saúde
A Voz
A voz constitui-se no processo biofísico de externar a palavra, ideias e o
pensamento. Emerge como a forma primária de comunicação humana e, portanto,
estruturadora da cognição. Um dos grandes teóricos do século XX que nos ajudou a
compreender a função da fala foi Lev Semyonovich Vygotsky. Tomando como base o
materialismo dialético formalizou teorias para compreender os processos de
aprendizagem e o comportamento humano, partindo da compreensão da importância
da fala e da linguagem, dos signos e dos instrumentos para a organização desses
processos. Segundo os estudiosos de Vygostky, suas pesquisas permitiram criticar
tanto a noção de que a compreensão de funções psicológicas superiores humanas
poderia ser entendida pela multiplicação e complicação dos princípios derivados da
psicologia animal - em particular aqueles princípios que representam uma combinação
mecânica das leis do tipo estímulo-resposta -, quanto aquelas teorias que afirmam que
as propriedades das funções intelectuais do adulto são resultado unicamente da
maturação, e que, estando previamente formadas na criança o desenvolvimento é só
um processo de amadurecimento natural dessas funções. (Vygotsky, 1989)
Sendo a fala uma das funções psicológicas desenvolvidas ao longo do
desenvolvimento humano, segundo Vygotsky essas são processos em constante
movimentação, não só no sentido individual como também histórico. De acordo com a
teoria marxista de sociedade, as mudanças históricas na sociedade e,
consequentemente, na vida material, produzem mudanças na natureza humana, na
consciência e no comportamento. Portanto, caso fosse possível estudar as estruturas
mentais do homo sapiens, bem provavelmente estas seriam diferenciadas das do
homem moderno. A diferença fundamental entre o homo sapiens e o homem
moderno, indicada pelos estudos da sociologia de orientação marxista é que a criação
de instrumentos, símbolos e de linguagem própria, os quais foram se aprimorando e
amplificando ao longo da história humana, trouxeram mudanças profundas no
desenvolvimento cognitivo e psíquico. O uso crescente desses elementos –
instrumentos, ferramentas e linguagem - permitiu o desenvolvimento de estruturas
mentais mais complexas. Em face disto, Vygotsky, diferenciava a humanidade dos
animais, pelo fato de que o homem se utiliza da natureza, transformando-a e
transformando, dessa forma, a si mesmo; enquanto os animais simplesmente usam a
natureza.1 O desenvolvimento, dessa forma, estaria caracterizado de duas formas, o
biologicamente inato e o historicamente adquirido.
A partir de suas experiências e de outros pesquisadores, Vygotsky indicou a
importância da fala no processo de interação da criança com o meio social e no
amadurecimento das funções psicológicas inferiores para funções superiores, na
organização e planejamento das suas ações. Durante o desenvolvimento, a criança
passa por vários estágios na sua forma de utilizar a fala. Primeiramente, ela tem a
função de ajudar na resolução de problemas, assim como as mãos e outras partes do
corpo. A fala nesse período é externa. A criança fala enquanto age. Posteriormente, a
fala passa a ter uma função interna, de planejar uma ação. Essas mudanças são muito
bem retratadas por Vygotsky da seguinte forma:
(...) quando as crianças descobrem que são incapazes de resolver
um problema por si mesmas, dirigem-se então a um adulto e,
verbalmente, descrevem o método que, sozinhas, não foram
capazes de colocar em ação. A maior mudança na capacidade
das crianças para usar a linguagem como um instrumento para a
solução de problemas acontece um pouco mais tarde no seu
desenvolvimento, no momento em que a fala socializada é
internalizada. Ao invés de apelar para o adulto, as crianças
passam a apelar para si mesmas; a linguagem passa, assim, a
adquirir uma função intrapessoal além do seu uso interpessoal.
(Vygostky, 1989, p. 30)
Dessa forma a relação entre o uso de instrumentos e a fala afetam várias
funções psicológicas, em particular a percepção, as operações sensório-motoras e a
atenção, sendo cada uma delas parte de um sistema dinâmico do comportamento.
Segundo Vygostky ainda, mais tarde os mecanismos intelectuais relacionados a fala
adquirem uma nova função: a percepção verbalizada passa do ato de rotular à função
de sintetizar, tornando-se um instrumento para se atingir formas mais complexas da
percepção cognitiva.
Vygotsky coloca que a linguagem, instrumento desenvolvido pela humanidade,
é o que permite passarmos de geração em geração a cultura e os conhecimentos
adquiridos pela humanidade. É também, o meio pelo qual a criança inicia o seu
desenvolvimento. Vygotsky (1989), ainda coloca a distinção, dentro de um processo
geral de desenvolvimento, que:
(...) existem duas linhas qualitativamente diferentes de
desenvolvimento, diferindo quanto à sua origem: de um lado, os
processos elementares, que são de origem biológica; de outro, as
funções psicológicas superiores, de origem sócio-cultural. A
história do comportamento da criança nasce do entrelaçamento
dessas duas linhas.(p. 52)
1 Para transformar a natureza, o homem utiliza os instrumentos criados por ele mesmo.
À medida que a criança cresce, não somente mudam as atividades evocadoras
da memória, como também o seu papel no sistema das funções psicológicas. A
memória nas fases bem iniciais da infância, é uma das funções psicológicas centrais.
Pensar, nessa fase significa lembrar; no entanto, essas lembranças são baseadas na
lembrança de exemplos concretos, não possuindo ainda um caráter de abstração. As
palavras, com isso, adquirem significados diferentes quando se trata de criança em
idades distintas. Para crianças no inicio da infância, emitir palavras não significa indicar
conceitos conhecidos, mas é a utilização de uma ferramenta para nomear classes
conhecidas ou grupos de elementos visuais relacionados entre si por certas
características visualmente comuns. Como colocou Vygotsky: para as crianças, pensar
significa lembrar; no entanto, para o adolescente, lembrar significa pensar.
Destas considerações em torno da linguagem, portanto, da palavra como a
materialização do pensamento, como estruturante da cognição humana, é
interessante articular essa questão com a própria história da mídia. A voz e a elocução
que sustentaram a comunicação, inicialmente, por meio de grunhidos que,
sistematizados, se transformaram em linguagem simbólica, esta última sendo
aprimorada na mesma proporção que se complexificaram a sociedade, as cidades e os
meios de transmissão do pensamento, da comunicação.
Ainda que saibamos do papel que o surgimento da escrita trouxe ao
desenvolvimento humano, até os dias atuais é na linguagem oral que toda a tradição
vai estrutura como fator de agregação social e de manifestações culturais. Mesmo com
a invenção de Guttenberg, que desenvolveu a tipografia, os livros e as primeiras
edições de jornais e revistas, estas se limitavam ao domínio dos nobres letrados e do
Clero. A letra e a voz, livro de Paul Zumthor (ano), descreve muito bem esta história,
apontando que a “literatura” medieval era estruturada para ser dita, falada. Eram os
textos ditos que lastreavam toda a comunicação social, promoviam os vínculos da
cultura.
A situação toma outras direções com o esgotamento do modelo social da Idade
Média, com o surgimento do comércio internacional, promovido pelas grandes
navegações e pelo surgimento de uma classe social que não eram nem os nobres de
“sangue real” e nem integrantes do clero: os burgueses. A necessidade de que a
população tivesse domínio da escrita estimulou o se fortalecimento, surgindo assim,
uma tendência a textolatria.
A Revolução Francesa e o Iluminismo são o clímax deste movimento de
popularização da informação oficial. A burguesia, a classe média, assume
definitivamente as rédeas da sociedade e exige ter acesso aos bens culturais que se
disseminam pelo mundo. Esta nova classe promove a Revolução Industrial e vão
investir no aprimoramento dos meios de comunicação, inicialmente com propósitos
diversos, mas que se encaminhou para tornar os meios de comunicação de massa
como a forma mais acabada para divulgar os produtos que a indústria colocava no
mercado. Os jornais e os periódicos se aprimoram ao passo em que há a evolução das
aplicações da eletricidade e, com isso, o surgimento de “novos” meios de
comunicação. Entre eles está o rádio que vai se estabelecer como mídia de massa ao
promover a disseminação de notícias e entretenimento por meio da voz.
Voz e vínculo
É importante frisar que ao falarmos em comunicação estamos nos referindo a
uma iniciativa de se propor vínculos com o outro, de interagir com o outro no sentido
de mover alguém a ouvir, a prestar atenção às mensagens que colocamos no mundo.
Num texto intitulado “Rádio Nova, constelações da radiofonia
contemporânea”, Norval Baitello Jr. (ano) propõe que ouvir é trazer a atenção de
alguém para o que nós dizemos e mostramos. Ele amplia a noção de ouvir para
explicar como qualquer elemento disponível no universo da mídia pode nos fazer
mergulhar em seu significado, a partir do momento em que consegue estabelecer
relações com lembranças, em geral importantes para o individuo. Comunicação não se
dá, então, só pela emissão de mensagens, mas no momento em que o indivíduo aceita,
apreende e se atenta para o conteúdo disponibilizado.
Possivelmente o rádio seja uma das mídias que ilustra bem esta proposição de
um envolvimento profundo entre a mensagem e o indivíduo/ouvinte, que Baitello
batizou de vínculo. A história deste suporte mostra como o veículo foi capaz de
mobilizar famílias inteiras durante seus anos de ouro no Brasil e, no exemplo clássico
vivido por Orson Welles no episódio da transmissão da peça radiofônica Guerra dos
Mundos, nos Estados Unidos em 1938, que levou muitos ouvintes acreditando que a
Terra estava sendo invadida por extraterrestres. Naquele tempo, o rádio era o
principal meio de comunicação de massa e estava no centro da sala, a família se
reuniam em volta do aparelho receptor.
Hoje, o modelo é diferente. Ainda que tenhamos outros meios mais atrativos, o
rádio ganha pela sua mobilidade: pode-se ouvir rádio em qualquer lugar, mas também
porque não exige atenção exclusiva. A diminuição de tamanho e os vários formatos é
resultado do aprimoramento da tecnologia que substituiu as enormes e dispendiosas
válvulas, para os transistores tornando-o menor e portátil.
Contudo, nesse novo ambiente, em meio ao conjunto de estímulos que o
indivíduo recebe no meio social e urbano, o rádio deve falar a cada um dos ouvintes. O
vínculo é estabelecido com cada um, que pode estar no meio do trânsito, dentro do
carro, digitando um texto no computador, executando tarefas domésticas ou
trabalhando numa empresa.
É em função desta complexidade do fenômeno comunicacional midiático que
se funda a importância do envolvimento provocado pela mensagem jornalística o qual
se dá a partir da voz de alguém que a concretiza, denominado de elocução, a palavra
dita. “A voz é um meio sonoro que desperta a capacidade evocativa da palavra”, ela é
um “gesto sonoro”, como propõem as considerações de Werner Klippert, no livro
traduzido por George Bernard Sperber, Introdução à peça radiofônica. (ano)
No universo jornalístico radiofônico a palavra ganha expressão com a fonação e
interpretação na voz do comunicador. Este último não apenas lê, interpreta o
conteúdo das mensagens escritas, como também, comenta, entrevista, analisa. Enfim,
fala informalmente ao microfone. Esse processo gera no ouvinte a sensação de que
está participando de um diálogo, apesar de não poder responder diretamente a quem
lhe fala. Essa incompletude provoca em quem ouve a necessidade de complementar o
diálogo com sua imaginação. Através da palavra, “o receptor cria imagens em sua
mente – imagens interiores” (Baumworcel, 2001, p. 109). As imagens mentais vão
comportar sensações, emoções e relações afetivas. Isto porque, nossa cognição foi
estruturada por meio da palavra, da linguagem realizada nas trocas intra e
intersubjetivas (Vygotsky, 1989).
Do ponto de vista da comunicação, são nestas interações que se dão os
vínculos (Baitello, ano), o que explica aquele encontro do jornalista e do ouvinte no
aeroporto, pessoas tão íntimas e que nunca se viram. É “a palavra imaginada, fonte
evocadora de uma experiência sensorial mais completa” (Baumworcel, 2001, p. 109).
Plessner diz que
(...)na conversa se encobre a ligação do homem à linguagem. (...) Quanto mais
plástica for a expressão e quanto mais transparecer seu caráter metafórico – não
apenas com intenções poéticas – tanto mais intensamente é sentida a presença do
que se quis dizer no invólucro do que foi dito. (ano, p. )
Em outras palavras: está concretizado o vínculo.
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Notas
[1] O rádio galena era um receptor simples que podia ser fabricado em casa por alguns
ouvintes. Consistia num fragmento de sulfeto de chumbo natural, chamada galena,
ligado à antena por um fio, com o som chegando aos ouvintes por um par de fones
auriculares.
[2] Termo cunhado por Murray Schafer, IN: SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo.
São Paulo: Editora Unesp, 2001.