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O ser digital e a virada cibernética

por Laymert Garcia dos Santos

Fredric Jameson tem insistentemente afirmado a ocorrência, desde os anos 60,


de uma "virada cultural" que expressa o modo como a lógica do capitalismo
avançado sobrepõe economia e cultura, fazendo com que tudo se torne
cultural, inclusive a produção de mercadorias e a alta finança especulativa, ao
mesmo tempo em que a cultura se torna profundamente econômica e
mercantilizada (1). Mas caberia perguntar se a "virada cibernética"
configurada na ciência e na tecnologia não seria mais importante, pela
radicalidade das transformações que comporta.
Impulsionada pela aliança da tecnociência com o capital globalizado, à
medida que se espraia e se intensifica desde 70, a virada cibernética vai
reformulando o conhecimento e o trabalho em todos os setores da sociedade
contemporânea e conferindo um sentido novo à vida, ao mundo, aos
processos. E talvez uma boa maneira de estimar seu alcance seja perceber que
ela intervém até na ontologia, redefinindo o que é "ser humano" sob o prisma
da informação digital e genética.
A extensa divulgação do projeto Genoma Humano, se por um lado alimenta
grandes esperanças no progresso da medicina fundado no desvendamento do
código genético, por outro sonega ao público o que significa passar a
considerar o organismo humano como a expressão do agenciamento de um
texto composto no plano molecular, agora passível de leitura e manipulação.
Vale dizer: considerar o homem como objeto, como ser absolutamente
objetivado para a tecnociência. Fascinado pelas perspectivas terapêuticas de
correção do nosso design, o público não vê que a sociedade contemporânea
está abrindo as portas para que a genética e a bioinformática enunciem o novo
estatuto do humano, sob uma ótica instrumental.
Num interessantíssimo texto anônimo sobre a teoria pós-humana lançado na
Internet, pode-se ler:
"O modelo de ação que está pouco a pouco tomando forma parece ser o da
recombinação. O material genético que compõe o organismo pode ser
considerado como um texto elaborado a partir de elementos combinatórios
individuais e manipuláveis. Começando com tal material, logo será possível a
ação morfogenética recombinatória. Em vez de mudar o ambiente para
adaptá-lo ao organismo -como arrogantemente tentou fazer o homem
moderno-, estamos começando a perceber que é necessário reprogramar o
organismo para torná-lo compatível com um ambiente no qual a raça humana
não pode mais sobreviver. A via que está se abrindo é a da morfogênese
recombinatória. (...) Daqui a pouco artistas bioinformáticos vão começar a
criar formas de vida a partir de matéria genética elementar. Ouço dizerem:
isso é alarmante. Talvez. Alarmante do ponto de vista de um ser humano. Mas
(...) quem é o ser humano?". (2)
Em vez de tentar responder a essa pergunta recorrendo ao humanismo
moderno, Catherine Waldby ("The Visible Human Project - Informatic Bodies
and Posthuman Medicine", ed. Routledge), atenta à virada cibernética, optou
por uma outra via: focalizar o momento em que o primeiro homem e a
primeira mulher se tornaram digitais e questionar o sentido dessa operação. O
mapeamento do genoma humano ainda estava em curso -portanto o
desenvolvimento do projeto Genoma Humano ainda não permitia a completa
tradução de um ser humano em suas informações genéticas, a sua
transformação em arquivo de dados. Mas o The Visible Human Project (VHP,
Projeto do Humano Visível) já havia cumprido a sua missão...
O VHP despertou a atenção quando a National Library of Medicine dos
Estados Unidos lançou na rede, em novembro de 1994, o primeiro homem a
se tornar um Humano Visível: tratava-se de Joseph Jernigan, um prisioneiro
texano de 39 anos condenado à morte e executado no ano anterior, cujo corpo
foi escolhido para a primeira digitalização integral por ser são e poder se
constituir como padrão. No final de 95 foi lançada a Mulher Visível, versão
"cyber" do corpo de uma mulher de 59 anos, desconhecida, doado pelo
marido.

Adão e Eva do ciberespaço


sugerem a abertura da categoria
"humano" para a reprodução
técnica

Desde então, o casal virtual tem inspirado milhares de sites e se apresentado,


nos mais diversos suportes tecnológicos, em exposições e galerias,
interessando não só à comunidade médica, mas também a artistas, militares,
projetistas de automóveis, estudantes, produtores de cinema etc. (3).
Aparentemente o VHP limitava-se a ser o último capítulo da história da
anatomia, inaugurada pelas dissecações no século 17, pois visava a montar um
dispositivo de técnicas computadorizadas de produção de imagem para tornar
o corpo humano visível ao olhar clínico e solucionar de uma vez por todas um
velho problema médico: a opacidade corporal. Entretanto o que Waldby quer
ressaltar é a diferença específica que caracteriza o tratamento dado a este novo
"ecorché", que faz de Jernigan um estranho e paradoxal morto-vivo
condenado a habitar eternamente o outro lado das telas dos monitores.
Jernigan e a desconhecida são considerados o Adão e a Eva do ciberespaço,
mas sua gênese é bem diversa da versão bíblica. Para transformar seus corpos
em dados digitais foi preciso todo um processamento: primeiro, foram
totalmente escaneados por ressonância magnética; uma vez "duplicados"
numa matriz, foram congelados em gelatina; os blocos petrificados foram
seccionados em quatro partes e cada uma delas foi submetida à tomografia e à
ressonância magnética; finalmente as partes seccionadas foram
sistematicamente fatiadas em lâminas finíssimas e fotografadas digitalmente,
cada fotografia convertendo-se então num arquivo visual.
Tal procedimento anulou literalmente a massa dos corpos, uma vez que cada
secção plana se dissolvia em serragem após a operação, devido à dissecação
extrema. Desse modo, os cadáveres transfiguraram-se numa série de imagens
planas acessadas uma a uma para visualização, mas também manipuladas de
modo ilimitado -os corpos virtuais podem ser inteiramente desmontados e
remontados, animados, programados para interagirem com simulações e até
navegados por dentro, por meio de hipermídia, como se fossem um território
percorrido por uma pequena nave espacial.

Formas de vida marginais


A transformação dos corpos em imagens virtuais obedece a uma tecnologia
cibernética que Waldby examina com extremo rigor, para mostrar como ela
passa a calibrar os seres vivos. Num primeiro movimento, trata-se de extrair
das formas de vida marginais (o feto, o cadáver, os fragmentos de tecidos de
seres socialmente excluídos) um "biovalor", um excedente de vitalidade e de
conhecimento instrumental que vai alimentar as tecnologias destinadas a
intensificar a vitalidade de outros seres vivos (no caso do VHP o biovalor
específico deriva da instrumentalização do cadáver e de sua transformação em
arquivos de um humano utilizado como norma padrão para a medicina
computadorizada). Tal extração, porém, pressupõe que se conceba o próprio
humano como um sistema de técnicas, uma ordem de dados visuais, e isso só
é possível graças a um deslizamento operado pela biotecnologia, que institui
um corte entre o sujeito humano e a espécie humana e coloca esta à disposição
do primeiro como um recurso a ser explorado.

A atração exercida por Adão e


Eva do ciberespaço deriva das
equações vida = informação e
organismo = código, que tratam
as figuras como entidades vitais,
corpos mortos ressurretos por
meio da capacidade tecnogênica
de criar uma segunda natureza
informacional

Waldby analisa então como, ao escolher Jernigan, o VHP por um lado reata
com as lições de anatomia porque a matéria-prima continua sendo fornecida
por extratos malditos da sociedade; mas, por outro, como rompe com ela ao
deixar para trás o "Livro do Homem", o atlas anatômico, e criar o Homem
Visível.
Em suma: como na dissecação anatômica, o VHP exige o sacrifício de um
corpo como modelo tecnológico que é redimido porque vai servir a outros;
mas, se a produção da imagem anatômica pode ser pensada como uma série de
práticas de espacialização que transformam sucessivamente o volume do
corpo tridimensional em traços iterativos, vale dizer, como uma cartografia
que repensa o corpo humano em relação ao corpo do livro, o mesmo não se dá
com a produção da imagem virtual. Na passagem do livro à tela, a imagem
deixa de ser uma representação para se tornar uma imagem operacional,
passível de ser desdobrada como um substituto dos órgãos atuais, em cirurgias
e endoscopias virtuais. Waldby mostra que dentro do universo tecnocientífico
a atração exercida por Adão e Eva do ciberespaço deriva das equações vida =
informação e organismo = código, que tratam as figuras como entidades
vitais, corpos mortos ressurretos por meio da capacidade tecnogênica de criar
uma segunda natureza informacional.
Ora, o paradoxo é que essa criação de vida se funda num referente incômodo e
inapagável -o cadáver, a morte que torna a gênese uma operação macabra e
transforma a medicina pós-humana numa medicina gótica. Com efeito, como
esquecer que o homem e a mulher visíveis são cadáveres reanimados,
fantasmas digitais que retornam ao mundo atual?

Espectro que assombra o humano "Acima de tudo", escreve Waldby,


"minha intenção é usar o VHP como um espectro que assombra o humano
com a fragilidade de seu estatuto de sujeito num mundo de objetos. Lido de
um modo, o VHP parece um testamento do domínio humano sobre o mundo
natural, domínio demonstrado pela habilidade de sintetizar tecnicamente um
corpo homólogo, de substituir a natureza. Lido de outro modo, ele deixa o
humano aberto a múltiplas incursões, demonstrando as possibilidades que o
corpo tem de ser transformado em mercadoria, de ser instrumentalizado, e
demonstrando também seu valor de uso dentro de ordens de racionalidade
tecnicamente orientadas. Em vez do humano como a origem da tecnologia, o
VHP sugere uma tecnogênese para o humano, a abertura da categoria
"humano" para a produção e a reprodução técnicas".
Laymert Garcia dos Santos é professor livre-docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas e autor de "Tempo de Ensaio" (Cia. das Letras), entre outros.
Notas
1. Fredric Jameson, ""End of Art" or "End of History'", in "The Cultural Turn", Londres/Nova York,
Verso, 1998, pág. 73;
2. "The Post-Human Theory", in "Tempòs - Uno Sguardo in Divenire", nº 1, ano
1999. http://www.mediaevo.com/tempos/Welcome.html
3. http://www.nlm.nih.gov/research/visible/
Onde encomendar
"The Visible Human Project", de Catherine Waldby, pode ser encomendado, em SP, à livraria Cultura
(tel. 0/xx/ 11/ 285-4033) e, no Rio, à livraria Marcabru (tel. 0/ xx/21/ 294-5994).

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