Coletânea
crônicas
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Sobre a crônica
Ivan Ângelo
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A última crônica
Um caso de
burro
Machado de Assis
Fernando Sabino
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Cobrança
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O amor acaba
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Moacyr Scliar
Paulo Mendes
Campos
Peladas
Armando Nogueira
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Do rock
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Carlos Heitor
Cony
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Ser brotinho
Paulo Mendes Campos 16
Pavão
Rubem Braga
Considerações em
torno das aves-balas
Ivan Ângelo
Sobre a crônica
Ivan Ângelo
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Por que deu certo no Brasil? Mistérios do entram um fato miúdo e um toque humorístico,
leitor. Talvez por ser a obra curta e o clima, quente. com o seu quantum satis3 de poesia, representa o
A crônica é frágil e íntima, uma relação pes- amadurecimento e o encontro mais puro da crô-
soal. Como se fosse escrita para um leitor, como nica consigo mesma”. Ainda ele: “Em lugar de
se só com ele o narrador pudesse se expor tanto. oferecer um cenário excelso, numa revoada de
Conversam sobre o momento, cúmplices: nós adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e
vimos isto, não é, leitor?, vivemos isto, não é?, mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma
sentimos isto, não é? O narrador da crônica singularidade insuspeitadas”.
procura sensibilidades irmãs. Elementos que não funcionam na crônica:
Se é tão antiga e íntima, por que muitos grandiloquência, sectarismo, enrolação, arro-
leitores não aprenderam a chamá-la pelo nome? gância, prolixidade. Elementos que funcionam:
É que ela tem muitas máscaras. Recorro a Eça humor, intimidade, lirismo, surpresa, estilo,
de Queirós, mestre do estilo antigo. Ela “não elegância, solidariedade.
tem a voz grossa da política, nem a voz indo- Cronista mesmo não “se acha”. As crônicas
lente do poeta, nem a voz doutoral do crítico; de Rubem Braga foram vistas pelo sagaz profes-
tem uma pequena voz serena, leve e clara, com sor Davi Arrigucci como “forma complexa e
que conta aos seus amigos tudo o que andou única de uma relação do Eu com o mundo”.
ouvindo, perguntando, esmiuçando”. Muito bem. Mas Rubem Braga não se achava o
A crônica mudou, tudo muda. Como a pró- tal. Respondeu assim a um jornalista que lhe
pria sociedade que ela observa com olhos aten- havia perguntado o que é crônica:
tos. Não é preciso comparar grandezas, botar — Se não é aguda, é crônica.
Rubem Braga diante de Machado de Assis. É Veja São Paulo, 25/4/2007.
mais exato apreciá-la desdobrando-se no tempo,
como fez Antonio Candido em “A vida ao rés do
chão”: “Creio que a fórmula moderna, na qual
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3. Em latim, “a quantidade necessária”.
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A última crônica
Fernando Sabino
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se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha
para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de repousa o queixo no mármore e sopra com força,
sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater
ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha palmas, muito compenetrada, cantando num balbu-
a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho — cio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra
um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena você, parabéns pra você...”. Depois a mãe recolhe as
fatia triangular. velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se
garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom dei- a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ter-
xou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo nura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o
que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os
mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer
plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de
se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele
aguarda também, atenta como um animalzinho. Nin- se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a
guém mais os observa além de mim. cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe abre num sorriso.
espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto Assim eu quereria minha última crônica: que fosse
ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende pura como esse sorriso.
In: Elenco de cronistas modernos. 21ª- ed.
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Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
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Um caso de burro
Machado de Assis
Meia dúzia de curiosos tinha parado ao pé do Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais,
animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava isso mesmo antes haver aprendido maneiras de
uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que
anca do burro para espertá-lo, então eu não sei é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como
conhecer meninos, porque ele não estava do lado do linguagem. Ultimamente é que percebi que me não
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entendiam, e continuei a zurrar por ser costume Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que con-
velho, não com ideia de agravar ninguém. Nunca dei siste na gravidade do porte e na quietação dos senti-
com homem no chão. Quando passei do tílburi ao dos. Quando algum homem, desses que chamam
bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado patuscos, queria fazer rir os amigos, fui sempre em
na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é auxílio deles, deixando que me dessem tapas e
que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar punhadas na cara. Em fim...”
aguardando autoridade”. Não percebi o resto, e fui andando, não menos
“Passando à ordem mais elevada de ações, não alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta,
acho em mim a menor lembrança de haver pensado não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro
sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém,
minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão de que todos os burros devem ter os mesmos dotes
me diz que, não havendo nenhuma revolução decla- principais, fez-me ver que os que ficavam não seriam
rado os direitos do burro, tais direitos não existem. menos exemplares do que esse. Por que se não inves-
Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; tigará mais profundamente o moral do burro? Da
nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia, abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da
oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em formiga também, coletivamente falando, isto é, que
conta os interesses da minha espécie. Qualquer que as suas instituições políticas são superiores às nossas,
seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha institui- mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao
ção um pouco temperada pela teima que é, em burro, que é maior?
resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de
mordia o freio dando assim um bonito exemplo de Novembro, achei o animal já morto.
submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis Dois meninos, parados, contemplavam o cadá-
nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o ver, espetáculo repugnante; mas a infância, como a
apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia
não fiz; vejamos os bens que pratiquei.” cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste
“A mais de uma aventura amorosa terei servido, mundo. Sem exagerar o mérito do finado, força é
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levando depressa o tílburi e o namorado à casa da dizer que, se ele não inventou a pólvora, também
namorada — ou simplesmente empacando em lugar não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste
onde o moço que ia ao bonde podia mirar a moça final de século. Requiescat in pace.
que estava na janela. Não poucos devedores terei Disponível em
conduzido para longe de um credor importuno. <www.brasilwiki.com.br/noticia.php?id_noticia=48909>.
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Cobrança
Moacyr Scliar
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Peladas
Armando Nogueira
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Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir In: Os melhores da crônica brasileira.
a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
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O amor acaba
Paulo Mendes Campos
gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os luga-
atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais res e a qualquer minuto o amor acaba.
encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem In: O amor acaba. 2ª- ed. Rio de Janeiro:
os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; Civilização Brasileira, 2000. © Joan A. Mendes Campos.
1. No sentido literário, epifania é um momento privilegiado de revelação quando ocorre um evento que “ilumina” a vida da personagem.
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Do rock
Carlos Heitor Cony
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passou de moda, e o swing, o mambo, o baião e outras cheque, a vida e a faina humana rebolando este cansado
pragas vindas de alheias e próprias pragas. Pois aí estava corpo-pasto de espantos — até que o fôlego e o U2
o rock, matinal, cor de sangue e metal inundando o dia acabem na manhã e no som.
In: Crônicas para se ler na escola.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
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Considerações em torno das aves-balas
Ivan Ângelo
linguagem nem sempre tem lógica. Quem perdeu a “Morte e vida Severina”, o retirante pergunta aos que
bala perdida? O atirador? Pior para quem achou. levam um defunto: “Quem contra ele soltou / essa ave-
Quando acha um corpo a bala pode ainda se cha- -bala” . E a resposta: “Ali é difícil dizer / Irmão das
mar perdida? A que acha, mesmo não sendo aquele almas, / Sempre há uma bala voando / desocupada”.
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Éramos um povo acostumado à arma branca, à Matrix. “No século do progresso / o revólver teve ingresso
peixeira, ao punhal, ao facão; herdamos a tradição / pra acabar com a valentia” — cantou Noel Rosa nos
ibérica de sangrar, cortar o pescoço, capar. Meninos anos 1930. Surgiu outro tipo de valente, o que fica
já tinham seu canivete de ponta. Malandros risca- atrás do revólver. Não é preciso arriscar-se, chegar
vam o ar com navalhas. Mulheres da vida brandiam perto para ferir. “Mais garantido é de bala / Mais longe
giletes. Numa arruaça, quem metia a mão numa fere”, diz o poeta João Cabral. Ninguém pense que a
cara, dava rasteiras. Em algum momento o “te meto influência estrangeira é justificativa. Não, não impor-
a faca” virou “te meto a bala”, aquele “te meto a mão tamos a violência, ela é mais nossa que o petróleo.
na cara” virou “te meto uma bala na cara”. Começa- Importamos foi a cultura da arma de fogo.
ram a voar as aves-balas. No país das balas perdidas, perdem-se também
O que aconteceu no meio? Talvez o cinema, o crianças, nem sempre desaparecidas. Muitas delas,
faroeste, os gangsters, a TV, guerras sujas, guerrilhas, talvez a maioria, vão mais tarde brincar por aí de
terrorismo, drogas proibidas. Nasceu o culto da pon- soltar aves-balas, nem sempre perdidas.
taria certeira. Billy the Kid, John Wayne, Randolph In: O comprador de aventuras e outras crônicas.
Scott, Frank e Jesse James, Schwarzenegger, Stalone, São Paulo: Ática, 2000. Coleção Para Gostar de Ler, v. 28.
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Ser brotinho
Paulo Mendes Campos
passa depressa e não tem a menor importância. doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa,
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completamente. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É man-
Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter com- ter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro
prado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo. perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de
É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e
chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre
andando devagar para molhar-se mais. É ter saído todos os outros mendigos da Terra. Permanecer
um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo apaixonada a eternidade de um mês por um violi-
mundo pensou com piedade que ela era uma louca nista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente,
varrida. É ir sempre ao cinema, mas com um jeito de ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase
quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu
bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de ser. É fazer marcação cerrada sobre a presunção
champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora
ter outra vez bebido só um cálice de vinho do Porto de soneto moderno, ora de minueto, sem que se
e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de dissipe a unidade essencial. É policiar parentes,
falar sobre futebol e política como se o presente amigos, mestres e mestras com um ar songamonga
fosse passado, e vice-versa. de quem nada vê, nada ouve, nada fala.
Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser
salão da festa com uma indiferença mortal pelas brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao
mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e meio-dia com uma cara horrível, comer somente e
desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama
Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gatinho telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir
magro que miava de fome e ter aberto uma lata de devorar um sanduíche americano na esquina, tão
salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o estranha é a vida sobre a Terra.
salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da
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In: O amor acaba. 2ª- ed. Rio de Janeiro:
varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Civilização Brasileira, 2000. © Joan A. Mendes Campos.
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Pavão
Rubem Braga
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Catadores de tralhas e sonhos
Milton Hatoum
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Noutra, pintada de verde e amarelo: “Aqui só mas encontrei carroceiros simpáticos e um assunto
carrego bagunça, mas sou homem de paz”. A que para escrever esta crônica.
mais me chamou atenção foi uma carroça linda, com
In: O Estado de S. Paulo. Caderno 2, 27/3/2015.
uma pintura geométrica que lembra um quadro de Disponível em <cultura.estadao.com.br/noticias/
Mondrian. Na lateral, estava escrito: geral,catadores-de-tralhas-e-sonhos-imp-,1658853>.
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