por no cargo tanto antes como depois das eleições
exemplo, sempre compreendem sua etnia; os legislativas; assim, são encorajados a fazer
evangélicos sabem que não são católicos. No acordos com candidatos legislativos.
entanto, os evangélicos têm maior probabili- A dificuldade de assegurar benefícios pa-
dade de ver a si mesmos como vítimas do que ra o grupo. Os deputados buscam apoio para
os nipo-brasileiros; assim, o voto evangélico é suas promessas de campanha no legislativo.
mais unificado. Em ambos os casos, os que es- Optam por benefícios geograficamente indivi-
tão de fora veem a divisão de maneira menos dualizáveis, por programas clientelistas, quan-
intensa; portanto, os candidatos podem ga- do o sistema decisório é fragmentado e a de-
nhar o voto dos evangélicos sem perder todos manda por bens públicos é alta, relativamente
os católicos. estável e específica de um distrito (Lowi, 1964;
No extremo oposto, em termos de per- Salisbury e Heinz, 1970). O Brasil se caracteriza
manência e politização de identificações, estão por ter estados poderosos que agem de acordo
os grupos ocupacionais. Para os trabalhadores com seus próprios interesses, seleção de candi-
industriais, a consciência de classe depende da datos ao congresso no nível estadual, municí-
natureza do processo de produção, dos salários pios que elegem governos locais independente-
e da organização do trabalho. Os trabalhado- mente, lideranças fracas de partidos nacionais
res de fábricas pequenas, especialmente no se- e separação de poderes entre o presidente e o
tor informal, tendem a ser mais jovens, menos legislativo federal. Ademais, enormes desigual-
qualificados, a ter chegado há menos tempo na dades regionais deixam alguns municípios tão

66 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

pobres que empregos governamentais e subsí- intermediário oferecem dinheiro ou uma fatia
dios são fontes cruciais de renda. Assim, a polí- do benefício assegurado, como um contrato
tica brasileira favorece a provisão de benefícios para construir uma rua. Se o intermediário er-
locais, geograficamente separados. guer com sucesso barreiras rígidas contra a en-
Os custos e benefícios das barreiras que trada de outros intermediários, os candidatos
impedem a entrada. Os deputados procuram pagarão mais pelos votos do intermediário do
isolar as coortes de eleitores das incursões que a soma dos valores que pagariam por ca-
de competidores porque sabem que as bar- da voto individualmente. Se, pelo contrário, o
reiras que impedem a entrada, eliminando a intermediário não conseguir proteger seu ter-
competição, reduzem o custo das campanhas. ritório, os candidatos pagarão um valor total
A dificuldade de erguer barreiras depende da mais baixo por esses votos do que seus valores
natureza do grupo a ser blindado. Aumentos individuais. Qualquer que seja o valor e a for-
salariais, por exemplo, requerem amplas coali- ma de pagamento, a remuneração dos inter-
zões legislativas; portanto, é difícil para qual- mediários exige que os candidatos garantam
quer pessoa reivindicar crédito exclusivo. As recursos individualizáveis.
barreiras contra forasteiros étnicos, por outro
lado, são essencialmente automáticas, mas
são mais dispendiosas para erguer contra ou- O custo da comunicação
tras etnias que pertençam ao grupo. com eleitores potenciais
É difícil erguer barreiras ao redor de lo-
calidades específicas? Um simples “Você não Fazer campanhas no Brasil é uma atividade
é daqui” blinda uma comunidade pequena e direta, realizada junto ao povo.10 Os candi-
altamente integrada. Violência, sob a forma de datos visitam pequenas comunidades, fazem
interrupção de comícios ou ameaças físicas, é reuniões e realizam comícios. É racional fazer
rotineira em áreas rurais. Comunidades mais campanha em locais em que sua mensagem
diversas desenvolvem competição entre fac- atinge poucos eleitores? Na verdade, é. Em
ções, na qual cada lado conta com correligioná- primeiro lugar, quanto mais concentrado for
rios fortemente partidários. Em áreas urbanas o grupo-alvo, menor será o custo de construir
complexas, nenhuma facção ou líder controla uma coalizão vencedora. Em segundo lugar,
uma parcela significativa do eleitorado, e a coalizões eleitorais que cobrem pequenas
polícia não deve favores a políticos individuais. áreas têm grande probabilidade de ser locacio-
Muitos candidatos tentam conseguir votos e as nais, isto é, baseadas puramente na identifica-
barreiras contra forasteiros de qualquer partido ção com a comunidade. Embora teoricamente
são difíceis de manter. os critérios locacionais e não-locacionais com-
Suponha que um intermediário controle binem perfeitamente (todos os habitantes do
o acesso a um grupo de eleitores. Esse contro- Sul são negros, todos os habitantes do Norte
le deriva de alguma combinação entre coerção são brancos), existem poucos casos como
e distribuição anterior de empregos ou servi- esse no Brasil. Assim, a distância física entre
ços. Deputados tentando obter os votos do um candidato e o último eleitor, o eleitor cujo

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 67
Barry Ames

apoio garante a vitória, é quase sempre menor muitos candidatos locais, concorrer ao legisla-
11
para coalizões locacionais. tivo federal é a primeira atividade política que
O suprimento de políticos. As trajetórias abrange todo o estado. Como os candidatos lo-
das carreiras dos candidatos restringem suas cais começam com um único pico de reconhe-
estratégias de campanha e padrões de votos. cimento de seus nomes, uma campanha con-
Candidatos locais, isto é, ex-prefeitos ou verea- centrada é a escolha óbvia. Mas suponha que o
12
dores, sempre existirão em abundância. Exce- candidato tenha chefiado um departamento do
to aqueles cujas carreiras estão enraizadas em governo que administrava ruas ou escolas. Cer-
grandes áreas metropolitanas, os candidatos tamente, os burocratas que estiverem conside-
locais naturalmente desenvolvem distribuições rando a carreira política alocariam projetos de
concentradas, pois o reconhecimento de seu modo a obter vantagens políticas, e tais can-
nome diminui conforme a distância em relação didatos se tornariam conhecidos nas comuni-
ao seu emprego local aumenta. O que acontece dades que se beneficiam da sua generosidade.
quando aparecem candidatos que trabalharam Assim, o apoio dos votos de tais candidatos de-
na burocracia do estado, ou candidatos sem veria ser disperso ao invés de concentrado. Se
história política? Não é uma pergunta simples, eles dominarão ou compartilharão municípios
pois em qualquer eleição, o mix de carreiras depende do município-alvo e do programa que
dos candidatos depende de dois conjuntos de dirigiram. Nas comunidades rurais, a domina-
fatores. Um conjunto (que pode ser chamado ção pode resultar do fato de que um único pro-
de endógeno) depende do contexto da própria grama afeta muitas pessoas intensamente ou
eleição, no sentido de que as novas candidatu- do programa ter sido elaborado para comprar o
ras dependem da distribuição inicial dos candi- apoio de pessoas influentes locais, ao invés de
datos que estão exercendo seus mandatos. Por eleitores individuais.13 Comunidades urbanas
exemplo, em locais em que os custos do trans- absorvem múltiplos programas – muitas vezes,
porte são altos, onde o reconhecimento do no- dirigidos por políticos rivais – e os eleitores não
me do candidato em todo o estado é baixo, on- são tão facilmente controlados. Finalmente,
de há pouca concentração de trabalhadores ou suponha que a carreira do candidato seja na
de etnias e onde os eleitores preferem candi- área de negócios. As pessoas dessa área talvez
datos com experiência política municipal, ape- comecem com algum pico de reconhecimento
nas os tipos locais se oferecem. Mas o mix de central ao redor da localização do seu negó-
carreiras dos candidatos também depende de cio, mas tais picos raramente são tão grandes
um segundo conjunto de fatores, exógeno no quanto os dos políticos locais. Sua vantagem
sentido de que novas candidaturas respondem é o dinheiro: camisetas, panelas de pressão (a
às oportunidades e recompensas da atividade metade inferior dada antes da eleição, a meta-
legislativa. Pessoas com formações diferentes de superior depois) e empregos políticos para
tornam-se candidatos porque buscam extrair os eleitores. O dinheiro compra os chefes po-
recompensas pessoais da atividade legislativa. líticos que controlam os eleitores, e o dinheiro
Meu argumento é simples: em campa- engraxa as dobradinhas entre os candidatos às
nhas, o que você fez afeta o que você faz. Para assembleias legislativas estaduais e à Câmara

68 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

Federal. Portanto, para os executivos, o apoio devem procurar votos em território inimigo. E
disperso produz resultados: o candidato estra- como os municípios compartilhados são mais
tégico da área de negócios compra o apoio on- vulneráveis do que os dominados, a dominação
de quer que ele esteja disponível. e também a concentração devem diminuir para
Neste ponto, é necessário distinguir entre os candidatos locais.
desafiantes e titulares dos cargos. Suponha que Mudanças na concentração espacial tam-
um político local desafie o titular em um redu- bém ocorrem entre candidatos não locais. Os
to concentrado-dominante. Superficialmente, o principais círculos eleitorais dos candidatos que
desafio lembra uma disputa por uma cadeira dependem de distribuições dispersas – evangé-
ocupada na Câmara do Deputados dos EUA, licos, apresentadores de TV e burocratas do es-
mas, na verdade, é mais difícil. Redutos locais tado – são relativamente estáveis em tamanho;
geralmente são esparsamente povoados. Se o portanto, tais candidatos precisam de novos
desafiante conseguir apenas 51% dos votos seguidores. Como um pouco dos benefícios que
do titular, o confronto levará à derrota mútua. esses deputados dão aos seus principais correli-
Como os benefícios são mais importantes do gionários beneficia outros nos mesmos municí-
que a política nacional, nem os chefes locais, pios, e como os deputados economizam recur-
nem os eleitores querem substituir um deputa- sos permanecendo perto de seu apoio principal,
do que os tenha beneficiado. Disputas locais, sua concentração espacial deve aumentar.
portanto, são tão difíceis que raramente ocor- Os homens de negócios inicialmente
rem.14 A menos que o titular negligencie o dis- compram votos dando propinas para chefes
trito ou enfureça o chefe local, os desafiantes locais, mas uma vez na legislatura, é provável
terão que esperar alguém se aposentar. que busquem apoio mais popular para preen-
O que devemos esperar dos próprios ti- cher o espaço entre as áreas onde são fortes. A
tulares locais? Dada a baixa frequência de de- concentração entre candidatos bem-sucedidos
safios diretos em seus redutos, os locais têm que são homens de negócios aumenta. Maior
medo principalmente de uma queda no voto concentração, contudo, pode não produzir
partidário agregado. Se diminuir suficiente- maior sucesso eleitoral. O apoio eleitoral de
mente, a mesma classificação pós-eleição pode candidatos da área de negócios é mais incons-
não garantir uma cadeira. Assim, os titulares tante do que o apoio recebido por políticos
locais têm que caçar novos eleitores ou nos locais. Ofertas melhores fazem a lealdade dos
redutos de colegas de partido ou nos redutos chefes oscilar em direção a quem oferece o
de titulares de outros partidos. A identifica- lance mais alto. Assim, os homens de negócios
ção partidária no Brasil é fraca; os deputados enfrentam incentivos contraditórios. Embora
atraem facilmente eleitores de outros partidos. as oportunidades sejam claramente melhores
Como a representação proporcional recompen- para candidatos não limitados por carreiras lo-
sa totais partidários mais altos com cadeiras cais, os homens de negócios podem perder o
adicionais, os líderes dos partidos não enco- apoio tão rapidamente quanto o ganham. Os
rajam a caça furtiva nos redutos de partidos negócios fornecerão muitos candidatos novos,
aliados. Resumindo, os candidatos brasileiros mas os titulares da área de negócios serão

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 69
Barry Ames

mais vulneráveis à derrota eleitoral do que can- votos recebidos pelo deputado em 1986; (3)
didatos com outras trajetórias. a vulnerabilidade do município X à invasão de
candidatos; (4) a similaridade socioeconômica
e demográfica de X em relação ao eleitorado
principal; (5) a insegurança eleitoral do depu-
Análise tado; (6) a trajetória da carreira do deputado.
Distância do centro da votação obtida
As linhas gerais do argumento devem manter-
em 1986. O “centro da votação” obtida por ca-
-se ou cair por terra no terreno empírico.15 A
da deputado titular em 1986 é medido de duas
análise se inicia com um modelo de estratégia
formas.17 O centro municipal, Cm, está basea-
de campanha que utiliza emendas orçamen-
do na dominação municipal – a porcentagem
tárias como indicadores da intenção do can-
da votação total recebida pelo deputado i em
didato. A seção a seguir incorpora emendas
cada município. O centro pessoal, Cp, se baseia
orçamentárias a um modelo de resultados elei-
na quota pessoal – a porcentagem do total es-
torais reais.
tadual do deputado i recebido em cada muni-
cípio. Calculo a distância de cada município do
estado em relação a Cm e Cp. Conforme os mu-
Estratégia de campanha nicípios ficam mais distantes, o reconhecimen-
na eleição de 1990 to do nome diminui e o custo da campanha
aumenta; municípios distantes possuem menor
Os deputados submetem emendas orçamen- probabilidade de serem alvos do deputado i.
tárias para reter antigos seguidores e atrair Ao mesmo tempo, deputados com centros pes-
novos. O Congresso não recuperou o direito soais de votação em municípios nos quais não
constitucional de modificar o orçamento nacio- dominam (tipicamente, grandes cidades) têm
nal até 1988, mas os deputados aprenderam probabilidade de fazer emendas mais longe de
rapidamente. Entre 1989 e 1992, o número seus centros pessoais porque compartilham o
anual de emendas orçamentárias subiu de município central com tantos outros candidatos
8.000 para 72.000, e mais de 90% foram di- que reivindicar o crédito é impossível.18
recionadas a municípios específicos. O modelo Dominação e concentração. Mais acima,
avalia, para cada município, a probabilidade defini dominação e concentração como carac-
de que um deputado concorrendo à reeleição terísticas dos deputados medidas no nível do
submeta uma emenda orçamentária.16 Espe- estado como um todo. Contudo, a dominação
cificamente, a probabilidade de que um depu- também é significativa no nível municipal.
tado que esteja concorrendo à reeleição em Um deputado poderia dominar municípios
1990 tenha submetido uma emenda em 1989 menores, por exemplo, mas compartilhar mu-
ou 1990 direcionada ao município X é uma nicípios maiores com outros. Apenas a domi-
função de seis fatores: (1) a distância de X do nação no nível municipal deve afetar a reali-
centro da votação obtida pelo deputado em zação de emendas.19 Quanto maior o nível de
1986; (2) a dominação e a concentração dos dominação em um município, mais o deputado

70 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

pode reivindicar crédito por esforços clientelis- dos votos da classe trabalhadora procurariam
tas e, portanto, mais emendas orçamentárias municípios industriais. Deputados que apelam
ele ou ela submeterão. Quando a dominação para funcionários públicos deveriam fazer isso
atinge níveis muito altos, o deputado tem uma em localidades nas quais há muitos cargos go-
“cadeira segura” (como no velho Sul norte- vernamentais. Assim, os deputados procuram
-americano, que só possuía um partido); assim, novos alvos que tenham composição socioeco-
as emendas devem diminuir. nômica semelhante à dos antigos redutos. Ini-
Candidatos cujo apoio foi concentra- cio definindo, com base na participação nos
do em 1986 devem fazer mais emendas, pois votos e na dominação municipal, o município
são vulneráveis às incursões de candidatos principal de cada deputado.21 Em seguida, cal-
com carreiras burocráticas ou na área de ne- culo a diferença entre cada município e o mu-
gócios. Candidatos concentrados saem de nicípio principal em relação a três indicadores
suas bases originais em círculos relativamen- socioeconômicos: tamanho do eleitorado, ren-
te concêntricos. Têm que ser menos seletivos da per capita e porcentagem da força de tra-
do que os candidatos com votos dispersos, balho empregada pelo governo. Os primeiros
pois escolhem alvos não apenas pelo critério dois indicadores refletem a possibilidade de
da vulnerabilidade, mas também do critério de busca de votos baseada em classes, enquan-
proximidade de seu próprio centro. Como re- to o terceiro representa um interesse bem-
sultado, candidatos concentrados apresentam -organizado. Como no Brasil, em geral, apelos
“emendas demais”. à classe social não rendem frutos, os funcioná-
Vulnerabilidade municipal. Os desafian- rios do governo são o alvo mais provável. Para
tes têm poucos incentivos para invadir muni- cada indicador, os municípios mais parecidos
cípios dominados por titulares fortes que bus- com o município principal do deputado devem
cam a reeleição. Mas as condições mudam; receber mais emendas.22
os municípios tornam-se permeáveis. Um de- Insegurança eleitoral. Sabemos que os
putado dominante se aposenta, deixando um votos individuais determinam, em grande me-
vazio eleitoral. Um influxo de migrantes sina- dida, a sorte dos deputados nas eleições. Aque-
liza um eleitorado livre do controle de velhos les cuja posição em 1986 foi baixa, que esca-
líderes e antigas lealdades. A invasão é en- param por pouco da eliminação, trabalharão
corajada pela fragmentação municipal, ou no mais na próxima eleição. Seu número total de
sentido de que muitos candidatos de um único emendas aumentará.
partido compartilham votos ou no sentido de Trajetória da carreira. Devido ao fato de
que candidatos de muitos partidos obtêm su- que políticos locais têm maior probabilidade
20
cesso eleitoral. de manter vínculos próximos com os eleitores
Paridade social. Se os titulares identi- do que políticos com carreiras burocráticas ou
ficam certos grupos ocupacionais ou étnicos na área de negócios, os candidatos locais devem
como correligionários-chave, devem visar apresentar mais emendas. Os locais também
novos municípios onde grupos semelhantes devem concentrar suas campanhas, incluindo
estão presentes. Deputados que dependem suas emendas orçamentárias, mais perto de suas

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 71
Barry Ames

casas. Candidatos com carreiras burocráticas e Interpretação. Em cada estado ou grupo


na área de negócios dispersam as atividades de de estados, o modelo atingiu um alto nível de
campanha, comprando apoio onde implantaram significância estatística; portanto, os resultados
projetos e onde identificam municípios vulnerá- empíricos sustentam bem a teoria de maneira
veis. Candidatos de famílias com longa tradição geral.26 Em termos dos elementos específicos
em política devem ser mais propensos ao clien- da teoria, primeiramente consideraremos os
23
telismo, fazendo mais emendas. argumentos confirmados em todas ou quase
Agrupamento e estimativa. A estimativa todas as seis configurações, seguidos das hipó-
teve início com observações no nível dos depu- teses que não conseguiram apoio consistente.
tados; isto é, todos os deputados que serviram Em todos os lugares, a dominação munici-
em 1986 e concorreram à reeleição em 1990. pal estimulou fortemente a realização de emen-
Em seguida, agrupei os deputados por estado, das. Quanto maior a porcentagem de votos de
e em dois casos – seis pequenos estados nor- um município o deputado tivesse recebido em
destinos e três estados do Sul – agrupei depu- 1986, maior a probabilidade de aquele deputa-
tados em grupos de estados. Esse agrupamento do buscar mais apoio no mesmo local em 1990.
de muitos estados, que aumentou substancial- A inclinação negativa no termo ao quadrado
mente o número de observações, combina es- significa que os deputados em algum momen-
tados que são semelhantes em tamanho, con- to consideraram um município como “fecha-
24
dições econômicas e tradições políticas. do”, não merecendo nenhum esforço adicional.
Como o número de emendas em cada Em outras palavras, a diminuição dos retornos
município não pode ser menor do que zero, acontecia, mas os verdadeiros pontos de infle-
e como a maioria dos deputados faz poucas xão estavam além de quase todos os casos.
emendas em qualquer município em particular, A teoria argumentava que os municípios
as estimativas de mínimos quadrados não são vulneráveis, aqueles com altas proporções de
apropriadas. Experimentei um modelo de migrantes ou com altos níveis de fragmentação
Poisson de contagem de eventos, mas os re- partidária, seriam alvos de campanha. Somente
sultados revelaram algumas irregularidades nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo
estatísticas, então distribuí os dados sobre as (onde o sinal estava correto), os municípios com
emendas em uma variável dicotômica e imple- muitos migrantes não atraíram deputados. O
25
mentei uma regressão logística. A Tabela 1 desvio do Rio e a fragilidade de São Paulo pro-
apresenta os resultados simplificados para vavelmente se originam da alta proporção de
seis estados ou grupos de estados: Bahia, os migrantes nas próprias cidades do Rio e de São
seis pequenos estados do Nordeste, Minas Ge- Paulo. Como muitos deputados recebem votos
rais, Rio de Janeiro, São Paulo e os três esta- nesses locais, nem mesmo uma alta proporção
dos do Sul. Os resultados completos, incluindo de migrantes consegue fazer essas cidades se-
coeficientes e erros-padrão, estão disponíveis rem atrativas como alvos de emendas, embora
aos interessados. elas atraiam outras táticas de campanha.

72 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

Tabela 1 – O deputado submeterá


uma emenda orçamentária a um município?

Estimativa Logit
Características municipais e individuais Minas Rio de São
Predição Bahia Nordeste Sul
Gerais Janeiro Paulo
Distância do centro municipal – – – + + +
Distância municipal ao quadrado + + + –
Distância do centro pessoal + + – – –
Distância pessoal ao quadrado – – + +
Dominância municipal + + + + + + +
Dominância municipal ao quadrado – – – – – – –
Concentração + + + –
Porcentagem de votos a deputados aposentados + + –
Porcentagem de migrantes + + + + – +
Paridade ao município principal:
? + – –
distribuição de renda
Paridade ao município principal:
– – – –
funcionários do governo
Paridade ao município principal: população ? + – –
Fragmentação interpartidária + + + – + +
Fragmentação intrapartidária + + + +
Classificação na lista do partido em 1986 + + + + + +
Carreira local + – + + –
Carreira local x Distância municipal – + – + – +
Carreira local x Distância pessoal – – + – + –
Família política + – +
N= 6666 3841 9106 1536 7410 6841

+ significa um coeficiente positivo, significativo no nível 0,10.


– significa um coeficiente negativo, significativo no nível 0,10.
Todas as razões de verossimilhança são significativas no nível 0,0001.

Altos níveis de fragmentação partidária, alto nível de dominação em 1986. Em 1990, o


tanto interpartidária quanto intrapartidária, PMDB iria inevitavelmente escorregar; assim,
aumentam, em todos os lugares, as chances sobreviver significava caçar os eleitores de
de os candidatos focalizarem um dado muni- companheiros de partido.
cípio. Em Minas Gerais e São Paulo, apenas a Os deputados que ficaram em posições
fragmentação intrapartidária aumentou a rea- baixas nas listas pós-eleição de seus partidos
lização de emendas pelos candidatos. Nesses em 1986 certamente tinham motivos para
dois estados, o Partido do Movimento Demo- se sentir vulneráveis. Em todos os estados,
crático Brasileiro, PMDB, havia conquistado um com exceção do Rio de Janeiro, deputados

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 73
Barry Ames

com baixa classificação (baixas classificações de referência da campanha. Ao invés disso, os


recebem pontuações mais positivas) realizaram deputados focam suas campanhas onde rece-
significativamente mais emendas do que seus bem a maior parte de seus totais pessoais.
colegas cuja classificação foi alta. No Rio, a re- Apenas na Bahia as emendas orçamentá-
lação foi positiva, mas muito abaixo da signi- rias não têm relação com a distância dos muni-
ficância estatística. É bastante provável que a cípios em relação ao apoio principal dos candi-
fragilidade da relação vulnerabilidade-realiza- datos. Por que a Bahia é excepcional? Conside-
ção de emendas no Rio se origine da importân- re o contexto político. O governador da Bahia,
cia demográfica da capital, combinada com sua Antônio Carlos Magalhães (popularmente co-
falta de atratividade como alvo de emendas. nhecido como ACM) é tão poderoso que pode
À primeira vista, as hipóteses da distância mandar os candidatos fazerem campanha em
não parecem ter sido confirmadas. Uma inves- determinados municípios. A máquina de ACM
tigação mais detalhada, contudo, revela que a foi construída sobre seus vínculos com o antigo
realização de emendas reflete a distância dos regime militar, vínculos que garantiram à Bahia
municípios em relação ao apoio principal dos uma considerável generosidade federal. ACM e
deputados na maioria dos casos. Minas Gerais seus aliados na burocracia estatal colheram os
e os seis estados do Nordeste corroboram o lucros políticos, e deputados com carreiras bu-
argumento original (“realizam menos emen- rocráticas no nível estadual continuam a domi-
das conforme a distância do centro municipal nar a delegação da Bahia no Congresso. Ape-
aumenta”).27 No Rio, em São Paulo e nos três nas um em cada oito deputados baianos tem
estados do Sul, os deputados diminuíram suas um passado local – o segundo menor número
campanhas como função da distância de cada em qualquer estado – e deputados puramente
município em relação ao centro de seu apoio locais são fracos. Deputados baianos não locais
pessoal, ao invés do centro da sua dominação tendem a ter distribuições de votos dominan-
28
municipal. Por que a variação? Em Minas e tes-dispersas; assim, suas emendas são neces-
no Nordeste, o nível médio da dominação mu- sariamente espalhadas. De certo modo, o con-
nicipal é muito mais alto do que em qualquer ceito de centro de votos significa pouco para
outro lugar; os deputados mineiros e nordes- tais deputados; eles lidam com os chefes locais
tinos conseguem quotas substanciais de seus onde quer que haja algum disponível.
totais pessoais nos locais que dominam. Essas E as variáveis que medem a paridade
localidades permanecem cruciais para eles e fi- social de cada município em relação aos elei-
cam próximas de suas casas. No Rio, em São torados principais dos deputados? Se os de-
Paulo e no Sul, o nível médio de dominação (a putados recorrem a eleitorados que lembram
porcentagem obtida pelo deputado dos votos aqueles onde se saem bem, as emendas devem
totais do município) é menor do que a metade diminuir conforme a distância social aumenta.
do nível conquistado por deputados mineiros e Os funcionários do governo são um eleitora-
nordestinos. Com níveis baixos de dominação, do importante para muitos deputados, e tais
reivindicar crédito é mais difícil; portanto, o deputados realmente parecem procurar muni-
centro da dominação municipal não é o ponto cípios semelhantes: três estados ou grupos de

74 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

estados obtiveram resultados significativos na razões demográficas, não históricas. O Rio tem
direção esperada; apenas São Paulo teve o si- apenas 65 municípios para servir de trampo-
29
nal errado. lins para seus 46 deputados (1,41 municípios
As outras variáveis de paridade social por deputado), enquanto a Bahia tem 8,6 mu-
demonstram que os apelos ideológicos são nicípios por deputado. Faltam oportunidades
real mente raros no Brasil. Semelhanças em aos candidatos locais do Rio, mas como não
distribuição de renda e população produziram enfrentam nenhuma máquina coerciva, são li-
resultados imateriais e inconsistentes.30 Além vres para competir com candidatos estaduais
disso, se os deputados buscam alvos em bases através da submissão de um grande número
ideológicas, a paridade social deve ser mais de emendas. São Paulo tem um número subs-
forte nas regiões mais desenvolvidas do país. tancial de candidatos locais, mas entre 1987 e
Rio, São Paulo e o Sul, contudo, não produziram 1990, muitos desertaram do PMDB, o partido
resultados mais consistentes do que o Nordes- dominante. Os desertores tiveram que lidar
te, a Bahia e Minas Gerais. O resultado negati- com a máquina poderosa do PMDB de Orestes
vo é importante: isto é, a maioria dos deputa- Quércia, que enviou candidatos para os redutos
dos vê as características sociais e ideológicas eleitorais desses candidatos. Mas a máquina
dos municípios como fatores menores em sua não tinha poder para manter seus oponentes
decisão de usar a política do clientelismo como dentro de seus redutos; assim, a expansão foi
uma ferramenta de campanha. sua estratégia ideal.
Considere agora as hipóteses que não A política no Sul e no Nordeste reflete
se confirmaram de maneira consistente. A teo- contextos históricos distintos. No Sul, as legen-
ria original previa, embora de forma hesitante, das partidárias são significativas, nenhum go-
que candidatos com carreiras na política local vernador tem a hegemonia de um ACM, a con-
realizariam mais emendas do que aqueles com centração espacial é intensa e os candidatos
carreiras burocráticas ou na área de negócios. locais dominam. Os candidatos que não pos-
Apenas no Rio e em São Paulo a hipótese foi suem base local lutam para encontrar apoio;
confirmada, e na Bahia e no Sul, os candida- assim, os políticos locais sabiamente permane-
tos locais realizaram menos emendas. Essas cem em seus redutos eleitorais, fazendo menos
diferenças não são simplesmente funções da emendas. O Nordeste e Minas Gerais apoiam
dominação dos candidatos com origens locais, níveis intermediários de candidatos locais; os
pois o Sul e Minas possuem a mais alta por- locais não lutam, como fazem na Bahia e no
centagem de candidatos locais, ao passo que a Rio, e não dominam, como no Sul.
Bahia e o Rio possuem a mais baixa. As táticas Originalmente, eu esperava que os polí-
dos candidatos locais dependem de contextos ticos locais simplesmente realizariam menos
históricos. A Bahia, por exemplo, tem poucos emendas conforme se distanciassem de suas
candidatos locais, e aqueles que se aventuram bases. Ao invés disso, os resultados fornecem
a sair de seus redutos eleitorais correm o risco uma comparação instrutiva com nossas medi-
de incorrer na ira de ACM. O Rio tem ainda me- das de distância, isto é, as variáveis que me-
nos candidatos locais do que a Bahia, mas por dem mudanças no comportamento de todos os

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 75
Barry Ames

deputados em relação à realização de emen- O argumento original sugeria que os


das, independentemente de suas carreiras candidatos com apoio espacialmente concen-
políticas. Na Bahia, no Sul e em Minas Gerais, trado iriam realizar muitas emendas para com-
os deputados locais aumentam a realização pensar suas bases de votos geograficamente
de emendas conforme se distanciam dos mu- restritas. Apenas na Bahia e no Nordeste a hi-
nicípios onde são mais dominantes, mas dimi- pótese provou ser correta. Talvez o argumento
nuem a realização de emendas conforme se falhe porque concentração é frequentemente
distanciam dos municípios onde obtêm a maior relacionada à dominação; isto é, o que real-
parte de seus votos. As capitais, nesses casos, mente importa é a dominação local, e não a
possuem pouca importância nos eleitorados to- contiguidade espacial dos votos. Como resul-
tais dos estados; poucos centros pessoais são tado, a variável dominação (que confirmou
encontrados em cidades nas quais a presença a previsão em todos os casos) simplesmente
de muitos deputados desencoraja a reivindica- subjuga a concentração. O caso da Bahia mais
ção de créditos. Para a maioria dos deputados, uma vez reflete o poder da máquina política
portanto, faz sentido permanecer perto dos lo- desse estado. A máquina desencoraja os can-
cais que contribuem com a maior parte de seus didatos em relação a deixar suas bases; assim,
votos. No Nordeste e no Rio, no entanto, as eles realizam muitas emendas para aumentar
capitais têm muito mais peso nos eleitorados a dominação local.
totais dos estados, e mais candidatos possuem Finalmente, por que os deputados de
centros pessoais exatamente nessas capitais. famílias políticas não conseguem se destacar?
Mas como essas capitais são o lar de muitos Suspeito que o aprendizado político é muito
deputados, elas desencorajam a reivindicação rápido. Sendo membros de famílias políticas
de crédito, e os candidatos locais são forçados ou não, os deputados aprendem táticas de
a fugir em busca de novos eleitores. campanha rapidamente. É interessante notar
As aposentadorias (avaliadas pela por- que membros das famílias políticas do Nor-
centagem dos votos recebida em 1986 por deste realizaram significativamente menos
candidatos que não concorreram em 1990) emendas do que os nordestinos sem laços de
estimularam mais emendas somente na Bahia. família. Tais laços são muito mais importantes
No Sul, as emendas na verdade diminuíram no Nordeste do que em qualquer outro lugar;
onde as aposentadorias libertaram mais elei- cerca de 30% de todos os deputados nesses
tores. Isso não era esperado, pois nas minhas estados têm parentes na política, em compara-
entrevistas, os deputados do Sul mencionaram ção a menos de 10% no Sul. Famílias políticas
municípios que haviam se tornado vulneráveis no Nordeste frequentemente significam fazer
devido a aposentadorias. Talvez o problema acordos à moda antiga, não populismo; políti-
tenha sido falta de sincronia: quando os de- cos nordestinos tradicionais fazem menos por
putados ofereceram essas emendas em 1988 seus eleitores – especialmente em termos de
e 1989 (para os orçamentos de 1989 e 1990), assistência social – e mais pelos chefes locais.
talvez não soubessem quem estava planejan- Recapitulação . As estratégias de cam-
do se aposentar. panha dos deputados brasileiros no nível

76 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

municipal respondem fortemente à dominação emendas feitas por outros deputados, são ago-
local, à vulnerabilidade à invasão de alvos po- ra variáveis explicativas. Finalmente, o modelo
tenciais, à sua própria fragilidade eleitoral e a inclui (para investigar o realinhamento partidá-
suas carreiras anteriores. Mas a ausência de es- rio) variáveis que medem o ganho de candida-
forços de campanha em comunidades sociolo- tos de partidos aliados.31
gicamente semelhantes aos principais círculos O modelo de resultados funciona bem e
eleitorais dos deputados (exemplificada pela explica mais de 50% da variação na votação de
fraqueza das variáveis de paridade social) con- 1990 dos candidatos em todos os lugares, com
firma a impressão de que poucos deputados exceção de São Paulo. 32 Os votos recebidos
buscam votos seguindo linhas ideológicas. A em 1986 foram os preditores mais poderosos.
ausência de programas de partido e a fragilida- Esse resultado seria esperado na maioria das
de da disciplina partidária fazem com que tais sociedades, mas, aqui, contradiz a sabedoria
apelos, exceto para o Partido dos Trabalhado- convencional do Brasil, segundo a qual a im-
res, sejam improdutivos. popularidade dos deputados faz com que ter
exercido um mandato seja uma desvantagem.
Fazer campanha é importante. Na Bahia, no
O comportamento estratégico Nordeste, em Minas Gerais e no Sul, as emen-
compensa eleitoralmente? das aumentaram os votos. 33 As emendas fi-
zeram a diferença no Rio de Janeiro e em São
As táticas dos nossos deputados em busca de Paulo também, mas apenas para deputados
votos dão certo? A Tabela 2 estima um modelo mais dominantes, isto é, as emendas nesses
de “resultados”. É semelhante ao modelo de estados tornaram-se mais importantes à medi-
“estratégia”, mas com importantes acrésci- da que a dominação municipal aumentou. Os
mos. O modelo de resultados incorpora a vota- municípios no Rio e em São Paulo são, em sua
ção de 1986 como um preditor da votação de maior parte, competitivos, com poucos deputa-
1990. Também avalia os efeitos da dominação dos dominantes. Em lugares em que os depu-
total (nível estadual) – além da dominação no tados compartilham votos com muitos outros
nível municipal – para descobrir se certos ti- (como nas capitais), as emendas são fúteis,
pos de deputados foram mais bem-sucedidos. mas à medida que a dominação aumenta, elas
As emendas de cada deputado, junto com as fazem mais sentido.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 77
Barry Ames

Tabela 2 – O que determina o sucesso eleitoral?

Estimativa OLS dos resultados da eleição de 1990


Características municipais, individuais e eleitorais Minas Rio de São
Bahia Nordeste Sul
Gerais Janeiro Paulo
Votação em 1986 + + + + + +
Emendas por deputado (registradas) + + + +
Emendas* dominância municipal + + + + + –
Emendas realizadas por outros deputados – – – + –
Distância do centro municipal –
Distância do centro pessoal
Dominância estadual em 1986 + + +
Dominância municipal em 1986 + – + + + –
Dominância municipal ao quadrado – + – –
Concentração em 1986 +
Fragmentação interpartidária em 1986 +
Fragmentação intrapartidária em 1986 – –
Paridade ao município principal: Distribuição de renda +
Paridade ao município principal: Funcionários do governo –
Paridade ao município principal: População – –
Classificação na lista do partido em 1986 – + + +
Carreira local
Ganho dos partidos aliados - 1986 + + + + + +
Candidato PFL-PDS + + + + +
Candidato PMDB ou de esquerda + +
Família política + +
Família política* dominância municipal – –

R2 = 53% 57% 53% 53% 20% 56%

N = 8040 6629 13740 1536 16530 8803

+ significa um coeficiente positivo, significativo no nível 0,05.


– significa um coeficiente negativo, significativo no nível 0,05.
Todos os testes F para o modelo inteiro são significativos no nível 0,05.

Emendas realizadas por outros depu- A hipótese falhou no Rio e em São Paulo pelas
tados deveriam diminuir a votação de um de- mesmas razões que vimos acima.34
putado, pois tais emendas significam que os Deputados dominantes ganharam mais
oponentes também focalizaram o mesmo mu- votos do que aqueles com distribuições com-
nicípio. Exceto no Rio e em São Paulo – onde as partilhadas, mas a concentração ajudou so-
emendas de outros deputados não produziram mente em Minas Gerais. 35 Em uma eleição
impactos –, foi exatamente isso que aconteceu. com mais de 50% de rotatividade dos titulares,

78 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

e com perdas substanciais por parte dos parti- uma derrota para o PMDB após seu sucesso
dos de centro e centro-esquerda, esse resulta- esmagador em 1986, os candidatos de direita
do tem grande importância. A dominação pro- (“candidato PFL-PDS”) ganharam, ao passo
tege os deputados de oscilações partidárias. A que o PMDB e os candidatos de esquerda re-
maioria dos titulares que perderam as cadeiras ceberam um impulso apenas no Nordeste e em
em 1990 compartilhava os círculos eleitorais. Minas Gerais.
Municípios representados por um único depu- Finalmente, as trajetórias das carreiras
tado, sejam contíguos ou dispersos, são mais dos deputados, pelo menos conforme medidas
seguros. Em um ambiente de partidos fracos e por ocupações anteriores ou por participa-
política de clientelismo, a realização de acor- ção em famílias políticas, não tiveram efeito
dos com os políticos locais – o clássico padrão consistente sobre os resultados eleitorais. No
dominante-disperso – faz sentido. Nordeste e em Minas Gerais – áreas em que
O modelo de estratégia demonstrou que porcentagens substanciais de deputados vêm
os deputados raramente procuram alvos de de famílias políticas – esses deputados se saí-
campanha socioeconomicamente similares aos ram melhor. Mas na Bahia, onde as famílias
seus municípios principais. Como era de se es- políticas são mais comuns, tais deputados não
perar, também é pouco provável que eles ga- receberam ajuda. Além disso, os candidatos lo-
nhem ou percam votos nessa base. Embora em cais não tiveram melhor desempenho em ne-
grandes cidades os deputados façam apelos nhum estado. A eleição de 1990 representou
ideológicos ou para grupos, eles não procuram um influxo de dinheiro alto na campanha para
ou recebem apoio em alvos de campanha dis- o Congresso. Se essa tendência continuar, os
tantes com tais apelos. Dado o alto custo de ca- candidatos locais, como esses resultados de-
çar no território de companheiros de partido, os monstram, terão sérios problemas.
candidatos aumentam o apoio apelando para Recapitulação. As estratégias dos depu-
novos grupos em suas áreas de base, ao invés tados têm importância. Os deputados lucram
de buscar grupos semelhantes, mas geografica- realizando suas próprias emendas; sofrem
mente distantes. Consequentemente, embora quando outros deputados visam os mesmos
mudanças na composição ideológica geral de municípios. Os deputados com distribuições
legislaturas possam resultar de realinhamentos dominantes de votos conseguem resistir mais
eleitorais, tais realinhamentos não são produto a oscilações partidárias do que aqueles com
de apelos de campanhas individuais. distribuições compartilhadas.36 Mas a maio-
Trocas de partidos desempenham um ria dos deputados ganha pouco concentrando
papel importante na sorte dos deputados. Em suas distribuições de votos ou fazendo apelos
todos os estados, os ganhos gerais de parti- ideológicos ou a grupos, e os padrões de car-
dos próximos no espectro político ajudaram reiras não têm um efeito amplo sobre a sorte
os candidatos. Como essa eleição representou em eleições.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 79
Barry Ames

com base no potencial dos benefícios que


Conclusão
podem obter.
O sistema eleitoral brasileiro motiva os
A maioria das discussões sobre política bra- deputados a procurar benefícios. Quando com-
sileira enfatiza suas raízes tradicionais, clien- binamos esses incentivos com a qualidade
telistas. A teoria desenvolvida aqui, pelo centrada no estado que a política brasileira
contrário, está baseada no comportamento possui, os resultados sugerem que a procura
estratégico de políticos racionais. Inseridos em de benefícios pode não ter atingido um equi-
um sistema eleitoral cujos principais atributos líbrio. Os deputados no Sul do Brasil e em
incluem representação proporcional com lista estados mais industrializados enfrentam uma
aberta, grandes distritos representados por competição maior por parte de candidatos de
vários deputados, seleção de candidatos no outros partidos, mas também têm distribuições
nível de unidades subnacionais politicamente de votos mais concentradas. Níveis mais altos
ativas e possibilidade de reeleição imediata, a de educação e riqueza aumentam o interesse
maioria dos deputados presta pouca atenção a e o envolvimento dos eleitores em política,
apelos ideológicos. Ao invés disso, buscam re- mas esse interesse aumenta os incentivos para
dutos eleitorais seguros, procuram municípios os deputados focalizarem os benefícios. Ao
vulneráveis e lutam para superar sua própria mesmo tempo, demandas por benefícios locais
fraqueza eleitoral por meio de esquemas polí- podem contribuir para as taxas elevadas de
ticos. Candidatos estratégicos não se compor- rotatividade e baixos níveis de antiguidade no
tam de maneira idêntica, já que seus passados cargo das delegações congressistas do Sul, fa-
políticos variam e também porque os diferen- tores que mudam o centro ideológico do Con-
tes contextos demográficos e econômicos dos gresso para a direita.
estados brasileiros recompensam algumas tá- No processo legislativo, o sistema do
ticas e penalizam outras. Brasil produz partidos sem programas, parti-
Qual é o significado desses resultados? dos que abrigam uma enorme gama de inte-
Considere a relação mandante-mandatário en- resses e preferências. A representação propor-
tre eleitores e deputados. O sistema eleitoral cional com lista aberta não é uma condição su-
brasileiro dificulta o controle do eleitor. Força ficiente para partidos fracos; o Chile pré-1973
os candidatos a procurar nichos monofocais, combinava a representação proporcional com
a gastar muito e a fazer acordos com candi- lista aberta com partidos ferozmente ideoló-
datos a outros cargos, candidatos com quem gicos. Mas a representação proporcional com
não têm nada em comum. O sistema não pode lista aberta no Brasil funciona de modo dife-
ser julgado não-democrático; na verdade, ao rente, porque os interesses dos estados con-
não favorecer nenhuma divisão em particular, trolam as indicações, porque os partidos não
permite que todas as reclamações sejam arti- podem controlar o comportamento de seus
culadas. Porém, os cidadãos aprendem pouco deputados, e porque a importância dos distri-
sobre a importância de questões de nível na- tos aumenta tanto a fragmentação interparti-
cional, e eleitores racionais apoiam candidatos dária quanto a intrapartidária.

80 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

Esta análise apenas tocou a superfície do orientados para a legislação nacional? A acei-
37
argumento teórico. Quais são as implicações tação ou rejeição do Congresso das emendas
das distribuições espaciais de votos para o com- orçamentárias dos deputados também merece
portamento legislativo subsequente? De fato, investigação. Por que alguns deputados são
os deputados brasileiros representam uma am- mais bem-sucedidos do que outros? Há regras
pla gama de eleitorados, que varia de distritos que garantem a todos uma parte da ação? Os
dominados por um único representante a coor- deputados seniores podem comprar os votos de
tes de interesses especiais dispersas, passando membros juniores necessitados? O caso brasi-
por acordos dispersos e distritos da classe tra- leiro – um sistema que permite a formação de
balhadora. Será que alguns distritos isolam os vários círculos eleitorais dentro de um único ar-
deputados das demandas presidenciais? A cor- cabouço institucional – é um laboratório perfei-
rupção é um desenvolvimento natural de certos to para o estudo de influências eleitorais sobre
círculos eleitorais? Alguns deputados são mais o comportamento legislativo.

Apêndice
Fontes e problemas dos dados

O mapa e Moran I. Construí os mapas informatizados utilizando mapas estaduais de ruas,


uma mesa digitalizadora e Autocad. A base de dados também inclui, além dos resultados eleitorais,
indicadores do censo de 1980, todas as emendas orçamentárias submetidas para os orçamentos
de 1989-91 e os resultados da eleição presidencial de 1989. As matrizes de vizinho mais próximo
utilizadas para calcular a estatística de Moran I foram derivadas das coordenadas dos mapas. Paul
Sampson (University of Washington) forneceu o programa que criou as matrizes. Para uma introdu-
ção à análise espacial, cf. Cliff et al. 1975.
A tendência de subdivisão dos municípios, que é motivada politicamente, pode prejudicar se-
riamente a elaboração de mapas. Como os dados censitários são baseados nas fronteiras de 1980,
municípios criados após essa data precisaram ser agregados aos municípios antigos. Em alguns ca-
sos, o número de novas unidades era tão grande que a agregação distorceu os eventos políticos. Em
outros casos, estados antigos foram comprometidos pela criação de novos estados. Como resultado,
a análise exclui Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Acre, Amapá, Rondônia e Rorai-
ma. Embora a divisão inadequada dê a esses estados força política considerável, a maioria possui
populações muito pequenas.
Emendas orçamentárias. A cada ano, a Comissão de Orçamentos publica as emendas de depu-
tados e senadores (Brasil, Congresso Nacional, 1988-1990). Os membros submetem essas emendas

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 81
Barry Ames

em pequenos cartões de aproximadamente 5 cm por 15 cm, e os volumes publicados reproduzem


esses cartões, muitos dos quais escritos à mão. Cada cartão contém o nome e o estado do deputa-
do ou senador, o programa modificado, o município beneficiado, a quantia de dinheiro e o progra-
ma debitado para financiar a emenda. Codifiquei todas as emendas de 1990 e 1991, mas apenas
uma amostra das 72.672 emendas realizadas em 1992. Este artigo não utiliza o grupo de 1992
porque as emendas foram submetidas pelos membros da nova Câmara de 1991-94. A análise tam-
bém exclui emendas (cerca de 1%) que não beneficiavam nenhum município específico. Agradeço
a Orlando de Assis e Carmen Pérez pela ajuda na obtenção das emendas de 1991.
Resultados eleitorais. Para 1978 e 1982, os resultados eleitorais vieram do Prodasen, o braço
de processamento de dados do Senado. Agradeço a Jalles e William pelo auxílio. Para 1986, o Tribu-
nal Superior Eleitoral forneceu alguns dados, mas oito estados nunca enviaram os resultados eleito-
rais para Brasília. Copiei os resultados nos tribunais regionais nesses estados. Para 1990, o Tribunal
Superior, com a assistência de Roberto Siqueira, Sérgio, Flávio Antônio, Conceição e Nelson, forneceu
dados de 15 estados em disquetes. Manuel Caetano, em Porto Alegre, auxiliou com os resultados
dos gaúchos.

Barry Ames
Cientista político pela Universidade de Stanford. Professor do Departamento de Ciências Políticas na
Universidade de Pittsburgh. Pittsburgh, Pennsylvania, EUA.
barrya@pitt.edu

Notas
(*) Texto originalmente publicado em American Journal of Poli cal Science, v. 39, n. 2, maio 1995,
pp. 406-33. Revisão técnica de Carolina Ventura.
Os dados utilizados neste artigo serão colocados no ICPRS no final de 1995. Pesquisadores
interessados nos dados antes dessa data podem contatar o autor. Esta pesquisa foi financiada
pela Na onal Science Founda on, Washington University, St. Louis, e pelo IRIS – Ins tu onal
Reform and the Informal Sector, University of Maryland, College Park.

(1) Nenhum estudo com muitos Estados foi realizado, provavelmente devido à escassez de dados
sobre eleições de nível municipal, à ausência de mapas municipais digitalizados e à falta de
familiaridade com técnicas esta s cas espaciais.

(2) Até 1994, não havia um patamar mínimo para os par dos conseguirem cadeiras no legisla vo. Em
1993, o Congresso aprovou um patamar de 3%, mas uma brecha na lei minimizará seus efeitos.

82 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

(3) As máquinas de estado mais fortes provavelmente são as do Maranhão e da Bahia, ambos no
Nordeste. Enquanto era governador, Orestes Quércia dominava o PMDB em São Paulo, e
manteve muito desse poder durante a administração do sucessor que ele escolheu. Líderes
locais poderosos são encontrados principalmente em áreas menos industriais.

(4) Observe que dominação municipal não tem relação nenhuma com efe vamente ganhar cadeiras;
estados, não municípios, são distritos eleitorais. Também experimentei conceituar dominação
somente em termos de votos para candidatos do próprio par do do candidato.

(5) O Apêndice discute a construção do mapa, assim como outros problemas dos dados.

(6) Para ilustrações gráficas de padrões dispersos-compar lhados e concentrados-compar lhados,


cf. “Electoral rules, cons tuency pressures, and pork barrel: bases of vo ng in the Brazilian
Legislature” (1995), de minha autoria.

(7) Alves comandava um grupo de deputados conhecidos, por sua estatura, como os Sete Anões.
A comissão interna de investigação da Câmara acusou quase todos de extorquir e aceitar
propinas, mas a Câmara exonerou alguns. Quase todos têm a mesma distribuição de votos:
bolsões dispersos de apoio muito intenso.

(8) Os votos dos principais candidatos podem superar os dos retardatários, mas como o número de
candidatos eleitos é diretamente proporcional à quota cumula va de todos os votos do par do,
os candidatos populares possibilitam a eleição de candidatos com muito menos votos.

(9) Paulo Maluf, um polí co populista conservador, não conseguiu ganhar o estado de São Paulo na
eleição presidencial de 1989, mas ganhou a eleição para a prefeitura da cidade de São Paulo em
1992 precisamente com os votos desses trabalhadores.

(10) O acesso à mídia permanece central para realizar campanhas, embora os candidatos não
possam comprar tempo no rádio nem na TV. Pelo fato de o rádio e de os jornais no Brasil serem
geralmente par dários, as conexões da mídia fornecem uma barreira efe va à compe ção,
assim como um meio de comunicação com os eleitores. Recentemente, muitos apresentadores
de programas que se tornaram celebridades viraram candidatos.

(11) As exceções incluem coalizões eleitorais vencedoras baseadas no voto de classe nas cidades do
Rio de Janeiro ou São Paulo.

(12) Os prefeitos precisam procurar outro cargo, já que não podem se reeleger imediatamente. O
cargo de deputado federal, no entanto, não é necessariamente um passo acima: em 1992,
cerca de um quinto de todos os deputados federais fizeram o caminho inverso, disputando
prefeituras. Os detentores de cargos locais são abundantes como candidatos exceto em
estados fronteiriços, os quais se desenvolvem tão rapidamente que a polí ca local tende a ser
extremamente fraca. Municípios de fronteira dependem da generosidade estadual e federal, e
os polí cos frequentemente “caem de paraquedas” para conseguir votos.

(13) Uma rua, por exemplo, pode se destinar a enriquecer um determinado empreiteiro ou um
grande fazendeiro.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 83
Barry Ames

(14) Na eleição de 1990, o governador de São Paulo, Orestes Quércia, apoiou um desafio a um
deputado que havia sido membro do PMDB de Quércia, mas havia desertado para o PSDB.
O desafiante bem financiado de Quércia ganhou, mas seu alvo também. Para um teste mais
amplo, considere a eleição de 1990 no Paraná. Das 30 cadeiras do estado no Congresso, os não-
tulares ganharam 24. Desses 24, 12 ganharam com redutos locais concentrados. Desses 12,
seis construíram redutos onde antes não havia nenhum. Quatro essencialmente assumiram os
distritos de tulares que não concorreram. Apenas dois conquistaram os redutos de tulares
que concorreram. Em um dos casos, o desafiante construiu um reduto muito maior; no outro,
o desafiante se beneficiou da oscilação para a direita do estado, derrotando dois tulares que
haviam compar lhado a mesma área.

(15) Dada a considerável con nuidade entre as úl mas eleições legisla vas da ditadura e as da Nova
República, não há campanhas sem tulares. Além disso, a disponibilidade de resultados para
apenas quatro eleições deixa a estabilidade do sistema em aberto.

(16) Obviamente, as emendas orçamentárias não são a única tá ca que os deputados u lizam. Eles
visitam vários municípios, fazendo comícios e oferecendo apoio a candidatos a outros cargos.
Assim, as emendas orçamentárias representam uma gama de atividades de campanha. Por
essa razão, minha análise focaliza as emendas subme das ao invés das emendas efe vamente
aprovadas pelo comitê orçamentário. As ações do comitê orçamentário representam um
processo legisla vo decisório que analiso em uma obra que desenvolvo no momento.

(17) O centro é o centróide de uma super cie plana na qual se assume que os votos de um município
são dados em seu centro. Note que Cm e Cp não estão necessariamente no centro sico real
de nenhum município em par cular. Os centros socioeconômicos na seção de paridade social,
contudo, são mesmo municípios individuais.

(18) Sobre o efeito da distância do eleitor em relação aos mercados locais de mídia do candidato,
cf. Bowler et al., 1992.

(19) Se a dominação no nível estadual tem algum efeito no nível do município, deve ser verdade
que os deputados, cujo apoio vem principalmente dos municípios que dominam provavelmente,
fazem mais emendas mesmo nos municípios que eles apenas compar lham. Isto é, o hábito do
clientelismo de deputados dominantes faz com que se comportem de maneira irracional.

(20) Fragmentação interpar dária é definida como 1 menos a soma do quadrado da quota de cada
partido em relação ao número total de votos. Fragmentação intrapartidária é definida de
maneira equivalente no nível do candidato individual, i.e., 1 menos a soma dos quadrados da
quota de cada candidato em relação ao total do par do.

(21) Se um deputado possuía um único município com uma par cipação pessoal claramente acima
de qualquer outra, selecionei aquele município como o principal. Se as par cipações pessoais
do deputado em dois municípios tinham diferença de poucos pontos percentuais, escolhi o
município com uma par cipação municipal maior como sendo o principal.

(22) Os indicadores socioeconômicos vêm do censo de 1980, exceto pelo tamanho da população de
eleitores, que é extraído dos registros eleitorais.

(23) Os deputados têm famílias polí cas se um parente da mesma geração ou de geração anterior
tiver sido prefeito, deputado estadual ou federal, senador, governador ou presidente. Para
dados biográficos, cf. Câmara dos Deputados (1981, 1983, 1991); Brasil (1989); e Isto é (1991).
Entrevistas com jornalistas suplementaram as fontes oficiais.

84 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

(24) Os seis estados do Nordeste são Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e
Sergipe. Os três estados do Sul são Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

(25) Em alguns estados ou grupos de estados, o diagnóstico tanto para o modelo de Poisson como
para o binomial negativo mostrou superdispersão; para outros, Poisson funcionou bem.
Como a verdadeira questão é se um candidato visou o município x, e não quantas emendas
foram realizadas em x, a forma logística é perfeitamente adequada. Essencialmente, os
resultados são um pouco mais próximos às predições do modelo com o Poisson original, mas
ambas as formas são bastante similares.

(26) Pelo fato de este ser um estudo exploratório – e para minimizar as referências a coeficientes
insignificantes com frases como “sinaliza a direção certa” –, adotei um nível de significância de
0,10. No entanto, mais de 80% dos coeficientes significa vos também a ngem o nível de 0,05.

(27) A ausência do sinal previsto no termo quadrá co simplesmente significa que a realização de
emendas não mostrou retornos decrescentes.

(28) Tanto no Rio como no Sul, o coeficiente nega vo na variável distância-em-relação- ao-centro-
pessoal domina o coeficiente da variável distância-em-relação-ao-centro-municipal.

(29) O desvio de São Paulo provavelmente resulta da extrema falta de atratividade da cidade
altamente compe va na qual a maioria dos burocratas mora.

(30) O fracasso dos candidatos em buscar municípios de tamanho semelhante pode ter outra
causa: pequenas comunidades produzem poucos votos, enquanto grandes cidades são muito
compe vas.

(31) Na construção desse indicador, os votos do PFL e do PDS medem o ganho da direita; os votos
do PMDB medem o ganho da esquerda. Essa úl ma é uma medida imperfeita, mas em muitos
municípios o PMDB era a única oposição à direita. Cada deputado foi codificado, com base
na filiação ao par do, em termos de orientação de direita ou de centro-esquerda. Resultados
semelhantes são ob dos u lizando-se os totais de votos de 1978 e 1982 do MDB-PMDB como
subs tutos mais puros da votação do PMDB de 1986.

(32) O desempenho ruim do modelo em São Paulo (embora a nja facilmente significância esta s ca
geral) pode resultar do alto nível de polí ca ideológica do estado, que é uma função da força
dos par dos de esquerda como o PT. O PT encoraja os eleitores a escolher a legenda do par do
ao invés de candidatos individuais.

(33) O modelo incorpora emendas registradas para reduzir o efeito de cada emenda “adicional”. No
Sul, o coeficiente nega vo no termo que representa a interação entre emendas e dominação
significa que as emendas são contraproducentes acima de um certo nível de dominação. Cerca
de 5% dos deputados do Sul ficam acima desse ponto de inflexão. Tais deputados podem estar
engajados em uma luta inú l para manter suas bases em uma região onde a dominação é cada
vez mais rara.

(34) Sabemos, a par r do modelo de estratégia, que os deputados realizam menos emendas conforme
aumenta a distância em relação aos seus centros de votação. O modelo de resultados mostra
que sua votação de 1990 não estava relacionada, de maneira geral, à distância do centro.
Devemos lembrar, contudo, que o modelo inclui a votação de 1986; portanto, o coeficiente só
deverá ser significa vo se houver uma concentração de votos adicional e inesperada. Isso ocorre
em dois casos, Minas e São Paulo, em que deputados com padrões de votos mais concentrados
veram melhor desempenho em 1990 do que em 1986. No momento, não tenho como explicar
esse resultado.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 85
Barry Ames

(35) A variável dominação mascara quaisquer possíveis efeitos produzidos pelas duas medidas de
fragmentação. Obviamente, a fragmentação é menor quando os deputados dominam os
municípios.

(36) Os deputados também podem mudar de par do para lucrar com o aumento dos esquemas de
bancadas par dárias.

(37) Esses achados também têm implicações para outros contextos polí cos com regras similares,
e.g., as eleições primárias no EUA (tanto a legisla va quanto a presidencial) e eleições para
os conselhos municipais. Com a disseminação dos sistemas de informações geográficas, ficou
muito mais fácil explorar esses contextos.

Referências
ABRANCHES, S. H. H. de (1988). Presidencialismo de coalizão: o dilema ins tucional brasileiro. Dados,
n. 31 (1), pp. 5-34.

AMES, B. (1995). Electoral rules, cons tuency pressures and Pork Barrel: bases of vo ng in the Brazilian
Congress. Journal of Poli cs 57.

BOWLER, S.; DONOVAN, T. e SNIPP, J. (1992). Local sources of informa on and voter choice in state
elections: micro-level foundations of the “friends and neighbors” effect. American Politics
Quarterly 21, pp. 473-489.

BRASIL (1989). Assembleia Nacional Cons tuinte 1987. Brasília, Câmara dos Deputados.

______ (Congresso Nacional) (1988-1990). Projeto de lei: es ma a receita e fixa a despesa da União
para o exercício financeiro de 1989-1991. Emendas.

CÂMARA DOS DEPUTADOS (1981). Deputados brasileiros: 46th legislatura, 1979-1983. Brasília, Câmara
dos Deputados.

______ (1983). Deputados brasileiros: 47th legislatura, 1983-1987. Brasília, Câmara dos Deputados.

______ (1991). Deputados brasileiros: 49th legislatura, 1991-1995. Brasília, Câmara dos Deputados.

CLIFF, A.; HAGGETT, P.; ORD, J. K.; BASSETT, K. A. e DAVIES, R. (1975). Elements os spa al structure: a
quan ta ve approach. Cambridge, Cambridge University Press.

COX, G. W. (1990). “Multicandidate spatial competition”. In: ENELOW, J. M. e HINICH, M. J. (ed.)


Advances in the spa al theory of vo ng. Cambridge, Cambridge University Press.

DE SOUZA, A. e LAMOUNIER, B. (1992). As elites brasileiras e a modernização do setor público: um


debate. São Paulo, Sumaré.

FLEISCHER, D. (1973). O trampolim polí co: mudanças nos padrões de recrutamento polí co em Minas
Gerais. Revista de Administração Pública n.7, pp. 99-116.

______ (1976). Concentração e dispersão eleitoral: um estudo da distribuição geográfica do voto em


Minas Gerais (1966-1974). Revista Brasileira de Estudos Polí cos n. 43, pp. 333-360.

86 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012
A estratégia eleitoral na representação proporcional com lista aberta

FLEISCHER, D. (1977). A bancada federal mineira. Revista Brasileira de Estudos Polí cos n. 45, pp. 7-58.

ISTO É (1991). Perfil Parlamentar Brasileiro. São Paulo, Três.

KINZO, M. D’A. G. (1987). A bancada federal paulista de 1986: concentração ou dispersão do voto?
Presented at the mee ng of the Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências
sociais, Águas de São Pedro.

LIMA JUNIOR, O. B. (1991). Sistema eleitoral brasileiro: teoria e prá ca. Rio de Janeiro, Iuperj.

LOWI, T. (1964). American Business, Public Policy, Case-Studies, and Poli cal Science. World Poli cs,
July.

MAINWARING, S. (1993). Brazilian party underdevelopment in compara ve perspec ve. Poli cal
Science Quarterly n. 107, pp. 677-708.

MAINWARING, S. e SCULLY, T. R. (1992). Party systems in La n America. Presented at the 1992 LASA
mee ng, Los Angeles.

SALISBURY, R. e HEINZ, J. (1970). “A theory of policy analysis and some preliminary applications”.
In: SKARANSKY, I. Policy Analysis in Political Science. Chicago, Markham.

STRAUBHAAR, J.; OLSEN, O. e NUNES, M. C. (1993). “The brazilian case: influencing the voter”.
In: SKIDMORE, T. E. (ed.). Television, Politics and the transition to democracy in Latin
America. Washington DC, The Woodrow Wilson Center Press.

Texto recebido em 12/jul/2011


Texto aprovado em 30/jul/2011

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 59-87, jan/jun 2012 87
O peso do voto metropolitano:
a representatividade das regiões
metropolitanas na Assembleia
Legislativa do Paraná
The weight of the metropolitan vote: the representativeness
of metropolitan regions in the Legislative Assembly of Paraná

Jéferson Soares Damascena


Celene Tonella

Abstract
Resumo In the last few decades the metropolises had had the
Nas últimas décadas as metrópoles tiveram o re- recognition of its relevance in the urban dynamics.
conhecimento de sua relevância na dinâmica urba- However, this very fact has not happened with the
na. Entretanto, não ocorreu a politização do tema politicization of the metropolitan issue. One searches
metropolitano. Busca-se testar a hipótese de que to test the hypothesis of that the recklessness
a negligência em relação às questões metropolita- in relation to the questions metropolitans has a
nas tem um nexo causal com o sistema represen- causal nexus with the Brazilian representative
tativo brasileiro. Esse sistema tende a prejudicar system. This very system that in its implementation
a capacidade de representação parlamentar dos tends to undermine the capacity of parliamentary
centros mais urbanizados do País. Analisaremos a representation of the country's most urbanized
composição da Assembleia Legislativa do Paraná – centers. In this sense, we review the current
ALEP, tendo por base a territorialização dos votos composition of the legislative assembly of Parana –
obtidos pelos deputados eleitos em 2006 nas re- ALEP, based on the territorialization of votes cast by
giões metropolitanas (RMs) polarizadas por Curiti- parliamentarians elected in 2006 in the metropolitan
ba, Maringá e Londrina. A partir dos mapas eleito- regions (MRs) polarized by Curitiba, Maringa and
rais, verifica-se que ocorre uma sub-representação Londrina. From the electoral maps, it is verified
das regiões metropolitanas na Assembleia. Conco- that an under-representation of the regions occurs
mitantemente, há uma sobrerrepresentação das metropolitans in the Assembly. Concomitantly, it
cidades-polo, em detrimento das outras cidades has an overrepresentation of the city-polar region, in
das RMs. detriment of the other cities of the RMs.
Palavras-chave: representação metropolitana; Keywords: representation metropolitan; State
Assembleia Legislativa do Paraná; eleição de 2006; legislature of the Paraná; election of 2006;
representação; voto metropolitano. representation; metropolitan vote.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

Maringá (RMM) e Londrina (RML) em relação


Introdução
à base geográfica dos deputados estaduais
eleitos; e 4) levantamento dos projetos dos de-
No presente trabalho, temos por objetivo ana- putados estaduais eleitos com maioria de vo-
lisar a distribuição geográfica dos votos para tos nas RMs. A fonte principal de informações
os representantes da Assembleia Legislativa serão os mapas eleitorais dos municípios das
do Paraná (ALEP), nas regiões metropolitanas duas RMs, para que possamos compreender
de Curitiba (RMC), Maringá (RMM) e Londrina a dinâmica das práticas político-eleitorais por
(RML) na eleição de 2006. O entendimento é meio de um levantamento1 dos projetos pro-
que as regiões metropolitanas, apesar de sua postos pelos deputados.
influência socioeconômica e do expressivo elei- Primeiramente, verificamos a votação por
torado, não conseguem traduzir esse poder em cidade, de cada um dos 54 deputados eleitos
um número condizente na composição da As- em todo o Estado. Em seguida, decidimos fa-
sembleia Legislativa, estando, pois, sub-repre- zer um recorte, considerando apenas a votação
sentadas em relação ao interior do Estado. dos eleitos nas regiões metropolitanas de Curi-
Segundo Carvalho (2010), o sistema re- tiba (RMC), Londrina (RML) e Maringá (RMM).
presentativo proporcional, em sua operaciona- Partindo dos mapas da votação dos deputados
lização, tende a prejudicar de forma sistemática estaduais eleitos no pleito de 2006 do TSE, foi
a composição das representações parlamenta- possível fazermos algumas inferências sobre a
res dos centros mais urbanizados do País, bem composição do voto nas RMs estudadas, que
como as capitais e as regiões metropolitanas. de certa forma contrariam nosso apriorismo e
A falta de integração entre as cidades que nos força a um recorte mais aprofundado nas
compõem as RMs estudadas confronta com os questões de estratégias de cada deputado, bem
discursos e propostas em defesa da ampliação como na real extensão da sua influência, que
dessas regiões. não se limita à sua base territorial.
Buscamos empreender um exercício de
aproximação com a obra de Carvalho (2003;
2009), replicando-a em um cenário mais aden-
sado, ou seja, a geografia do voto para a As-
As Regiões Metropolitanas
sembleia Legislativa do Paraná, no pleito de do Paraná
2006, mas tentaremos ampliá-la, abrindo as
seguintes frentes de investigação: 1) a sub- Conforme apontam Ribeiro e Pasternak (2009),
-representação das regiões metropolitanas de o destino das metrópoles está no centro dos di-
Maringá, Londrina e Curitiba na Assembleia lemas das sociedades contemporâneas. Desde
Legislativa; 2) concomitantemente, a sob- a década de 1970, estão em curso as transfor-
-representação das cidades-polo em relação mações tecnológicas, sociais e econômicas, em
aos deputados eleitos nas RMs; 3) a sub-repre- especial as decorrentes da globalização e da
sentação das cidades menores que compõem reestruturação socioprodutiva, que aprofunda-
as Regiões Metropolitanas de Curitiba (RMC), ram a dissociação engendrada pelo capitalismo

90 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

industrial entre progresso material e urbaniza- em polos de incorporação de migrantes (Rodri-


ção, economia e território, Nação e Estado. gues e Tonella, 2010).
Em particular, as metrópoles do hemisfé- Vinte e seis municípios compõem atual-
rio sul registram vultosas taxas de crescimento mente a Região Metropolitana de Curitiba, a
populacional, sem que ocorra a associação com qual foi instituída originalmente pela Lei Com-
o progresso material. Ocorrem dois processos: plementar Federal 14/73 e constantemente re-
aquele gerado pela vertiginosa concentração definida por legislações estaduais, o que levou
populacional em grandes cidades nos países à configuração de um território extenso e hete-
que estão conhecendo o processo de desrura- rogêneo. São quatorze os municípios originais,
lização induzido pela incorporação do campo à cinco desmembrados e sete outros integrados
expansão das fronteiras mundiais do espaço de por meio de legislações estaduais, o que le-
circulação do capital, e o outro decorrente da vou à configuração de um território extenso e
condição urbana de concentração do capital, heterogêneo. Conforme nos informa Moura et
do poder e dos recursos de bem-estar social. al. (2009, p. 4): “essa área, embora contínua,
Na década de 1970, existiam no Brasil é bastante desigual, tanto no que se refere à
nove regiões metropolitanas e, hoje, existem inserção dos municípios na dinâmica da econo-
vinte e sete. São identificadas regiões me- mia regional, quanto nas condições socioam-
tropolitanas oriundas de um primeiro grupo, bientais”. Segundo o Censo de 2010, a região
composto pelas criadas por iniciativa federal abriga mais de 3,1 milhões de moradores.
durante o regime militar, constituídas como A região metropolitana de Maringá
forma de integrar o território nacional e mo- (RMM) foi criada em 1998 pela Lei Estadual
dernizar a estrutura econômica, caracterizadas nº 83/98, acrescida pela Lei Complementar Es-
pela crescente industrialização e urbanização. É tadual nº 13/565-2002 e pela Lei Complemen-
esse grupo de regiões que tem o maior tama- tar nº 110, e 688 de 2005. Assim, ficou cons-
nho populacional, dentro do qual se destacam tituída pelos municípios de Maringá, Sarandi,
as cidades-sede das regiões metropolitanas Marialva, Mandaguari, Paiçandu, Ângulo,
de São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Curitiba, Iguaraçu, Mandaguaçu, Floresta, Doutor Ca-
Fortaleza, Salvador, Recife, Porto Alegre e Belo margo, Itambé, Astorga e Ivatuba (Silva, 2006,
Horizonte. O segundo grupo é composto pelas p. 185). A população da região metropolitana
demais regiões metropolitanas e são de inicia- de Maringá passou a contar com 612.617 ha-
tiva estadual, uma tarefa delegada aos Estados bitantes, estando 587.971 na região urbana
pela Constituição Federal de 1988. e 24.646 na zona rural, distribuídos em treze
Os estudos atuais apontam como uma municípios com uma área territorial total de
diferença importante o fato de as regiões me- 3.190,07 km² (IBGE/2010).
tropolitanas do segundo grupo liderarem o Desde a sua constituição até a recente
crescimento demográfico do conjunto das me- inclusão de alguns municípios, a região me-
trópoles do País, com taxas que chegaram a tropolitana de Maringá é caracterizada pela
4% ao ano, entre 1991 e 2000. Isso significa falta de um critério aparente para sua con-
que as novas aglomerações têm se constituído formação e gestão, além, é claro, da evidente

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 91
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

priorização dos interesses de alguns grupos no de municípios na gramática metropolitana.


poder que patrocinam representantes políticos Mesmo com as limitações no enquadramento
movidos apenas pela lógica eleitoral imediata em um tipo puro metropolitano, sofrem de pro-
e particularista. blemas inerentes à metropolização e são as re-
Na visão de alguns autores, em Londrina giões mais desenvolvidas do estado do Paraná.
e em Maringá existem processos de aglome-
ração que não caracterizam uma metropoliza-
ção, mas, antes, uma ampliação de papéis e
funções de cidades médias. Assim, podemos
Resultados eleitoriais versus
identificar a aglomeração urbana em ambos os
dinâmica metropolitana
casos, contudo:
Nos últimos anos, vêm ocorrendo algumas mo-
[...] não fica evidente um processo de dificações no modo como são analisados os
metropolização, pois as transformações
resultados eleitorais. Se na década de 1970
ocorridas nas duas cidades que condu-
zem a uma expansão territorial, não che- os estudos demonstravam que as preferências
gam a reestruturar os espaços urbanos políticas eram orientadas pelas características
que compõem as chamadas “Regiões sociais, econômicas e culturais dos eleitores,
Metropolitanas” e tampouco a extensão atualmente observamos uma tendência dos
territorial desta aglomeração é caracte-
eleitores em votar em uma pessoa, e não em
rística da uma entidade metropolitana.
(Silva, 2006, p. 189) um partido ou em conjunto programático.
A relevância de profissionais de
Desse processo, surge a região metro- marketing político é cada vez maior nas cam-
politana, instituída em 1998 pela Lei Estadual panhas, além das assessorias de comunicação
Complementar nº 81, de 17/6/98, e acresci- e agências de promoção da imagem do “candi-
da pela Lei Estadual Complementar nº 91, de dato-produto”. É necessário que o candidato se
5/6/2002, que ampliou o número de municípios diferencie para um eleitor cada vez mais cético
que compõem a região metropolitana de Lon- e desinteressado por propostas (quando exis-
drina. São eles: Londrina, Cambé, Jataizinho, tem) cada vez mais similares umas às outras. O
Ibiporã, Rolândia, Tamarana, Bela Vista do Pa- que observamos na prática é que os candidatos
raíso e Sertanópolis (Silva, 2006). A RML conta que logram sucesso na sua eleição não são os
com 764.258 habitantes, estando 731.875 na de maior prestígio local, nem os com propos-
região urbana e 32.383 na zona rural, distribuí- tas mais próximas das demandas do eleitorado,
dos em oito municípios, com uma área territo- mas sim os "comunicadores", que dominam as
rial total de 4.285,39 km² (IBGE/2010). técnicas da mídia e da encenação
Cada uma das regiões carrega caracterís-
ticas próprias, fruto do crescimento econômico, O que estamos assistindo hoje em dia não
é a um abandono dos princípios do gover-
de distintos desenhos de inserção na economia
no representativo, mas a uma mudança
regional, estadual e nacional e, também, de in- do tipo de elite selecionada: uma nova
tervenções políticas que levaram à agregação elite está tomando o lugar dos ativistas

92 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

e líderes de partido. A democracia do consentimento. Entretanto, esse tipo de rela-


público é o reinado do "comunicador". ção de poder, dado pelo povo para, pelo menos
(Manin, 1995, p. 18)
teoricamente, ser usado em seu nome e benefí-
cio, exigia um grupo de cidadãos preparados e
Assim, podemos inferir que, na opinião
legitimamente aptos pelo processo eletivo para
dos eleitores, a confiança e o carisma que o
tornarem-se apto na elaboração de leis.
candidato “transmite” são fatores decisivos
Nas democracias representativas como
na hora de votar, muito mais relevantes que o
o Brasil, os parlamentares eleitos têm basica-
conhecimento dos projetos e propostas. Manin
mente duas atribuições inerentes à sua função:
(2010) pontua que os eleitores costumam votar legislar e fiscalizar o Poder Executivo. O que se
em partidos distintos em eleições presidenciais, espera de um parlamentar é que cumpra seu
legislativas e municipais, sugerindo que as papel de representar da melhor maneira os in-
decisões de voto consideram somente a per- teresses de todos os cidadãos, sob a forma de
cepção de que o que está sendo decidido diz elaboração de políticas públicas que atendam
respeito apenas a uma eleição específica, inde- suas demandas. Também lhes cabe a prerroga-
pendente das características socioeconômicas tiva de monitorar e fiscalizar as ações e pro-
e culturais dos eleitores: postas do Executivo de forma a garantir que as
políticas públicas se traduzam em resultados
Esse aspecto aparece de modo nítido na
que garantam a consecução de tais interesses.
relação que se estabelece entre o poder
executivo e os eleitores no plano nacio- Manin assinala que:
nal. Há muito tempo os analistas vêm
constatando uma tendência à personali- Tal capacidade será maior quanto maior
zação do poder nos países democráticos. for a articulação política entre os cida-
Nos países em que o chefe do poder exe- dãos visando à manifestação de uma opi-
cutivo é eleito diretamente por sufrágio nião que lhes é comum. É praticamente
universal, a escolha do presidente da Re- inútil que opiniões divergentes quanto à
pública tende a ser a eleição mais impor- forma pela qual é o governo é conduzido
tante. (Manin, 1995, p. 17) se manifestem isoladamente; sem coor-
denação, tais manifestações não se cons-
tituem em ação política eficaz. (Manin,
A enorme expansão do universo eleito- 1995, p. 59)
ral, principalmente com a ampliação do direito
de voto a várias categorias sociais, requisitou Além disso, os representantes eleitos se-
o aperfeiçoamento tanto das instituições po- rão pressionados a fazer valer, junto às instân-
líticas como dos sistemas eleitorais, principal- cias decisórias do Estado, demandas e interes-
mente no que se refere ao processo de conces- ses dos segmentos sociais específicos que os
são, por parte dos eleitores, da defesa de suas elegeram. Assim, “percebe-se que as distintas
demandas pelos representantes escolhidos formas de atuação dos representantes políti-
por meio do sufrágio. A representação política cos trazem em si o exercício do poder políti-
passa a ser um recurso para o uso do poder co derivado do consentimento” (Magdaleno,
do Estado em relação ao cidadão, e sob seu 2010, p. 49).

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 93
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

Alguns autores, como Ames (2003) e um número excessivo de veto players, ou seja,
Nicolau (2007), sustentam que o formato po- atores com poder de obstrução de mudanças
lítico institucional e eleitoral brasileiro, de lista podem gerar uma permanente crise de gover-
aberta e proporcional, não permite governos nabilidade, uma vez que, para o autor, os políti-
com sustentação parlamentar. Torna-se neces- cos são incentivados a maximizar seus ganhos
sária a formação de alianças amplas, resultan- pessoais, buscando projetos e recursos para
do em coalizões que fragilizariam o Executivo, suas clientelas específicas. Desse modo, grande
que precisaria, então, para governar, lançar parte dos representantes orienta sua carreira
mão de incentivos a um Legislativo inclinado a "para a oferta de contratos de obras públicas
comportamentos individualistas, que minariam e nomeações para cargos burocráticos" (Ames,
a coesão e a disciplina partidárias. Ademais, a 2003, p. 46). Esse tipo de político, com perfil fi-
proporcionalidade na divisão das cadeiras frag- siologista e clientelista, seria majoritário e con-
menta os partidos e reduz a conexão dos elei- tribuiu para o desenho das regras necessárias
tores com seus representantes. Para Nicolau, à vazão livre do paroquialismo no interior do
Poder Legislativo:
[...] com muitos representantes elei-
tos no distrito, os eleitores teriam mais [...] ali os líderes partidários não pos-
dificuldades para identificar o represen- suem controle sobre as bancadas e os
tante e fazer uma boa avaliação de sua indivíduos ou grupos suprapartidários
atuação, seja para puni-lo (caso não encontram-se em condição de determinar
tenha tido uma boa atuação), seja para o preço de sua cooperação. Os presiden-
recompensá-lo (quando tenha tido uma tes da República, por sua vez, precisam
boa atuação). (Nicolau, 2007, p. 61) "estar sempre reconstruindo maiorias".
(Ames, 2003, p. 294)
Ames (2003) toma por argumento cen-
tral a fragilidade do sistema institucional políti- Mesmo com todo o poder, principalmen-
co eleitoral brasileiro, consequência do sistema te em matéria orçamentária, que a Constitui-
de representação de lista aberta, em que as ção lhe outorgou, o Executivo, por não contar,
estratégias eleitorais refletem um tipo singular de fato, com uma maioria no Congresso, se
de competição, que pode ser representado com depara com uma considerável margem de in-
base em duas dimensões: uma, que varia relati- certeza na aprovação da sua agenda. Assim, a
vamente e em ordem direta com a "penetração mesma coalizão que lhe deu sustentação elei-
política vertical" do candidato, ou seja, o total toral para chegar ao poder, não lhe dá garan-
de votos amealhados em determinado municí- tia de sustentação política nas votações. Para
pio ou conjunto de municípios e que traduz a Mainwaring (2001), outra característica dessa
dominância do político naquele espaço. Outra relação entre os Executivos e os Legislativos
disputa se caracteriza pela relação da distribui- brasileiros, derivadas da necessidade de forma-
ção geográfica dos municípios, em que o can- ção de governos de coalizão sempre em bases
didato obteve sua votação e que revela o grau frágeis, seria o uso político dos recursos públi-
de concentração ou dispersão de sua base elei- cos sob a forma de patronagem. Em outras pa-
toral. Combinadas, tais instituições produzem lavras, trata-se da nomeação de apadrinhados

94 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

políticos para ocuparem cargos na máquina de atendimento das necessidades e anseios


pública, transformados em moeda de troca de das populações.
apoio político, e também através do clientelis- Com os avanços da “sociedade da infor-
mo e o fisiologismo. mação em tempo real”, hoje se faz indispen-
Essas práticas têm um alto custo para sável a adoção de outras formas de acesso
o país, pois, além de emperrarem o processo do cidadão na vida política. A representação,
de tomada de decisões importantes no aten- apesar seu importante papel, apresenta alguns
dimento das demandas da sociedade por meio problemas, como o revezamento das elites no
de soluções coletivas, acabam privilegiando poder, que dificultam a renovação, pois concen-
os interesses particularistas de alguns grupos tra demasiado poder em pouquíssimas mãos.2
ou facções. Outro aspecto importante que daria mais
A melhoria dessa situação, no sentido qualidade à relação representante e represen-
de dar mais efetividade e qualidade na rela- tado refere-se à ampliação dos mecanismos de
ção entre Executivo e Legislativo, aponta para prestação de contas dos mandatos, reduzindo
uma transformação em sua natureza, cabendo o chamado “déficit de controle da representa-
ao eleitor demonstrar o acompanhamento das ção”. Atualmente, depois de eleitos os repre-
atividades do seu candidato. Entretanto, é ta- sentantes, a única forma de controle sobre o
refa dos representantes proporcionar canais de mandato por parte do eleitor é a possibilidade
informação de suas atividades, permitindo aos de não-renovação da outorga, ou seja, a não-
cidadãos maior capacidade de fiscalizá-los: -reeleição. A representação tem, sem dúvida,
um papel relevante nos governos e nas demo-
A disseminação e o aperfeiçoamento de cracias modernas, sendo necessária a amplia-
mecanismos institucionalizados de inter- ção desse processo, incentivando a formação
locução entre cidadãos e representantes
de práticas de comprometimento para além do
eleitos, na arena legislativa, diminui-
riam a assimetria informacional entre sufrágio obrigatório como única instância da
estes atores e tornariam mais plurais as relação entre eleitor e eleito.
fontes de informação dos legisladores, Neste sentido, admitiremos neste traba-
capacitando-os para conhecer quais são lho que o modo mais fácil e usual de os par-
e como representar os melhores interes-
lamentares, mais especificamente os deputa-
ses dos cidadãos. (Anastasia e Nunes,
2006, p. 29) dos estaduais paranaenses da legislatura de
2007-2010, buscarem a reeleição concentra-se
A complexidade das sociedades moder- na reivindicação de benefícios e recursos para
nas, cada vez mais marcadas por clivagens e seus eleitorados específicos. O modelo distribu-
pela diversidade, transforma a representa- tivista parte do princípio de que os parlamenta-
ção política em uma espécie de consenso co- res são regidos pelo desejo de reeleição, maxi-
mo única solução política capaz de atender mizando suas ações para a obtenção desse re-
às demandas. Entretanto, embora hegemôni- sultado esperado. Assim, nesse modelo, o fator
cos no mundo ocidental, o sufrágio universal preponderante é a análise das motivações que
e a representação não são as únicas formas levam o parlamentar a agir de determinada

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 95
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

forma na arena legislativa. Entretanto, o Legis- benefícios em um distrito geográfico es-


lativo, qualquer que seja, é palco de disputas e pecífico e financia gasto por meio de uma
tributação generalizada [...]... se é claro
conflitos entre os mais variados e diversos inte-
que toda política traz uma incidência geo-
resses individuais e de grupos. Uma das princi-
gráfica de custos e benefícios, o que dis-
pais atribuições dos legislativos é a formulação tingue uma política distributiva é que os
e destinação de recursos e benefícios sob a for- benefícios têm um alvo geograficamente
ma de políticas públicas. definido. (Carvalho, 2003, p. 20)
Carvalho (2003, pp. 20-21) informa que,
Torna-se óbvia, então, a preferência dos
no caso brasileiro, a importação do modelo dis-
deputados em relação à deliberação de políti-
tributivista para se interpretar o comportamen-
cas públicas que viabilizem recursos em forma
to legislativo ocorreu pela similitude de alguns
de benefícios concentrados e custos dispersos,
elementos análogos identificados no congresso
aumentando, teoricamente, suas chances de
norte-americano:
reeleição. Esse sistema se organiza através dos
a) a baixa institucionalização dos partidos;
redutos eleitorais, porque é através deles que o
b) o particularismo legislativo; e, sobretudo,
político conhece as preferências dos que vota-
c) o predomínio do voto personalizado na
ram nele (Limongi, 2006; Lemos, 2001).
arena eleitoral.
Nesse contexto, são sancionados leis e
programas que afetam a vida de muitos cida-
dãos, inclusive os eleitores de cada parlamen- A representação nas Regiões
tar, que têm, por sua vez, a exata dimensão Metropolitanas
do fato de estarem subordinados à sanção
periódica desses eleitores. A relevância da
Por meio dos dados disponíveis no Tribunal Su-
“conexão eleitoral”, ou seja, da relação entre
perior Eleitoral para as eleições de 2006, orga-
representado e representante faz com que to-
nizamos os dados dos deputados mais votados
do parlamentar tenha fortes incentivos para
nas RMs do Paraná (Quadro 1), detalhando o
atender aos interesses específicos dos eleito-
total de votos no estado, o total de votos ob-
res de sua região:
tidos na RM correspondente, bem como a por-
U ma p o lí t ic a d is t r i b u t i va t ra t a - s e centagem em relação ao total de votos obtidos,
de uma decisão de política que concentra o mesmo ocorrendo em relação à cidade-polo.

96 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

Quadro 1 – Deputados mais votados nas RMs


e suas votações nas cidades-polo

Total votos Votos Votos


Deputados RMM x Maringá % %
PR RMM Maringá
Manoel Batista da S. Jr. (PMN) 26,174 25.027 93,68 18.821 70,45
Wilson Quinteiro (PSB) 24.307 21.079 86,72 17.060 70,19
Maria Ap. Borguetti (PP) 66.492 51.373 77,26 32.783 49,30
Enio José Verri 36.800 23.650 64,27 17.538 47,66
Luiz Hiloshi Nishimori (PSDB) 45.247 28.602 63,21 15.000 33,15

Total votos Votos Votos


Deputados RML x Londrina % %
PR RML Londrina
Antonio Casemiro Belinati (PP) 81.157 78.429 96,64 68.299 84,16
Luiz Eduardo Cheida (PMDB) 39.298 28.596 72,77 26.994 68,69
José Durval M. do Amaral (PFL) 46.476 23.891 51,41 3.776 8,12

Total votos Votos Votos


Deputados RMC x Curitiba % %
PR RMC Curitiba
Izabete Cristina Pavin (PMDB) 38.266 37.357 97,62 5.834 15,25
Cleusa Rosane R. Ferreira (PV) 18.844 18.176 96,46 2.653 14,08
Osmar Stuart Bertoldi (PFL) 27.385 26.146 95,48 22.627 82,63
Mauro R. Moraes e Silva (PMDB) 48.513 45.784 94,37 43.651 89,98
Edson Luiz Strapasson (PMDB) 38.645 36.408 94,21 4.301 11,13
Carlos Xavier Simões (PTB) 32.138 29.319 91,23 10.356 32,22
Luiz Carlos Martins (PDT) 54.520 48.779 89,47 31.982 58,66
Ney Leprevost Neto (PP) 53.471 46.581 87,11 37.348 69,85
Antonio Tadeu Veneri (PT) 28.204 22.967 81,43 17.094 60,61
Fabio de Souza Camargo (PFL) 37.973 22.903 60,31 19.712 51,91
Edson da Silva Praczyk (PRB) 38.645 21.066 54,51 13.225 34,22

Fonte: TSE (2010), adaptado por Damascena.

Carvalho (2003) estudou a composição avaliação para a geografia do voto do Estado


das bancadas ditas “metropolitanas” no Con- do Paraná, e se levarmos em conta o potencial
gresso Nacional brasileiro, nos pleitos de 1998, eleitoral das RMs, comparadas com a quanti-
2002 e 2006, testando a hipótese que contra- dade de deputados eleitos, verificaremos uma
ria, em princípio, os ditames da sociologia elei- sub-representação da RMs na Assembleia Es-
toral, ao apontar a sub-representação dessas tadual. De início, apenas em termos numéricos,
áreas mais desenvolvidas. Ao transferirmos a no pleito de 2006, as áreas metropolitanas que

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 97
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

teriam condições de eleger em torno de 23 de- naturais” perdem o “vigor” na captação de vo-
putados, elegeram 19. Ainda conforme Carva- tos. Ou seja, nas cidades border line da região
lho (2010), na bancada dita metropolitana, a metropolitana, o desempenho dos candidatos
quase totalidade dos deputados apresenta vo- com base em Maringá sofrem a concorrência
tação concentrada em um único município, que de outros deputados.
pode ser a capital do estado ou a cidade-polo: Mesmo que tenha ocorrido uma renova-
ção de 50% entre os quatro deputados eleitos
Ora, se os deputados metropolitanos,
ou o que poderíamos designar de nossa pela região metropolitana de Maringá em 2006
bancada metropolitana, tratam-se de re- em relação a 2002, podemos afirmar que, na
presentantes com votação concentrada prática, mais uma vez apenas a elite estava re-
em suas respectivas RMs, cabe por fim presentada. Talvez assim, sem qualquer ameaça
identificar a natureza – mais ou menos
de ruptura com as elites dominantes, estivesse
integrada dentro do espaço metropolita-
no – do município que recebe a maioria garantida a manutenção de práticas políticas
dos votos dos deputados dali egressos. tradicionais, comprovando que, ainda hoje, a
Selecionando dois pontos no tempo, as renovação em Maringá ainda é conservadora:
eleições de 1994 e a de 2006, verifica-
mos que nossa bancada metropolitana, [...] verificamos que a política local seguiu
além de concentrar a votação, tem seus um padrão recorrente na política nacio-
votos – de forma mais do que majoritá- nal, que é o de manter fortes contornos
ria – extraídos dos municípios-polo (em clientelistas e personalistas. Tal constata-
geral, as capitais dos estados) e das ção baseou-se numa prática dos políticos
áreas mais integradas das RMs. As áreas descompromissados com as bases por
menos integradas, mais periféricas das um lado, e, por outro, no limitado índice
nossas RMs pouco se acham representa- de cobranças por parte da sociedade em
das [...]. (Carvalho, 2010, p. 11) relação aos seus representantes. (Tonella,
1991, p. 160)
Essa constatação explicaria, a priori, a
falta de interesse na politização das questões Levando em conta a votação concentra-
metropolitanas, porque, segundo a literatura da na região, em especial na cidade-polo, e o
da conexão eleitoral, esses deputados estariam histórico dos eleitos mais votados na RMM,
“comprometidos” em atender as suas bases por sendo Ênio Verri (PT), Luiz Nishimori (PSDB),
meio de ações de natureza localista, em uma Dr. Batista (PMN), Cida Borghetti (PP) e Wil-
espécie de “paroquialismo metropolitano”. son Quinteiro (PSB), que assumiu há pouco
No caso da RMM, alguns deputados ob- menos de 18 meses do fim da legislatura, po-
tiveram votações expressivas e concentradas demos inferir, como sugere Carvalho (2009),
não só na cidade-polo, mas também em Saran- a conformação de uma “bancada metropo-
di e em Paiçandu, municípios conurbados com litana.” Porém, à medida que nos afastamos
Maringá. Analisando os dados, um fato que desses três municípios contíguos dentro da
“salta aos olhos” é que, à medida que se sai do RMM, verificamos votações significativas de
centro da RMM, Maringá, a votação dos depu- alguns deputados que não têm sua base elei-
tados que adotamos por seus “representantes toral na RMM, em alguns casos, superando os

98 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

candidatos tidos por “representantes naturais” cidades, votações maiores do que alguns candi-
da região metropolitana. datos que têm sua base em Maringá, o que não
Importante registrar que, dos treze mu- altera significativamente o quadro, pois a cida-
nicípios 3 que compõem a RMM, é apenas e de-polo tem o maior contingente de eleitores.
tão somente em três deles, Maringá, Paiçandu A concentração dos votos dos cinco de-
e Sarandi, os deputados Ênio Verri (PT), Cida putados eleitos mais votados na RMM, de
Borghetti (PP), Dr. Batista (PMN), Luiz Nishi- acordo com o critério de Carvalho (2010),
mori (PSDB) e Wilson Quinteiro (PSB) têm vo- permite assumir que os cinco deputados mais
tação absolutamente maior. Em alguns casos, a votados na RMM sejam considerados “deputa-
votação de pelo menos um dos quatro é me- dos metropolitanos”, porque, do total de votos
nor que a de deputados “estranhos” à região. obtidos na região, todos fizeram mais de 50%
No caso, em Ângulo, Antonio Martins Anibelli desses votos na cidade-polo.
(PMDB) teve 39,97% dos votos nominais, se- É importante observar que, dos quatro
guido por José Durval Matos Amaral (DEM), candidatos mais votados na região metro-
com 15,16% dos votos nominais em contras- politana de Maringá, o deputado Dr. Batista
te com Cida Borgheti (PP), que teve a terceira (PMN) apresentou a maior concentração de
maior votação, 9,26% dos votos nominais. Já votos na RMM (93,68%), mas foi Wilson Quin-
em Astorga, José Durval Matos Amaral (PMDB) teiro (PSB) quem apresentou o perfil de votos
obteve 13,43%, e Luís Nishimori (PSDB) 7,34% mais concentrado na cidade-polo (72,42%),
dos votos nominais. No município de Itambé, demonstrando um padrão mais concentrado.
a situação se repete, demonstrando uma forte Cida Borghetti (PP) foi a mais votada entre os
votação de José Durval Matos Amaral (PMDB), quatro no Estado. Reeleita, ampliou sua base
com 21,78%, enquanto Cida Borgheti (PP) teve eleitoral, tendo a terceira menor concentração
19,29% dos votos nominais. dos seus votos tanto na região metropolitana
Mandaguari confirma a tendência de (77,26) quanto na cidade-polo (49,30%). Já
dispersão de votos dos deputados de Maringá, Luis Nishimori (PSDB), também no seu segun-
mas chama atenção a alta fragmentação dos do mandato, é o deputado da região metropo-
votos, uma vez que possui um eleitorado de litana que tem o perfil mais disperso, apresen-
20.549 votantes, e a maior votação foi de Luis tando o menor índice de concentração tanto
Carlos Caíto Quintana (PMDB), com 5,14% dos na RMM (64,27%), ainda sim bastante alta,
votos nominais, perfazendo apenas 953 votos. como na cidade-polo (33,15%). Entretanto, no
É possível constatar que, dos cinco deputados município de Marialva, seu reduto eleitoral, o
eleitos mais votados, quatro deles têm sua ba- deputado teve votação maior que e de todos
se eleitoral na cidade-polo, Maringá, e apenas os outros juntos, 6.090 votos, e Nishimori (PS-
um, Luis Nishimori (PSDB), teve boa votação, DB) também demonstrou agregar os votos da
mas seu voto é mais disperso. colônia japonesa, muito grande na região nor-
Conforme a análise é feita saindo da te do Paraná.
RMM e da “zona de influência” da cidade-polo, Analisando a concentração dos votos dos
outros candidatos conseguem, em algumas deputados estaduais eleitos, e considerando-se

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 99
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

que Cida (PP), Ênio (PT), Dr. Batista (PMN) e Nishimori (PSDB) também demonstra agregar
Quinteiro (PSB) residem, votam e têm repre- os votos da colônia japonesa, muito grande na
sentações políticas em Maringá, à exceção de região norte do Paraná.
Nishimori (PSDB), que tem empresa em Marial- A região metropolitana de Londrina é ce-
va, é possível inferirmos que a predominância nário de um fato que confirma a tese defendida
das elites políticas da cidade-polo é muito sig- por Carvalho (2009) de que a sub-representa-
nificativa e decisiva. Por outro lado, os demais ção das grandes cidades e das regiões metro-
doze municípios que fazem parte da RMM, a politanas é intrínseca à natureza do sistema
exemplo de Sarandi e Mandaguari, que contam eleitoral representativo brasileiro. Contando
com o segundo e terceiro maiores eleitorados com oito municípios que representam um po-
da região, respectivamente, estas sim estariam tencial eleitoral de 433.187 votos válidos para
sub-representadas. deputado estadual, a região metropolitana de
Conforme demonstra o Quadro 1, a Londrina elegeu três deputados. Ao comparar-
concentração dos votos dos cinco deputados mos com a região metropolitana de Maringá,
eleitos mais votados na RMM, de acordo com que, mesmo tendo um número em torno de
o critério de Carvalho (2010), permite assumir 29,12% a menos de eleitores (306.168 votos
que sejam considerados “deputados metropoli- válidos para deputado estadual), elegeu quatro
tanos”, visto que, do total de votos obtidos na deputados e um suplente que mais tarde assu-
região, todos fizeram mais de 50% desses vo- miu o mandato, é possível inferir uma conside-
tos na cidade-polo. Interessante notar que, dos rável sub-representação da região metropolita-
quatro candidatos mais votados na RMM, o de- na de Londrina.
putado Dr. Batista (PMN) apresentou a maior O mais votado da RML foi Antonio Be-
quantidade de votos na RMM (93,68%), porém linati (PP), que obteve 78.429 votos válidos,
foi Wilson Quinteiro (PSB) quem apresentou o o que representa 18% do total da região me-
perfil de votos mais concentrado na cidade- tropolitana. O segundo deputado mais votado
-polo (72,42%). Cida Borghetti (PP) foi a mais na RML foi Luiz Eduardo Cheida (PMDB). Co-
votada entre os quatro no estado. Reeleita, am- mo deputado eleito pela RML em 2006, Cheida
pliou sua base eleitoral, tendo a terceira menor (PMDB) também obteve bom desempenho na
concentração tanto na região metropolitana cidade de Londrina (10,61%), tendo uma vo-
(77,26%), quanto na cidade-polo (49,30%). Já tação muito fraca nas demais cidades da RML.
Luis Nishimori (PSDB), também no seu segundo O terceiro deputado eleito mais votado, José
mandato, é o deputado da região metropoli- Durval Amaral (PFL, hoje DEM), obteve 51,41%
tana que tem o perfil mais disperso, apresen- dos votos válidos na RML, nesse que seria seu
tando o menor índice de concentração tanto quinto mandato consecutivo como deputado
na RMM (64,27%), ainda sim bastante alta, estadual, mas poucos votos na cidade-polo.
como na cidade-polo (33,15%). Entretanto, no Por fim, dos três deputados eleitos e mais
município de Marialva, seu reduto eleitoral, votados na RML, apenas Durval Amaral (PFL),
o deputado com votação maior que de todos apesar da votação concentrada na RML, não
os outros juntos, e mesmo com 6.090 votos, apresenta o mesmo desempenho na cidade-

100 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

-polo, tendo um perfil de votação mais disperso ideológica; entretanto, não tem se revertido em
pelos demais municípios, em especial Cambé, números suficientes para eleger representantes
segundo maior eleitorado da RML. da temática.
No caso da RMC, onze deputados tiveram
mais de 50% da votação na região metropoli-
tana, resultando, contudo, em pelo menos três
cenários; Isabete Pavin (PMDB), Cleusa Ferreira
Produção legislativa
(PV), Carlos Simões (PTB) e Edson Strapasson
dos deputados metropolitanos
(PMDB) apresentam-se como os deputados de
caráter metropolitano, com a maioria dos votos Para demonstrar melhor os desdobramentos da
obtidos na região metropolitana, mas não con- conexão eleitoral e da concentração dos votos
centrados na cidade-polo. O segundo caso cor- dos deputados na RMM e na cidade-polo, ana-
responde às votações de Osmar Bertoldi (PFL) lisaremos os projetos de lei propostos (Quadro
e Mauro Moraes (PMDB), os quais apresentam 2). É possível perceber com mais clareza como
as mesmas características de votação restrita se dá a ação localista nas proposições. Para
à RMC, mas com mais de 80% dos votos em tanto, apresentaremos as proposições segundo
Curitiba. Os demais compõem um quadro inter- sua natureza e recorrência, divididas em qua-
mediário de votações mais dispersas em todo o tro linhas gerais, e primeiramente classificare-
espectro metropolitano. mos os projetos de lei que declaram entidades
Como Carvalho sugere, a concentração sem fins lucrativos como sendo de “utilidade
de votos dos deputados ditos “metropolitanos” pública”. Esses projetos são aprovados sem
nas cidades-polo caracteriza um situação não dificuldade no plenário, pois em sua imensa
prevista na literatura da sociologia eleitoral: maioria contemplam entidades e organizações
da base eleitoral do deputado. Assim, nos dete-
[...] estaríamos, então, diante de um hí-
remos mais nesse tipo de projetos por entendê-
brido perverso, não previsto pela tradição
de nossa sociologia eleitoral: a sub-repre- -los como indicadores da ação paroquialista,
sentação das áreas urbanas, de um lado, e uma vez que as entidades passam a gozar de
o paroquialismo metropolitano, de outro. benefícios do Executivo Estadual, com maior
Embora de origem urbana, a representa- acesso a políticas públicas (Cervi, 2009).
ção metropolitana no Brasil, ao concen-
Também agruparemos os projetos de lei
trar sua votação no espaço geográfico de
um único município, se moveria – tal qual que se destinam a prestar homenagens em
os congêneres das áreas rurais pela lógica geral póstumas (nominando ruas, estradas,
do particularismo, deixando fora de sua escolas, prédios públicos); leis que criam da-
agenda temas de natureza universalista, tas comemorativas e leis que concedem títulos
como a governança metropolitana. (Car-
para homenagear personalidades. Essas leis
valho, 2009, p. 369)
também contam com alta taxa de aprovação,
O pressuposto é que o tema metropoli- porque seus efeitos, na prática, são inócuos e
tano chama a atenção de um eleitor de perfil não implicam dispêndio de recursos e servem
mais avançado, com um voto de extração mais apenas para melhorar a imagem do deputado.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 101
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

Consideraremos as leis que criam, alteram ou mandato, é a deputada mais ligada às ques-
regulamentam políticas públicas e programas, tões metropolitanas.
envolvendo temas como saúde, educação, meio O segundo tipo de projeto de lei mais
ambiente, direito do consumidor, entre outros. proposto foi criação, alteração ou regulamen-
Essas proposições são caracterizadas, por sua tação de programas e políticas públicas (saú-
natureza, obtêm baixa taxa de aprovação por de, educação, meio ambiente, etc.), tendo 61
entrarem em conflito com as diretrizes aprova- apresentações ou 21,18% do total. O deputado
das por lei complementar ou “simplesmente, que mais apresentou proposições desta natu-
não são consensuais à maioria dos parlamen- reza foi o deputado Dr. Batista (PMN), sendo a
tares (sofrem o dilema da ação coletiva e a maioria deles ligada à temática da saúde, sua
dispersão de preferências entre os deputados)” área de atuação. Dr. Batista costuma reforçar
(Veiga et al., 2008, p. 18). esta identificação, ao percorrer o estado dando
Por fim, classificamos as propostas de palestras sobre vários temas.
projeto de lei que afetam de forma direta a ad- A criação de datas comemorativas,
ministração pública, instituindo cargos e alte- concessão de títulos e denominação de ruas,
rando salários ou regulamentando questões de com 42 solicitações, ou 14,58% do total.
natureza orçamentária e fiscal, como a criação Nesse tipo de projeto de lei, o deputado que
e isenção de tributos. Esses projetos de lei são mais apresentou propostas foi Luiz Nishimori
na maioria arquivados, por tratarem de maté- (PSDB), muitos deles relacionados com a colô-
rias legislativas cuja prerrogativa de proposi- nia japonesa, de todo estado, justificando seu
ção é exclusiva do executivo estadual (Veiga perfil de votação mais disperso. Em relação às
et al., 2008). propostas de lei que tratam da administração
O Quadro 2 demonstra a existência de pública (política fiscal, orçamentária, tributá-
relevante quantidade de projetos de declara- ria), na prática prerrogativas do Executivo e de
ção de entidades de utilidade pública de tal difícil aprovação, apenas 25 foram apresenta-
forma que, do total de 288 projetos propos- das, ou seja, 8,6% do total. Por fim é necessá-
tos pelos deputados da RMM, 62 são dessa rio destacar que, dos 288 projetos de lei apre-
natureza, ou seja, 21,53%. O deputado que sentados (não consideramos sua aprovação ou
mais apresentou este tipo de projeto foi Cida arquivamento), apenas quatro, ou seja, 1,39%
Borghetti (PP) com 23 proposições, sendo 16 versavam sobre a questão metropolitana, sen-
deles para entidades da cidade-polo, Maringá, do dois de Cida Borghetti (PLs 310/2007 e
o que representa 69,57% do total de projetos 344/2007) que incluem municípios na RMM.
de concessão do título de entidade pública, Luiz Nishimori (PSDB ) apresentou uma pro-
apresentados pela deputada. Como já ressal- posta (PL 129/2008), que também inclui mu-
tamos, esse tipo de projeto de lei permite às nicípios na RMM, bem como Wilson Quinteiro
entidades gozarem de benefícios do Executi- (PSB), com a PL 105/2010, que dispõe sobre o
vo Estadual e terem maior acesso a políticas monitoramento da qualidade do ar da região
públicas. Cida Borghetti (PP), no seu segundo metropolitana de Maringá.

102 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

Quadro 2 – Projetos de lei apresentados pelos deputados da RMM

Cida Borghetti (PP) 73 PLs


Natureza da proposta Recorrência %

Declaração de entidade de utilidade pública 4 27 36,99

Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 13 7,81


Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
23 31,51
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 6 8,22
Outros 4 5,48
Dr. Batista (PMN) 60 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 8 13,33
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 8 13,33
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
29 48,33
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 14 23,33
Outros 1 1,67
Enio Verri (PT) 9 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 7 77,78
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 0 0,00
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
0 0,00
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 0 0,00
Luiz Nishimori (PSDB) 73 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 17 29,31
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 18 31,03
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
5 25,86
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 3 5,17
Outros 5 8,62
Wilson Quinteiro (PSB) 13 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 3 23,08
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 3 23,08
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
4 30,77
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 2 15,38

Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 103
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

Quadro 3 – Projetos de lei apresentados pelos deputados da RML

Antonio Belinati (PP) 80 PLs


Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 12 15,00
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 4 5,00
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
36 45,00
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 23 28,75
Outros 5 6,25
Luiz Cheida (PMDB) 45 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 20 44,44
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 3 6,67
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
19 42,22
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 2 4,44
Outros 1 2,22
Durval Amaral (DEM) 17 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 6 35,29
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 2 11,76
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
1 5,88
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 6 35,29
Outros 2 11,76

Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena.

Os dados do Quadro 3 permitem consta- maioria delas relacionadas à regulamentação


tar que de um total de 142 propostas, 56, ou de atividades profissionais, e isenção do pa-
seja, 39,44% do total de projetos de lei apre- gamento de taxas e cobranças de pedágio. Os
sentados pelos representantes da RML, dizem projetos de declaração de entidades de utili-
respeito à criação, alteração ou regulamenta- dade pública ficam em segundo lugar, com 38
ção de programas e políticas públicas. O depu- recorrências, ou 26,76% do total, e o deputado
tado que mais apresentou proposições desta que mais apresentou este tipo de projeto foi
natureza foi o deputado Antonio Belinati (PP), Luiz Cheida (PMDB), com 20 projetos de lei, re-
com 19 propostas (33,93% do total), sendo a presentando 52,63% do total dessa natureza.

104 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

Conforme ressaltamos anteriormente, sua aprovação ou arquivamento), apenas um


esse tipo de projeto de lei permite às entida- (0,70% do total), versava sobre a questão me-
des condição junto ao Executivo, tendo maior tropolitana, sendo de autoria de Antonio Be-
acesso a políticas públicas e que assumimos linati (PP), sem dúvida o deputado que mais
como passíveis de práticas paroquialistas, pois projetos encaminhou à mesa.
atendem as demandas específicas da base do Assim, diferente da região metropolitana
deputado. Assim, dos 20 projetos propostos de Maringá, os deputados da região metropoli-
por Cheida (PMDB), 14 são para entidades de tana de Londrina apresentaram interesse maior
Londrina, sua base eleitoral. As propostas que por temas ligados à criação, alteração ou regu-
tratam de administração pública (política fis- lamentação de programas e políticas públicas.
cal, orçamentária, tributária), e de competên- Principalmente em virtude da profusão dos
cia do executivo, ocupam o terceiro lugar entre 80 projetos apresentados por Antonio Belinati
as preposições dos deputados da RM, perfa- (PP), que vão desde a colocação de câmeras
zendo 31 projetos de lei, ou 21,83% do total em todas as dependências das escolas públi-
de projetos de lei elaborados. Novamente, foi cas, até a garantia da utilização dos elevadores
o deputado Antonio Belinati (PP) quem mais dos condomínios residenciais para pessoas de
enviou esse tipo de proposta, 23, ou 93,55% todas as classes sociais. Entretanto, é importan-
do total desta natureza. Por fim, a criação de te ressaltar que a prática de declarar entidades
datas comemorativas, concessão de títulos de utilidade pública teve a segunda maior re-
e denominação de ruas foi a que apresentou corrência entre os deputados eleitos pela RML.
menos recorrências, nove, respondendo por A exemplo de Cheida (PMDB), o deputado
6,33% do total, tendo no deputado Antonio Belinati (PP) utilizou esta mesma estratégia,
Belinati (PP) o maior propositor deste tipo de concedendo essa “benesse” para 12 entidades,
projeto, com quatro propostas. Dos 142 pro- porém de forma não tão concentrada em Lon-
jetos de lei apresentados (não consideramos drina (duas entidades apenas).

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 105
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

Quadro 4 – Projetos de lei apresentados pelos deputados da RMC

Rosane Ferreira (PV) 40 PLs


Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 15 37,50
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 5 12,50
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
15 37,50
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 1 2,50
Outros 4 10,00
Osmar Bertoldi (PFL) 77 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 12 15,58
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 0 0,00
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
43 55,84
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 13 16,88
Outros 9 11,69
Ney Leprevost (PP) 162 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 19 11,73
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 46 28,40
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
37 22,84
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 22 13,58
Outros 38 23,46
Mauro R. Moraes e Silva (PMDB) 84 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 5 5,95
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 1 –
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
30 –
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 15 –
Outros 33 –
Luiz Carlos Martins (PDT) 15 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 5 33,33
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 3 20,00
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
0 0,00
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 3 20,00
Outros 4 26,67

106 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

Isabete Pavin (PMDB) 13 PLs


Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 2 15,38
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 3 23,08
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
3 23,08
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 2 15,38
Outros 3 23,08
Fabio de Souza Camargo (PDT) 54 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 16 29,63
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 9 16,67
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
15 27,78
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 6 11,11
Outros 8 14,81
Edson Luiz Strapasson (PMDB) 20 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 9 45
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 4 20
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
2 10
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 4 20
Outros 1 5
Edson da Silva Praczyk (PRB) 24 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 7 29,17
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 1 4,17
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
6 25
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 1 4,17
Outros 9 37,50
Carlos Xavier Simões (PTB) 7 PLs
Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 1 14,29
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 2 28,57
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
3 42,86
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 0 0
Outros 1 14,29

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 107
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

Antonio Tadeu Veneri (PT) 41 PLs


Natureza da proposta Recorrência %
Declaração de entidade de utilidade pública 17 41,46
Criação de datas, concessão de títulos e denominação de ruas 1 2,44
Criação, alteração ou regulamentação de programas e políticas públicas (saúde, educação, meio
6 14,63
ambiente, etc.)
Leis que tratam da administração pública (política fiscal, orçamentária, tributária) 8 19,51
Outros 9 21,95

Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena.

O total de projetos de lei apresentados característica. Individualmente os parlamenta-


pelos deputados considerados metropolitanos res que mais apresentaram foram: Tadeu Veneri
foi de 214. Individualmente, apresentaram (41,5%), Rosane Ferreira (37,5%) e Luis Carlos
maior número de PL, pela ordem, Ney Lepro- Martins (33,3%). Os dois últimos não foram
vost (162), Mauro Moraes (84), Osmar Bertoldi reeleitos. Curi, campeão de votos no Estado e
(77), Fábio Camargo (54) e Tadeu Veneri (41). conhecido por práticas clientelistas, apresentou
Não está em questão a qualidade das proposi- 44,16% de PLs em busca de benefícios a enti-
turas e, pela lógica do eleitor, foram bem suce- dades assistenciais.5
didos em apresentar grande volume de propos- Na análise dos projetos de lei apresen-
tas, pois todos os listados foram reeleitos. tados pelos deputados da 16ª legislatura da
Na linha de argumentação que aponta ALEP eleitos pelas RMs estudadas, reforça a ar-
que a solicitação de declaração de entidades gumentação de que o tema metropolitano não
de utilidade públicas, sem maiores critérios, re- encontra lugar na agenda dos deputados. No
força práticas clientelistas, entre os deputados período, dez deputados apresentaram projetos
listados, em torno de 24% foram PLs com esta de lei sobre o tema, conforme Quadro 5.

108 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

Quadro 5 – PLs apresentados versando sobre o tema metropolitano


Deputado PLs Conteúdo

PL 257/2010 - Institui, no estado do Paraná, o programa “tarifa reduzida” no transporte


PL 726/2007 coletivo metropolitano das regiões metropolitanas no estado do Paraná.
Rosane Ferreira (PV)
- Dispõe sobre o monitoramento em tempo real da qualidade do ar da região
metropolitana de Curitiba.

PL 368/2010 - Autoriza o poder executivo criar a linha do turismo nos municípios da


PL367/2010 região metropolitana de Curitiba.
PL366/2010 - Autoriza a criação e instalação de centros integrados de atendimento ao
Osmar Bertoldi (DEM)
cidadão – CIAC – nos municípios da RMC.
- Institui os conselhos metropolitanos de segurança pública das regiões
metropolitanas do estado do Paraná, e dá outras providências.

PL 483/2008 - Cria uma central de tratamento de resíduos de Curitiba e região


Mauro Moraes (PMDB)
metropolitana de Curitiba – Comec.

PL 632/2007 - Autoriza o poder executivo a instituir a universidade estadual da


comunidade dos municípios da RMC, com sede no município de Faz, Rio
Grande.
PL 561/2007 - Autoriza o poder executivo a instituir a subdivisão policial do município de
Geraldo Cartário (PMDB) Fazenda Rio Grande, com atuação no âmbito da comarca e cidades vizinhas
na região metropolitana de Curitiba.
PL Complementar 8/2008 - Altera a redação da lei complementar nº 81, de 17 de junho de 1988,
alterada pelas leis complementares nºs 86/00 e 91/02, incluindo o município
de Alvorada do Sul, entre os da região metropolitana de Londrina.

PL Complementar 212/2008 Regionaliza a região metropolitana de Curitiba e seus conselhos deliberativo


Edson Strapasson (PMDB) e consultivo e define o modelo de gestão das funções públicas de interesse
comum metropolitanas.

PL Complementar 175/2010 - Altera o art. 1º da lei complementar nº 81, de 17/6/88, que foi alterada
pelas leis complementares nºs 86/00 e 91/02, que institui a região
metropolitana de Londrina (constituída pelos municípios de Londrina,
Cambé, Bela Vista do Paraíso, Jataizinho, Ibiporã, Rolândia, Sertanópolis,
Tamarana, Primeiro de Maio e Alvorada do Sul).
PL Complementar 231/2009 - Altera o art.1º da lei complementar nº 81/88, que instituiu a região
Alexandre Curi (PMDB)
metropolitana de Londrina (inclusão do município de Primeiro de Maio).
PL Complementar 26/2009 - Institui a região metropolitana de Umuarama e dá outras providências
(Umuarama, Alto Paraíso, Cruzeiro do Oeste, Ivate, Perobal, Maria Helena,
Xambrê, Altônia, Alto Piquiri, Brasilândia do Sul, Esperança Nova, Cafezal
do Sul, Cidade Gaúcha, Douradina, Francisco Alves, Icaraíma, Iporã, Mariluz,
Nova Olímpia, Pérola, São Jorge do Patrocínio, Tapejara e Tapira).

PL Complementar 344/2007 - Altera a redação do art. 1º da lei complementar nº 83/1998, região


metropolitana de Maringá (inclui os municípios de Bom Sucesso, Jandaia do
Sul, Cambira, Presidente Castelo Branco, Flórida, Santa Fé, Lobato, Munhoz
Cida Borghetti (PP)
de Mello, Floraí, Atalaia, São Jorge do Ivaí e Ourizona.
PL Complementar 310/2007 - Altera a redação do art. 1º da lei complementar nº 83/1998 (região
metropolitana de Maringá).

PL Complementar 105/2010 - Dispõe sobre o monitoramento da qualidade do ar da região metropolitana


Wilson Quinteiro (PSB)
de Maringá em tempo real.

PL Complementar 129/2008 - Propõe ampliação dos municípios que compõem a região metropolitana
Luiz Nishimori (PSDB)
de Maringá.

PL Complementar 328/2009 - Estabelece a criação do passe livre para o cidadão desempregado


Antonio Belinati (PP) (empresas de transporte coletivo terão 30 passagens gratuitas para
trabalhadores desempregados residentes nas regiões metropolitanas).

Fonte: ALEP (2011), adaptado por Damascena.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 109
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

A deputada Cida Borghetti (PP) apre-


Considerações finais
sentou dois projetos de lei complementar re-
ferentes à região metropolitana de Maringá,
Neste trabalho abordamos dois assuntos que, a
(310/2007 e 344/2007), que incluem municí-
priori, parecem distintos, mas na prática estão
pios na RMM. Luiz Nishimori (PSDB) apresen-
intimamente ligados: regiões metropolitanas e
tou um projeto de lei complementar 129/2008,
representação política. Em um levantamento
também ampliando os municípios que com-
da literatura foi possível compreender as ra-
põem a região metropolitana de Maringá. Wil-
zões do descaso com o tema metropolitano, e
son Quinteiro (PSB), que assumiu o cargo em
da consequente ausência da governança me-
dezembro de 2009, apresentou o projeto de lei
tropolitana na agenda dos gestores. O argu-
105/2010, que dispõe sobre o monitoramento
mento central que orientou este trabalho é que
da qualidade do ar da região metropolitana de
os problemas estruturais – mobilidade popu-
Maringá em tempo real.
lacional, moradia, saneamento, sistema viário,
Pela Região Metropolitana de Londrina, violência, entre outros – adquirem a dimensão
no período de 2007-2011, apenas o deputado metropolitana, mas a forma de atuação dos
Antônio Belinati (PP) apresentou proposta re- parlamentares é local e paroquial, de atendi-
lacionada à questão metropolitana, o projeto mento às bases municipais.
de lei 328 /2009, que estabelece a criação de Às demais cidades que compõem as re-
30 passes livres mensais pelas empresas de giões metropolitanas de Curitiba, Maringá e
transporte coletivo, para o cidadão desempre- Londrina, resta um papel secundário; muitas
gado residente nas regiões metropolitanas vezes como fornecedoras de mão de obra, car-
A maioria dos PLs é de autorização do regam o ônus do déficit de programas e políti-
poder executivo e não aponta destinação de cas públicas. A sub-representação política des-
recursos públicos para a ação, o que leva o exe- tes municípios certamente faz parte da causa
cutivo a vetar a propositura. dos muitos problemas sociais enfrentados por
Observe-se que Geraldo Cartário e Curi, estas populações, principalmente no que se re-
dois deputados não listados como de caráter fere à ausência do Estado.
metropolitano, apresentaram projetos sobre Neste sentido, os números indicam a
o tema. Esse último tenta instituir uma nova falta de um projeto mais amplo de cooperação
região metropolitana, a de Umuarama. Incluir e integração. As elites políticas das regiões
municípios nas RMs ou criar novas aparecem metropolitanas de Maringá e Londrina opta-
aos parlamentares como um mecanismo de an- ram por priorizar suas práticas personalistas,
gariar apoios de prefeitos e do eleitorado, uma seguindo um cálculo puramente eleitoral, o
vez que o imaginário político aponta para um que acaba pulverizando seu potencial de re-
ganho de status quando o município pertence presentação ao eleger um número bastante
a alguma RM, ainda que a prática demonstre baixo de deputados.
que não nenhum ganho mais substancial por Neste estudo, os dados referentes à
esta forma de configuração de território. Região Metropolitana de Maringá (RMM)

110 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

contradizem nossa hipótese inicial de sub- Em relação ao novo cenário da eleição de


-representação, demonstrando, ao contrário, 2010, a RMM, que contava com cinco deputa-
que na 16ª legislatura (2007-2010), se verifica dos eleitos em 2006, não conseguiu repetir o
uma sob-representação da RMM na assem- mesmo desempenho, elegendo apenas três de-
bleia legislativa do Paraná. Com seus 402.582 putados: Dr. Batista (PMN), Evandro Jr. (PSDB)
eleitores em 2006, a região metropolitana de e Ênio Verri (PT), caracterizando uma sensível
Maringá elegeu quatro deputados, tendo um perda de sua representação.
quinto assumido a vaga de suplente. Assim, No caso da RML, que apesar de seu elei-
grosso modo, e apenas com fins demonstra- torado ser superior ao da RMM, já em 2006
tivos, a RMM teria um deputado para cada não tinha conseguido traduzir isto em uma
80.516 habitantes. maior representatividade política na esfera
Por outro lado, a Região Metropolitana estadual, elegendo apenas dois representan-
de Londrina confirma nossa hipótese de sub- tes. Seguindo a tendência de Maringá, a RML
-representação, pois, mesmo tendo um eleito- viu sua representação encolher ainda mais em
rado de 513.515 votantes (21,6% maior que o 2010, reelegendo apenas dois deputados, Luiz
de Maringá), conseguiu eleger apenas três de- Cheida (PMDB) e Durval Amaral (DEM). Belinati
putados estaduais, um para cada 171.171 ha- (PP) desistiu de se candidatar com receio da lei
bitantes, ou seja, mais que o dobro de eleitores de ficha limpa.
por deputado do que a RMM. A RMC tem um histórico mais consolida-
Os dados apontam para o fato de que a do de tentativas de integração metropolitana
característica presente nas RMs estudadas é a e a Coordenação da Região Metropolitana de
sub-representação das cidades menores em re- Curitiba – Comec ser a única das coordenações
lação ao poder econômico e social das cidades- metropolitanas com dotação orçamentária
polo, que se traduz também em poder político condizente com a relevância de sua área de
das suas elites, organizadas em pequenos gru- abrangência. Interessante observar que o único
pos na disputa pela representação. deputado que se identificava com a temática
Com relação a nossa segunda hipótese, metropolitana, Luis Strapasson, não foi reeleito.
de que haveria um paroquialismo metropo- Em 2010, apesar de o índice de renovação da
litano “de fato”, o resultado do estudo dos ALEP ser de apenas um terço de parlamentares,
projetos apresentados, no qual a recorrência dos deputados metropolitanos foram reeleitos
e a ocorrência dos projetos de concessão de somente cinco: Osmar Bertoldi (DEM), Ney Le-
título de utilidade pública para as bases elei- provost (PP), Mauro Moraes (PSDB), Fabio Ca-
torais sugerem práticas localistas paroquia- margo (PTB) e Tadeu Veneri (PT).
listas, uma vez que estas entidades passam a As questões apresentadas objetivam a
usufruir de benefícios e têm acesso mais fácil reflexão sobre a pouca integração, coopera-
a recursos públicos. Confirmam-se as teses de ção e falta de políticas públicas conjuntas en-
Carvalho, de predominância do particularismo tre as regiões metropolitanas. Parece-nos que
legislativo e do predomínio do voto personali- a ausência do tema metropolitano da agenda
zado na arena eleitoral. dos gestores se dá pela falta de um arcabouço

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 111
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

legislativo que lhes forneça suporte, demons- centros urbanos, que enfrentam problemas ca-
trando quão importante é a representação des- da vez mais complexos, requerendo soluções
sas regiões na arena legislativa. Assim, gestão conjuntas e integradas, e não apenas servindo
metropolitana e representação têm implicação a interesses de acúmulo de capital político com
direta na vida cotidiana do cidadão destes vistas à reeleição.

Jéferson Soares Damascena


Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá e Pesquisador do Observatório
das Metrópoles, núcleo Maringá. Maringá, Paraná, Brasil.
jefersonsd@yahoo.com.br

Celene Tonella
Cientista político. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Estadual de Maringá. Maringá, Paraná, Brasil.
celenetonella@yahoo.com.br

Notas
(1) Ressaltamos, porém, que, devido à falta de colaboração dos responsáveis pela estrutura da
Assembleia Legisla va do Paraná-ALEP, não vemos acesso aos dados referentes às emendas ao
orçamento por parte dos deputados. Sem dúvida, esses dados seriam de extrema relevância na
iden ficação de eventuais prá cas distribu vas e clientelistas.

(2) Abordagem desenvolvida em Damascena, J. (2011).

(3) A RMM conta hoje, oficialmente, com 25 municípios. A adoção de 13 municípios corresponde à
configuração existente em 2006.

(4) A declaração de en dade de u lidade pública pode ser pleiteada nos três níveis de governo. Por
meio desse reconhecimento, as en dades podem obter verbas, isenções, receber doações e
demais bene cios do governo. No caso do estado do Paraná, a legislação é bastante an ga, Lei
6.944, de 10/1/78, parcialmente alterada pela Lei 8589, de 22/10/1987. A Lei 6.944 não define
o po de bene cio que o poder público estadual pode conceder às en dades. Define quais os
requisitos a serem obedecidos para obter a declaração. O ar go 1º, que define os requisitos,
em inciso IV, que comprovadamente, mediante relatório apresentado, promove a educação, a
assistência social ou exerce a vidades de pesquisas cien ficas, de cultura, inclusive ar s cas ou
filantrópicas, de caráter geral ou indiscriminatório.

(5) O deputado Alexandre Curi foi o campeão de votos no Estado, sendo reeleito com 131.988 votos.
Na RMC fez 26.377 votos, mas representou apenas 20% do total. Não se caracteriza, portanto,
como deputado metropolitano.

112 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
O peso do voto metropolitano

Referências
ALEP - Assembleia Legisla va do Paraná: pesquisa legisla va (2011). Disponível em: h p://www.alep.
pr.gov.br/a vidade-parlamentar/pesquisa-legisla va. Acesso em: 12/1/2011.

AMES, B. (2003). Os entraves da democracia no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGV.

ANASTASIA, F. e NUNES, F. (2006). “A reforma da representação”. In: AVRITZER, L. e ANASTASIA, F.


Reforma Polí ca no Brasil. Belo Horizonte, Editora UFMG.

CARVALHO, N. R. (2003). E no início eram as bases: geografia polí ca do voto e comportamento


legisla vo no Brasil. Rio de Janeiro, Revan.

______ (2009). Geografia polí ca das eleições congressuais: a dinâmica de representação das áreas
urbanas e metropolitanas no Brasil. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 367-384, jul/
dez. Acesso em: 13/8/2010.

______ (2010). TR- Localismos, geografia social do voto e governança metropolitana. Observatório
das Metrópoles, mimeo.

CERVI, E. (2009). Produção legisla va e conexão eleitoral na Assembléia Legisla va do Estado do


Paraná. Revista Sociologia e Polí ca. Curi ba, v. 17, n. 32, pp. 159-177.

DAMASCENA, J. (2011). O peso do voto metropolitano: a representa vidade das regiões metropolitanas
de Maringá e Londrina na Assembleia Legisla va do Paraná – ALEP. Dissertação de Mestrado.
Maringá, Universidade Estadual de Maringá.

FIGUEIREDO, A. C. e LIMONGI, F. (2002). Incen vos eleitorais, par dos e polí ca orçamentária.
DADOS – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 45, n. 2, pp. 303-344.

IBGE – Ins tuto Brasileiro de Geografia e Esta s ca (2010). Censo 2010. Disponível em: www.ibge.gov.
br/cidades. Acesso em: 18/10/2010.

LEMOS, L. B. de S. (2001). O congresso brasileiro e a distribuição de bene cios sociais no período


1988-1994: uma análise distribu vista. DADOS-Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 44,
n. 3, pp. 561-605.

LIMONGI, F. (2006). Presidencialismo, coalizão par dária e processo decisório. Novos Estudos Cebrap,
n. 76, pp. 17-41.

LOUREIRO, M. R. (2009). Interpretações contemporâneas da representação. Revista Brasileira de


Ciência Polí ca. Brasília, n. 1, pp. 63-93.

MAGDALENO, F. S. (2010). A territorialidade da representação polí ca – vínculos de compromissos dos


deputados fluminenses. São Paulo, Annablume.

MAINWARING, S. (2001). Sistemas par dários em novas democracias: o caso do Brasil. Rio de Janeiro,
Editora da FGV.

MANIN, B. (1995). As metamorfoses do governo representa vo. Disponível em: h p://www.anpocs.


org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/rbcs29_01.htm. Acesso em: 13/8/2010.

MOURA, R. e RODRIGUES, A. L. (org.) (2009). Como andam as metrópoles – Curi ba e Maringá. Rio de
Janeiro, Letra Capital/Observatório das Metrópoles.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012 113
Jéferson Soares Damascena e Celene Tonella

NICOLAU, J. (2007). “O Sistema Eleitoral Brasileiro”. In: AVELAR, L. e CINTRA, A. O. (org.). Sistema
Polí co Brasileiro: uma introdução. São Paulo, UNESP.

OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES (2009). Relatório arranjos para a gestão metropolitana. Disponível
em: www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/relatorio_arranjos_gestao_metropolitana.pdf.
Acesso em: 8/6/2010.

RIBEIRO, L. C. Q. e PASTERNAK, S. (2009). Projeto de Pesquisa - Observatório das Metrópoles: território,


coesão social e governança democrá ca Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Curi ba, Porto
Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém, Natal, Goiânia e Maringá (2009-2013). Mimeo.

RODRIGUES, A. L. e TONELLA, C. (orgs.)(2010). Retratos da Região Metropolitana de Maringá: subsídios


para a elaboração de polí cas públicas par cipa vas. Maringá, Eduem.

SILVA, W. R. (2006). Para além das cidades – centralidade e estruturação urbana: Londrina e Maringá.
Tese de doutorado. Presidente Prudente, Universidade Estadual Paulista.

TONELLA, C. (1991). Poder local, par dos e eleições na reedição do pluripar darismo em Maringá,
Paraná – 1979/1988: um estudo de caso. Dissertação de mestrado. Campinas, IFCH.

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (2010). Disponível em: www.tse.gov.br. Acesso em: 8/10/2010.

URBINATI, N. (2006). O que torna a representação democrá ca? São Paulo, Lua Nova, n. 67.

VEIGA, L.F.; TOMIO. F. e DE PAULA, C. A. (2008). Conexão Eleitoral em uma Assembleia Legisla va: a
atuação do parlamentar e a tude do eleitor. Disponível em: www.cienciapoli ca.servicos.ws/
abcp2008/arquivos. Acesso em: 18/11/2010.

Texto recebido em 25/ago/2011


Texto aprovado em 12/out/2011

114 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 89-114, jan/jun 2012
Habitus, planejamento
e governança urbana
Habitus, planning and public governance
Nilton Ricoy Torres

Resumo Abstract
Este artigo é organizado em duas seções. A pri- This paper is organized in two sections. The
meira avalia as teses avançadas por Bourdieu, first deals with the propositions advanced by
formuladas a partir de sua teoria estrutural cons- Bourdieu by focusing on his theory of structural
trutivista. São analisados os conceitos de habitus, constructivism. It draws on Bourdieu's theory of
de "campo" e o da "dinâmica das lutas pelo poder habitus,” field" and "the dynamic of struggles and
e dominação". O objetivo é avaliar em qual medi- within the field" in order to assess the extent to
da as proposições de Bourdieu ajudam a enten- which Bourdieu constructs can help to understand
der a prática de planejamento urbano no Brasil. the dynamic of planning practice in Brazil. The
Na segunda parte são discutidas seis hipóteses second section evaluates six working hypothesis
elaboradas em torno dos conceitos de habitus e dealing with Bourdieu concepts of social field
campo social, de Pierre Bourdieu, que explicam a and habitus which explain the dialectical relation
relação dialética entre o agente e a estrutura. A between structure and agency in the planning
discussão é realizada tomando como referência process. The empirical analysis and the theoretical
a história da prática de planejamento brasilei- confrontations are simultaneously developed by
ra e, em particular, a de São Paulo. Os conceitos taking the experience of Brazilian planning practice
de habitus e de campo são abordados em deta- and particularly that of São Paulo city. The concepts
lhes e articulados aos conceitos de relações de of field and habitus in planning are analyzed in
poder, dominação e ao de lutas de classes, que detail, in articulation with the concepts of power,
são de especial importância para a compreensão domination and class struggle, which according
dos processos de mudança da estrutura social. O to Bourdieu, are central for understanding the
trabalho procura esboçar um esquema que possa process of change of the social structure. The
servir de referência para pensar a prática de pla- paper attempts to sketch a reference framework
nejamento como um campo de posições e de lutas for analyzing the practice of planning as a field
entre forças que buscam a conservação e forças of struggles between forces seeking to keep and
que buscam a transformação social. forces seeking to change the social structure.
Palavras-chave: habitus; campo social; planeja- Keywords: habitus; social field; planning; urban
mento; governança urbana; poder. governance; power.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Nilton Ricoy Torres

mas esboçar um esquema de interpretação a


Introdução
partir de alguns fatos e circunstâncias históricas,
de maneira a contribuir para o entendimento de
Este trabalho discute as práticas de planeja-
alguns aspectos da prática de planejamento co-
mento como governança dentro da administra-
mo governança urbana no Brasil.
ção pública, tomando por base os conceitos de
O teste dessas hipóteses é realizado a
habitus e de "campo social", desenvolvidos por
partir do cotejo com a realidade vivida pela
Pierre Bourdieu. O objetivo é identificar a natu-
prática de planejamento e governança urbana,
reza e o modus operandi dessa prática, tendo
tanto nos campos profissional como acadêmi-
em vista esclarecer o papel social dos agentes
co. Essas experiências se vinculam às práticas
de governança urbana nos processos de trans-
dos agentes nas universidades, nas instituições
formação das estruturas sociais. Os conceitos
públicas do estado ou nos movimentos sociais
de habitus e de campo social são analisados a
autônomos. A seguir, uma síntese operacional
partir das lutas travadas dentro do campo do
do método de Bourdieu é apresentada, com o
planejamento e da governança, lutas essas vol-
propósito de contribuir para o desenvolvimento
tadas para acumulação de poder e dominação.
de pesquisas em campos como geografia, ciên-
Para desenvolver este estudo são destacados e
cia da gestão, planejamento, políticas públicas
avaliados, na primeira parte do texto, os princi-
que têm como fundamento as questões sociais
pais conceitos da teoria estrutural construtivis-
no espaço urbano.
ta de Bourdieu. Na segunda parte são discuti-
das seis hipóteses acerca do planejamento e
da governança urbana como um campo social.
Essas hipóteses são extraídas das proposições Bourdieu e a metateoria
teóricas de Bourdieu e confrontadas com a rea- da prática
lidade da governança urbana que, no texto,
tem como base empírica de análise a experiên- O estruturalismo crítico de Bourdieu busca o
cia de planejamento e governança urbana na desvelamento da articulação entre os proces-
cidade de São Paulo. sos de mudança social e as estruturas objetivas
Articulando as ideias de revolução cien- subjacentes a esses processos pela análise dos
tífica e de superação de paradigmas de Kuhn mecanismos de dominação, de produção de
(1970) às de lutas, dentro do campo para su- ideias e da gênese das condutas. O principal
peração de habitus e posições de Bourdieu, o objetivo é superar a oposição entre objetivismo
estudo avalia em qual medida as práticas espe- e subjetivismo das ciências sociais. O conceito
cíficas dos gestores de planejamento, dentro do de habitus é desenvolvido como uma noção
campo da governança urbana, podem contribuir mediadora entre os determinismos estruturais
para transformar ou perpetuar as relações so- e comportamentais, com o objetivo de romper
ciais vigentes. Não se pretende, aqui, elaborar a dualidade de senso comum entre o agente e
uma resenha interpretativa da história do pla- a estrutura social. Ao captar “a interiorização
nejamento na administração pública no Brasil, da exterioridade e a exteriorização da

116 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana

interioridade”, o habitus busca articular o mo- da consciência que faz recair sobre o sujei-
do como a sociedade se torna depositada nos to a construção da realidade. O habitus é um
agentes sociais sob a forma de disposições esquema historicamente constituído de com-
duráveis e propensões estruturadas para pen- partilhamento generativo de percepções, de
sar, sentir e agir. Essas capacidades irão, então, apreciações e de categorizações, que serve pa-
guiá-los em suas respostas criativas aos cons- ra mediar entre a estrutura e a agência, isto é,
trangimentos e solicitações da estrutura social para conectar a estrutura social e o agente em
em que estão inseridos. um relacionamento dialético (Bourdieu, 1984;
O método de análise é empírico e sistêmi- Hillier e Rooksby, 2001, p. 2). Para Bourdieu, o
co e o pressuposto fundamental é que a dinâ- habitus é uma matriz de disposições, adquirida
mica social se dá no interior de um grupo social com as experiências sociais inculcadas e que
(campo), no qual os indivíduos (agentes), como pode ser entendida como sabedoria prática.
portadores de atributos específicos (habitus) , Essa matriz define os modos de perceber, sen-
estabelecem confrontos pela hegemonia do tir e pensar que levam o agente a atuar de de-
campo. O campo é composto por valores ou terminada maneira diante de certas situações.
tipos específicos de capital produzidos pelo As disposições não são mecânicas nem deter-
campo. A dinâmica social é marcada por lutas ministas, pois resultam de um processo com-
entre os agentes que buscam a manutenção plexo de mútua incorporação e interdepen-
ou alteração das formas de distribuição do ca- dência entre a estrutura e o agente. O agente
pital e das relações de força dentro do campo. as adquire pela interiorização das estruturas
As lutas e os conflitos travados no campo são sociais. Essas estruturas, como portadoras da
comandados por estratégias que encontram, no história individual e coletiva, são internaliza-
habitus, o elemento determinante da ação. O das a ponto de o agente ignorar que existem.
campo é constituído de posições ocupadas pe- São rotinas corporais e mentais inconscientes
los agentes e são essas posições que determi- que permitem o agir sem pensar, pois são pro-
narão a forma de conduta dos indivíduos e gru- duto de uma aprendizagem da qual o agente
pos dentro do campo. Aos conceitos de habitus não tem mais consciência e expressa-se por
e de campo, Bourdieu agrega uma constelação uma atitude "natural" de conduta em um de-
de conceitos secundários que evoluem articula- terminado meio.
dos entre si para fundamentar o entendimento O habitus é um sistema de disposições
relacional do fenômeno social. duráveis e transferíveis que opera como su-
porte das práticas e representações sociais
vinculadas a uma forma específica de exis-
Habitus tência. O habitus é condicionante e condicio-
nador de nossas ações e aparece sob a forma
O conceito é desenvolvido para escapar do de símbolos, crenças, gostos e preferências
racionalismo objetivista do estruturalismo, o que caracterizam a posição social do indiví-
qual reduz o indivíduo às determinações da duo. É incorporado pela interação social, mas,
estrutura, mas também para evitar a filosofia ao ser incorporado, funciona para classificar e

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 117
Nilton Ricoy Torres

organizar essa interação. Uma vez incorporado, inovar seu habitus para se adaptar às novas
o habitus se torna parte da natureza dos agen- situações e demandas sociais. A reflexividade
tes. A incorporação do habitus ocorre de duas crítica no processo de adaptação do habitus
formas. A primeira, pela educação familiar e acelera a transformação. Dessa forma, o
regras de classe, e acontece de maneira implí- habitus é um atributo dinâmico: quando o ator
cita e inconsciente; a segunda é um processo entra em um campo ou jogo que não é familiar,
explícito, metodicamente organizado e provém há uma transformação no habitus e o agente
da educação escolar, da indústria cultural e dos desenvolve novas facetas de si próprio. Com a
meios de comunicação de massa. mudança do habitus, o ator altera sua manei-
Como disposições flexíveis e plásticas, os ra de ver, perceber, julgar e valorizar o mundo,
habitus se manifestam no cotidiano das rela- determinando, então, seu modo de agir cor-
ções sociais de diversas formas. Eles emergem poral e mental. Desse modo, os habitus, como
sob a forma de conhecimento tácito e uma estruturas sociais incorporadas, podem ser vis-
visão de mundo. Expressam-se por meio de tos como formas “de conhecimento prático...
reações às experiências, percepções do jogo, de mundos sociais resultantes… da divisão
hipóteses, por intuições, sensibilidades, modos em classes (grupos de idade, gêneros, classes
de fazer, sentimentos, predisposições, expecta- sociais) e que funcionam abaixo do nível de
tivas, senso de possibilidades e de lugar, ante- consciência e do discurso” (Bourdieu, 1984). O
cipações práticas de uma situação, percepção habitus é, portanto, o mecanismo transmissor
do timing e do tempo, gostos e desejos, do e “inculcador" das normas, dos valores e das
conhecimento das posições, do sentido lógico, crenças do grupo social que agem durante o
das aspirações, inspirações, táticas e estraté- processo de socialização do indivíduo e vão
gias. O habitus é o elemento vital na organi- se tornar os princípios de ação, de atitudes e
zação da vida social, pois atua como uma lei opiniões do indivíduo em sua práxis cotidiana.
imanente para orientar as ações do cotidiano e O habitus, assim interiorizado, é convertido em
para construir o conhecimento prático que ca- uma disposição que produz práticas que vão
pacita o agente a operar no mundo. Assim, o dar sentido à realidade e às percepções que ge-
habitus condiciona os agentes sociais de modo ram significado (ibid.).
a determinar seu modus operandi, suas moti- O habitus não é um espaço natural,
vações, suas preferências, aspirações e expec- mas, ao contrário, é um espaço social cons-
tativas. O habitus não possui soluções prontas truído, incorporado pelas estruturas mentais.
para cada situação ou contexto. Ele é uma res- É um mecanismo que permite a produção e
posta improvisada à circunstância do momen- a reprodução das práticas sociais, pois é uma
to. O habitus é, basicamente, adaptativo. Ele percepção estruturada sobre o modo de agir e
se modifica e adapta-se a cada nova situação comportar-se dentro das normas estabelecidas
e a cada mudança na estrutura social: novos do campo social. O habitus é constituído por
comportamentos, novas tecnologias, novas meio de ações miméticas e participativas em
realidades, novas condições, novas restrições. consonância com as lógicas de interação social
O ator deve e é constantemente compelido a dentro do campo. É pela prática da repetição

118 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana

que o agente aprende uma maneira de ser e de legitimar a ação do agente em suas relações
fazer, percebida como correta. Nesse processo, com a sociedade, o habitus contribui para res-
o agente incorpora uma visão de mundo, um significar essa ação no sentido da manutenção
modo de ser, de fazer, o qual, no contexto da ou da mudança no modo de agir desse agente
práxis, diferencia-o e torna-o distante de outros no campo social. Sendo assim, Bourdieu defi-
que adotam diferentes formas de ser e de fazer. ne o habitus como o produto da internalização,
Pela via do habitus, o agente ocupa seu pelo indivíduo, das condições históricas e so-
espaço no campo social e permite que os de- ciais realizadas ao longo de sua trajetória pes-
mais também ocupem seus espaços, em uma soal e social. Além de produto (consequência)
relação de complementaridade e reciprocidade. da história que produz as práticas individuais e
Por isso, o habitus determina e regula tanto o coletivas, o habitus também produz (causa) his-
indivíduo como o grupo (portanto, as práticas tória em conformidade com os esquemas por
coletivas). Como os habitus sofrem influências ela engendrados. Em outras palavras, o habitus
de diferentes ambientes, decorre que “… as é estruturado (resultado) pela incorporação das
diferentes condições de existência produzem estruturas sociais e pela posição de origem do
habitus diferentes”(ibid.). Assim, as inclinações sujeito e é também “estruturador (causa) das
se transformam em gostos, ações e formas ações e representações dos sujeitos”.
de ser particulares que, por sua vez, reforçam Como o habitus atua como uma espécie
o habitus e mantêm a ordem social existente. de regulador da ação social, tanto na dimensão
O agente social é múltiplo e variável e pode subjetiva como objetiva, ele pode ser usado
desenvolver “múltiplos habitus”, pois ele não para analisar as atitudes subjetivas capazes de
está inextricavelmente imerso em um único estruturar as representações e a geração de no-
habitus, mas pode se mover de um habitus pa- vas práticas. Cada sujeito vivencia experiências,
ra outro e desenvolver comportamentos adap- em função de sua posição na estrutura social
tativos dentro de um mesmo habitus. e essas experiências se efetivam em sua subje-
O habitus está sempre em busca da su- tividade, constituindo uma espécie de “matriz
peração das antinomias que se manifestam na de percepções e apreciações”. Essa matriz ser-
tensão entre os eventos do passado e o pro- virá de guia para orientar as ações do agente
blema do futuro. Nesse sentido, Bourdieu argu- nas situações posteriores. Por terem o habitus
menta que o habitus pode mudar à medida que como fundamento, as práticas e as represen-
as condições sociais e históricas são alteradas tações podem ser orientadas para seu objetivo
(Bourdieu, 2009). Por esse processo, o habitus sem terem de envolver, por um lado, um dire-
incorpora outros esquemas de percepção e cionamento manifesto e consciente em relação
ação, que contribuirão para a conservação ou a aos fins e, por outro, o controle expresso das
transformação das estruturas do campo social. operações necessárias para atingi-los. Essas
Dessa maneira, o conceito de habitus serve pa- disposições são objetivamente reguladas e re-
ra analisar tanto situações de crise e mudança gulares, mas não são produtos da obediência
quanto de coesão e perpetuação do jogo e das às regras; são coletivamente orquestradas sem
relações de poder dentro do campo social. Ao resultar da ação diretriz.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 119
Nilton Ricoy Torres

definido como um domínio de contestação e


O campo
pode ser visto como uma rede ou configuração
de relações objetivas entre posições. Essas se
Para Bourdieu, campo é o espaço que delimita caracterizam pelos constrangimentos que im-
a estrutura na qual o habitus opera. É um espa- põem sobre seus ocupantes (agentes ou insti-
ço social estruturado dentro do qual os atores tuições), tendo em vista: 1) a situação presente
lutam para atingir seus objetivos. É o locus da ou potencial (situs) do agente na estrutura da
práxis em que se faz a mediação entre o ator e distribuição de poder (ou capital), cuja posse
a estrutura. O campo possui estrutura própria e comanda o acesso aos lucros específicos que
autonomia em relação a outros espaços sociais estão em jogo no campo; e, 2) a relação objeti-
e conta com uma lógica específica de funcio- va com outras posições (Wacquant, 2002).
namento e estratificação, a qual funciona co- Nas sociedades capitalistas desenvol-
mo princípio para regular as relações entre os vidas, os atores se diferenciam pela posse de
agentes sociais dentro desse espaço. capital econômico e de capital cultural. Os
O campo é uma estrutura social modela- sujeitos ocuparão posições mais próximas em
da pela dinâmica das práticas e interações so- função da quantidade e espécie de capitais
ciais, no qual prevalecem regras específicas que que detêm e estarão mais distantes no campo
determinam o que é prático, objetivo e racio- social, quanto mais desigual for o volume e o
nal; o que é adequado, aceitável ou reprovável; tipo de capital que possuírem. Assim, pode-se
o que deve ser estimulado ou coibido; e vão dizer que a riqueza econômica (capital econô-
consolidar o habitus particular de um contexto. mico) e a cultura acumulada (capital cultural)
Um campo pode ser entendido como uma are- geram internalizações de disposições (habitus)
na de disputas na qual os agentes jogam, de- capazes de diferenciar as posições ocupadas
senvolvem estratégias e lutam pelos recursos pelos homens. Bourdieu explica que os agen-
cobiçados: bens simbólicos e posições sociais. tes constroem a realidade social por meio de
No interior do campo, os indivíduos lutam pelo lutas e de relações, visando impor sua visão de
controle da produção e pela legitimação dos mundo, mas eles o fazem sempre a partir de
bens produzidos dentro do campo. Esses bens pontos de vista, interesses e referenciais deter-
são constituídos por diversos tipos de capital: minados pela posição que ocupam no mundo
cultural, econômico e social. Esses capitais (campo) que pretendem transformar ou conser-
possuem graus diferenciados de importância var (Bourdieu, 1989).
em cada campo e a posse dos mesmos deter- Bourdieu busca superar a dicotomia en-
mina a posição social do indivíduo dentro do tre o subjetivismo e o objetivismo, fazendo in-
campo. Os indivíduos que possuírem quanti- teragir os sistemas: 1) de posições objetivas; e
dades significativas de capitais considerados 2) de disposições subjetivas dos indivíduos. O
importantes no campo ocuparão posições do- habitus que existe dentro de um campo atua
minantes dentro do mesmo. O campo constitui, como um mediador entre: 1) o sistema invisí-
desse modo, um sistema de hierarquias entre vel das limitações estruturais (que molda as
dominantes e dominados. Por isso, o campo é ações do indivíduo e das instituições), e 2) as

120 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana

ações visíveis desses atores (que estruturam de forças" no qual se exerce a dominação;
as relações). Decorre então que o campo não 2) uma estrutura que constrange a ação dos
é uma estrutura estática, mas o resultado da agentes nele envolvidos; (3) um "campo de
história das diversas posições (que o consti- lutas" entre os agentes que atuam de acordo
tuem) e das disposições que elas privilegiam com suas posições no campo de forças, bus-
(cf. Bourdieu, 2001, p. 129). A existência e os cando conservar ou transformar a estrutura
limites de um campo são estabelecidos pelos (Bourdieu, 2010, p. 50). Todo campo é defi-
interesses nele contidos, pelos investimentos nido por uma estrutura de espaços relacionais
econômicos e psicológicos dos agentes e pelas internos (na qual os agentes e instituições
instituições nele inseridas. Para Bourdieu, os coexistem em diferentes posições na estrutu-
campos se estabelecem por processos de di- ra) e pelo espaço externo (que não é campo)
ferenciação social e pelas formas de ser e de (ibid.). Internamente, o campo é constituído
conhecer o mundo de seus membros, que vão, por uma estrutura objetiva de posições e por
então, determinar seu objeto específico e seu uma estrutura subjetiva de disposições, que
princípio de compreensão. Os campos assim se intera gem mutuamente em constante ar-
determinados tornam-se espaços estruturados ticulação. Nesse processo, o campo estrutura
de posições as quais, em um dado momento, o habitus e esse constitui o campo (Bourdieu,
constituem um microcosmo social de valores 1992). O campo é, portanto, a exteriorização
(capitais e cabedais), de objetos e interesses ou objetivação do habitus e esse é a internali-
específicos (Bourdieu, 1987). zação ou incorporação da estrutura social. As-
Bourdieu constrói o conceito de campo sim, a posição do agente no campo é, ao mes-
a partir de uma visão construtivista do estru- mo tempo, causa e consequência do habitus,
turalismo, de forma a permitir que os campos pois limita e gera o habitus da classe em que
sejam analisados como estruturas objetivas, se posiciona o agente.
separadamente das características de seus A posição de um agente no campo de-
ocupantes. A análise se concentra nas estrutu- termina o modo como ele acessa e consome
ras dos diferentes campos, enfocando-as como os objetos sociais e culturais e o modo como
produto da incorporação (gênese) das estrutu- ele produz e acumula valores (Bourdieu, 1984).
ras preexistentes (ibid.). Os campos são conce- O campo é o lugar onde se travam as disputas
bidos como “universos” (universo das artes, da objetivas entre os agentes (indivíduos, grupos
política, da música, da ciência) e constituem-se ou instituições) que competem pelo contro-
como espaços autônomos no interior do mun- le de um cabedal específico (ibid.). Dentro do
do social. A sociedade é, portanto, vista como campo os agentes são vistos como portadores
constituída por diversos campos (universos ou de habitus homogêneos, porque valorizam e
espaços) de relações concretas, possuidores jogam os jogos do campo na disputa por posi-
de uma lógica de funcionamento própria que ções e capital.
é incomensurável, não reproduzível e irredutí- O campo possui propriedades universais
vel à lógica que rege os demais campos. Por (presentes em todos os campos) e caracterís-
isso o campo é definido como: 1) um "campo ticas particulares (específicas de um campo).

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 121
Nilton Ricoy Torres

São propriedades universais de um campo: 1) o subcampos se caracterizam por lutas de clas-


habitus específico; 2) a estrutura; 3) as leis que ses entre os agentes. Alguns buscam manter,
regulam a luta pela dominação; e 4) a doxa, ou outros modificar a estrutura do campo com o
a opinião consensual. As propriedades específi- objetivo de alterar o princípio hierárquico (eco-
cas são definidas pelos nomos (leis gerais que nômico, cultural, simbólico) de posições dentro
governam o funcionamento do campo). A doxa do mesmo. As classes dominantes são aquelas
é tudo aquilo em que os agentes de um campo que impõem sua tipologia de capital como cri-
estão de acordo. Define uma espécie de enten- tério de hierarquização do campo. Essa luta é
dimento coletivo, um senso comum. A doxa en- travada no campo político e resulta, na maioria
volve aquilo que é aceito como natural ("sendo das vezes, em luta pelo poder.
assim mesmo"), tal como os sistemas de clas- O campo é marcado: 1) pelas relações de
sificação da realidade. A doxa é desenvolvida força que emergem das lutas internas; 2) pelas
para elucidar a ideia marxista, de "ideologia" estratégias (de defesa ou subversão) utiliza-
(como "falsa consciência"), pois é entendida das; 3) pelas pressões externas sofridas; 4) pela
como um ponto de vista particular, o ponto de interpenetração dos conflitos com outros cam-
vista da classe dominante, a qual se apresenta pos; e 5) pela articulação de ideias com outros
como ponto de vista universal, pertencente a campos. A autonomia do campo depende do
todos que integram o campo (Bourdieu, 2010). volume e da estrutura do capital dominante. A
Os nomos são as regras gerais e estáveis que busca de autonomia impõe constante interpre-
regulam a operação do campo. Todo campo tação da realidade e um processo de refração
tem um nomos distinto porque cada campo tem das interrelações, influências e contaminações
uma evolução histórica diferente. O campo ar- introduzidas em cada campo específico. A vi-
tístico, no século 19, tinha como nomos: "a arte da dentro do campo não é determinada pelas
pela arte"; a arquitetura moderna do século 20 pressões externas, mas pela tradução refrata-
exibia como nomos "a busca da racionalidade da da própria ordem interna dessas pressões.
entre a forma e a função". Esses nomos devem A história, o habitus e as estruturas do cam-
ser aceitos e legitimados por intermédio de po trabalham como uma espécie de prisma de
processos históricos de lutas desenroladas no filtragem dos eventos exteriores (Bourdieu,
contexto social do campo. O nomos é como um 1984). As lutas externas (econômicas, políti-
princípio de visão e divisão que nos é inculcado cas, etc.) contribuem para alterar a relação de
por um trabalho de socialização. forças internas ao campo, mas essas influên-
Todo campo social pode ser subdividi- cias são sempre mediadas pela estrutura do
do em subcampos menores, com as mesmas campo, que se interpõe entre a posição social
características do campo que os circunscreve. do agente e sua conduta. A autonomia relativa
Como espaços sociais constituídos por uma es- do campo resulta de sua capacidade de esta-
trutura de relações gerada pela distribuição de belecer suas próprias regras, ainda que sob a
diferentes espécies de capital, os campos e os pressão ou influência de outros campos.

122 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana

compreensibilidade do jogo de todos os ato-


Prática social
res envolvidos” (Hillier e Rooksby, 2001). A
percepção de jogo vem com a experiência. Por
Para Bourdieu, o habitus é o princípio gerador
exemplo, ela permite saber quando é válido
e estruturador das práticas e das representa-
quebrar as regras. Ela permite também dizer
ções (Bourdieu, 1970). Como o habitus é a me-
“… o que é possível e o que não é (ibid.)”. “A
diação entre a estrutura e a prática do agente,
percepção de jogo é relacionada à posição do
a prática se realiza na medida em que o habi-
ator dentro do campo e depende do ponto de
tus entra em contato com uma situação. Por
vista que o ator tem do campo” (ibid.).
essa razão, a prática é entendida como o pro-
A illusio é o conceito que vincula direta-
duto da relação dialética entre uma situação e
mente o ator ao jogo que se joga dentro de um
um habitus.
campo. São crenças compartilhadas que se ins-
A relação entre o habitus e a prática
crevem no habitus do campo, das quais não se
provoca e possibilita ações na sociedade. O
tem uma consciência clara de suas procedên-
habitus trabalha com as probabilidades e as
cias e determinações. A illusio é a incorporação
possibilidades de ação, é inconsciente e expres-
acrítica de “verdades” de outrem, o encanta-
sa-se por diversas formas: no estilo de vida,
mento transitivo que projeta como natural o
nos gostos, nas maneiras de fazer as coisas, ou
microcosmo que se vive no campo. A illusio é
seja, está na ação humana. A prática social re-
o produto não consciente da adesão à doxa e
sulta das ações e interações entre os agentes.
ao habitus específico do campo, cristalizados
Essas ações e interações são modeladas pelo
em suas regras e valores. A illusio é, portanto, o
habitus e pelo capital dos agentes. A prática
ajustamento das esperanças às possibilidades
é, ao mesmo tempo, necessária e relativamen-
limitadas que o campo oferece. Assim, não so-
te autônoma em relação à situação imediata,
mos capazes de discuti-la, pensá-la e entendê-
uma vez que ela é o produto da relação dialéti-
-la crítica e conscientemente (Bourdieu, 2001).
ca entre uma situação e o habitus, e é ela que
A illusio significa estar envolvido no jogo, é
torna possível a realização de tarefas infinita-
investir nos alvos que existem no jogo, alvos
mente diferenciadas, graças às transferências
que só existem para as pessoas que possuem
analógicas de esquemas que permitem enten-
os mesmos habitus e, por isso, podem reco-
der e resolver os problemas (Bourdieu, 2001).
nhecer os alvos que estão em jogo (Bourdieu,
2010). Todo ator que adentra um campo social
tende a incorporar essa relação chamada de
Percepção de jogo illusio. Os agentes em disputa buscam inverter
as relações de força, subverter a ordem e fazer
O campo é constituído por jogos de poder entre a revolução dentro do campo, porque eles reco-
os agentes. Todo campo possui seu(s) jogo(s). nhecem os alvos da luta e não são indiferentes
A noção de percepção de jogo se refere “… a eles. Essa relação com o campo significa que
não apenas à capacidade de entender e seguir os agentes envolvidos nas disputas concordam
as regras”, mas também ter “… consciência e com as regras essenciais do campo, e o que

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 123
Nilton Ricoy Torres

está em jogo é tão importante a ponto de que- de reconhecimento social, tais como o prestí-
rer fazer uma revolução. gio, a honra, autoridade, etc. O capital simbó-
lico é uma síntese dos demais, na medida em
que ele os incorpora e constitui-se pela con-
versão dos demais. A educação de um agente,
Capital por exemplo, representa seu capital cultural;
já o valor simbólico de uma obra de arte po-
Para Bourdieu, o “interesse” significa "capi-
de significar pertencimento a uma classe. A
tal", tanto no sentido econômico como no cul-
honra, a reputação, o prestígio são formas de
tural, social, político, simbólico, etc. Acumular
capital simbólico que obedecem a uma lógica
capital é o alvo fundamental dos agentes de
específica de acumulação fundada no conheci-
um campo e, para ascender ou manter posi-
mento e no reconhecimento do outro.
ções na estrutura do campo, os agentes de-
vem participar dos jogos. É uma luta explícita
que se trava no plano material e político, mas
também no simbólico, no qual se confrontam
Relações de força,
os interesses de conservação (reprodução) e os poder e dominação
interesses de mudança (subversão da ordem
dominante no campo). Todo campo é uma arena de conflitos perma-
O conceito de capital de Bourdieu funda- nentes entre os grupos que mobilizam estraté-
menta-se em uma visão econômica. O capital gias para conservar ou subverter as estruturas
é acumulado (por operações de investimento), sociais. Dentro do campo, as relações de força
é transmitido (por herança) e reproduzido (pe- entre os agentes e as instituições determinam a
la habilidade de seu detentor de investir). A estrutura do mesmo. Essas relações envolvem
valorização e acumulação dos vários tipos de lutas pela hegemonia em busca do controle do
capital ocorrem de diversas maneiras: investi- poder de ditar as regras e de repartir o capital
mento, extração de mais-valia, etc. Etimologi- específico do campo. O modo como o capital é
camente, o conceito de capital é idêntico ao de repartido condiciona as relações entre os agen-
cabedal (ou conjunto de bens) e envolve um tes, determinando sua estrutura (Bourdieu,
sofisticado sistema de conceitos acerca dos 1984). Como o capital é distribuído de forma
elementos portadores de valor que extrapola desigual, relações de competição e de força es-
a visão puramente econômica. Nesse siste- tabelecem-se entre os grupos dominantes que
ma estão incluídos: 1) o capital cultural: co- buscam defender seus privilégios e os demais
nhecimentos, habilidades, informações, etc., grupos. Para Bourdieu, a dominação é exercida
vinculados às qualificações intelectuais pro- sempre mediante violência, seja ela bruta, seja
duzidas e transmitidas pela família e pelas ins- simbólica, e manifesta-se pela coação física so-
tituições educacionais; 2) o capital social: os bre os corpos, ou pela coação espiritual sobre
acessos sociais, isto é, os relacionamentos e a as consciências. O campo é o palco de confron-
rede de contatos; 3) o capital simbólico: rituais tos entre os agentes que detêm o poder e os

124 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana

que não o detêm. Os agentes que possuem o


Habitus e prática
capital específico do campo dominam o mes-
mo pela via da autoridade; os demais agentes
no campo do planejamento
despossuídos de tal capital competem pela e da governança urbana
posse do mesmo, tendo em vista dominar o
campo (ibid.). A dominação em um campo é, Esta seção focaliza o planejamento pela prá-
em geral, subliminar, implícita, sutil, mas vio- tica da gestão urbana, tendo como referência
lenta. Tal violência é simbólica e legítima den- as proposições avançadas por Pierre Bourdieu.
tro de cada campo e pertence à natureza do O objetivo é testar os elementos explicativos e
sistema de relações sociais. Por esse sistema, generativos da teoria de Bourdieu, tendo em
as práticas e as instituições dentro de um cam- vista as práticas de governança empreendidas
po sempre favorecem a acumulação de todos por meio do planejamento e avaliar em qual
os tipos de capital pelos agentes dominantes. medida as respostas fornecem elementos para
A violência simbólica (a opressão) é sempre esclarecer situações específicas dessa prática.
exercida com o consentimento e a aquiescên- O foco da análise é a práxis dos agentes que,
cia dos que são dela objeto: os oprimidos. Ela direta ou indiretamente, participam do univer-
emerge nos discursos da competência científi- so do planejamento como governança urbana,
ca, da autoridade burocrática-legal, da supre- e o alvo é esclarecer as razões que determinam
macia do conhecimento oficial. Por isso, para as formas de ação desses agentes. O próprio
Bourdieu a dominação não é produto da luta universo é objeto de reflexão. Busca-se anali-
aberta de classes (dominantes versus domina- sar a estrutura do planejamento como cam-
dos), mas emerge da interação de um sistema po de práticas e avaliar em qual medida essa
complexo de ações infraconscientes dos agen- estrutura é dependente da esfera do estado.
tes e das instituições dominantes sobre todos O texto a seguir avalia seis hipóteses sobre a
os demais (Bourdieu, 1996). prática do planejamento como processo de go-
Segundo Bourdieu, os agentes e as ins- vernança urbana, formuladas, explicitamente, a
tituições dominantes tendem a inculcar a cul- partir do referencial analítico de Bourdieu. Os
tura dominante, a fim de reproduzir o habitus testes dessas hipóteses são desenvolvidos com
e, portanto, as desigualdades sociais nas ma- referência a episódios, situações e eventos das
neiras de falar, de trabalhar e de julgar (ibid.). experiências vividas pelos agentes, ao longo da
As instituições do campo (a família, a escola, história recente da prática do planejamento e
a igreja, o meio social) não só reproduzem as governança na cidade de São Paulo.
desigualdades sociais, mas também legitimam, ● Hipótese 1: Os agentes que integram
de forma subliminar e inconsciente, sua repro- o campo de planejamento e gestão urbana in-
dução. Desse modo, as instituições são vistas corporam habitus comuns a todos os membros,
como agentes da dominação. A desigualdade independentemente de suas concepções ideo-
não está somente nas diferenças de posição e lógicas ou posição.
de acesso ao campo, mas é parte integral e per- As evidências sugerem que os gestores
tence à gênese do próprio sistema. da governança urbana, tanto conservadores

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 125
Nilton Ricoy Torres

como os progressistas, percebem o planeja- ra um sistema de disposições específicas desse


mento como um "instrumento estratégico", campo, que o possibilita não só participar, mas
com a missão de organizar e disciplinar o ter- disputar o jogo inerente ao campo. Tomando
ritório socioeconômico. A experiência de plane- o planejamento por um campo social, como
jamento em São Paulo tende a confirmar essa propõe Bourdieu, não parece inconsistente
hipótese. Da análise dos relatos, discursos e das concluir que os planejadores incorporam um
práticas, na esfera governamental, observa-se habitus comum a todos os membros do cam-
uma confluência de percepções, entendimentos po: o de o planejamento ser uma ferramenta
e de ações entre os agentes do campo de pla- estratégica para propor alternativas técnicas e
nejamento. A ideia recorrente e consensual é soluções lógicas, razoáveis e racionais para as
que o planejamento, como instrumento de go- questões do desenvolvimento urbano.
vernança, é um processo de articulação racio- Percebe-se que o habitus não depende
nal de meios, tendo em vista disciplinar e dirigir da postura ideológica do agente, pois está in-
o objeto social de sua ação: o urbano. Ao longo culcado, incorporado, assimilado como uma
dos anos, a maioria dos produtos que emergem disposição nas percepções que o agente traz
do campo do planejamento constitui manifes- como visão de mundo e determina como na-
tações sobre a necessidade de "racionalizar" tural ter, o planejamento, o papel de planejar,
e "organizar" o desenvolvimento urbano, a prever, organizar, proporcionar solução, pois
fim de evitar "deseconomias", "desperdícios", não teria sentido ser seu contrário. Os habitus
"exclusões" e "danos" aos diversos usos e são rotinas mentais inconscientes que permi-
interesses em conflito na cidade. O objetivo tem ao planejador agir sem ter de refletir sobre
maior é obter um desenvolvimento "coeso", sua ação. Governar parece ser uma atitude na-
"harmonioso", "articulado" e "funcional" do tural, razoável e inquestionável de quem busca
espaço para "racionalizar" as ações dos diver- soluções "adequadas" para o objeto da inter-
sos atores do meio urbano. venção. Afinal, o planejamento é o antípoda do
Da leitura dos planos diretores e das mercado, do caos, da anarquia que impera nos
políticas e programas públicos produzidos ao universos do liberalismo. Sem a ação de contro-
longo dos últimos 30 anos na cidade de São le e alguma forma de restrição e policiamento
Paulo, observa-se a lógica manifesta da inter- do caos, a ordem social e, como parte dela, o
venção e do controle (PMSP, 2004). O habitus urbano podem entrar em colapso. Os habitus
que emerge dessa prática de planejamento, in- são como certezas irrefletidas e consolidadas
dependentemente dos regimes administrativos que produzem uma lógica, uma racionalidade
que se sucederam, sugere haver uma percep- prática, irredutível à razão teórica. São produ-
ção homogênea e um entendimento comum to da aprendizagem e de um processo do qual
sobre o papel "estratégico" do planejamento já não temos mais consciência e se expressam
como instrumento destinado a promover e como uma forma natural de ser e de pensar em
coordenar articulação das diversas cidades um determinado contexto.
dentro da cidade. Como informa Bourdieu, o As rotinas de trabalho e os discursos do
agente, para participar de um campo, incorpo- cotidiano do planejamento como governança

126 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana

da cidade demonstram haver, entre os agen- ● Hipótese 2: Os habitus do planejamento


tes dessa governança, significativas diferenças são saberes práticos inculcados por meio: 1) da
ideológicas e de percepção sobre o sentido inserção profissional do agente nas instituições
de suas práticas. De fato, essas diferenças se públicas de governança; 2) do aprendizado tá-
exprimem, por exemplo, na definição do que cito incorporado ao longo da prática profissio-
é uma solução adequada para uma situação. nal; 3) da educação formal.
Assim, por exemplo, enquanto para alguns a No campo do planejamento como go-
questão da habitação e a viabilização do aces- vernança urbana, observa-se que os habitus
so à moradia são o objeto central da governan- específicos do campo desenvolvem-se e são
ça urbana – uma forma de reduzir a injustiça e incorporados de três maneiras. Primeiro, pelo
a exclusão social –, para outros, a habitação é trabalho profissional e o aprendizado tácito
um problema secundário, ante o imperativo do que se adquirem ao longo da prática. É o co-
resgate da história e a recuperação dos espa- tidiano da prática de enfrentamentos, do con-
ços deteriorados da cidade. Apesar das diferen- fronto com desafios, experimentando sucessos
ças, o que é homólogo entre as duas posturas é e fracassos, que o profissional de planejamen-
a crença na intervenção e na capacidade trans- to constrói uma forma de ser e de fazer que
formadora das propostas técnicas. O Plano Di- se constituirá no habitus do campo. Segundo
retor Estratégico de São Paulo, promulgado em Bourdieu, todo agente social que atua no inte-
2002 (PMSP, 2002), é um exemplo excepcional rior de um campo procura ajustar seu esquema
da antinomia entre o antagonismo ideológico de pensamento, percepção e ação às exigên-
e a confluência de habitus. Nessa experiência cias objetivas daquele espaço social. Para ele,
observa-se, de forma mais clara, o processo de o motor da ação repousa na relação entre o
integração de habitus homólogos com ideolo- habitus e o campo. Assim, em um processo de
gias antagônicas em um único discurso. De um ajustes, transformações e adequações dentro
lado, impera o discurso da racionalidade técni- do campo, o agente social constrói sua práti-
ca, impondo controles policialescos e restrições ca. As experiências adquiridas nas interações
absolutas ao uso e à ocupação do solo, tudo se articulam com o aprendizado passado e se
em nome da funcionalidade do espaço do capi- constituem em matriz geradora de saberes, que
tal. De outro, são incluídas, de forma admirável, orienta a prática de governança do planejador.
todas as disposições inovadoras do Estatuto Bourdieu sustenta: “o conhecimento prático é
da Cidade para constituir o discurso do plane- uma operação de construção que aciona siste-
jamento democrático e da inclusão social. Por mas de classificação e estes por sua vez orga-
fim, como uma totalidade imanente a todas nizam a percepção, a apreciação que estrutu-
essas visões e discursos, paira a ideia de táti- ram a prática” (Bourdieu, 2010). A prática de
cas e estratégias, algo assim como em um tom governança, assim constituída, define-se como
militar de conluio entre generais, para delimitar uma forma de saber construída e incorporada
a prerrogativa última do planejador de decidir ao longo de sua trajetória pessoal e profissio-
o sentido do jogo. nal. Ao longo dessa trajetória, o planejador

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 127
Nilton Ricoy Torres

incorpora saberes sobre como planejar, sobre o particular (soluções locais), em um processo
as imagens e os papéis do planejador, sobre dedutivo que permita o controle e a articulação
crenças e certezas de sua prática. O habitus, das propostas e ações.
assim constituído, torna-se um produto de con- Um terceiro modo de incorporação do
dicionamentos que levam o agente-planejador habitus no planejamento é por meio da edu-
reproduzir as condições sociais de sua própria cação profissional e das diversas formas de in-
reprodução, o que se tornará o princípio gera- culcamento de um modo de pensar transmiti-
dor da ação de governança urbana. Segundo, da pelo meio acadêmico, institutos de pesqui-
os habitus são incorporados pela cultura (habi- sa e universidades. Existem diversas correntes
tus) preexistente nas instituições governamen- de pensamento dentro do meio científico
tais nas quais o planejamento se realiza como acerca do que é planejamento e de seu papel
ação pública. Nesses contextos há um discurso social, político e ideológico. Essas correntes
difuso, genérico, universal e consensual sobre possuem premissas, axiomas e métodos intro-
a responsabilidade administrativa e social do duzidos (inculcados) nos alunos através dos
planejar a cidade. O planejador no contexto da anos de formação, constituindo escolas ou
administração pública, pouco a pouco, incor- culturas de planejamento, que determinarão a
pora uma percepção sobre sua missão como forma de ver, perceber e fazer o mesmo.
membro do corpus publicus e resume-se em ● Hipótese 3: O planejamento pode ser
um zelar pelo "bem comum", "pelo interesse entendido como um habitus incorporado à prá-
público" e pelo "bem-estar geral". Estar na po- tica, isto é, um conjunto de disposições e costu-
sição de agente do planejamento integrado à mes que determinam o fazer do planejamento.
estrutura do estado significa trabalhar em fun- O planejamento como um habitus pode
ção do interesse público (do estado). A “cultura ser entendido como um conjunto de disposi-
da casa” (habitus) é outra maneira peculiar de ções definido por crenças, modos de pensar, de
assimilar o jogo do campo, que, no caso da de entender e de perceber. São suposições mate-
São Paulo, é marcado por um modo de fazer rializadas na forma de verdades, maneiras en-
planejamento que tem como ponto de parti- raizadas de fazer e empreender a prática pro-
da a visão sinótica, isto é, planejamento como fissional. O habitus do planejar percebe o pla-
processo que caminha de cima para baixo, no nejamento como um modo de gestão racional,
qual o ato do planejar tem sua gênese na ela- estratégica, capaz de articular a ação adminis-
boração de um Plano Diretor Estratégico que trativa para o controle integrado dos proces-
define as diretrizes gerais de desenvolvimento. sos urbanos. Esse habitus entende que a ação
A necessidade sinótica se constitui como par- do planejar deve partir de formulações gerais
te de um conhecimento tácito, fruto de regras (diretrizes globais), incorporando as várias di-
não escritas e integradas às práticas das insti- mensões do território (usos do solo, transporte,
tuições do governo. Não parece, aos olhos do habitação) para integrar e articular as ações
planejador (habitus), que a prática possa ser di- dos diversos setores da regulação administrati-
ferente. Pela via do habitus o planejamento de- va (setores de obras, saúde, transporte, cultura,
ve caminhar do geral (diretrizes globais) para infraestrutura). Da mesma maneira, fruto de

128 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana

habitus já consolidados, o planejamento cons- própria razão de ser do campo, ou seja: o pla-
titui jogo de repressão e tutela, no qual a ação nejamento existe para racionalizar as ações
de polícia é parte integral do planejamento. In- do governo, maximizar os benefícios, coibir
culcada no imaginário do planejador, há uma situações indesejáveis, disciplinar as ações
concepção de proteção do interesse público dos agentes, penalizar os desvios de conduta.
e um senso de responsabilidade social, moti- Como regra geral, o planejamento existe para
vado pelas ideias de zelo, vigília e comando. cumprir essas funções. Independentemente
Sem o planejamento e sob a ação exclusiva do sentido das ações (privilegiar a funciona-
das forças de mercado, a cidade se conflagra lidade do mercado ou a distribuição social da
em caos. Vislumbra-se, então, a pertinência do renda), o nomos do planejamento é sempre
poder regulatório e de regulação do planeja- agir por intermédio do estado, em nome do
mento para amenizar as disfunções, as injusti- interesse público.
ças sociais, as carências espaciais. Imagina-se Em São Paulo, a política de uso e ocupa-
que a competente intervenção do estado e as ção do solo, por exemplo, reproduz-se por ha-
estratégias de luta dentro do campo possam bitus antigos, já consolidados, que foram in-
promover a inclusão social no espaço, consoli- corporados aos modos de administrar o uso do
dar a função social da propriedade e garantir o território urbano. Esses habitus entendem o es-
direito à cidade. paço da cidade como uma bricolagem de áreas
Bourdieu afirma que cada campo possui especializadas (zonas de uso) e com densida-
uma doxa constituída pelo senso comum, ex- des diferenciadas. O objetivo é regular o uso e
pressando-se na forma de ideologia em que as a ocupação do território, tendo em vista man-
circunstâncias são aceitas como "sendo assim ter e garantir a funcionalidade econômica da
mesmo”. São percepções, apreciações e valo- aglomeração e a reprodução das relações so-
res compartidos por todos dentro do campo. ciais. Por essa razão, na regulação do território,
No campo específico do planejamento, a doxa em São Paulo, considera-se normal, de praxe, e
se estabelece em torno da ideia que o planejar até tradição, isto é, entende-se como adequada
deve ser um processo racional, estratégico e e necessária a ação de controlar e disciplinar
calculado, voltado para a resolução de impas- o modo como os usos se estabelecem e as ati-
ses e manutenção das regras do jogo. Ele de- vidades são exercidas no espaço urbano. Na
ve: dirigir, coordenar e regular e para isso deve visão (habitus) dos planejadores instalados no
coibir, restringir ou incentivar. Por isso, a doxa campo de governança burocrático, parece não
do planejamento incorpora, implicitamente, a haver outra forma de administrar o uso do so-
ideia de "reprodução", porque ela se constitui lo senão pelos mecanismos da tutela e da vio-
a partir do ponto de vista da classe dominante, lência simbólica da legislação punitiva. Dessa
mas se apresenta como o interesse universal, maneira, a condução do planejamento do uso
pertencente a todos os membros do campo. do solo, em São Paulo, pode ser vista como um
Os nomos são as regras gerais e estáveis habitus arraigado nas estruturas mentais dos
que regulam o jogo no campo. No campo do planejadores, assim como nas estruturas ob-
planejamento essas regras estão vinculadas à jetivas das instituições de governança urbana.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 129
Nilton Ricoy Torres

A legislação de zoneamento cumpre a função podemos chamar de campo epistemológico


fundamental de fomentar (e perpetuar) a com- do planejamento. Os agentes desse campo,
preensão que o planejamento deve ser um ins- embora participem e estejam envolvidos com
trumento de força, de polícia, para controlar os as práticas específicas do campo científico,
desvios, os anacronismos e as disfunções que desenvolvem reflexões e proposições teóricas
os diversos usos criam entre si. A ideia de se- acerca do objeto urbano, assim como das prá-
gregação do espaço em guetos de atividades ticas de planejamento levadas a cabo no cam-
e pessoas, assim como a de "proteção" de po institucional-burocrático. Esses discursos
usos e "lugares" (zonas), daquelas atividades são desenvolvidos na forma de explanações ou
e pessoas indesejáveis e incômodas foi, e ainda de métodos e servem para orientar a prática
é, um dogma (habitus) da tradição de planeja- administrativa. Em regimes administrativos
mento em São Paulo. Embora esse habitus ve- marcados por concepções político-ideológicas
nha, aos poucos, transformando-se – fruto de em formação ou afirmação no campo da po-
lutas dentro do campo – e já se admita um ter- lítica, esses subcampos podem se articular de
ritório urbano mesclado de usos, as lutas ainda modo a integrar agentes e discursos do campo
continuam no interior do campo do planeja- científico a posições do campo institucional.
mento, pois não se admite o território urbano Dentro do subcampo da prática (buro-
mesclado por classes sociais. A ideia (habitus) crático) as disputas e rivalidades entre setores
que o território deva ser dividido em áreas e da burocracia são notórias. Há diferenças entre
zonas é ainda fundamental. formas de fazer, métodos de operar e até fins a
● Hipótese 4: O planejamento como um serem alcançados. Em jogo está o poder de do-
campo de forças e de posições é constituído por minar e acumular o capital produzido no cam-
dois outros subcampos: o campo institucional- po. A aliança com o subcampo científico pode
-burocrático e o campo acadêmico-científico. reforçar as posições dentro do campo burocrá-
A hipótese indica a possibilidade de tico. As lutas e conflitos no âmbito da socieda-
incluir-se, como parte do universo do planeja- de são, em geral, transferidos para o universo
mento, dois subcampos os quais, embora au- do planejamento. Esse é o motivo de as lutas
tônomos e separados, possuem circunstâncias no interior do processo de governança estarem
homólogas, tal que, em momentos específicos, sempre sob a influência e pressões do cidadão
podem estar articulados e estabelecerem um e de políticos profissionais, externos ao campo.
processo de mútua realimentação. Nesses mo- Nos conflitos envolvendo a população, emer-
mentos o campo científico, que se ocupa da gem sempre questões sobre o que é e como de-
epistemologia do planejamento, atua como vem ser exercidas as tarefas do planejamento
um avalista para garantir a legitimidade das como gestão pública.
propostas formuladas no campo burocrático. ● Hipótese 5: O campo do planejamen-
Não há dúvida que o urbano, como objeto de to produz dois tipos específicos de valores
investigação, é parte integral do campo cien- (capitais) dos quais tanto o campo econômico
tífico/acadêmico e, dentro desse, o "planeja- como o campo político dependem. O planeja-
mento" se constitui como um microcosmo que mento tem o poder de legitimar as decisões

130 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana

políticas por meio do discurso da racionalidade de importância vital para as lutas nos demais
técnica e científica e de coordenar a distribui- campos sociais, pois é o locus onde se legitima
ção do capital econômico pelo orçamento pú- a distribuição dos capitais econômicos públi-
blico). O poder de regulação e polícia, incorpo- cos. O controle desse poder permite coman-
rado ao planejamento, atua também como um dar várias formas de repartir o capital sobre o
forte mecanismo de distribuição indireta e de território, o que possibilita alterar o equilíbrio
redirecionamento de recursos (e cabedais). de forças e a acumulação de capitais entre os
A capacidade de legitimar as decisões diversos agentes. Visto isso, lutas sociais inten-
políticas e de prover uma imagem menos ar- sas se desenrolam dentro do campo do plane-
bitrária aos sectários acordos de “gabinete” jamento, pois o modo de operar desse campo
é um dos mais cobiçados produtos do campo torna-se uma estratégia para mudar ou manter
do planejamento e rende, conforme sugere as relações de dominação dentro da sociedade.
Bourdieu, o capital simbólico. É a capacidade ● Hipótese 6: O planejamento é um cam-
de produzir esse tipo de capital que permite po especial na medida em que, de tempos em
ao planejamento articular propostas e justificar tempos, ele pode se tornar um “aparelho”.
encaminhamentos essenciais para a eficácia da Sendo o planejamento exercido dentro da es-
administração pública. O planejamento posto trutura do estado, sua prática torna-se direta-
em prática pelos agentes torna-se uma forma mente dependente dos interesses dos grupos
de capital simbólico, pois constitui estratégia hegemônicos no poder.
de dominação ao estabelecer condições, impor Nessas situações, o planejamento é en-
limites, formular premissas, propor objetivos tendido como um campo instrumentalizado do
que, pouco a pouco, se transformam no nomos campo político que o domina e impõe limites à
de toda a população. O nomos, de acordo com sua autonomia. Não há lutas nem competição
Bourdieu, sintetiza a visão dominante que se entre os agentes dentro do campo, e o plane-
impõe ao conjunto da sociedade (grupos domi- jamento se torna apenas uma máquina para
nados). Assim, ao apresentarem suas proposi- produzir legitimações políticas. Normalmente, a
ções sob a forma de "a cidade que queremos" atividade de planejamento é constituída por re-
ou "São Paulo não deve parar" ou "cidade lações de trabalho hierarquizadas e dependen-
saudável", os agentes do planejamento vão, de tes de estruturas de poder externas ao campo.
fato, definindo um conceito de cidade sintoni- Tal condição restringe a autonomia do plane-
zado aos interesses dominantes e expressa-se jador e faz com que as ações de governança
nos planos e nas políticas públicas. É possível dependam de decisões tomadas em outros
afirmar que o habitus o qual comanda a prática universos, isto é, nos campos das autoridades
(e a ciência) do planejamento pode incorporar executivas e/ou legislativas. Nas circunstân-
visões, percepções e concepções de mundo que cias históricas em que a autonomia do campo
acabam por manipular valores, limitar objetivos é reduzida, os conflitos entre os agentes são
e condicionar as diretrizes de ação. subsumidos e as relações sociais no cam-
No contexto da sociedade, o planejamen- po transformam-se em uma espécie de "pax
to é um campo estratégico por produzir valores universal". Esses momentos se caracterizam

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 131
Nilton Ricoy Torres

por regimes de governança autoritários, nos pré-concebidos da ação, pois a prática é a res-
quais os agentes planejadores que possuem posta do ator para a questão que se defronta
vinculação política com os grupos dominantes no momento. No caso do planejamento, pode-
(externos) assumem o controle do campo, e -se inferir que o habitus de planejar tempos
o planejamento se torna apenas um instru- históricos, lugares e situações diferenciadas é
mento executivo para desempenhar tarefas o que determina o modus operandi de grande
técnicas. Esses regimes são, de modo geral, parte da prática do campo do planejamento.
marcados por administrações conservadoras Planejamento definido como habitus é
nas quais predominam processos de decisão uma possibilidade e um campo que se abre pa-
pouco transparentes e impostos de cima para ra a pesquisa sobre a prática do planejamento.
baixo. Os planos e as políticas públicas elabo- Nesse novo campo de estudos não há determi-
rados nessas circunstâncias são enigmáticos, nações dadas a priori, pois não há objeto prio-
fechados e sectários, cabendo aos agentes em ritário ou permanente de análise. O foco não se
posição de interventores do campo forjar mo- concentra sobre as estruturas de planejamento
delos justificativos. nem sobre os atores sociais, mas sobre as rela-
ções dialéticas que se estabelecem entre eles. A
formulação de Bourdieu possibilita entender o
planejamento como um campo estruturado de
Conclusão forças e de práticas, permeado por habitus es-
truturados e estruturantes desse mesmo cam-
A contribuição fundamental de Bourdieu para po. O planejamento, assim definido, permite
o entendimento do planejamento como práti- capturar a prática do planejar como um habitus
ca de governança urbana centra-se, a meu ver, que resulta da interiorização das estruturas (de
na ideia de habitus, e seu confronto com uma planejamento) e as mudanças das mesmas co-
situação específica da qual resulta a prática. mo produto da ação de exteriorização das inte-
Ou seja, não há verdades absolutas ou modelos rioridades dos planejadores.

Nilton Ricoy Torres


Arquiteto e Urbanista. Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Professor na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo/Tecnologia de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
nrtorres@usp.br

132 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012
Habitus, planejamento e governança urbana

Referências
BOURDIEU, P. (1984). Ques ons de sociologie. Paris, Les Édi ons de Minuit.

______ (1987). Choses dites. Paris, Les Édi ons de Minuit.

______ (1989). La noblesse de l'état. Paris, Les Édi ons de Minuit.

______ (1992). A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspec va.

______ (1999). A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

______ (2001). Meditações pascalianas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

______ (2009). O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

______ (2010). Razões prá cas: sobre a teoria da ação. São Paulo, Papirus.

HILLIER, J. e ROOKSBY, E. (ed.) (2001). Habitus: a sense of place. Ashgate, Aldershot.

KUHN, T. (1970). The structure of scien fic revolu on. Chicago, University of Chicago Press.

PMSP (2002). Plano Diretor Estratégico de São Paulo. Lei n. 13.430, 13/9/2002. São Paulo, Sempla/
PMSP.

______ (2004). Planos regionais estratégicos e normas para o parcelamento, disciplina, uso e
ocupação do solo. Lei n. 13 13.885, 25/8/2004. São Paulo, Sempla/PMSP.

WACQUANT, L. J. D. (2002). O legado sociológico de Pierre Bourdieu: duas dimensões e uma nota
pessoal. Revista Sociologia Polí ca. Curi ba, n. 19, pp. 95-110.

Texto recebido em 31/ago/2011


Texto aprovado em 4/out/2011

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 115-133, jan/jun 2012 133
Negociando o território: a formulação
do Plano Diretor Estratégico
de São Paulo (2002-2004)
Trading the territory: the formulation of the Strategic
Master Plan of São Paulo (2002-2004)

Sidney Piochi Bernardini

Resumo
Depois de mais de trinta anos da instituição do
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado em Abstract
1971, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo foi After more than thirty years from the establishment
sancionado em setembro de 2002, após um inten- of the Plano Diretor de Desenvolvimento
so e peculiar processo de debates e discussões com Integrado (PDDI), in 1971, the Strategic Master
vários segmentos da sociedade aglutinados em Plan of São Paulo was sanctioned in September
três grandes blocos de interesses: os representan- of 2002 after an intense and queer process of
tes do setor imobiliário, as associações de bairros debates and discussions adding several segments
e os movimentos sociais por moradia. A sequência of the society agglutinated in three large blocks
de discussões que culminou com a aprovação, em of interest: the representatives of the real estate,
2004, das leis complementares dos planos regio- neighborhood associations and social movements
nais estratégicos (PREs) e de uso e ocupação do for housing. The sequence of discussions was
solo elevou ainda mais as disputas em torno dos culminated in the adoption, in 2004, of the
interesses específicos de cada um destes grupos re- complementary regional strategic plans and the
presentativos, cujas principais questões e debates zonning law increasing further the disputes over
estão aqui resumidamente relatadas. these three groups.
Palavras-chave: Plano Diretor; planejamento ter- Keywords: Master plan; territorial and urban
ritorial e urbano; processos participativos; Estatuto planning; participatory process; Statute of the City;
da Cidade; Plano Diretor Estratégico de São Paulo. Strategic Master Plan of São Paulo.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Sidney Piochi Bernardini

Brasil. É na interface com os problemas territo-


Introdução
riais da sociedade que o planejamento urbano
encontra as raízes de seu desenvolvimento.
A participação da sociedade brasileira nos Ao mesmo tempo, a análise histórica dos seus
processos de planejamento urbano vem se processos nos ensina que suas limitações téc-
intensificando ao longo dos últimos anos nicas relacionam-se aos impasses na solução
com o fortalecimento institucional introduzi- das inúmeras contradições sociais e políti-
do pela Constituição de 1988. A Lei Federal cas intrínsecas à produção do espaço urbano
10.257/01, mais conhecida como Estatuto da (Lamparelli, 1978, p. 109; Corrêa, 1989, p. 9)
Cidade, que regulamentou o Capítulo de Polí- já havia destacado que o espaço urbano é ao
tica Urbana da Constituição, além de estabe- mesmo tempo “fragmentado e articulado, re-
lecer um prazo máximo para que grande parte flexo e condicionante social, um conjunto de
dos municípios elaborasse seus planos direto- símbolos e campo de lutas”. É na atuação das
res, determinou, em seu artigo 40, a obrigato- forças e agentes sociais que se constrói e se
riedade da realização de audiências públicas constitui o espaço urbano, derivado e derivan-
e debates com a participação da população e te de sua mobilização.
de associações representativas dos seus vários O papel ideológico que o plano diretor,
segmentos nos processos de elaboração des- como principal instrumento do planejamento
ses planos. Centenas deles já foram ou estão municipal exerceu por várias décadas, confor-
sendo aprovados por municípios brasileiros de me apontou Villaça (2010, p. 189), evidencia
diferentes características desde a sanção do uma face perversa do planejamento urbano no
Estatuto da Cidade, considerando, pelo menos Brasil. O autor questiona o discurso que apre-
do ponto de vista formal, tal prerrogativa. O senta o prévio conhecimento técnico da cida-
mosaico institucional derivado desse processo de – social, econômico, urbanístico, histórico,
introduziu novas substâncias aos processos de geográfico como indispensável para a correta
desenvolvimento urbano que se instauraram ação do Poder Público sobre ela. Em que me-
desde então. Poderíamos sugerir, com isso, dida os profundos e extensos diagnósticos
que estamos imprimindo um novo marco na orientam, de fato, o discurso propositivo dos
história do planejamento urbano no Brasil? Ou objetivos e metas traçados pelo plano diretor e
se trata de uma mera repetição de processos a posterior tomada de decisões na sua imple-
anteriores reconduzidos por novos formatos mentação? É nesta relação entre formulação
de participação social? técnica e as práticas cotidianas dos agentes
Diante destes inúmeros processos de sociais disciplinadas pelo Poder Público que
planejamento intensificados durante pelo me- reside a contradição entre planejamento e pro-
nos os últimos dez anos, não se deve ignorar dução do espaço urbano.
os fundamentos sociais e políticos que permea- O aumento da participação destes agen-
ram, por várias décadas, a constituição do pla- tes no processo de formulação e de implemen-
nejamento urbano como campo disciplinar e tação dos planos diretores revela o gradual re-
como indutor do desenvolvimento urbano no conhecimento de que é preciso garantir maior

136 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território

aderência entre discurso e prática. E essa ade- forças determinantes para o resultado final do
rência será tanto maior quanto mais favoráveis plano aprovado, conforme veremos a seguir.
forem as condições de atuação dos segmentos Percebe-se, pelo menos no caso de São Paulo,
mais variados e mais abrangentes da socieda- que este processo de participação despertou-as
de. Assim é que é possível superar tantas ex- para um novo palco de disputas e embates.
periências no Brasil nas quais o campo de lutas
tem sido historicamente escamoteado pela li-
beralidade das políticas urbanas com a tradi-
cional pactuação entre Estado e burguesia. Pa-
A construção do Plano Diretor
ra Oliveira, que estudou o caso de Curitiba, não
Estratégico de São Paulo
há como ser diferente: a compatibilização dos e suas leis complementares
interesses dos empresários com os dos urba-
nistas, pelo menos em torno de algumas ques- O PDE (Plano Diretor Estratégico), como ficou
tões essenciais, é fundamental para o êxito de conhecido o atual plano diretor de São Paulo,
qualquer política de planejamento urbano. Em Lei Municipal 13.430/02, foi sancionado no dia
uma sociedade capitalista, na qual as “coisas 13 de setembro de 2002 e, já em 2004, foi re-
têm donos, inclusive principalmente a terra”, gulamentado com a promulgação da Lei muni-
torna-se limitada a amplitude das realizações cipal 13.885/04, que estabeleceu normas com-
em planejamento (Oliveira, 2000, p. 113). É plementares ao Plano Diretor Estratégico, ins-
através dos processos democráticos aliados à tituiu os 31 Planos Regionais Estratégicos das
constituição de um marco legal mais progres- Subprefeituras (PREs), dispôs sobre o parcela-
sista, entretanto, que tais arranjos podem ser mento e ordenou o uso e ocupação do solo. A
quebrados, gerando novas possibilidades que aprovação desses dois instrumentos legais, que
vão além dos velhos pactos de poder nas deci- se deu durante a gestão da ex-prefeita Marta
sões sobre os rumos do território. Suplicy entre os anos de 2001 e 2004, deve ser
Com a intensificação dos processos vista como um processo sequencial, no qual, a
participativos na condução do planejamen- participação de vários segmentos da população
to municipal a partir da atuação dos Conse- na sua elaboração lentamente se intensificou.1
lhos Munici pais e a exigência da realização Pode-se afirmar com isso que esse processo se
de audiências públicas durante a elaboração deu de forma desigual e variada, tanto em ter-
dos planos diretores, indaga-se se os emba- mos de formatos, como em termos quantitati-
tes, lutas e conflitos entre os vários segmentos vos de participações, sendo possível visualizar
representativos da sociedade estão emergindo quatro momentos bem distintos. O primeiro, no
de fato e estão produzindo novas soluções e período compreendido entre janeiro de 2001
pactos, diferentes daqueles tradicionalmente e maio de 2002, abrangeu o processo de dis-
conhecidos. É através dos estudos específicos cussão para a elaboração do projeto de lei do
destes processos atuais que tal questão poderá plano diretor até seu envio à Câmara Munici-
ser respondida. No caso do novo plano diretor pal. O segundo período, entre maio e agosto de
de São Paulo, assistiu-se a uma polarização de 2002, compreendeu a discussão do projeto de

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 137
Sidney Piochi Bernardini

lei na Câmara e sua aprovação em 23 de agos- momentos seguintes foram também bem de-
to do mesmo ano (posteriormente sancionado marcados, ressaltando-se novamente a parti-
em setembro). O terceiro, compreendido entre cipação da Câmara Municipal com a notória
novembro de 2002 e agosto de 2003, incluiu relatoria de Nabil Bonduki, na condução do
a discussão para a regulamentação do plano processo, ajudando a fortalecer ainda mais a
diretor com a formulação da proposta da nova proposta sancionada em 2004.
lei de uso e ocupação do solo e a construção
dos planos regionais estratégicos pelas Sub-
prefeituras e o quarto, entre agosto de 2003 Incorporações, rejeições,
e julho de 2004, abrangeu a discussão pública
conduzida pela Câmara Municipal para a apro-
controvérsias e conflitos
vação de todos os projetos enviados, culmi-
no processo de construção
nando na sua aprovação em julho e sanção em dos projetos de lei
agosto de 2004.
No caso da construção do PDE, a ela- Algumas reflexões, diante de processos partici-
boração da primeira minuta do projeto de pativos como o que ocorreu durante a elabo-
lei pelo Poder Executivo e sua revisão e qua- ração e aprovação do PDE de São Paulo e suas
lificação durante o período que tramitou na leis complementares, apontam para o signifi-
Câmara Municipal, embora componham dois cado do avanço das práticas democráticas na
momentos diferentes bem delineados, são sociedade brasileira pós-Constituição de 1988.
parte de um mesmo processo em que se des- Na percepção de uma individualização cada
taca o papel da Câmara Municipal, e, mais vez mais pujante nas sociedades contemporâ-
especificamente, do gabinete do vereador neas, como evidencia Ascher (2010, p. 38), em
Nabil Bonduki, escolhido para ser o relator do que as escolhas individuais são sempre, ao me-
projeto. Sua atuação destacou-se não só pela nos em parte, determinadas socialmente, mas
articulação para viabilizar a aprovação do pro- o sistema em que se constroem essas decisões
jeto de lei, como também pela aglutinação de é mais complexo, e os indivíduos, assim como
forças, menos presentes durante a elaboração as organizações, estão mais conscientes de
do primeiro projeto pelo Executivo Municipal. decidir sob uma racionalidade limitada e su-
A contribuição de demais segmentos sociais, as escolhas dependem de um maior número
como os movimentos de moradia e o envolvi- de interações, pergunta-se como, hoje, é pos-
mento de um número substancial de pessoas, sível fortalecer a esfera pública nos processos
na fase de tramitação na Câmara, imprimiu, à decisórios da arena política. Este tem sido um
nova minuta do plano diretor, maior aderên- dos principais dilemas enfrentados por Antony
cia dos setores populares, demonstrando um Giddens na discussão sobre a passagem da
peculiar e original envolvimento da Câmara modernidade para a pós-modernidade no âm-
Municipal, decisivo para a aprovação do pro- bito da sociologia política. Para ele, a transfor-
jeto em agosto de 2002. No caso da nova lei mação necessária para a reconstituição de uma
de uso e ocupação do solo e dos PREs, os dois vida pública nos tempos atuais baseia-se em

138 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território

como reconciliar a individuação da identidade vez, a predominância daqueles segmentos que


cultural com o reconhecimento do compartilha- tradicionalmente se expressam nas decisões
mento entre indivíduos com diferentes quadros que interferem na produção do espaço urbano.
de referências, assim como de diferentes inte- A gradual intensificação da participa-
resses, de forma a evitar que os processos de ção nos quatro momentos de construção dos
pensamento e prática coletivos não suprimam projetos de lei tem a ver diretamente com o
o florescimento desta capacidade individual de delineamento dos posicionamentos defen-
cada um (Healey, 1997, p. 44). Ao tratar da di- didos pelos distintos grupos de interesse em
versidade que constitui a realidade do mundo, paralelo ao visível amadurecimento acerca do
Santos (2007, pp. 28-31) observa que nossa conteúdo apresentado por eles. Pode-se dizer
racionalidade se baseia na ideia da transfor- que, se as atividades e dinâmicas isoladas em
mação do real, mas não na compreensão do cada um dos momentos ocorreram de forma
real. Para ele a reinvenção da emancipação relativamente rápida e acelerada, o proces-
social passa pela percepção do que denomina so como um todo – que durou cerca de três
“sociologia das ausências”, ou “sociologia das anos e meio – permitiu que os setores mais
insurgências”, daquilo que é invisível à realida- representativos da sociedade amadurecessem
de hegemônica do mundo. Há cinco modos de suas posições e interferissem de fato no pro-
produção das “ausências” em nossa racionali- cesso, incluindo propostas e alterações nos
dade ocidental para ele: 1) a monocultura do documentos formulados. Até mesmo a inter-
saber e do rigor; 2) a monocultura do tempo rupção no processo encabeçada pelo Ministé-
linear; 3) a monocultura da naturalização das rio Público2 demonstra que houve certa aten-
diferenças; 4) a monocultura da escala domi- ção da sociedade para os assuntos da política
nante; e 5) a monocultura do produtivismo urbana, mesmo considerando os interesses
capitalista. No caso do processo participativo corporativistas que permearam esses debates.
instaurado durante a preparação do PDE de O primeiro grande conjunto de modifica-
São Paulo, os principais grupos organizados ções ao projeto de lei do plano diretor formu-
interessados nas discussões e debates não lado pelo Executivo Municipal, através da Se-
parecem ter transcendido para além de uma cretaria Municipal de Planejamento (Sempla),
racionalidade hegemônica, conforme aponta ocorreu na Câmara dos Vereadores a partir de
Santos, mas permanecido na defesa irrestrita maio de 2002, no âmbito da Comissão de Po-
dos posicionamentos que tomaram para si em lítica Urbana, que constatou a necessidade de
prejuízo da reinvenção das práticas democrá- promover ajustes mais profundos de modo a
ticas, a partir de uma diversificação mais rica “superar algumas dificuldades de entendimen-
e intensa que poderia emergir do conjunto de to dos objetivos estratégicos propostos, de sua
vozes não dominantes que se pronunciaram, articulação com instrumentos previstos e de
mas não tiveram força suficiente para interferir sua adequação com as condições concretas de
com mais substância nas decisões. A rapidez sua implementação” (São Paulo, 2002, p. 15).
e talvez os formatos que se configuraram nes- Depois de aglutinar forças, o gabinete do ve-
te processo participativo elevaram, mais uma reador Bonduki construiu um consenso sobre

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 139
Sidney Piochi Bernardini

a necessidade de tornar o plano mais autoa- 5 – a criação de uma nova Zonas Especiais de
plicativo. No seu parecer conclusivo acerca Interesse Social (Zeis), a Zeis 4 (além das outras
do Projeto de Lei 290/02, na ocasião do seu três Zeis propostas), com o objetivo específico
encaminhamento para votação, assim estão de minimizar conflitos de usos na Área de Pro-
registradas as principais alterações à proposta teção aos Mananciais incidente sobre a cidade
original do Executivo: de São Paulo,5 e a delimitação destas e das de-
1 – a necessidade de dividir a Macrozona de mais Zeis indicadas no projeto do Executivo;
Estruturação e Qualificação Urbana, definida 6 – a previsão de um Conselho de Política
no projeto original como uma grande e única Urbana diretamente subordinado ao gabinete
macrozona mista, em quatro áreas diferencia- do prefeito com a principal responsabilidade
das – a Macroárea de Reestruturação e Requa- de coordenar a ação dos conselhos setoriais e
lificação, a Macroárea de Urbanização Conso- acompanhar a implementação dos objetivos
lidada, a de Urbanização em Consolidação e a e ações expressas no plano diretor.
de Urbanização e Requalificação – de acordo Cada uma destas mudanças, algumas
com identificação das características, graus de relativamente profundas, não ocorreu tranqui-
consolidação urbana e necessidades sociais e lamente. A formação dos três grandes blocos
de serviços urbanos específicos; de interesse neste momento: a Frente Popular
2 – a adoção de coeficientes de aprovei- pela Reforma Urbana, que reuniu movimen-
3
tamento básico dos lotes (acima de 1) e um tos, ONGs e universidades; o setor imobiliá-
período de transição para aplicação desses co- rio, capitaneado pelo Secovi SP (Sindicato
eficientes no lugar do coeficiente básico 1, defi- da Habitação de São Paulo) e Sinduscon SP
nido no projeto anterior para toda a cidade, de (Sindicato da Indústria da Construção Civil de
modo a evitar impactos negativos no mercado São Paulo) e as associações de bairro, capita-
imobiliário e uma variação brusca nos valores neadas pelo Movi men to Defenda São Paulo
dos imóveis; (Bonduki, 2007, p. 219), evidencia a compo-
3 – o estabelecimento do instrumento da ou- sição de forças diante de questões cruciais
torga onerosa por meio de fórmula previamen- de fundo ideológico e político que a primeira
te definida, cujo valor variável seria resultante minuta apresentada ainda não havia aflorado.
do interesse urbanístico e do interesse social Neste segundo momento, era clara a intenção
de determinadas categorias de atividade para de aplicar os instrumentos da política urbana
4
a cidade; em consideração às diretrizes estabelecidas
4 – a definição de uma nova categoria de ha- pelo Estatuto da Cidade. Mas ainda incipientes,
bitação, a Habitação de Mercado Popular, que tais instrumentos inspiravam dúvidas, receios e
junto com a Habitação de Interesse Social pre- desconfianças por parte de alguns segmentos.
sente no projeto de lei original, ampliaria o pa- Um conjunto de críticas e conflitos, que já esta-
drão de habitação a ser estimulado e possibili- vam se delineado ainda no primeiro momento
taria o atendimento às faixas de renda média, de construção do plano diretor, consolidou-se
além da prioritária de “baixa renda”; neste segundo.

140 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território

Assim é que vários posicionamentos em cada região. Defendiam os instrumentos


antagônicos podem ser lidos e identificados a “Áreas de Intervenção Urbana”, “Operação Ur-
partir do texto final do plano diretor, confor- bana” e “Concessão Urbanística”, através dos
me foi sancionado. Alguns segmentos como, quais as pequenas diferenças seriam conside-
por exemplo, o Secovi SP, associados a alguns radas e tratadas por projetos específicos com
técnicos e profissionais, inclusive de órgãos força de renovação e reconversão. Em defesa
da Prefeitura Municipal, não concordavam em das Operações Urbanas, o Secovi-SP criticava
incluir um conjunto tão extenso e abrangente os extensos e amplos perímetros contidos no
de ações estratégicas (342 ações) no âmbito PDE e defendia perímetros mais compactos, su-
das políticas setoriais (Título II do Plano: Das postamente mais eficazes.
Políticas Públicas: objetivos, diretrizes e ações Com esses pontos, é possível imaginar
estratégicas). Esta vertente defendia um plano algumas controvérsias que permearam o pro-
diretor mais “enxuto” e menos volumoso, sem cesso de discussão do plano. Diante desses e
tamanha quantidade de ações. Muitos defen- de tantos outros aspectos polêmicos e confli-
diam até mesmo a exclusão total das políticas tuosos, não será possível aprofundar aqui cada
setoriais do Plano. Para tais representantes, o um dos episódios que acaloraram os debates
excesso de aspirações era de difícil cumprimen- durante esses três anos e meio. Cabe destacar
to, o que, de fato, tem se demonstrado, decor- apenas alguns mais essenciais. Estes estavam
ridos dez anos de aprovação do plano. Obser- identificados com a bandeira de luta dos três
vavam ainda que muitas destas políticas não grandes blocos representativos já mencionados
estavam amarradas a uma configuração terri- acima: o setor imobiliário, as associações de
torial, contrariando as prerrogativas espaciais bairro e a Frente Popular pela Reforma Urbana.
de um plano diretor. No primeiro caso (do setor imobiliário), a gran-
Outro aspecto levantado foi a difícil apli- de questão se referia ao potencial construtivo
cação da lei pelos segmentos ligados à produ- por zona e a respectiva outorga onerosa do di-
ção imobiliária. Para eles, a existência de trinta reito de construir. Já as associações de bairro
e um planos regionais não tinha nada de estra- defendiam com vigor a manutenção e preser-
tégico já que não apontavam para questões es- vação das zonas exclusivamente residenciais
senciais e, na prática, dificultavam a utilização, e a Frente Popular, a inclusão e delimitação de
pelos promotores imobiliários, dos dispositivos mais perímetros de ZEIS, além daqueles propos-
legais complexos e excessivos. Lembram, por tos pelo Executivo. Tudo isso formou um mosai-
outro lado, das grandes diferenças territoriais co de debates e embates não só entre os ato-
existentes na cidade de São Paulo: regiões mais res-chaves e representantes desses três blocos,
ricas e regiões mais pobres, que não podem ser mas de outros representantes da sociedade co-
planejadas da mesma forma. Ao invés de ser mo um todo. A imprensa escrita noticiou parte
tratada por uma “lei genérica de zoneamento”, desses confrontos, mas se inclinou a reverberar
a cidade de São Paulo poderia ter suas diferen- a voz das associações de moradores nos polê-
ças consideradas e trabalhadas através, por micos assuntos sobre zoneamento. Reforçava-
exemplo, de intervenções urbanas específicas -se, através da imprensa, uma compreensão

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 141
Sidney Piochi Bernardini

rasa do significado do plano diretor e das ino- entidades interessadas em manter o direito de
vações cruciais que poderia trazer à cidade com construir organizaram-se rapidamente. O Seco-
a inclusão dos instrumentos da política urbana vi, Sinduscon, Creci e outras entidades do se-
estabelecidos pelo Estatuto da Cidade. tor ecoaram juntos na defesa por um potencial
As discussões sobre o potencial constru- básico maior que 1 gratuito, penetrando suas
tivo por zonas iniciaram-se ainda no primeiro representações na Câmara de Vereadores e no
momento, restritas internamente ao governo. Conselho de Política Urbana que se formaria
O ex-diretor do Departamento de Planos Urba- logo em seguida à sanção do plano diretor. O
nos da Secretaria Municipal de Planejamento, argumento apresentado naquele momento não
Engenheiro Ivan Maglio, conta que não havia foi o da “desvalorização do terreno”, mas o do
consenso acerca do uso dos coeficientes de “direito adquirido” – de que a maior parte das
aproveitamento mínimo e máximo 6 para a zonas em São Paulo, à exceção das exclusiva-
aplicação dos instrumentos e de que alguns mente residenciais (Z1), de preservação patri-
participantes pensavam que a utilização de monial e ambiental (como as Z8) e algumas
7
um coeficiente básico para toda a cidade des- outras, já possuíam o coeficiente de aprovei-
valorizaria os terrenos. Vencida, porém, essa tamento mínimo igual a 2 e que, portanto, a
etapa de discussão, a versão apresentada pelo capacidade para este tipo de adensamento já
Executivo incluiu, para a maior parte da cidade existia a priori. A isso, associava-se o discurso
(Macrozona de Estruturação e Qualificação Ur- de que o plano que o governo apresentava ti-
bana) o coeficiente de aproveitamento igual a nha uma vertente meramente arrecadatória,
1, podendo ser ultrapassado (até 2,5), limitado pretendendo-se, com ele, inibir o crescimento
8
ao “estoque de potencial construtivo fixado imobiliário da cidade.
para cada zona ou distrito” e através de con- No gabinete do vereador Nabil Bonduki,
trapartida financeira9 “representada por bene- esse debate não ficou só no campo da “nu-
fícios urbanísticos à vizinhança e à cidade, a se- merologia”, como bem lembra Evaniza Rodri-
rem prestados pelos proprietários dos imóveis gues, atual Coordenadora da União Nacional
em questão”. O governo passou a defender o dos Movimentos de Moradia. A compreensão
coeficiente básico igual a 1 como forma de di- de que era importante pensar os modelos de
rigir a queda dos valores dos terrenos, questão ocupa ção a partir das diferenças existentes
que foi refutada pelos produtores imobiliários na cidade e de que o adensamento construti-
que não acreditavam nessa tese. O Secovi SP vo não significava necessariamente adensa-
alegava, por exemplo, que, mesmo com o coefi- mento populacional elevou a discussão para
ciente igual a 1, os proprietários manteriam os questões de fundo, considerando os vários
preços altos e os empreendedores buscariam estágios de consolidação urbana e as várias
outras alternativas para a produção de imóveis: centralidades e, em especial, o centro principal
compra de terrenos maiores e construção de da cidade e a sua dinâmica de esvaziamen-
condomínios horizontais. A coalizão de forças to populacional. Essa reflexão levou à criação
em relação ao potencial construtivo tomou for- das quatro Macroáreas dentro da Macrozona
ça nos momentos seguintes, mas é certo que as de Estruturação e Qualificação Urbana, como

142 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território

mencionado acima, assumindo-se os diferen- bairros onde reside a população de maior faixa
tes graus de consolidação que esta Macrozona de renda. Em quase todos, a recusa à “inva-
possuía. Além disso, a adoção dos “fatores de são” do comércio, ao trânsito e à verticalização
planejamento: Fp” e dos “fatores sociais: Fs”10 apareceu fortemente nas variadas manifesta-
presentes na fórmula de outorga onerosa, di- ções, inclusive na imprensa, como demonstra a
ferenciados e aplicados em cada macroárea série de matérias publicadas semanalmente pe-
específica, considerava toda a discussão em lo caderno “Imóveis” do jornal Folha de S.Paulo
relação às formas de adensamento construtivo durante o mês de setembro de 2002, logo após
e populacional. O resultado deste processo foi a aprovação do PDE.
a alteração do coeficiente de aproveitamento Na maior parte delas, o descontentamen-
básico 1 proposto no projeto de lei para um to com a lei aprovada foi amplamente noticia-
que variou de 1 (nas antigas zonas Z1, Z9, Z6 do, já que para esses moradores entrevistados,
e Z7) a 2 (nas demais). A essa decisão, houve tratava-se de manter ou tornar estes bairros
uma forte reação dos grupos que defendiam a livres de qualquer interferência, fosse pela res-
contenção à verticalização e as associações de trição a intervenções públicas como ampliação
moradores que bradavam pela preservação dos e extensão de vias, fosse pela proibição de usos
bairros residenciais de baixa densidade cons- do solo mistos. Uma vez que as disposições so-
trutiva e populacional. bre zoneamento não foram incluídas nas alte-
As associações de moradores e de bairros rações do plano diretor, muitas associações que
protagonizaram os debates acerca da segunda reivindicavam restrições mais rígidas nas regras
grande questão polêmica do plano diretor. Parte de uso e ocupação de seus bairros sentiram-se
das discussões ficou conhecida pela veemência não contempladas.
com que o Movimento Defenda São Paulo con- De um lado, estavam aquelas associações
duziu as negociações com o Poder Executivo e que ou defendiam a manutenção das zonas ex-
com a Câmara de Vereadores. Ainda que, para clusivamente residenciais, ou lutavam para que
a opinião pública, esse debate tenha se restrin- seus bairros fossem transformados em uma.
gido à defesa da preservação das chamadas De outro, estavam os comerciantes e donos de
“zonas exclusivamente residenciais”, delimita- estabelecimentos de usos não residenciais que
das originalmente na Lei de 1972, como Zona queriam aproveitar o momento para regularizar
1 (Z1), ele foi mais diversificado e incluiu um situações de inadequação diante da antiga lei
conjunto de posicionamentos que tinha na ma- de zoneamento de 1972. Moradores do Jardim
nutenção da qualidade urbana de alguns bair- da Saúde, Parque dos Príncipes e Jardim Cam-
ros uma bandeira de luta. As discussões locais po Grande, por exemplo, lutaram para que seus
foram ganhando força até culminar no momen- bairros se transformassem em zonas exclusiva-
to da elaboração dos planos regionais, quando, mente residenciais e se articularam para incluir
após um maior amadurecimento acerca das uma das emendas aprovadas pela Câmara (ar-
problemáticas e intenções do poder público, os tigo 160), mas vetadas pela prefeita na ocasião
embates foram mais intensos. Neste campo, in- da sanção. Em lado oposto, estavam os donos
teressante notar que os alardes ocorreram nos de lojas localizadas em vias que atravessavam

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 143
Sidney Piochi Bernardini

bairros exclusivamente residenciais, como a rua aprovação do plano diretor estratégico. Para
Gabriel Monteiro da Silva, uma das principais alguns urbanistas, que compunham uma ver-
avenidas que corta o tradicional bairro Jardim tente de oposição ao governo da ex-prefeita
América e que se consolidou com o uso predo- Marta Suplicy, as modificações comandadas
minantemente comercial, bem como os donos pelo gabinete do vereador Nabil Bonduki ti-
de restaurantes e outros tipos de atividades nham melhorado significativamente o projeto,
da Vila Nova Conceição, que também se mo- mas eram ainda insuficientes – demandavam
bilizaram para aprovar uma emenda (artigo uma melhor articulação entre as tantas leis e
165) a seu favor, parte vetada pela ex-prefeita planos que foram remetidos para regulamen-
Marta Suplicy. tação posterior (como transporte e habitação)
O critério, adotado pelo relator Nabil com as diretrizes do plano, assegurando-se a
Bonduki, de não autorizar mudanças pontuais aplicabilidade de demandas importantes. O re-
de zoneamento no plano diretor estratégico corte do zoneamento foi, para eles, decorrente
permitiu que muitas das emendas propostas da ausência de uma tipologia clara de zonas.
não fossem aprovadas e que, por solicitação Um dos interlocutores deste momento, o pro-
do próprio vereador e de mais 20 entidades, fessor e urbanista Luiz Carlos Costa, insistia na
fossem vetadas pela prefeita. Isso permitiu que articulação de todos os elementos do plano.
todos os conflitos em relação ao zoneamento Em entrevista concedida no dia 15 de agosto
pudessem ser amadurecidos e discutidos com de 2002 para o jornal Folha de S.Paulo, Costa
mais calma no momento seguinte, durante as ressaltava a necessidade de que o plano dire-
reuniões regionais, o que resultou em acalora- tor contivesse todos os elementos necessários
dos debates nas dezenas de encontros realiza- para assegurar a coerência, no conjunto da ci-
dos durante a construção desses planos, com dade, das ações executivas e normativas pro-
vários dos conflitos resolvidos e outros amplia- postas. Em outras palavras, dizia:
dos. Assim é que bairros como Jardim Paulis-
Não basta, por exemplo, definir um siste-
tano, Jardim América e Jardim Europa conse-
ma de transportes com determinada capa-
guiram a manutenção da exclusividade do uso cidade se não ficarem igualmente estabe-
residencial e bairros como Vila Nova Conceição lecidos os limites quantitativos de uso pa-
tiveram parte de seu território enquadrado em ra as regiões servidas por ele (...). Apesar
zona exclusivamente residencial, parte em zo- dos diversos mapas que ele contém, não
se consegue visualizar claramente qual o
na mista.
plano urbanístico proposto, seus objetivos
O mosaico resultante deste processo de- e a estratégia de implementação.
monstra o peso das negociações, mas aponta
também para uma complexidade, em termos Esta questão da capacidade de suporte da in-
de número de zonas e parâmetros de uso e fraestrutura em consonância com o zoneamen-
ocupação do solo. Esta aparente falta de sen- to ensaiava alguns posicionamentos da crítica
tido lógico, que ficou mais patente depois de que se faria, nos anos posteriores, à aprovação
aprovada a lei de zoneamento, já vinha sen- do plano diretor e da lei de uso e ocupação do
do discutida ainda no conturbado período de solo, quando o setor de produção imobiliária

144 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território

passou a reivindicar o aumento de estoque de Regularização de Loteamentos – Resolo,


construtivo em algumas zonas onde este já ha- respectivamente. Na estrutura departamental
via se esgotado. da Sehab, a Superintendência de Habitação
O terceiro aspecto a ser destacado refe- Popular é ramificada em departamentos regio-
re-se à delimitação das Zonas Especiais de In- nalizados, chamadas de Habi’s regionais, cada
11
teresse Social que também se tornou um de- uma responsável por uma região da cidade
safio para os gabinetes técnicos, considerando (Norte, Leste, Sudeste, Sul e Centro), que foram
o alto número de favelas e loteamentos irregu- essenciais para o fornecimento de informações
lares existentes e os conflitos com a população sobre as favelas. Quanto aos loteamentos irre-
local moradora no entorno destes assentamen- gulares, o trabalho de regularização que vinha
tos, no decorrer do processo de delimitação. sendo feito por Resolo também possibilitou a
Não menos polêmico, esse assunto envolveu indicação daqueles que mereciam ser delimi-
discussões entre praticamente todos os campos tados. Foram também acrescidos os conjuntos
de interesses e, principalmente, entre os três habitacionais irregulares, esses indicados pela
blocos representativos. A Frente Popular que Companhia Metropolitana de Habitação de São
reunia os movimentos por moradia defendia Paulo (Cohab) e pela própria Habi, que tinham
a inclusão de mais Zeis, principalmente as Zeis o cadastro dos conjuntos por ela geridos. Todos
2 destinadas à construção de empreendimen- esses casos comporiam a chamada Zeis 1, as-
tos habitacionais populares; o bloco ligado ao sim denominada para os casos de áreas ocupa-
setor imobiliário tinha restrições à inclusão de das por populações de baixa renda, abrangen-
Zeis em alguns setores da cidade e duelaram, do favelas, loteamentos precários e empreendi-
portanto, com os movimentos sociais. Já algu- mentos habitacionais de interesse social ou de
mas associações de moradores, principalmen- mercado popular em que houvesse o interesse
te das zonas exclusivamente residenciais, não em promover a recuperação urbanística, a re-
queriam ouvir falar em criação de zonas espe- gularização fundiária e a produção ou manu-
ciais próximas aos seus bairros – tal posiciona- tenção de HIS (Habitação de Interesse Social).
mento vinha carregado de um posicionamento Quanto às chamadas Zeis destinadas a
contrário ao adensamento populacional. novos empreendimentos, o desafio era ainda
Desde o início, a delimitação das Zeis maior, pois essas ainda eram uma novidade
ficou sob a responsabilidade da Secretaria de naquele momento. Alguns municípios já tinham
Habitação e Desenvolvimento Urbano (Sehab), delimitado Zeis de terrenos vagos, como Diade-
por solicitação da Secretaria de Planejamento ma, por exemplo, mas ainda não havia se con-
(Sempla), mas o prazo foi muito curto para rea- solidado um método para realizar tal delimita-
lizar todo o trabalho. A vantagem é que Sehab ção. De novo, o auxílio de outros departamen-
já dispunha de informações – as favelas e os tos foi essencial. O papel da Sehab foi, então,
loteamentos irregulares já estavam mapeados o de selecionar os imóveis indicados mais ade-
pelos departamentos, ligados à Sehab, que quados para serem delimitados, tornar precisa
faziam a sua gestão: a Superintendência de sua delimitação e estabelecer as regras para
Habitação Popular – Habi e o Departamento o funcionamento das Zeis. A indicação, neste

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 145
Sidney Piochi Bernardini

caso, foi feita, na sua maioria, pelas Habi’s, terrenos ou edifícios isolados, mas grandes
que recebiam indicações dos movimentos de perímetros que incluíam conjuntos de imóveis
moradia, da Cohab-SP (Companhia Metropo- contíguos de vários proprietários e com várias
litana de Habitação de São Paulo) e da CDHU modalidades de uso, predominando, entretan-
(Companhia de Desenvolvimento Habitacional to, os não utilizados ou subutilizados.
e Urbano do Governo do Estado de São Paulo). A arquiteta Ana Lucia Ancona, que coor-
A Cohab, por exemplo, desenvolvia um estudo denou o processo de delimitação dessas Zeis
de imóveis para constituir um banco de terras pela Sehab, argumenta que era importante
da Companhia para futuros empreendimentos trabalhar critérios para viabilizar a implemen-
habitacionais. Todos esses terrenos estudados tação destas zonas, já que não cabia delimitar
foram indicados. todos os terrenos vagos. Esses critérios passa-
Na perspectiva de se utilizar esses imó- vam, por exemplo, pela questão da viabilidade
veis disponíveis para a habitação em todas as técnica e econômica, pois nem todos os imó-
regiões da cidade, surgiu a ideia, então, de veis indicados eram adequados ou viáveis para
se trabalhar com uma categoria de Zeis que a construção de habitação social, em razão,
abrangesse imóveis na área central da cidade. principalmente, do seu preço. Uma forma de
Consideradas como categoria à parte, essas trabalhar esses critérios foi introduzir regras
zonas foram denominadas Zeis 3, constituídas específicas para os empreendimentos habita-
tanto por terrenos não utilizados ou subutili- cionais de interesse social, categoria de uso
zados (estacionamentos, por exemplo) como criada especificamente para o caso das Zeis.
por edifícios verticais não utilizados ou aban- Um dos critérios de atendimento, neste caso,
donados. A delimitação dessas também tinha era o de renda familiar (até seis salários mí-
antecedentes, já que a Coordenadoria do Pro- nimos), mas outros, como por exemplo, tama-
grama Morar no Centro, ligada à Sehab, ha- nho mínimo da unidade, restringiam o atendi-
via contratado estudos para a delimitação dos mento a um universo específico de famílias ou
chamados Perímetros de Reabilitação Integra- pessoas. Por outro lado, havia também a preo-
da do Habitat (PRIHs). Ao incluir setores urba- cupação de que os perímetros fossem de fato
nos ocupados por habitações precárias e corti- coerentes com a situação de subutilização –
ços na área central, os objetivos desses eram um dos critérios, por exemplo, foi indicar imó-
o de valorizar as potencialidades do bairro e veis subutilizados há pelo menos cinco anos.
da comunidade, mobilizar os grupos visando Ancona lembra que a diversidade de usos era
sua organização e exercício da cidadania e a uma diretriz clara do plano diretor e, portanto,
inclusão social por meio de melhorias das con- o recorte mais adequado das zonas tinha que
dições habitacionais. Muitos desses períme- seguir referências de uso do solo. Não se pre-
tros foram, portanto, delimitados como Zeis. tendia delimitar grandes áreas ou bairros intei-
Mas não só. Antigas áreas industriais aban- ros, mas estabelecer, de fato, um recorte pre-
donadas nos eixos ferroviários ao longo do rio ciso daquelas propriedades que eram interes-
Tamanduateí e na Vila Leopoldina também fo- santes para habitação de interesse social. Ao
ram incluídas. Não foram delimitados apenas que parece, tal diretriz foi objeto de conflitos

146 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território

com os movimentos que desejavam imprimir estratégia, nesse caso, era possibilitar a produ-
perímetros mais extensos, como fizeram no ção habitacional também pelo mercado, além
distrito da Mooca, cuja proposta teve que ser do poder público. No campo das modificações
ajustada por Sehab, recusando boa parte das pontuais estavam as inclusões de Zeis propos-
áreas indicadas pelos movimentos. tas pelos movimentos e por vereadores. Muitas
Todo o trabalho de delimitação, neste foram recusadas pela equipe da Sehab, mas
primeiro momento, foi realizado em no máxi- voltaram a ser propostas durante a elaboração
mo três meses e as Zeis foram incluídas sem dos planos regionais. As porcentagens de HIS
muitos debates. Mas quando o Projeto de Lei (Habitação de Interesse Social) e HMP (Habita-
chegou à Câmara, a mobilização dos movimen- ção de Mercado Popular) obrigatórias nas Zeis
tos trouxe nova luz para a questão. Segundo também foram incluídas, além dos incentivos
Evaniza Rodrigues, enquanto havia certo con- em relação ao não pagamento das outorgas
senso em relação às Zeis 1, as Zeis 2 e 3 esta- onerosas e o estabelecimento do coeficiente
vam aquém das expectativas dos Movimentos. de aproveitamento máximo em 4 para as áreas
Foi a coalizão de forças que se deu naquele centrais, gratuito para HIS.
fórum que permitiu uma entrada mais efetiva Os Movimentos consideravam os períme-
dos Movimentos nesta discussão. É importante tros de Zeis 2 e 3 apresentados pelo Executivo
lembrar que a Conferência Municipal de Habi- insuficientes e, desde então, o trabalho junto à
tação que havia acontecido em setembro de Câmara Municipal foi o de propor a delimita-
2001 tinha municiado os movimentos a discuti- ção de novas zonas. Evaniza Rodrigues conta
rem propostas para a política habitacional que que a busca por novos terrenos se deu de for-
passavam pela reativação dos mutirões como ma relativamente improvisada. Sem recursos
forma de produção habitacional, regularização (automóveis, funcionários ou técnicos), grupos
fundiária, obras de urbanização e pelo incen- dos Movimentos se organizaram para visto-
tivo à moradia no Centro. Dali, a inclusão de riar terrenos e apresentá-los ao gabinete do
zonas especiais orientadas para a produção da vereador Nabil Bonduki. No gabinete, um gru-
moradia era um passo. po de técnicos auxiliava os grupos a localizar
Na Câmara, modificações expressivas e delimitar esses terrenos no mapa da cidade.
alteraram substancialmente o projeto original. Depois, eram encaminhados à Sehab para que
No campo das modificações gerais, houve a efetivassem a delimitação completa.
inclusão da categoria de Zeis 4 – imóveis va- Os conflitos, neste momento, vieram à
gos localizados na Área de Proteção aos Ma- tona, pois boa parte das áreas indicadas pelos
nanciais, pensados para servir como “áreas movimentos não foram novamente aceitas por
pulmão” no processo de remoção de famílias Sehab, esbarrando naqueles critérios previa-
moradoras em áreas de risco naquela zona e, mente estabelecidos. Evaniza lembra que uma
no âmbito da discussão com o setor imobiliário, parte das indicações era de terrenos muito
a inclusão de mais uma categoria de tipologia pequenos, abaixo do critério de tamanho es-
habitacional, a de mercado popular, para aten- tabelecido e, além disso, estava a questão dos
der às famílias de até 16 salários mínimos. A preços considerados elevados para viabilizar

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 147
Sidney Piochi Bernardini

empreendimentos de interesse social. Quando 16, passou a ser praticado após a aprovação
o Projeto de Lei chegou novamente à Câmara do plano diretor por cooperativas habitacio-
Municipal, as deficiências continuavam laten- nais ou incorporadoras voltadas ao mercado
tes para os movimentos de moradia. Na cha- habitacional de “renda média”. Isso aqueceu a
mada “região leste 1”, por exemplo, não havia possibilidade de não ter que usar o instrumen-
sequer uma área delimitada e, mesmo com a to das Zeis para realizar empreendimentos de
indicação de novos imóveis pelos movimen- interesse desse mercado.
tos, a configuração não se modificou. Terrenos Do outro lado está a crítica dos próprios
bem localizados nas regiões leste e sudeste, setores ligados ao mercado imobiliário que não
por exemplo, não tiveram a concordância por concordaram com o conjunto de Zeis 3 delimi-
parte da SEHAB. Percebia-se uma tendência, tadas na área central. Demarcadas em perí-
orientada pelos critérios estabelecidos, em diri- metros relativamente extensos, as Zeis 3, para
gir as Zeis de “vazios” nas áreas mais periféri- Eduardo Della Manna, diretor de Legislação ur-
cas da cidade. A primeira proposta lançada em banística do Secovi-SP, nunca seriam viabiliza-
um boletim do plano diretor nos primórdios do das em razão dos altos preços dos imóveis se-
processo já mostrava esta tendência, e o ma- lecionados. Os pouquíssimos empreendimentos
pa final incluído no plano aprovado ratifica sua já produzidos, restritos à esfera do Poder Pú-
posição em relação às Zeis 2. blico, demonstram a dificuldade de viabilizar as
Para Evaniza Rodrigues, o tratamento Zeis 3, segundo ele. A partir de outra ótica, es-
dado às Zeis 2 foi a grande falha do plano di- sa constatação também foi feita por Tsukumo
retor, demonstrando um descontentamento, (2007). Ela ressalta que estudos recentes mos-
ainda hoje, em relação aos resultados alcan- tram que o Centro não está desvalorizado e
çados. “Este conjunto de Zeis 2 nem arranha que a demarcação das Zeis 3 partiu, portanto,
o déficit habitacional atual”, diz ela. Suas crí- de uma suposição equivocada – de que a sim-
ticas não param por aí. Lamenta o fato de que ples manutenção da população de baixa renda
tais Zeis não estejam relacionadas com outros no Centro seria, por si, um fator de deprecia-
instrumentos, como o parcelamento, edifica- ção dos valores dos imóveis. Assim também, a
ção e utilização compulsórios ou o direito de autora alerta para uma crença exagerada no
preem pção, por exemplo. Lembra também poder transformador dos instrumentos urbanís-
que a faixa salarial estabelecida em até seis ticos, que devem estar inseridos em estratégias
12
salários mínimos como critério de atendi- mais arrojadas de gestão, investimentos e pro-
mento acaba privilegiando apenas as famílias dução habitacional. Cabe ressaltar, neste senti-
que possuem faixas salariais mais próximas do, que a participação ou intervenção dos pro-
de seis, excluindo aquelas com faixas salariais prietários de imóveis, cruciais para a efetivação
abaixo de três. Assim também, a permissivida- de qualquer política habitacional, não foi muito
de para a instalação de usos mais diversifica- expressiva nos momentos de construção do
dos em Zeis, não restritas à habitação social plano e, ao que parece, ficaram, na sua maioria,
pode “deturpar”, às vezes, seu objetivo origi- alheios ao processo ou tiveram intervenções
nal. O atendimento ao HMP, em faixas de 6 a muito pontuais.

148 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território

Nos momentos seguintes à aprovação destinada a HIS e HMP, e desses, 50% obriga-
do plano diretor, pode-se dizer que houve uma tórios para HIS e os outros 30% para HIS ou
forte mobilização para a inclusão de novos HMP. Em Zeis 2 e 3, neste montante de 80%, a
perímetros de Zeis, principalmente das Zeis 2, composição foi fixada em 40% para HIS e 40%
demonstrando-se que o amadurecimento do para HIS ou HMP. Os outros 20% poderiam ser
processo e a realização destas reuniões regio- destinados a outros usos, inclusive para HMP.
nais foram essenciais para a revisão destas zo- Outra modificação importante que deve ser
nas, questão que não tinha sido devidamente destacada refere-se às exceções previstas para
esgotada nos momentos anteriores. O papel todos os casos de Zeis e também incorpora-
dos Movimentos, na insistência de incluir novos das posteriormente na lei de uso e ocupação
perímetros, resultou no aumento expressivo do solo. Foram excepcionados das destinações
de Zeis. Se em relação às Zeis 1, por exemplo, obrigatórias nestas Zeis: os terrenos públi-
houve um aumento de pouco mais de 23% de cos edificados ou não edificados, destinados
perímetros delimitados (517 no PDE para 640 a áreas verdes e a equipamentos sociais de
nos PREs), em relação às Zeis 2 e 3, houve um abastecimento, assistência social, cultura,
aumento de mais de 94% de perímetros (292 educação, esportes, lazer, recreação, saúde
dos PREs contra 150 do PDE). e segurança, além dos terrenos particula res
Por outro lado, as negociações com o edificados ou não edificados que viessem a
setor imobiliário resultaram em modificações ser destinados a equipamentos sociais, desde
não satisfatórias nas regras da composição que conveniados com o Poder Público. Tais ex-
de Habitação de Interesse Social (HIS) e Habi- ceções são até bem-vindas, pois assumem a
tação de Mercado Popular (HMP) em Zeis. O prática corriqueira de atividades diversificadas
artigo 176 do PDE estabelecia que nas Zeis 1 nos assentamentos habitacionais. O problema,
e 2 era obrigatório destinar o mínimo de 70% no entanto, foi não ter se estabelecido um per-
13
da área construída para HIS, podendo o res- centual mínimo obrigatório para os empreen-
tante da área ter destinação em conformida- dimentos habitacionais. Todas essas inserções
de com as regras da antiga Z2 – que permitia tiveram impactos na aplicação posterior deste
usos mistos – e nas Zeis 3, tal porcentagem foi instrumento, já que antigos edifícios residen-
fixada em 50%, podendo o restante ser utili- ciais delimitados como Zeis 3 e que se assen-
zado em conformidade às regras estabelecidas tam sobre antigas áreas verdes públicas não
para a antiga Z4, que também permitia usos terão que ser obrigatoriamente reabilitados
mistos. Por pressão dos setores imobiliários, tal para habitação. É o caso dos edifícios São Vi-
regra foi substancialmente modificada na lei to e Mercúrio, localizados no centro da cida-
de zoneamento. Em Zeis 1, estabeleceu-se que de, que foram demolidos para dar lugar a uma
no mínimo 80% da área construída deveria ser provável praça.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 149
Sidney Piochi Bernardini

perímetros de zoneamento em respeito a todo


As “emendas na calada
o processo de negociação anterior levaram-no
da noite” a rejeitar as emendas. Para ele, a situação era
difícil, uma vez que envolvia um vereador da
Um fato que também marcou este momento base governista e, portanto, trazia emendas
de controvérsias na elaboração do plano foi de interesse do governo. A rejeição foi um tan-
a apresentação inesperada de um conjunto to desgastante politicamente, mas, segundo
de emendas ao projeto de lei do PDE no mo- ele, era o melhor a se fazer, em coerência aos
mento de sua aprovação em agosto de 2002. acordos estabelecidos no processo participati-
Nabil Bonduki explica que, após todo o pro- vo. De todas aquelas emendas apresentadas,
cesso de negociação com os vários setores apenas algumas foram incluídas, a contragos-
participativos e com os próprios vereadores, to de vários vereadores e do próprio relator. O
que já haviam solicitado a inclusão de várias desgaste foi acentuado a partir de toda a abor-
emendas durante o processo, muitas discuti- dagem realizada pela imprensa que, em tom de
das e incorporadas, tudo caminhava para o “caça às bruxas”, buscava os nomes dos verea-
sucesso na aprovação integral do projeto. Na dores que as tinham encaminhado.
semana que antecedeu à aprovação, um ve- O momento seguinte foi marcado por
reador da base governista, agregado a outros um movimento de derrubada das emendas
interlocutores insatisfeitos, resolveu discutir o por meio de vetos da prefeita. Esse movimento
projeto, rever cada perímetro proposto para composto por setores representativos demons-
as macroáreas e outras zonas, além de ques- trou a legitimidade do processo e significou
tionar aspectos do texto. Assim também, al- uma intervenção mais radical da prefeita nos
guns setores do Executivo interferiram e apre- vetos realizados, já que ela pretendia vetar
sentaram modificações que não haviam sido apenas algumas emendas de menor importân-
anteriormente discutidas. cia. A coerência cobrada pelo relator, de que
No dia 21 de agosto, durante o proces- nenhuma inclusão relacionada a zoneamento
so de aprovação do plano, o mesmo vereador fosse feita naquele momento, contribuiu para
apresentou várias propostas para o estabele- sua decisão, consolidando todo o processo par-
cimento de Corredores de Comércio e Serviços ticipativo que se realizou. Além dos vetos me-
(inclusive em zonas exclusivamente residen- nos expressivos, a maior parte deles referiu-se,
ciais) e que, segundo ele, já tinham sido acor- de fato, às alterações de zoneamento.
dadas com o Executivo e demais vereadores.
Em seguida, já na madrugada do dia 22 para
o dia 23, outro vereador, esse da oposição,
apresentou uma pasta contendo 150 emen- Considerações finais
das substitutivas – a maioria relacionada a
mudanças de zoneamento. Para Bonduki, era O processo de participação popular durante
inegociá vel incluir qualquer uma daquelas a elaboração do Plano Diretor Estratégico de
emendas. Sua posição contrária à inclusão de São Paulo elevou a possibilidade de tornar o

150 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território

planejamento municipal mais democrático e institucional nas esferas democráticas de ne-


aumentar a aderência entre os representan- gociação. Não se deve esquecer, por outro la-
tes políticos, setores técnicos pertencentes ao do, que a abrangência territorial, o volume de
quadro da administração pública e os demais participantes e a complexidade das questões
agentes sociais interessados no desenvolvi- tornaram, muitas vezes, dispersivas as deci-
mento urbano. Nesse caso específico, destaca- sões deliberadas, induzindo, por exemplo, à
-se o papel peculiar e preponderante do Poder manutenção de recortes territoriais excessivos
Legislativo com a condução do gabinete do no zoneamento municipal.
vereador Nabil Bonduki que ampliou os fóruns Mesmo assim, pode-se afirmar, que, em
de participação e propagou as esferas de ne- linhas gerais, esses instrumentos legais refle-
gociação em dois momentos importantes da tem algumas conquistas dos vários segmentos
formulação dos projetos de lei. representativos que ganharam e perderam
A aprovação desse conjunto de leis ur- durante o processo. Os ganhos só poderão
banísticas foi uma conquista importante, con- ser verificados após uma avaliação precisa da
siderando as dificuldades intrínsecas à consti- implementação desses instrumentos. Alguns
tuição de regras e disciplinas urbanísticas em trabalhos acadêmicos recentes, como o de
uma cidade que possui mais de 10 milhões de Caldas (2009), já demonstraram a timidez com
habitantes, onde as dinâmicas de exclusão que as Zeis 2 (imóveis vagos e subutilizados
socioterritorial são evidentes, a gama de con- reservados para a construção de habitação de
flitos é bastante elevada e, tradicionalmente, interesse social) vêm sendo utilizadas para a
as atividades do setor imobiliário são muito produção de habitação social. Ao mesmo tem-
intensas. O sucesso da aprovação destes ins- po, o Secovi-SP constatou, através de pesquisa
trumentos (o plano diretor, planos regionais própria, que a aplicação da outorga onerosa
e lei de uso e ocupação do solo) no período já é um sucesso e que os setores imobiliários
de três anos e meio se deve essencialmente incorporaram o instrumento com grande faci-
ao substancial processo de negociações em lidade. Tal sucesso pode ser comprovado pelo
que os segmentos mais interessados puderam esgotamento, em algumas regiões, do chama-
explicitar suas posições e disputá-las em meio do “estoque de potencial construtivo”. O volu-
aos variados fóruns de discussão promovidos me considerável de recursos arrecadados com
pelos principais interlocutores governamen- a venda de potencial construtivo indica, por
tais. Ficou claro que, pelo menos no caso de outro lado, uma receita adicional a ser utiliza-
São Paulo, encaminhamentos escusos como os da para investimentos e que já têm sido apli-
das “emendas na calada da noite” constrange- cados em obras de urbanização de favelas em
ram-se diante de um potencial fortalecimento Zeis 1, conforme comprovou a pesquisa.

Sidney Piochi Bernardini


Arquiteto e Urbanista. Mestre em Estruturas Ambientais e Urbanas e Doutor em História e Funda-
mentos da Arquitetura e do Urbanismo. Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universi-
dade Paulista (UNIP). São Paulo, Brasil.
sidpiochi@uol.com.br

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 151
Sidney Piochi Bernardini

Notas
(1) Es ma-se que até o final do processo com promulgação da Lei que ins tuiu os planos regionais
estratégicos e a lei de uso e ocupação do solo, par ciparam mais de cinquenta mil pessoas e
mais de três mil en dades.

(2) Em dezembro de 2003, após o Projeto de Lei ser encaminhado à Câmara Municipal e a realização
de inúmeras audiências públicas regionais e temá cas, uma liminar solicitada pelo Promotor
de Jus ça Mário Malaquias determinou a interrupção do processo, alegando que a Prefeitura
não havia publicado os dois projetos de lei (zoneamento e planos regionais) para a realização
das audiências públicas e que os planos regionais deveriam ser discu dos junto a dois outros
projetos: o plano municipal de habitação e o plano municipal de circulação viária e transportes.
Na prá ca, tal interrupção demonstrava o descontentamento de alguns setores, principalmente
das associações de bairros que discordavam de aspectos do zoneamento, pouco discu dos ou
não atendidos nas audiências anteriores. Uma matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo,
em 4 de setembro de 2003, indicava a existência de “brecha” no projeto do zoneamento, que
permi a a instalação de comércio e serviços em zonas exclusivamente residenciais, questão que
era absolutamente atacada pelas associações desses bairros residenciais.

(3) Coeficiente de Aproveitamento é a relação entre a área construída de uma edificação e a área do
terreno que ela ocupa.

(4) Ins tuído pelo Estatuto da Cidade, o instrumento da outorga onerosa do direito de construir
consiste na concessão que o Poder Público Municipal oferece ao particular, mediante o
estabelecimento de normas no plano diretor municipal, para que possa construir acima do
coeficiente de aproveitamento fixado para aquela área ou zona, mediante contrapartida
financeira. A fórmula da outorga onerosa foi ins tuída com a inclusão de dois fatores: o fator
de planejamento urbano e o fator de interesse social, que deveriam variar conforme a zona e os
obje vos de desenvolvimento urbano e de diretrizes de uso e ocupação do solo estabelecidos
no PDE.

(5) A Área de Proteção aos Mananciais foi ins tuída pelas leis estaduais 898/75 e 1172/76, incidindo
sobre vários municípios da Região Metropolitana de São Paulo. Com o obje vo de proteger os
mananciais hídricos da região, o perímetro desta área abrangeu extensos territórios no entorno
dos reservatórios hídricos des nados a abastecer sua população. No caso do município de São
Paulo, o perímetro incluiu áreas no entorno dos reservatórios Billings e Guarapiranga que,
mesmo com a ins tuição da lei, veram um rápido e danoso processo de ocupação irregular,
comprometendo a qualidade das águas destes reservatórios.

(6) O PDE considerou o coeficiente de aproveitamento mínimo aquele abaixo do qual o imóvel pode
ser considerado subu lizado e máximo, aquele que não pode ser ultrapassado.

(7) Coeficiente básico é, segundo o PDE, aquele que resulta do potencial constru vo gratuito inerente
aos lotes e glebas urbanos.

(8) Estoque de potencial constru vo é, segundo o PDE, o limite de potencial constru vo adicional,
definido para zonas, microzonas, distritos ou subperímetros destes, áreas de operação urbana
ou de projetos estratégicos ou seus setores, passível de ser adquirido mediante outorga onerosa
ou por outro mecanismo previsto em lei.

152 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
Negociando o território

(9) Contrapar da financeira é o valor econômico, correspondente à outorga onerosa, a ser pago ao
Poder Público pelo proprietário de imóvel, em espécie ou em Cer ficado de Potencial Adicional
de Construção – Cepac.

(10) Inseridos na fórmula da contrapar da financeira da outorga onerosa incluída no ar go 213 do


plano, os fatores de planejamento e social foram estabelecidos por bairros e por categorias de
uso, incluindo HIS e HMP, presente nos quadros 15 e 16 do plano.

(11) O ar go 171 da Lei do PDE definiu as Zonas Especiais de Interesse Social como sendo porções
do território des nadas, prioritariamente, à recuperação urbanís ca, à regularização fundiária
e produção de Habitações de Interesse Social – HIS ou do Mercado Popular – HMP definidos
nos incisos XIII e XIV do ar go 146 desta lei, incluindo a recuperação de imóveis degradados, a
provisão de equipamentos sociais e culturais, espaços públicos, serviço e comércio de caráter
local.

(12) Ana Lucia Ancona lembra que o teto estabelecido em seis salários mínimos teve como referência
o parâmetro adotado para o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que na prá ca tem
atendido às faixas salariais acima de quatro salários mínimos.

(13) O parágrafo 9º do ar go 175 considerou a possibilidade de se implantar HMP na porcentagem


complementar estabelecida para a zona (30% nas Zeis 1 e 2 e 50% nas Zeis 3), podendo-se
u lizar as mesmas regras de HIS, desde que a unidade habitacional vesse área inferior a 50m².

Referências
ASCHER, F. (2010). Os novos princípios do urbanismo. São Paulo, Romano Guerra.

BONDUKI, N. (2007). “O Plano Diretor Estratégico de São Paulo”. In: BUENO, L. M. de M. e CYMBALISTA,
R. (org.). Planos diretores municipais. Novos conceitos de planejamento territorial. São Paulo,
Annablume.

BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Programas Urbanos (2006). Banco de
Experiências de Plano Diretores Par cipa vos.

CALDAS, N. M. P. (2009). Os novos instrumentos da polí ca urbana: alcance e limitações das ZEIS. Tese
de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.

CORRÊA, R. L. (1989). O espaço urbano. São Paulo, Á ca.

CYMBALISTA, R. (2006). Par cipação popular no Legisla vo – Plano Diretor Estratégico de São Paulo.
Brasília. Disponível em: www.cidades.gov.br

HEALEY, P. (1997). Collabora ve planning. Shaping places in fragmented socie es. London, Macmillan
Press.

JORNAL FOLHA DE S.PAULO (2002) “Para especialistas, Projeto con nua precário”. Caderno Co diano.
São Paulo, 15 de agosto de 2002.

______ (2003). “Jus ça suspende projetos de zoneamento”. Caderno Co diano, 4 de setembro de


2003.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012 153
Sidney Piochi Bernardini

LAMPARELLI, C. (1978). “Metodologia do planejamento urbano”. In: CAVALCANTI, M. e TOLEDO, A. H.


P. de (org.). Planejamento urbano em debate. São Paulo, Cortez e Moraes.

MAGLIO, I. C. (2005). A sustentabilidade ambiental no planejamento urbano do Município de São


Paulo: 1971-2004. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.

NERY JR., J. M. (2002). Um século de polí ca para poucos: o zoneamento paulistano: 1886-1986. Tese
de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.

OLIVEIRA, D. de (2000). Curi ba e o mito da cidade modelo. Curi ba, UFPR.

SANTOS, B. de S. (2007). Renovar a crí ca e reinventar a emancipação social. São Paulo, Boitempo.

SÃO PAULO (município) (2002). Gabinete do Vereador Nabil Bonduki. Plano Diretor Estratégico do
Município de São Paulo – Lei nº 13.430, de 13 de setembro de 2002. São Paulo, 2002.

SECOVI-SP. GeoSECOVI. MARQUES, Silvana e LUSIVO, André Rodriguez (2009). O geoprocessamento


como ferramenta de análise do mercado imobiliário. Estoque de outorga onerosa residencial.
São Paulo, fevereiro. Disponível em: www.secovi.com.br

TSUKUMO, I. T. L.(2007). Habitação Social no Centro de São Paulo: legislação, produção, discurso.
Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.

VILLAÇA, F. (2010). “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”. In: DEÁK, C.
e SCHIFFER, S. (org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, EDUSP.

Entrevistas realizadas e citadas no artigo


1)Arquiteta Ana Lucia Ancona – Ex-coordenadora do Programa Guarapiranga (2001-2004),
Coordenadora do processo de criação das Zonas Especiais de Interesse Social pela Secretaria de
Habitação de São Paulo (SEHAB) para o Plano Diretor Estratégico de São Paulo.

2) Arquiteto Eduardo Della Manna – Diretor de Legislação Urbanís ca do SECOVI.

3) Evaniza Rodrigues – Coordenadora da União Nacional dos Movimentos de Moradia.

4) Arquiteto Nabil Bonduki – Ex-vereador da Câmara Municipal de São Paulo (2001-2004) e relator do
projeto de Lei do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, Lei de Uso e Ocupação do Solo e Planos
Regionais Estratégicos.

Texto recebido em 21/out/2011


Texto aprovado em 30/nov/2011

154 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 135-154, jan/jun 2012
A espacialidade degradante tendencial
e o horizonte de uma educação
política do espaço
The tendency towards a degrading spatiality
and the horizon for political space education
Ulysses da Cunha Baggio

Resumo Abstract
Este artigo se propõe a analisar a formação pro- This article aims to analyze the progressive
gressiva de uma condição socioespacial contra- formation of a contradic tor y sociospatial
ditória, descontínua e desigual, submetida a uma condition, discontinuous and uneven, submitted
crescente privatização e mercantilização, que se to increasing privatization and commodification,
afirma como uma tendência na urbanização ex- that has been consolidating as a trend in
tensiva contemporânea. Ela se apresenta bastante contemporary extensive urbanization. It is spread
difundida no mundo atual, com forte incidência no out in the current world, with strong incidence
Brasil e na sua realidade urbana, não se restringin- in Brazil and in its urban reality, not only in
do a expressões metropolitanas, mas também re- metropolises, but also in small and medium cities,
cobrindo cidades médias e pequenas, constituindo, thus constituting an urban geography of space
desse modo, uma geografia urbana da segregação segregation. Reverberating in the dimensions
espacial. Reverberando nas dimensões da vida co- of daily life, this contradictory and intensified
tidiana, esse movimento contraditório recrudescido movement raises insurgencies and practices of
suscita insurgências e práticas de caráter reativo, a reactive nature, which open up possibilities
pelas quais se abrem possibilidades a formas de for the forms of appropriation and use of space,
apropriação e uso do espaço, mais especificamen- more specifically of the city. This scenario has
te da cidade. Esse cenário nos estimulou a pensar encouraged us to think about the importance
sobre a importância e a necessidade de uma educa- and necessity of a political space education for
ção política do espaço para a contemporaneidade. contemporaneity.
Palavras-chave: segregação espacial; alienação Keywords : space segregation; sociospatial
socioespacial; apropriação do espaço; representa- alienation; appropriation of space; representation
ção do espaço; educação política do espaço. of space; political space education.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
Ulysses da Cunha Baggio

urbanístico e da memória da cidade, buscando


Introdução
também assegurar condições favoráveis à vida
comunitária no bairro, o que, não raro, envolve
enfrentamentos com o Estado (Baggio, 2005).
O distanciamento gera solidão e deses-
pero, e “encontro com o nada”, cinismo, Nesse sentido é que se faz necessária
gestos de desafio. [...] Ou converte- certa cautela quanto à aferição de suas reais
-se de súbito [...] na adoção ardente de possibilidades e potencialidades, constituindo
um ensinamento fanático que, por uma um equívoco fazer tábula rasa dessas práticas.
simplificação monstruosa da realidade,
Compreende-se que, no conjunto, elas não se
finge responder a todas as perguntas.
(Schumacher, 1983, p. 73) traduziriam como sujeitos privilegiados da His-
tória, mas mais propriamente como agentes
Uma aferição mais atenta da situação de nos- capazes de transformar determinadas situa-
sas cidades possibilita-nos a constatação de ções socialmente indesejadas nas comunidades
cenários os mais diversos, que recobrem tanto em que atuam. Estaríamos, então, diante de
expressões da irracionalidade como de pos- uma crise das formas tradicionais de agregação
sibilidades mais favoráveis e factíveis à vida e representação, com a precipitação de novas
e à existência. Interessam-nos, mais especifi- forças e atores sociais, bem como de novas es-
camente, certas ações e práticas socioespa- tratégias de ação.
ciais pelas quais se vislumbram a emergência Se o dinheiro e o mercado adquiriram
e o desenvolvimento de novas perspectivas à maior poderio e projeção no mundo atual,
sociedade na sua interface relacional com o pode-se dizer que a política e inventividade
território, principalmente aquelas dotadas de social também se redefinem e se fortalecem
maior autonomia e portadoras do sentido da diante da marcha inexorável do capital e do
autogestão, que operam, portanto, mais inde- mercado, situação na qual o econômico e o
pendentemente do Estado e de suas interfe- político não se projetam como instâncias mu-
rências, afastando-se, desse modo, de possíveis tuamente excludentes, sendo elas integrantes
cooptações. de um mesmo processo histórico, isto é, o
Assim, o mundo atual nos revela um uni- desenvolvimento socioespacial contraditório
verso plural de práticas e reivindicações sociais e desigual do capitalismo. No cerne de suas
(movimentos de moradores, lutas ambientais, próprias contradições formam-se virtualidades
etc.), nos mais diversos lugares e regiões, com reativas, que sinalizam a possibilidade de uma
conformações e objetivos variados, inclusive outra via para o desenvolvimento do homem,
e significativamente também no Brasil. Neste bem como de territórios que lhes sejam mais
território vêm se desenvolvendo movimentos compatíveis. Aqui se pode falar da construção
sociais no campo e na cidade bastante auspi- de territórios de utopia, ou ainda de uma con-
ciosos, tais como movimentos de moradores dição socioespacial desejada, forjada cotidia-
que lutam em prol da defesa do patrimônio namente pelos próprios interessados.

156 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
A espacialidade degradante tendencial...

a se estabelecerem próximos uns aos outros.


O território-mercadoria
Os condomínios verticais (prédios de aparta-
e a conformação de uma mentos, também de acesso restrito), por sua
espacialidade urbana vez, terão sua localização condicionada pela
de enclaves: segregação proximidade ao local de trabalho, de possi-
espacial e alienação do espaço bilidades quanto ao usufruto de oportunida-
des de emprego, acesso a serviços de saúde
Estamos submetidos a uma condição espacial e educação – sobretudo privados –, ambiente
marcada pela prevalência do valor de troca e favorável à realização de bons negócios, pro-
pela difusão do mundo da mercadoria, trazen- ximidade a áreas comerciais e outros serviços
do em sua esteira rápidas e profundas trans- (tais como de lazer e entretenimento). Esses
formações na cidade. Elas respondem pela condicionantes à sua localização sugerem uma
produção de novas formas e funções urbanas, escolha seletiva de espaços na cidade, capazes
que redefinem os referenciais da vida na urbe, de atender certas demandas e anseios de seus
ao mesmo passo que os modos de vida de seus moradores e usuários.
habitantes. Pode-se oferecer como exemplo a Tais formas sugerem uma arquitetura de
proliferação de habitats autossegregados, es- enclaves, confinamento, reclusão e individuali-
pecialmente os “condomínios urbanísticos” e dade. Dado que praticamente não apresentam
os designados “pseudocondomínios” ou lotea- interações e contiguidades territoriais no tecido
mentos de acesso controlado, restrito, que se urbano, elas praticamente interditam a mobili-
difundem na America Latina e, mais particular- dade espacial dos citadinos, constrangendo a
mente, no Brasil. Aqui eles emergem a partir locomoção das pessoas e, portanto, do direito
dos anos 70 como uma característica marcante de ir e vir. Nega-se, ademais, o próprio sentido
de seu processo de metropolização, que en- histórico da cidade, entendido como o lugar,
volve predominantemente segmentos de alto por excelência, de promoção do encontro e da
poder aquisitivo, mas também, e mais recen- sociabilidade, portanto de realização da polí-
temente, segmentos de classe média. O desen- tica. A produção e o desenvolvimento destas
volvimento dessas formas urbanas, contudo, formas urbanas vêm se afirmando como uma
não tem se mostrado como uma especificidade tendência na urbanização contemporânea,
dos grandes centros, passando também a ocor- sendo, sobretudo, o condomínio vertical (uma
rer, a partir dos anos 90, em cidades médias e espécie de edifício autista), junto com os bol-
até mesmo em certas cidades pequenas. sões de pobreza (favelas, principalmente) e os
De modo geral, a maioria dos condo- shoppings centers, em menor grau, que respon-
mínios e loteamentos “fechados” horizon- dem pela reconfiguração atual da paisagem ur-
tais (espaços de residências uni-familiares de bana. A constituição dessa genuína morfologia
acesso controlado) encontra-se nas áreas pe- de enclaves suscita questionamentos diversos,
riféricas das cidades, com sua localização pró- tais como do planejamento e o ordenamento
xima a rodovias ou grandes eixos de circula- territorial, de implicações na forma social e de
ção intraurbanos, revelando certa tendência sua correlata espacialidade, da violência e da

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 157
Ulysses da Cunha Baggio

intolerância entre os desiguais, de constrangi- de exploração, que recobre o território sob os


mentos e restrições à locomoção urbana, do vetores de uma impetuosa apropriação privada
aprofundamento das contradições urbanas e a e seletiva do espaço. Ela indica claramente que
crescente aproximação geográfica de estrutu- estamos diante do recrudescimento da forma-
ras díspares. ção da anticidade, derivação da submissão da
Para além das indagações suscitadas, cidade à lógica da mercadoria, pela qual ela se
estas conformações socioespaciais autossegre- afirma e se projeta como lócus de produção e
gadas impõem e sedimentam barreiras físicas reprodução do capital, em detrimento da vida
e sociais entre as pessoas em meio ao espaço e da política.
urbano, recrudescendo diferenças. Elas, segu- Sucede que a produção de mercado-
ramente, representam grandes desafios às po- rias, ao se objetivar também como produção
líticas públicas e ao planejamento urbano, em do próprio espaço, instaura uma “ambiência
que pese o fato de se difundirem concomitan- mística” que recobre os produtos do trabalho,
temente ao crescimento de uma cidade para- obstruindo, assim, seu reconhecimento – ao
lela: precária, clandestina e ilegal – submeti- plano do intelecto – na qualidade de produtos
da, em larga medida, ao poder e ao controle e formas sociais, pois engendradas por rela-
armados do narcotráfico. Conforma-se, desse ções sociais do trabalho. O que significa que
modo, um construto urbano marcadamente os fundamentos sociais dessa produção são
fragmentado e descontínuo, no qual suas ex- escamoteados e obscurecidos, esvaziando-se a
pressões territoriais contraditórias e desiguais dimensão social (e humana) do trabalho. Sob
se apresentam cada vez mais aproximadas essa lógica é que as relações sociais que o en-
espacialmente, não obstante mais estranhas e volvem se mostram como relações coisificadas
refratárias umas às outras, sugerindo-nos, des- ou objetuais, de modo que as relações sociais
sa forma, o sentido da dissociação urbana e da das pessoas não aparecem como suas relações
alienação do espaço. pessoais, mas sim sob a forma de relações so-
Esse cenário sinaliza uma condição ter- ciais das coisas, dos produtos do trabalho. Daí
ritorial urbana progressivamente tensionada poder-se falar de certo alheamento do espírito
pelo aprofundamento das desigualdades, com em relação à produção do próprio espaço, so-
a riqueza e a pobreza se posicionando lado a bretudo a cidade, que se conforma, sob esses
lado, com toda a sorte de conflitos que essa es- fundamentos, como um construto “estranho”,
trutura contraditória engendra. Nesse sentido, acerca do qual as pessoas pouco, ou nada, se
pode-se postular que essa conformação se nos reconhecem e/ou se identificam. Portanto, essa
apresenta como uma oposição socioespacial produção, que também se traduz como produ-
degradante, em que a regra passa a ser a des- ção de uma segunda natureza, comporta intei-
confiança e a insegurança generalizadas, numa ramente o sentido do trabalho alienado, dado
espécie de “guerra” de todos contra todos. que expressa o domínio dos objetos (mercado-
São evidências que matizam uma dinâmica rias) e das instituições sociais, os quais, pro-
social submetida à lógica do capital e do mer- duzidos pelos homens, operam amplamente
cado, sob os fundamentos de uma economia sobre os próprios homens, submetendo-os,

158 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
A espacialidade degradante tendencial...

assim, a forças tornadas incontroláveis, sen- de condomínios “fechados” que abarcam


do clamorosamente plausível a ideia de uma logradouros públicos em seus domínios, e que,
alienação socioespacial. Trata-se da produção por isso mesmo, não poderiam ser “fechados”,
e da conformação de uma cidade na qual seus conformando, desse modo, uma situação não
habitantes, em larga medida, não interferem, prevista legalmente.
tanto no plano da concepção como no proces- Mais especificamente no plano da ges-
so de sua estruturação, embora se reconheça tão, a atuação do Estado na cidade tem se
certo avanço de políticas públicas urbanas de dado como um negócio, pela qual a cidade
caráter participativo. Perde-se, praticamente, é tratada como uma mercadoria, como um
o sentido que a cidade e o urbano assumem, empreendimento, sendo preparada para se
e, desse modo, suas reais implicações, para tornar competitiva, rentável. Isso evidencia
o qual a produção social de suas formas tem que as normas do mercado tendem a configu-
muito a dizer; formas essas, como os condomí- rar as normas públicas, dando-nos a ideia de
nios, que se tornam social e ideologicamente que são os negócios que governam a cidade
naturalizadas, operando nas mentes subverti- e não os governos (Santos, 1999, p. 15). Nes-
das e fetichizadas como verdadeiros símbolos se sentido, a atuação dos empresários urba-
de ascensão social, elevadas à condição de nos torna-se proeminente e decisiva quanto à
metas e projetos de vida. constituição e conformação da urbe, atuação
Pão e circo não podem compensar ta- que ocorre sob o estímulo e a anuência do Es-
manho dano na sociedade e na vida urbana, tado, o qual, por meio das legislações urba-
sociedade que, premida por crescentes contra- nas, transforma o espaço de acordo com os
dições, opera pelo escapismo (aí incluso o de interesses do grande capital, especialmente
caráter territorial) e pela agressão, insuflando os capitais corporativos. Essa condição socio-
situações grotescas e indesejadas na vida e na espacial se afirma a despeito de instruir a pro-
existência sociais, compondo uma situação de dução de uma espacialidade marcada pelo es-
certa imbecilização socioexistencial que ultraja vaziamento da coletividade e da solidariedade
a natureza humana. O que nos incita, ao lado urbanas e, desse modo, da retração progres-
de outras razões, a indagar sobre os fundamen- siva do espaço público (em declínio notório),
tos dessa sociedade e das conformações que o que impacta substancialmente a cidadania
assume a sua correlata espacialidade, a qual, e seu sentido. Desse modo, as pessoas vão
em essência, os revela. deixando de se reconhecer no espaço onde
A proliferação de condomínios e “pseu- vivem, descolando-se dele sob os efeitos de
docondomínios” sabidamente encontra um uma lógica devotada à competitividade e a
aparato poderoso no aparelho do Estado, privatização da vida. Assim, a rua, cada vez
que responde pelo controle das operações mais, se transmuta em via de fluxos e de pas-
de normatização do uso e do parcelamento sagem, perdendo sua condição histórica de
do solo urbano, muito embora ocorram nesse promoção do encontro e de socialização, pro-
universo certas práticas construtivas que se blema que assume maior contundência nos
dão à margem da legislação, como é o caso grandes centros, sobretudo.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 159
Ulysses da Cunha Baggio

No plano da vida cotidiana (âmbito em Pode-se admitir, nesse sentido, que a con-
que se estabelece o embate dialético entre tro- vivência e a ocorrência de relações mais diretas
ca e uso), regida pelo urbano e estreitamente entre as pessoas no espaço urbano não só es-
relacionada e condicionada pelo Estado, o tem- timulariam um sentido mais humano à cidade,
po (e as relações sociais), à medida que se dis- como também sentimentos de pertencimento
tancia dos ciclos naturais, mostra-se progressi- e afeto por ela, componentes fundamentais à
vamente como tempo econômico, quantitativo, civilidade e à cultura pública, o que solicita o
isto é, como tempo de trabalho, em detrimento (re)aprendizado da convivência e o exercício da
do tempo humano e social, o que constrange e tolerância, que só se realiza sob condições de-
subverte relações preexistentes. A concepção e mocráticas mais efetivas, ou ainda sob plenas
a experiência do tempo tornam-se, assim, con- condições de emancipação social.
tábeis, e a vida urbana, ritmada pelo tempo do Embora a cultura racionalizante capitalis-
trabalho, suscita uma concepção quantitativa ta incida amplamente na sociedade e no espa-
bastante difundida na sociedade. Essa condi- ço, há descontinuidades e situações pelas quais
ção, de acordo com Erich Fromm, traz impli- podem se precipitar certas insurgências sociais
cações na própria “orientação do caráter” das não alinhadas a ela, através das quais a apro-
pessoas, a que ele designa como “orientação priação do tempo e do espaço pode ocorrer
mercantil”, cujas raízes estariam “na impres- sob a perspectiva de uma maior valorização do
são de que se é também ‘mercadoria’ e do va- humano, que, ao objetivar-se nos lugares por
lor pessoal de cada um como valor de troca”. modos territoriais de vivência, o redefiniria pe-
lo sentido do uso. Daí valorizarmos a fecundi-
A concepção mercantil de valor, o des-
dade de experiências socioespaciais livres, que
taque dado ao valor de troca antes que
ao valor de uso, levou a uma concepção se objetivam como formas e práticas (como
semelhante de valor aplicável às pessoas certos movimentos de moradores de bairro na
e particularmente à própria pessoa de luta pelo resguardo e preservação de patrimô-
cada um. [...] Na orientação mercantil, o nio arquitetônico-urbanístico bem como modos
homem enfrenta suas próprias forças co-
territoriais de vivência, movimentos de cultura
mo mercadorias dele alienadas. Não está
unificado com elas, pois estão dissimula- de arte e música em periferias e áreas centrais
das para ele, porque o que importa não é da cidade, etc.) com as quais a vida cotidiana
sua realização pessoal ao empregá-las, e se desenrola na cidade, mais independentes
sim seu sucesso em vendê-las. Tanto suas ou distanciadas de funcionalismos e dirigismos
forças quanto o que elas criam se afas-
do Estado, uma vez que este não se apresenta
tam, tornam-se algo diferentes de si, al-
go para os outros julgarem e usarem. [...] aqui como mediação única ou exclusiva entre
A premissa da orientação mercantil é a as pessoas e sua liberdade, representando, por
vacuidade, a ausência de qualquer quali- assim dizer, efetivas utopias urbanas do dese-
dade específica que não seja suscetível de jo, dotadas de um caráter libertário, pois mais
modificação, pois qualquer traço persis-
espontâneas e ao gosto de seus atores. Nesse
tente de caráter poderá algum dia entrar
em choque com as exigências do merca- sentido, elas encerram virtualidades luminosas
do. (Fromm, 1978, pp. 65-76 passim) quanto à constituição de outra espacialidade,

160 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
A espacialidade degradante tendencial...

em que pese o fato de serem as práticas sociais de uma miríade de atores/agentes, geogra-
voluntárias de vivência aquelas que prescre- fizam processos e situações sociais, a realiza-
vem maior sentido à vida, capazes de precipitar ção da vida e da existência nas suas mais va-
a constituição de espaços mais estimulantes e riegadas expressões e especificidades. Nesse
influenciadores, forjados por práticas de apro- sentido, a apropriação pode ser compreendida
priação e uso mais qualitativo de lugares. Uma como os diversos modos pelo qual o espaço é
vez que indagam a possibilidade de novas vias ocupado e usado, tanto por formas materiais
à cidade e ao urbano, elas incitam à problema- (objetos), como por atividades inscritas ter-
tização da alienação política e de uma forma ritorialmente (que configuram os usos da ter-
de socialização sob os influxos e modulações ra), e ainda por indivíduos e segmentos sociais
do capital e do mercado, o que vale dizer de variados. Quando a apropriação do espaço se
uma socialização não política. Vale lembrar, a realiza de forma sistematizada e institucionali-
propósito, que o sentido maior da política é a zada ela pode envolver a produção de formas
liberdade. Abre-se, assim, uma perspectiva pela territorialmente determinadas de solidariedade
qual se pode pensar a cidade não apenas como social, operando, ademais, como uma efetiva
ela é, mas também como ela pode ser a partir atribuição simbólica e valorativa de lugares,
de práticas, virtualidades e sobrevivências irre- necessária à própria reprodução da sociedade.
dutíveis do tempo presente. Isso vale dizer que as formas podem adquirir
ressignificação socioespacial, de modo a aten-
der necessidades não previstas e não contem-
pladas, não raro negadas pelo próprio Estado.
O espaço sob A apropriação, portanto, está inserida no uni-
uma tensão objetivada verso das relações sociais e recobre práticas
sociais de naturezas diversas sobre o espaço,
Sob os vetores de uma massiva mercantiliza- ações empreendidas por sujeitos sociais nos
ção, o espaço é submetido à potencialização lugares, com as quais eles são representados
do conflito entre valor de uso e valor de troca, e interpretados, em que pesem mediações da
entre demandas referenciadas à existência e à técnica, da política e das ideologias. A apro-
vida, de um lado, e de apropriações do espaço priação do espaço, bem como seu uso não
para fins de obtenção de algum benefício eco- apenas se dão desigual e fragmentadamente,
nômico e renda, de outro. Essa tensão é insepa- como também se mostram dotados de certa
rável da mercadoria e, portanto, do próprio es- flexibilidade em seu processo de realização,
paço, tensão que se objetiva como um conflito como bem se pode constatar no universo dos
efetivamente socioespacial, integrando, assim, problemas urbanos, tais como a precarieda-
o mundo prático-sensível. de das condições de moradia para boa parte
A apropriação se insere no universo da da população, insuficiência e degradação de
política, portanto é inerente ao processo social, infraestruturas técnicas e sociais, baixa ofer-
pela qual a sociedade na sua diversidade, por ta de áreas de lazer, dificuldades no trânsito,
meio da atuação permanente e multifacetada entre outras expressões. À medida que elas se

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 161
Ulysses da Cunha Baggio

revelam bastante impactadas (e submetidas)


Práxis sociais e cidadania:
pela proeminência do valor de troca, constran-
ge-se a condição da cidade de conter a inerên-
horizonte para uma educação
cia histórica de um uso, que assim se revela política do espaço
pela transformação do espaço de valor de uso
em valor de troca, ou ainda, mercadoria, movi- Esse acirramento das contradições urbanas,
mento progressivo que impõe a dissociação e o tanto ao plano do conflito entre capital e tra-
alheamento do homem em relação ao espaço, balho como no do consumo coletivo e da re-
que assume, desse modo, uma existência abs- produção social, reverbera com grande inten-
trata e alienada, própria do mundo da merca- sidade num dos papéis fundamentais que a
doria; mas também, é importante salientar, uma cidade deveria cumprir, isto é, o de assegurar
existência concreta, pois objetivada no mundo condições aceitáveis e melhoradas à qualidade
prático sensível, portanto no próprio espaço. de vida de seus habitantes, foco de atuação
Sobretudo nos países não desenvolvidos, principal dos movimentos sociais urbanos. Para
essa conformação urbana marcadamente con- além de uma luta empreendida para a conquis-
traditória carrega o sentido de uma urbanização ta específica de bens diversos (moradia, áreas
perversa, que recobre processos de segregação de lazer, equipamentos urbanos, etc.), estas
forçada ou induzida, bem como de autossegre- práticas, bem como seus motivos, evidenciam
gação, expondo, de um lado, formas de inserção a necessidade quanto à obtenção de condições
territorial precária ou perversa (como favelas, de uso da cidade e, nesse sentido, da reconstru-
cortiços, loteamentos autoconstruídos) e, de ou- ção de uma efetiva esfera pública, em declínio
tro, a proliferação de bairros jardins, shoppings notório. As diversas práxis sociais insurgentes,
centers e condomínios (expressões de uma ur- tais como movimentos de luta pela moradia,
banização progressivamente privada), que afir- são, pela nossa compreensão, indicativas de
ma a condição de uma cidade dividida, tensa uma politização do uso do espaço na cidade,
e monitorada. Essa conformação cindida aos que se identificam com formas de apropriação
fragmentos desnuda uma progressiva polariza- e uso mais condizentes aos desejos e deman-
ção social e espacial, refletindo uma crescente das mais efetivas dos próprios interessados.
dualização da sociedade e de polarização do David Harvey, ao analisar a natureza, o
mercado de trabalho, que interagem com a dua- sentido e as potencialidades dos movimentos
lização das estruturas urbanas. sociais, assinala que:

162 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
A espacialidade degradante tendencial...

Movimentos de oposição às destruições e desafios que eles enfrentam, no conjunto


do lar, da comunidade, do território e da eles sintetizariam uma busca pela conquista
nação pelo fluxo incessante do capital
do direito à cidade, imprescindível à criação de
são legião. Mas também o são os que se
condições à reprodução social. Segundo Lefe-
opõem às rígidas restrições de uma ex-
pressão puramente monetária do valor e bvre (1991), o direito à cidade integra o uni-
da organização sistematizada do espaço verso dos direitos que definem a civilização,
e do tempo. E, o que é mais importante, os quais “abrem caminho” na seara de “condi-
esses movimentos vão bem além dos do- ções difíceis” da sociedade capitalista. Embora
mínios da luta de classes em todo sentido
esses direitos sejam “malreconhecidos” eles
estrito. A disciplina inflexível dos horários
de trabalho, dos direitos de propriedade gradativamente tornam-se “costumeiros antes
organizados de maneira imutável e de de se inscreverem nos códigos formalizados.
outras formas de determinação espacial Mudariam a realidade se entrassem para a
gera amplas resistências por parte de pes- prática social: direito ao trabalho, à instrução,
soas que querem eximir-se dessas restri-
à educação, à saúde, à habitação, aos lazeres,
ções hegemônicas do mesmo modo como
outros recusam a disciplina do dinheiro. à vida”. O direito à cidade compreenderia, as-
E, de quando em vez, essas resistências sim, não o direito à “cidade arcaica”, mas sim
individuais podem tornar-se movimentos o direito “à vida urbana, à centralidade reno-
sociais que visam liberar o espaço e o vada, aos locais de encontro e de trocas, aos
tempo de suas materializações vigentes e
ritmos de vida e empregos do tempo que per-
construir um tipo alternativo de socieda-
mitem o uso pleno e inteiro desses momentos
de em que o valor, o tempo e o dinheiro
sejam compreendidos de novas formas e locais, etc.” (Lefebvre, 1991, p. 143). Assim,
bem distintas. o direito à cidade impõe a necessidade quanto
Movimentos de toda espécie – religiosos, à existência de condições extensivas de uso do
místicos, sociais, comunitários, humani-
espaço tangíveis a toda a cidade, e não ape-
tários, etc. – se definem diretamente em
nas a determinadas parcelas dela, operando,
termos de um antagonismo ao poder do
dinheiro e das concepções racionaliza- desse modo, como uma condição imprescin-
das do espaço e do tempo sobre a vida dível a uma efetiva promoção da cidadania. O
cotidiana. A história desses movimentos fomento e a garantia desse estado de direitos
utópicos, religiosos e comunitários ates-
implicariam a própria transformação das práti-
ta bem o vigor desse antagonismo. De
cas urbanas, bem como no processo de consti-
fato, boa parte da cor e do fermento dos
movimentos sociais, da vida e da cultura tuição das cidades.
das ruas e das práticas artísticas e outras Evidencia-se, portanto, que a noção de
práticas culturais deriva precisamente da cidadania comporta uma importante dimensão
infinita variedade da textura de oposições
geográfica, que intervém em seu estatuto onto-
às materializações do dinheiro, do espaço
lógico, à medida que não há cidadania possível
e do tempo em condições de hegemonia
capitalista. (Harvey, 1992, p. 217) que prescinda do território, como bem o reve-
la, por exemplo, a ideia de direito a cidade. É
Embora se reconheça a diversidade dos nesse sentido que Santos (1993, p. 116) postula
movimentos sociais urbanos e as dificuldades que “[...] é impossível imaginar uma cidadania

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 163
Ulysses da Cunha Baggio

concreta que prescinda do componente materiais conquistados por estas lutas, tais co-
territorial”, exercendo interferências importan- mo moradia, benfeitorias urbanas, etc., não po-
tes na vida das pessoas na cidade. E acrescenta: dem ser negligenciados pela análise, uma vez
que sem eles a existência não alcança condi-
[...] o valor do indivíduo depende do lugar
ções mais favoráveis e melhoradas na cidade
em que está e que, desse modo, a igualda-
de dos cidadãos supõe, para todos, uma e na vida urbana, tornando a figura do cidadão
acessibilidade semelhante aos bens e ser- uma mera ficção ou caricatura.
viços, sem os quais a vida não será vivida Considerando-se que a cidadania implica
com aquele mínimo de dignidade que se o acesso democratizado a serviços e bens urba-
impõe. [...] Uma repartição espacial não-
nos básicos, ela se articula à formação de um
-mercantil desses bens e serviços, basea-
da exclusivamente no interesse público, espaço público na cidade, sobre o qual recaem
traria, ao mesmo tempo, mais bem-estar as forças do mercado e os desígnios do con-
para uma grande quantidade de gente e sumo, impactando e reduzindo sua existência.
serviria como alavanca para novas ativi-
Os processos de especulação ampliada do solo
dades. (Santos, 1993, pp. 116-117)
urbano estão na base dessa condição mortifi-
Decorre que, à medida que a cidadania cante do espaço público na cidade, que revela
incorporasse o território em sua base, ela seria a prevalência do valor de troca no território. Por
então capaz de imprimir maior eficácia quanto essa via, as relações de sociabilidade, de identi-
ao tratamento de problemas sociais no nível dade e vínculo com o lugar são constrangidas e
econômico, político e social. Dado que ela está redefinidas, mas não propriamente eliminadas
inserida no universo das relações políticas, ad- de forma absoluta diante dos limites encon-
quire, assim, uma efetiva expressão geopolíti- trados no movimento de realização geográfica
ca, pois as relações políticas e o território, para do valor de troca. As possibilidades quanto a
além de interagirem recíproca e estreitamente, uma possível revalorização do espaço público
figuram na base da formação e do exercício do não se restringiriam, pelo nosso entendimento,
poder. Ademais, não se pode perder de vista o à esfera do Estado, mas fundamentalmente a
fato de que a efetiva realização da cidadania e determinadas práticas de (re)apropriação so-
seu exercício pressupõem o direito a uma in- cioespacial inventivas e dotadas do sentido do
serção digna na cidade, isto é, de determinadas uso social coletivo, para as quais o poder pú-
condições que favoreçam o uso social e coleti- blico, é bem verdade, pode empenhar esforços
vo de forma permanente na cidade. O próprio importantes, necessários e urgentes. É nesse
percurso das lutas sociais urbanas se revela sentido que determinadas formas urbanas po-
como um campo de experiências e aprendiza- derão assumir outras e novas funções que refli-
do social politicamente profícuo, pelo qual a tam o interesse social e público, e não apenas
construção da cidadania pode ser forjada. Afo- interesses particulares específicos. O espaço
ra questionamentos se o percurso dessas lutas poderá se tornar, assim, aquilo que a sociedade
é ou não mais importante que seus resultados, deseja que ele seja, o que também envolve a
há que se considerar que os serviços e os bens mobilização do desejo no sentido da mudança

164 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
A espacialidade degradante tendencial...

de nossas subjetividades, práticas e comporta- libido mercantilizada, compondo um cenário


mentos, mais especificamente no que se refere de transmutação social que talvez melhor se
à consecução de condições mais favoráveis à identificasse com a imagem de um hospício
vida e à existência. Isso implicaria esforços per- econômico-social, uma espécie de reino do
manentes na busca pela superação da incon- homem-coisa e seu apetite licencioso por mer-
gruência estabelecida na vida cotidiana entre, cadorias, as mais diversas e inúteis. Sob esta
de um lado, as nossas vontades e desejos e, de condição mortificante o viver tornou-se insípi-
outro, o curso dos acontecimentos, sob contra- do, não raro associado a problemas crônicos
dições recrudescidas do capitalismo globaliza- de depressão, na qual a sociedade se torna, a
do de égide financeira. passos rápidos, paranóica, acuada e agressiva.
Esta mudança implica, por sua vez, a su- A realização desse percurso requer a
peração do individualismo, enraizado no egoís- valorização do princípio político da autoges-
mo e na concorrência mercadológica, aspectos tão, afastando-se, portanto, da submissão à
que se tornaram na sociedade atual princípios lógica do estatismo e do mercado. O que não
fundamentais para a conquista do poder. Daí a se confunde com uma via orientada à supres-
importância de um necessário horizonte políti- são do Estado, mas sim à constituição grada-
co à educação, que incorpore e valorize a di- tiva de uma sociedade capaz de fazer valer
mensão espacial em seus propósitos maiores, democraticamente suas próprias demandas e
abrindo-se, assim, um novo horizonte quanto à desejos diante das instituições, forjando sua
formação e ao desenvolvimento de uma edu- própria transformação, sujeitando-as ao pleno
cação política do espaço orientada para a vida controle da sociedade. O que vale dizer que o
e para a liberdade, tanto quanto seja possível, Estado, sob essa perspectiva, não é tomado
que viriam acompanhadas de um imprescindí- como um agente protagonista, mas mais pro-
vel e sólido senso de responsabilidade socioes- priamente como auxiliar. Trata-se, portanto, da
pacial, que é de toda a sociedade. possibilidade de se forjar formas de vida mais
Sucede que o sentimento e a necessida- intensas, mais ricas em diversidade, capazes
de da liberdade operam como uma condição de se organizar e evoluir sob a influência e a
imprescindível e fundamental da existência, interferência direta dos próprios interessados,
imbricada em sua efetiva realização no espaço. tendo-se aqui a convicção de que só dessa for-
A restrição ou, ainda mais, a supressão desses ma o espaço será aceitável.
dois aspectos na vida social respondem pelo Desse modo, a perspectiva que se abre
declínio e pela desaparição tanto do espírito é a de consecução de práticas socioespaciais
crítico quanto do desejo a uma inserção par- capazes de conduzir à superação da condição
ticipativa e ativa na sociedade, em seu difícil atual de mortificação do espaço e da vida, que
e pluralizado movimento de transformação, impõe limites à realização da cidadania. Valo-
deixando-nos, assim, uma vida amesquinhada rizam-se, assim, ações portadoras do sentido
e reduzida, submetida intensamente ao consu- da reunião e da cooperação, ao invés de forças
mismo dirigido e desenfreado, ao espetáculo que operam pela dissociação, que respondem
multifacetado e à ejaculação vulcânica da pela fragmentação e atomização reinantes;

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 165
Ulysses da Cunha Baggio

ações com potencialidades de forjar as bases portanto, de se pensar acerca de formas de


de uma territorialidade de caráter mais soli- apropriação possível no mundo atual, sob inci-
dário, favorável à realização mais efetiva de dência de uma progressiva privatização e mer-
uma condição cidadã. Essa territorialidade cantilização do espaço, da especulação imobi-
compreen deria o conjunto das relações que liária e, de forma correlacionada, da alienação
possibilitam aos diversos grupos sociais fazer socioespacial. Segue-se daí que as contradições
valer seus interesses no território, tornado recrudescidas do capitalismo globalizado em
lugar de vida. Ela se inscreveria como um fe- crise suscitam e induzem dinamismos e insur-
nômeno existencial, uma experiência possível, gências de variados matizes no âmbito da rela-
por meio da qual um grupo ou indivíduo ad- ção sociedade/espaço.
quire consciência do seu território de vida, fa- A questão relativa à apropriação do es-
zendo as possibilidades operar como possibili- paço e à formação da(s) territorialidade(s) no
dades concretas, ou ainda do que poderíamos âmbito do cotidiano capitalista, sobretudo na
qualificar como utopias concretas do desejo contemporaneidade, encerra dificuldades e
libertário, irmanado com a autonomia (va- interrogações na sua análise, entre as quais a
lor central da vida ética) e a vida digna (mais da conformação de uma ambiguidade entre o
identificada com um outro valor, para além do real e sua representação. Ademais, a própria
valor de troca, isto é, um valor calcado no sen- noção do que se entende por representação
so cooperativo, na ajuda mútua e no trabalho é bastante polêmica, oscilando desde inter-
autônomo associado e de caráter autogestio- pretações que a consideram uma ilusão, uma
nário, bem como em níveis mais desenvolvidos quimera, isto é, uma expressão descolada do
de afetuosidade entre as pessoas). real, ou ainda, uma situação não verdadeira,
até leituras que a tomam como parte integran-
te e formativa do próprio real, havendo ainda
compreensões menos polarizadas que a situam
Apropriação, territorialidade num universo intermediário, ou seja, um mis-
e o problema da representação to de real e de sua figuração. Trata-se aqui de
(e da representação do espaço) operar esta categoria, a representação, numa
perspectiva geográfica, socioespacial. Desse
O uso cotidiano do território, ou ainda, de um modo, a representação do espaço se traduz por
determinado lugar expõe uma relação inse- um conjunto de elaborações discursivas, ima-
parável entre apropriação do espaço e terri- géticas e cartográficas realizadas por atores
torialidade, em que pesem, na análise da sua sociais diversos sobre a percepção e o entendi-
dimensão e extensão, os limites ou restrições mento de situações sociais e ambientais do es-
à apropriação espacial na contemporaneida- paço. Compreendemos que estudos e análises
de capitalista, advertindo-se, contudo, que sobre as representações do espaço constituam
as noções de limite e restrição relativas a ela aportes valorativos ao conhecimento dos luga-
não significam necessariamente sua impossibi- res e de suas especificidades. Desse modo, eles
lidade, sua não realização absoluta. Trata-se, podem proporcionar subsídios a certas práticas

166 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
A espacialidade degradante tendencial...

de gestão (cogestão e autogestão) de caráter âmbito do social engendram-se fronteiras e


participativo, mais democráticas e orientadas limites, esses limites não são automáticos e
ao desenvolvimento e ao exercício de ações absolutos, uma vez que o social é, por excelên-
(políticas) devotadas a um melhor desempe- cia, o universo relacional e comunicacional no
nho e adequação de processos socioespaciais, qual emergem proposições de novas possibili-
redirecionando-os em bases mais aceitáveis, dades e ações.
pois afetam direta e indiretamente a vida das Portanto, não estariam as ações huma-
pessoas, que envolve o direito e a liberdade de nas norteadas pelas representações? Elas não
se determinar a(s) forma(s) do nosso espaço de modelam comportamentos, práticas sociais?
vida e trabalho, dos modos de sua organização, Ao integrar a esfera existencial, portanto, da
o que pressupõe o exercício da responsabilida- vida, a representação (e a representação do es-
de ao que é comum a todos. paço) não seria ela própria parte da realidade?
Há que se atribuir a devida importância Pensamos que sim, até porque se vive também
e atenção ao fato de que, sob os influxos da por meio dela, com expressões variadas. O
modernização e da fragmentação do espaço na procedimento de apartá-la do real, ou tomá-la
atualidade, avançam produções e arranjos ter- como uma espécie de “real distorcido”, conota
ritoriais sob a marca da homogeneidade, que uma concepção científica (ou, talvez, cientificis-
se objetivam com o rompimento de formas e ta) de objetividade, que condena o investigador
estruturas pregressas, realizando estratégias do a um tratamento cognitivo do objeto de conhe-
Estado e do capital, refuncionalizando os es- cimento, tornando-o uma expressão destituída
paços, dando-lhes nova direção e sentido, con- de subjetividade.
formando verdadeiros sistemas socioespaciais. Destarte, a própria formação da territo-
Daí a relevância para a pesquisa indagar como rialidade implica também o nível da represen-
os moradores e outros atores sociais percebem tação, estando esta associada àquela. O senti-
e representam o espaço, em suas mais diversas mento de pertencimento, bem como o de com-
formas (cognitiva, cartográfica, etc.). Trata-se, partilhamento a um dado lugar (ingredientes
portanto, de uma demanda social que clama – importantes na formação da territorialidade),
teórica e praticamente – por ações sob a pers- envolve fatores diversos, bem como são di-
pectiva de uma crítica superadora, pelo sentido versas as formas pelas quais eles se realizam.
da urgência e da necessidade. Mas é no plano da experiência socioespacial
Como uma práxis inscrita no social, argu- efetiva – real – que eles são forjados. Quando
menta-se que a apropriação do espaço, embora se analisam os impactos que a modernidade
restringida sob a condição espacial capitalista, capitalista provoca no território e, mais espe-
encerra potencialidades que indagam sua di- cificamente, nas relações de solidariedade e
mensão e seu alcance nos tempos hodiernos, de sociabilidade num dado lugar, isto não sig-
precipuamente as potencialidades inscritas no nifica que necessária e automaticamente elas
bojo das práxis de caráter inventivo, as quais pereçam, ou se transmutem forçosamente em
não devem ser confundidas com as práxis es- relações alienadas, circunscritas a um univer-
tritamente repetitivas (Lefebvre, 1958). Se, no so de uma “cidadania caricatural”.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 167
Ulysses da Cunha Baggio

Acrescente-se ainda que os dinamismos Desse modo, o desenvolvimento de


da vida moderna estabelecem perturbações formas alternativas à vida e a existência, na
constantes no universo da formação das ter- perspectiva da formação de uma sociedade
ritorialidades, cujas bases de sustentação fle- mais autônoma e orientada ao desenvolvimen-
xibilizam e fragilizam-se, podendo mesmo se to de uma condição cidadã, implicaria encon-
esboroar, mas, também, é forçoso reconhecer, trar um sentido novo para a vida, diferente,
ser (re)criadas em novas bases e em outros lu- mas não de modo a se fechar à compreensão
gares. Imaginar que esse movimento só encer- de modos de vida pretéritos. Estamos convic-
re perdas constitui uma interpretação redutora tos de que apenas a liberdade representa vida
da realidade. Não se trata de uma situação em completa, e que sua negação significaria ener-
detrimento da outra (leitura reducionista deri- gia abundante à promoção do autoritarismo,
vada de uma concepção binária de movimento de estruturas coercitivas e do condicionamento
da realidade), mas ambas se desenvolvendo generalizados, que rejeitam, em sua essência, o
ao mesmo tempo, apesar do incontestável efetivo desenvolvimento humano, que só pode
mal-estar e anticlímax reinantes da moderni- se realizar – insistimos – sob plenas condições
dade capitalista. de emancipação. Isso implica, por conseguinte,
a desconstrução das relações de autoridade e
de coerção, que modelam a estrutura social e
reduzem as possibilidades de realização da ci-
Considerações finais dadania, bem como a transformação e a ade-
quação dos sistemas de ensino – público e pri-
Muito se tem falado acerca de uma submersão vado – a uma formação genuinamente crítica e
qualitativa e progressiva das relações de socia- humanista, dinâmica e autônoma, contribuindo
bilidade na cidade, do desapego dos citadinos substancialmente para tornar mais inteligíveis
em relação ao seu espaço de vivência, com im- o mundo, a sociedade, a vida e a existência.
pactos evidentes sobre a formação e o desen- Mobiliza-se aqui a necessária comunhão da
volvimento da cidadania. Estaria se delineando técnica com a política, a forjar usos devotados
diante dos imperativos do capital e do merca- às efetivas necessidades humanas, aqui incluí-
do uma submersão da vida nas cidades, com o das as necessidades radicais. Não é demais
avanço do trabalho alienado e da produção de dizer que os portadores do novo são aqueles
uma cidade igualmente alienada e alienante. que se movem e lutam por necessidades radi-
Todavia, embora esses aspectos sejam reais e cais, entendidas como aquelas essenciais à vi-
contundentes, não os compreendemos como da e à existência, dentre as quais a liberdade
absolutos, em que pese a capacidade criativa e a autonomia, não se confundindo, portanto,
e inventiva presente na sociedade, na arte e na com necessidades artificialmente criadas por
política. Para além do reconhecimento de cer- veículos de publicidade.
tos limites e descontinuidades a este movimen- Ao plano de uma produção intelectual
to, a análise, em seu percurso, se conduziu para comprometida com a transformação social,
a busca de um horizonte. cabe-nos uma tarefa das mais importantes,

168 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
A espacialidade degradante tendencial...

isto é, a elaboração de uma visão sistêmica contemporânea, tendo-se em vista a criação


do conjunto de práticas sociais alternativas cotidiana de novas situações socioespaciais,
à espacialidade degradante em curso, que se capazes de impulsionar o desenvolvimento da
afirma como uma tendência preocupante e condição de se habitar mais plenamente a vida,
ameaçadora. Urge, nesse sentido, que a socie- sem remorsos ou culpa, dela esperando-se me-
dade interfira mais diretamente na produção e nos, mas nela amando-se mais. São aspectos a
na conformação dos seus espaços de vida, fa- compor o sentido de uma nova espacialidade,
zendo valer suas próprias demandas e desejos uma espacialidade liberatória.
diante das instituições. Essa é uma condição Reafirmam-se, assim, a importância e
fundamental à promoção da própria transfor- a necessidade quanto à constituição de uma
mação da sociedade e, desse modo, do próprio educação política do espaço, que promova
espaço, o que solicita o caráter cooperativo e a autorreflexão permanente e a percepção
mais autônomo nas práticas sociais. O que nos lúcida da alteridade, que se norteia por uma
incita à busca pela elaboração de matrizes teó- ética existencial devotada à preservação da
ricas e práticas de perspectiva libertária e libe- vida e da restituição qualitativa dos valores
ratória, que perquira nos meandros e interstí- humanos, que incorpora a espacialidade como
cios da vida cotidiana possibilidades factíveis instância e distinção valorativa fundamentais.
a práticas criativas e inventivas à formação de Nesse sentido, valemo-nos aqui da assertiva
espacializações influenciadoras e estimulantes, luminosa de Vaneigem (2002, p. 232), quan-
deflagradas por atores sociais sob as deman- do nos diz que:
das da necessidade, necessidades que clamam
por uma por uma vida mais plena, por satis- O primado da vida sobre a sobrevivência
fações imperiosas e condições ao exercício da é o movimento histórico que desfará a
história. Construir a vida cotidiana, rea-
maior liberdade possível. Trata-se, portanto, de
lizar a história: de hoje em diante, essas
um projeto social, ou ainda de um projeto so- duas palavras de ordem são apenas uma.
cioespacial urbano-libertário. No que consistirá a construção conjugada
A afirmação dessa perspectiva implica de uma nova vida e de uma nova socieda-
um novo sentido ao desejo, que agora se mos- de? Qual será a natureza da revolução da
vida cotidiana? Nada mais que a supera-
tra mais estreitamente vinculado à existência e
ção substituindo o deperecimento à me-
ao espaço, deles não mais prescindindo. Desse dida que a consciência do deperecimento
modo, ela significaria um novo modo de se com- efetivo alimenta a consciência da supera-
preender o sentido da vida sob a complexidade ção necessária.

Ulysses da Cunha Baggio


Doutor em Geografia Humana, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de
Viçosa. Viçosa, Minas Gerais, Brasil.
ulybaggio@ufv.br

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012 169
Ulysses da Cunha Baggio

Referências
BAGGIO, U. C. (2005). A Luminosidade do lugar – circunscrições inters ciais do uso de espaço em Belo
Horizonte: apropriação e territorialidade no bairro de Santa Tereza. Tese de doutorado. São
Paulo, Universidade de São Paulo.

FROMM, E. (1978). Análise do homem. Rio de Janeiro, Zahar.

HAESBAERT, R. (2002). Territórios alterna vos. São Paulo, Contexto.

HARVEY, D. (1992). A Condição pós-moderna. São Paulo, Edições Loyola.

LEFEBVRE, H. (1958). Cri que de la vie quo dienne. Paris, Édi ons l’Arche.

______ (1991). O Direito à Cidade. São Paulo, Editora Moraes.

SANTOS, M. (1993). O Espaço do cidadão. São Paulo, Nobel.

______ (1999). Modo de produção e diferenciação espacial. Revista Território. Rio de Janeiro, n.6
(jan-jun), pp. 5-20.

SCHUMACHER, E. F. (1983). O negócio é ser pequeno. Rio de Janeiro, Zahar.

VANEIGEM, R. (2002). A arte de viver para as novas gerações. São Paulo, Conrad Editora do Brasil.
(Coleção Baderna).

Texto recebido em 13/maio/2011


Texto aprovado em 18/out/2011

170 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 155-170, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço
e sociedade: uma perspectiva histórica*
Gated communities, time, space and society:
a historical perspective

Rita Raposo

Resumo Abstract
Neste artigo, discutimos as origens do fenômeno This paper discusses the origins of the “gated
“condomínios fechados”, sua evolução e a sobre- communities” phenomenon, its evolution, and
vivência contemporânea das suas características the contemporary enduring of its more distinctive
originais mais distintivas. Analisamos o modo como pristine features. It is about how a specific and
essa forma socioespacial específica, historicamente historically located socio-spatial form got to
localizada, logrou chegar ao presente praticamente survive almost unchanged in its very symbolical
inalterada no que respeita às suas principais carac- core, and in its essential social and political
terísticas simbólicas e ao essencial das suas condi- background conditions, for more than t wo
ções sociais e políticas de base, apesar de todas as centuries in spite of all the obvious supervening
transformações registadas ao longo de mais de dois changes. Our analysis is essentially based on the
séculos. A análise baseia-se na bibliografia interna- available international literature on the issue and
cional disponível sobre o assunto e na observação on the direct observation of the phenomenon in
direta do fenômeno na Área Metropolitana de Lis- the Lisbon Metropolitan Area, which we have been
boa, que estudamos em profundidade desde a dé- studying in depth since the 1990s, and in other
cada de 1990, e noutros lugares do mundo que tive- world cases we had the opportunity to confront
mos a oportunidade de confrontar empiricamente. empirically with.
Palavras-chave: condomínios fechados; origens; Keywords: gated communities; origins; social
produção social; segregação; simbolismo. production; segregation; symbolism.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Rita Raposo

bem que mudando formalmente de direção


Apresentação
graças à intervenção de várias transformações
contextuais de relevo, atravessou todo o século
Nas últimas décadas do século XX, assistiu-se, XIX para praticamente apenas se extinguir nas
em várias partes do globo, à expansão de uma primeiras décadas do século XX. Ora, tal perío-
forma socioespacial que, contemporaneamen- do correspondeu grosso modo ao do primeiro
te, identificamos como “condomínios fecha- (longo, progressivo e variável, é certo) desen-
dos” (CFs) ou “privados” (gated communities volvimento da Modernidade. Desde então e
é a sua designação “internacional” mais co- até cerca de 1970 aquela forma socioespacial
mum). Essa forma também encontrou lugar manteve-se “adormecida”, datada e localiza-
em Portugal nas últimas três décadas, com da. Sua globalização e sua expansão numérica
destaque para o final dos anos de 1990, quan- são matéria mais recente, de novo, o arranque
do assentou e se expandiu, essencialmente surgiu na mesma área geográfica. Agora, con-
nas áreas metropolitanas de Lisboa (AML) e tudo, tal ocorreu em primeiro lugar nos Estados
do Porto e na turística costa algarvia. No re- Unidos da América (EUA) e não em Inglaterra,
censeamento que realizamos (em duas fases e como acontecera aquando da primeira edição
conforme metodologia própria) na AML para do fenômeno.
os anos de 1985 a 2004, foram registados 198 Nos EUA, na década de 1970, surgiram
empreendimentos do gênero (Raposo, 2008). diversos empreendimentos imobiliários resi-
Como seria de esperar, dada a escala e a pré- denciais novos que adotaram a fórmula fe-
-organização do território da AML, observam- chada, especialmente localizados em zonas
-se grandes variações no seio desse universo. turísticas, com destaque para o Estado da Ca-
Em todo o caso, é de assinalar a já muito signi- lifórnia. De um modo geral, esses novos empre-
ficativa expressão do fenômeno no panorama endimentos fechados começaram por assumir
residencial português, a par da sua impressio- essencialmente a forma de master-planned
nante capacidade de expansão. Deve-se notar communities (MPCs). Essas, de grande escala
que, em Portugal, os condomínios fechados e dotadas de variados equipamentos e serviços
constituem um caso de novidade absoluta, o coletivos privados, são normalmente governa-
que, de resto, é muito provavelmente válido das por associações de proprietários e sujeitas
para a grande maioria das suas localizações a um plano director e a regulamentos internos
contemporâneas a nível mundial. (os famosos CC&Rs, Covenants, Conditions and
De fato, e tal como veremos na análise Restrictions que levam a marca do Direito de
subsequente, entendemos existir evidência tradição inglesa), traduzindo-se em regra na
suficiente para afirmar que os CFs ou gated garantia de um caráter e de um desenho so-
communities (GCs) encontraram suas primei- cioespacial coerente e controlado (Moudon,
ras manifestações num mundo muito específi- 1990 e Knox, 1992). Na década de 1980, os
co: o anglo-americano. Tal terá acontecido há empreendimentos residenciais fechados multi-
mais de dois séculos, seja cerca de 1750. Seu plicaram-se, diversificaram-se e globalizaram-
primeiro fôlego, que haveria de engrossar, se -se. Nos EUA, estenderam-se a vários Estados

172 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

e invadiram o território das principais metrópo- ausência a ocidente e a norte), padrão para
les, instalando-se nos seus subúrbios, cidades e o qual existem explicações históricas relativa-
exúrbios (ou seja, nas zonas situadas para além mente simples e compreensíveis (e.g. Raposo
da linha de urbanização metropolitana). Passa- e Cotta, 2009).
ram também a assumir formas muito variadas: Malgrado as grandes variações formais
dos empreendimentos urbanos (em regra de exibidas pelo fenômeno CFs, ao longo do tem-
escala mais reduzida e essencialmente cons- po e do espaço, ele corresponde a uma forma
tituídos por edifícios de apartamentos) até às socioespacial distintiva. Essa afirmação resulta
grandes master-planned communities suburba- de uma definição própria e de uma interpreta-
nas e exurbanas já citadas. ção sociológica específica do fenômeno. Essas
Se Blakely e Snyder (1997) estimaram baseiam-se na análise das principais caracte-
que nos EUA, nesse mesmo ano, já existiam rísticas espaciais, sociais, físicas, funcionais e
20.000 empreendimentos fechados corres- legais dos CFs localizados na AML e noutras
pondentes a 3 milhões de unidades residen- partes do mundo e do tempo (documentados
ciais e respeitando a 8 milhões de residentes, internacionalmente), assim como dos principais
no resto do mundo o fenômeno começou a fatores e processos de produção social regular-
fazer-se notar desde cerca de 1980, nalguns mente associados ao seu surgimento e expan-
casos de forma já muito expressiva. Nomea- são. Comecemos pela proposta de uma defini-
damente no Brasil, nessa sua “década perdi- ção (Raposo, 2002 e 2003) que consideramos
da” (Ribeiro, 1996), os condomínios fechados suficientemente compreensiva, distintiva e em-
afirmaram-se como uma realidade importan- piricamente operacional. De acordo com essa,
te, pelo menos no Rio de Janeiro (idem) e em os condomínios fechados correspondem a uma
São Paulo (Caldeira, 1996). Em contrapartida, forma socioespacial residencial que contempla
por então, em Portugal (que, de resto, terá si- um conjunto diverso de soluções de habitação
do fortemente influenciado pelo caso brasilei- (edifícios isolados e conjuntos de edifícios de
ro), à semelhança de outros países e regiões, apartamentos; conjuntos de moradias; conjun-
apenas surgiam os primeiros exemplares (Ra- tos mistos que incluem os dois tipos anteriores)
poso, 2002). No que respeita ao mundo maior, e que detém, simultaneamente, as três caracte-
existe informação segura de que o fenômeno rísticas seguintes: 1) equipamentos privados ou
se encontra representado, pelo menos desde privatizados de utilização coletiva em número
o final dos anos de 1990 (e em clara expan- e tipo variável (e.g., ruas, piscinas, campos de
são desde então), em vários países africanos, tênis, jardins, parques); 2) impermeabilidade do
americanos, asiáticos, europeus e da Oceânia: perímetro e controlo do acesso (Luymes, 1997)
China, Angola, Bulgária, Líbano, Argentina, de tipo e grau variável; 3) propriedade priva-
Austrália, Índia, Malásia, Chile, Rússia, África da coletiva (ou acesso a e usufruto coletivo
do Sul, Singapura constituem apenas alguns privatizado) de espaços exteriores associados
exemplos. Para o caso europeu, vale a pena à função residencial que coincidem com ou
salientar a prevalência do fenômeno a sul e a constituem o suporte físico dos equipamentos
leste e em Inglaterra (e sua quase completa já referidos.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 173
Rita Raposo

A alternativa acima estabelecida entre degradação, objetiva ou percebida, das condi-


as categorias “privado” e “privatizado” resulta ções de vida locais. Minoritários, os CFs emer-
da observação da presença na AML de vários gentes apresentam-se como uma espécie de
casos de empreendimentos residenciais novos fenômeno em “segunda-mão” tipicamente as-
que, sendo clausulados (dispõem de perímetros sociado a residentes menos afluentes, ou mes-
impermeáveis e realizam o controlo dos aces- mo pobres (vide Carvalho, 2001) e que segue
sos e, ainda, por vezes, das circulações interio- a inspiração dos CFs comerciais que os prece-
res), incluem no seu perímetro diversos espaços deram no tempo. Reclamam, assim, uma abor-
públicos (normalmente arruamentos e espaços dagem própria que inclua questões específicas,
ajardinados). De jure, esses empreendimentos com destaque para as que se referem ao en-
não podem impedir a entrada ou a circulação quadramento legal e à forma de administração
a ninguém. Contudo, podem-nas controlar de deste tipo de CFs, assim como à sua dinâmica
fato e, por esse meio, tornar menos provável a e política de ação coletiva. Em Portugal, não há
entrada de estranhos. Esse tipo de empreendi- qualquer registo dessa última modalidade de
mento é assim incluído no nosso universo de condomínios fechados, e nossa atenção só se
estudo, malgrado o fato de a respectiva pro- tem dirigido à variante principal do fenômeno,
priedade não ser totalmente privada. Situação seja aquela a que já nos referimos especifica-
equivalente foi relatada por Wehrhahn (2003) mente sob a designação de “condomínios fe-
para Madri. Este autor recorre à expressão chados comerciais”.
pseudo-gated communities para a nomear (ver Precisamente, a interpretação socioló-
também Wehrhahn e Raposo, 2006). Não são gica que propomos do fenômeno CFs apenas
conhecidas quaisquer outras referências congê- se aplica por inteiro a essa última variante, a
neres para outras partes do mundo. Existe, isso única que, de resto, entendemos, exibir raízes
sim, ampla documentação internacional para históricas significativas. Interpretamo-la, simul-
uma outra modalidade de privatizatição efetiva taneamente, como uma forma de segregação
do espaço público e que corresponde a uma va- distintiva e como um produto imobiliário es-
riante secundária do fenômeno (também gene- pecífico (Raposo, 2002 e 2003). Entendemos
ricamente abrangida pela definição proposta), que, como forma de segregação ou de espa-
seja o caso dos CFs que apelidamos de “emer- cialização de desigualdades sociais, os CFs se
gentes” (Raposo, 2006) e que correspondem a distinguem graças à associação única de dois
conjuntos ou áreas residenciais preexistentes traços essenciais: 1) recurso a barreiras físico-
que se transformam pela adoção da mesma -arquitetônicas; 2) carácter voluntário. Os CFs
fórmula dos CFs “comerciais”. refletem um método específico de consagração
Essa variante, em regra, constitui o resul- espacial de distâncias sociais: o “policiamento
tado, legal ou ilegal, da acção coletiva de resi- arquitetônico” (Davis, 1990). Eis algo que não
dentes que reclamam a transformação de áreas é original. O gueto já a este recorrera. Contu-
que, de raiz, não eram muradas ou fechadas. do, ao contrário desse último, os condomínios
Seu surgimento está frequentemente associado fechados não correspondem a um “território
a contextos de crime e violência extrema ou à de rejeição” (Vieillard-Baron, 1996) nem se

174 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

identificam com uma “população involunta- intermédio da sua forma construída e da sua
riamente definida e tratada como inferior pela apresentação publicitária (o que é especial-
sociedade dominante” (Marcuse, 1997, p. 232). mente válido para a edição contemporânea).
Alternativa e tipicamente, os residentes em CFs Como se verá, malgrado todas as mudanças
provêm de classes médias e médias-altas, já que intervieram ao longo de mais de dois
que, se bem que com excepções, os membros séculos, as semelhanças entre ambas as edi-
de classes de topo parecem preferir, em regra e ções são extraordinárias.
graças à sua maior liberdade de escolha, solu-
ções residenciais mais individualizadas.
Considerar que os CFs correspondem a
uma forma de segregação serve tanto à com-
Discussão de duas
preensão de vários aspectos relativos à sua na-
teses sobre a origem
tureza como à sua produção social. O mesmo dos condomínios fechados
acontece com a consideração de que aqueles
se tratam, tipicamente, de um produto imobi- No que respeita à pesquisa das origens do
liário. Os condomínios fechados são uma mer- fenômeno, é frequente encontrar duas teses
cadoria que obedece a uma fórmula definida, a principais, que, de resto, surgem muitas ve-
qual, apesar de poder exibir diversas formas, é zes associadas. A primeira respeita essencial-
quase sempre um caso de engenharia do tem- mente à identificação de visões específicas
po, do espaço e da sociedade. Interpretá-los do espaço e da sociedade que, supostamente,
assim é também uma maneira de indicar que o terão inspirado diretamente (e, portanto, sido
lado da oferta, a indústria imobiliária (incluin- responsáveis por) a formação e a configuração
do os agentes que, no passado, ainda estavam física e social dos CFs. Por sua vez, a segun-
longe de merecer por inteiro tal designação) da tese é relativa aos antecedentes históricos
sempre teve um papel decisivo na sua criação e do fenômeno, isto é, às formas socioespaciais
expansão. Nas próximas páginas, analisaremos similares que terão precedido no tempo os
o trajeto histórico do fenômeno. Começaremos condomínios fechados contemporâneos. Ora,
por discutir algumas teses existentes sobre a se bem que estas duas demandas não sejam
origem dos CFs, para, logo em seguida, passar exatamente incompatíveis, é de notar que elas
à análise da sua primeira edição histórica, das devem ser claramente distinguidas já que cor-
suas formas e das suas principais condições de respondem a questões bastante diferentes. A
produção social. Por fim, olhamos a atual edi- primeira é sobre a possível influência que al-
ção do fenômeno, evocando as principais se- gumas construções ideológicas tiveram na his-
melhanças e continuidades que os atuais CFs tória dos condomínios fechados; a segunda é
apresentam em relação aos seus antecessores. sobre essa mesma história.
Nomeadamente, analisar-se-ão seu contexto de A primeira tese a que nos referimos de-
produção social específico, assim como as prin- fende que o modelo da Cidade Jardim, de Ebe-
cipais representações do tempo, do espaço e nezer Howard (1850-1928) corresponde a uma
da sociedade que exibem, nomeadamente por das principais origens dos CFs (e.g. Caldeira,

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 175
Rita Raposo

2000, e a sua referência à “linhagem” do fe- dos principais seguidores, nesse continente,
nômeno). Claramente, e conforme à distinção das ideias de Howard. De fato, a par de Stein,
supra, esse argumento refere-se à genealogia vários outros arquitetos e urbanistas norte-
ideológica dos CFs e não à sua história real. A -americanos foram conquistados para o ideal
segunda tese, tantas vezes repetida, por sua da Cidade Jardim, com destaque para seus
vez, clama que a verdadeira origem dos con- parceiros da Regional Planning Association
domínios fechados contemporâneos radica nas of America. Essa correspondia a um grupo de
cidades fortificadas europeias pré-modernas. inovative thinkers em que também se incluía
Ora, se bem que esses dois argumentos te- Lewis Mumford (McKenzie, 1994, p. 9). Mesmo
nham, como vimos, naturezas muito distintas, já depois da II Guerra Mundial e do fracasso
entendemos merecer por igual o exercício da de Radburn, esse grupo continuou a insistir,
crítica. Comecemos com o caso do modelo da sem sucesso, na implementação do ideal da
Cidade Jardim. Apesar de poderem ser aponta- Garden City nos EUA. De facto, “ they could
das algumas semelhanças formais entre os CFs not overcome the ideological and financial
e a visão de Howard, as diferenças são segura- qualities of American city building practice”
mente em maior número e muito mais signifi- (Richert e Lapping, 1998, p. 127).
cativas. Os únicos elementos que os dois casos O ideal de Howard das Garden Cities
têm, mais ou menos, em comum são a proprie- of Tomorrow (note-se que esse é o título da
dade e o governo privados de todo o solo da ci- segunda impressão, datada de 1902, já que a
dade, o caráter autocontido (mas não fechado, obra deu originalmente à estampa em 1898
no ideal de Howard), o planeamento geral e o sob o nome de Tomorrow: A Peaceful Path to
desprezo do tecido urbano existente (de resto, Real Reform) apenas foi inteiramente aplicado
um traço comum, à maior parte das visões mo- em Inglaterra, ainda que se tenham sucedido
dernistas da urbe). Contudo, mesmo estes ele- outras “realizações paralelas” na Suécia, nos
mentos podem conduzir a interpretações muito Países-Baixos, em Itália e na União Soviética
diferentes e, seguramente, a desenvolvimentos (Mumford, 1964, p. 650). Da iniciativa direta
práticos muito distintos. de Howard e da Garden City Association, que
Recorde-se, imediata e exemplarmen- aquele fundou em 1899, apenas surgiram
te, com McKenzie (1994), como a experiência duas cidades novas em Inglaterra: “il invitait
norte-americana de Radburn, concebida inicial- tous ceux qui pouvaient faire confiance à
mente como a translação inaugural do mode- sa conception et qui avaient les capitaux
lo de Ebenezer Howard para os EUA, resultou nécessaires, à tenter avec lui l’experiénce
em apenas mais um “monumento ao privatis- de la construction de la première cité-jardin,
mo”, já que esse ideal colidiu com a natureza expérience qui débuta à Letchword, en 1904.
e o espírito mais profundos do capitalismo Une quinzaine d’années plus tard, il commença
norte-americano. O planeamento de Radburn, d’édifier, à Welwyn, une autre cité semblable”
Nova Jersey, iniciado em 1928, teve por princi- (Mumford, 1964, p. 645). Mas a influência
pal arquiteto Laurence Stein, um dos grandes dessa concepção não se ficou por aí. Para além
urbanistas norte-americanos de então e um de ter largamente influenciado o urbanismo

176 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

do século XX, o sucesso obtido nessas Mas para além do tema da propriedade
duas primeiras experiências em Inglaterra privada do solo, que tantas vezes tem levado à
conduziu diretamente à adoção do modelo confusão do modelo das Cidades Jardim com
no planeamento e construção das New Towns o caso dos condomínios fechados, há outros
inglesas do pós-guerra (idem). aspectos de relevo que, na respectiva com-
Em contrapartida, como vimos, apesar de paração, também têm contribuído para esse
os EUA estarem mais próximos de Inglaterra do tipo de interpretação. Nomeadamente, tem
que de qualquer outro país no que respeita a sido frequentemente estabelecida uma equi-
tradições urbanísticas e jurídicas, e de, declara- valência direta entre o governo tecnocrático
damente, terem constituído uma das principais da Garden City e o governo dos CFs por asso-
fontes de inspiração da obra de Howard, neles ciações de proprietários. Contudo, mais uma
o modelo não teve qualquer sucesso prático. A vez, existem limites práticos, e especialmente
par de outros aspectos, a questão da proprie- ideológicos, para tal interpretação. É claro que
dade do solo constituiu, desde o início, um dos o fato de Ebezener Howard ter projetado o go-
principais problemas de adaptação do ideal verno da Cidade Jardim como uma tecnocracia
das Garden Cities às terras norte-americanas. ajuda a esse tipo de leitura. Contudo, vejam-se
Howard previu no seu modelo que todo o so- imediatamente as observações de McKenzie
lo dessas cidades haveria de ser privado, assim (1994, p. 5) sobre esta matéria.
como o seu governo. Contudo, essa concepção
continha um “detalhe” enorme, tão grande, que The government Howard proposed was
a democratically controlled corporate
os EUA nunca poderiam ter “engolido” (e muito
technocracy. Renters would elect the
menos os potenciais investidores no projeto): a heads of various practical departments
propriedade privada do solo haveria de perma- grouped under general headings: Public
necer coletiva, e os particulares, os residentes, Control, with departments on finance, law,
apenas poderiam ser arrendatários de lotes ou assessment, and inspection; Engineering
[…].The city’s constitution would more
de unidades de habitação. Radburn acabou por
closely resemble the charter of a business
alojar apenas 500 famílias; o promotor, a City corporation than the governing document
Housing Corporation, faliu em 1934; o plano of any existing nation or city.
físico ficou muito longe de se conformar com
This principle reflected Howard’s belief
o das Garden City e, acima de tudo, a popula- that politics, in the sense of various
ção que veio a instalar-se nessa nova planned interests competing for favor in the
community não tinha nada a ver com a que ins- distribution of government services and
wealth, would be essentially eliminated
pirara todo o projeto. Radburn acabou por ser
in his planned city. In place of politics
apenas mais uma “suburban sudivison for the
and ideology would be the rational
moneyed classes, albeit one with a number of management of practical matters by
innovative features”, uma “upper middle class experts, each elected to a particular
town” (McKenzie, 1994, p. 48), dotada de uma department because of his or her
expertise in the area.
população homogênea e suburbana.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 177
Rita Raposo

Indubitavelmente, a visão de Howard Vale ainda a pena observar que a tendên-


é democrática e progressista. Apenas há que cia para confundir o modelo da Cidade Jardim
colocá-la no contexto próprio. Ela não tem de Howard com outras formas socioespaciais
lugar para o político no sentido habitual do muito diferentes não constitui sequer novidade.
termo; apenas contempla a hipótese da ad- Tal ocorreu em primeiro lugar na comparação
ministração: “it was characteristic of Howard com os subúrbios elegantes que surgiram na
that, rather than tackle the essentially political mesma época. Os Garden Suburbs ingleses do
problem of government, he should choose to início do século XX (e.g. Hamsptead) foram os
address himself to the detailed mechanism of primeiros a receber esse tipo de interpretação.
administration” (Beevers, 1988, p. 63). Eis uma Desde logo, foi o próprio Howard que tratou de
visão do político muito próxima da de vários recusar tal leitura, comentando a seu propósi-
outros autores da sua época que, na senda do to que: “Suburbs are better than barracks, but
Iluminismo, se renderam à absoluta crença na further growth of an overgrown city has evils of
Razão e no Progresso, imaginando, ingênua its own” (apud Beevers, 1988, p. 133). De fato,
mas convictamente, que, num futuro próximo entendia que estes constituíam a antítese do
(para o qual tentaram contribuir ativamente), a seu modelo.
“administração das coisas haveria de substituir
A Garden City is, or at its inception
o governo dos homens”, conforme à conhecida
aims to become, a complete, and, so to
fórmula de Saint-Simon. Tratava-se de reformar say, self-contained town, with its own
a sociedade e de dar fim aos conflitos sociais industries etc.; and its own full, corporate
e ao poder (seja, em essência, ao político), re- life. A Garden Suburb is an attempt to
correndo tão só à Razão humana universal e às wisely regulate the out-flow of a great
city’s population: but, in doing this the
suas realizações, como a ciência e a técnica. A
Garden Suburbs which have so far been
esse respeito, recorde-se que Auguste Comte built tend rather to increase the distance
(em tempos secretário do filósofo supra refe- between the working and the home
rido) defendeu, na sua famosa teoria sobre a life of the bread-winners; for they are
Ordem e o Progresso, que no futuro a guerra rather dormitory districts with little or
no provision for work, except, indeed,
passaria a ser um anacronismo, coisa bárbara e
for work in the garden… (Howard apud
sem lugar na era do Positivismo, seja do triunfo Beevers, 1988, pp. 133-134)
da razão e da ciência. O essencial do ideário
iluminista, assim como elementos de outras A este respeito é ainda de notar que
correntes ideológicas e valores (nem sempre de vários outros autores saíram a terreiro em de-
fácil conciliação), tais como o industrialismo, o fesa de Howard. De entre eles destaca-se, em
apelo romântico da natureza e o universalismo primeiro lugar, Lewis Mumford: “the Garden
ecoam nitidamente na visão de Howard. Eis City, in Howard’s view, was first of all, a city…
algo que pode também ser verificado na sua … It was in its urbanity, not its horticulture,
franca adesão ao Esperanto [aquele que tem that the Garden City made a bold departure
esperança], língua por ele frequentemente utili- from the established method of building and
zada e promovida. planning” (Mumford apud Richert e Lapping,

178 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

1998, p. 127). Também Tuan (1990) apresen- internas, e o caso em que esses mesmos ele-
tou opinião semelhante, frisando que a Cidade mentos construídos servem a separação de
Jardim, e nomeadamente a sua materialização diferentes grupos ou classes sociais no seio da
em Letchworth, foi desenhada como uma ver- mesma cidade. Assim, tal tese falha um aspec-
dadeira cidade, incluindo uma população diver- to decisivo, seja o fato de os CFs corresponde-
sificada, múltiplos usos do solo e uma elevada rem a uma forma genuinamente moderna e de
densidade residencial. Esses mesmos argumen- constituírem uma faceta ou variante específica
tos poderiam ser usados hoje para marcar a di- da história geral da segregação social que ca-
ferença entre o ideal da Cidade Jardim e os CFs racteriza de modo distintivo a cidade moderna
(em especial na sua versão master-planned), o (e a pós-moderna, se bem que com variações).
que, de resto, já foi feito por Paul Knox (1992, De fato, o trabalho das ciências sociais
p. 207). Esse salienta que, ao contrário do mo- (e.g. Fishman, 1987; Tuan, 1990; Salgueiro,
vimento das Cidades Jardim e das New Towns 1992) veio revelar a existência de profundas
inglesas, a proveniência das MPCs contemporâ- diferenças entre as sociedades modernas e pré-
neas (na sua maioria muradas e fechadas), que -modernas no que respeita ao fenômeno da
apelida “paisagens empacotadas”, “is almost segregação, nomeadamente no terreno das ci-
entirely from within the private sector, their dades. Demonstrou que na cidade pré-moderna
objectives being less concerned with planning aquele fenômeno é relativamente excepcional,
and urban design as solutions to problems of já que é caracterizada pela mistura funcional
urbanization than as solutions to the problem e social, segundo um padrão dito de “grão fi-
of securing profitable new niches within the no” e restrito a casos muito específicos, isto é,
urban development industry”. que nem constituem a norma, nem se baseiam
Passemos agora à discussão da tese em princípios de desigualdade socialmente
que clama que a verdadeira origem dos CFs centrais nesse contexto, pelo menos a Oci-
contemporâneos (seja a sua origem histórica) dente. É assim que a segregação nas cidades
radica nas cidades europeias fortificadas pré- pré-modernas se encontra apenas associada a
-modernas. De um modo geral, esse argumento princípios de ordem étnico-religiosa (o exemplo
costuma ser apresentado de uma forma muito clássico é o do gueto de Veneza do século XV:
solta, apenas evocando as muralhas e os por- vide Sennett, 1994, para uma análise aprofun-
tões que nessas cidades protegiam as respecti- dada da matéria), ou profissional e corporativa.
vas populações de diversas ameaças exteriores. Nas cidades pré-modernas (com destaque para
Em nossa opinião, esta tese esquece-se de um as europeias) não só não se observa a segrega-
elemento fundamental que inviabiliza qual- ção residencial de classes sociais, como se não
quer comparação séria entre essa forma pré- assiste à separação espacial das esferas do tra-
-moderna e os CFs nas suas diferentes edições balho e da família, nem dos sexos e das idades.
históricas. Nomeadamente, olvida a profunda É claro que a ausência relativa de segre-
diferença que existe entre o caso dos muros e gação na cidade pré-moderna não significa a
dos portões que encerram uma população in- inexistência de desigualdades profundas. Ape-
teira, sem olhar às suas desigualdades sociais nas a ordem social tradicional não precisava

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 179
Rita Raposo

da distância física para garantir suas enormes paisagem urbana de Londres: a privatização
distâncias sociais. As pessoas de diferentes es- de algumas praças residenciais, por coletivos
tados ou ordens sociais podiam cruzar-se nos de residentes. De acordo com Henry Lawren-
mesmos espaços físicos sem alguma vez es- ce (1993, p. 90), este fenômeno: “represented
quecerem a que espaços sociais pertenciam. some of the first expressions of the desire for
Também é certo que as distinções sociais não class segregation, domestic isolation, and
deixavam de se revelar por intermédio de vá- privatized open space that later were to form
rios outros signos físicos tais que a dimensão the basis of suburban living”. Como veremos,
ou a arquitetura das casas. É certo ainda que a novidade destas praças residenciais não re-
algumas atividades consideradas (material sidiu apenas no fato de serem clausuladas,
ou socialmente) poluentes também podiam mas num coerente e mais amplo conjunto de
ser remetidas para fora da muralha, seja para elementos; seja o mesmo que autoriza estabe-
essa “quinta dimensão” (Tuan, 1990) a que lecer a respectiva continuidade por relação a
correspondiam os subúrbios pré-modernos. formas residenciais posteriores, entre as quais
Contudo, a regra na cidade tradicional é a da os CFs contemporâneos. É dessas praças que
mistura, a do ombrear de ordens sociais e de falaremos imediatamente no ponto seguinte, a
atividades. Na cidade pré-industrial, assim co- par de uma outra forma mais avançada que,
mo no campo, o espaço refletia e reforçava obedecendo à mesma lógica, continua essa
múltiplas interdependências sociais que mais primeira experiência. Trata-se do caso dos
tarde haveriam de se romper. De fato, antes do subúrbios românticos planeados anglo-ameri-
seu advento, a proximidade física entre mem- canos. Eis duas formas que em conjunto iden-
bros de diferentes grupos ou ordens não tinha tificamos com o primeiro “momento” ou “edi-
o mesmo significado nem inspirava os mesmos ção” do fenômeno. Entretanto, é de notar que
receios que a sociedade e a cidade moderna também já McKenzie (1994) e Luymes (1997)
haveriam de conhecer. tinham estabelecido uma relação de continui-
Apenas a modernidade e sua ordem so- dade entre alguns exemplares dessas formas e
cial, econômica e moral, capitalista e burguesa os actuais CFs.
impuseram a regra da segregação social, por
vezes sob condições extremas e mesmo dramá-
ticas como aconteceu nas cidades de Manches-
ter, Liverpool, Londres e, mais tarde, em Nova
Uma história, duas formas
Iorque e noutras cidades norte-americanas,
localizações onde, precisamente, nasceram A primeira forma desenvolveu-se no século
alguns dos mais desenvolvidos CFs. De fato, XVIII, como referido, a partir da praça residen-
procurando no tempo os antecedentes histó- cial inglesa, nascida em Londres no século pre-
ricos dos condomínios fechados, entendemos cedente. Se bem que inicialmente identificada
não se poder recuar além de cerca de meados com a aristocracia, esse tipo de praça, com o
do século XVIII, momento a partir do qual há passar do tempo, veio a refletir valores e traços
registro de uma importante transformação na também, e até mais facilmente, atribuíveis à

180 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

burguesia e, acima de tudo, identificáveis com em riqueza e prestígio, à medida que progre-
um mundo capitalista e moderno. Com efeito, dia a lógica do acortesamento, como aconteceu
em Inglaterra, no início, os residentes dessas exemplarmente em França. No início, as suas
praças eram na sua maioria nobres, se bem que residências urbanas situadas nessas praças
no século XVIII já vários burgueses ricos tam- elegantes construídas nos limites de Londres
bém as habitassem. Em contrapartida, a segun- destinavam-se apenas à passagem dos meses
da forma que consideramos, o subúrbio român- de inverno.
tico planeado anglo-americano (ele próprio Os “empreendimentos”, de que as pra-
apenas uma variante da forma suburbana), já ças constituíam o centro, incluíam muitas vezes
é verdadeiramente burguesa, se bem que refle- uma praça de mercado separada, várias ruas,
tindo as influências de modelos aristocráticos lojas, uma igreja e habitação para criados, ar-
que, em certa medida, procura emular. Encon- tesãos, etc., se bem que nos séculos XVIII e XIX
trando-se exclusivamente ligado ao passado muitas já fossem puramente residenciais e que,
do urbanismo anglo-americano, esse primeiro inclusive, se fizessem acompanhar de barreiras
momento do fenômeno surgiu na transição de que fechavam as ruas que lhes davam acesso.
um mundo dito tradicional, predominantemen- Em regra, a terra pertencia a um senhor que
te rural e agrícola e caracterizado por uma es- a arrendava a especuladores ou diretamente
trutura social em que imperava o princípio do aos residentes, normalmente por períodos lon-
nascimento, para o mundo da Modernidade, gos que podiam ir até 99 anos. De igual for-
urbano, industrial, capitalista, dotado de uma ma, era habitualmente o proprietário da terra,
nova estrutura social que apresentava novos e apenas raramente o promotor, que detinha
atores e novas relações sociais. o controlo do desenho dos edifícios em torno
da praça. O controlo dos proprietários exercia-
-se ainda sob a figura de restrictive covenants
A praça residencial inglesa que obrigavam os arrendatários, prevenindo
que introduzissem alterações aos edifícios ou
O fenômeno de privatização ou clausura de utilizassem o espaço aberto da praça de modo
praças residenciais em Inglaterra iniciou-se indesejável. O traçado e o desenho arquitetô-
em meados do século XVIII e prolongou-se no nico destas praças inspiravam-se nos modelos
seguinte. Sua história começa em Londres no continentais das praças renascentistas de Itá-
século XVII, mas apenas o século seguinte as- lia e de França. A primeira praça residencial a
sistirá à mudança que lhes garantirá um lugar surgir em Londres foi Covent Garden. Em 1630
nesta história. Sua origem é aristocrática e liga- iniciou-se sua construção nas terras do Conde
-se à nobreza inglesa estabelecida no campo de Bedford, sob o desenho de Inigo Jones. No
inglês, a esse grupo de ricos gentlemen farmers topo sul encontrava-se a Casa de Bedford, no
que clausularam os campos e neles introduzi- lado oeste nascia a igreja de São Paulo, a norte
ram a lógica capitalista. Este importante braço e leste da praça foram construídas casas para
da nobreza inglesa escapou assim à sorte de arrendar. A composição geral da praça, com ar-
muitas nobrezas rurais que ficaram para trás, cadas, imitava a parisiense Place Royale, hoje

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 181
Rita Raposo

Place des Vosges, que fora construída apenas acesso para o exercício de diversas atividades
vinte e cinco anos antes (Lawrence, 1993). produtivas e recreativas. Até a década de 1720,
O amplo espaço central da praça de Co- a exclusão do público dessas praças era difícil
vent Garden começou por ser apenas pavimen- e não claramente legal. Apenas o prestígio de
tado com pedra e aberto ao uso público. Esse viver em determinada praça onde ficava a ca-
recinto era ladeado por ruas que continuavam sa de um senhor de grande estirpe (no caso de
para além da praça, ligando-se em parte à ma- St. James’s Square tinha-se o rei por vizinho)
lha urbana, em parte ao campo adjacente. À conferia valor econômico à residência nesse
semelhança das muitas outras praças que ha- local. Só no século XVIII os valores capitalistas
veriam de ser construídas desde então, Covent haveriam de contestar as noções feudais do
Garden foi antes de mais projetada como uma valor do solo (Lawrence, 1993). Logo no início
praça residencial, e o uso público não consti- desse século se afirmou parte da nova tendên-
tuía sua principal vocação. Foi especialmente cia. Uma nova praça, Hanover Square, surgiu
após o grande incêndio de Londres de 1666, e à em 1713, apresentando no seu centro um jar-
medida que a cidade se expandia, que a praça dim vedado (mas ainda não fechado à chave).
residencial se tornou numa das principais for- Várias outras, novas ou mais antigas, haveriam
mas escolhidas para a criação de novas zonas rapidamente de adotar o mesmo padrão, dotan-
para as classes mais abastadas. Segundo La- do-se por igual de jardins vedados com grades
wrence (1993, pp. 94-95), “from the beginning, metálicas. Tal aconteceu em especial com as
the squares were intended to be amenities that mais atacadas pela “populaça”. Os residentes
increased the value of the property surrounding lutavam então pelo direito à clausura total e
them, in speculative construction projects legal desses jardins no meio das praças e ao seu
aimed at providing housing for the growing usufruto exclusivo, o que acabou por acontecer
upper-class population of London”. Mas, a in- por intermédio de uma forma jurídica especí-
tenção de oferecer amenidades aos residentes, fica: “Parliamentary enclosure acts similar to
e de recolher os benefícios financeiros da con- those used at the same time on rural estates”.
sequente valorização da propriedade, acabou Com estas medidas, “the urban common-field
por não se concretizar por inteiro, pelo menos tradition quietly died” (idem, p. 97). A primeira
nos tempos mais próximos. As praças mantidas autorização surgiu em 1726: St. James’s Square,
abertas ao público acabariam por ser sujeitas a a mais aristocrática de todas as praças de Lon-
usos incompatíveis com esse objetivo. dres. Muitas outras haveriam de se lhe seguir.
De fato, como argumenta o mesmo autor, Henry Lawrence (1993) nota que, à seme-
essas praças eram paisagens socialmente ambí- lhança do que acontecia com os enclosures no
guas, e as relações de propriedade envolvidas campo, também os enclosures urbanos “were
eram basicamente feudais: 1) os residentes a major step away from the feudal forms of
apenas detinham, por arrendamento, o direi- property relations and toward capitalist forms”
to de uso das casas; 2) as praças eram baldios (idem). O autor estabelece um claro paralelo
[commons] em relação aos quais os anteriores entre os dois casos de clausura, urbana e rural.
residentes mantinham o antigo direito de Por então, também nos campos de Inglaterra,

182 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

os senhores extinguiam o direito de acesso ‘picturesque’ betrays its origins not in


dos camponeses aos baldios, ao mesmo tem- the direct appreciation of ‘nature’ but in
the imitation in real gardens and parks of
po que os colocavam à distância da sua casa.
the landscapes found in certain painters
Mas o encerramento das praças e a exclusão
of the seventeenth century, most notably
da “populaça” não foi a única transformação Claude Lorrain. Claude did not work
assinalável que essa forma socioespacial so- ‘from nature’ but from an idealized view
freu ao longo do século XVIII: “by the third of the classical age, which he sought
quarter of the century, there was a noticeable to captures on his canvases (…). This
vision certainly enchanted and consoled
trend toward increasing density of vegetation”
the English upper classes. With the
(idem, p. 101). Os jardins das praças, agora encouragement of cultural leaders like
fechados, começaram “to look like more little Pope and Lord Burlington and the genius
parks whose spaces were increasingly internal of such landscape architects as William
within a screen of plantings” (idem, p. 104). Kent, Lancelot ‘Capability’ Brown, and
Humphry Repton, the great landowners
O significado cultural dessa transformação é
set out to create ‘parks’ around their
complexo, ilustrando poderosamente o que country houses that matched the ideal.
por então mudava nas economia, sociedade All the resources of advanced agriculture
e cultura inglesas. Em primeiro lugar, há que were called into play to produce the
relacionar essa alteração com a emergência, a p p e a r a n c e o f u n s p o il e d n a t u r e.
(Fishman, 1987, pp. 47-48)
em torno de 1720, de uma concepção espe-
cificamente inglesa da paisagem que haveria
Esse novo ideal da paisagem surgiu e
de dominar durante muito tempo o desenho
desenvolveu-se primeiro nas ricas e nobres
de jardins e parques, especialmente na Grã-
propriedades rurais de Inglaterra. Eis algo que
-Bretanha e nos EUA.
conduz imediatamente ao estabelecimento de
In the early eighteenth century a new mais um paralelo entre as transformações que
ideal of landscape arose in England
o campo e a cidade ingleses sofreram ao longo
based on the idea of nature as variety.
do século XVIII, um paralelo que, de novo, não
The straight lines and right angles of
the old gardens would be replaced by escapou a Henry Lawrence (1993). A adoção
gentle curves, the symmetries replaced desse ideal de paisagem encontrou-se asso-
by carefully planned irregularities. Trees, ciada, em ambos os mundos, à remoção dos
shrubs, and flowers would be allowed to
membros de ordens ou classes inferiores tan-
‘be themselves’, to grow in their natural
to da vista como do contato físico de nobres
shape and to be planted in scatterings
which sought to imitate the unaided work e burgueses, representando, assim, um dese-
of nature. Instead of the strictly-delimited jo de segregação social, a par da valorização
world of the Renaissance garden, the da privacidade familiar e de outros elementos
ideal was of an encompassing world
pertencentes ao mesmo espectro axiológico. O
of greenery and variety that extended
avanço do capitalismo e a correspondente mu-
into the most distant prospect. To be
sure, this new aesthetics had rules dança da estrutura social inglesa trouxeram
almost as rigid as the old. Its name the novos valores que se haveriam de encontrar

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 183
Rita Raposo

principalmente alinhados com o ethos burguês Paisagem Inglesa e a mudança simultânea da


moderno. Curiosamente, no caso de Inglater- sociedade, da economia e da cultura inglesas
ra, e porque foi aí que o capitalismo agrário desde o século XVIII: e.g. Raymond Williams
irrompeu inauguralmente, esses valores aflo- (The Country and the City, 1993 [1973]), John
raram primeiro no campo do que na cidade. Berger ( Ways of Seeing , 1975), John Barrell
Entretanto, é de notar que essa segregação ( The Dark Side of the Landscape , 1980) e
operada pela aristocracia inglesa desde o sé- Lawrence Stone ( The Public and the Private
culo XVIII pouco ou nada tem a ver com a lógi- in the Stately Homes of England, 1500-1990,
ca tradicional da aristocracia “civilizada”, ain- 1991). Esses autores observaram como, nos
da tão visível do outro lado da Mancha, nesse campos de Inglaterra, a paisagem “à inglesa”
mesmo século. serviu para esconder pobres, trabalhadores ru-
É claro que a nobreza inglesa não perdeu rais e tudo o que a pudesse estragar. Referem-
o sentido da distinção nem abrandou a guarda -se, especificamente, à expulsão das casas dos
da distância que a separava da burguesia. camponeses e de todas as construções asso-
Contudo, adotou grande parte de seus valores, ciadas à exploração agrícola para fora do pe-
possivelmente sob o efeito de estímulos seme- rímetro da casa senhorial, assim transformado
lhantes. A aristocracia de corte francesa tinha, num parque cênico privado, e, inclusive, à sua
por princípio de sobrevivência, a representação, equivalente remoção de muitas representações
isto é, a demonstração em todas as ocasiões da literárias e pictóricas do mundo rural e da pai-
sua qualidade, o que a obrigava a comportar- sagem de então.
-se sempre de acordo com sua categoria (é Na cidade, por sua vez, o espaço, nomea-
esse o sentido da “honra” tal como traduzido damente nas praças residenciais, era sujeito
por Montesquieu no Espírito das Leis), para à mesma regra de clausura e à mesma con-
além de qualquer consideração de ordem eco- cepção de paisagem estreada nos campos de
nômica. Nas práticas ostentatórias da nobre- Inglaterra. Essa nova versão das praças ingle-
za não se encontra o menor rasto do homo sas nada tinha a ver com sua concepção ori-
œconomicus moderno (esse constitui, de resto, ginal. No começo e durante muitas décadas,
sua denegação mais prosaica): seu comporta- as praças residenciais eram essencialmente
mento de despesa e consumo é agonístico. Em locais de encontro, para ver e ser-se visto,
contrapartida, a aristocracia inglesa, que não conforme à já citada lógica da representação
deixa de se representar até hoje, “progrediu” aristocrática. Agora a privacidade passava a
para outra forma de relação entre a economia ser preferida a essa lógica da exposição inter
e a sociedade, desenvolvendo um ethos mis- pares: “by the end of the eighteenth century,
to. É assim que se torna compreensível que a some kind of seclusion became necessary for
muralha (que haveria de ser identificada com people to observe “decency and good order”
a burguesia) pudesse, em grande medida, ter in their assembly” (Lawrence, 1993, p. 106).
começado por ser aristocrática. Esta necessidade também passava pela trans-
Vários autores contribuíram, de forma formação da cidade de Londres: “the street
magistral, para a análise das relações entre a life of London had changed markedly from

184 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

that of a half-century earlier. A rapid growth sua, trabalhada de origem, exclusiva, e já


of the city’s population, fed largely by rural pouco devendo à lógica aristocrática, exceção
immigrants of the lower classes, had increased feita aos seus símbolos consagrados pela ar-
the intensity of street traffic, and their poverty quitetura, a decoração e a paisagem. Muitas
had increased the incidence of street crime. das antigas praças perderam seus residentes
The streets teemed with strangers, and even e passaram, antes, a alojar escritórios e lojas.
a well-dressed person could no longer safely Na década de 1880 aumentou a pressão para
be assumed to be a gentleman” (idem). Mas sua abertura ao público. As barreiras que ga-
não era apenas esta invasão da “desordem” rantiam a privacidade de várias ruas que per-
que motivava a preferência pela separação e o mitiam o acesso às praças, e que tinham sido
isolamento. Ao mesmo tempo, crescia um gos- erigidas no âmbito do mesmo movimento de
to pela privacidade como valor autônomo, um clausura, foram todas removidas por ordem de
gosto mais burguês do que aristocrático, que, um Act of Parliament de 1893. No que respei-
de resto, era perfeitamente compatível com a ta ao próprio recinto ajardinado das praças, a
ambição de emular o status da classe dominan- questão foi diferente, e ainda hoje várias se
te tradicional no terreno da propriedade da ter- mantêm privadas e fechadas ao público (e.g.
ra e do controlo da natureza. Para os burgueses Bedford Square, Londres).
de então, “the square gardens became their Para além do resto da Grã-Bretanha, on-
landscape prospect and borrowed the same de surgiram em várias cidades, o modelo da
aristocratic aesthetics to create an ‘imitation of praça foi exportado para o Império, obtendo
the country’, with its symbolism of possession especial sucesso nos EUA após a conquista da
of the land through the control of nature (idem, respectiva independência. A primeira praça pri-
p. 104). vada seria aí construída em 1793, em Boston,
Apenas em meados do século XIX have- cidade que viria a registar pelo menos mais
ria de chegar ao fim a preponderância do mo- três praças residenciais entre os anos de 1801
delo da praça residencial. Ela refletiu ao longo e 1844 (Luymes, 1997). Também Washington,
de mais de dois séculos a evolução da econo- DC, Baltimore e New Haven assistiram ao nas-
mia, da estrutura social e da cultura inglesas. cimento do fenômeno durante as três primeiras
Seu encerramento ou clausura, assim como o décadas do século XIX. Nova Iorque registou
de muitas ruas que a circundavam, revelaram durante o mesmo período quatro praças, entre
um desejo de segregação sem precedentes. É as quais Gramercy Park, construída em 1831
claro que, no caso dessa sociedade é sempre e que ainda hoje mantém o estatuto de um
difícil decidir de que classes e de que cultura de jardim coletivo privado. À semelhança do que
classe se trata, tão cedo se deu a mistura entre aconteceu em Inglaterra, também nos EUA, na
a lógica da honra e a do dinheiro. Contudo, é caminhada para o século XX, as praças residen-
certo que a cultura burguesa haveria de encon- ciais passaram de moda aos poucos, e quase
trar sua maior e mais perfeita expressão numa todas se abriram ao público ainda durante o
forma mais evoluída e mais autenticamente século XIX.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 185
Rita Raposo

O subúrbio romântico planeado medida que progredia a densificação urbana,


anglo-americano que a cidade passava a ser retratada como um
locus infecto em vez do centro do mundo, e que
Ao mesmo tempo que o modelo da praça resi- crescia o desejo de isolamento doméstico e da
dencial britânica perdia sua força, já no hori- “higiênica” separação das classes inferiores e
zonte surgia uma outra forma de habitar que da cidade, no seio da burguesia ascendente a
haveria de levar ainda mais longe o desejo de ideia do subúrbio avançava. De acordo com Ro-
privacidade, de isolamento doméstico e de se- bert Fishman, o nascimento do subúrbio corres-
gregação: o subúrbio anglo-americano. A Ingla- pondeu a uma forma completamente nova que
terra primeiro e, poucos anos passados, os EUA exigiu e dependeu de uma profunda mudança
seriam o palco desta versão mais desenvolvida de valores, incluindo os relativos à concepção
do habitat burguês moderno. Essa, por sua vez, do espaço: do centro e da periferia, do espaço
obteve várias formas, e apenas uma delas reali- do trabalho e da família, do privado e do pú-
za a passagem direta da praça residencial clau- blico. Esse tipo de subúrbio consistiu, na opi-
sulada para os atuais CFs: o subúrbio românti- nião daquele autor, na criação coletiva da elite
co planeado. Esse consistiu numa variante que burguesa de Londres do final do século XVIII:
se destacou no quadro mais amplo da suburba- uma obra improvisada e não planeada, sujeita
nização anglo-americana (essa vaga que, desde ao método do ensaio e do erro, e resultado de
o final do século XVIII, submergiu os arrabaldes várias decisões, frequentemente não coordena-
de várias cidades de Inglaterra e dos EUA) e de das, de promotores, construtores e clientes.
que não pode ser isolado. É no subúrbio que o O quadro de motivos que inspirou tal
habitat burguês encontra sua melhor expressão criação foi naturalmente complexo. Fishman
já que nas praças residenciais inglesas apenas identifica no que Lawrence Stone designou
se assistira a uma espécie de ensaio, de um co- por “the closed domesticated nuclear family”
meço que arrancara do coração da própria so- a “força emocional” que haveria de separar a
ciedade aristocrática. casa e o trabalho da burguesia. Por sua vez, a
Ainda antes do fim do século XVIII, a esse “ímpeto cultural” haveria de se reunir um
burguesia inglesa começou a construir villas importante quadro econômico. A suburbaniza-
nos arredores de Londres, um movimento de ção trazia a possibilidade de terrenos agrícolas
que haveria de nascer o subúrbio moderno. baratos, situados para além da prévia zona de
De acordo com Robert Fishman (1987), o nas- expansão da cidade, serem transformados de
cimento do subúrbio moderno associou-se a modo muito rentável em lotes para constru-
um crescimento urbano sem precedentes e à ção de habitação: “this possibility provided the
crise da forma urbana que este provocou. A es- great engine that drove suburban expansion
ses juntou-se, pela mesma altura, um também forward (…), builders in both England and the
inédito aumento da riqueza e da dimensão de United States adapted more easily to the needs
uma elite mercantil, que assim atingia a mas- of suburban development that they did to the
sa crítica suficiente para operar a transforma- more difficult challenge of creating middle-
ção da cidade em função dos seus valores. À -class districts within the city. Suburbia proved

186 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

to be a good investment as well a good home” gótico moderno, o italianate, o Old English). O
(Fishman, 1987, p. 10). Não fora a rejeição do modelo básico estava lançado.
modelo urbano de vida, ao mesmo tempo que O subúrbio podia ser agora o objeto de
se afirmava uma alternativa ideológica, e a uma única operação de promoção e constru-
existência de condições econômicas propícias ção, para além de dispor de uma Arquitetu-
e nunca esta mudança teria sido adquirida. A ra específica. Ele encontrar-se-ia na base do
prová-lo parece encontrar-se o fato de, do ou- planeamento de um conjunto de novos su-
tro lado da Mancha, o desejo de isolamento búrbios que haveriam de surgir desde o final
doméstico e de segregação da burguesia do da década de 1830 nas franjas de cidades do
continente ter seguido um outro rumo. norte de Inglaterra, e desde cerca de 1850
Segundo Robert Fishman, o subúrbio nos EUA. Nascia então o subúrbio romântico
moderno só começou verdadeiramente quan- planeado anglo-americano. Em relação a Park
do “the merchant elite shifted its primary Village existia apenas uma, mas importante,
residence to the weekend villa, allowing the novidade: todo seu espaço era clausulado. De
woman and the children of the family to modo significativo, foi em Manchester e em
remain wholly separated from the contagions Liverpool que surgiram suas primeiras edi-
of London while the merchants themselves ções. Corria o ano de 1837 quando nasceram
commuted daily from their villas to London by Victoria Park e Rock Park, respectivamente.
private carriages” (idem, p. 39). O momento Seguiram-se, entre outros, Prince’s Park, em
exato em que tal ocorreu é, de acordo com o Liverpool, e Ladbroke Grove em Londres. Am-
autor, difícil de determinar. Contudo, esse afir- bos foram construídos em 1842. Por sua vez,
ma que existem registos de que, na última dé- nos EUA, nos anos de 1850, surgiram vários
cada do século XVIII, Clapham, entre outros, já empreendimentos semelhantes ao mode-
era um verdadeiro subúrbio conforme ao apon- lo inglês do subúrbio romântico. Alguns dos
tamento anterior. Contudo, a esses haveria de primeiros exemplos foram Evergreen Hamlet,
se seguir uma experiência mais completa: Park Pensilvânia (1851); Glendale, Ohio (1851);
Village, surgida na década de 1820. Esse levava Llewellyn Park, Nova Jersey (1856) e Lake
a assinatura de John Nash, arquiteto que habi- Forest, Illinois (1857) (Archer, 1988).
tualmente apenas trabalhava ambientes aristo- O subúrbio romântico anglo-americano
cráticos. Planeado de raiz, Park Village consa- foi planeado como um todo unitário, compos-
grava o subúrbio anglo-americano como o mo- to por moradias isoladas distribuídas de forma
delo das “houses in a park” (idem, p. 71). Cria- a obter-se uma baixa densidade, dispondo de
va uma verdadeira fórmula, um habitat total e amenidades coletivas como parques, ribeiros,
mercantilizável. Esta cruzava o pitoresco inglês lagos e árvores que isolavam visualmente as
(a “paisagem à inglesa”) com a libertação dos casas umas das outras, e obedecendo ainda a
estilos arquitetônicos em face da antes muita um modelo paisagístico romântico: ruas que
usada regra Palladiana (renascentista, clássica, serpenteiam e formam meandros atravessam
formal) da construção de villas suburbanas, e a o seu interior, harmonizando-se com a estética
adoção da diversidade e do historicismo (e.g. o naturalística e pitoresca do plano geral (idem).

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 187
Rita Raposo

Esse tipo de espaço apresentava ainda como definitivamente o subúrbio como o seu locus
características importantes o fato de ser mu- de residência preferido. Entretanto, era a norte
rado e de dispor de portões que limitavam o que a população urbana trabalhadora ganhava
acesso ao seu interior, impondo fisicamente o a verdadeira e dramática face do proletariado
que todos seus restantes elementos já confor- urbano industrial moderno. Aí a burguesia tam-
mavam: homogeneidade (e exclusão) social. A bém mudava de rosto: à medida que se trans-
especialização funcional deste tipo de espaço plantava das empresas comerciais para a arena
configura ainda outro tipo de “segregação”: da indústria cada vez mais sulcava o fosso que
“market and service facilities are carefully a havia de separar dessa outra classe de que
segregated away from the residential area; nascera, nalguns casos há uns séculos, noutros
stables and mews are in part eliminated, and in possivelmente há muito menos tempo.
part relegated to a distant corner of the estate” Robert Fishman elegeu, com razão,
(Archer, 1988, pp. 224-225). Por último, deve- Manchester e seu subúrbio romântico planea-
-se salientar uma característica fundamental do de Victoria Park, para análise. Da mesma
do subúrbio romântico, que, de resto, garante a forma que Los Angeles foi escolhida por vá-
possibilidade das restantes: o respectivo espa- rios autores contemporâneos como o paradig-
ço era controlado por um só proprietário com ma da cidade pós-moderna, Manchester ou
capacidade para impor um plano único, ante- Cottonopolis ficou especialmente conhecida
rior ao seu desenvolvimento. Este modelo ob- como o modelo da cidade industrial moder-
teve, como seria de esperar, algumas variações. na, em particular graças à obra A Situação da
Nomeadamente, os casos inglês e norte-ame- Classe Trabalhadora em Inglaterra de Friedrich
ricano não foram exatamente iguais. Contudo, Engels. Foi a rápida nitidez das divisões de clas-
obedeceram por igual ao padrão acima descri- se que apressou a suburbanização em Man-
to. Constituíram, assim, o mais perfeito e direto chester, que trouxe essa fuga burguesa do cen-
ancestral dos actuais CFs, em especial na sua tro da cidade. Segundo Fishman tudo mudou
versão suburbana. radicalmente numa década: entre 1835 e 1845.
É significativo que tenha sido em Man- Só então surgiu o subúrbio de Manchester. O
chester e em Liverpool, cidades industriais “medo de classe”, muito mais do que aconte-
do norte de Inglaterra, que essa forma de su- cera em Londres, constituiu um dos principais
búrbio clausulado tenha surgido em primeiro motivos dessa decisão “urgente” da burguesia,
lugar. Fishman (1987) recorda que Londres se bem que o ideal do isolamento doméstico e
permaneceu pouco industrializada quase até o trabalho da especulação imobiliária também
ao fim do século XIX e que, como tal, se ca- tenham cumprido o mesmo papel que Londres
racterizou ainda durante esse século por uma já conhecera. Apenas em Manchester e noutras
certa complexidade pré-industrial, tanto no cidades congêneres se desenvolveram todas as
que respeita às relações de classe, como à pressões sociais que haveriam de tornar o su-
estrutura urbana. Esse quadro também é con- búrbio, para os burgueses, num caso de “vida
sistente com o fato de, apenas após a década ou de morte”. Mais uma vez, a estratégia foi
de 1870, a burguesia londrina ter escolhido a da segregação e do dissimular de tudo o que

188 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

pudesse estragar, numa visão insuportável, a “operação” Haussmann de “regularização”


ilusão do paraíso. da cidade de Paris, a qual tratou de expulsar as
Victoria Park, que Fishman apelidou de “classes perigosas” para a periferia da cidade.
Exclusive Victorian Paradise, é um dos subúrbios Ora, nos EUA, tal como acontecera em In-
românticos planeados anglo-americanos que glaterra, não existia coordenação nem vontade
consideramos antecedente direto dos atuais política que pudesse dar origem a tal tipo de
CFs. Vimos como aquele surgiu num contexto iniciativa. Ao mesmo tempo, este último país já
em que, para além da enorme e concentrada disponibilizara a fórmula. Llewellyn Park, Nova
mudança, se verifica um quadro de enormes Jersey, construído em 1857, é possivelmente o
desigualdades e tensões sociais: “Because subúrbio romântico norte-americano mais fa-
middle-class women and their families were moso. Como refere Fishman, Kenneth Jackson
safely placed behind the walls of Victoria Park, (1985) insiste que esse último consistiu no “pri-
the rest of Manchester could indeed be turned meiro subúrbio pitoresco do mundo”. É claro
in a ‘furnace ground’. Because the bourgeois que o primeiro autor, seguindo a linha de ra-
Eden had been realized in suburbia, human ciocínio que temos a vindo a apresentar sobre
beings a short distance away could be left to a origem do subúrbio anglo-americano, contra-
sink, in Engels’s phrase, ‘to the lowest level of põe que Llewellyn Park segue o modelo propor-
humanity’” (idem, p. 102). Mas não foi apenas cionado por vários outros casos em Inglaterra.
em Inglaterra que esse modelo de subúrbio Fishman invoca a este propósito o trabalho de
surgiu. Tal também ocorreu nos EUA desde a John Archer (1988) sobre o subúrbio românti-
década de 1850. Segundo Fishman, apesar de co anglo-americano, o qual também toma por
já antes dessa data existirem algumas zonas de principal exemplo o caso de Llewellyn Park. Ar-
villas burguesas nos arredores de cidades como cher relaciona, de forma particularmente inte-
Nova Iorque, Boston e Filadélfia, e mesmo ressante, as características do subúrbio român-
alguns núcleos que podiam ser considerados tico anglo-americano com alguns traços ideo-
suburbanos, não se encontravam ainda aí lógicos, à época comuns às burguesias desses
presentes as pressões sociais que conduziriam dois países: “individualismo” e “associação”.
à criação e à preferência do subúrbio pela Esses dois elementos haveriam de se traduzir
burguesia. Quando, em meados do século numa sociedade dividida entre várias “colônias
XIX, surge também nos EUA a urgência em de classe” e, no que respeita aos subúrbios ro-
isolar o habitat burguês, a opção não foi, mânticos de ambos os lados do Atlântico, dan-
como na Europa continental, a de rasgar do origem a “enclaves residenciais”. Segundo
espaço no centro da cidade para alojar as John Archer (1988), a ideologia do individualis-
elites, expulsando as “classes inferiores” para mo está presente, a vários níveis, no subúrbio
suas margens. De fato, na Europa continental romântico: desde a condição socioeconômica
preferiu-se “limpar” o centro das cidades, o que de sua população até a arquitetura e a deco-
se traduziu em várias intervenções urbanísticas ração das casas, passando pelo paisagismo e o
de grande envergadura. A mais famosa foi a plano geral.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 189
Rita Raposo

Finally, a few concluding observations


will help tie both English and American
A reedição contemporânea
suburban plans more closely to the do fenômeno
circumstances that produced them.
Residents and designers on both sides Como vimos, apenas a Inglaterra e os EUA têm
of the Atlantic were especially enamored
uma história que permite rastrear a origem dos
of plans comprising complex webs of
curving, winding streets. Commentators CFs. Apenas nesses dois países se reuniram to-
then and now have emphasized how these das as condições necessárias ao aparecimento
streets conform to the topography and dessas experiências “urbanísticas” já longín-
enhance an awareness of the picturesque quas. Por essa altura, o espaço refletia signi-
characteristics of the environment. In
ficativamente, pela primeira vez (pelo menos
effect this is a middle-class version of
a Ocidente), nas suas formas, a desigualdade
what Raymond Williams identified as the
eighteenth-century landed estate owner’s social e a separação de classes. Ao longo do sé-
efforts to appropriate the surrounding culo XX, a modernidade e o capitalismo avan-
landscape through visual and other çaram. Pôde-se assistir, de uma maneira geral,
means of landscape control. But there nos países do centro (cujo número entretanto
is too a deeper significance to this kind
se expandira), ao progressivo eliminar do du-
of suburban street pattern, one that
addresses more fundamental aspects ro quadro social que, nos primeiros tempos da
of the suburban mentality than just the sociedade industrial e capitalista, contribuíra
propensity for aesthetic appropriation para o surgimento do fenômeno. Perante essa
of nature. Curving, winding streets are evolução, os CFs parecem ter perdido a opor-
aimless and they are timeless. They
tunidade por muitas décadas, revelando ter de
presuppose that one really doesn’t have
to get anywhere and that one has all the fato constituído, na sua primeira edição, uma
time in the world to arrive (…). In some variante menor, localizada, e mesmo extrema-
respects, these curving, winding streets da, da segregação moderna, em especial do
are even placeless. To this day, many período do capitalismo selvagem.
romantic suburbs pride themselves on at
Chegava entretanto uma era de novos
having street numbers for the houses. The
equilíbrios que, durante grande parte do século
implication is that the house and family
define their own existence, without need XX, caracterizou, ainda que de modo variável,
of sanction or corroboration from the diversas sociedades capitalistas e industriais.
society at large. This of course ultimately O pós-guerra haveria de, decididamente, trazer
becomes a supreme fiction, repudiating essas décadas doiradas de crescimento econô-
the very economic and political nexus that
mico e de “paz social”, associadas ao Fordismo
gives suburban residents the wherewithal
to accomplish such individualistic e ao Estado de Bem-Estar. É claro que esses
endeavors. (Idem, p. 240) não acabaram nem com a desigualdade social

190 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

nem com a segregação moderna. Contudo, em Sua visibilidade e as potenciais tensões sociais
regra, trouxeram uma fórmula de integração associadas, em ambos os momentos, parecem
social que passava pelo trabalho e a produção, ter facilitado a segregação.
sob cuja égide parecia poder a todos acomodar, Tais tensões parecem, precisamente, es-
com a ajuda do Estado, se bem que, é claro, em tar na origem de vários sentimentos de insegu-
lugares distintos. Desta forma, o sentimento e rança. Em primeiro lugar, surge o da inseguran-
a experiência da ordem, do progresso, mesmo ça física que, atualmente, nalgumas cidades e
que desigual, não parecem ter propiciado a regiões do mundo se encontra, objetivamente,
expansão dessa forma de habitar que, na sua associado a situações dramáticas de pobreza,
primeira edição, se encontrou inequivocamente crime e violência urbana, mas que, noutras,
ligada a um quadro social de profundas trans- depende de outras fontes seguramente mui-
formações estruturais e de extremas desigual- to menos extremas. Em segundo lugar, deve-
dades, assim como de crise na experiência do -se também considerar o sentimento de inse-
tempo, do espaço e da sociedade. gurança de classe (e do medo do “contágio”
Não foi seguramente por acaso que a conducente à “excitação” do jogo da distinção
segunda edição do fenômeno surgiu nos EUA, social) dos grupos que seguem na via ascen-
um dos seus palcos originais, antes de atingir dente (em muitos casos, são estes os principais
grande parte do mundo. A década de relan- “fornecedores” de residentes de CFs), em face
çamento, 1970, também parece ser significa- da proximidade física de outros grupos sociais,
tiva. Mais uma vez, o fenômeno se associa a situados em posição inferior, mas suficiente-
um período de rápidas e profundas mudanças. mente visíveis para recordar aos primeiros a
No caso dos EUA e de outros países é mes- fragilidade de sua própria posição, porquanto
mo possível falar de uma transição histórica. ainda frequentemente “muito fresca”. Também
Parece-nos legítimo estabelecer um paralelo no que respeita à cultura ou à “vida mental”
entre o tempo que testemunhou a transição da metrópole, vale a pena chamar a atenção
da sociedade tradicional para a modernidade para a importância, em ambos os momentos,
e o que assistiu à chegada do pós-fordismo e dos “medos civilizacionais” e de perda de con-
da pós-modernidade. A estrutura social e a trole sobre o espaço e a sociedade habituais.
cultura de muitas cidades sofreram, em ambos É certo que esse quadro muito geral não
os períodos, grandes transformações que ha- se aplica de modo exato a todos os locais on-
veriam de revolucionar a organização do espa- de hoje proliferam CFs. Muitas das cidades em
ço urbano. Ambos os momentos assistiram à que esses estão presentes não podem, de fato,
formação de novas classes ou grupos sociais ser descritas como o palco de processos pós-
e ao desenvolvimento de novas dinâmicas e -fordistas ou de pós-modernização, seja pelo
relações de classe. Sublinhe-se em particular menos de forma significativa. Contudo, mesmo
o fenômeno da polarização social, tradução si- quando assim acontece, assinala-se a presen-
multânea da rápida mobilidade ascendente de ça de fenômenos equivalentes, a saber, gran-
alguns grupos sociais e do aumento dos níveis de desigualdade, insegurança e instabilidade
(e da transformação dos tipos) de pobreza. social. Mais, deve-se ainda notar que, tanto

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 191
Rita Raposo

no caso da primeira como da segunda edição De fato, vários elementos parecem re-
do fenômeno, se encontra, em regra, em jogo petir-se, tanto no que respeita às condições de
outro tipo de condições sociais. Referimo-nos produção social, já vistas, como às principais
a fatores que não evidenciam manter qualquer representações do tempo, do espaço e da so-
relação específica com os antes enunciados ciedade que os CFs exibem: nomeadamente
nem se associam, necessariamente, a qualquer por intermédio da sua forma construída (plano,
forma particular de mudança social. Esses fa- arquitetura, paisagismo, toponímia, mobiliário
tores parecem apenas depender de circunstân- urbano) e da sua apresentação publicitária (o
cias políticas e culturais locais. Referimo-nos, que é especialmente válido, mas não exclusivo,
nomeadamente, à situação em que a liberdade para a edição contemporânea). Nossa análise
de ação do setor imobiliário e a ideologia do baseia-se na bibliografia internacional dispo-
“privatismo” (McKenzie, 1994) se sobrepõem à nível sobre o assunto e na observação direta
iniciativa pública e à sua capacidade de contro- do fenômeno na Área Metropolitana de Lis-
lo do espaço e da sociedade. boa, que estudamos em profundidade desde a
Na verdade, os CFs, tanto hoje como década de 1990, e noutros lugares do mundo
no passado, apenas parecem ter oportunida- que tivemos a oportunidade de confrontar em-
de e verdadeiro sucesso nos cenários em que piricamente. De um modo geral, em ambas as
se observam a ausência ou a insuficiência, a suas edições, os condomínios fechados exibem-
abstenção ou o fracasso, da intervenção esta- -se simbolicamente como “lugares” à parte
tal na regulação do espaço e da sociedade e em que o tempo, o espaço e a sociedade são
na provisão de bens públicos. Tal aconteceu completamente distintos de (e superiores a) o
claramente por ocasião da primeira versão do mundo “normal”, “lá fora” (o que, em conjun-
fenômeno. Foi no quadro do capitalismo liberal to, garante a “segurança” de seus residentes).
e da opção pela (e da ideologia da) não inter- Comecemos pela forma como o espa-
venção pública no território urbano que o mun- ço é normalmente representado. Recortados
do anglo-americano experimentou uma forma fisicamente, os CFs são imediatamente forne-
própria de fazer cidade e subúrbio muito dis- cidos com moldura e distância, o que contri-
tinta da que se verificou na Europa continen- bui para sua identificação com a própria ideia
tal moderna. E foi nesse mesmo contexto que, de paisagem, seja aquela em que a noção de
como vimos, os condomínios fechados encon- “ideal estate” toma o lugar da de “real estate”
traram seu primeiro lugar. Algo de semelhante (Mitchell, 1994). O seu espaço apresenta-se ex-
ocorre nos nossos dias tal como o demonstra purgado de tudo (nomeadamente do seu Dark
a geografia contemporânea do fenômeno. Ho- Side) o que o possa anular ou destruir como
je, os cenários do fenômeno são mais amplos paisagem e, no mesmo ato, subtrair-lhe o seu
e mais diversificados. Ainda assim, é de reco- valor como mercadoria. Nesta representação
nhecer que, se bem que o tempo tenha trazido do espaço dos CFs, a ideia de natureza ocupa
a inovação, existiu um modelo anterior cujas um lugar central desde as origens. Se bem que
características principais se mantêm, a vários sempre domesticada, racionalizada e objeto de
respeitos, surpreendentemente atuais. aturada “manicura”, aquela é normalmente

192 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

apresentada como “natural”. No passado, co- a origem dos CFs, é também hoje evidente, in-
mo vimos, a preferência foi para a versão “pi- cluindo nos EUA. Nomeadamente para o caso
toresca” (conforme à adoção da Paisagem à das MPC’s fechadas de Washington DC, Knox
Inglesa). Contemporaneamente, multiplicam-se (1992, p. 215) observa que esses emprendi-
os gostos: do primordial, selvagem ou nativo, ao mentos correspondem a “a collage of private
ecológico, passando pelo pitoresco ou o exótico. worlds, each entered through substantial
Por sua vez, o tempo, na representação portals in the manner of an English landed
normal dos CFs, abandonou, distanciou-se estate, and each announcing itself on large
da história e passou a ser um mito, por vezes and expensively sculpted and gilded signs
uma memória, simultaneamente “calcificada” with names that draw freely on historic and
e alheia ou mesmo uma nostalgia de coisa aristocratic themes”.
nenhuma. Fixado e anulado pela distância Finalmente, no que respeita à representa-
graças à própria imaginação do tempo, esse ção da sociedade, há que salientar a frequente
tempo, tal como sucede com a estrutura dos tendência para a reunião (em proporções variá-
mitos, é total e dotado de uma coerência ina- veis) do melhor de dois mundos: gemeinschaft
tacável: é um tempo abstrato (passado ou fu- [comunidade] e gesellschaft [associação ou
turo) e muitas vezes uma tradição inventada sociedade], conforme à fórmula de Ferdinand
(Hobsbawm e Ranger, 1983). Essa represen- Tönnies (1979). Por um lado, as relações so-
tação acomoda, muitas vezes, em simultâneo, ciais nos CFs são, em regra, apresentadas co-
a promessa de um renascer absoluto, de uma mo calorosas, autênticas e morais e, por outro,
nova vida, de um futuro brilhante (onde podem como racionais, civilizadas, meramente con-
pontuar referências várias ao novo ou moder- viviais ou clubby e respeitadoras do indivíduo
no), e a evocação de um passado nostálgico. e da privacidade familiar. Dadas as caracterís-
Esse, por sua vez, encontra-se essencialmente ticas gerais dos CFs e a literatura disponível,
associado a um imaginário aristocrático pré- é bastante mais provável que, de fato, a sua
-moderno que parece garantir, como há mais vida social seja essencialmente dominada pe-
de dois séculos, aos clientes dos CFs uma ve- las lógicas do individualismo, da privacidade e
nerável e distintiva (falsa) identidade históri- da associação seletiva de indivíduos e famílias
ca: nobreza, antiguidade, distinção, prestígio, do mesmo nível social, tal como já o referi-
privilégio, refinamento, exclusividade… Esta ra Archer (1988) para o caso do subúrbio ro-
espécie de “aristocracite”, seja a referência mântico anglo-americano. A referência à ideia
insistente a um reportório simbólico que po- de comunidade (e de sua “busca” nostálgica)
deríamos julgar já ultrapassado ou exausto, é particularmente frequente no caso dos EUA,
aproxima claramente os burgueses contem- a propósito da qual, precisamente, existe uma
porâneos dos de há muitos séculos… como se ampla discussão e controvérsia sobre sua exata
a burguesia (ou a classe média, se se preferir) natureza (e.g. Low, 2003). Por sua vez, e ape-
nunca pudera libertar-se de seus primeiros nas a título de exemplo, no caso português, o
amos e antagonistas. A presença simbólica apelo à ideia de comunidade, se bem que pre-
desta concepção do tempo, assinalável desde sente, é muito menos saliente, preferindo-se

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 193
Rita Raposo

claramente a ideia de privacidade. Eis algo que resto já notado por vários autores: e.g. Fishman
parece fazer sentido numa sociedade de mo- (Bourgeois Utopias, 1987); McKenzie (Priva-
dernização tardia e portanto ainda sem lugar topia, 1994); Mike Davis (1990), pioneiro dos
para nostalgias comunitárias como acontece estudos sobre os condomínios fechados con-
nos EUA. Como recorda Bauman (2001, p. 3): temporâneos, que a propósito do caso de Los
“Raymond Williams, the thoughtful analyst of Angeles evoca a dupla utopia/distopia; David
our shared condition, observed caustically that Harvey (2000), autor que recorre ao conceito
the remarkable thing about community is that de “utopia degenerada” de Louis Marin para a
‘it always has been’”. qualificação do fenômeno. É certo que a ideia
Em conclusão, para além de todas as de utopia se identifica sempre com a crítica
variações possíveis, não há lugar para dúvidas da sociedade existente; contudo, por natureza
que as principais representações da sociedade, e definição ela é progressiva, carregando um
do tempo e do espaço, exibidas pelos CFs (se- importante potencial de resistência. Em con-
ja no passado, seja contemporaneamente), se trapartida, e ao contrário do que é comum ao
harmonizam entre si para fornecer uma ima- utopianismo e ao gênero utópico em geral, o
gem total, benigna, ordenada, esteticizada e reportório simbólico dos CFs tem apenas na-
moralizada que se distancia (simbólica e fisi- tureza conservadora. Não corresponde nem
camente) do mundo mais largo, normalmente a uma “utopia de reconstrução” nem a uma
descrito como oposto e decadente. Desta for- “utopia de refúgio” (Mumford, 1963), mas, tão
ma, aproximam-se (em conjunto) “perigosa- só, a uma estratégia de abandono e exclusão
mente” da própria ideia de utopia, aspecto de do mundo e, assim, de celebração da casa.

Rita Raposo
Licenciatura em Sociologia, mestrado em Economia, doutoramento em Sociologia Econômica.
Professora doutora. Professora auxiliar e Investigadora no Instituto Superior de Economia e Gestão
da Universidade Técnica de Lisboa, Departamento de Ciências Sociais e SOCIUS – Centro de
Investigação em Sociologia Econômica e das Organizações. Lisboa, Portugal.
mariaritaraposo@gmail.com

Nota
(*) Este ar go não foi traduzido para a língua portuguesa em uso no Brasil.

194 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Condomínios fechados, tempo, espaço e sociedade

Referências
ARCHER, J. (1988). Ideology and aspira on: individualism, the middle class, and the genesis of the
Anglo-American Suburb. Journal of Urban History, v. 14, n. 2, pp. 214-253.

BARRELL, J. (1980). The dark side of the landscape: the rural poor in english pain ngs, 1730-1840.
Cambridge, Cambridge University Press.

BAUMAN, Z. (2001). Community: seeking safety in an insecure world. Cambridge, Polity Press.

BEEVERS, R. (1988). The garden city utopia: a cri cal biography of Ebenezer Howard. Houndmills,
MacMillan Press.

BERGER, J. (1975). Modos de ver. Barcelona, Gustavo Gili.

BLAKELY, E. J. e SNYDER, M. G. (1997). Fortress America: gated communi es in the United States.
Washington, Brookings Ins tu on Press.

CALDEIRA, T. (1996). Building up walls: the new pattern of spatial segregation in São Paulo.
Interna onal Social Science Journal, n. 147, pp. 55-66.

CALDEIRA, T. P. R. (2000). City of walls: crime, segrega on, and ci zenship in São Paulo. Berkeley,
University of California Press.

CARVALHO, M. C. (2001). Áreas violentas de São Paulo criam os “Condomínios de Pobre”. Folha de S.
Paulo, 2/9/2001: 9.

DAVIS, M. (1990). City of quartz: excava ng the future in Los Angeles. Londres, Verso.

FISHMAN, R. (1987). Bourgeois Utopias: the rise and fall of Suburbia. Nova York, Basic Books.

HARVEY, D. (2000). Spaces of hope. Edimburgo, Edinburgh University Press.

HOBSBAWM, E. e RANGER, T. (eds) (1983). The invention of tradition. Cambridge, Cambridge


University Press.

JACKSON, K. (1985). Crabgrass fron er: the suburbaniza on of the United States. Nova Iorque, Oxford
University Press.

KNOX, P. (1992). “The packaged landscapes of post-suburban america”. In: WHITEHAND, J. W. R. e


LARKHAM, P. J. (eds). Urban landscapes: interna onal perspec ves. Londres, Routledge.

LAWRENCE, H. (1993). The greening of the squares of London: transforma on of urban landscapes
and ideals. Annals of the Associa on of American Geographers, v. 83, n. 1, pp. 90-118.

LOW, S. (2003). Behind the gates. Nova York, Routledge.

LUYMES, D. (1997). The fortification of suburbia: investigating the rise of enclave communities.
Landscape and Urban Planning, n. 39, pp. 187-203.

MARCUSE, P. (1997). The enclave, the citadel, and the ghe o: what has changed in the post-fordist
U.S. City. Urban Affairs Review, v. 33, n. 2, pp. 228-264.

MCKENZIE, E. (1994). Privatopia: homeowner associations and the rise of residential private
government. Yale, Yale University Press.

MITCHELL, W. J. T. (ed.) (1994). Landscape and power. Chicago, The University of Chicago Press.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012 195
Rita Raposo

MOUDON, A. V. (1990). “Introduc on”. In: MOUDON, A. V., WISEMAN, B. e KIM, K. (eds). Master
planned communi es: shaping exurbs in the 1990’s. Sea le, Urban Design Program/College of
Architecture and Urban Planning/University of Washington.

MUMFORD, L. (1963). The story of utopias. Nova York, The Viking Press.

______ (1964). La cité à travers l'histoire. Paris, Seuil.

RAPOSO, R. (2002). Novas paisagens: a produção social de condomínios fechados na área


metropolitana de Lisboa. Tese de Doutorado. Lisboa, ISEG/UTL.

______ (2003). New landscapes: gated housing estates in the Lisbon Metropolitan Área. Geographica
Helve ca, v. 58, n. 4, pp. 293-301.

______ (2006). Gated communi es, commodifica on and aesthe ciza on: the case of the Lisbon
Metropolitan Area. Geojournal, n. 66, pp. 43-56.

______(2008). Condomínios fechados em Lisboa: paradigma e paisagem. Análise Social, v. XLIII, n. 1,


pp. 109-131.

RAPOSO, R. e COTTA, D. (2009). Urbanisations closes, perceptions du (dés)ordre socio spatial et


mé(con)fiance à l’État: le cas de la métropole de Lisbonne. Déviance et Société, v. 33, n. 4,
pp. 593-612.

RIBEIRO, L. C. de Q. (1996). Dos cortiços aos condomínios fechados. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira.

RICHERT, E. e LAPPING, M. (1998). Ebenezer Howard and the Garden City. Journal of the American
Planning Associa on, v. 64, n. 2, pp. 125-127.

SALGUEIRO, T. B. (1992). A cidade em Portugal: uma geografia urbana. Lisboa, Afrontamento.

SENNETT, R. (1994). Flesh and stone. Londres, Faber & Faber.

STONE, L. (1991). The public and the private in the Stately Homes of England, 1500-1990”. Social
Research, v. 58, n. 1, pp. 227-252.

TÖNNIES, F. (1979). Comunidad y Asociación. s.l., Ediciones Península.

TUAN, Y. F. (1990). Topophilia: a study of environmental percep on, a tudes, and values. Nova York,
Columbia University Press.

VIEILLARD-BARON, H. (1996). Les Banlieues. Paris, Flammarion.

WEHRHAHN, R. (2003). Gated communi es in Madrid: Zur Funk on von Mauern im europäischen
Kontext. Geographica Helve ca, v. 58, n. 4, pp. 302-313.

WEHRHAHN, R. e RAPOSO, R. (2006). “The Rise of Gated Residen al Neighbourhoods in Portugal


and Spain”. In: GLASZE, G., WEBSTER, C., e FRANTZ, K. (eds.). Private ci es: global and local
perspec ves. Londres, Routledge.

WILLIAMS, R. (1993). The country and the city. Londres, The Hogarth Press.

Texto recebido em 4/nov/2010


Texto aprovado em 15/dez/2010

196 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 171-196, jan/jun 2012
Brasília: as linhas retas pelo avesso
ou no entrecortar do uso
Brasília: the straight lines in reverse or the intersection of usage

Rosângela Vieira Neri Viana


Karla Christina Batista de França
Ananda de Melo Martins

Resumo Abstract
Este artigo analisa algumas expressões da me- This article aims to understand some expressions
trópole que surgem no uso cotidiano do espaço. of the metropolis which emerge in everyday use
O ponto de partida é a utilização no espaço do of space. The starting point is the analysis of the
Plano Piloto de Brasília – e sua inserção nele – por usage/insertion within the Pilot Plan of Brasilia
aqueles que, de certa maneira, rompem com as for those who somehow break the normatizations
normatizações do uso e fazem emergir as contra- of usage and emerge urban contradictions. It is
dições urbanísticas. Não se trata de um estudo necessary to emphasize that we do not analize
sobre o plano urbanístico de Lúcio Costa, muito the urban plan of Lucio Costa, much less the
menos sobre o desdobramento da urbanização unfolding contemporar y urbanization, even
contemporânea, ainda que tais elementos cons- though those elements form the tessitura in our
tituam a tessitura da análise. Antes, refere-se a analysis. We are methodologically reflecting
uma reflexão sobre a realidade expressa no sen- through practice and knowledge, the reality
tido da cidade. expressed towards the meaning of the city.
Palavras-chave: cidade; metrópole; plano urbanís- Keywords: city; metropolis; urban planning; space
tico; reprodução do espaço; urbano. representation; urban.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012
Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins

como continuidade-ruptura e passividade-ativi-


Introdução
dade no uso do espaço.
O que dizem tais materialidades especí-

Marcovaldo sonhara o ano inteiro em ficas, contidas nos ritmos e imposições da me-
poder usar as ruas como ruas, isto é, ca- trópole7 na cidade brasiliense? O pressuposto é
minhar no meio delas: agora podia fazê- que, ao mesmo tempo, elas derivam e são deri-
-lo, e também podia passar os semáfo- vadas da imbricação do espaço vivido ao espa-
ros no vermelho, e atravessar em dia-
ço produzido e, consequentemente, ao espaço
gonal, e parar no meio das praças. Mas
entendeu que o prazer não era tanto o concebido8 na vida na cidade. Nessa profusão
de fazer essas coisas insólitas quanto o de ordem-desordem, nesse conjunto-disjunto,
de ver tudo de um outro modo: as ruas a cidade aparece na relação necessária entre
como fundos de vale ou leitos secos, as sociedade e produção do espaço. Espaço em
casas como blocos de montanhas íngre-
que desvãos trazem detalhes de um viver que
mes, ou paredes de escolhos.
Italo Calvino escapam, posto que colocados lado a lado com
as chamadas “desordens urbanísticas”, mas
que fazem aparecer a cotidianidade na questão
1
Este artigo tem como objetivo analisar espacial. É um espaço cingido por tempos di-
2
algumas expressões da metrópole que emer- versos, potência de humanidade e incoerências
3
gem no uso e no cotidiano do seu espaço na típicas da modernidade brasileira.
metrópole. O recorte empírico utilizado corres- Com referência ao vivido, mediante uma
ponde à prática espacial no Plano Piloto de Bra- aproximação com a realidade urbana, encon-
4
sília. A provocação da epígrafe mantém conso- tra-se o sentido da cidade. Nesse contexto, as
nância com o tipo de uso que a grande maioria expressões da metrópole, ainda que essa seja
dos habitantes5 da cidade de Brasília – o que analisada em seus avessos, podem ser obser-
não é diferente em outras cidades – deseja, so- vadas nas moradias existentes nos subsolos
nha e vive no espaço urbano. O sentido do urba- das quadras comerciais da via W-3 Norte, bem
no, aqui, ultrapassa o modo de produção, pois é como nas grandes placas propagandísticas,
um modo de consumo em que o pensamento e que ocultam outro andar, burlando as normas
o sentimento caracterizam, também, um modo (de gabarito) previstas no ordenamento do
de vida. Simultaneamente a uma lógica capita- Plano Piloto de Brasília.9 Todas essas expres-
lista que ordena o território, ele dá o sentido e sões evidenciam a forma como um fundo que
a materialidade às condições de reprodução das volta à superfície na composição da represen-
relações de produção. tação urbanística (Virilio, 1993, p. 52). Tais ex-
Configura-se um processo que ultrapassa pressões, embora conflituosas, são constituin-
os planos urbanísticos – a ordem cartesiana es- tes da vida.
pacial – e cria rupturas, ainda que cambiantes, Não se trata de rupturas na cidade
na organização do espaço. E nesse movimento política, mas de adaptações que mantêm a
a articulação entre plano, preservação e cidade urdidura do projeto urbanístico, tombado in-
6
acaba por favorecer, no cotidiano, fenômenos trinsecamente, no sentido de habitar a cidade,

198 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012
Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso

cujo processo é de tensão, mas costurado de possibilita elucidar os processos mediadores


concordância. Quais seriam as tessituras des- imanentes à (re)produção do espaço, extensi-
sa concordância? vos e imbricados ao sentido de cidade, do mun-
Não são invenções, como referem do e da vida.
Hobsbawm e Roger (2008), no que diz res- A consolidação da cidade de Brasília se
peito à construção de tradições. As tessituras efetiva no contexto da dinâmica da ocupação
mantêm um vínculo com uma formalização no do território do Distrito Federal e das peculia-
espaço, como é o caso do plano urbanístico ridades desse processo. Dada essa característi-
de Lúcio Costa, tombado pela Unesco, que ca, o espaço concebido está sempre sujeito a
permanece como regra. Mas as mudanças nas um interromper que advém da força do vivido.
destinações do uso sugerem que o espaço é Por isso, o uso do espaço no Plano Piloto, ao
fim e meio (Lefebvre, 2004, p. 74), em um longo dos seus cinquenta anos, fornece alguns
movimento da vida que tensiona a racionali- fios que encaminham a análise para o sentido
dade urbanística. da cidade contemporânea. O corte é o enten-
As quebras no uso normativo do espaço dimento da via secundária denominada W-3,10
no Plano Piloto são instigantes, embora não no caso específico, ruelas contíguas à W-3 Nor-
contradigam os ritmos dessa capital, onde a te, que fazem parte das quadras denominadas
técnica fixou a fluidez do tempo no espaço. A 70011 e abrigam comércio e serviços com um
utilização do espaço ora o confirma, ora torna- perfil popular e com “má arquitetura”.12 Nas
-se insurgência. Mas interessa que esse tipo de faixas das quadras 500, estão edifícios institu-
utilização, tal como ocorre em alguns tipos de cionais e centros comerciais.
moradia, nega a intencionalidade que contém Já na W-3 Sul, as quadras 500 encon-
o tempo no espaço como superfície. A moradia tram-se ocupadas por estabelecimentos comer-
humaniza e cria possibilidades de mudança, o ciais e as quadras 700, por residências. Esse
que inclui retornar o desvio ao espaço, à sua comércio na W-3 Sul apresenta características
materialidade em relação ao ritmo do corpo, e associadas a atividades variadas como bares,
não da mercadoria. Mas quando tal ruptura se lojas de departamento, butiques, lanchonetes,
dá para ganhos capitalistas, o tempo é tornado entre outros. Embora com índices de degrada-
permanente, uma simples sucessão de horas ção urbanística, elas ainda guardam uma tra-
(Virilio, 1993). dição. Na análise de Brandão (2009, p. 8), tal
Com base em aporte metodológico que tradição é expressa no uso:
faz uso da observação de formas urbanísti-
cas no recorte indicado, registros fotográficos A W-3 Sul serviu, também, de palco para
permitem uma reflexão, por meio da prática e as manifestações estudantis, da década
de 1960, porque, segundo depoimento
pelo conhecimento, sobre a realidade expressa
de um antigo morador, era mais fácil fu-
no sentido de viver na cidade. O fenomênico e gir pelas casas das 700 (que ainda não
sua articulação nas normatizações urbanísti- eram gradeadas) do que pela Praça dos
cas e na vida constituem um movimento que Três Poderes.13

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 199
Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins

O uso permitido para ocupação da W-3 social e historicamente construído no âmbito


N, segundo as Normas de Edificação, Uso e da nação brasileira e também da história do
Gabarito (NGB) 56/89, seria para comércio lugar, espacializando seus conflitos, suas con-
de bens (abastecimento alimentar: mercado e tradições e lutas sociais.
supermercado; artigos pessoais e de saúde; ar-
tigos eventuais; artigos excepcionais; automo-
tores: peças e acessórios, revendedores de au- Nas linhas retas
tomóveis, bicicletas e motos); prestação de ser-
viços (financeiros, negócios, profissionais e de As determinações urbanísticas no Plano Piloto
comunicação); serviços sociais (socioculturais); da cidade de Brasília constituem os mecanis-
educação (ensino não seriado). A generalidade mos que formam e tornam a terra raridade. A
da NGB 56/89 não delimita efetivamente o uso própria concepção do plano de Lúcio Costa,
e a ocupação do espaço então analisado. com suas divisões setoriais, imensas áreas ver-
No Plano Piloto de Brasília, tais adapta- des e ideologias, constitui a determinação limi-
ções de sobrevivência tornam-se ainda mais tante à expansão e ao adensamento urbano,
instigantes, tendo em vista o elevado custo de que provocam a escassez na oferta de terrenos.
vida e a vigilância ostensiva do poder público e Essa oferta limitada, lado a lado à transforma-
de algumas entidades de classe, em virtude do ção do plano urbanístico em patrimônio da
tombamento do seu Projeto Urbanístico. Cha- humanidade, adiciona a esses terrenos maior
ma a atenção o fato de as ruelas da W-3 Norte valoração imobiliária. Esses fatores contribuem
serem muito diferentes das ruelas da W-3 Sul. para a alta valorização dos terrenos e para a
Para Martins (2010, p. 12), “são os simples que elevação nos custos da produção imobiliária.
nos libertam dos simplismos, que nos pedem a Consequentemente, também contribuem para
explicação científica mais consistente, a melhor elevar o valor de venda das projeções, o que
e mais profunda compreensão da totalidade tende a propiciar a formação de oligopólios e
concreta que reveste de sentido o visível e o in- a produzir esses terrenos como raridades, co-
visível”. Isso porque os meios de que os “sim- locando lucro e escassez numa mesma relação
ples” necessitam conquistar para permanecer e valor de uso apenas alcançado para alguns.
na cidade são muito mais complexos. A configuração do capitalismo mundial e
A forma urbana concreta resulta tanto os mecanismos que comandam e regulam seu
das políticas públicas e do planejamento terri- desempenho fazem surgir novas formas e con-
torial do governo como dos respectivos impac- teúdos nas cidades, principalmente nas metró-
tos e atos que compõem o cotidiano. Em con- poles. A busca de rendimentos e de lucrativida-
junto, eles reproduzem a sociedade e o espaço. de leva os gestores públicos a desenvolverem
A cidade define-se tal qual um produto social, políticas urbanas no âmbito do empresaria-
como mediação nas relações de produção, por mento da cidade, semelhantes àquelas obser-
sua capacidade organizativa e como lugar da vadas nas operações urbanas desenvolvidas
produção de bens, serviços e sentidos. A cida- nas metrópoles. Por isso que a gestão finan-
de resulta, portanto, de um processo político, ceira dos negócios desenvolvidos na grande

200 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012
Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso

maioria das metrópoles, lado a lado ao setor (fixo, investido) e do capital variável (salá-
de comércio e serviços de alto valor agregado, rios)” (Lefebvre, 1973, p. 49). Dessa maneira,
contribui para que partes da cidade recebam a economia não prescinde da força de trabalho
maiores investimentos do setor público. Essas barata e de um espaço com características lu-
novidades, segundo Viana (2008), apresentam- crativas. Inerente a esse, há a heterogeneida-
-se na materialidade do espaço, uma vez que de apresentada em suas formas e usos. Con-
modificam a divisão do trabalho no conjunto tudo a dificuldade de explicar as relações que
da sociedade e indicam outra produção espa- na cidade tornam possível o entendimento de
cial específica para o conjunto dos meios de partes em seu conjunto é grande. A compreen-
reprodução (do capital e da força de trabalho). são da realidade urbana requer pensar na vida
No Plano Piloto de Brasília, edificações moder- cotidiana, substrato da mão de obra, fonte de
nas evidenciam as adequações ao capitalismo riqueza capitalista. Por ser um tema complexo,
financeiro nas representações das fachadas en- limita-se aqui a indicar algumas relações pos-
vidraçadas dos imóveis e de produção de espa- síveis, mesmo que isso possa oferecer riscos
ços para atender a uma classe privilegiada de de distanciamento dos fatos. Essa análise de-
alto valor aquisitivo. manda uma unidade nas relações sociais sob
É nesse sentido que afirmamos tratar-se o sentido amplo de produção, extensivo ao es-
de formas que guardam o empreendedorismo paço como mercadoria.14
urbano e que, pelo processo que as constitui, No que diz respeito à premissa de que a
subsumem o tempo no espaço, tal como defi- cidade é uma mediação entre forças produti-
ne Lefebvre (2004): tempo permanente posto vas e as relações de produção,15 o projeto de
em superfície. Vale assinalar que o empreen- revitalização da via W-3 torna-se significativo.
dedorismo urbano apresenta-se como conjun- Apesar de esse projeto ainda não ter sido im-
to de ações políticas, econômicas e técnicas plementado, é interessante notar que, no seg-
para impulsionar o desenvolvimento econômi- mento Sul e Norte da via W-3, há propostas
co e social nas cidades. Não prescinde, assim, distintas para sua revitalização. Tais distinções
quer da forma quer de projetos políticos urba- fazem emergir conteúdos geográficos signifi-
nos que possibilitem a racionalidade da ação cativos. Vários registros jornalísticos da mídia
capitalista e do uso da técnica, para realizar impressa e televisiva e próprio texto do proje-
o sentido da urbanização nesse momento de to de revitalização mostram que, nas quadras
desregulamentação e liberalização dos mer- 700 em especial, do Setor Comercial Residen-
cados pelo modelo de produtividade dado na cial Norte (SCRN), ocorrem uma significativa
atual mundialização. deterioração dos prédios e desvio do uso ur-
Entretanto, outras formas de utilização banístico estabelecido. Esses desvios, já há al-
do Plano Piloto tornam-se possíveis. Mesmo gum tempo, começaram a ser banidos, com a
porque “todo crescimento econômico pres- retirada de alguns serviços, como por exemplo
supõe [...], simultaneamente, a reprodução as lojas de revendas de automóveis.16 Contu-
alargada da força de trabalho e da maquina- do, permanece ainda a diversidade de servi-
ria, por outras palavras, do capital constante ços e comércios, lojas de autopeças, oficinas,

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 201
Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins

pousadas, lanchonetes, moradias, bares, entre aprovaram a criação, ao longo do tempo, de


lixo e edificações, destoantes da “bela arquite- três séries de blocos de uso misto. A primeira
tura” existente no Plano Piloto. série de blocos, paralelos à via W-3 Norte, guar-
Atualmente, nas quadras 700 da via W-3 da um padrão semelhante ao comércio central
Norte, há duas categorias de zona urbana, di- de qualquer grande cidade, se o observador
ferentemente do que ocorre na via W-3 Sul não estiver atento aos subsolos, cujo uso, em
(Barreto, 2002, p. 37). No segmento norte, ur- sua maioria, foi modificado para residencial.
banistas do Governo do Distrito Federal (GDF) Ali, quartos mal ventilados e iluminados, com

Figura 1 – Janela vista do subsolo

Foto: Rosângela Viana, 15 dez 2010.

Figura 2 – Janela vista do plano da rua

Foto: Rosângela Viana, 15 dez 2010.

202 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012
Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso

banheiro e cozinha coletivos, são alugados Embora se perceba a adequação ao pla-


em média a R$750,00 (dólar comercial em no urbanístico de Lúcio Costa, dada na simila-
R$1,6810). Em registros fotográficos, consta- ridade e geometria nas construções aí existen-
tou-se haver nesses ambientes grande acúmulo tes, essa área não recebe atendimento quanto
de lixo, tanto nas ruelas quanto ao fundo das à prestação de serviços básicos, tal como lim-
janelas protegidas por grades (Figuras 1 e 2) peza urbana e iluminação pública. O uso tan-
construídas no nível do passeio, para levar um to para moradia quanto para fins comerciais
pouco de ar aos subsolos. configura-se por uma ordem na desordem. A
Entre os blocos da primeira e segunda ordem é expressa pela normatização imposta
série, há uma ruela de circulação utilizada pe- no plano urbanístico, que se materializa nas
los transeuntes. Nessa “ruela”, além das mo- construções, ao passo que a desordem se dá
radias no subsolo, verificam-se também casas contrapondo-se a essa normatização, pelo uso
construí das no nível do passeio e no andar diferenciado e não previsto.
acima em cada uma da série de blocos. Na se- Essa permanência de algo que destoa da
gunda série de blocos, especificadamente, en- norma diz sobre a comercialização de um espa-
contram-se, ainda, diversos estabelecimentos ço integrado ao capitalismo, mas de outra eta-
comerciais, como restaurantes, lan houses, lan- pa. Ou seja, uma etapa em que as demandas
chonetes, entre outros. Todos esses elementos de configurações e mecanismos de acumulação
apontam para emersão, com mais intensidade, capitalista eram outras, se comparadas à mun-
do avesso das linhas retas de Lúcio Costa. dialização do capital da década de 1980 até o
A proposta de revitalização sugere a momento atual. Momento esse caracterizado
criação de circuitos viários, cujo objetivo é pelo conteúdo do empreendedorismo urbano,
priorizar a passagem dos pedestres de forma constituído também por projetos de revitaliza-
segura às quadras comerciais e residenciais, ção e instrumentalização da cultura como for-
bem como forma de coibir que esses espaços ma de empresariamento da cidade.
sejam utilizados como estacionamentos, a Mas se a delimitação do Plano Piloto não
exemplo do que ocorre atualmente. No entan- impediu a consecução do espaço produzido
to, os projetos de revitalização, em geral, não ora pelas necessidades cotidianas da socieda-
envolvem os moradores desses espaços; pelo de, tais como pesquisa de campo mostrou, ora
contrário, interferem na sua vida cotidiana pelas necessidades das realizações capitalistas,
e transformam tais espaços da cidade para o esses conteúdos redefinem a dialética cidade
negócio. Em contrapartida, é importante res- versus urbano. Até que investimentos sejam
saltar que os cidadãos envolvidos podem, ou feitos no sentido de empresariar essa via em
não, organizar-se, aumentando a possibilidade moldes semelhantes a outras áreas do Plano
de permanência. Dessa maneira, “a luta emer- Piloto, as formas e aqueles que dela se apro-
ge e se realiza no nível da vida cotidiana – é priam permanecem. Talvez aí resida um dos
neste plano que percebem, lutam e reivindi- fios da rentabilidade que o espaço urbano pode
cam” (Carlos, 2001, p. 300). oferecer por meio da organização do território

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 203
Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins

de uma sociedade baseada na produção de que é preciso desvelar. Segundo Lefebvre


mercadorias. Não importam quais sejam e em (1991, p. 13), o cotidiano pode ser expresso
que condições. Interessa a funcionalidade do com sua miséria e sua riqueza, com base em
espaço em correspondência à espacialidade no acontecimentos aparentemente triviais, ba-
tempo do modo de produção. Não se trata de nais, mas que possibilitam desvendar a coti-
reduzir a análise para o campo da economia dianidade, por “apresentar o tempo e o espa-
vulgar, mas de compreender na contempora- ço ou o espaço no tempo”.
neidade a organização do território para além Em observação das formas, alguns con-
do discurso da desordem ou caos urbano, pos- teúdos podem ser inferidos, tendo em vista o
to que as normatizações dadas ao espaço ur- fenômeno da apropriação por meio do uso
bano, de maneira geral, realizam sua ordem, diferenciado ao longo das quadras 700, o que
por meio da dramatização da vida cotidiana torna a ocupação intrigante por duas questões
como desordem. centrais. A primeira refere-se às condições de
moradia em si; a segunda diz respeito à intensi-
dade de apropriação diversa.
A primeira questão indicada remete às
O avesso ou o entrecortar condições de habitabilidade das residências
do uso dos subsolos na primeira e segunda série de
blocos da W-3 Norte, tal como descrito na se-
Tanto a moradia quanto as atividades comer- ção anterior. Trata-se de espaços, em geral,
ciais e de prestação de serviços, observadas coletivos, com pouca privacidade para os mo-
ao longo de toda via W-3 Norte, inadequa- radores e condições de higienização precárias,
das ao plano urbanístico elaborado para cujos aluguéis são altos, se consideradas as
Brasília, apontam para uma cotidianidade condições de moradia ofertadas (Figuras 3 e 4).

204 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012
Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso

Figura 3 – Interior de moradia do subsolo

Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.

Figura 4 – Interior de moradia do subsolo

Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 205
Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins

Quanto às residências encontradas na aumentando um andar na edificação que tam-


terceira série de blocos da W-3 Norte, há de bém deveria ser apenas comercial. Alguns pro-
se ressaltar as manobras que são feitas pa- prietários aumentam o número de andares de
ra registro legal desses imóveis. Esses apar- forma explícita, outros utilizam placas comer-
tamentos, em geral estruturados e alugados ciais, na tentativa de escamotear a ação irregu-
individualmente, são vistoriados como imóvel lar, como evidencia a Figura 5.
comercial, porém com estruturas que podem As condições de moradia nesses apar-
vir a ser adaptadas para o uso residencial, as tamentos são melhores se comparadas às dos
quais se modificam após a vistoria. cômodos no subsolo. Mas quando compara-
A segunda questão pode ser observada das com as condições dos imóveis em geral
também nessa mesma série de blocos, assim no Plano Piloto, os preços de aluguel são mais
como em alguns edifícios das entrequadras do acessíveis. Ações como estas, seja as dos em-
Setor Comercial Residencial Norte. São estraté- preendedores que camuflam irregularidades,
gias usadas para burlar a norma de gabaritos, seja as dos moradores que resistem às ações

Figura 5 – Ampliação de andar

Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.

206 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012
Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso

segregadoras concebidas por um projeto urba- população com menor poder aquisitivo, que
nístico, indicam práticas que trazem o avesso procura por residência e por acesso, ainda que
da cidade de Brasília, que foge ao plano carte- em condições precárias, aos serviços disponí-
siano em que a (re)produção da vida deve se veis no Plano Piloto de Brasília. Buscam evitar
adequar às normas. Na ruela entre a primeira e um uso maior de tempo e de dinheiro com des-
segunda série de blocos, as formas de moradia locamentos diários para chegar ao trabalho/
e algumas atividades comerciais (academia, estudo fortemente concentrado no Plano Pilo-
cozinhas industriais, por exemplo) ocupam to. Para a análise, essa “opção” pela moradia
uma área que, a priori, deveria ser destinada central evidencia que ao pensamento teórico
a depósitos de mercadorias do comércio que é está posta a necessidade de compreender a
exercido na superfície (Figura 6). centralidade, segundo Lefebvre (2008), como
No entanto, ao longo de sua extensão, parte do direito à cidade, o direito ao urbano
muitas dessas áreas foram transformadas, a construído a partir da vida cotidiana criativa e
maior parte em espaço de moradia para uma humanizada.

Figura 6 – Vista posterior de ruela W-3 Norte

Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 207
Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins

O cuidado que cada morador direcio- No que tange à relação de zelo, um dos
na ao espaço em que vive, ao longo da ruela principais indicadores de uso desse espaço,
entre a primeira e a segunda série de blocos, além das casas bem cuidadas na altura do
mostra, por meio das aparências, partes que passeio – fachadas pintadas, jardins bem tra-
indicam relação de zelo (quadras 711, 710, tados –, tem-se a arte na rua dada pela pre-
709). Para Lefebvre (2004, p. 81), a relação do sença dos grafites e a aparente relação de vi-
homem tanto com a natureza quanto com sua zinhança (Figuras 8 e 9). Aos poucos, o espaço
natureza é mediada pelo habitar. Os elemen- concebido se transforma, em certa medida,
tos de uma humanização possível estão postos pelos usos presentes no cotidiano, atravessado
nessa espontaneidade ou mesmo são vestígios pela vida cotidiana que, por meio de práticas,
de arte e poesia, de reencontro com seus de- apontam a possibilidade sempre latente de
sejos e seu corpo, ainda que permeados no humanização do urbano pela apropriação do
vivido obscurecido pelo mundo da mercadoria espaço ao longo do tempo.
e consequentemente de seu empobrecimento. O entrecortar do uso indica uma perma-
Em outras partes, identifica-se aparente nência que traz o avesso da cidade. Ela se dá
degradação, com acúmulo de lixo, principal- na busca pela sobrevivência em espaços pen-
mente (Quadras 714, 713, 712), como demons- sados em linhas retas para um público mais se-
tram as Figuras 7 e 8. Estaria esse conjunto de leto. Ou de um grupo de uma classe específica
fotografias dizendo algo acerca da contradição de servidores do Estado, uma vez que Brasília,
humana, entre desejo e racionalidade? Mas a especialmente o Plano Piloto, foi construída
que indagações tais fotografias podem levar? para ser uma cidade política. Nesses termos,
O que é, afinal, a problemática do habitar e o discurso normativo – que propugna a inter-
não do habitat reduzido, cindido e esfacela- venção urbana como forma de sanar a violên-
do, segundo Lefebvre (2004)? O habitar, se- cia em locais de precária existência material
gundo esse autor, precisa ser analisado como e fomentar o progresso, pela implantação de
fundamento basilar da sociedade e não como serviços e obras de infraestrutura – favorece
subordinação e por ele ir para o horizonte pos- as condições da acumulação capitalista. Im-
sível de nossa humanização. Para entender o possível negar a acumulação como presença
habitar no contexto em que se torna habitat, imanente nos projetos de revitalização. Por
é preciso pôr acento no capitalismo. É preciso isso, devem ser tratadas políticas urbanas que
entender como os homens se inserem e são le- são, para serem analisadas e debatidas. Isso
vados à sua margem e como nesse movimento para impedir que se perpetue a privatização
perdem o uso, a cidade na condição de media- do espaço público e seja possível outro sentido
ção da sua vida no e para o mundo. na produção do urbano.

208 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012
Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso

Figura 7 – Área com forte degradação

Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.

Figura 8 – Cuidado com a limpeza e aparência da ruela

Foto: A. M. Martins, 15 dez 2010.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 209
Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins

Foto 9 – Arte na rua, encontrada em algumas ruelas do recorte em análise

Foto: Rosângela Viana, 15 dez 2010.

Refere-se a um sentido que encon-


Aproximações ou conclusões
tra possibilidades de romper, no processo de
metropolização do espaço, o aprofundamento O empreendimento analítico que se seguiu
maior e mais amplo que suas significações ma- teve como objetivo compreender algumas ex-
teriais e mercantis. Onde o retorno ao urbano pressões da metrópole, que emergem no uso
apenas pode se iniciar pelo dissenso e por ou- cotidiano do espaço do Plano Piloto de Brasília.
tra maneira de produzir a vida. Consequente- Espaço esse que é dado nos rompimentos das
mente esses avessos urbanísticos deixariam de normas urbanísticas ou, tal como se denomi-
ser momento negativo do urbano e criariam, nou aqui, no avesso urbanístico, que aproxima
de fato, uma ruptura necessária para o envol- conceitualmente o entendimento da cidade e
vimento da coletividade e de sua humanização. sua face metropolitana.

210 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012
Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso

Evidencia-se a necessidade de compre- próprias e necessárias àqueles que habitam de-


ensão das velhas e novas contradições, no âm- terminada cidade e a essas leis devem venerar.
bito das desigualdades, que o espaço em sua A justiça é o ato de seguir tais leis. Natureza
forma visível apresenta. Esta pesquisa empírica é tudo aquilo que todos os homens gregos,
trouxe esses elementos da feitura espacial. São bárbaros e estrangeiros sentem. Por exemplo,
as articulações fundantes do entendimento da necessidade de respirar, alimentar-se e respirar.
unicidade desse processo. Era conhecido o risco Nesse sentido, para Antifonte, somos natural-
de o empirismo hipostasiar o sentido da cidade. mente bárbaros ou gregos uns em relação aos
Tal hipostasia poderia criar uma imagem outros, por desconhecermos e não venerarmos
cujo conteúdo enfatizasse uma fixação ilusória as leis daqueles que moram longe.
de interpretação. Para isso, considerem-se as Os conflitos se dão quando as necessi-
partes do Plano Piloto que negam as normas dades naturais de cada um se defrontam com
urbanísticas. Nesta pesquisa, trata-se da via as leis que compõem a justiça. A lição da razão
W-3 Norte, principalmente a ruela e o transbor- grega aqui trazida nas questões de Antifonte
damento de outros usos e avessos aí contidos, é que a diferença entre grego e bárbaro é cul-
que poderiam fazer deste artigo uma mera tural e não uma questão natural. Nessa estei-
descrição. Assim sendo, estar-se-ia retornando ra, o consenso grego significa obedecer a leis
aos primórdios da ciência descritiva, com uma que são o sentido da cidade e que ainda assim
simples crítica a uma parte que não “segue” as produzem conflito: entre direito da cidade e di-
normas urbanísticas. Significaria a velha e sem- reito da família, entre o universal público e o
pre renovada crítica que todos fazem a Brasília: universal privado que se aproxima e se articula
“isso aqui não está no plano urbanístico de Lú- à propriedade. Se existe cidade, ela é definida
cio Costa, fere o Patrimônio”. E nada disso diz pelo acordo, pela cultura e não pela natureza. A
sobre que cidade-metrópole é esta. cidade é então definida pelo político. Eis então
Essa postura, além de obscurecer a reali- o que se compreende como expressões possí-
dade e, portanto, pôr a perder o sentido de pes- veis da metrópole: o conflito e a contradição si-
quisar o espaço urbano, cria empecilhos a uma tuados na lógica capitalista do uso e no cálculo
análise possível, mesmo que esta esteja ainda do útil. E que faz emergir o confronto parado-
em seu início ou seja um esboço dela. A cidade xal (porque renegado) e contraditório entre a
não pode ser traduzida apenas como traçado cidade (leis) e a natureza (a qual dela não se
normatizado, ainda que obra de arte, única e escapa) no edifício das normas constituídas pe-
patrimônio. As semelhanças do entendimento la verdade urbanística e pelas opiniões que se
dos gregos em relação ao sentido da cidade tornam una.
podem, talvez, fazer encontrar fios outros na No âmbito da cidade e assumindo o en-
pesquisa. Tais como aquelas relações criadas tendimento grego de que ser justo é não pres-
pelo sentido de cidade, de justiça e de nature- cindir as leis da cidade, pode-se pensar que a
17
za, especialmente em Antifonte. natureza é tudo aquilo que escapa ao político.
Para esse pensador, quando é preciso Dessa maneira, as necessidades singulares
estabelecer acordo, um grupo estabelece leis a cada cidadão, que ultrapassam o simples

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 211
Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins

habitat , como ressalta Lefebvre (2004, pp. reforçam a representação das grandes cidades
80-81), e cuja vivência encontra-se em toda na atualidade: o tempo permanente ordenado
sua complexidade, situam-se no campo da pela arquitetura. Quase como um eterno pre-
natureza. Assim, a maioria das coisas justas, sente concretizado, sua função pode ser a de
segundo o acordo feito pelo grupo na cidade, tornar a todos espectadores da cultura do pro-
encontra-se em permanente conflito com a gresso, absorvendo, assim, até mesmo a critici-
natureza (porque essa dá aos homens dese- dade em relação ao par contraditório cultura/
jos naturais e por isso inerentes). Em suma, o progresso. Vale dizer, cultura articula-se à inte-
prescritivo (ordem urbanística) sobre o neces- riorização de valores comuns a todos. Portanto,
sário (vivência concreta do ser) nada mais é difere do conteúdo de mudança que o progres-
que a lei do cidadão e a lei do homem. Nes- so realiza, posto que é movimento.
sa torção (ou seria um deus ex machina?) em Mas os avessos urbanísticos ainda assim
que o fundo volta à superfície na composição permanecem. A concordância dessa permanên-
da cidade-metrópole, tem-se as partes difra- cia reside na manutenção de uma arquitetura
tadas no seu espaço. que, apesar de ser de “má qualidade”, não cria
Pode-se compreender o espaço de re- confrontos. Antes, reforça adesões à formaliza-
presentação como o transgredir a norma urba- ção do espaço produzido. De certa maneira, é
nística no limite do tombamento. É do exterior praticamente possível afirmar que os avessos
(aqui Plano Piloto) que provém a necessidade urbanísticos presentes na W-3 Norte são e es-
de aqui permanecer e se submeter a tais condi- tão implicados em uma espécie de consonân-
ções. Por isso, no intuito de escamotear o con- cia dada pela própria vida e suas urgências.
flito, uma vez que esse traz em si a separação Desse modo, o discurso da degradação urbana
na sociedade pela constatação de um modo joga com a culpa e com a opinião pública. A
único de vida, a representação do espaço (es- presença dos avessos urbanísticos se dá pela
paço concebido dado pelo plano urbanístico e existência de necessidades das pessoas quan-
normatizado) produz e reproduz concepções do em coletividade, não de um mando político
urbanas que fragilizam o fazer político. e menos ainda das leis da cidade. O discurso
Esse fazer político permite o avesso do destrói a culpabilidade do poder público de sua
plano urbanístico. Não parece ser estranho isso organização do território para a lógica mercan-
numa capital onde os ritmos e a técnica am- til. É dessa maneira que o processo de urbani-
pliaram a fluidez do tempo no espaço? Sim e zação produz e reproduz espaços diferenciados
não. Se a cidade é ligada às forças produtivas e na metrópole, sob os auspícios de uma verdade
à formação da mais-valia, isso explica o espaço que brotou das banalidades da vida, das opi-
adequado a um tempo acelerado que permite niões públicas e das formas reconhecidas, para
a realização da mercadoria. Concomitantes a preservar a áurea de cultura no movimento do
essa velocidade, as construções no Plano Piloto progresso de que a cidade é assim tecida.

212 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012
Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso

Rosângela Vieira Neri Viana


Doutoranda em Geografia na Universidade Federal de Goiás. Goiânia, Goiás, Brasil.
rvianavieira@gmail.com

Karla Christina Batista de França


Doutoranda em Geografia na Universidade de Brasília. Distrito Federal, Goiás, Brasil.
karlinha@unb.br

Ananda de Melo Martins


Msc. em Geografia da Universidade de Brasília. Distrito Federal, Goiás, Brasil.
anandamartins@unb.br

Notas
Este ar go, escrito a seis mãos, tem como colaboradores-pesquisadores os graduandos em geografia
Leonardo Rocha de Castro e Tiago Sampaio, cujo auxílio foi imprescindível na coleta de dados
empíricos.

(2) O uso do termo “expressões” não significa o desprezo aos processos mediadores imanentes à (re)
produção do espaço extensivos e imbricados ao sen do de cidade, do mundo e da vida. Mas
como algo fenomênico que ar cula o plano da vida ao ins tuído e também às representações
(Carlos, 2001).

(3) Trata-se, neste momento, do co diano capturado e submerso nas funções corriqueiras do dia a
dia, cuja dimensão, ainda que alienada às necessidades da sobrevivência norma zada, pode dar
indica vos importantes à análise, tendo em vista que, de acordo com Damiani (2002, p. 161),
o co diano apresenta diversos níveis de alienação e “envolve outros momentos da vida social,
além do trabalho, sob sua lógica, momentos que já não são alheios, ingênuos à reprodução do
capitalismo”.

(4) Vesentini (1985, p. 107) afirma que “Brasília é uma só cidade, do Plano Piloto às cidades
satélites”. O Plano Piloto não exis ria sem as cidades satélites – atualmente designadas Regiões
Administra vas – e essas só existem em virtude do plano proposto para a construção da capital.

(5) Vale-se aqui da definição de Lefebvre (2004, pp. 80-81) para habitantes, que não restringe os
homens aos atos elementares de sobrevivência, e sim de vivência concreta.

(6) Para Lefebvre (1991, p. 35), a noção de co diano não possui sen do fora das contradições do
processo histórico. Nesses termos, ao caracterizar a sociedade em que se vive, compreende-se a
co dianidade como o co diano situado nas relações do mundo.

(7) As preocupações teóricas envolvem, para além do sentido da cidade contemporânea, o


entendimento da definição metrópole: “Desse modo, a análise da metrópole se revela na
simultaneidade e mul plicidade de lugares que se justapõem e interpõem, gerando situações de
conflito, mas também revelando em seus fragmentos o mundo do vivido” (Carlos, 2001, p. 50).

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 213
Rosângela Vieira Neri Viana, Karla Christina Batista de França e Ananda de Melo Martins

(8) As noções de espaço concebido, produzido e vivido derivam das análises de Penna (2000, p. 13),
a par r da obra de Lefebvre. Respec vamente, relacionam-se à “representação do espaço”
(às deliberações sobre o espaço), à “prá ca espacial” (diz sobre a produção e reprodução das
formas sicas no espaço) e ao “espaço de representação” (a prá ca co diana em que o valor de
uso permeia qualita vamente seu significado e abre possibilidades de insurgências).

(9) No Plano Piloto em Brasília, em virtude de sua concepção urbanís ca, em que os prédios são
erguidos sobre pilo s, vendem-se projeções e não terrenos, uma vez que as áreas térreas dos
prédios devem permanecer abertas para a livre passagem de todos. Tanto a altura dos prédios
quanto a localização e a função foram estabelecidas no Projeto de Lúcio Costa. Aprofundam-se
essas questões ao longo deste ar go.

(10) A des nação inicial dessa via consta no Relatório Lúcio Costa: “Ao fundo das quadras estende-se
a via de serviço para o tráfego de caminhões, des nando-se ao longo dela a frente oposta às
quadras, à instalação de garagens, oficinas, depósitos do comércio em grosso etc., e reservando-
-se uma faixa de terreno, equivalente a uma terceira ordem de quadras, para floricultura, horta
e pomar. Entaladas entre essa via de serviço e as vias do eixo rodoviário, intercalam-se então
largas e extensas faixas com acesso alternado, ora por uma, ora por outra, e onde se localizaram
a igreja, as escolas secundárias, o cinema e o varejo do bairro disposto conforme a sua classe ou
natureza. O mercadinho, os açougues, as vendas, quitandas, casas de ferragens, etc., na primeira
metade da faixa correspondente ao acesso de serviço; as barbearias, cabeleireiros, modistas,
confeitarias etc., na primeira seção da faixa de acesso priva va dos automóveis e ônibus, onde
se encontram igualmente os postos de serviço para venda de gasolina. As lojas dispõem-se em
renque com vitrinas e passeio coberto na face fronteira às cintas arborizadas de enquadramento
dos quarteirões e priva vas dos pedestres, e o estacionamento na face oposta, con gua às vias
de acesso motorizado, prevendo-se travessas para ligação de uma parte a outra, ficando assim
as lojas geminadas duas a duas, embora o seu conjunto cons tua um corpo só ”.

(11) As quadras residenciais do Plano Piloto de Brasília estão dispostas ao longo do Eixo Rodoviário
Norte e Sul que percorre toda a extensão das duas asas – Asa Norte e Asa Sul. As quadras que
se localizam a oeste do Eixo têm como endereçamento as centenas ímpares (Quadras 100, 300,
500, 700 e 900). Já as quadras que se localizam a leste do Eixo são numeradas pelas centenas
pares (Quadras 200, 400, 600 e 800).

(12) Segundo Lúcio Costa, no “Plano de Preservação do Conjunto Urbanís co de Brasília”, do livro
Brasília 57-85, p. 123, item 3.1. Disponível em: <h p://www.semarh.df.gov.br/005/00502001.
asp? CD_CHAVE=15836>. Acesso em: 28 nov 2010.

(13) Ar go disponível em: <h p://www.docomomo.org.br/seminario%208%20pdfs/189.pdf>. Acesso


em: 2 dez 2010.

(14) Em relação ao espaço como mercadoria, ver a dissertação in tulada A (re)produção do espaço
como mercadoria: Pólo 3 - Projeto Orla extensões-latências (Viana, 2008).

(15) Com a ciência de que esta ar culação entre forças produ vas (meios de produção e força de
trabalho) e relações de produção (propriedade econômica das forças produ vas) possui ampla
controvérsia no pensamento marxista, adota-se aqui a análise de Cohen (1978, especialmente
o capítulo II).

(16) Esses estabelecimentos foram transferidos para um novo local denominado Cidade dos
Automóveis.

(17) Cassin (1993) evidencia uma tradução possível de um autor grego cuja identidade ainda se
discute.

214 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012
Brasília: as linhas retas pelo avesso ou no entrecortar do uso

Referências
BARRETO, F. F. P. (2002). Concurso Público Nacional de Idéias e de Estudos Preliminares de Arquitetura
e Urbanismo para a Revitalização das vias W-3 Sul e Norte, em Brasília-DF. Brasília Sustentável
– Memorial. Brasília, DF.

BRANDÃO, V. B. (2009). W3 Sul, ontem, hoje e amanhã – os dilemas de uma avenida modernista. 8º
Seminário DOCOMOMO Brasil. Rio de Janeiro. Disponível em: h p://www.docommo.org.br

CALVINO, I. (1994). Marcovaldo ou as estações na cidade. São Paulo, Companhia das Letras.

CARLOS, A. F. A. (1994). A (re)produção do espaço urbano. São Paulo, Edusp.

______(2001). Espaço-tempo na metrópole. São Paulo, Contexto.

CASSIN, B. (1993). “‘Barbarizar’ e ‘cidadanizar’” – ou não se escapa de An fonte (sobre a verdade,


tradução e comentário). In: CASSIN, B.; LORAUX, N. e PESCHANSKI, C. Gregos, bárbaros,
estrangeiros: a cidade e seus outros. Rio de Janeiro, Ed. 34.

COHEN, G. A. (1978). Karl Marx's Theory of History: A defence. Oxford: Clarendon; Princeton: Princeton
University Press.

DAMIANI, A. L. (2002). “O lugar e a produção do co diano”. In: CARLOS, A. F. A. (org.). Novos caminhos
da Geografia. São Paulo, Contexto.

HOBSBAWM, E. e RANGER, T. (org.) (2008). A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

LEFEBVRE, H. (1973). A reprodução das relações de produção. Porto, Publicações Escorpião.

______ (1991). A vida co diana no mundo moderno. São Paulo, Á ca.

______ (2004). A revolução urbana. Belo Horizonte, Editora UFMG.

______ (2008). Espaço e polí ca. Belo Horizonte, Editora UFMG.

MARTINS, J. de S. (2010). A sociabilidade do homem simples: co diano e história na modernidade


anômala. São Paulo, Contexto.

PENNA, N. A. (2000). Brasília: do espaço concebido ao espaço produzido. A dinâmica de uma


metrópole planejada. 2000. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.

VESENTINI, J. W. (1985). Construção do espaço e dominação: considerações sobre Brasília. Revista


Teoria & Polí ca. São Paulo, Editora Brasil Debates, ano 2, n. 7, pp. 102-121.

VIANA, R. (2008). A re-produção do espaço como mercadoria: Pólo 3 – Projeto Orla extensões-
latências. Dissertação de Mestrado. Brasília, Universidade de Brasília.

VIRILIO, P. (1993). O espaço crí co e as perspec vas do tempo real. Rio de Janeiro, Editora 34.

Texto recebido em 30/out/2011


Texto aprovado em 10/dez/2011

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 197-215, jan/jun 2012 215
O planejamento urbano e as enchentes
em Dourados: a distância entre
a realidade e a legalidade
Urban planning and flooding in Dourados:
the distance between reality and legality

Bianca Rafaela Fiori Tamporoski


Maria Aparecida Martins Alves
Luciana Ferreira da Silva
Joelson Gonçalves Pereira

Resumo
As enchentes urbanas estão presentes na realida- Abstract
de de grande parte das cidades brasileiras. Oriun- Urban flooding is present in the reality of a large
das do desenvolvimento desordenado e da falta number of Brazilian cities. The result of disorderly
de planejamento, transformam-se em grandes de- development and lack of planning turns into
safios para os gestores, pois necessitam conciliar a challenge for administrators, however we
desenvolvimento com gestão ambiental do meio need to agree on development with urban
urbano. Este artigo apresenta um olhar sobre o environment planning in mind. This article looks
panorama das enchentes no município de Doura- at a panorama of fl ooding in the municipality of
dos-MS, suas implicações, as medidas de controle Dourados, MS, Brazil, its implications, control
empregadas pelo poder público e a necessidade de measures by the public powers and the need for
uma gestão integrada. integral planning.
Palavras-chave: enchentes urbanas; planejamento ur- Key words : urban flooding; urban planning;
bano; Dourados; crescimento populacional; legislação. Dourados; populational growth; legislation.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.

do escoamento superficial e a magnitude e


Introdução
frequência das enchentes.
O espectro das medidas aplicadas mun-
O crescimento populacional, as mudanças nos dialmente para a redução do potencial de pre-
padrões produtivos e de consumo ao longo dos juízos consequentes das inundações abrange
últimos anos redefiniram o estado das águas, medidas de planejamento, ações construtivas,
do solo, do ar, da fauna e flora e as condições operacionais e políticas. Trata-se de um conjun-
socioambientais dos assentamentos urbanos. to de medidas preventivas e de métodos que
O planejamento urbano, embora envolva fun- visam à minimização de prejuízos, caso ocorra
damento interdisciplinar, na prática se realiza uma catástrofe. Os exemplos internacionais
no âmbito mais restrito do conhecimento e demonstram de forma inequívoca que obras
não tem considerado aspectos fundamentais, fluviais de proteção e controle de cheias torna-
gerando grandes transtornos e custos para a ram-se desacreditadas e que soluções univer-
sociedade e para o meio ambiente. sais inexistem (Frank, 1995).
No geral, as cidades brasileiras cresce- Nos países desenvolvidos, o abasteci-
ram sem o devido planejamento, fato que traz mento de água, o tratamento de esgoto e o
aos gestores um custo muito elevado que se controle quantitativo da drenagem urbana
faz sentir em todo o aparelhamento urbano. estão resolvidos por meio de mecanismos de
Como a maioria dos municípios brasileiros está investimentos e legislação, que obrigam a po-
próxima aos vales e margens dos rios, tornam- pulação a controlar na fonte os impactos de-
-se fundamentais o planejamento, a legislação vidos à urbanização. No entanto, os países em
e a fiscalização por parte dos governos munici- desenvolvimento ainda estão muito aquém
pais para diminuir os riscos e danos causados dessa realidade (Tucci, 2004).
por desastres naturais, como os decorrentes O Brasil passou por profundas transfor-
das inundações (Secretaria Nacional de Defesa mações econômicas, sociais e ambientais nas
Civil, 2011). últimas décadas, que resultaram em grande
As inundações são classificadas por pressão sobre os recursos naturais, tanto pe-
Tucci (2001) como enchentes em áreas ribei- lo aumento da demanda, quanto pelas novas
rinhas ou decorrentes do processo de urba- modalidades de uso. No processo de desenvol-
nização. Nas áreas ribeirinhas trata-se de um vimento, o crescimento populacional e a urba-
evento natural em que a água escoa do leito nização sem planejamento trouxeram implica-
menor para o leito maior de rios, riachos e ções significativas ao ambiente urbano. Even-
córregos. O impacto verificado neste evento tos da mais variada ordem resultam da falta de
é devido à ocupação do vale de inundação planejamento e, dentre estes, estão as enchen-
em períodos de estiagem ou de sequência de tes que, independentemente de sua magnitude,
anos secos. Já as inundações que decorrem do alteram toda a fisiologia e a dinâmica urbanas.
processo de urbanização têm sua origem na A prática de planejamento do uso e con-
ocupação e impermeabilização do solo que servação dos recursos hídricos foi destacada
promovem aumento no volume e velocidade pelo governo federal na Lei nº 9.433, de 1997,

218 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados

que institui a Política Nacional de Recursos Hí- Em Dourados, o crescimento desor-


dricos e o Sistema Nacional de Gerenciamen- denado, a falta de planejamento urbano e
to de Recursos Hídricos. As quais representam os assentamentos em áreas impróprias são
um significativo avanço ao criar um sistema de os fatores condicionantes de uma realidade
gerenciamento descentralizado e participativo, vivida por parte da população urbana, que
em que a bacia hidrográfica é considerada co- tem sido vítima sistemática da ocorrência
mo a unidade territorial básica de implementa- de inundações.
ção desta política (Bonn, 1997). O processo de urbanização do município
A política estabelece, ainda, como de Dourados teve início com o apoio de iniciati-
ação do Poder Público, na esfera dos Poderes vas governamentais e privadas de loteamento
Executivos Federal, Estaduais e do Distrito Fe- rural na forma de colônias, com pensamento já
deral, a promoção da integração da gestão de fixado na produção em escala, para a comer-
recursos hídricos com a gestão ambiental; e, cialização num centro político-administrativo e
no caso dos municípios e do Distrito Federal, a comercial (Calixto, 2004).
integração das políticas locais de saneamento A elevada propagação da lavoura me-
básico, de uso, ocupação e conservação do solo canizada na região de Dourados desencadeou
e do meio ambiente com as políticas federal e transformações profundas no arranjo da es-
estaduais de recursos hídricos (Schubart, 2000). pacialização da população, afetando tanto o
Quanto ao uso do solo, a Constituição meio rural, quanto o urbano. A expansão do
Federal, em seu Artigo 30, delega essa respon- novo sistema agrícola determinou uma profun-
sabilidade ao município. Porém, os estados e a da inversão demográfica que se manifestou no
União podem estabelecer normas para o dis- esvaziamento do campo e a consequente ur-
ciplinamento do uso desse atributo visando à banização acelerada (Terra, 2004).
proteção ambiental, controle da poluição, saú- Essa nova perspectiva elevou as taxas
de pública e segurança (Brasil, 1988). Dessa de ocupação humana no município; no entan-
forma, observa-se que, no caso da drenagem to, esse fenômeno se deu de forma desordena-
urbana que envolve o meio ambiente e o con- da e sem nenhum planejamento e gestão am-
trole da poluição, a matéria é de competência biental. Dourados, assim como outras cidades
concorrente entre Município, Estado e Fede- brasileiras, respondeu às correntes migratórias
ração. A tendência é dos municípios introdu- através das determinantes sociais e econômi-
zirem diretrizes de macrozoneamento urbano cas, e a população mais pobre se dirigiu para
nos seus Planos Diretores, incentivados pelos os espaços menos desejados, como as regiões
Estados (Tucci, 2004). É por meio do Plano de fundo de vale (Alves, 2001).
Diretor que emerge/surge a oportunidade de Diante desse cenário, o presente traba-
os municípios identificarem as áreas de risco lho se propõe a identificar os principais proble-
e estabelecerem regras quanto à urbanização mas ocasionados pelas inundações em Doura-
nessas localidades. dos/MS, e suas inter-relações setoriais.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 219
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.

estão os córregos Jaguapiru, Laranja Doce,


Metodologia
Água Boa, Rego D’água, Paragem, Chico Viegas,
Olho D’água (Dourados, 2003).
Para o desenvolvimento deste trabalho, foi rea-
A Lei Orgânica do município de Dourados
lizado o levantamento bibliográfico sobre o
prevê a proteção ao meio ambiente, a promo-
tema e da legislação que compõe o arcabouço
ção de programas de construção de moradias
legal do município que ampara a tomada de
e melhoria das condições habitacionais e de
decisão do poder público quanto a gestão ur-
saneamento básico, bem como o combate às
bana. Os dados sobre a pluviosidade, durante
causas da pobreza e fatores de marginalização,
os anos de 2009, 2010 e parte de 2011, foram
promovendo a integração social dos setores
obtidos junto ao laboratório de meteorologia
desfavorecidos. Além disso, seu Plano Diretor
da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuá-
traz em suas diretrizes o controle do processo
ria – Embrapa CPAO.
da urbanização para possibilitar o equilíbrio
Para obter informações sobre a ocorrên-
entre a população urbana e rural e o ambiente,
cia de inundações e seus efeitos para o mu-
de acordo com os limites de sua competência
nicípio de Dourados, foram elaborados ques-
(Dourados Geo, 1990).
tionários estruturados com questões abertas,
Segundo os princípios da política urba-
desenvolvidas especificamente para cada um
na municipal e territorial, considera-se que a
dos seguintes órgãos: Defesa Civil Municipal,
propriedade urbana cumpre sua função social
Secretarias Municipais de Meio Ambiente, de
quando atende as exigências fundamentais de
Saúde e de Planejamento e Conselho Municipal
ordenação da cidade (Dourados, 2003).
de Defesa do Meio Ambiente – Comdam. As
O atendimento aos interesses dos cida-
Secretarias Municipais de Meio Ambiente e de
dãos é assegurado quando, simultaneamente,
Saúde não responderam os questionários.
a propriedade tiver aproveitamento para ati-
vidades urbanas compatíveis com os equipa-
mentos urbanos, ao preservar a qualidade do
Dourados: características meio ambiente e não prejudicar a saúde e a
urbanas e legislação segurança de seus usuários e da vizinhança e
quando não se encontrar subutilizada ou uti-
Dourados é o segundo maior município de lizada de maneira especulativa e irracional
Mato Grosso do Sul, com uma área territorial (Dourados, 2003).
de 4.086,244 km2 e com uma população de Todo loteamento deve ser previamente
196.035 habitantes, dentre os quais 92,36% submetido à Prefeitura Municipal, para estu-
concentram-se na área urbana. O município está do de viabilidade e aprovação, amoldando-se
a uma altitude de 430 metros, situando-se no às exigências da legalidade e da saúde públi-
divisor d’água entre as bacias dos rios Brilhante ca, além de obedecer às regras relativas ao
e Dourados, com solo de origem basáltica, zoneamento e às edificações, assim como aos
mais conhecido como latossolo (Gressler e parâmetros definidos em cada instrumento le-
Swensson, 1988; IBGE, 2010). Na área urbana gal, seja por lei ou regulamento. Entende-se por

220 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados

zona essencialmente urbana aquela já loteada Além disso, o Código de Obras orien-
e que tenha sido beneficiada por serviços pú- ta os projetos e a execução de edificação no
blicos, e por zona não essencialmente urbana município, assegura a observância de padrões
aquela compreendida nos limites urbanos, po- mínimos de segurança, higiene, salubridade e
rém em fase de expansão (Dourados, 1979b). conforto das edificações de interesse para a
A aprovação de projetos de loteamento comunidade e promove a melhoria desses em
em terrenos baixos e alagadiços está condi- todas as edificações de seu território.
cionada à execução de obras de drenagem e O uso e a ocupação do solo são defini-
aterragem, por parte do loteador. Nos lotea- dos pela lei complementar n° 008, de novem-
mentos, as áreas de fundos de vales e onde bro de 1991, que dispõe sobre o zoneamento
haja vegetação de porte devem ser respeitadas. de uso do solo e do sistema viário municipal
As áreas verdes não podem ser loteadas e as em que constam os critérios estabelecidos
edificações nestes locais só são permitidas em para os loteamentos e arruamentos em qual-
casos especiais, conforme a Lei de Zoneamento quer nível, as edificações, obras e serviços pú-
(Dourados, 1979a). blicos ou particulares, de iniciativa ou a cargo
A execução de obras e edificações em de quaisquer empresas ou entidades, mesmo
loteamentos sem aprovação oficial fica sujeita as de direito público, dependendo as constru-
à interdição administrativa e demolição, sem ções de prévia licença da Administração Muni-
prejuízo das demais cominações legais. A Pre- cipal (Dourados, 1991).
feitura Municipal pode, ainda, promover o re- Segundo a lei municipal de uso do solo,
loteamento de áreas já loteadas, para melhor fundo de vale é a faixa não edificável no sen-
aproveitamento e enquadramento no zonea- tido de proteção aos cursos de água, cuja lar-
mento de uso do solo (Dourados, 1979a). gura tem no mínimo cinquenta metros em cada
Instituído em 1979 pela Lei nº 1.067, o margem, inclusive áreas alagadiças. As áreas
Código de Posturas de Dourados dispõe sobre de fundo de vale dos loteamentos são de domí-
as relações de polícia administrativa entre o nio do poder público e cabe a esse regulamen-
Poder Público Municipal e os munícipes. tar seu uso (Dourados, 1991).
Entretanto, as construções e reformas, Dourados também possui uma Política
efetuadas por particulares ou entidades pú- Municipal de Meio Ambiente, conhecida como
blicas, a qualquer título, são reguladas pela Lei Verde, instituída pela Lei Complementar n°
lei municipal nº 1.391 (Código de Obras), de 055, de dezembro de 2002, que objetiva manter
1986, além de obedecerem às normas federais o meio ambiente equilibrado, através do desen-
e estaduais relativas à matéria, bem como a volvimento socioeconômico orientado em bases
Lei Municipal nº 1.040, de 1979, e legislações sustentáveis. Para tanto, em seus princípios es-
complementares. Esta lei complementa as exi- tão o planejamento e a fiscalização do uso dos
gências de caráter urbanístico estabelecidas recursos naturais, a gestão do meio ambiente
por legislação municipal que regula o uso e a com a participação da sociedade nos processos
ocupação do solo e as características fixadas decisórios sobre o uso dos recursos naturais e
para a paisagem urbana. nas ações de controle e de defesa ambiental.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 221
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.

O município, de acordo com a Lei Verde,


Resultados e discussão
deve adotar normas relativas ao desenvolvi-
mento urbano que levem em conta a proteção
ambiental, estabelecendo dentre as funções A Defesa Civil de Dourados realizou, por exi-
da cidade, prioridade para aquelas que deem gência da Lei Federal n° 12.340, um trabalho
suporte, no meio rural, ao desenvolvimento de de monitoramento no município no primeiro
técnicas voltadas ao manejo sustentável dos semestre de 2011 com apoio da Secretaria
recursos naturais cerceando os vetores de ex- Municipal de Serviços Urbanos – Semsur, do
pansão urbana em áreas ambientalmente frá- Planejamento, Assistência Social e Habitação,
geis ou de relevante interesse ambiental (Dou- com a finalidade de mapear as áreas de risco
rados, 2002). e monitorar os danos provocados por desastres
Além disso, esta Lei estabelece a neces- naturais e socorrer as famílias que moram nes-
sidade de programas permanentes de implan- tas áreas (Dourados Agora, 2011).
tação e manutenção da política de saneamen- O levantamento exigiu a criação de uma
to básico, de preservação das áreas protegidas comissão técnica de caráter multidisciplinar
do Município e a criação de outras necessárias (Mídia MS, 2011), com o objetivo de reivindi-
ao equilíbrio ecológico e ao bem-estar da po- car recursos do Estado e da União para drenar
pulação, com ênfase para as áreas de manan- as áreas de risco de inundações e garantir a se-
ciais e para a recuperação dos corpos hídricos gurança das famílias ribeirinhas (Lange, 2011).
poluídos ou assoreados e sua mata ciliar (Dou- Conforme informações do coordenador
rados, 2002). da Defesa Civil de Dourados, o município sofre
Para tanto, as áreas de proteção aos sistematicamente com inundações em períodos
mananciais devem ser demarcadas pelo poder chuvosos. De acordo com o levantamento, fo-
público através de lei específica e considerar ram identificados 20 pontos do perímetro urba-
as ocupações e usos já existentes, as restri- no sujeitos a alagamentos (Tabela 1) e, atual-
ções são impostas pelo zoneamento quanto mente, cerca de 600 famílias, aproximadamen-
aos usos mais intensivos, bem como índices te 2.500 pessoas, vivem em áreas de risco, às
de impermeabilização do solo e coeficientes margens de córregos, e precisam ser removidas
de ocupação máxima para cada propriedade com urgência para regiões mais seguras (Mídia
(Dourados, 2002). MS, 2011).
O Poder Público Municipal pode estabe- De acordo com as informações obtidas,
lecer consórcios intermunicipais para a recupe- as áreas consideradas com risco de inunda-
ração e preservação das bacias hidrográficas, ção em Dourados localizam-se às margens dos
para tanto deve elaborar um programa prio- córregos Rego D’água, Paragem, Laranja Doce
ritário para a recuperação das matas ciliares e Água Boa. Como esses mananciais cortam
consideradas pelo Código Florestal como áreas diversos bairros, uma das regiões mais atingi-
de preservação permanente, a despoluição e a das por inundação ainda é o grande Cachoei-
descontaminação dos corpos hídricos nas Áreas rinha, o que corrobora com os resultados en-
de Proteção aos Mananciais (Dourados, 2002). contrados por Alves (2001) e com a ocorrência

222 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados

Tabela 1 – Localização dos pontos de alagamentos


ocorridos devido a enxurradas ou inundações bruscas
em Dourados e distribuição de pessoas atingidas
Região de Subdivisão da Pontos de Moradias
Bairros atingidos Localidades/ruas dos bairros atingidos
Dourados Defesa Civil alagamento afetadas
Aurora Augusta e Cornélio Cerzósimo
Noroeste Setor 1 1 Chácara Flora 8
de Souza
I - Jardim Monte Líbano Ivinhema e Dom João VI 25
Norte Setor II 2 Hiran P. de Mattos, Maria da Glória e
II - Jardim dos Estados* 15
Antonio A. de Mattos
I - Jardim Santa Herminia Caburé 1
Oliveira Marques, Ciro Mello, Projetada
II - Residencial Caiman 16
“D” e Projetada “E”
Nordeste Setor III 6 III - Residencial Pantanal Rua das Garças e João Vicente Ferreira 4
IV - Vila Nova Esperança Jateí 8
V - Jardim Pelicano* Continental e Rua “N” 80
VI - Jardim Santa Maria Joaquim de Barros 4
Bolívar L. Rocha, José Martins, Manoel
I - Vila Cachoeirinha J. da Silva, Projetada C08C, Projetada 219
C10C e General Osório
Apepinos, Corredor 01 e Bolívar L.
Sudoeste Setor IV 5 II - Vila N. Sra. Aparecida 20
Rocha
III - Vila Bela Miguel Luiz de Oliveira 19
IV - Jardim Clímax Joaquim Távora, Cuiabá e Afonso Pena 69
V - Jardim Londrina Avenida da Liberdade 10
I - Jardim Santo André Humaitá 5
Rua das Ingazeiras, das Jaqueiras e das
II - Jardim Colibri 10
Sul Setor V 4 Mangueiras
III - Jardim Água Boa Vinte de Dezembro e Mato Grosso 17
IV - Jardim Guaicurus Rodovia MS 156 32
I - Jardim do Bosque Projetada 05 8
Vereador Ataulfo de Mattos, Jaime
Sudeste Setor VI 2
II - João Paulo II Moreira, João Borges e Antonio do 22
Amaral

Fonte: Defesa Civil Municipal, Dourados, 2011.


* Bairros que também sofreram desastres naturais de causa eólica além de alagamentos devido a enxurradas ou inundações
bruscas.

de atendimentos realizados pela Defesa Civil, Boa, onde suas águas ocupam o leito maior
que se concentraram nos bairros Vila Cachoei- com a precipitação. Esse evento é agravado
rinha, Jardim Pelicano, Jardim Clímax e Jardim pela impermeabilização do solo à montante
Guaicurus em que foram atendidas respectiva- que acelera o escoamento superficial e inten-
mente 219, 80, 69, 32 moradias. sifica a magnitude de inundação em períodos
A incidência de inundações no bairro Vila chuvosos. Outro fator importante é a existência
Cachoeirinha decorre primeiramente da dinâ- de moradias às margens de ambos os córre-
mica natural dos córregos Rego D’água e Água gos muito próximas do leito maior, bem como

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 223
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.

o acúmulo de resíduos às suas margens que pois é no verão que a ocorrência de tempesta-
ganham as águas facilmente e contribuem pa- des e chuvas bruscas, de grande intensidade
ra o estrangulamento de seu curso em pontos e curta duração, contribuem para a incidência
estreitos e seu consequente transbordamento. de inundações.
No Jardim Pelicano, as inundações decor- Na Tabela 2, encontram-se os valores
rem de fatores como declive e velocidade da para temperatura, umidade relativa do ar, ve-
água das chuvas que avolumam as enxurradas. locidade do vento e pluviosidade, onde é possí-
No Jardim Clímax, as inundações resultam do vel observar que a ocorrência dos períodos de
aumento do volume das águas pluviais que maior pluviosidade está concentrada nos me-
chegam ao córrego Água Boa por meio de ga- ses chuvosos que vão de janeiro a março e de
lerias e contribuem para seu transbordamento. outubro a dezembro. Porém, no ano de 2009, a
Neste local, encontra-se o assentamento popu- chuva foi intensa nos meses de julho e agosto,
larmente conhecido como “Favela do Jardim caracterizando um ano atípico de inverno chu-
Clímax”, onde as moradias muito próximas das voso. Em 2010 e parte de 2011, a ocorrência de
galerias de águas pluviais são afetadas pelas chuvas foi típica para a região, com delimitação
inundações em períodos chuvosos. clara dos períodos de seca e chuva.
Para o Conselho Municipal de Defesa do Outro problema no município são
Meio Ambiente – Comdam, atualmente o maior os lotea mentos irregulares em áreas de
problema relacionado às inundações em Doura- preservação ambiental, localizados ao lon-
dos concentra-se nas margens do Córrego Rego go do Córrego Paragem e na região do alto
D’água, principalmente, na “Favela do Jardim e médio Córrego Laranja Doce que eventual-
Clímax”, dados que corroboram as informações mente sofrem com inundações.
obtidas junto à Secretaria Municipal de Plane- De acordo com a Secretaria Municipal
jamento. Esta ocupação irregular teve início na de Planejamento, em algumas das áreas de
década de 1970 e persiste até os dias atuais. O risco, como ao longo do Córrego Paragem,
poder público municipal elaborou um projeto na região do Cachoeirinha e do Clímax, já
para a construção de casas populares destina- houve a remoção dos invasores para conjun-
das a essas famílias e o incluiu no PAC – Progra- tos habitacionais populares construídos para
ma de Aceleração do Crescimento do Governo essa finalidade. Entretanto, houve reinvasão
Federal em 2007. As casas estão sendo construí- por novos moradores que, muitas vezes, são
das no prolongamento do Jardim Flórida. Con- familiares dos primeiros invasores. Isso de-
tudo, com atrasos no cronograma desde 2009, monstra que os instrumentos de controle so-
a cada chuva, as famílias que ali se encontram cial, de regulação e de fiscalização não estão
continuam sofrendo com as inundações. atuando de forma eficaz, quadro que repre-
Segundo a Defesa Civil Municipal, os senta um aspecto negativo para o município,
principais períodos em que ocorrem os even- uma vez que o programa do Governo Federal
tos mais significativos de cheias e alagamen- para solucionar este tipo de problema não
tos estão entre os meses de outubro a março, contempla reinvasão.

224 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados

Tabela 2 – Médias mensais de temperatura (T),


umidade relativa do ar (UR), umidade relativa máxima do ar (UR max),
umidade relativa mínima do ar (UR min), velocidade do vento (V. Vento)
a dois metros e o total da precipitação, de janeiro de 2009 a junho de 2011

Vel. vento Precipitação


Ano Mês T (ºC) UR (%) UR max. (%) UR min. (%)
(m/s) (mm)
janeiro 24,36 85,07 99,50 60,21 1,81 194,4

fevereiro 24,94 86,3 99,6 55,7 1,27 80

março 24,94 85,33 99,22 57,33 0,88 56,4

maio 19,87 87,71 99,57 66,14 1,91 55,4

junho 19,57 84,43 99,86 66,43 1,32 52,1

2009 julho 16,71 80,75 99,67 73,58 1,13 124,2

agosto 18,09 93,88 100 77,25 1,38 140,18

setembro 22,49 82,29 98,14 57,71 1,63 49,1

outubro 23,17 86,7 98,9 65,5 1,66 241,1

novembro 26,21 82,92 97,5 57,67 1,94 238,6

dezembro 24,7 83,5 94,93 56,79 1,42 337,9

janeiro 24,88 83,63 95 59,56 1,36 39,6

fevereiro 24,92 82,46 95,15 54,77 1,39 217,4

março 25,08 78 95,67 46,17 1,68 91,0

abril 23,07 86,67 96 62 1,68 24,2

maio 18,27 84,43 96,43 63,29 1,92 161,4

junho 21,1 84 96 63 1,38 2,0


2010
julho 13,55 81 95 65,5 1,73 49,8

agosto 14,65 87,5 96 70 1,45 35,8

setembro 19,96 86,38 97,25 68,13 1,44 177,4

outubro 20,81 80,5 97,13 54,5 1,70 84,2

novembro 22,73 78,71 97,29 52 1,47 117,4

dezembro 23,87 84,73 98,36 58,73 1,20 104,5

janeiro 25,17 83,07 98,8 52,33 1,1 289,6

fevereiro 24,65 85,89 99,26 55,05 1,07 196,4

março 23,69 86,73 97,87 63,27 1,31 126,6


2011
abril 22,24 85,89 99,11 57,56 1,20 214,8

maio 17,5 92 100 81 1,84 5,8

junho 14,05 86 97,5 68 1,85 122,9

Fonte: Embrapa/CPAO, 2011.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 225
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.

As inundações também atingem os bair- escoamento da água, além da implantação de


ros Estrela Porã, Novo Horizonte e Parque do tubulação de drenagem para desviar o grande
Lago II e no Jardim Caiman, e nesse último, em volume de água que desce do bairro Parque
algumas residências a água da chuva já atin- das Nações I em direção ao túnel, desviando
giu cerca de um metro e meio de altura. As fa- a enxurrada para uma área de várzea próxima,
mílias ficaram isoladas, foram removidas pela porém essas medidas não foram suficientes
Defesa Civil e, posteriormente, encaminhadas para impedir as inundações no local (Dourados
à Casa da Acolhida e ao Estádio Frédis Saldi- News, 2011).
var, até que pudessem retornar ao bairro. Nes- Nesse mesmo período, a área central
sa região, o alagamento provocou a interdição da cidade também sofreu com alagamentos
do Posto de Saúde da Família – PSF 34, devido devido a falhas na manutenção e limpeza do
às inundações nas suas dependências. Outros sistema de captação de água pluvial. Por essa
pontos inclusos no planejamento de contenção razão, a Secretaria de Serviços Urbanos tem
de riscos encontram-se no Jardim João Paulo realizado a limpeza das galerias subterrâneas
II, no trecho da Rua Antônio do Amaral, onde (Dourados News, 2011).
várias famílias ficam ilhadas em dias de chuva A ocorrência de inundações no município
forte (Lange, 2011). de Dourados revela que as ações por parte dos
Em 2009, foi feito um financiamento pela gestores devem estar centradas em medidas de
prefeitura junto à Caixa Econômica Federal, no controle e minimização desse tipo de impacto.
valor de R$35.320.906,78 para custear as obras Tais medidas passam pelo o gerenciamento dos
e serviços relativos aos projetos de manejo de recursos hídricos integrado ao planejamento
águas pluviais para o controle e minimização de urbano, de modo a incorporar uma abordagem
inundações no âmbito do Plano de Aceleração que adote os aspectos ambientais, sociais, eco-
do Crescimento – PAC (Dourados, 2009). nômicos e políticos, destacando-se o primeiro,
Porém, na segunda quinzena do mês de pois a capacidade ambiental de dar suporte ao
março desse ano, também ocorreram eventos desenvolvimento possui sempre um limite, a
de inundações no túnel sob a BR-163 que liga partir do qual todos os outros aspectos serão
o Parque das Nações I ao Parque II, isolando inevitavelmente afetados (Bonn, 1997).
completamente os dois bairros. A manutenção O município dispõe de arcabouço legal
da rua que passa sob a rodovia é de responsa- apropriado e de órgãos de controle e partici-
bilidade do município e as margens da BR são pação pública na figura dos conselhos muni-
de domínio da União, o que exigiu uma parce- cipais e secretaria de meio ambiente, os quais
ria para a elaboração e execução de um projeto têm pressionado o poder público no sentido de
definitivo para resolver os problemas de alaga- cobrar a solução dos problemas relacionados à
mentos nesse local (Dourados News, 2011). defesa do meio ambiente e, consequentemente,
A solução do problema foi baseada em da invasão das áreas de preservação ambiental.
medidas emergenciais como a limpeza da par- Dentre as medidas realizadas pelo
te interna do túnel e a abertura de valetas, Comdam quanto às áreas de preservação am-
em sistema de curva de nível, para facilitar o biental, está a notificação junto à prefeitura

226 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados

para uma maior atenção às Zonas Especiais de andamento o projeto de construção do Con-
Interesse Ambiental – ZEIA e Áreas de Preser- junto Habitacional Ipê Roxo, com 186 mora-
vação Permanente – APP’s, pois a pressão para dias que contemplarão famílias de baixa renda
construção de moradia, por parte da popula- que vivem em áreas de risco. Outro projeto em
ção, é grande em Dourados e as áreas sujeitas andamento refere-se à urbanização da bacia
a inundações devem ser monitoradas e cerca- hidrográfica do córrego Paragem, que prevê a
das a fim de evitar a ocupação indevida. Além remoção de invasores, e a implantação de um
disso, atualmente, este conselho está revendo a parque linear. As obras relativas ao córrego
“Lei Verde” e tencionando o poder público mu- Rego D’água foram retomadas pela prefeitura.
nicipal para que revise o Plano Diretor e a Lei O cercamento de todas as áreas de pre-
do Uso do Solo. Sabe-se que a legislação de- servação ambiental e a fiscalização das mes-
ve passar por adequações quando necessário, mas pela Polícia Ambiental não foram ações
porém uma das necessidades mais prementes elencadas como prioritárias pela atual adminis-
é o poder público dotar a administração de tração municipal, embora, segundo a Secretaria
estrutura capaz de fiscalizar e fazer cumprir as de Planejamento, tais ações possam contribuir
leis e normas que regem a sociedade. preventivamente na redução de invasões e de
Os recursos para atender a demanda construções de moradias irregulares em áreas
de habitação popular destinada à retirada de de risco.
pessoas residentes em áreas de risco são pro- Dentre as próximas ações do governo
venientes do Governo Federal através do Mi- Municipal, está a alteração do Plano Diretor,
nistério das Cidades, de fundos destinados a que teve início em agosto de 2011, com a parti-
programas sociais. O Estado pode entrar com cipação da sociedade. Também é objeto de dis-
parcerias, como, por exemplo, nas obras de cussão a expansão do perímetro urbano de 82
saneamento básico. Ao Município cabe soli- km2 para 205 km2 e, consequentemente, a revi-
citar recursos por meio de projetos e, quando são da Lei de Uso do Solo do Município, já que
atendido, é sua responsabilidade geri-los para uma ação está diretamente vinculada à outra.
resolver as invasões em áreas de preservação Se a expansão da área urbanizada das cidades
ambiental e de risco. sobre o território necessariamente implica al-
As áreas destinadas aos loteamentos gum tipo de impacto sobre o meio ambiente,
para construções de habitações populares quando ela ocorre de forma precária e incom-
com o objetivo de remover as famílias residen- pleta, mais impactos ainda ela provoca quando
tes em áreas de fundo de vale são adquiridas não atende às exigências técnicas necessárias
pelo município, compradas de terceiros, onde ao parcelamento do solo não respeitando os
a Prefeitura deve implantar a infraestrutura condicionantes do meio físico (Moretti e Fer-
do novo loteamento. nandes, 2000).
De acordo com o último levantamento Outro grande problema da cidade de
da Prefeitura, são aproximadamente 7.500 Dourados corresponde à drenagem urbana e,
pessoas, com renda de 0 a 3 salários, que ne- para atender a esta demanda, foram requeri-
cessitam de moradias. Atualmente, está em dos recursos federais através da elaboração

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 227
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.

de projetos de drenagem pluvial que contem- estão muito além da capacidade de seu equa-
plam, inclusive, o estudo de impacto ambien- cionamento (Silva e Travassos, 2008).
tal dessas obras. Segundo a Secretaria de Diante dessa situação, o país necessita
Planejamento, na abertura de loteamentos as desenvolver uma cultura de gestão integrada
ruas apenas são asfaltadas sem a instalação das águas, pois, atualmente, o que existe é
de obras de drenagem. O asfaltamento sem uma multiplicidade de agentes, com objetivos
a devida infraestrutura de drenagem provoca e responsabilidades conflitantes. Cada um vi-
impactos em todo o aparelhamento urbano, sualiza uma única função e um único uso para
como se verifica no bairro Jardim Universitá- a água, de acordo com seus interesses e ne-
rio, localizado atrás do Centro Universitário cessidades. O resultado é uma série de inter-
da Grande Dourados – Unigran, onde existem venções descoordenadas que frequentemente
ruas destruídas pela erosão provocada pela geram significativos danos ao meio ambiente,
força da água das chuvas. além de desperdiçar os recursos disponíveis
Para a Secretaria de Planejamento, as (Bonn, 1997).
inundações, além de causar muitos prejuízos à
população atingida, também causam impacto
sobre os trabalhos desenvolvidos em vários se-
tores e secretarias municipais. Contudo, sabe- Conclusão
-se que as medidas preventivas necessárias pa-
ra que esse quadro seja sanado em Dourados O número de casos de alagamentos atendidos
envolve o planejamento urbanístico e ambien- pela Defesa Civil de Dourados apenas no pri-
tal da cidade, focando o bem comum e o futuro meiro semestre de 2011 cresceu muito quando
de todos os cidadãos, não apenas os interesses comparado aos dois anos anteriores. Também
particulares de poucos. houve aumento no número de pessoas com
A falta de integração entre os setores necessidade de remoção das áreas de preser-
que promovem a gestão municipal afeta di- vação ambiental e de risco, o que demanda a
retamente o meio ambiente, a população e construção de moradias populares, dependen-
onera os cofres públicos, pois as limitações do, assim, de recursos federais para a imple-
das ações do poder público em muitas cida- mentação das obras.
des brasileiras estão indevidamente voltadas Do ponto de vista da gestão, o poder
para medidas estruturais com visão pontual público municipal trata o problema das inun-
(Tucci, 1997a), o que resulta, dentre outros, dações de forma setorial quando retira e rea-
da incapacidade de conceber políticas públi- loca a população invasora de áreas de risco.
cas que levem em conta não somente o efeito, Uma perspectiva reducionista que enxerga
mas também suas causas de transformações apenas a ocupação humana em regiões sujei-
do espaço urbano (Tucci, 1997b). Esse distan- tas a inundações ao contrário de contemplar
ciamento também decorre do imenso passivo o planejamento urbano que considere a re-
socioambiental existente nessas cidades, onde dução da impermeabilização do solo confor-
os problemas de degradação socioambiental me o crescimento populacional e que esteja

228 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados

integrado a uma gestão ambiental focada no forma intersetorial. Isto significa elaborar e de-
manancial hídrico da cidade e desconsiderando senvolver o planejamento urbano considerando
o retrato da realidade nacional. a cidade como um todo, de forma sistêmica e
Embora, saiba-se que o planejamento integrada, levando em conta as interações entre
urbano é o caminho mais curto e econômico as intervenções humanas e o meio natural no
para solucionar os problemas com eventos de âmbito do manancial constituinte das bacias hi-
inundações e todas suas consequências des- drográficas pertencentes ao território municipal,
truidoras e onerosas, o que se observa é uma diminuindo, assim, a distância entre a realidade
inabilidade dos gestores em fomentar um pla- socioambiental do município e o discurso conti-
nejamento urbano e ambiental organizado de do nas agendas e documentos.

Bianca Rafaela Fiori Tamporoski


Graduada em Química, cursando Especialização Latu Sensu em Planejamento e Gestão Ambiental
na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil.
bibirafaft@yahoo.com.br

Maria Aparecida Martins Alves


Graduada em Ciências Biológicas, Mestrado em Desenvolvimento Sustentável, professora auxiliar da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil.
magiovanetti@uems.br

Luciana Ferreira da Silva


Graduada em Matemática, Mestrado em Desenvolvimento Sustentável, Doutorado em Economia
Aplicada. Professora adjunta da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, Mato
Grosso do Sul, Brasil.
lucianafsilva@uol.com.br

Joelson Gonçalves Pereira


Doutorado em Geografia Humana. Professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados.
Mato Grosso do Sul, Brasil.
joelsonpereira@ufgd.edu.br

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 229
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.

Referências
AGÊNCIA NACIONAL DAS ÁGUAS – ANA (2011). A ANA na Gestão das Águas. Disponível em: <h p://
www.ana.gov.br/gestaorechidricos/usosmul plos/default.asp>. Acesso em: 16/3/2011.

ALVES, M. A. M. (2001). Vulnerabilidade socioambiental da população ribeirinha da Vila Cachoeirinha.


Dissertação de Mestrado. Brasília, Universidade de Brasília.

BONN, N. (1997). Aspectos legais da gestão dos recursos hídricos. Quinta Reunião Especial SBPC
(Floresta Atlân ca diversidade biológica e sócio-econômica), Blumenau. Anais.... São Paulo, SBPC,
pp. 89-92. Disponível em: <h p://comiteitajai.org.br:8080/bitstream/123456789/1104/13/
Aspectos_legais_da_gestao_dos_recursos_hidricos.pdf>. Acesso em: 26/3/2011.

BRASIL, (1988) Cons tuição da República Federa va do Brasil: DF, Senado Federal, 1988.

CALIXTO, M. J. M. S. (2004). Produção, apropriação e consumo do espaço urbano: uma leitura


geográfica da cidade de Dourados-MS. Campo Grande, UFMS.

DOURADOS (1979a). Regula os loteamentos e terrenos urbanos. Lei n° 1041, de 11 de julho de 1979.

______ (1979b). Código de Posturas do Município de Dourados. Lei n° 1067, de 28 de dezembro de


1979.

______ (1990). Lei Orgânica do Município de Dourados. Lei de 5 de abril de 1990. Disponível em:
<h p://www.camaradourados.ms.gov.br/arquivos/lei_organica.pdf>. Acesso em: 30/3/2011.

______ (1991). Dispõe sobre o Zoneamento de Uso do Solo. Lei Complementar n° 008, de 5 de
novembro de 1991.

______ (2002). Polí ca Municipal de Meio Ambiente. Lei Complementar n° 055, de 19 de dezembro
de 2002.

______ (2003). Plano Diretor de Dourados. Lei Complementar n° 72, de 30 de dezembro de 2003.

______ (2009). Decreto Lei n. 306, de 6 de outubro de 2009. Diário Oficial do Município, ano XI,
n. 2.616, p. 8, 7/10/2009.

______ (2011). A Cidade – Síntese histórica e perfil. Disponível em: <h p://www.dourados.ms.gov.br/
ACidade>. Acesso em: 19/8/2011.

DOURADOS AGORA (2011). Municípios têm prazo para encaminhar levantamento de áreas de risco
para Defesa Civil. Disponível em: <h p://www.douradosagora.com.br/no cias/meio-ambiente/
municipios-tem-prazo-para-iden ficar-areas-de-risco>. Acesso em 1/3/2011.

DOURADOS GEO (2003). Disponível em: h p://geo.dourados.ms.gov.br/geodourados/map.phtml.


Acesso em: 6/4/2011.

DOURADOS NEWS (2011). Disponível em: <h p://www.douradosnews.com.br/leitura.php?id=6387>.


Acesso em 1/3/2011.

EMBRAPA CPAO (2011). Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Centro de Pesquisa


Agropecuária Oeste. Base de Dados Meteorológicos. Disponível em: h p://www.cpao.embrapa.
br/clima/index.php?pg=base_dados. Acesso em: 5/7/2011.

230 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
O planejamento urbano e as enchentes em Dourados

FRANK, B. (1995). Uma abordagem para o gerenciamento ambiental da Bacia Hidrográfica do Rio
Itajaí, com ênfase no problema das enchentes. Tese de doutorado. Florianópolis, Universidade
Federal de Santa Catarina

GRESSLER, L. A. e SWENSSON, L. J. (1988). Aspectos históricos do povoamento e da colonização do


Estado de Mato Grosso do Sul - destaque especial para o Município de Dourados. Dourados,
Estado de Mato Grosso do Sul.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE (2010). Sinopse do Censo Demográfico


2010 – Brasil. Disponível em: <h p://www.ibge.gov.br/cidadesat/link.php?codmun=500370>.
Acesso em 4/5/2011.

LANGE, M (2011). Áreas de risco em Dourados abrigam 600 famílias. Disponível em <h p://www.
progresso.com.br/dia-a-dia/areas-de-risco-em-dourados-abrigam-600-familias>. Acesso em:
1/3/2011.

MÍDIA MS (2011). Defesa Civil faz monitoramento de áreas de risco para enchentes. Disponível em:
<h p://www.midiams.com.br/site/cidades/defesa-civil-faz-monitoramento-de-areas-de-risco-
para-enchentes-23033.html>. Acesso em 1/3/2011>.

MORETTI, R. S. e FERNANDES, A. (2000). Sustentabilidade urbana e habitação de interesse social. CD


8º Encontro Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído (Salvador), São Paulo, Associação
Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído.

SCHUBART, H. O. R. (2000). O zoneamento ecológico-econômico e a gestão dos recursos hídricos. In:


MUÑOZ, H. R. (org.). Interfaces da gestão de recursos hídricos. Desafios da Lei de Águas de 1997.
Brasília, Ministério do Meio Ambiente, Secretaria de Recursos Hídricos. Disponível em: <h p://
www.uff.br/cienciaambiental/biblioteca/rhidricos/parte3.pdf>. Acesso em: 26/3/2011.

SECRETARIA NACIONAL DE DEFESA CIVIL (2011). Ocorrência de desastres. Disponível em: <h p://
www.defesacivil.gov.br/desastres/index.asp>. Acesso em 16/3/2011.

______ (2011). Ocorrência de desastres. Inundações. Disponível em: <h p://www.defesacivil.gov.br/


desastres/recomendacoes/inundacao.asp>.Acesso em 16/3/2011.

SILVA, L. S. e TRAVASSOS, L. (2008). Problemas ambientais urbanos: desafios para a elaboração de


polí cas públicas integradas. Cadernos Metrópole, n. 19, pp. 27-47.

TERRA, A. (2004). A organização do espaço rural na microregião geográfica de Dourados/MS.


Dissertação de mestrado. Maringá, Universidade Estadual de Maringá.

TUCCI, C. E. M. (1997a). Água no meio urbano. Disponível em: <http://4ccr.pgr.mpf.gov.br/


ins tucional/grupos-de-trabalho/residuos/docs_resid_solidos/aguanomeio%20urbano.pdf>.
Acesso em: 25/3/2011.

______ (1997b). Plano Diretor de Drenagem Urbana: princípios e concepção. Revista Brasileira de
Recursos Hídricos – RBRH, v. 2, n. 2, pp. 5-12.

______ (2001). Aspectos Ins tucionais do Controle das Inundações Urbanas. Avaliação e controle da
Drenagem Urbana. Porto Alegre, Ed. ABRH, pp. 405-419.

______ (2004) Gerenciamento integrado das inundações no Brasil. Revista Rega, v. 1, n. 1, pp. 59-73.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012 231
Bianca Rafaela Fiori Tamporoski et al.

TUCCI, C. E. M. e BERTONI, J. C. (2003). Inundações urbanas na América do Sul. Porto Alegre. Disponível
em: <http://www.iph.ufrgs.br/corpodocente/tucci/DisciplinaDrenagem.pdf>. Acesso em:
26/3/2011.

TUCCI, C. E. M. e COLLISCHONN, W. (1998). Drenagem urbana e controle de erosão. VI Simpósio


Nacional de Controle de Erosão. Anais. Presidente Prudente, v. 1, pp. 92-101. Disponível em:
<http://4ccr.pgr.mpf.gov.br/institucional/grupos-de-trabalho/residuos/docs_resid_solidos/
SED.PDF>. Acesso em: 26/3/2011.

Texto recebido em 24/out/2011


Texto aprovado em 2/dez/2011

232 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 217-232, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles brasileiras, 1991-2000
Changes in the socio-occupational structure
of the Brazilian metropolises, 1991-2000

Suzana Pasternak

Abstract
Resumo The paper shows the results of a comparative study
O trabalho apresenta os resultados de um estudo with ten metropolises and an urban agglomeration
comparativo com 10 metrópoles e uma aglome- in Brazil, trying to observe the similarities and
ração urbana no Brasil, procurando observar as differences among their socio-occupational
semelhanças e diferenças entre as estruturas so- structures and their evolution between 1991 and
cioocupacionais das metrópoles estudadas e sua 2000. It answers the following questions: 1) how
evolução entre 1991 e 2000. Trata-se de responder the productive restructuring affected the socio-
às questões: 1) como a reestruturação produtiva occupational structure of each metropolis at the
afetou a estrutura sócio-ocupacional de cada me- end of the last century; 2) whether the evolution
trópole no fim do século passado; 2) se a evolução between 1991 and 2000 was similar in the
entre 1991 e 2000 foi semelhante nas aglomera- agglomerations that were studied; 3) who are the
ções estudadas; 3) quem são os componentes das components of the different socio-occupational
distintas categorias sócio-ocupacionas nas dife- categories in the metropolises of the large Brazilian
rentes metrópoles das grandes regiões brasileiras. regions. The demographic growth of all the studied
Todas as metrópoles estudadas tiveram crescimen- metropolises has been higher in the periphery
to demográfico maior na periferia que no núcleo. than in the central part of the city. Although the
Embora as metrópoles sejam específicas, há certa metropolises are specific, there is a certain similarity
semelhança na sua estrutura: no ano 2000, em to- in their structures: in the year 2000, all the middle
das as ocupações médias predominam. No Sudeste, jobs were predominating. In the Southeast, the
é nítida a perda de dirigentes, mas apenas em São loss of leaders is clear, but only in São Paulo has
Paulo percebeu-se aumento significativo da base a meaningful increase in the basis of the social
da pirâmide social. pyramid been noticed.
Palavras-chave: estrutura sócio-ocupacional; me- Keywords: socio-occupational structure; Brazilian
trópoles brasileiras; reestruturação produtiva nas metropolises; productive restructuring in the
metrópoles. metropolises.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Suzana Pasternak

social, alicerçada na indústria da informação,


Introdução
em especial nas grandes metrópoles, estaria
assentada, de um lado, na existência de profis-
O Observatório das Metrópoles tem desenvol- sionais altamente qualificados e bem remune-
vido estudos e pesquisas que visam contribuir rados e, de outro, em um contingente de tra-
teórica e metodologicamente para os deba- balhadores menos qualificados e de não menos
tes, no âmbito da academia, das instituições importância, como secretárias, faxineiros e tra-
governamentais e não governamentais e dos balhadores de manutenção, configurando uma
movimentos sociais, sobre os impactos sociais estrutura social no formato de ampulheta. Essa
produzidos pelas transformações econômicas imagem, que não encontra unanimidade junto
que ocorrem no Brasil, desde meados de 1980. aos pesquisadores, estaria em contraposição
Esses impactos se externalizam particularmen- à de um ovo, que representa a predominância
te nas grandes cidades e nas regiões metro- das camadas médias e operárias na estrutura
politanas, onde as transformações adquirem social e a presença reduzida dos estratos supe-
maior significado. A polêmica que alimenta o riores e inferiores dessa estrutura.
debate está centrada nos efeitos da reestrutu- Com base nesses pressupostos, e preten-
ração produtiva sobre o mercado de trabalho, dendo verificar a procedência ou não das teses
com significativas alterações na oposição entre da global city na realidade brasileira, foi ela-
as classes sociais, que marcou a era industrial borada uma hierarquia sócio-ocupacional com
fordista, e o surgimento de uma nova estrutura a construção de um conjunto de categorias, a
social, marcada por uma crescente polarização partir das variáveis censitárias de ocupação se-
entre estratos superiores e inferiores da socie- gundo a Classificação Brasileira de Ocupações
dade. Essas questões estão no centro das dis- (CBO), criada de acordo com as diretrizes da
cussões sobre a global city (Sassen, 1998), cuja Classificação Internacional Uniforme de Ocupa-
hipótese central é a existência de nexos es- ções (CIUO) da Organização Internacional do
truturais entre as mudanças em curso na eco- Trabalho (OIT). Os dados censitários são os
nomia e a intensificação da dualização social. únicos disponíveis, no Brasil, com capacidade
Nesse processo, em que o Setor Terciário esta- simultânea de comparabilidade no tempo e no
ria assumindo predominância diante de pro- espaço, contemplando dados do mundo do tra-
cessos simultâneos de modernização e relativa balho. Como ponto de referência, foi utilizado o
retração no emprego do Setor Secundário, ha- sistema de classificação das profissões na Fran-
veria igualmente uma reconfiguração e um en- ça, adotado pelo Institut National d’Économie
colhimento das classes médias, tendo em vista et Statistique (INSEE), e o primeiro trabalho
as mudanças na estrutura produtiva e nos pa- comparativo realizado foi entre Paris e Rio de
drões organizacionais e tecnológicos. Algumas Janeiro (Preitecelle e Ribeiro, 1998).
ocupações típicas das classes médias estariam Essas pesquisas têm como ponto de
em declínio, outras se desqualificariam, e surgi- partida uma concepção multidimensional da
riam novas profissões ligadas à expansão das estruturação do espaço social, o que permi-
funções de gestão (Sassen, 1998). A estrutura te alcançar uma compreensão mais refinada

234 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

das eventuais posições sociais que os grupos setores da produção, como o Secundário
de indivíduos ocupam e detectar as múltiplas e o Terciário, e, finalmente, entre os ocu-
pados no Setor Secundário, foi feita uma
escalas de hierarquização no espaço social. A
distinção a partir da inserção dos traba-
estrutura social “[...] é entendida, simultanea-
lhadores nos segmentos modernos ou
mente, como um espaço de posições sociais tradicionais da indústria (Ribeiro e Lago,
e um espaço de indivíduos ocupando esses 2000). (Mammarella, 2007, p. 157)
postos e dotados de atributos sociais desigual-
mente distribuídos e ligados às suas histórias” Entre 1991 e 2000, o Censo modificou
(Ribeiro e Lago, 2000, p. 112), dentro de uma sua forma de definir tanto o desemprego, co-
articulação que remete ao pensamento de mo o tipo de ocupação, o que dificulta a com-
Bourdieu (1989). O autor desenvolve a noção paração entre 1980, 1991 e 2000. Em 1991, o
de que os indivíduos ou agentes ocupam po- período de referência para a verificação do es-
sições relativas no espaço social, as quais se tado de emprego era de 12 meses, assim como
encontram em oposição. É possível classificar em 1980. E a condição de ocupação referia-se
empiricamente essas posições relativas segun- a três possíveis estados: se trabalhou habitual-
do os diferentes agrupamentos sociais, poden- mente ou eventualmente neste período de re-
do ser identificadas pelo volume dos capitais ferência, ou se não trabalhou. No ano 2000,
(econômicos, sociais e simbólicos) que eles de- o período de referência foi de uma semana,
têm e pela estrutura desses capitais. Colocados e a questão foi mais detalhada: perguntava-
em posições semelhantes e estando sujeitos a -se se trabalhou em atividade remunerada
condicionamentos similares, há probabilidade ou não; em caso da resposta não, se estava
de que esses agentes ou indivíduos desenvol- temporariamente afastado, se exerceu ativi-
vam atitudes, interesses e práticas aproxima- dade não remunerada ou se, no período de 1
das. A incorporação desse esquema à pesquisa mês na data anterior ao Censo, tomou alguma
sobre as metrópoles brasileiras está pautada providência para conseguir trabalho. Assim, as
no pressuposto metodológico da centralidade cifras de ocupados entre os anos 1980, 1991
do trabalho como categoria estruturadora das e 2000 não são comparáveis: a adoção do pe-
relações sociais (Ribeiro e Lago, 2000, p. 112). ríodo de uma semana, em lugar de 12 meses,
pode induzir a uma ampliação da magnitude
As categorias sócio-ocupacionais, através do desemprego. De outro lado, atividades do-
das quais é possível captar a segmenta-
miciliares como ajuda a outro, trabalho para
ção social nas metrópoles brasileiras,
o autoconsumo, etc., reduzem o desemprego,
foram construídas a partir de alguns prin-
cípios gerais que se contrapõem e que es- pois passam a ser computadas.
tão na base da organização da sociedade Em 2000, modificou-se também a for-
capitalista, tais como: capital e trabalho, ma de classificar as ocupações, através da
grande e pequeno capital, assalariamen-
utilização da CBO (Classificação Brasileira de
to e trabalho autônomo, trabalho manual
Ocupações) e da CNAE (Classificação Nacional
versus não manual e atividades de con-
trole e de execução. Também foi levada de Atividade Econômica). Na pesquisa, foi fei-
em consideração a diferenciação entre to um ajuste da classificação ocupacional de

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 235
Suzana Pasternak

1991 com a metodologia censitária de 2000, o obtido da mesma forma que o de 2000. Mesmo
que possibilita a comparação entre estas duas assim optou-se por analisar a evolução, apesar
datas. Para 1980, entretanto, isso não foi feito. desta ressalva. A análise relativa dos percentu-
Assim, qualquer comparação que envolve os 20 ais pode elucidar a evolução.
últimos anos do século XX só poderá ser feita Foram verificadas também as altera-
entre grandes grupos, e o percentual de popu- ções no mercado de trabalho formal das me-
lação ocupada em relação à total entre estas trópoles estudadas. Para tanto se utilizaram
três datas não é passível de comparação. Por dados da RAIS (Relação Anual de Informações
isso, a análise da evolução das categorias só- Sociais, Ministério do Trabalho), cobrindo o
cio-ocupacionais se concentra em 1991 e 2000. mercado formal de 1991 e 2000, cotejando-os
E deve ser lembrado que o número absoluto com as informações censitárias sobre a popu-
de ocupados de 1991 não é, rigorosamente, lação ocupada.

Quadro 1 – Categorias sócio-ocupacionais

grandes empregadores
dirigentes dirigentes do setor público
dirigentes do setor privado
profissionais autônomos de nível superior
profissionais empregados de nível superior
profissionais de nível superior
profissionais estatutários de nível superior
professores de nível superior
pequenos empregadores pequenos empregadores
ocupações de escritório
ocupações de supervisão
ocupações técnicas
ocupações médias
ocupações de saúde e educação
ocupações de segurança, justiça e correio
ocupações artísticas e similares
trabalhadores do comércio
trabalhadores do terciário
trabalhadores de serviços especializados
trabalhadores manuais da indústria moderna
trabalhadores manuais da indústria tradicional
trabalhadores do secundário
trabalhadores manuais de serviços auxiliares
trabalhadores manuais da construção civil
prestadores de serviços não especializados
trabalhadores do terciário não especializado empregados domésticos
ambulantes e biscateiros

236 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

formas de produção e a uma eliminação de mi-


Questões colocadas
lhares de postos de trabalho. “Em consequên-
cia, sobre uma estrutura social já desigual e
As transformações que se processam na economia
excludente, ampliaram-se o desemprego e as
brasileira têm provocado mudanças tecnológicas
formas precárias de trabalho, tais como o tra-
na formatação social e na organização espacial.
balho sem carteira, o trabalho em tempo par-

Nesse movimento também foram alte- cial, o de elevada rotatividade, etc.” (Piquet,
radas situações que marcaram durante 2000, p. 98). Tanto trabalhos produzidos sobre
muito tempo a organização espacial da esta dinâmica, como os dados da RAIS (Rela-
atividade econômica e o tipo de vínculo ção Anual de Informações Sociais, Ministério
existente entre as regiões. O território
do Trabalho), cobrindo o período de 1991 a
se cobriu de redes de fluxos, tangíveis e
intangíveis, que intensificaram as rela- 2000, atestam esta redução do mercado for-
ções entre as pessoas, as empresas e os mal nas metrópoles de São Paulo e Rio de Ja-
lugares, facilitando a possibilidade de neiro, as maiores do país, onde o impacto da
cooperação, mas aumentando também reestruturação produtiva parece ser maior (a
a competição. Algumas regiões de anti-
taxa de crescimento dos empregos formais de
ga tradição industrial perderam atrativo
como localização diante do aparecimen- São Paulo no período foi de -0,28% ao ano,
to de outras áreas emergentes. (Piquet, e a do Rio de Janeiro, de -0,87% anuais). De-
2000, p. 97) ve também ser lembrado que a reengenharia
feita nestes anos, visando tornar os produtos
As consequências desse processo se fi- brasileiros mais competitivos, terceirizou parte
zeram sentir também no mercado de trabalho, do trabalho não diretamente ligado à produ-
provocando alterações no perfil do emprego. ção, antes computado como industrial, agora
Há algumas teorizações sobre essas mudan- como serviço. É o caso, entre outros, das ativi-
ças, entre as quais uma das mais conhecidas dades de manutenção, segurança, alimentação
é a de Sassen (1991) que propõe, como hipó- e limpeza.
tese central para as chamadas cidade globais, As sociedades do mundo desenvolvido
“a existência de um vínculo estrutural entre o têm apresentado um processo de terceirização,
tipo de transformação econômica caracterís- com transferência de empregos das atividades
tica dessas cidades e a intensificação de sua da indústria de transformação para as ativida-
dualização social e urbana” (Preteceille, 1994, des de serviços. Alguns autores chamam a este
p. 66). fenômeno passagem da fase industrial para
No Brasil, as consequências das trans- uma fase pós-industrial e, inclusive, acreditam
formações econômicas mundial compeliram a que um indicador como uma proporção de
indústria, setor mais exposto à concorrência mais da metade dos empregos em serviços po-
internacional, sobretudo depois da abertura deria ser considerado como indicador positivo
comercial do governo Collor, nos anos 90, a de progresso econômico: o progresso se daria
proceder a um vigoroso ajuste produtivo, que pela passagem das sociedades pré-industriais
resultou numa intensificação de capital nas para outras, de caráter industrial, e destas para

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 237
Suzana Pasternak

pós-industriais. Para dar um exemplo na região Outra visão, chamada de “industrial”,


metropolitana de São Paulo, a proporção de destaca o declínio da grande indústria fordista
empregos formais em serviços em 1991 foi e sua transformação ou substituição por no-
de 45,23%, que passou para 59,26% no ano vas formas de produção, nas quais cresceria
2000). Segundo esta corrente, a RMSP estaria a parte do trabalho qualificado, intelectual,
num caminho positivo. e se reduziria o trabalho manual repetitivo.
Essa visão de crescimento econômico Isso provocaria o crescimento de categorias
pode ser facilmente contestada: o setor de médias qualificadas, de categorias superiores
serviços é extremamente heterogêneo. Há ligadas à pesquisa, ao design, ao marketing, e
os serviços à produção, com aumento das um decréscimo das categorias tradicionais de
tarefas prévias e posteriores à fabricação pro- operários qualificados e não qualificados. Para
priamente dita, característicos das economias muitos, a estrutura geral da mão de obra não
avançadas. E há também o terciário como re- mudaria, mudaria apenas a empresa controla-
fúgio, absorvente da mão de obra por ativi- dora e aconteceria uma dispersão da mão de
dades pouco qualificadas, comum em países obra entre diferentes empresas e regiões. Au-
emergentes com problema de empregos. tores com Preteceille (1995), Hammett (1995),
Segundo o paradigma de Sassen, a rees- Maldonado (2000) ressaltam que em Paris,
truturação produtiva vigente estaria causan- Londres e Madri não se deu um processo de
do um alto crescimento do emprego de baixa dualização social.
qualificação, de caráter precário ou autônomo,
O resultado das mudanças sociais no seu
o que permitiria falar num processo de dualiza- conjunto é a elevada profissionalização
ção ocupacional. Essa visão das categorias sociais, embora se deva
levar em conta o fato de que se abrem ou-
[...] leva à dupla hipótese da desindus- tras linhas de desigualdade nas diferenças
trialização-terciarização e da dualização marcadas pela idade, pelo gênero e pelo
do mercado de trabalho, evoluindo de território. Se, considerando a sociedade
acordo com uma estrutura do tipo am- no seu conjunto, houve uma certa dimi-
pulheta, com a diminuição das categorias nuição das desigualdades na distribuição
médias (entre as quais os operários qua- de renda no período 1981-91 e um cres-
lificados), e o crescimento forte, de um cimento das classes médias, em face de
lado, das categorias superiores ligadas ao uma diminuição dos trabalhadores, as
conjunto das atividades terciárias domi- diferenças experimentadas pelos distintos
nantes (finanças, serviços, etc.); de outro, grupos de idade, a dificuldade das mulhe-
das categorias inferiores necessárias ao res para encontrar trabalho e a diferencia-
funcionamento dessas atividades (peque- ção no assentamento dos grupos sociais
nos empregos de escritório, mensageiros, no território, marcado em grande parte
etc.) e ao funcionamento dos serviços de por um mercado imobiliário que seleciona
consumo que garantem o luxuoso nível a distribuição dos grupos sociais, apon-
de vida das categorias anteriores (restau- tam para um resultado matizado desses
rantes, hotéis, serviços domésticos, etc.). avanços na diminuição das desigualda-
(Preteceille, 1994, p. 71) des. (Maldonado, 2000, pp. 177-178)

238 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

No Brasil, muitas grandes empresas ver- • as mudanças foram num mesmo sentido
ticalmente integradas estão sendo levadas, em todas as metrópoles de cada segmento
por pressão do mercado, a terceirizar suas ati- espacial?
vidades complementares para comprá-las no • há distinções marcantes entre as metrópoles
mercado concorrencial a menor preço. Assim, das diversas regiões?
muitas atividades antes integradas à grande •a precarização realmente aumentou na déca-
indústria passam a serem exercidas por peque- da? Ou seja, houve real aumento dos empregos
nos empresários, autônomos, cooperativas, sem carteira e dos autônomos? A taxa de de-
o que transforma certo número de empregos semprego, por mudança no conceito, não pode
formais em ocupações precárias, sem garan- ser comparada.
tias e direitos trabalhistas. Há um claro pro- • quem são os componentes das categorias só-
cesso de precarização das relações de trabalho cio-ocupacionais em cada metrópole? Por exem-
nos anos 90, o que nem sempre significa dimi- plo: a elite nordestina é semelhante à elite das
nuição do nível de rendimento. metrópoles mais industriais? Quem são as cha-
O presente trabalho analisa a estru- mada camadas médias nas distintas metrópoles
tura sócio-ocupacional em 11 regiões me- brasileiras? A estrutura ocupacional dos traba-
tropolitanas brasileiras que compõem o lhadores manuais urbanos apresenta diferenças?
Observatório das Metrópoles (Belém não foi
analisada):
• no Sudeste, São Paulo, Rio de Janeiro e
Belo Horizonte;
Escala e taxas de incremento
• no Sul, Curitiba e Porto Alegre; da população
• no Nordeste, Nat al, For t aleza, Recife
e Salvador; As metrópoles estudadas pelo Observatório
• no Centro Oeste, Goiânia; apresentam tamanho populacional bem distin-
• a aglomeração urbana de Maringá. Goiânia to: as três metrópoles do Sudeste – Belo Hori-
e Maringá serão analisadas como áreas de zonte, Rio de Janeiro e São Paulo – têm popula-
expansão. ção com mais de 4 milhões de habitantes. São
Pretende-se verificar: Paulo tinha, no ano 2000, mais de 17 milhões
• semelhanças e diferenças entre as estruturas e o Rio de Janeiro, quase 11 milhões. Porto Ale-
sócio-ocupacionais das metrópoles por região; gre, no Sul, Recife e Salvador, no Nordeste, con-
• semelhanças e diferenças entre as mudanças tam com mais de 3 milhões; Fortaleza e Curiti-
nesta estrutura nos ano 90, que marcam a re- ba apresentam tamanho demográfico de mais
estruturação produtiva no país. de 2,5 milhões de pessoas, enquanto Belém,
Tenta-se responder às questões: Goiânia e Natal ficam na casa de 1 milhão. A
• como a reestruturação produtiva afetou a es- aglomeração urbana de Maringá não alcança-
trutura social de cada metrópole brasileira? va 500 mil pessoas no ano 2000. O tamanho da
• há semelhanças e diferenças nestas estrutu- população total apresenta, assim, uma enorme
ras e por quê? amplitude, assim como a população ocupada.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 239
Suzana Pasternak

Tabela 1 – Metrópoles, por tamanho da população total


e da população ocupada em 2000

Metrópole População total População ocupada Taxa de ocupação - %


São Paulo 17.834.664 7.115.257 39,90
Rio de Janeiro 10.872.768 4.119.788 37,89
Belo Horizonte 4.811.760 1.739.846 36,16
Porto Alegre 3.655.834 1.568.232 42,90
Recife 3.335.704 1.090.342 32,69
Salvador 3.018.285 1.115.958 36,97
Fortaleza 2.975.703 1.042.528 35,03
Curitiba 2.725.629 1.162.205 42,64
Belém 1.794.981 624.129 34,77
Goiânia 1.636.465 717.769 43,86
Natal 1.040.109 379.566 36,49
Maringá 473.898 211.459 44,62
Fonte: Sinopse Preliminar do Censo Demográfico de 2000; Censo de 2000.

Percebe-se que as taxas de ocupação as quatro metrópoles do Nordeste, a taxa de


são significantemente maiores nas metrópo- ocupação é menor e apresenta o valor míni-
les do Sul (Curitiba e Porto Alegre) e nas aglo- mo no Recife e tendo valores mais altos em
merações de expansão (Goiânia e Maringá). Fortaleza e Salvador. Essa taxa de ocupação
No Sudeste essa taxa fica em torno de 37%, varia com o nível de desemprego local e com
com São Paulo atingindo quase 40%. Entre a estrutura etária.

Tabela 2 – Metrópoles, taxas anuais de crescimento populacional total,


do núcleo e da periferia entre 1991 e 2000, em percentagem
Metrópole População total População ocupada Taxa de ocupação - %
São Paulo 1,49 0,81 2,55
Rio de Janeiro 1,19 0,76 1,71
Belo Horizonte 3,84 1,16 6,91
Porto Alegre 2,12 0,93 2,89
Recife 1,64 1,03 2,11
Salvador 2,16 1,85 3,59
Fortaleza 2,92 2,17 5,12
Curitiba 3,15 2,13 5,80
Belém 3,37 0,31 21,68
Goiânia 3,24 1,91 6,57
Natal 2,61 1,80 4,22
Maringá 2,26 2,06 2,57
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.

240 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Notou-se, em relação ao incremento po- dividida numa taxa de 1,91% para o núcleo
pulacional 1991-2000, que São Paulo e Rio de central e 6,57% para a periferia. Maringá, por
Janeiro tiveram taxas modestas (1,19 e 1,49 % sua vez, cresce à taxa de 2,26, sendo a única
anuais, respectivamente). No Sudeste, a única aglomeração que cresce de forma mais equili-
metrópole com crescimento elevado foi Be- brada entre centro ( 2,06%) e periferia (2,57%)
lo Horizonte, com taxa de 3,84% anuais. Mas Assim, todas as metrópoles estudadas
essa taxa elevada deve-se principalmente ao tiveram crescimento maior na periferia. As me-
crescimento periférico, de 6,91% anuais. A taxa trópoles do Sudeste mostram esvaziamento
do núcleo central, para as três metrópoles do populacional e funcional de áreas centrais con-
Sudeste, é baixa (0,76% para o Rio de Janeiro, solidadas. Esta frente de urbanização periféri-
0, 81% para São Paulo e 1,16% para Belo Ho- ca, não raro, se traduz em destruição de meio
rizonte). Tanto no Rio, como em São Paulo, com ambiente. Em todas as metrópoles percebe-se
em Belo Horizonte, a periferia cresce bem mais um movimento geral em direção a uma ur-
que o município capital. banização dispersa, com maior proporção de
O nível de crescimento total das metró- população urbana e menos agricultores e uma
poles do Sul é bem mais alto: Curitiba cresceu estrutura sócio-ocupacional mostrando perda
a 3,51% ao ano no período, e Porto Alegre a de trabalhadores industriais, ganho de traba-
2,12%. Nas metrópoles do Sul, o crescimento lhadores de serviços (especializados e não es-
periférico também ultrapassou largamente o pecializados) e maior profissionalização.
do pólo central: em Curitiba foi 2,72 vezes o
da capital, e em Porto Alegre, 3,30 vezes. Porto
Alegre teve apenas 0,93% de taxa de cresci-
mento no núcleo.
Evolução do mercado
No Nordeste, as taxas também foram ele-
formal de empregos
vadas em Fortaleza (2,92% anuais) e Salvador
(2,16). Já no Recife o crescimento populacional A evolução dos empregos formais nas metró-
entre 1991 e 2000 foi de apenas 1,64. Mas nas poles estudadas entre 1991 e 2000 se deu de
metrópoles do Nordeste o fenômeno do maior forma distinta: no Sudeste, São Paulo e Rio de
crescimento dos municípios periféricos também Janeiro apresentaram perda absoluta de postos
é visível, mesmo Recife apresentando taxa de de trabalho formais, mais acentuada no Rio
incremento na periferia de 2,11% anuais. Em que em São Paulo, enquanto em Belo Horizonte
Fortaleza e Salvador, essas taxas ultrapassam o número absoluto de postos de trabalho su-
3,5% anuais. Em Natal, a taxa de crescimento biu um pouco na década. No Sul, tanto Porto
total atingiu 2,61% anuais no período, também Alegre como Curitiba tiveram aumento, grande
com a periferia crescendo 2,34 vezes o centro em Curitiba (a maior taxa de aumento entre
(a taxa dos municípios periféricos foi de 4,22% as metrópoles estudadas); no Nordeste, onde
ao ano, e a do município central de Natal, de todas as metrópoles apresentaram aumento, a
1,80%). Em Goiânia, a taxa bastante alta de maior taxa de incremento aconteceu em Salva-
crescimento total de 3,24% ao ano pode ser dor, com ganho de 1,98% anuais, num total de

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 241
Suzana Pasternak

113 mil novos empregos formais no período. As Fortaleza e Belo Horizonte, certa estagnação no
duas áreas de expansão tiveram altas taxas de Recife, Natal e Porto Alegre e perda nas duas
incremento anual de empregos. Tanto Maringá maiores metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo.
como Goiânia viram seus empregos formais No conjunto as metrópoles estudadas ganha-
crescerem a taxas maiores que 3,5% anuais, ram 475 mil empregos formais no período. As
com Goiânia ganhando mais de 100 mil postos duas maiores metrópoles brasileiras, Rio de São
de trabalho no período. A Tabela 2 abaixo mos- Paulo, perderam 257 mil postos de trabalho
tra os ganhos em Curitiba, Maringá, Salvador, nos anos 90.

Tabela 3 – Evolução dos empregos formais entre 1991 e 2000,


metrópoles estudadas

Empregos formais
Região RM
1991 2000 Diferença Taxa - %
Rio de Janeiro 2.355.039 2.117.078 -237.961 -0,87
Sudeste São Paulo 4.749.809 4.630.809 -119.000 -0,28
Belo Horizonte 1.018.915 1.192.068 173.153 1,76
Porto Alegre 884.943 953.005 68.062 0,83
Sul
Curitiba 505.113 730.814 225.701 4,19
Fortaleza 419.474 495.382 75.908 1,87
Natal 195.029 210.830 15.801 0,87
Nordeste
Recife 591.460 621.075 29.615 0,54
Salvador 588.685 702.172 113.514 1,98
Maringá 65.972 94.839 28.867 4,12
Expansão
Goiânia 281.826 384.024 102.198 3,50
Fonte: RAIS/MTE, 1991 e 2000.

As taxas de informalidade do trabalho, quase 53% da população ocupada não têm


estimadas a partir da comparação entre os vínculo formal de emprego. Em Salvador, esse
empregos formais e a população ocupada, valor é menor que o de São Paulo. De qualquer
aumentaram em todas as metrópoles estu- forma, o crescimento do assalariamento sem
dadas no período. A mais baixa, de São Pau- carteira é generalizado nos anos 90. A evolu-
lo em 1991, alcançava, naquela data, o valor ção dos mercados de trabalho no que diz res-
de menos de 20%, aumentando para 35% no peito a este item apresenta forte semelhança,
ano 2000. No Rio de Janeiro, a taxa de infor- com a informalidade crescendo em todas as
malidade no ano 2000 tem um padrão “nor- metrópoles, com exceção de Maringá, onde a
destino”, de quase 50%. Nas metrópoles do taxa, que era extremamente elevada, caiu um
Nordeste, o valor maior é o de Fortaleza, onde pouco no período.

242 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Tabela 4 – Estimativa da informalidade no trabalho


(empregos formais/população ocupada)

Região Metrópole 1991 - % 2000 - %


Sudeste Rio de Janeiro 35,54 47,20
São Paulo 19,24 34,92
Belo Horizonte 24,91 29,93
Sul Porto Alegre 50,43 52,90
Curitiba 34,40 34,71
Nordeste Fortaleza 49,45 52,68
Natal 32,83 43,93
Recife 38,70 43,04
Salvador 29,75 37,08
Expansão Maringá 63,84 58,95
Goiânia 41,62 44,17
Fonte: MTE/RAIS e IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.

A estrutura dos empregos do mercado dentro da indústria, foram terceirizados. Entre


formal mostrou, para as metrópoles do Sudes- estes setores estão principalmente atividades
te, forte queda dos empregos na indústria e ligadas à segurança, limpeza e alimentação.
grande incremento relativo dos empregos nos Esses postos de trabalho, antes computados
serviços. A metrópole mais industrial, São como industriais, passaram a ser terceirizados
Paulo, foi a que mais perdeu participação do e entraram nas estatísticas como serviços.
emprego formal na indústria (perda de 6,88 Acredita-se que parte da diminuição dos pos-
pontos percentuais), seguida pelo Rio de Ja- tos industriais deva-se a este fenômeno, o que
neiro (perda de 5,96 pontos percentuais) e não exclui também uma perda real de empre-
por Belo Horizonte (perda de 3,22 pontos gos na indústria.
percentuais). Mesmo assim, a participação Os subsetores industriais de São Paulo
relativa da indústria na metrópole paulista é mostraram pouca mudança relativa em 1991
ainda a maior do Sudeste. De outro lado, a e 2000: nas duas datas, os setores predomi-
maior participação relativa nos serviços está nantes foram os das indústrias metalúrgica,
no Rio de Janeiro. Deve ser lembrado sempre farmacêutica, têxtil e construção civil. Aliás,
que no fim da década de 80 e início de 90, houve aumento da participação relativa na
com a abertura comercial, se intensificaram construção civil de 12,76% dos empregos for-
os processos de reengenharia para ajuste de mais em 1991 para 16,35% em 2000. Os em-
custos e aguentar a concorrência com produ- pregos na indústria de matéria de transporte,
tos importados. Esta reengenharia implicava que alcançavam 10,48% dos empregos em
redução de custos e terceirização de ativida- 1991, caem para 8,77% no ano 2000. O perfil
des. Assim, muitos setores de atividade, antes dos empregos industriais no Rio é distinto do

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 243
Suzana Pasternak

paulista: apresenta maior peso na construção O perfil dos empregos em Belo Horizon-
civil (19% dos empregos em 1991 e 23,19% no te apresenta grande peso na indústria meta-
ano 2000), a indústria metalúrgica é relativa- lúrgica (mais de 22% em 1991), nos serviços
mente menos importante do que em São Pau- de utilidade pública (9,02% em 1991), na
lo, mas a químico-farmacêutica e a têxtil tem indústria de bebidas e alimentos (10,78% no
peso grande tanto em 1991 como em 2000. ano 2000). O grande peso do emprego indus-
Outras diferenças grandes surgem nos serviços trial em Belo Horizonte é o da construção civil,
industriais de utilidade pública, que no Rio em- com 30,16% dos empregos em 1991 e 31,98%
pregam mais de 10% da força de trabalho for- em 2000. Belo Horizonte compartilha essa for-
malmente empregada, enquanto em São Paulo te proporção de empregados na construção
esse percentual passa de 2,61% para 3,52%, civil com Recife (onde a proporção é 31,60%
entre 1991 e 2000 e na indústria de alimentos no ano 2000), com Salvador 9,41% em 1991
e bebidas, no Rio com 12,65% dos empregos e e 42,7% em 2000) e Goiânia (43% em 1991 e
São Paulo com 7,28%. 31% no ano 2000).

Tabela 5 – Estrutura do emprego formal nas metrópoles do Sudeste,


1991 e 2000, em %
Rio de Janeiro São Paulo Belo Horizonte
Setor
1991 2000 1991 2000 1991 2000
Indústria 21,10 15,14 35,22 25,34 24,90 21,68
Comércio 13,14 17,12 11,03 15,12 10,81 13,33
Serviços 56,54 67,54 45,23 59,26 54,35 64,14
Agropecuária 0,24 0,18 0,14 0,27 0,41 0,85
Outros/ig 8,98 0,00 8,37 0,00 9,52 0,00
Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000.

No Sul também acontece uma queda na 32,12% dos seus empregos formais na indús-
proporção de empregos industriais. Porto Ale- tria em 1991, perde mais de 11 pontos percen-
gre tem queda insignificante, de apenas 1,7 tuais e apresenta profunda transformação da
pontos percentuais, conservando seu perfil de estrutura de emprego em 2000, com ganho de
cidade operária. Curitiba, entretanto, que tinha 18 pontos em serviços.

244 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

O perfil industrial de Curitiba apre- químico-farmacêutica, a de alimentos e bebi-


senta uma grande transformação nos anos das e a construção civil.
90: os empregos na indústria de material de Porto Alegre tem perfil industrial mui-
transporte, que eram apenas 3,77% dos em- to específico: 26,65% dos empregos formais
pregos formais, sobem para 10,25% em 2000. alocavam-se na indústria de calçados em
Em números absolutos, isso significou um ga- 1991, proporção com pequena mudança pa-
nho de quase 12 mil postos de trabalho for- ra 24% em 2000. Em números absolutos, a
mais. Provavelmente a instalação da Renault indústria calçadista perde quase 7 mil em-
na região metropolitana foi responsável por pregos no período, mas é ainda a grande em-
esse ganho. Outros setores com nível grande pregadora, com 1/4 dos empregos formais no
de emprego foram a indústria mecânica, a setor secundário.

Tabela 6 – Estrutura do emprego formal nas metrópoles do Sul,


1991 e 2000, em %
Curitiba Porto Alegre
Setor
1991 2000 1991 2000
Indústria 35,12 23,86 29,84 28,15
Comércio 13,58 15,20 12,36 13,88
Serviços 42,34 60,33 52,02 57,25
Agropecuária 0,38 0,60 0,40 0,71
Outros/ig 11,58 0,00 5,38 0,00
Total 100,00 100,00 100,00 100,00
Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000.

Fortaleza surge como a metrópole nor- Recife têm estrutura de empregos muito seme-
destina com maior proporção de empregos for- lhante no ano 2000. Em Salvador e no Recife,
mais na indústria: 27% em 1991 e 26% no ano o aumento relativo dos empregos nos serviços
2000. Natal e Recife ficam com cerca de 19% é alto. Já em Natal esta proporção já era alta
de emprego industrial, e Salvador tem apenas em 1991, subindo ligeiramente em 2000. Em
15% no ano 2000. De outro lado, Salvador apre- Fortaleza vai existir a menor proporção de em-
senta mais de 70% de sua força de trabalho pregos formais em serviços entre as metrópoles
formal nos serviços, mais que o Natal e Recife, nordestinas, e o aumento entre 1991 e 2000 foi
onde o percentual é de mais que 65%. Natal e de pouco mais de 4 pontos percentuais.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 245
Suzana Pasternak

Tabela 7 – Estrutura do emprego formal, metrópoles do Nordeste,


1991 e 2000, em %
Fortaleza Natal Recife Salvador
Setor
1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000
Indústria 27,29 26,35 18,42 19,55 24,35 19,52 19,30 14,65
Comércio 11,36 14,46 7,76 14,10 11,36 13,92 11,02 13,66
Serviços 53,81 58,03 64,6 65,25 49,72 65,12 62,66 71,13
Agropec. 2,05 1,16 0,29 1,09 0,56 1,41 0,57 0,56
Outros/ig 5,49 0,00 8,67 0,00 14,01 0,00 6,45 0,00
Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000.

O perfil industrial das metrópoles do construção civil, o outro ramo industrial com
Nordeste é distinto das do Sul e Sudeste. alta proporção é o da indústria de produtos
Nessas, a proporção dos empregos formais alimentícios, com 25% dos empregos formais
na construção civil era de ordem de 20% em na indústria em 1991 e 21% em 2000. Em Sal-
2000, com exceção de Belo Horizonte, onde vador, 15% dos empregos na indústria estão
alcançava 32%. Já Recife, Natal e Salvador na indústria química, 10% nos produtos ali-
apresentam percentuais da ordem de 26% a mentícios. Nessas duas metrópoles, cerca de
43% de emprego na construção civil. Forta- 10% dos empregos formais encontram-se nos
leza diminui sua proporção de 23% em 1991 serviços industriais de utilidade publica, dife-
para 19% no ano 2000. rentemente de Fortaleza e Natal.
O outro ramo industrial com for te As duas aglomerações chamadas de
proporção de empregos formais é o da expansão: Goiânia e a aglomeração urbana
indústria têxtil: em Fortaleza alcança 35% em de Maringá apresentam perfil diverso. Goiâ-
2000 (45 mil pessoas), e em Natal, 38% (15,5 nia tem pouco mais de 20% dos empregos
mil empregos). formais na indústria, enquanto Maringá che-
Salvador e Recife têm em comum com ga a quase 31%. De outro lado, o setor servi-
as outras metrópoles nordestinas a grande ços aparece com forte percentual em Goiânia
proporção em construção civil (32% no Reci- (61,5% em 2000), e em Maringá tem apenas
fe e 43% em Salvador). Diferem, entretanto, 42,24% dos empregos. Entre 1991 e 2000,
de Fortaleza e Natal na distribuição dos ou- as duas metrópoles se mantiveram com rela-
tros setores industriais: no Recife, além da tiva estabilidade.

246 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Tabela 8 – Estrutura do emprego formal nas metrópoles de Goiânia e Maringá

Goiânia Maringá
Setor
1991 2000 1991 2000
Indústria 20,76 21,05 26,14 30,42
Comércio 12,01 16,62 18,06 23,01
Serviços 59,90 61,45 43,82 42,32
Agropecuária 0,41 0,88 5,74 4,24
Outros/ig 6,92 0,00 6,23 0,00
Total 100,00 100,00 100,00 100,00
Fonte: MTE/RAIS, de 1991 e 2000.

O perfil industrial de cada uma dessas números absolutos, a indústria da madeira e


metrópoles é bem específico. Na RM de Goiâ- mobiliário passou de 1,7 mil para 2,3 mil em-
nia, tal como nas metrópoles do Nordeste, a pregados, a têxtil de 3 mil para 6 mil e a cons-
proporção dos empregos formais na constru- trução civil de quase 4 mil para mais de 7 mil.
ção civil é elevada: 43% em 1991 e 31% no Concluindo, pode-se observar que a es-
ano 2000. A indústria têxtil aparece também trutura do mercado de trabalho formal apre-
como grande empregadora, e crescente, com senta diferenças entre as metrópoles estuda-
proporção aumentando entre 1991 e 2000 de das. No Sul e Sudeste, São Paulo, Belo Horizon-
8,60% para 14,85% dos empregos formais na te, Curitiba e Porto Alegre têm mais de 20% do
indústria subindo de 5 mil para 12 mil empre- seu emprego formal no setor secundário. Nas
gos. Os empregos na indústria de produtos ali- áreas de expansão do emprego formal, onde
mentícios também sobem de 16% para 24%, sua taxa de crescimento é superior a 3% ao
aumentando de 9 mil postos de trabalho pa- ano, acontece o mesmo: tanto Goiânia como
ra 19 mil. De outro lado, o peso dos serviços Maringá apresentam mais de 20% da força de
industriais de utilidade pública diminui, assim trabalho empregada formalmente na indústria.
como o número absoluto de empregados. No Rio de Janeiro, isso não acontece, com ape-
Entre construção civil, produtos alimentícios nas 15% do emprego formal no setor secundá-
e têxtil, estão 70% dos empregos formais no rio no ano 2000.
setor secundário. Nas metrópoles do Nordeste, o perfil é
Já em Maringá, além da indústria da distinto: apenas Fortaleza aparece com mais de
construção civil (com 22% em 1991 e 24% 20% do emprego formal na indústria. Recife e
em 2000), alimentos e têxtil, tem grande peso Natal aproximam-se desta cifra, mas Salvador,
a indústria de madeira e mobiliário, com 10% tal como o Rio de Janeiro, tem apenas cerca de
dos empregos em 1991 e 8% em 2000. Em 15% do emprego formal no setor secundário.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 247
Suzana Pasternak

O perfil dos setores industriais onde se Goiânia e Maringá também têm grande
aloca essa mão de obra também difere bastan- proporção de empregos na construção civil.
te: no Sudeste, a não ser em Belo Horizonte, a Mas o resto de seu perfil industrial é distinto:
proporção de empregados na construção civil em Maringá, nota-se a grande importância da
fica inferior a 20% da mão de obra emprega- indústria de alimentos, têxtil e de madeira e
da na indústria. O perfil dos empregos no setor mobiliário. Em Goiânia, produtos alimentícios
secundário é também específico, com concen- e têxteis.
tração nos setores de metalurgia, material de Essas estruturas distintas do emprego
transporte, indústria química e indústria têxtil, formal e o perfil da economia de cada metró-
no caso de São Paulo; química e têxtil e ser- pole se refletirão na evolução das categorias
viços de utilidade pública, no caso do Rio de sócio-ocupacionais.
Janeiro e metalúrgica e produtos alimentícios,
além da construção civil, para Belo Horizonte.
No Sul, chama a atenção a evolução da
mão de obra formal em Curitiba: material de
Estrutura sócio-ocupacional
transporte, que empregava 6 mil pessoas em
nas Regiões Metropolitanas
1991, vai empregar 18 mil no ano 2000. A in- do Brasil, 1991 e 2000
dústria de alimentos, com 13 mil, passa a 18
mil também, no ano 2000. As indústrias de Para análise comparativa, sintetizou-se a es-
material de transporte, químico-farmacêutica trutura sócio-ocupacional urbana em quatro
e produtos alimentícios agregam 30% dos em- grandes grupos:
pregos industrias. Já na RM de Porto Alegre, • categorias superiores, compreendendo os
domina a indústria de calçados, com cerca de dirigentes, profissionais de nível superior e pe-
25% do total de empregos. Nas duas metró- quenos empregadores;
poles do Sul, o emprego formal na construção • categorias médias;
civil não alcança 20% no ano 2000. • categorias populares urbanas, com trabalha-
As metrópoles do Nordeste, como já foi dores de terciário especializado, não especiali-
colocado, têm grande proporção de empregos zado e secundários;
na construção civil diferentemente das outras • agricultores.
metrópoles. Em Salvador, o percentual chega a Devido à impossibilidade de compara-
43%, representando 44 mil empregos no ano ção das proporções tal como se apresentam
2000. Em 1991, o número absoluto era ainda nas tabelas, dado o conceito distinto utilizado
maior, 47 mil postos de trabalho. Salvador e nos Censos de 1991 e 2000 para a definição
Recife apresentam, tal como o Rio de Janeiro, de ocupado, verificou-se apenas o incremento
10% dos empregos em serviços de utilidade relativo, colocando-se como limiar a porcenta-
pública. Além da construção civil, a indústria gem de 20%. Assim, quando uma proporção
forte no Nordeste é a têxtil, a não ser em Salva- aumentava ou diminuía mais que 20%, consi-
dor, onde sua representação é pequena. derava-se relevante.

248 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles do Sudeste

Tabela 9 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Sudeste,


pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição
maior que 20% no período

Rio de Janeiro São Paulo Belo Horizonte


Grandes categorias
1991 2000 1991 2000 1991 2000
Dirigentes 1,45 1,17 2,16 1,37 1,64 1,27
Profissionais nível superior 6,95 8,76 5,54 7,83 5,67 7,44
Pequenos empregadores 2,65 2,45 3,14 2,65 3,34 2,81
Categorias superiores 11,05 12,38 10,84 11,85 10,65 11,52
Categorias médias 30,36 27,78 32,03 28,15 29,01 26,13
Trabalhadores terciário especializado 16,68 20,72 15,19 19,34 15,48 19,05
Trabalhadores secundário 22,44 20,18 27,35 24,01 25,03 23,60
Trabalhadores terciário não especializado 18,43 18,39 13,71 16,16 18,33 18,55
Categorias populares urbanas 57,55 59,29 56,25 59,51 58,84 61,20
Agricultores 1,04 0,56 0,87 0,50 1,50 1,14
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles.

Em vermelho = aumento maior que 20%


Em verde = diminuição menor que 20%

Nota-se semelhança entre as distribui- • tanto no Rio, como em São Paulo e em Be-
ções sócio-ocupacionais nas metrópoles do Su- lo Horizonte, o maior peso entre as categorias
deste e sua dinâmica na década de 90: sócio-ocupacionais encontra-se entre as catego-
• nas três, a proporção de categorias superio- rias médias. Nas três metrópoles, essa proporção
res situa-se em torno de 10% em 1991, aumen- diminui em 2000, passando de porcentagem em
tando em 2000; torno de 30% para algo em volta de 27%;
• nas três, o peso dos dirigentes cai bastante • nas três metrópoles, a proporção de cate-
entre 1991 e 2000; a maior queda se dá em São gorias populares urbanas aumentou, sobretu-
Paulo, onde a proporção era maior em 1991; do devido ao aumento – superior a 20% – do
• nas três metrópoles, verifica-se nítido au- terciário especializado. Na metrópole de São
mento dos profissionais de nível superior, maior Paulo, notou-se também, e apenas nela, um in-
que 20% no período; cremento do terciário não especializado;

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 249
Suzana Pasternak

• nas três metrópoles, a proporção de agricul- relativo nos empregos formais em serviços, o
tores é pequena, e está com diminuição relati- que se refletirá no crescimento dos trabalha-
va acentuada, maior que 20%. dores do terciário especializado, maior que
Lembrando a Tabela 4, pode-se asso- 20% no período, e na queda dos trabalhado-
ciar o enorme incremento do terciário não res do secundário. Percebe-se nas metrópo-
especializado na metrópole paulista ao gran- les do Sudeste:
de aumento da estimativa de informalidade, • forte profissionalização;
19% em 1991 e 35% no ano 2000. Foi São • ligeira queda das categorias médias, de pa-
Paulo a metrópole que mais perdeu partici- tamar maior que 30% para valores mais pró-
pação no emprego formal. E as três metró- ximos de 27%;
poles tiveram forte queda nos empregos • aumento de terciário especializado;
formais na indústria e grande incremento • diminuição dos agricultores.

Estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles do Sul

Tabela 10 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Sul,


pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição maior que 20% no período

Porto Alegre Curitiba


Grandes categorias
1991 2000 1991 2000
Dirigentes 1,48 1,41 1,72 1,44
Profissionais nível superior 5,87 7,59 5,99 7,55
Pequenos empregadores 3,48 3,23 3,36 3,27
Categorias superiores 10,83 12,23 11,07 14,46
Categorias médias 29,50 26,94 28,39 27,28
Trabalhadores terciário especializado 14,90 17,42 15,22 18,15
Trabalhadores do secundário 29,23 27,35 26,10 25,13
Trabalhadores terciário não especializado 14,04 14,70 14,75 14,29
Categorias populares urbanas 58,17 59,47 56,07 57,57
Agricultores 1,50 1,35 4,47 2,68
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles.

Em vermelho = aumento maior que 20%


Em verde = diminuição menor que 20%

250 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Em relação às metrópoles do Sul, pode- • há maior estabilidade na estrutura das me-


-se notar: trópoles no Sul que nas metrópoles do Sudeste;
• tal como entre as metrópoles do Sudeste, há • o peso dos trabalhadores industriais é maior
um aumento das categorias superiores, sobre- no Sul que no Sudeste;
tudo devido a um forte incremento nos profis- • percebe-se também uma profissionalização
sionais de nível superior; tanto em Curitiba como em Porto Alegre;
• percebe-se perda dos dirigentes, mas menos • há diminuição dos agricultores, mais forte
acentuada que entre as metrópoles do Sudeste; em Curitiba;
• embora perceba-se pequeno aumento das • as categorias médias caem, de quase 30%
categorias populares urbanas nas duas me- para proporção mais próxima a 25%.
trópoles, o incremento entre os trabalhadores Os empregos formais cresceram nas me-
terciários especializados é menor que entre as trópoles do Sul, diferentemente de São Paulo e
metrópoles do Sudeste; Rio de Janeiro. Em Curitiba, o saldo de empre-
• de outro lado, o peso dos trabalhadores do gos formais entre 1991 e 2000 foi alto, de mais
secundário em Curitiba e em Porto Alegre é de 200 mil postos de trabalho. As estimativas
maior que nas metrópoles do Sudeste; de informalidade, embora aumentando no pe-
• tal como nas metrópoles do Sudeste, há per- ríodo, cresceram muito pouco. Em Porto Alegre,
da de trabalhadores do secundário, mas menos o peso dos empregos industriais formais caiu
acentuada. minimamente, de 29,84% para 28,15%; já em
• em Curitiba, em 1991, a proporção de agri- Curitiba a queda dos empregos formais indus-
cultores era considerável; quase 5% dos ocupa- triais foi grande, de mais de 11 pontos percen-
dos. Ela decresce fortemente em 2000, indo tuais. Essa queda nos empregos formais do
para 2,7% dos ocupados. secundário não se reflete na proporção de tra-
Assim, sintetizando as mudanças na es- balhadores do secundário de 2000 em Curitiba,
trutura sócio-ocupacional do Sul, nota-se que: que ficou bem próxima da de 1991.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 251
Suzana Pasternak

Estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles do Nordeste

Tabela 11 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles do Nordeste,


pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição maior que 20% no período

Fortaleza Natal Recife Salvador


Grandes categorias
1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000
Dirigentes 0,79 1,10 0,90 1,21 0,40 1,21 0,48 0,40
Profissionais superiores 3,87 5,78 6,11 7,08 5,66 6,91 1,41 2,74
Pequenos empregadores 2,62 1,94 2,21 2,47 2,56 2,21 1,75 2,96
Categorias superiores 7,28 8,82 9,22 10,76 8,62 10,33 3,64 5,10
Categorias médias 23,18 22,89 26,06 25,39 26,61 26,43 18,67 19,83
Trabalhadores terciário especializado 15,77 20,89 16,87 20,23 16,44 21,54 15,87 20,51
Trabalhadores secundário 27,17 24,71 22,69 21,70 20,97 19,89 34,84 28,49
Trabalhadores terciário não especializado 19,43 19,41 18,43 17,26 19,88 20,04 20,86 21,05
Categorias populares urbanas 62,37 65,01 57,99 59,19 57,29 61,47 71,57 70,05
Agricultores 7,18 3,27 6,74 4,65 3,45 1,77 6,08 4,41

Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles.

Em vermelho = aumento maior que 20%


Em verde = diminuição menor que 20%

As estruturas sócio-ocupacionais das me- Salvador apenas de 3,6%, que sobe para 5%
trópoles nordestinas têm mais em comum en- em 2000; de outro lado, o peso dos agricultores
tre si que em relação às metrópoles do Sudeste em Fortaleza, Natal e Salvador em 1991 alcan-
e do Sul: çava mais de 6%; além disso, nas metrópoles
• apenas em Natal não houve aumento maior do Nordeste há ganho entre os dirigentes, o
que 20% nas categorias superiores, embora que não acontece no Sudeste e no Sul;
mesmo em Natal observa-se incremento nesta • no ano 2000, há uma aumento das cate-
proporção. A proporção de ocupados perten- gorias populares urbanas em todas as quatro
centes às categorias superiores era bem menor metrópoles nordestinas estudadas, assim como
em 1991 que nas metrópoles do Sudeste e Sul, uma redução das camadas médias, com exce-
e mesmo em 2000 continua menor: no Sudeste ção de Salvador;
e no Sul, em 1991, a proporção de ocupados • a dinâmica 1991-2000 apresenta semelhan-
das categorias superiores ficava em torno de ças: todas as metrópoles do Nordeste apre-
11%, e em 2000, de 12%; já nas metrópoles sentam ganho significativo de trabalhadores
do Nordeste, em 1991, Fortaleza, Natal e Re- do terciário especializado e perda importante
cife apresentavam proporções entre 7 a 9%, e dos agricultores;

252 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

• em relação às categorias superiores, a Nordeste, a porcentagem de ocupados classi-


evolução das metrópoles do Nordeste não é ficados como profissionais de nível superior é
uniforme: Fortaleza, Natal e Recife mostram menor que no Sul (cerca de 7%) e no Sudeste
ganho significativo de dirigentes, o que não (cerca de 7,5%). Em Salvador, a porcentagem
acontece em Salvador; de outro lado, Fortale- não atinge 3%;
za, Recife e Salvador mostram crescente pro- • aumento das categorias superiores como
fissionalização, o que não sucede em Natal. um todo;
Fortaleza é a única metrópole que demonstra • a proporção de trabalhadores do terciário
perda de pequenos empregadores e Salvador, especializado em 2000 alcança mais de 20%
ganho destes pequenos empregadores. dos ocupados em todas as quatro metrópo-
Nas metrópoles do Nordeste, há ganho les; no Sul, era cerca de 17% e no Sudeste,
absoluto de empregos formais no período 19%. Mas, tal qual nas outras regiões, en-
1991-2000, com taxas anuais de quase 2% ao tre 1991 e 2000 essa proporção aumentou
ano em Fortaleza e Salvador. Apesar disso, há significativamente;
forte aumento da informalidade nestas metró- • a proporção de trabalhadores do secun-
poles, com taxas maiores que 40% de traba- dário é alta em Fortaleza e em Salvador, tal
lho informal (menos Salvador, com 37%). Per- como em Curitiba e em Porto Alegre. No Re-
cebe-se assim nas metrópoles do Nordeste: cife e em Natal, ela é bem menor, perto dos
• aumento significativo dos dirigentes, dife- 20%;
rentemente das metrópoles do Sul e do Sudes- • as categorias médias representam menos
te. A proporção é bem menor que nas outras de 20% em Salvador, 23% em Fortaleza e em
metrópoles, mas o incremento é significativo; torno de 25% no Recife e em Natal. Nas me-
• profissionalização, com aumento da pro- trópoles do Sudeste e do Sul, as proporções
porção dos profissionais de nível superior. No são maiores, cerca de 27%.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 253
Suzana Pasternak

Estrutura sócio-ocupacional
das metrópoles das áreas de expansão

Tabela 12 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles das áreas de expansão,


pelas 8 categorias e indicação de aumento/diminuição maior que 20% no período

Maringá Goiânia
Grandes categorias
1991 2000 1991 2000
Dirigentes 1,75 1,25 1,45 1,62
Profissionais nível superior 4,00 5,39 5,37 6,53
Pequenos empregadores 5,32 4,16 4,05 3,44
Categorias superiores 11,07 10,80 10,87 11,58
Categorias médias 21,37 20,90 27,77 24,52
Trabalhadores terciário especializado 13,79 17,15 17,48 18,98
Trabalhadores do secundário 25,23 26,53 24,49 24,79
Trabalhadores terciário não especializado 16,71 16,42 17,49 18,10
Categorias populares urbanas 55,73 60,10 59,46 61,86
Agricultores 11,82 8,20 1,89 2,03
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000. Tabulações especiais Observatório das Metrópoles.

Em vermelho = aumento maior que 20%


Em verde = diminuição menor que 20%

Maringá e Goiânia apresentam taxas de empregos formais na indústria, enquanto


anuais de crescimento populacional maiores que em Maringá essa proporção chega a 31%. De
2% no período 1991-2000. Foram chamadas de outro lado, o setor serviços aparece com forte
expansão porque são as únicas, entre todas as percentual em Goiânia, com 61,5% dos empre-
metrópoles estudadas, com taxa anual de cres- gos formais em 2000, enquanto em Maringá
cimento do emprego formal maiores que 3,5% atinge 42% dos empregos formais.
ao ano (Maringá com 4,12% anuais e Goiânia A estrutura sócio-ocupacional também
com 3,55 ao ano). As duas aglomerações apre- difere, com a proporção de categorias médias
sentavam alta informalidade em 1991– Marin- em Goiânia bem superior à de Maringá. O per-
gá com mais de 60% e Goiânia com pouco mais centual de agricultores de Maringá era bastan-
de 40%. Essa informalidade caiu em Maringá e te alto em 1991 e continua alto em 2000, em-
subiu ligeiramente em Goiânia. bora com redução significativa.
Como já foi dito, o perfil dos empregos A única comunalidade entre as duas
formais nas duas metrópoles de expansão é aglomerações é o forte aumento de profissio-
bem diverso: Goiânia tem pouco mais de 20% nais de nível superior.

254 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Considerações finais sobre a estrutura O único local onde algo semelhante à


socioespacial e sua dinâmica tendência descrita por Sassen se manifestou,
com aumento das categorias superiores e in-
feriores e perda das médias, foi na metrópo-
Todas as metrópoles estudadas tiveram cresci-
le paulista. Mesmo assim, a proporção que
mento demográfico maior na periferia que no
aumentou entre as categorias superiores não
núcleo e muitas apresentam esvaziamento po-
foi a dos dirigentes, mas a hierarquicamente
pulacional e funcional das áreas centrais mais
inferior – a dos profissionais de nível superior.
consolidadas. Não raro, o movimento geral em
Mas em São Paulo existirá um certo achata-
direção a uma urbanização mais dispersa tem
mento das categorias médias e aumento das
forte impacto sobre o meio ambiente.
populares urbanas, sobretudo devido ao au-
Embora as metrópoles apresentem espe-
mento dos trabalhadores do terciário não es-
cificidades, há certa semelhança nas suas es-
pecializado compensando a diminuição dos
truturas: no ano 2000, em todas predominam
trabalhadores do secundário. Nas outras duas
os ocupados nas ocupações médias, a partici-
metrópoles do Sudeste, Rio de Janeiro e Belo
pação das categorias superiores é reduzida, as-
Horizonte, não se verificou aumento do terciá-
sim como a dos agricultores. A comparação de
rio não especializado. Nas metrópoles do Nor-
1991 com 2000 mostra a perda de agricultores,
deste, percebeu-se aumento das categorias
a perda de trabalhadores industriais, o ganho
superiores, tanto dirigentes como profissionais
de trabalhadores de serviços e a maior profis-
de nível superior e manutenção da proporção
sionalização com o aumento dos trabalhadores
do terciário não especializado.
de nível superior.
Surgem algumas diferenças na dinâmica
sócio-ocupacional entre o Sudeste e o Nordeste:
• no Sudeste, é nítida a perda de dirigentes, Perfil de algumas categorias
enquanto no Nordeste percebe-se um ganho sócio-ocupacionais
nas categorias superiores e um ganho entre os
dirigentes; A questão básica à qual este item pretende res-
• no Sudeste, percebe-se perda considerável ponder liga-se às características dos componen-
nas categorias médias, enquanto no Nordeste tes das categorias sócio-ocupacionais em cada
há ganho em Salvador e perdas muito tênues grande região brasileira. Através de alguns in-
em Natal, Fortaleza e Recife; dicadores demográficos, socioeconômicos e da
• em São Paulo, houve aumento significativo moradia, pretende-se comparar perfis das diver-
dos trabalhadores do terciário não especiali- sas categorias sócio-ocupacionais nas distintas
zado; no Rio, praticamente a proporção destes metrópoles, respondendo a questões como:
trabalhadores se manteve. Tanto em Belo Hori- • quem são os componentes da elite? Serão
zonte como nas metrópoles do Nordeste a pro- eles distintos nas metrópoles do Sudeste e do
porção dos não especializados diminui entre Nordeste? Esta elite vem se modificando no
1991 e 2000. tempo?

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 255
Suzana Pasternak

• quais as características das categorias médias Censos Demográficos de 1991 e 2000, re-
nas diferentes metrópoles e nas distintas datas? lacionadas à demografia, renda, trabalho,
• qual o peso de cada categoria ocupacional educação e moradia. Algumas metrópo-
nos trabalhadores manuais urbanos de cada ti- les não tiveram tempo hábil para o deta-
po de metrópole? Quem são estes trabalhado- lhamento desses indicadores. Assim, esta
res manuais urbanos e suas características se parte do texto reunirá informações de São
mantiveram na década? Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Por-
Para embasar essas questões, utiliza- to Alegre, Curitiba, Natal, Recife, Fortaleza
ram-se alguns indicadores fornecidos pelos e Salvador.

Perfil das categorias superiores


a) dirigentes

Quadro 2 – Indicadores para os dirigentes nas metrópoles do Sudeste

São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte


Indicadores sintéticos
1991 2000 1991 2000 1991 2000
Demografia
– % homens 82,51 68,26 82,1 67,6 82,21 67,86
– % 65 anos e mais 3,54 4,39 4,4 6,1 3,48 4,28
– % brancos 85,68 87,78 86,5 84,3 81,69 81,35
– % nascidos no estrangeiro 22,84 30,79 – – 1,56 1,33
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado 5,99 6,24 5,5 2,9 13,92 13,89
– tempo médio dos migrantes no Estado 5,11 5,09 – – 4,92 5,37
Renda
– média renda domiciliar sm 26,68 22,03 – 55,83 25,56 28,80
– média renda per capita sm 8,55 13,93 – – 7,99 11,78
Trabalho
– % de contribuintes à previdência 87,38 100,00 – 39,3 89,88 51,38
– % de conta própria sem previdência – – 0,00 0,1 0,00 0,00
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram 11,86 13,14 12,0 13,3 11,96 13,10
Moradia
– % apartamentos 40,39 49,84 62,3 59,7 51,12 56,04
– % casas com saneamernto escoado 93,97 97,18 90,3 95,7 92,47 95,66
– média de banheiros 2,58 2,72 – – 2,87 2,89
Fonte: Censos Demográficos de 1991 e 2000.

256 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Há inúmeras comunalidades entre os metrópole paulista, local preferencial da sede


integrantes dos dirigentes nas metrópoles de grandes corporações;
do Sudeste: • em relação à migração, em Belo Horizonte
• os homens são predominantementes, cerca há migrantes mais recentes. Mas isso não se
de 80% em 1991, com entrada de mulheres em reflete num tempo médio menor dos migrantes
2000, quando a proporção masculina desce pa- no Estado, perto de 5 anos para as elites nas
ra cerca de 67% nas três metrópoles; metrópoles do Sudeste;
• a proporção de pessoas com 65 anos e mais • a renda média domiciliar da elite no Rio de
é equivalente em São Paulo e Belo Horizonte Janeiro é quase o dobro que em São Paulo e
(perto de 3,5% em 1991 e 4,3% no ano 2000) Belo Horizonte, o que é, no mínimo, estranho...
e mais elevada no Rio de Janeiro, onde chega a Pode ter havido algum erro no cômputo dessa
6% em 2000; renda domiciliar carioca. As rendas domiciliares
• a elite é predominantemente branca nas e per capita de São Paulo e Belo Horizonte se
três metrópoles, com menor intensidade em aproximam, com a domiciliar com cerca de 25
Belo Horizonte salários mínimos. Mas nota-se que em Belo Ho-
• a grande diferença se encontrou na pro- rizonte ela sobre entre 1991 e 2000, enquanto
porção de nascidos no estrangeiro, mais que a de São Paulo diminui;
20% em São Paulo em 1991 e subindo para • a média de anos de estudo é semelhante nas
31% no ano 2000. Em Belo Horizonte, essa três metrópoles, cerca de 12 anos, com tendên-
proporção é ínfima, de pouco mais de 1%. A cia a aumentar em 2000;
presença de tantos nascidos em outros países • a verticalização da moradia é maior no Rio
na elite da maior metrópole brasileira, nu- de Janeiro, onde acontece o inverso das outras
ma época em que a migração internacional metrópoles: nessas outras, a proporção das eli-
é pequena, pode refletir a presença de altos tes morando em apartamentos aumenta entre
executivos de multinacionais sediados na 1991 e 2000. No Rio, ela diminui.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 257
Suzana Pasternak

Quadro 3 – Indicadores para os dirigentes nas metrópoles do Sul

Curitiba Porto Alegre


Indicadores sintéticos
1991 2000 1991 2000
Demografia
– % homens 80,8 67,8 81,43 64,42
– % 65 anos e mais 3,8 4,1 3,19 3,41
– % brancos 94,3 94,2 96,67 96,68
– % nascidos no estrangeiro 9,33 9,30 3,22 1,30
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado 9,59 8,90 2,07 5,02
– tempo médio dos migrantes no Estado 4,87 5,00 5,11 4,52
Renda
– média renda domiciliar sm 24,9 19,9 22,63 27,57
– média renda per capita sm 7,6 10,7 7,6 11,52
Trabalho
– % de contribuintes à previdência 87,0 82,3 87,18 74,76
– % de conta própria sem previdência – – 0,00 0,00
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram 11,7 13,0 11,47 12,93
Moradia
– % apartamentos 38,2 48,5 45,23 48,56
– % casas com saneamernto escoado 85,1 92,6 89,19 98,32
– média de banheiros 2,8 2,7 2,41 2,31
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.

Observando-se alguns indicadores para • em Porto Alegre, a proporção de nascidos no


as duas metrópoles do Sul, temos: estrangeiro é mínima, como em Belo Horizonte;
• a proporção de dirigentes do sexo masculi- já em Curitiba essa proporção atinge mais de
no é equivalente à das metrópoles do Sudeste, 9% dos dirigentes. É alta, embora bem menor
assim como a tendência da diminuição dessa que a de São Paulo. Mas atesta a presença de
proporção em 2000. Aliás, em 2000 a propor- migração de executivos para a metrópole;
ção de homens entre dirigentes do Sul asseme- • em relação à migração, em Curitiba há mais
lha-se à dos dirigentes do Sudeste; migrantes recentes. Em Porto Alegre, a situação
• a proporção de pessoas com 65 anos e mais migratória parece a de São Paulo: os tempos
também se assemelha à do Sudeste; é mais médios dos migrantes no Estado, em volta de 5
elevada em Curitiba no ano 2000 que em Por- anos, são iguais aos do Sudeste;
to Alegre; • a renda domiciliar média é um pouco menor
• a elite é quase totalmente branca, e os per- que a das metrópoles do Sudeste. Em Curitiba,
centuais de brancos são ainda superiores aos a dinâmica é como a paulista, com a renda mé-
das metrópoles do Sudeste; dia de 2000 menor que a de 1991. Em Porto

258 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Alegre, como em Belo Horizonte, deu-se o fenô- • tanto em Curitiba como em Porto Alegre
meno inverso. As rendas per capita aumentam, a elite ainda mora em casas: a verticali-
o que indica tamanho menor de família, tal co- zação de Curitiba aumenta, mas não atin-
mo no Sudeste; ge 50% . Porto Alegre tem uma elite mais
• a média de anos de estudo aumenta e tem a verticalizada, mas em proporção menor que
mesma grandeza que nas metrópoles do Sudeste; o Rio de Janeiro.

Quadro 4 – Indicadores para os dirigentes nas metrópoles do Nordeste


Fortaleza Natal Recife Salvador
Indicadores sintéticos
1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000
Demografia
– % homens 79,31 82,59 82,59 60,76 80,45 61,01 80,71 63,07
– % 65 anos e mais 3,95 4,22 4,22 1,55 3,73 4,05 3,17 3,93
– % brancos 58,69 68,01 68,01 67,68 71,46 72,48 65,04 61,74
– % nascidos no estrangeiro 1,20 0,00 0,00 0,61 3,67 2,45 – 11,66
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado 7,21 12,57 12,57 6,79 7,11 5,20 – 5,51
– tempo médio dos migrantes no Estado 33,07* 10,2 10,2 17,85 1,79 2,40 – 6,06
Renda
– média renda domiciliar sm 30,80 24,56 24,56 29,35 75,41* 21,94 – 57,25*
– média renda per capita sm 7,28 4,45 4,45 9,08 19,28 3,45 – 16,09
Trabalho
– % de contribuintes à previdência 78,38 76,52 76,52 61,11 80,81 46,02 85,20 82,52
– % de conta própria sem previdência 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram 9,76 11,91 11,91 13,34 23,91* 12,88 12,16 13,50
Moradia
– % apartamentos 43,25 23,64 23,64 19,46 58,03 62,00 64,25 70,67
– % casas com saneamernto escoado 40,92 33,60 33,60 92,34 68,12 83,18 96,95 89,44
– média de banheiros 2,62 3,03 3,03 2,91 5,48 2,72 2,81 2,93

Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.


• Os valores marcados com * devem ter algum problema, estão muito fora do esperado. Assim, não entrarão para a análise.

Percebe-se que: no ano 2000. Nesse item, também não se per-


• nas metrópoles do Nordeste, a tendência ao cebe diferença entre as elites nordestinas e as
aumento da proporção de mulheres entre os di- do Sul-Sudeste;
rigentes é semelhante ao Sudeste e ao Sul, com • o percentual de brancos entre os membros
porcentagem por volta de 80% em 1991 e 60% da elite é bem menor no Nordeste, com menos
no ano 2000; de 70% em Natal e Fortaleza, pouco mais de
• a proporção de pessoas com 65 anos e mais 70% em Recife e 60% em Salvador. No Sul,
fica em torno de 4%, aumentando ligeiramente essa elite era quase que totalmente branca,

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 259
Suzana Pasternak

e no Sudeste, essa proporção atingia mais de tempo que no Sul ou no Sudeste, com exceção
80% em Belo Horizonte e quase 90% no Rio de Belo Horizonte;
e em São Paulo. Percebe-se a existência de • a comparação com a renda média domiciliar
proporção significativa de não brancos na elite foi prejudicada pela constatação que alguns
do Nordeste; valores podem estar superdimensionados. Mas
• a proporção de nascidos no estrangeiro aparentemente em Fortaleza e em Natal atinge
entre a elite nordestina é ínfima, mesmo no valores maiores que no Sul e no Sudeste. Uma
Recife, onde atinge um pouco mais (3,7% hipótese é de que altos executivos migrantes
em 1991). As únicas metrópoles com alta internos exijam salários e bonificações altas
proporção de nascidos no estrangeiro são para fixarem residência no Nordeste;
Curitiba e São Paulo. No Nordeste, a elite é • a tendência ao aumento da média de anos
basicamente nacional, a não ser em Salvador, de estudo se mantém;
onde 12% dos dirigentes em 2000 nasceram • outra grande diferença entre a elite do Nor-
no estrangeiro; deste e a do Sul Sudeste diz respeito às con-
• percebe-se nas metrópoles nordestinas que dições de moradia: a não ser o Recife e em
parcela considerável da elite é migrante recen- Salvador, a verticalização é baixa. Em 1991, o
te: em Natal, em 1991, mais de 12% estava na saneamento básico era precário, melhorando
cidade há menos de 5 anos. Mesmo em Forta- em todas as metrópoles nordestinas no ano
leza a proporção de 7% dos membros da elite 2000. E o número de banheiros por domicílio
há menos de 5 anos no Estado, assim como no é também alto, tal qual as casas da elite no Sul
Recife, mostra uma elite que chegou há menos e no Sudeste.

260 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

b) profissionais de nível superior

Quadro 5 – Indicadores para os profissionais de nível superior


nas metrópoles do Sudeste
São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte
Indicadores sintéticos
1991 2000 1991 2000 1991 2000
Demografia
– % homens 51,48 48,77 50,8 49,8 67,99 58,83
– % 65 anos e mais 1,72 2,00 2,4 3,1 2,09 2,98
– % brancos 86,21 83,48 82,7 79,9 69,15 74,55
– % nascidos no estrangeiro 8,20 12,97 – – 1,04 0,65
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado 6,81 8,07 2,6 2,8 6,73 4,31
– tempo médio dos migrantes no Estado 5,09 5,03 – – 4,79 5,09
Renda
– média renda domiciliar sm 22,27 19,66 21,14 30,62 15,83 22,22
– média renda per capita sm 7,72 10,05 – – 4,96 8,30
Trabalho
– % de contribuintes à previdência 82,65 68,12 78,1 63,1 78,34 60,97
– % de conta própria sem previdência 28,65 40,38 6,0 11,1 34,00 54,38
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram 14,87 14,33 15,0 14,6 11,03 12,46
Moradia
– % apartamentos 38,42 42,77 64,1 60,7 51,12 48,88
– % casas com saneamernto escoado 95,38 96,91 93,9 96,8 87,88 93,97
– média de banheiros 2,12 2,03 – – 1,97 2,17
Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.

Analisando o Quadro 5, que se refere aos de Janeiro e em Belo Horizonte, está por volta
profissionais de nível superior das metrópoles de 3%; já em São Paulo situa-se em 2%. Entre
do Sudeste, e comparando os indicadores aos os dirigentes, esse percentual era da ordem de
dos dirigentes, tem-se: 4,5%. Assim, os profissionais de nível superior
• a razão de sexo entre os profissionais de ní- são mais jovens que os dirigentes;
vel superior é distinta da razão de sexo entre os • a proporção de brancos é dominante entre
dirigentes, com maior proporção de mulheres os profissionais de nível superior das metrópo-
nas três metrópoles, com tendência ao aumen- les no Sudeste, mas em nível inferior à dos di-
to do peso para o sexo feminino, como para os rigentes: entre esses, 85% eram brancos. Entre
dirigentes. A ordem de grandeza dessa porcen- os profissionais de nível superior, apenas em
tagem é de 50% para o Rio de Janeiro e São São Paulo a proporção é equivalente. No Rio
Paulo, e 60% para Belo Horizonte; e em Belo Horizonte, a proporção desce para
• a proporção de pessoas com mais de 65 perto de 80%. Nas três metrópoles, ela é de-
anos é menor que entre os dirigentes. No Rio crescente em 2000;

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 261
Suzana Pasternak

• São Paulo continua com proporção alta de dirigentes, observa-se que é mais baixa, já que
nascidos no estrangeiro, 13% no ano 2000, a dos dirigentes apresentava média de 25 salá-
mas muito menor que entre os dirigentes; rios mínimos;
• a proporção de migrantes há menos de 5 • percebe-se, nas três metrópoles, uma preca-
anos no estado é alta em São Paulo, onde rização das relações de trabalho: a proporção
8% dos profissionais de nível superior estão de contribuintes à previdência decresce nas
nesta condição no ano 2000. Para a mesma três metrópoles, com decréscimo de 15 a 17
metrópole, entre os dirigentes a proporção pontos percentuais;
era de 6% . Portanto da mesma ordem de • a média de anos de estudo é maior que entre
grandeza. Em Belo Horizonte, as porcentagens os dirigentes em São Paulo e no Rio;
são menores ; • a moradia é pouquíssimo menos verticali-
• a renda média domiciliar dos profissionais zada que entre os dirigentes. E a proporção
de nível superior de São Paulo e Belo Horizonte dos moradores em apartamentos é maior no
está em torno de 20 salários mínimos, subindo Rio. As condições sanitárias das moradias são
em Belo Horizonte e descendo em São Paulo no boas, e a média de banheiros por domicílio é
período estudado. No Rio, apresenta-se mais perto de dois, menor que entre os dirigentes,
alta. Comparando essa renda média com a dos de 2,7.

Quadro 6 – Indicadores para os profissionais


de nível superior nas metrópoles do Sul

Curitiba Porto Alegre


Indicadores sintéticos
1991 2000 1991 2000
Demografia
– % homens 51,4 47,8 44,91 44,61
– % 65 anos e mais 3,8 1,8 1,50 2,02
– % brancos 92,0 91,8 95,95 95,13
– % nascidos no estrangeiro 7,16 6,8 0,86 1,31
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado 9,83 10,9 4,73 5,74
– tempo médio dos migrantes no Estado 4,95 5,0 4,62 4,80
Renda
– média renda domiciliar sm 18,4 16,5 18,25 23,53
– média renda per capita sm 6,2 7,2 6,65 8,62
Trabalho
– % de contribuintes à previdência 83,3 64,1 84,36 70,30
– % de conta própria sem previdência 39,5 50,6 33,29 42,05
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram 14,7 14,3 15,39 14,97
Moradia
– % apartamentos 49,2 51,4 65,71 63,16
– % casas com saneamernto escoado 89,9 95,8 92,85 98,16
– média de banheiros 2,2 2,0 1,91 1,76

Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.

262 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Caracterizando-se os profissionais de ní- mínimos. Para o Sul, a renda média dos dirigen-
vel superior do Sul, percebe-se que: tes foi de 23 salários mínimos;
• o perfil demográfico – proporção de homens • também é notável a precarização das rela-
e de idosos – é bastante semelhante entre si ções de trabalho entre os profissionais de nível
e com as metrópoles do Sudeste. Percebe-se superior no Sul, cerca de 19 pontos percentuais
também que os profissionais de nível superior em Curitiba e 15 em Porto Alegre. E a propor-
têm maior proporção de mulheres e menor de ção dos que trabalham por conta própria e não
pessoas mais velhas que os dirigentes; têm previdência é de 50% em Curitiba e 42%
• a proporção de brancos é alta, da ordem de em Porto Alegre, equivalente, assim, à propor-
95% em Porto Alegre e 92% em Curitiba; ção dos mineiros e paulistas;
• praticamente não há estrangeiros em Porto • as condições sanitárias domiciliares são boas,
Alegre, mas em Curitiba a proporção é signifi- e a média de banheiros por domicílio é perto de
cativa, como em São Paulo; 2, inferior à média dos dirigentes. Em Porto Ale-
• a renda média dos profissionais de nível su- gre, a verticalização das moradias é forte, com
periores estava em torno de 18 salários míni- mais de 605 dos profissionais de nível superior
mos em 1991. Em Curitiba, desce no ano 2000, residindo em apartamentos, mais que os diri-
enquanto em Porto Alegre sobe para 23,5 salá- gentes, ainda detentores de residências unifami-
rios mínimos. Nas metrópoles do Sudeste, essa liares. Em Curitiba, a proporção era menor, mas
renda média situava-se por volta de 20 salários também maior que a entre os dirigentes.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 263
Suzana Pasternak

Quadro 7 – Indicadores para os profissionais de nível superior


nas metrópoles do Nordeste
Fortaleza Natal Recife Salvador
Indicadores sintéticos
1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000
Demografia
– % homens 47,09 46,56 44,51 45,70 46,36 45,76 46,14 45,57
– % 65 anos e mais 1,47 1,75 0,61 1,06 1,50 2,07 1,35 1,80
– % brancos 55,32 61,07 61,03 64,84 71,46 67,60 55,07 61,74
– % nascidos no estrangeiro 0,39 0,50 0,58 0,41 0,73 0,80 – 5,33
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado 6,30 11,00 15,32 13,03 5,45 8,94 – 11,71
– tempo médio dos migrantes no Estado 14,3 16,09 3,18 2,50 – 4,66
Renda
– média renda domiciliar sm 11,84 28,59 16,74 8,81 34,96 12,71 – 27,38
– média renda per capita sm 2,82 7,50 2,92 – 9,58 4,81 – 8,28
Trabalho
– % de contribuintes à previdência 78,49 – 84,70 43,25 85,94 61,86 86,80 41,83
– % de conta própria sem previdência 55,01 62,77 – – 52,85 54,25
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram 12,98 12,40 15,00 14,44 – 14,31 14,72 14,32
Moradia
– % apartamentos 25,14 42,03 27,94 18,52 50,95 55,68 57,47 68,63
– % casas com saneamernto escoado 34,60 83,68 25,86 88,80 67,81 82,55 97,77 89,06
– média de banheiros 1,97 2,02 2,4 2,46 4,25 2,23 2,25 2,32

Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.


• Os valores marcados com * devem ter algum problema, estão muito fora do esperado. Assim, não entrarão para a análise.

Comparando-se os Quadros 5, 6 e 7, tem- • em relação à cor da pele, os profissio-


-se que: nais de nível superior do Nordeste apresen-
• as proporções de homens entre os profissio- tam menor proporção de brancos, cerca de
nais de nível superior nas metrópoles do Sudes- 60% . Em Recife , essa porcentagem atinge
te, Sul e Nordeste são semelhantes, em torno quase 70%. Nas metrópoles do Sul, as pro-
de 45 a 50%, mantendo-se na década. Há bem porções de brancos são altíssimas, de mais
mais mulheres entre esses profissionais que en- de 90% . No Sudeste, um pouco menores,
tre os dirigentes, em que a proporção variava da ordem de 80%. Mas deve ser notado que
em torno de 60 a 70%; em todas as metrópoles essa proporção é
• a proporção de idosos é ligeiramente maior menor entre os profissionais de nível supe-
no Rio de Janeiro e em Curitiba. Nas outras rior que entre os dirigentes;
metrópoles, quer do Sudeste quer do Sul ou do • não há estrangeiros no Nordeste, com ex-
Nordeste, é pequena, em torno de 1 a 2%; ceção de Salvador, onde cerca de 55 dos

264 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

profissionais de nível superior nasceram fora • a média de anos de estudo é semelhante em


do Brasil. Mas apresentam proporção significa- todas as metrópoles, muitas vezes maior que
tiva em São Paulo e Curitiba. São metrópoles entre os dirigentes;
industriais, com sedes de multinacionais. Mas • as condições de moradia no Nordeste são
mesmo em São Paulo, Curitiba e em Salvador, a distintas do Sudeste e Sul: menor verticaliza-
proporção de nascidos no estrangeiro é maior ção, condições sanitárias precárias em 1991 e
entre os dirigentes; melhorando em 2000.
• a renda média dos profissionais de nível Resumindo, as categorias superiores
superior parece ser maior no Sudeste que no possuem perfil demográfico bastante seme-
Sul, e nestas duas regiões quando comparadas lhante. Destaca-se a presença de estrangeiros
com o Nordeste. No Sudeste, a média ficou em em Curitiba, em São Paulo e, em proporção um
torno de 20 salários mínimos; no Sul, em torno pouco menor, em Salvador. Em relação à cor da
de 18 salários mínimos. E no Nordeste, embo- pele, nas categorias superiores predominam os
ra alguns dados saiam da média, ela parece brancos, embora nas metrópoles nordestinas a
se situar por volta de 15 salários mínimos. De proporção de não brancos seja mais elevada.
qualquer forma, há diferença significativa entre As rendas médias se situam num intervalo en-
a renda média dos dirigentes e a dos profissio- tre 25 e 18 salários mínimos, sendo maior no
nais de nível superior; Sudeste. As médias de anos de estudo variaram
• a precarização das relações de trabalho entre 12 e 15 anos. As relações de trabalho es-
ocorre em todas as metrópoles, do Sudes- tavam se precarizando em todas as metrópoles
te, Sul e Nordeste. Em Natal e em Curitiba, na década de 1990. Além da cor e da renda,
ela é violenta, com queda na contribuição à outra distinção entre categorias superiores no
Previdência de cerca de 40 e 20 pontos percen- Sudeste, Sul e Nordeste diz respeito às condi-
tuais, respectivamente; ções de moradia.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 265
Suzana Pasternak

Perfil das categoria médias

Quadro 8 – Indicadores para as categorias médias


nas metrópoles do Sudeste e do Sul
São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte Curitiba Porto Alegre
Indicadores sintéticos
1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000

Demografia
– % homens 58,35 53,10 60,2 55,4 56,09 52,12 58,6 53,9 58,36 53,84
– % 65 anos e mais 0,86 1,05 1,1 1,6 0,55 0,80 0,8 0,9 0,80 1,04
– % brancos 75,14 74,62 77,9 61,5 55,98 59,30 86,4 86,9 89,20 89,10
– % nascidos no estrangeiro 3,85 4,96 – – 0,21 0,28 4,17 2,3 0,58 0,37
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado 7,93 7,30 5,0 1,2 4,41 4,80 9,40 10,2 3,79 4,15
– tempo médio dos migrantes no Estado 5,08 5,71 – – 4,98 5,17 4,66 5,0 4,98 4,93

Renda
– média renda domiciliar sm 12,55 14,26 9,68 14,99 10,15 14,02 10,1 10,9 9,39 14,01
– média renda per capita sm 3,80 5,24 – – 2,94 4,54 3,1 3,8 3,14 4,99

Trabalho
– % de contribuintes à previdência 81,75 70,63 84,4 72,5 86,10 67,73 84,6 73,2 84,72 68,77
– % de conta própria sem previdência 42,35 57,91 – – 35,40 61,21 49,6 62,7 41,71 54,48

Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram 9,54 10,80 10,1 10,8 9,86 10,75 9,9 10,7 9,80 10,74

Moradia
– % apartamentos 15,90 25,29 35,9 34,6 24,36 34,21 28,4 27,7 40,77 38,10
– % casas com saneamernto escoado 88,1 93,62 84,9 91,9 83,83 89,72 76,7 90,3 79,66 94,63
– média de banheiros 1,43 1,57 – – 1,48 1,57 1,5 1,5 1,25 1,32

Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.

As camadas médias das metrópoles do • a proporção de migrantes há menos de 5


Sudeste e do Sul mostram semelhanças entre si, anos no estado continua mais alta em São Pau-
e diferenças em relação às camadas superiores: lo e em Curitiba, mas é menor nas categorias
• os ocupados das categorias médias já não superiores. O mesmo se dá na proporção de
são basicamente homens: em 2000, em todas nascidos no estrangeiro, significativa apenas
as cinco metrópoles do Quadro 8 percebe-se para São Paulo e Curitiba, mas bem menor en-
que mais de 40% dos membros são do sexo tre as categorias superiores;
feminino. São mais jovens que as categorias • a renda média domiciliar é semelhante no
superiores; ano 2000 em todas as metrópoles, cerca de
• a proporção de brancos no Sudeste fica em 14 salários mínimos, bem menor que entre os
torno de 75% e no Sul, de 87%. Pode-se dizer dirigentes (25 s.m.) e entre os profissionais de
que o percentual de brancos nas camadas mé- nível superior (20 s.m.);
dias é superior ao do total da população das • a escolaridade média fica em pouco me-
metrópoles, mas inferior ao das categorias nos que 10 anos de estudo, para todas as
superiores; metrópoles;

266 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

• entre as categorias médias também se veri- em Porto Alegre, com percentuais em torno de
fica a precarização das relações de trabalho na 35 a 38% morando em apartamentos. Em to-
década de 90, com perda de cerca de 15 pontos das as metrópoles, as condições sanitárias do-
percentuais em quase todas as metrópoles do miciliares são corretas e melhoraram em 1991.
Sudeste e do Sul. E, entre os que trabalham por A média de banheiros por domicílios é inferior
conta própria, grande proporção já não con- à das categorias superiores;
tribui para a previdência. Esta média era em • pode-se concluir que as categorias média
torno de 40% em 1991, subindo para mais de das metrópoles do Sudeste e do Sul apresen-
55% no ano 2000; tam muita semelhança entre si, e diferem das
• as camadas médias são menos verticalizadas categorias superiores em relação à cor, razão
que as categorias superiores em todas as me- de sexo, renda, escolaridade, precarização
trópoles do Sul e Sudeste. Sua maior proporção maior das relações de trabalho, menor verticali-
de verticalização vai ocorrer no Rio de Janeiro e zação e menos banheiros por moradia.

Quadro 9 – Indicadores para as categorias médias


nas metrópoles do Nordeste

Fortaleza Natal Recife Salvador


Indicadores sintéticos
1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000
Demografia
– % homens 54,37 51,29 56,26 51,57 57,34 51,55 54,29 50,16
– % 65 anos e mais 0,79 0,79 0,79 0,77 1,06 1,04 0,76 0,97
– % brancos 40,09 48,02 47,05 52,92 43,78 50,62 26,00 31,41
– % nascidos no estrangeiro 0,14 0,50 0,20 0,11 0,21 0,24 – 3,05
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado 4,35 4,83 10,60 10,89 3,89 4,21 – 7,82
– tempo médio dos migrantes no Estado – – 16,8 17,52 2,29 2,60 – 4,76
Renda
– média renda domiciliar sm – 14,52 7,98 7,21 16,48 20,96 – 13,05
– média renda per capita sm – 3,59 1,56 3,41 4,39 4,08 – 3,63
Trabalho
– % de contribuintes à previdência 72,44 – 75,28 36,30 78,92 55,52 81,82 62,68
– % de conta própria sem previdência – – 74,66 80,62 – – 38,68 70,56
Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram 8,66 9,52 9,99 10,52 19,73 10,64 9,84 10,69
Moradia
– % apartamentos 16,04 19,29 10,28 19,93 28,30 29,8 22,72 46,05
– % casas com saneamernto escoado 23,09 70,79 15,02 74,67 48,32 65,69 93,55 84,18
– média de banheiros 1,39 1,48 1,50 1,68 2,88 1,57 1,42 1,61

Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 267
Suzana Pasternak

Observando-se o perfil das categorias No Sul-Sudeste, os porcentuais estão por vol-


médias do Nordeste, pode-se ver que: ta de 70%;
• os ocupados das categorias médias apresen- • as categorias médias são menos verticaliza-
tam proporção de mulheres maior que entre as das que a superiores, com cerca de 20% mo-
categorias superiores, cerca de 40%. Essa pro- rando em apartamentos em Natal e Fortaleza e
porção cresceu entre 1991 e 2000. A razão de 30% no Recife. No Sul-Sudeste, essa proporção
sexo entre os ocupados das categorias médias alcançou 38%. Em todas as metrópoles nordes-
do Sul-Sudeste e do Nordeste é semelhante; tinas, as condições sanitárias melhoraram entre
• a proporção de brancos entre as categorias 1991 e 2000, mas são ainda bem inferiores às
médias do Nordeste fica entre 40 e 50%. En- das camadas médias do Sul-Sudeste;
tre as categorias superiores era de 60%. Assim, • pode-se concluir que as categorias médias
têm em comum com as categorias médias do do Nordeste apresentam muita semelhança en-
Sul-Sudeste a diminuição de brancos em rela- tre si, tal como as do Sul-Sudeste. A única com
ção às categorias superiores. Mas, comparando diferença marcante é Salvador, com maior pro-
com as categorias médias do Sul-Sudeste, onde porção de não brancos e maior verticalização.
a porcentagem de brancos era da ordem de 75- E, em relação a essas, apresentam poucas dife-
85%, pode-se afirmar que os não brancos são renças: têm maior proporção de não brancos e
mais presentes no Nordeste. A grande exceção moram com condições sanitárias piores. A ren-
é Salvador, com cerca de 30% de brancos no da parece ser menor em Natal, mas os dados
ano 2000. Salvador é a metrópole com maior de Recife e Fortaleza desmentem essas ideias,
proporção de não brancos tanto nas categorias mostrando renda maior.
superiores como nas médias;
• quase não há estrangeiros, e a proporção
de migrantes há menos de 5 anos no estado Perfil das categorias
é pequena no Recife e em Fortaleza, um pouco populares urbanas
maior em Salvador, mas considerável em Natal,
onde esse percentual atinge mais de 10%; a) Trabalhadores do secundário
• a renda média domiciliar alcança 7 salários Dado que o perfil do emprego formal difere en-
mínimos em Natal, mas chega a 14 em Forta- tre as metrópoles do Sul – onde a proporção
leza e em Salvador e a 20 no Recife. Assim, em de empregos formais na indústria é maior; no
Natal apresenta níveis inferiores aos do Sul-Su- Sudeste – onde apenas São Paulo possui mais
deste, mas no Recife, Salvador e em Fortaleza de 25% de sua força de trabalho formal aloca-
têm níveis superiores; da na indústria; e no Nordeste, onde Salvador,
• a escolaridade média fica em torno de 10 Recife e Natal apresentam menos de 20% dos
anos de estudo, tal como no Sul-Sudeste; empregos formais na indústria, enquanto For-
• a proporção de contribuintes à Previdência taleza surge como “polo industrial nordestino”,
decresce entre 1991 e 2000, tal como no Sul- com mais de 26% dos empregos formais neste
-Sudeste. Atinge, em 2000, níveis bem infe- setor da economia – verificou-se a proporção
riores, como 36% em Natal e 55% no Recife. da população ocupada como trabalhadores do

268 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Tabela 11 – Proporção de trabalhadores do secundário no total dos ocupados


das categorias urbanas populares, diversas metrópoles, 2000

Metrópole % dos trabalhadores do secundário


Porto Alegre 61,08
Curitiba 58,06
São Paulo 40,35
Belo Horizonte 38,56
Fortaleza 38,01
Natal 36,66
Rio de Janeiro 34,03
Recife 32,36
Salvador 31,89
Fonte: IBGE:Censo de 2000.

secundário nas diversas metrópoles, o que indi- indústria tradicional representam apenas 16%
caria composição distinta entre trabalhadores dos trabalhadores do secundário. O maior per-
do terciário especializado e não especializado e centual encontra-se entre os trabalhadores da
trabalhadores do secundário nas aglomerações construção civil. Já em Porto Alegre, a indústria
brasileiras estudadas. tradicional aparece com força, com 32,53%
Observa-se que o peso dos ocupados no dos operários. O polo calçadista tem presen-
secundário é bastante diverso nas diferentes ça indiscutível. Aliás, outra metrópole onde
metrópoles, indo de percentuais elevados en- a indústria tradicional lidera o percentual de
tre as categorias populares urbanas, como nas trabalhadores é Fortaleza. Nota-se que o cha-
metrópoles do Sul, onde agrega cerca de 60% mado perfil 2, com aproximadamente 40% das
desta categoria, passando por São Paulo, Belo categorias populares urbanas no secundário,
Horizonte e Fortaleza, com percentual apro- é bastante diverso: em São Paulo, a indústria
ximado de 40%, Rio de Janeiro e Natal, com moderna aparece como grande empregadora,
35%, e Recife e Salvador, com cerca de 30%. com quase 30% dos trabalhadores do secun-
São quatro perfis de metrópole em relação ao dário; já em Fortaleza, esse papel é desem-
peso do secundário entre as categorias urba- penhado pela indústria tradicional e em Belo
nas populares. Horizonte pela construção civil. Nas outras
Mas vão existir diferenças dentro des- metrópoles, tanto do perfil 3 (35% de traba-
ses perfis. As metrópoles do Sul, onde a pro- lhadores das categorias populares urbanas no
porção de trabalhadores do secundário é alta, secundário) como do perfil 4 (apenas 30% no
de aproximadamente 60%, mostram uma dis- secundário) a construção civil é, indiscutivel-
tribuição destes trabalhadores entre os diver- mente, a grande empregadora entre os traba-
sos segmentos do secundário. Pela Tabela 12, lhadores do secundário. Se a análise for feita
nota-se que em Curitiba os trabalhadores da por grande região, o Rio de Janeiro apresenta

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 269
Suzana Pasternak

um perfil nordestino, enquanto Fortaleza fo- Salvador a construção civil empregue mais de
ge a este perfil. Chama a atenção que em 40% do total de trabalhadores do secundário.

Tabela 12 – Composição dos trabalhadores do secundário,


metrópoles dos perfis 1 e 2, em %

Categoria sócio-ocupacional Curitiba Porto Alegre São Paulo Belo Horizonte Fortaleza
Indústria moderna 24,20 23,26 29,59 23,89 15,06
Indústria tradicional 16,00 32,53 19,11 17,84 37,75
Serviços auxiliares 26,00 17,90 24,96 22,71 18,79
Construção civil 32,80 26,31 26,34 35,57 28,40
Total secundário 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00

Fonte: IBGE: Censo de 2000.

Tabela 13 – Composição dos trabalhadores do secundário,


metrópoles com perfis 3 e 4, em %
Categoria sócio-ocupacional Rio de Janeiro Natal Recife Salvador
Indústria moderna 19,34 17,45 21,03 21,03
Indústria tradicional 19,35 26,27 20,43 16,34
Serviços auxiliares 25,21 24,19 25,89 21,46
Construção civil 36,10 32,08 32,64 41,17
Total secundário 100,00 100,00 100,00 100,00

Fonte: IBGE: Censo de 2000.

Resumindo, há duas metrópoles com gran- peso relativo maior na indústria moderna – São
de peso de ocupação na indústria tradicional – Paulo, embora Curitiba e Belo Horizonte já apare-
Porto Alegre e Fortaleza, com Natal surgindo como çam com peso relativo digno de nota neste item.
possível centro da indústria tradicional, com 26% Resta saber o perfil destes trabalhadores
dos ocupados do secundário. Apenas uma com do secundário.

270 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Quadro 10 – Perfil dos trabalhadores do secundário nas metrópoles


mais industrializadas (perfis 1 e 2)
Curitiba Porto Alegre São Paulo Belo Horizonte Fortaleza
Indicadores sintéticos
1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000

Demografia
– % homens 86,6 87,8 78,12 80,46 81,05 84,12 74,50 75,17 72,38 73,45
– % 65 anos e mais 1,0 1,2 1,55 1,17 1,22 1,36 1,17 1,32 1,22 1,27
– % brancos 75,3 76,4 73,84 84,56 59,42 56,88 34,69 38,71 23,60 31,58
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado 6,10 7,10 3,17 2,49 12,65 10,22 3,57 3,38 4,98 3,30
– tempo médio dos migrantes no Estado 4,80 5,10 4,94 5,66 4,84 5,81 4,90 5,59 – –

Renda
– média renda domiciliar SM 5,6 6,3 4,91 6,88 7,69 8,50 4,90 6,95 2,78 8,15
– média renda per capita SM 1,4 1,7 1,39 2,10 2,06 2,18 1,19 1,91 0,64 1,95

Trabalho
– % de contribuintes à previdência 67,0 56,7 76,70 64,23 65,80 50,17 80,76* – 49,86 43,28
– % de conta própria sem previdência 67,2 84,6 52,99 71,13 59,06 77,77 31,53 71,24 – –

Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram 5,5 6,6 5,36 6,36 5,68 6,72 5,41 6,47 3,95 5,41

Moradia
– % apartamentos 5,2 3,9 7,72 5,79 3,31 8,14 3,03 7,96 2,57 4,02
– % casas com saneamernto escoado 47,5 74,8 57,91 83,46 72,66 92,48 62,25 76,35 11,46 53,40
– média de banheiros 1,1 1,2 0,90 1,05 1,11 1,22 1,02 1,14 0,89 0,95

Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.


* estimativa superdimensionada.

As características dos trabalhadores do em São Paulo, o percentual de brancos é menor


secundário nas metrópoles mais industrializa- entre os trabalhadores do secundário que entre
das mostram muitas semelhanças: os ocupados das categorias médias e superiores;
• em todas as cinco metrópoles a proporção • em relação à migração, apenas em São Paulo
de homens entre os trabalhadores do secun- e em Curitiba ela aparece como fenômeno que
dário era maior que a média da metrópole, e merece algum registro;
maior que entre profissionais de nível superior • a renda média domiciliar aumenta entre
e categorias médias. É provável que os operá- 1991 e 2000, para todas as metrópoles indus-
rios da construção civil, majoritariamente mas- triais. É maior em São Paulo, onde atingiu, em
culinos, estejam afetando esse número; 2000, 8,50 salários mínimos e a renda domi-
• em todas as metrópoles o percentual de ido- ciliar per capita de 2,18 salários mínimos. Em
sos é mínimo; Curitiba e Belo horizonte, a renda domiciliar per
• em relação à cor, os brancos dominam nas capita não chega a dois salários mínimos, e em
metrópoles do Sul, Curitiba e Porto Alegre. Mas Porto Alegre alcança 2,10 no ano 2000. O dado
mesmo nessas metrópoles, essas proporções de Fortaleza para o ano 2000 parece estar su-
são menores que entre as categorias médias e perestimado, dado que a diferença entre 1991
superiores. Em São Paulo, há quase a mesma e 2000 é enorme. E, em todas as metrópoles, é
proporção de brancos e não brancos. Também menor que entre as categorias médias.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 271
Suzana Pasternak

• sobre as relações de trabalho, em todas • a média de anos de estudo é maior que 6


as metrópoles percebe-se uma forte precari- anos, e aumentou entre 1991 e 2000. Apenas
zação entre 1991 e 2000. Em Porto Alegre, o em Fortaleza tem valores menores que 6 no
nível de contribuição à previdência é maior, ano 2000;
e em Fortaleza, menor. A proporção dos • as condições de moradia são melhores na
“por conta própria sem previdência” tam- metrópole paulista e piores em Fortaleza. E a
bém aumentou; moradia é predominantemente horizontal.

Quadro 11 – Perfil dos trabalhadores do secundário nas metrópoles


menos industrializadas (perfis 3 e 4)
Rio de Janeiro Natal Recife Salvador
Indicadores sintéticos
1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000
Demografia
– % homens 81,8 86,9 78,82 83,36 85,53 86,84 87,46 88,85
– % 65 anos e mais 1,7 2,1 0,95 1,01 1,28 1,24 1,05 1,42
– % brancos 41,4 42,9 27,49 36,12 25,87 33,04 11,49 14,57
– % migrantes há menos de 5 anos no Estado 2,4 2,9 7,50 7,38 3,82 1,60 – 4,47
– tempo médio dos migrantes no Estado – – – – 2,11 2,67 – 5,36

Renda
– média renda domiciliar SM 4,93 6,99 4,34 5,67 6,75 – 5,67 5,72
– média renda per capita SM – – 0,64 1,35 2,12 3,84 – 1,46

Trabalho
– % de contribuintes à previdência 51,3 40,7 53,41 45,18 60,58 43,41 66,13 42,49
– % de conta própria sem previdência – – 76,61 90,37 – – 69,48 83,00

Educação
– média de anos de estudo entre os que estudaram 5,5 6,7 5,44 6,07 – 6,08 5,15 6,16

Moradia
– % apartamentos 10,4 9,6 1,15 17,00 6,64 7,18 5,23 17,48
– % casas com saneamernto escoado 66,9 78,4 8,70 50,65 21,83 39,36 75,25 69,36
– média de banheiros – – 1,1 1,22 1,90 1,04 0,97 1,12

Fonte: IBGE: Censos Demográficos de 1991 e 2000.

O perfil dos trabalhadores do secun- homens, também influenciados operários da


dário das metrópoles menos industrializa- construção civil;
das difere em poucos pontos do perfil das • a proporção de idosos é insignificante;
industrializadas: • o percentual de brancos não atinge 40% nas
• a razão de sexo favorece, como nas outras, o metrópoles do Nordeste e apenas ultrapassa
sexo masculino. Pode-se afirmar que os traba- esta cifra no Rio de Janeiro. Era maior em São
lhadores do secundário são predominantemente Paulo e nas metrópoles do Sul;

272 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

• a migração aparece como significante ape- • a média de anos de estudo, tal como nas ou-
nas em Natal; tras, está por volta de 6 anos, sendo maior em
• a renda média domiciliar é semelhante à das 2000 que em 1991;
metrópoles com perfil 1 e 2; • as condições de moradia são bastante precá-
• as relações de trabalho estão mais precárias rias em Natal e no Recife, embora o saneamen-
em 2000 que em 1991 e têm ordem de gran- to básico tenha melhorado sensivelmente na
deza inferior às metrópoles do Sul e São Paulo; década. A moradia é quase sempre horizontal.

b) Trabalhadores do terciário não especializado

Quadro 12 – Alguns indicadores de 2000 para os trabalhadores


do terciário não especializado

Metrópole % homens % brancos Renda domiciliar Anos de estudo Previdência


Curitiba 32,80 73,20 5,70 6,00 44,50
Porto Alegre 32,14 75,62 6,56 6,05 55,03
São Paulo 36,42 52,49 7,58 6,03 81,75
Rio de Janeiro 36,60 38,50 6,99 6,00 40,60
Belo Horizonte 50,34 32,82 6,40 5,53 49,17
Fortaleza 42,38 30,33 6,07 4,50 –
Natal 38,67 34,64 5,72 5,68 44,53
Recife 39,01 32,33 – 5,16 –
Salvador 30,86 12,99 7,84 5,46 40,40
Fonte: IBGE: Censo Demográfico de 2000.

Alguns pontos podem ser enfatizados so- de serviços não especializados. Nas metrópo-
bre os trabalhadores do terciário não especiali- les do Sul e em São Paulo e Rio de Janeiro,
zado, a partir da observação de indicadores de a forte presença feminina deve estar ligada
2000 para as metrópoles em estudo: ao contingente de trabalhadores domésticos.
• a razão de sexo favorece as mulheres, com É provável que em Fortaleza, Belo Horizonte,
exceção de Belo Horizonte, onde é pratica- Natal e Recife, além dos domésticos, a repre-
mente igual. Em Fortaleza, a proporção de ho- sentação dos prestadores de serviços não es-
mens alcança mais de 40%. Os trabalhadores pecializados, biscateiros e ambulantes tenha
do terciário não especializado incluem domés- forte componente masculino. Já em Salva-
ticos, ambulante e biscateiros e prestadores dor, além dos domésticos, é provável grande

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 273
Suzana Pasternak

presença de ambulantes do sexo feminino, re- Considerações parciais sobre o perfil


sultando na razão de sexo de 31% de homens. das categorias sócio-ocupacionais
Um ponto que deve ser enfatizado é que a
proporção de mulheres entre os trabalhadores Como já foi apontado no item “Considerações
do terciário não especializado é sempre maior finais sobre a estrutura socioespacial e sua di-
que entre os demais ocupados, em todas as nâmica”, a dinâmica sócio-ocupacional apre-
metrópoles. Além disso, percebe-se que a senta algumas diferenças claras entre as me-
proporção de mulheres é bastante semelhante trópoles do Sudeste e do Nordeste. No Sudeste,
entre as metrópoles; há perda de dirigentes, enquanto no Nordeste
• a proporção de brancos entre estes traba- vai acontecer um ganho. Nas metrópoles das

lhadores é a menor entre as categorias sócio- duas regiões, há grande aumento relativo dos

-ocupacionais, para todas as metrópoles. Em- profissionais de nível superior.


Em relação às camadas médias, no Su-
bora os percentuais entre elas sejam diversos,
deste percebe-se significativa redução, enquan-
indo desde 75% de homens no Sul, passando
to no Nordeste houve ganho em Salvador e tê-
por 50% em São Paulo, cerca de 30% no Rio
nue redução nas outras metrópoles.
de Janeiro e nas metrópoles nordestinas e al-
Os trabalhadores do terciário não espe-
cançando apenas 13% em Salvador, isso refle-
cializado apresentam aumento relativo apenas
te a proporção de não brancos em cada uma
na metrópole paulista. No Rio de Janeiro, seu
dessas metrópoles;
peso relativo se manteve, enquanto nas outras
• a renda domiciliar é mais alta em São Paulo
metrópoles sua proporção diminui.
e em Salvador. Nas outras metrópoles fica por
Havia uma hipótese que os perfis das
volta de 6 a 7 salários mínimos. Chama a aten-
distintas categorias fossem heterogêneos en-
ção a grande estabilidade entre metrópoles.
tre as diferentes metrópoles. O que se perce-
Dois pontos escapam dessa estabilidade, São
beu, entretanto, foi grande semelhança nestes
Paulo e Salvador. Uma hipótese é que em São
perfis entre metrópoles e grande distinção
Paulo realmente a renda seja mais alta acom- entre as categorias dentro de cada metrópo-
panhando os pisos salariais da cidade, enquan- le. Ou seja, há heterogeneidade entre distin-
to em Salvador a renda de ambulantes traria a tas categorias e homogeneidade na mesma
média para cima; categoria entre diferentes metrópoles. É claro
• os anos de estudo também são homogêneos que isto é uma tendência, que não oculta algu-
nas distintas metrópoles, em torno de 6 anos mas diferenças entre o perfil de determinada
no Sul/Sudeste a 5 no Nordeste. Em Fortaleza, a categorias entre uma metrópole e outra. Mas
média é menor, apenas 4,5 anos; a tendência é maior heterogeneidade entre
• a cobertura de previdência social é precária categorias de uma mesma metrópole e maior
em quase todas as metrópoles, a grande exce- semelhança entre perfis da mesma categoria
ção sendo São Paulo. entre distintas metrópoles.

274 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

Entre as categorias superiores: as metrópoles e diferente da porcentagem de


– para os dirigentes homens entre os dirigentes, que é maior;
• em todas as metrópoles há tendência de • a proporção de idosos é ligeiramente su-
maior proporção de mulheres em 2000 que em perior no Rio de Janeiro e em Curitiba. Mas é
1991. Não há diferença significativa nas distin- sempre menor que entre os dirigentes;
tas metrópoles; • em relação à cor da pele, no Nordeste vai
• a proporção de idosos fica em torno de existir menor proporção de brancos que no Su-
4%, também sem diferença visível entre as deste e no Sul. Mas é inferior, nas três metrópo-
metrópoles; les, a proporção de brancos entre os dirigentes;
• o percentual de brancos entre os membros • a proporção de estrangeiros continuava sig-
da elite é bem menor no Nordeste. No Sul, a nificativa apenas em São Paulo e em Curitiba,
elite é quase toda branca e, no Sudeste, a pro- tal como entre os dirigentes. Mas, mesmo nes-
porção ficava por volta de 90%. Assim, nas sas metrópoles, apresenta-se inferior à porcen-
metrópoles do Nordeste percebe-se uma elite tagem de estrangeiros entre os dirigentes;
não branca; • há diferença significativa entre a renda mé-
• nas metrópoles do Nordeste, percebe-se que dia dos profissionais de nível superior e os di-
parte da elite é migrante recente. De outro la- rigentes. E, entre estes profissionais de nível
do, a parcela de nascidos no estrangeiro na eli- superior, a renda média é maior no Sudeste que
te nordestina é ínfima, o que não acontece em no Sul e maior no Sul que no Nordeste;
São Paulo e Curitiba. Salvador aparece como • a precarização das relações de trabalho em
exceção, com 12% de seus dirigentes nascidos todas as metrópoles é violenta entre 1991 e
fora do Brasil; 2000;
• a renda média da elite nordestina é maior • a média de anos de estudo é semelhante en-
que a da elite nas outras metrópoles. Uma hi- tre os profissionais de nível superior, em todas
pótese é que altos executivos migrantes inter- as metrópoles, e maior que a dos dirigentes;
nos exijam salários e bonificações para fixarem • as condições de moradia do Nordeste são
residência no Nordeste; distintas das do Sul e Sudeste, com menor ver-
• as condições de moradia são fortemente ticalização e pior condição sanitária.
condicionadas pelas condições da metrópole.
Entre as categorias médias:
Assim era esperado que o perfil da moradia
• a razão de sexo entre as categorias média
fosse distinto. No Nordeste, a verticalização
nas distintas metrópoles é semelhante, mas
tende a ser mais baixa e as condições de sa-
distinta da razão entre as categorias superio-
neamento, sobretudo em 1991, eram bastan-
res. Nas médias, a proporção de mulheres é
te precárias.
maior e cresceu entre 1991 e 2000;
– para os profissionais de nível superior • a proporção de brancos nas categorias mé-
• a proporção de homens entre os profissionais dias do Nordeste fica entre 40 e 50%. No Sul e
de nível superior é bastante semelhante entre no Sudeste, é maior. Mas todas as metrópoles

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 275
Suzana Pasternak

têm maior proporção de brancos entre as cate- • dentro de cada um desses perfis, vão existir
gorias superiores; distintas composições dentro dos trabalhadores
• quase não há estrangeiros e a proporção de do secundário. Há duas metrópoles com grande
migrantes é pequena. A única exceção é em peso de ocupação na indústria tradicional: Por-
Natal, onde cerca de 10% dos ocupados nas to Alegre e Fortaleza, com Natal despontando
categorias médias são migrantes; como possível polo de emprego para operários
• a renda domiciliar média das categorias mé- da indústria tradicional. Apenas uma metrópo-
dias é menor que das superiores. Há variabili- le – São Paulo – caracteriza-se como centro de
dade de renda média entre Sul-Sudeste e Nor- emprego de operários da indústria moderna,
deste. A renda média do Nordeste é superior, embora Curitiba e Belo Horizonte já apareçam
com exceção de Natal; com peso relativo digno de nota nesse item.
• a escolaridade é menor que nas categorias Nas outras, o maior peso relativo encontra-se
superiores, mas semelhante entre as metrópo- na construção civil. Salvador chega a ter mais
les, em torno de 10 anos de estudo; de 40% dos seus ocupados no secundário na
• a contribuição à previdência cai entre 1991 e construção civil;
2000 em todas as metrópoles. Em 2000, atinge • em todas as metrópoles, a proporção de ho-
níveis muito baixos nas metrópoles do Nordeste; mens entre os trabalhadores do secundário é
• as condições de moradia apresentam menor maior que a média da metrópole, e maior que
verticalização que entre as categorias supe- entre os profissionais de nível superior e as ca-
riores. As condições sanitárias das moradias tegorias médias. É provável que os operários da
do Nordeste melhoraram na década, mas ain- construção civil, majoritariamente masculinos,
da são inferiores às condições de moradia no estejam afetando esse porcentual;
Sul-Sudeste. • em todas as metrópoles, a proporção de ido-

Entre as categorias populares urbanas: sos é mínima;

– trabalhadores do secundário • a proporção de brancos difere nas metrópo-


• a proporção de trabalhadores do secundá- les do Sul, Sudeste e Nordeste. Mas é sempre
rio no total das categorias populares urbanas maior que entre as categorias médias;
é bastante distinta. Pode-se determinar quatro • a renda domiciliar aumenta para todas entre
tipos de perfil: o perfil 1, com cerca de 60% de 1991 e 2000, mas é menor que entre as cate-
trabalhadores do secundário entre as catego- gorias médias; é semelhante entre os diversos
rias populares urbanas em 2000 (Porto Alegre perfis de taxa de industrialização;
e Curitiba); o perfil 2, com aproximadamente • a média de anos de estudo e menor que en-
40% de secundário (São Paulo, Belo Horizonte tre as categorias médias, mas é semelhante en-
e Fortaleza); o perfil 3, com 35% de secundá- tre as metrópoles, cerca de 6 anos;
rios (Rio de Janeiro e Natal); e o perfil 4, com • as condições de moradia são melhores em
cerca de 30% de trabalhadores do secundário São Paulo e piores em Fortaleza. São mais ho-
no total das categorias populares urbanas (Re- rizontais e com condições sanitárias piores que
cife e Salvador); entre as categorias médias;

276 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Mudanças na estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras, 1991-2000

– trabalhadores do terciário não especializado • a cobertura da previdência é precária em to-


• os trabalhadores do terciário não especia- das as metrópoles.
lizado são predominantemente mulheres, em
todas as metrópoles. E sempre a proporção de
mulheres nesses trabalhadores é a maior entre Resumindo
todas as categorias sócio-ocupacionais, e se-
melhante entre as metrópoles; • há diferenças marcantes na razão de sexo,
• a proporção de brancos é também a menor proporção de idosos, origem, escolaridade,
entre todas as categorias. Varia por metrópole. renda, condições de trabalho e de moradia
No Sul chega a 75%, enquanto no Nordeste é entre as categorias sócio-ocupacionais numa
menor, atingindo seu mínimo em Salvador, com mesma metrópole;
apenas 13% dos trabalhadores do terciário não • há algumas diversidades em relação à cor,
especializados brancos; renda e condição de moradia entre as mesmas
• a renda domiciliar fica entre 6 a 7 salários categorias sócio-ocupacionais nas distintas
mínimo. Apenas dois pontos escapam da esta- metrópoles (sobretudo diferenças entre as me-
bilidade: São Paulo e Salvador; trópoles do Sul/Sudeste e do Nordeste);
• a média de anos de estudo é também homo- • há inúmeras semelhanças entre os perfis das
gênea, com cerca de 5 a 6 anos de estudo; mesmas categorias nas distintas metrópoles.

Suzana Pasternak
Professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
Pesquisadora do CNPq. Vice coordenadora do Observatório das Metrópoles.
suzanapasternak@uol.com.br

Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012 277
Suzana Pasternak

Referências
BOURDIEU, P. ( 1989). O poder simbólico. Lisboa/Rio de Janeiro, DIFEL/Bertrand Brasil.

HAMMET, C. (1995). Les changements socioéconomiques à Londres: croissance des catégories


ter aires. Societés Contemporaines, n. 22, pp. 15-32.

MALDONADO, J. L, (2000). “Economia, emprego e desigualdade social em Madri”. In: QUEIROZ


RIBEIRO, L. C. (org.) O futuro das metrópoles. Rio de Janeiro, Revan.

MAMMARELLA, R. (2007). “Box II Panorama da estrutura socioocupacinal das Regiões Metropolitanas


no Brasil, 2000”. In: QUEIROZ RIBEIRO, L. C. e SANTOS JUNIOR, O. A. As metrópoles e a questão
social brasileira. Rio de Janeiro, Revan/Fase.

PIQUET, R. (2000). O emprego industrial metropolitano e a nova divisão espacial do trabalho no Brasil.
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 3, pp. 97-110.

PRETECEILLE, E. (1994). “Cidade globais e segmentção social”. In: QUEIROZ RIBEIRO, L. C. e SANTOS
JUNIOR, O. A. Globalização, fragmentação e reforma urbana. O futuro das cidades brasileiras na
crise. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

______ (1995). Division sociale de l’espace et globalisa on: le cas de la Métropole Parisienne. Societés
Contemporaines, n. 22, pp 33-68.

RIBEIRO, L. C. de Q. e LAGO, L. (2000). O espaço social das grandes metrópoles: São Paulo, Rio de
Janeiro e Belo Horizonte. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 3, pp. 111-128.

SASSEN, S. (1991). The global city: New York, London, Tokyo. Princeton, Princeton University Press.

Texto recebido em 4/nov/2010


Texto aprovado em 15/dez/2010

278 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 27, pp. 233-278, jan/jun 2012
Instruções aos autores
ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL
A revista Cadernos Metrópole, de periodicidade semestral, tem como enfoque o debate de
questões ligadas aos processos de urbanização e à questão urbana, nas diferentes formas que assume
na realidade contemporânea. Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral,
especialmente, às áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Geografia,
Demografia e Ciências Sociais.
A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam
com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema
político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão baseados na
governança urbana.

CHAMADA DE TRABALHOS
A revista Cadernos Metrópole é composta de um núcleo temático, com chamada de trabalho
específica, e um de temas livres relacionados às áreas citadas. Os textos temáticos deverão ser
encaminhados dentro do prazo estabelecido e deverão atender aos requisitos exigidos na chamada; os
textos livres terão fluxo contínuo de recebimento.
Os artigos podem ser redigidos em língua portuguesa ou espanhola. Os artigos apresentados
em outros idiomas serão traduzidos para o português.

AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS


Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação
dos membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos
receberão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos
autores quanto dos pareceristas.
Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados
para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clareza
de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema.

COMUNICAÇÃO COM OS AUTORES


Os autores serão comunicados por email da decisão final, sendo que a revista não se compro-
mete a devolver os originais não publicados.

OS DIREITOS DO AUTOR
A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada autor
receberá dois exemplares do número em que for publicado seu trabalho.
O Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, datado e assinado
pelo(s) autor(es), deve ser enviado juntamente com o artigo.
O conteúdo do texto é de responsabilidade do(s) autor(es).
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS
Os trabalhos devem conter:
• título, em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês;
• texto, digitado em Word, espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, tendo no máxi-
mo 25 (vinte e cinco) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras, referências bibliográficas; as ima-
gens devem ser em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm;
• resumo/abstract de, no máximo, 120 (cento e vinte) palavras em português ou na língua em
que o artigo foi escrito e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave em português e
em inglês;
• identificação do autor, com as seguintes informações, por extenso: nome do autor, forma-
ção básica, instituição de formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que
trabalha, unidade e departamento, cidade, estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspon-
dência;
• referências bibliográficas, conforme instruções solicitadas pelo periódico.

Os trabalhos devem ser encaminhados para o email: cadernosmetropole@terra.com.br ou


para o endereço: Cadernos Metrópole – Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 – São Paulo, SP, Brasil.
É imprescindível o envio do Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Auto-
rais, datado e assinado pelo(s) autor(es).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
As referências bibliográficas, que seguem as normas da ABNT adaptadas pela Educ, deverão
ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções:

Livros
AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

Capítulos de livros
AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR
(org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salva-
dor”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar.

Artigos de periódicos
AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do perió-
dico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo.
Exemplo:
TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos
Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28.
Trabalhos apresentados em eventos científicos
AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número, ano,
local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final.
Exemplo:
SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle
social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL EN-
VELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/
SAS, pp. 193-207.

Teses, dissertações e monografias


AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição.
Exemplo:
FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de
gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de
mestrado. São Paulo, FFLCH.

Textos retirados de Internet


AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso.
Exemplo:
FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Dis-
ponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em: 8 set 2005.
Rede Observatório das Metrópoles

Estado
Instituição Coordenador

Simaia Mercês
Belém Universidade Federal do Pará
simrcs@yahoo.com.br
Luciana Andrade
Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
landrade@pucminas.br
Rômulo Ribeiro
Brasília Universidade de Brasília
rjcribeiro@gmail.com
Rosa Moura
Curitiba Ipardes
rmoura@pr.gov.br
Clélia Lustosa
Fortaleza Universidade Federal do Ceará
clelialustosa@gmail.com
Aristides Moysés
Goiânia Universidade Católica de Goiás
arymoyses@uol.com.br
Ana Lucia Rodrigues
Maringá Universidade Estadual de Maringá
alrodrigues@uem.br
Maria do Livramento M. Clementino
Natal Universidade Federal do Rio Grande do Norte
clement@ufrnet.br
Rosetta Mammarella
Porto Alegre Fundação de Economia e Estatística
rosetta@fee.tche.br
Angela Maria Gordilho Souza
Recife Universidade Federal de Pernambuco
masouza@hotlink.com.br
Luiz César de Queiroz Ribeiro
Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro
lcqr@terra.com.br
Inaiá Maria Moreira Carvalho
Salvador Universidade Federal da Bahia
inaiammc@ufba.br
Marinez Brandão
Santos Universidade Católica de Santos
marinezbradao@hotmail.com
Lucia Maria Machado Bógus
São Paulo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
lubogus@uol.com.br
Caroline Jabour
Vitória Instituto Jones dos Santos Neves
caroline.jabour@ijsn.es.gov.br
Cadernos Metrópole

vendas e assinaturas

Exemplar avulso: R$20,00


Assinatura anual (dois números): R$36,00

Enviar a ficha abaixo, juntamente com o comprovante de depósito bancá-


rio realizado no Banco do Brasil, agência 3326-x, conta corrente 10547-3,
ou enviar cheque para a Caixa Postal nº 60022 - CEP 05033-970 - São
Paulo – SP – Brasil.
Telefax: (11) 3368.3755 Cel: (11) 9931.9100
cadernosmetropole@terra.com.br

Exemplares nºs _________

Assinatura referente aos números _____ e _____

Nome __________________________________________

Endereço ________________________________________

Cidade ____________________ UF _____ CEP _________

Telefone ( ) _______________ Fax ( ) _____________

E-mail __________________________________________

Data ________ Assinatura __________________________

Anda mungkin juga menyukai