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A Revolução Russa no cinema soviético

Passado turbulento. Futuro desafiador

Vícios e virtudes de uma tragédia inevitável.


Introdução: a revolução e a explosão criativa
Há aqueles que enxergam nas artes algo completamente dissociado da política para funcionar.
Outros entendem o oposto: a arte só atinge seu estágio pleno quando há conotação política clara.
Este é um debate histórico e volumoso. Indiscutível, no entanto, que as duas sempre caminharão
juntas – até quando ignora a política, a cultura o faz de forma consciente, como numa luta. A
Revolução Russa, que completa 100 anos neste outubro de 2017, teve seu grande mérito cultural no
cinema. O que aconteceu no cinema russo logo após o fim da guerra civil – quando cerca de 12
milhões de homens e mulheres morreram em apenas três anos – foi um microcosmo do que viria a
ser a União Soviética como um todo. Vamos percorrer esse caminho ao longo do ensaio,
aproveitando a análise dos filmes com o embasamento de diversos livros sobre história política e
cultural, entre eles dois lançamentos deste ano.
“Tal como a revolução, o cinema conheceu uma fase de explosão criativa e um posterior
fechamento de horizontes”, anotou o pesquisador e roteirista Leandro Saraiva. De início, enorme
criatividade: basta dizer que alguns poucos filmes realizados no curtíssimo período entre 1923 e
1929 influenciaram cineastas de todo o mundo nas nove décadas seguintes. Até hoje, seja em
Hollywood, em Paris ou nos cursos de cinema do Brasil, esses poucos filmes de que trataremos aqui
são estudados em detalhes.
O debate cultural na Rússia bolchevique começou ainda durante a guerra civil, com Lênin no poder
central (seu primeiro AVC ocorreria em maio de 1922, mas ele ainda conseguiria manter a liderança
por quase um ano depois disso). No ano da revolução surgira o Proletkult, uma instituição que tinha
como único objetivo a criação de uma “arte proletária”. Seus caminhos eram simples – negar toda
forma artística que pudesse ser associada à burguesia, tanto russa quanto internacional, e assim criar
uma cultura nova, voltada para os operários e camponeses russos.
Os dois principais líderes soviéticos, Lênin e Leon Trotsky, acharam a ideia do Proletkult ridícula.
Ao seu estilo, Lênin quis fechar o Proletkult e proibir sua existência, mas foi convencido do
contrário por Trotsky, que, embora radicalmente contrário ao novo instituto, defendia sua liberdade
de atuação. Trotstky aproveitou os verões de 1922 e 1923 para colocar suas ideias em livro,
Literatura e Revolução. Boa parte de seu pensamento na questão artística era compartilhada por
Lênin. Eles acreditavam que cabia aos operários russos, em sua maioria analfabetos esfomeados, se
apropriar de todo tipo de cultura para, então, desenvolver a sua própria.
O que ninguém discordava, entre os bolcheviques, era que a Revolução Russa deveria,
obrigatoriamente, despertar uma nova arte. Era preciso existir uma manifestação cultural
essencialmente soviética. Isso era consenso. As divisões se davam sobre como deveria acontecer.
“Só o progresso do pensamento científico em escala nacional e o desenvolvimento de uma nova arte
mostrariam que a semente histórica não só germinou, como também floresceu. Nesse sentido, o
desenvolvimento da arte é a maior prova da vitalidade e importância de cada época”, anotou
Trotsky em seu livro, deixando claro que, para ele, a necessidade cultural do ser humano é tão
importante quanto sua alimentação, sua moradia e sua educação.
Mais do que na literatura, no teatro ou na música – áreas culturais em que a Rússia apresentava uma
brilhante bagagem herdada do século XIX – entendo que a Revolução Russa pode ser narrada,
efetivamente, pelo desenrolar do cinema – a expressão artística que define o século XX. Foi no
cinema, justamente no período que começa em 1923, que todo esse debate cultural e toda a energia
foi canalizada. Entre os diversos nomes que surgiram, quatro estão acima dos demais: Sergei
Eisenstein, Dziga Vertov, Vsevolod Pudovkin e Lev Kulechov. Dois movimentos culturais de
vanguarda dominavam Moscou e São Petersburgo naquela década a partir de outubro/novembro de
1917: o futurismo e o construtivismo. Essas seriam as chaves culturais do nascente cinema
soviético.
Depois de assistir diversos filmes, nacionais e estrangeiros, em especial o monumental Intolerância,
filmado pelo americano D.W. Griffith em Hollywood entre 1915 e 1916, Lênin escreveu a famosa
frase – “o cinema é a mais poderosa de todas as artes”. Quando a guerra civil terminou e a União
Soviética foi criada, em 1922, não faltaram recursos estatais para a produção e distribuição de
filmes. Era preciso entreter as massas, mas, também, criar uma arte nova, soviética. Juntaram a
fome com a vontade comer: jovens cineastas que acreditavam piamente nos ideais bolcheviques e
com vontade de revolucionar o cinema.
É preciso ter claro que, de modo geral, cinema e propaganda política nacionalista eram coisas que
andavam juntas em diversos países. No mesmo ano da revolução de 1917, o presidente americano
Woodrow Wilson autorizou não só a entrada de suas tropas na Primeira Guerra Mundial, como
permitiu que o cineasta Griffith viajasse para as trincheiras europeias munido de câmeras e rolos de
filme, de forma a voltar com um filme propagandístico, testando a linha tênue entre a ficção de
fatos reais e a propaganda – seria Hearts of the World (1918). Mais tarde, Griffith seria reconhecido
como o “pai do cinema” por grandes nomes como Orson Welles e Charles Chaplin, que, eles
também, cruzariam a fronteira da propaganda política[1], além do próprio Eisenstein. Como
observou o professor de cinema e história da mídia da Universidade de Londres, Ian Christie,
propaganda era algo que “simplesmente todo mundo fazia” durante o período da Primeira Guerra
Mundial e seus anos subsequentes.
Fora dos filmes de propaganda, havia, no começo da década de 1920, apenas três escolas
razoavelmente organizadas de cinema no mundo: o melodrama de Hollywood (com Griffith,
Chaplin, Fairbanks, Mary Pickford e Cecil DeMille); o expressionismo alemão (com Fritz Lang,
Robert Wiene, Murnau, Paul Leni) e os clássicos de época italianos (com filmes como Cabiria, O
Inferno de Dante, Os Dias Finais de Pompeia e Quo Vadis). Arrasada pela Primeira Guerra
Mundial, a Itália perdera completamente a rica indústria de cinema de Turim e somente duas
décadas depois viria a cultura renascer com o “neorrealismo italiano” de Roma. Também os
italianos tinham se rendido a filmes puramente de propaganda a partir de 1915. Assim, eram os
filmes americanos, que viviam o auge do crescimento dos anos 1920, e alemães, que viviam a
agitação total da República de Weimar, que dominavam a sétima arte na Europa, tendo tomado
conta inclusive das salas e anfiteatros franceses, onde o cinema tinha surgido (com os irmãos
Lumière em 1895) e se consolidado (com as invenções de Méliès, a partir de 1902, e com o estúdio
Pathé Frères).[2] Ir ao cinema, no começo da segunda década do século XX, significava assistir a
filmes americanos e alemães.
Quando, então, os cineastas soviéticos começaram a colocar a mão na massa, tinham a chance de
associar o propósito de propaganda que o regime soviético desejava, com os ideais culturais de criar
uma nova escola cinematográfica, capaz de rivalizar com os Estados Unidos e a Alemanha. “A
história do cinema soviético foi desde o princípio, em maior extensão do que em qualquer outro
país, a história do relacionamento entre cinema e política”, registraram os pesquisadores Leif
Furhammar e Folke Isaksson. Naquele começo, o debate cultural na Rússia permitia uma relativa
liberdade de atuação. Poderiam filmar o que quisessem, como quisessem, desde que tivessem base
comunista.
“Nossa política em relação à arte durante o período de transição pode e deve ser a de ajudar os
diferentes grupos e escolas artísticas que nasceram com a Revolução a compreender corretamente o
sentido histórico da época, e conceder-lhes completa liberdade de autodeterminação no domínio da
arte, após colocá-los sob o crivo categórico: a favor ou contra a Revolução”, assinalou Trotsky em
seu Literatura e Revolução, onde também assevera que “ninguém imporá nem se atreverá a impor
aos poetas uma temática; escrevam então tudo o que lhes vier a cabeça!”.
A liberdade, relativa, também ocorria na economia. Depois do desastroso “comunismo de guerra”, o
próprio Lênin percebeu, pragmaticamente, que era necessário estabilizar o poder de compra da
moeda (diante da fome e da moeda desvalorizada, as trocas na Rússia passaram a ser feitas por
escambo durante a guerra civil), além de permitir livre comércio interno e dar autonomia aos
campesinos. Era a Nova Política Econômica (ou NEP, como foi chamada a política instituída em
1921 e que rapidamente fez a Rússia se reequilibrar e crescer).
Nasce o cinema soviético
Eram muitos os jovens talentosos e apaixonados por cinema naquele começo dos anos 1920, como
Alexander Dovjenko, Esther Schub, Alexandrovich Ozep e Abram Marveevich Room, mas
destacamos aqui os quatro já citados: Dziga Vertov, Vsevolod Pudovkin, Lev Kulechov e Sergei
Eisenstein, todos com 23 a 29 anos de idade quando o cinema começou a decolar.
De família aristocrática, mas de coração bolchevique desde os primeiros dias da revolução,
Kulechov funcionaria como o equivalente ao produtor George Martin para os Beatles. Isto é, menos
como diretor de filmes e mais como a peça intelectual que ajudou a formar grandes artistas num
meio ainda em desenvolvimento. Com apenas duas décadas e meia de existência, o cinema ainda
passava por consolidação de narrativa, edição, montagem, atuação, roteiro e tudo isso frente a um
veloz salto tecnológico. Kulechov era pintor e já trabalhava com cinema antes da revolução de
1917. Depois, ele formou um laboratório para desenvolver técnicas de montagem. Ele acreditava
firmemente que cabia ao cinema o grande poder da montagem e, neste sentido, a figura do diretor
ganharia proeminência: o poder do story-telling do diretor era mais importante do que a imagem por
ela mesma. Uma mesma imagem, como o rosto de um homem, por exemplo, poderia significar
qualquer coisa, a depender de outras imagens inseridas na montagem, em justaposição. Seu filme
mais famoso é uma comédia lançada em 1924, As Aventuras Extraordinárias do Sr. Oeste na Terra
dos Bolcheviques, que parodiava a visão dos norte-americanos sobre a primeira nação comunista.
Passaram por sua escola Eisenstein e Pudovkin, mas também Vertov defendia a mesma ideia, ainda
que de forma mais radical. Como entre a Revolução e a instituição da União Soviética todos os
esforços foram concentrados na guerra civil e depois na construção do novo regime, eram poucos os
rolos de filmes disponíveis. Assim, muito dos avanços em montagem realizados pelos cineastas
soviéticos vieram de um problema prático e real, isto é, da necessidade de fazer muito com poucos
recursos materiais.
Dziga Vertov era o responsável pelo Kino-Pravda, o cine-jornal, e registrava tudo o que ocorreria
nos principais centros do país com sua câmera. Acreditava que o novo cinema deveria ser isso: a
“verdade real” e os atores não deveriam ser artistas, mas sim pessoas comuns, os próprios
protagonistas de ações costumeiras. Dele nasceu a expressão de “cinema verdade”, que muitas
décadas depois mobilizaria os franceses revoltosos de 1968.
Outro jovem russo em ação era Eisenstein, este vindo do teatro para os trabalhadores (e justamente
para o Proletkult). Seu primeiro filme durava 10 minutos e acompanhava uma peça, em 1923. Dali
ele decidiu mudar de carreira e passou a fazer do cinema a sua vida. Eisenstein dirigiu filmes
clássicos de toda a história do cinema, como A Greve e seu mais famoso, O Encouraçado Potemkin,
entre 1924 e 1925. Neles, o herói é o coletivo (os sindicatos, os marinheiros, as mulheres) e o
indivíduo é o vilão – o capitalista desonesto em A Greve e o Estado imperial em Potemkin. Estava
subvertido no roteiro, de partida, o ideal melodramático. Esses longas-metragens, em especial
Potemkin, ganharam exibições de gala na Europa e também nos Estados Unidos, o que trouxe
prestígio para Eisenstein não só dentro de seu meio, mas também junto aos burocratas soviéticos.
Enquanto trabalhava no roteiro, na filmagem e na montagem, Eisenstein também escrevia muito,
teorizando o cinema e seu estilo de organização, trazendo métodos das artes plásticas, da poesia
construtivista e amarrando o ideal narrativo da literatura do inglês Charles Dickens com o estilo
cinematográfico do americano Griffith como base para o novo cinema soviético. Passou a dar aulas
de cinema no ensino superior soviético (algo que Kulechov já fazia) e também a escrever ensaios
analíticos, numa ambição de criar teoria na sétima arte.
Pudovkin, por outro lado, fazia um cinema mais clássico, mais facilmente assimilado pelas mentes
daquela década, mas também experimentava na montagem. Pudovkin faria A Mãe, de 1926, uma
adaptação cinematográfica do romance que Maksim Górki lançara duas décadas antes e que já tinha
sido adaptada para o teatro pelo alemão Bertold Brecht. No ano seguinte, Pudovkin realizou sua
obra maior, O Fim de São Petersburgo, que fez parte das comemorações de dez anos da revolução e
cujas imagens causam impacto até hoje, com a conversão ao comunismo bolchevique de um
camponês inicialmente alienado. O último de sua trilogia clássica seria Chuva sobre a Ásia, de
1928, com cenas finais marcantes, de domínio puro da montagem – uma tempestade que cai sobre
os asiáticos, numa alegoria da transformação comunista do continente.
Mesmo rompendo com a linguagem tradicional do melodrama e da propaganda mais simples, os
filmes, ainda assim, eram sucesso de público no exterior (Berlim, Paris e Nova York eram grandes
mercados para esses filmes, apesar da temática comunista) e também arregimentavam grandes
multidões para os cinemas soviéticos.
Diante do sucesso, especialmente entre os críticos, Eisenstein foi contratado pelo governo soviético
para produzir uma obra de homenagem aos 10 anos da Revolução, completados em 1927. Mesmo
extrapolando o prazo (o filme só ficou pronto em 1928, o que evidentemente desagradou o
governo), ele entregou sua terceira obra prima consecutiva: o filme Outubro: os dez dias que
abalaram o mundo, que, apesar da roupagem claramente oficial e institucional, é brilhante (em
especial a primeira parte). Entre diversas cenas que passaram à história há aquela que Eisenstein
denominou de “o bacanal da destruição”, que registra a ocupação do Palácio de Inverno pelos
bolcheviques, que destroem centenas de garrafas de vinhos importados mantidos pelo czar. As
imagens da ocupação, encenadas por milhares de figurantes filmados por Eisenstein, foram
repetidas à exaustão ao longo dos anos, dentro e fora da Rússia, e se inscreveram no imaginário
coletivo como se fossem o registro real, em documentário, dos acontecimentos de 1917. O filme
não repetiu o sucesso de público que seus dois primeiros, sendo criticado pelo excesso de
“formalismo” – o regime soviético preferiu O Fim de São Petersburgo, de Pudovkin (que,
curiosamente, teria dito que Outubro era superior)[3].
Enquanto isso, Vertov abria inflamadas discussões com os demais, em especial com Eisenstein, por
acreditar que os filmes deveriam ser feitos somente com pessoas comuns, que a história real era
superior a qualquer roteiro, e que a prática de “contar histórias” estava com os dias contados. Ele
produzia rolos quilométricos de filmes e depois passava meses montando seus trabalhos. Seu
clássico maior é o filme Um Homem com uma Câmera, que ficou pronto em 1929 e subverteu
completamente a linguagem cinematográfica: nunca antes fora feito um filme tão cheio de
experimentações, de metalinguagem e com pessoas comuns em cena, que, ao mesmo tempo,
intrigava, enjoava e entretinha o espectador.
Mais de trinta anos depois de lançado, esse longa influenciaria o francês Jean-Luc Godard a
abandonar o movimento da Nouvelle Vague, romper com o amigo François Truffaut e realizar
filmes semelhantes aos de Vertov.[4]
Parecia que a década que terminava apresentava a redenção de Eisenstein, Vertov e Pudovkin,
influenciados pelos desenvolvimentos teóricos de Kulechov, que experimentavam sucessos de
público e reconhecimento da crítica internacional. Mas quando Outubro e Um Homem com uma
Câmera foram lançados, o quadro já era sombrio. A explosão de criatividade e relativa liberdade
artística do início dos anos 20 tinha sido, aos poucos, podada por burocratas do Partido Comunista
Russo e do Estado soviético. Aliás, tudo, agora, era uma coisa só: governo, partido, sovietes e
sindicatos. E toda essa máquina era controlada por um homem: Josef Vissarionovich Stalin.
Censura e controle total do stalinismo: a inevitabilidade do comunismo
No final da década, Stalin já tinha consolidado seu poder – era o início do período conhecido como
auge do stalinismo. Indicado por Lênin para ser o secretário-geral do Partido Comunista, Stalin era
o terceiro homem mais forte na União Soviética no início dos anos 1920, abaixo do comandante do
país e de Trotsky. Com o cargo que tinha, passou a deter o poder de indicar companheiros para
postos no partido, no Estado e nas diversas empresas estatizadas e também nos sindicatos. Foi
exatamente o que Stalin fez, com enorme precisão. Como anotou em seu diário Georgi Dimitroff
após conversas com o próprio Stalin, a tática era simples e infalível: Stalin construíra sua base de
poder e legitimidade por meio dos quadros intermediários, indicados por ele a cargos mais ou
menos relevantes, e que deviam a ele, Stalin, seus salários e seus poderes.[5]
A operação stalinista começou no início da década de 1920, após ganhar a projeção interna por
conta de Lênin, e teve seu apogeu logo após o aniversário de dez anos da Revolução Russa. A
historiadora Sheila Fitzpatrick, uma das principais referências em história política da União
Soviética, registrou que entre 1928 e 1929, a União Soviética foi palco de uma “virada
devastadora”, com a radicalização total da revolução de 1917. Esse se tornou um consenso entre
boa parte dos analistas.[6] Naquele período, o controle de Stalin sobre o partido e o Estado ficara
completo e ninguém mais conseguiria superá-lo.
Três movimentos foram consolidados nesse período. O primeiro foi o esmagamento total da
chamada “oposição à esquerda”, liderada por Trótsky. Ele foi expulso do partido, enviado para o
exílio forçado na Sibéria e, por fim, forçado a deixar o país, em janeiro de 1929. Depois foi a vez da
opressão violenta da chamada “oposição à direita”, esta liderada por Ríkov e Bukhárin. As facções
dentro do Partido Comunista estavam proibidas desde 1921, a mando de Lênin, mas isso não
impediu que rachas surgissem. À esquerda, Stalin era questionado por não apoiar movimentos
revolucionários fora da União Soviética, mais preocupado em organizar o novo estamento
burocrático socialista russo. À direita, as críticas se davam à sua decisão de encerrar a Nova Política
Econômica e a relativa liberdade econômica, com a brutal política de coletivização no campo, a
proibição do livre comércio interno e a estatização total da economia. Depois desses dois
movimentos – o esmagamento das oposições à esquerda e à direita – Stalin consolidou o último
movimento, que foi o culto à sua personalidade, iniciado indiscutivelmente no fim de 1929, com as
manifestações oficiais de apreço total ao líder soviético por conta de seu aniversário. Naquele ano,
também, é iniciado o primeiro Plano Quinquenal, com uma avassaladora política de industrialização
do país.
Aqui, antes de voltarmos ao cinema, é importante deixar claro uma coisa. Uma parte considerável
da historiografia política marxista (inclusive brasileira) foi gasta para dissociar o pai da Revolução
Russa (Lênin) de sua maior criatura (Stalin). É inegável que o próprio Lênin tenha percebido,
tardiamente, o que fizera: em seu testamento, escrito em janeiro de 1923, dois meses antes de sofrer
novo AVC (que o deixaria praticamente paralisado, sem fala, até a morte em janeiro do ano
seguinte), Lênin pede aos companheiros de partido que tirem Stalin do cargo de secretário-geral.
Mas, para além desse exercício de psicologia e de relações humanas, Lênin tinha como essência
teórica e prática algo muito semelhante ao que viria a ser o stalinismo. Isso é reconhecido,
inclusive, pelo filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek, que, ao seu modo duro, escreveu que
era necessário “parar com o ridículo jogo de contrapor o terror stalinista ao ‘autêntico’ legado traído
pelo stalinismo: o leninismo é uma noção completamente stalinista”. Também a historiadora
australiana Sheila Fitzpatrick deixa claro que há mais pontes do que distinções entre criador e
criatura: “a tradição bolchevique de organização centralizada e disciplina partidária rigorosa levou o
novo regime soviético ao autoritarismo repressivo e estabeleceu os alicerces para a posterior
ditadura totalitária de Stalin”. Depois de abertos os arquivos soviéticos, no fim de 1991, a
historiadora traduziu do russo uma manifestação de Viatcheslav Mólotov, que fora companheiro
próximo de Lênin e, depois, um dos mais fiéis stalinistas: segundo ele, Lênin era ainda mais
obstinado que Stalin no início dos anos 1920 e “não teria tolerado oposição alguma, se tivesse
existido essa opção”. Não apenas as concepções teóricas pré-revolução apontavam para essa
inevitabilidade do stalinismo, mas também, como observou Robert Tucker, a prática, uma vez que o
poder bolchevique se consolidou após sangrenta guerra civil entre o Exército Vermelho e a chamada
Guarda Branca, que durou três longos anos, e envolveu o recrutamento de militantes a partir da
disciplina militar em tempos bélicos, portanto não democrática. Nas palavras de Fitzpatrick:
Lênin e Trótsky expressavam desprezo por socialistas incapazes de compreender a
necessidade do terror. “Se não estamos dispostos a fuzilar um sabotador e guarda
Branco, que tipo de revolução é essa?”, Lênin advertia seus colegas no novo governo.

Ao concentrar o poder, desenvolver o culto à sua personalidade, comandar expurgos, prisões e


assassinatos de dissidentes, instituir a paranoia coletiva e esmagar formas razoavelmente livres de
manifestações artísticas, Stalin não estava atuando como uma besta descontrolada, mas como um
organismo numa esteira contínua. Ele subia o degrau inevitável na evolução política e social do
movimento bolchevique. Ao realizar a revolução dentro da revolução (ou golpe dentro da
revolução) em outubro/novembro de 1917, os bolcheviques estavam, invariavelmente, semeando as
condições para o que viria a ser o stalinismo. O próprio Stalin usou métodos leninistas para
consolidar seu poder, distribuindo cargos para companheiros leais e promovendo expurgos daqueles
que lhe faziam oposição.
Agora, de volta às artes. A radicalização da revolução, comandada por Stalin em 1928-29, foi
institucionalizada de forma sombria, atingindo em cheio a cultura artística, em seu conjunto. Ainda
em 1928 foi realizado o Simpósio do Partido Comunista Russo sobre cinema, momento em que os
burocratas começaram a deixar claro que “não queriam ser incomodadas com ideias como
vanguardismo, formalismo, simbolismo ou experimentação, sem importância direta para o povo”. O
desejo virou dogma e mesmo filmes que seguiam a cartilha, como A Terra, que o competente
cineasta soviético Alexander Dovjenko lançou dois anos depois do simpósio, eram criticados por
não arrebatarem o público como o esperado. Era preciso filmar o que o Partido demandava e, ao
mesmo tempo, entusiasmar o povo local. Pouco depois, em outubro de 1932, Stalin participou de
encontro de escritores promovido na casa de Maksim Górki, em Moscou, e disse que os homens de
letras deveriam ser “engenheiros das almas humanas”. Ali começou a ser germinado o conceito que
dois anos mais tarde ganharia o nome de “realismo socialista”, que entendia que a boa cultura (na
literatura, na música, no cinema, no teatro) deveria ser aquela que retratasse a suposta realidade
heroica das pessoas comuns e isso deveria ser feito de uma forma simples de ser compreendida.
Não mais o coletivo, mas o indivíduo heroico. Foi justamente a partir daquele momento, após a
radicalização da revolução promovida por Stalin, que toda a efervescência artística desapareceu e,
mais ainda, quando os artistas em si começaram a ser simplesmente censurados e assassinados.
Escreve Zizek:
No tempo de Lênin, o terror era admitido abertamente (Trotsky às vezes se gabava, de
modo quase arrogante, da natureza não-democrática do regime bolchevique e do terror
que empregava), ao passo que, no tempo de Stalin, o status simbólico do terror mudou
completamente: o terror se transformou no suplemento sombrio, obsceno e não
reconhecido em público do discurso oficial. É significativo que o clímax do terror
(1936-37) tenha vindo após 1935, quando a nova constituição foi aceita – essa
constituição supostamente deveria pôr fim ao estado de emergência e proclamar que as
coisas tinham voltado ao normal (…) Isso não quer dizer, entretanto, que a constituição
stalinista fosse mera hipocrisia que ocultava a realidade social – a possibilidade de
terror estava inscrita em seu cerne: como a guerra entre classes tinha terminado
oficialmente e a União Soviética passava a ser concebida como um país sem classes e
do povo, aqueles que se opusessem ao regime (ou que se imaginava que o fizessem) não
seriam mais apenas inimigos de classe num conflito que divide o corpo social, mas sim
inimigos do povo, vermes, escória sem valor que deve ser excluída da própria
humanidade.

Guardadas as devidas proporções, algo semelhante ocorreria na China. Nos primeiros anos após a
Revolução Chinesa de 1949, o líder comunista Mao Tsé Tung escreveu em seu livro Sobre a arte e
a literatura ideias praticamente idênticas às de Lênin e Trotsky, como a seguinte: “Devemos nos
apoderar do rico legado deixado pela literatura do passado, tanto na China como no exterior, e
continuar suas belas tradições”.[7] Quase duas décadas depois, após a revolução cultural de 1966,
Mao passou a defender estratégias distintas, que negavam toda e qualquer cultura chinesa e
estrangeira que não fosse “maoísta”, apelando para um estilo de propaganda artística muito
semelhante ao realismo soviético preconizado por Stalin. Dado que governou por tanto tempo, de
1949 a 1976, Mao Tsé Tung sozinho acabou conduzindo na China as duas fases soviéticas (sendo a
primeira, mais aberta, de 1917 a 1928-29, e a segunda, essencialmente stalinista, depois de 1928-
29).[8]
O cinema soviético mudou com o stalinismo. O período de relativa liberdade artística, encerrado
entre 1928 e 1929, foi então seguido de uma fase terrível – em todos os sentidos.
Depois de sua tríade de sucessos (A Greve, O Encouraçado Potemkin e Outubro), Eisenstein deixou
a Rússia em 1929 logo depois de terminar um filme com viés mais melodramático (A Linha Geral,
que sofreu cortes de burocratas para conseguir ser distribuído). Ele iniciou uma viagem de três anos
pelo mundo, para conhecer outras escolas de cinema e se aprimorar como diretor e teórico.
Conheceu os Estados Unidos, onde esteve com Walt Disney, Charles Chaplin e D.W. Griffith,
filmou no México financiado por produtores norte-americanos e somente voltou a Moscou em
1931, quando seu visto venceu e, também, quando eram robustas as teorias de conspiração sobre
sua longa viagem ao Ocidente. Em 1931, Moscou era uma cidade completamente diferente. A
União Soviética mudara muito e os olhos de Eisenstein também eram outros. Era agora o país da
industrialização forçada, sem qualquer debate político (com o esmagamento das oposições à
esquerda e à direita), com paranoia coletiva e espionagem interna, e, para completar, com milhões
de pessoas e animais morrendo de fome após as quebras de safras por estiagem e pela desastrosa
política de coletivização forçada.
Os artistas razoavelmente livres não existiam. “Os jornais já não traziam anúncios do último filme
de Mary Pickford nem relatavam fatos triviais como acidentes de trânsito”, observou Fitzpatrick, “o
contato com o Ocidente ficou muito mais restrito e perigoso”. O poeta Maiakovsky cometera
suicídio em 1930, no mesmo ano em que o pintor Kazimir Malevich, professor e vanguardista nas
artes plásticas, fora preso, interrogado e torturado (ele morreria cinco anos depois). Homens e
mulheres em todas as correntes culturais eram censurados, execrados em público, perseguidos,
torturados, assassinados – e a sina recaía também sobre seus familiares e amigos. O grande
compositor Dmítri Chostakóvitch pode ser invocado como exemplo desse período bárbaro, uma vez
que o terror dos Grandes Expurgos fora ensaiado meses antes: sua amante Elena Konstantínoskaia
foi presa em 1935; sua assistente de trabalho Galina Serebriákova foi mandada aos gulags em 1936,
de onde só voltaria mentalmente deformada quinze anos depois; além deles, também a irmã, o
cunhado, o tio e a sogra do compositor foram presos. O escritor A. Lejnev fora grampeado pelo
regime criticando a ditadura stalinista e a perseguição que faziam sobre Chostakóvitch. Resultado:
Lejnev foi fuzilado em 1938, no mesmo ano em que um dos pais da revolução, o teórico marxista
Bukhárin (e líder da “oposição à direita”) também foi assassinado após julgamento fajuto.[9]
Com o Segundo Plano Quinquenal (1933-37), o apelo pela industrialização veloz e a qualquer custo
ganhou ainda mais vigor, enquanto também a situação internacional ficara mais aguda, com a
eleição de Adolf Hitler para o comando da Alemanha. Para completar esse quadro sinistro, Stalin, o
terrorista-mor, comandaria os Grandes Expurgos de 1937-38, quando centenas de milhares de
pessoas foram executadas e um volume ainda maior de seres humanos punidos com o trabalho
forçado. Segunda a historiadora Sheila Fitzpatrick em sua versão mais recente de A Revolução
Russa, lançado há um mês no Brasil em bonita edição da Todavia, os Grandes Expurgos
representaram o fim da Revolução Russa.
Mesmo concluídos os Grandes Expurgos, o terrorismo de Estado continuou, mas de forma menos
abrangente e mais cirúrgica. Em 1940, o diretor de teatro Vsevolod Meyerhold, que
entusiasticamente defendera a revolução de 1917 e cujo trabalho influenciara diretamente o cinema
de Eisenstein, teve a esposa esfaqueada dentro de casa por homens da ditadura stalinista enquanto
ele era torturado na cadeia. Meyerhold seria executado pelo esquadrão de morte do governo,
acusado de trotskismo e de oposição ao realismo socialista nas artes. No mesmo ano, 1940, o
escritor Isaac Babel, que vivia no ostracismo com suas obras proibidas de circular, também foi
assassinado por fuzilamento depois de confessar sob tortura que era trotskista. Também Górki, que
recebera Stalin para a conversa com escritores em sua casa em outubro de 1932, onde começara a
ser germinado o “realismo socialista”, morreu de forma misteriosa quatro anos depois. O horror
atingiu também um dos capatazes – Iejov, o chefe da polícia política NKVD, que entre setembro de
1936 e dezembro de 1938 comandara as mais de 680 mil execuções, além das torturas e dos exílios
forçados a campos de trabalho. Iejov, que gozara da confiança total de Stalin para conduzir todo
esse processo, foi pouco depois também preso e fuzilado. Relata Fitzpatrick:
Em 1924, durante o interlúdio da NEP, um moscovita que voltasse depois de dez anos
de ausência podia apanhar a lista telefônica de sua cidade (imediatamente reconhecível,
pois seu velho design e formato praticamente não foram alterados desde os anos pré-
guerra) e ter uma boa chance de encontrar o registro de seu velho médico, do advogado
ou até mesmo do corretor de valores, do confeiteiro (ainda com uma discreta
propaganda do melhor chocolate importado), da taverna local e do padre da paróquia,
bem como das firmas que, em outros tempos, consertaram seus relógios. Dez anos mais
tarde, em meados dos anos 1930, quase todos esses registros teriam desaparecido, e o
viajante que voltasse ficaria ainda mais desorientado por causa dos novos nomes de
muitas ruas e praças de Moscou, além da destruição de igrejas e outros pontos de
referência até então familiares. Mais alguns anos e a própria lista telefônica da cidade
teria desaparecido, para ser publicada de novo somente meio século depois.

O cinema não saiu impune do terror. A criatividade e relativa liberdade artística dos anos 1920
foram totalmente esmagadas a partir de 1928-29. Com o advento do “realismo socialista”, em 1934,
e os Grandes Expurgos de 1937-38, estava consolidada a morte de qualquer arte que não fosse
aquela desejada ou autorizada pelos burocratas stalinistas. Foi quando inclusive o cinema, tal qual
as outras manifestações artísticas, passou a ser determinado como parte da história oficial. História
não: manipulação da memória humana, como definiu Renmick, em outro grande livro lançado este
ano (O Túmulo de Lênin, pela Companhia das Letras, traduzido por José Geraldo Couto, também
responsável pela versão em português do supracitado A Revolução Russa de Fitzpatrick):
Stalin herdou a tradição de manipular a memória humana, e chegou perto da perfeição
nisso. Nos primeiros dez anos após a Revolução Bolchevique houvera certo grau de
coexistência entre os historiadores, um debate entre marxistas ortodoxos e seus
oponentes “burgueses”. Tudo isso chegou ao fim na primeira – e única – Conferência
Nacional de Historiadores Marxistas realizada em 1928, mesmo ano em que Stalin se
tornou o líder inconteste do Estado. Como a conferência deixou claro, a consolidação do
poder de Stalin lhe dava controle absoluto sobre a história. Em 1934, o Comitê Central
do Partido Comunista emitiu um decreto determinando que uma versão ideológica
estrita da história se tornasse doutrina em todos os livros didáticos, escolas,
universidades e institutos. O próprio Stalin supervisionou pessoalmente a escrita e a
publicação de uma tiragem de 50 milhões de exemplares do famoso “Curso Breve”, um
raivoso panfleto ideológico que era, nas palavras do historiador Genrikh Josse, “como
um martelo enfiando pregos de falsidade no cérebro de cada aluno”.

Em meio a tudo isso estava o cinema. Vertov, que ainda lançaria Três Canções para Lênin (de
1934), perdeu acesso a recursos financeiros para fazer filmes conforme se adensava a percepção de
“realismo socialista”. Seus filmes passaram a ser considerados herméticos demais pelo governo.
Morreria esquecido em fevereiro de 1954, uma década e meia antes de ser venerado por Godard na
França.
Eisenstein, questionado pela ditadura por conta de sua longa viagem ao Ocidente, passou a ter
enormes dificuldades para rodar seus filmes. Depois da intervenção forçada em A Linha Geral,
concluído em 1929 pouco antes de seu embarque para a Europa ocidental, os Estados Unidos e o
México, Eisenstein teve a partir de 1931, quando voltou a Moscou, censura como regra: precisou
abandonar filmagens de dois longas no meio (O prado de Bejin, de 1935-37, e O canal de Fergana,
de 1939) além de outros roteiros que não eram sequer aprovados. No meio do caminho, no entanto,
ele ainda gozaria de apreço oficial depois de dirigir Alexander Nevsky, um sucesso de público e de
propaganda russa (apesar de ser um filme tolo e infinitamente pior que suas três obras anteriores). O
filme tem um background curioso: Eisenstein aceitou o projeto como “última chance” concedida
por Stalin a ele e entregou um filme de época com propaganda nada sutil da Rússia contra a
Alemanha nazista. O longa foi lançado no fim de 1938. Poucos meses depois, Stalin fechou seu
acordo com Adolf Hitler e o filme foi imediatamente retirado da distribuição oficial, mesmo sendo
um sucesso de público. Dois anos depois, em 1941, quando o acordo tinha sido rompido e a
Segunda Guerra Mundial estava no auge, o filme voltou a ser distribuído, tanto na União Soviética
quanto no exterior, e voltou a ser sucesso de público.[10] Eisenstein ganhou medalhas de honra de
Stalin e voltou a ter prestígio para seu projeto seguinte – a trilogia Ivan, o Terrível. A primeira parte
saiu em 1944 e ganhou, mais uma vez, o sinal verde de Stalin. Multidões foram às salas de projeção
para assistir ao filme e Eisenstein foi mais uma vez elogiado e prestigiado pela ditadura. A segunda
parte, no entanto, desagradou e os censores soviéticos proibiram sua exibição. Eisenstein morreria
em 1948, sem que a terceira parte fosse sequer terminada (os negativos do terceiro longa foram
quase totalmente destruídos pelo governo).
O único a seguir de forma razoavelmente inabalável durante todo o período pós-1929 foi Pudovkin.
Ele se converteu de corpo e alma ao stalinismo e passou a acumular medalhas de honra do governo
e a gozar de enorme carinho dos burocratas soviéticos. Inevitavelmente, sua arte estava morta. Tão
logo Hitler subiu ao poder na Alemanha, no início de 1933, o Partido Comunista Russo passou a
esperar filmes que atacassem o fascismo alemão. Pudovkin foi rápido: no mesmo ano filmou e
lançou O Desertor, que conta a história de um operário alemão que fugiu de seu país e foi morar na
União Soviética, onde encontrou os camaradas comunistas e percebeu que era necessário voltar para
a Alemanha para fazer a revolução por lá. Depois, quando os burocratas decidiram que era preciso
alertar Hitler que era melhor manter o pacto de não-agressão fechado com Stálin, lá estava
Pudovkin filmando Suvorov, de 1940, que conta a história do general russo que vencera todas as
batalhas europeias dois séculos antes. Apesar do sucesso e do conforto em vida, ele nunca mais
repetiria filmes poderosos como seus três primeiros e, mesmo tendo seguido a cartilha stalinista,
precisou se desculpar ao Partido Comunista Russo em algumas oportunidades, por filmes que não
acompanhavam totalmente a bula indicada. Faleceria em junho de 1953, aos 60 anos, apenas três
meses depois de Stalin.[11]
Poucos anos mais tarde, o escritor russo Vladimir Nabokov, radicado nos Estados Unidos, diria em
discurso no Festival de Artes de abril de 1958 da Universidade Cornell que na Rússia sempre houve
restrição ao pensamento artístico, mas que antes do período soviético “não se davam ordens” aos
artistas. No auge do sucesso de seu livro mais famoso, Lolita, prestes a ser adaptado ao cinema por
Stanley Kubrick, o escritor foi convidado a falar sobre a literatura de seu país originário. A lógica
apresentada por ele vale perfeitamente para o que ocorria no cinema. Nabokov, inclusive, destaca
frase do sucessor de Stalin, Nikita Kruschvev (que ele inclusive ridiculariza ao se questionar sobre a
grafia correta do sobrenome), dita na União Soviética poucos meses antes do colóquio sobre
literatura:
Nada mudou na filosofia do Estado quando Lênin foi substituído por Stálin, e nada
mudou agora com a ascensão de Kruschev ou Kruschov ou como quer que ele se chame.
Permitam-me citar o que ele disse sobre literatura numa recente reunião do partido
(junho de 1957):

“A atividade criativa no domínio da literatura e da arte deve ser impregnada do espírito


de luta em prol do comunismo, instilar nos corações o entusiasmo e a força das
convicções, deve desenvolver a consciência socialista e a disciplina de grupo”. (…)

Uma vez que se estabelece um limite para a imaginação e a vontade do autor, todo
romance proletário precisa ter um final feliz, com o triunfo dos soviéticos, razão pela
qual o escritor e confrontado com a terrível tarefa de gerar uma trama interessante
quando o desfecho é oficialmente conhecido pelo leitor por antecipação.

Obituário
No cinema, a revolução russa de 1917 e a consequente vitória dos bolcheviques na guerra civil e a
instituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) gerou sete anos de filmes
magníficos, entre 1923 e 1929, seguidos de controle estatal e o emburrecimento inevitável,
assassinatos, depressão e seguidos anos de filmes abaixo da crítica, com raríssimas exceções (a
principal delas sendo Chapaev, filme de 1934 dos irmãos Vasilyev, que ganhou prêmios nos Estados
Unidos e na França). Moniz Bandeira descreveu corretamente que as obras do chamado “realismo
socialista”, iniciado após a radicalização da revolução promovida por Stalin, refletiram, em sua
mediocridade, “não o desenvolvimento de uma cultura proletária, mas a degenerescência
burocrática que se cristalizou no stalinismo”. Com a radicalização total promovida por Stalin entre
1928-29, o cinema como posto de experimentações criativas foi também assassinado aos poucos. O
fundo do poço, em qualidade e em quantidade, foi atingido em 1952, quando apenas cinco filmes
foram lançados: a causa principal era o estrangulamento de uma burocracia censuradora, que atingia
dimensões quase incríveis, uma vez que cada roteiro tinha de ser esquadrinhado por 28 repartições
diferentes antes que a produção pudesse começar e, mesmo depois de concluído, o filme poderia ser
editado, a mando do partido, ou simplesmente proibido. O “ressurgimento” do cinema soviético dos
anos 1960 e 1970 foi muito mais fruto das experimentações isoladas de Andrei Tarkovisky do que
propriamente um movimento de cineastas, bem como ocorre nas últimas duas décadas com
Alexandr Sokurov.[12]
Quase 100 anos depois, aqueles poucos filmes soviéticos do imediato pós-revolução continuam
relevantes. Influenciaram direta ou indiretamente ao menos três grandes escolas de cinema: o
Cinema Novo brasileiro e os citados Neorrealismo Italiano e Nouvelle Vague francesa. No caso
brasileiro, os filmes soviéticos eram reverenciados por cineastas como Nelson Pereira dos Santos,
Glauber Rocha e Leon Hirzman. Glauber foi além: homenageou Eisenstein no sertão baiano, ao
filmar cenas muito semelhantes ao icônico massacre da escadaria de Odessa (o trecho mais
marcante de O Encouraçado Potemkin) com os moradores de Monte Santo, no final do seu Deus e o
Diabo na Terra do Sol, filmado em 1963. Na França, Godard abandonou a Nouvelle Vague e foi
liderar um grupo que levava no nome Dziga Vertov.
Depois do fracasso da União Soviética, desmantelada em 26 de dezembro de 1991, a Rússia saltou
de cabeça em modelo político e econômico radicalmente distinto. Depois de duas duras crises
econômicas (a de 1992-94 e a de 1998-99), o país surfou no período de forte alta de preços de
produtos primários e seu onipresente líder Vladimir Putin retomou os ideais de “Grande Rússia” ao
recuperar o intervencionismo bélico (vide o que foi feito na Geórgia em 2008, na Ucrânia em 2014
e o apoio russo ao regime do ditador sírio Bashar Al Assad). Agora, a Rússia foi palco da Copa das
Confederações de 2017 e será da Copa do Mundo de 2018. Escrevia Eisenstein na primeira metade
do século passado:
No início dos anos 1920, todos viemos para o cinema soviético como para algo ainda
inexistente. Não chegamos a uma cidade já construída: não havia praças nem ruas
traçadas; nem mesmo pequenas alamedas tortuosas e becos sem saída, como os que
podemos encontrar nas metrópoles cinematográficas de hoje. Chegamos como beduínos
ou caçadores de ouro a um lugar de possibilidades inimagináveis, das quais apenas uma
pequena parte foi explorada até hoje.

O cinema russo, em meio a tudo isso, continua à espera de uma nova escola. O eco da censura que
aniquilou a explosão de criatividade parece continuar ensurdecedor.
______
PS: O autor agradece muito os comentários do professor-doutor de cinema da Universidade Federal
de Goiás (UFG), Rodrigo Cássio, para esse texto.
______
BIBLIOGRAFIA
EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
FITZPATRICK, Sheila. A Revolução Russa. São Paulo: Todavia, 2017.
FURHAMMAR, Leif e FOLKE, Isaksson. Cinema e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. “O marxismo e a questão cultural” escrito em agosto de 1968
como prefácio de Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
NABOKOV, Vladimir. Lições de literatura russa. São Paulo: Três Estrelas Editora, 2014.
RENMICK, David. O Túmulo de Lênin. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
ROSS, Alex. O resto é ruído: escutando o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SARAIVA, Leandro. “Montagem Soviética”, capítulo do livro História do cinema mundial,
organizado por Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2006.
TROTSKI, Leon. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
TUCKER, Robert. Stalinism: Essays in Historical Interpretation. Inglaterra: Routledge, 1998.
ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução: seleção dos escritos de Lênin de fevereiro a outubro de
1917. São Paulo: Boitempo, 2005.
______
NOTAS
[1] Chaplin com “O Grande Ditador”, de 1939, e Welles com o inacabado “É Tudo Verdade”,
filmado no Brasil em 1942 com financiamento do governo americano, que tinha como objetivo
ampliar os laços com a América Latina durante a Segunda Guerra Mundial.
[2] Somente no fim da década de 1920 é que novas escolas voltaram a surgir, como o “cinema
poético” de Jean Vigo e Jacques Feyder. No mesmo período, Luís Buñuel começou o surrealismo
espanhol e Mizoguchi e Ozu iniciaram seus primeiros trabalhos no Japão. Essa agitação na França,
na Espanha e no Japão, no entanto, ocorreria somente depois do surgimento e da consolidação do
cinema soviético. Daí que dizemos aqui que, quando os russos começaram a formar sua escola
cinematográfica, em 1923-25, as escolas realmente consolidadas eram o antigo cinema italiano de
Turim (1911-1914), o de Nova York-Hollywood americano (1907 em diante) e o expressionismo
alemão (1919 em diante).
[3] O registro vem de Film Propaganda: Soviet Russia and Nazi Germany, do historiador Richard
Taylor (1979).
[4] Aliás, Godard criou um movimento denominado Groupe Dziga Vertov com o intuito de
radicalizar a mensagem (já em si radical) do mestre soviético. O grupo durou de 1968 a 1972. Um
dos filmes dirigidos por Godard neste período, e que faz parte do movimento, é “Vento do Leste”
(1970), que tem o brasileiro Glauber Rocha como protagonista.
[5] Os diários, referentes a anotações de 1933 a 1943, foram citados por ZIZEK (pg. 203, 2005).
Em uma anotação de 7 de novembro de 1937, Dimitroff deu a senha do stalinismo: “Por que
triunfamos sobre Trotsky e outros? Sabe-se que, depois de Lênin, Trotsky era o mais popular em
nossa terra… Mas tínhamos o apoio dos quadros intermediários, e eles explicaram às massas nossa
compreensão da situação… Trotsky não prestou atenção a esses quadros”.
[6] Segundo Zizek, a política de Stalin de 1928 em diante foi “resultado paradoxal da tentativa de
estabilizar a União Soviética como um Estado igual a qualquer outro, com limites e instituições
firmes – quer dizer, o terror foi um gesto de pânico, uma reação de defesa contra a ameaça à
estabilidade do Estado” (pg. 335).
[7] Em MONIZ BANDEIRA (1968).
[8] Algo semelhante também ocorreu em Cuba. Nos primeiros anos após a revolução de 1959, Fidel
Castro dirigia-se aos intelectuais de seu país pregando “a boa cultura”, que não precisava ser
política. Ele disse isso claramente em discurso de 13 de março de 1962: “prefiro um bom poema de
amor a um mau poema político, porque o mau poema político desserve à revolução”. Como
governou diretamente por longos 49 anos, quando passou o poder para o irmão Raúl, Fidel também
coordenou uma espécie de revolução dentro da revolução, fechando o regime, censurando as artes e
asfixiando o debate cultural, tal qual ocorrera na União Soviética pós-1928 e na China pós-1966.
[9] ROSS, pg. 249 (2009). Bukhárin só seria reabilitado em 1988, cinquenta anos depois.
[10] A trilha sonora de “Alexander Nevsky” foi assinada pelo grande compositor Serguei Prokoviev,
também perseguido pelo regime e que, tal qual Eisenstein, voltou a ganhar proeminência com o
sucesso do longa. Duraria pouco: logo a perseguição voltaria e Prokoviev morreria
desgraçadamente esquecido, no mesmo dia que Stalin, 5 de março de 1953, mas horas antes do
ditador.
[11] Kulechov, tal qual os demais, veria os recursos para financiar seus filmes praticamente
desaparecer a partir da década de 1930, quando também seu “formalismo” foi duramente atacado
ante a nova moda do “realismo socialista”. Seu último filme foi realizado em 1943 e ele passaria os
últimos 17 anos de sua vida sem filmar. Apesar das pressões e da execração pública, Kulechov foi o
único dos quatro grandes diretores soviéticos a viver durante o período de “desestalinização”,
iniciado em 1956: Kulechov faleceu em 1970, aos 71 anos de idade, tendo passado a vida toda
como professor de cinema em Moscou.
[12] Sokurov impressionou Tarkovsky, nos anos 1970, mas seus primeiros filmes foram censurados
pelos burocratas soviéticos. Seu cinema somente conseguiu deslanchar após o fim da URSS.

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