51 • ISSN 2236-7284
• número (versão
47 • ISSN digital)
0104-3315
Revista da Faculdade de
DIREITO
U F P R
2008
Universidade FederaL do paranÁ
Faculdade de Direito
Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos – Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal
Prof. Dr. Cesar Antônio Serbena – Chefe do Departamento de Direito Privado
Prof. Dr. Abili Lázaro Castro de Lima – Chefe do Departamento de Direito Público
Prof. Dr. Elimar Szaniawski – Chefe do Departamento de Direito Civil e Processual Civil
Bibliotecária Eglen Maria Veronese Fujimoto – Chefe da Biblioteca de Ciências Jurídicas
2010 • número 2008
51 • •
ISSN 2236-7284
número (versão
47 • ISSN digital)
0104-3315
Revista da Faculdade de
DIREITO
U F P R
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná
Objetivo
A Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná é uma publicação semestral de trabalhos
científicos inéditos da área jurídica, nacional ou estrangeira. A Revista tem interesse na publicação de artigos, análises
de decisões judiciais, comentários críticos jurisprudenciais e resenhas críticas. A linha editorial da revista prestigia o
movimento de aproximação do direito com outras áreas do conhecimento e o compromisso da Universidade Pública
com a construção de uma sociedade democrática, justa e solidária.
Editor
Vera Karam de Chueiri
Conselho Editorial
Antonio Carlos Wolkmer (Universidade Federal de Santa Catarina), António José Avelãs Nunes (Universidade de
Coimbra), Antonio Manuel Hespanha (Universidade Nova de Lisboa), Bethania Assy (PUC-Rio de Janeiro e Universidade
Estadual do Rio de Janeiro), Claudia Lima Marques (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Claudia Perroné-
Moises (Universidade de São Paulo), David Ritchie (Mercer University School of Law, Georgia, EUA), Giovanni Cazzetta
(Università degli Studi di Ferrara), José Antônio Peres Gediel (Universidade Federal do Paraná), José Carlos Moreira
da Silva Filho (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), Juliana Neuenschwander Magalhães (Universidade Federal do
Rio Janeiro), Laymert Garcia dos Santos (Universidade Estadual de Campinas) Marcelo Cattoni (Universidade Federal
de Minas Gerais), Menelick de Carvalho Netto (Universidade de Brasília), Paulo Luiz Netto Lôbo (Universidade Federal
de Alagoas), Ricardo Marcelo Fonseca (Universidade Federal do Paraná), Roberto Gargarella (Universidad de Buenos
Aires), Samuel Barbosa (Universidade de São Paulo).
Pareceristas permanentes: Alexandre Bernardino Costa (Universidade de Brasília), Cristiano Paixão (Universidade
de Brasília), Eduardo Henrique Lopes Figueiredo (USM – Universidade do Sul de Minas), Fabiola Albuquerque
(Universidade Federal de Pernambuco), Jeanine Nicolazzi Phillippi (Universidade Federal de Santa Catarina),
José Ramón Narváez Hernández (UNAM – México), Osvaldo Lopes Ruiz (Universidade de Mendonza).
Os membros do Conselho Editorial, o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, pesquisadores
da Faculdade de Direito, além dos professores e pesquisadores de outras instituições nomeados ad-hoc também serão
responsáveis pelos pareceres dos artigos submetidos para publicação.
R454
Revista da Faculdade de Direito UFPR / Universidade Federal do
Paraná, Programa de Pós-Graduação em Direito.– ano 1, n. 1
(dez. 1953)- . – Curitiba: UFPR, 1953-
v. ; 24 cm.
Irregular.
Publicado também como revista eletrônica.
ISSN 2236-7284 (versão digital)
Intercâmbio UFPR
SIBI/Biblioteca Central / Seção de Intercâmbio
Rua General Carneiro, 370 – Centro – CEP 80020-300
E-mail: bc@ufpr.br – Fone / Fax: (041) 3360-5280
SUMÁRIO
7 EDITORIAL
Vera Karam de Chueiri
José Antonio Peres Gediel
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
Edna Torres Felício Câmara
101 A PRESCRIÇÃO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO (OU O JOGO DOS SETE ERROS)
THE STATUTE OF LIMITATIONS IN THE BRAZILIAN CIVIL CODE (OR THE GAME OF
SEVEN ERRORS)
Rodrigo Xavier Leonardo
127 POR UMA TEORIA DA NARRATOLOGIA JURÍDICA: De que modo a Teoria Literária
pode servir à compreensão e crítica do Direito
FOR A THEORY OF LEGAL NARRATOLOGY: How can a Literary Theory be useful for
the comprehension and criticism of Law
Douglas Antônio Rocha Pinheiro
147 A IDEIA DE AUTONOMIA EM LOCKE. FELICIDADE E JUSNATURALISMO. DISPOSITIVO
METAFÍSICO-RELIGIOSO E SECULARIZAÇÃO
THE IDEA OF AUTONOMY IN LOCKE. HAPPINESS AND NATURAL LAW. METAPHYSICAL
APPARATUS AND SECULARIZATION
Manuel Afonso Costa
*
Editora da Revista da Faculdade de Direito da UFPR.
**
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.
***
Equipe executiva da Revista da Faculdade de Direito da UFPR.
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forças em que se equilibram o poder (voluntas), de um lado, e o direito (ratio), de outro,
o autor dá continuidade aos estudos da Escola Florentina de história do direito,
especialmente aos problemas tematizados por Pietro Costa. Se, em cada contexto,
respostas diversas foram ensaiadas para dar conta dessa oposição, subsiste ainda uma
tensão no âmago da própria democracia constitucional expressa entre a soberania do
demos e os seus limites.
História, democracia e constitucionalismo estão presentes também no trabalho
Notas programáticas para uma nova história do processo de constitucionalização brasileiro,
de Marcelo Cattoni de Oliveira, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, ao
debater a forma específica na qual se articula memória e projeto, experiência e expectativa
no processo de constitucionalização brasileiro, caracterizado como não linear e
descontínuo, uma vez que forjado nos (des)encontros de reivindicações e demanadas
múltiplas por cidadania e direitos. Ao se posicionar contrário a um paradigma de
interpretação conservador da realidade brasileira, o autor ultrapassa a crítica
desconstrutiva, valendo-se da hermenêutica diacrônica para avançar num marco
reconstrutivo para a história do constitucionalismo nacional, com a proposição de um
novo programa de pesquisa neste campo do saber.
No âmbito da discussão do constitucionalismo e da democracia também se
insere o artigo do professor Fabrício de Limas Tomio, da Universidade Federal do
Paraná e dos pesquisadores Marcelo Biehl Ortolon e Fernando Santos Camargo
intitulado Análise comparativa dos modelos de repartição de competências legislativas
nos Estados Federados, o qual tem por objeto as esferas de distribuição de competências
legislativas e administrativas na Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Suíça, Índida,
Estados Unidos e Brasil. A partir desta metodologia comparada, os autores buscam
aferir o grau de centralização do poder existente em tais sistemas, em face da autonomia
de suas subunidades.
Autonomia que é também categoria fundamental à investigação no campo do
direito privado, particularmente, do direito civil. Partindo de uma perspectiva, igualmente,
comparativa, mas verticalizando a análise no sistema brasileiro, o Professor Rodrigo
Xavier Leonardo, da Universidade Federal do Paraná discute em seu A prescrição no
Código Civil Brasileiro (ou o jogo dos sete erros) as opções legislativas realizadas pelo
Código de 2002 acerca da prescrição e as influências de que são tributárias. Destaca,
de maneira particular, as insuficiências da codifição, ao indicar sete grupos de argumentos
a partir dos quais é possível reformular a ótica do problema e viabilizar um acesso teórico
mais adequado à matéria.
A Professora da Universidad de Vigo, Espanha, Inés Iglesias Canle, propõe uma
análise sobre a utilização das chamadas provas genéticas no curso do processo penal.
Especialmente em relação aos delitos cometidos no âmbito das relações conjugais, em
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que a relativa ausência de indícios dificulda a instrução, o teste de DNA surge como
elemento determinante na caracterização do fato punível, mercendo uma reflexão desde
o momento de coleta até o da sua efetiva apreciação judicial.
O doutorando e pesquisador da Universidade de Brasília, Douglas Antônio Rocha
Pinheiro, em seu artigo Por uma teoria da Narratologia Jurídica: de que modo a Teoria
Literária pode servir à compreensão e crítica do Direito, apresenta um rico debate sobre
as obras de Carlo Ginzburg e Mikhail Bakhtin, para fundamentar a possibilidade de uma
leitura do fenômeno jurídico pela via da teoria literária, propondo resgatar sua polifonia
constitutiva mediante a elaboração de uma teoria narrativa do direito.
A professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Jeanine Nicolazzi
Philippi, em seu artigo As modulações do direito contemporâneo em um breve exercício de
filosofia do direito, analisa as modulações do direito contemporâneo em um tempo regido,
em sua dinâmica decisória, por processos de negociação, no qual a redistribuição das
formas de participação na composição das regras do jogo e os instrumentos de gestão
colocam em funcionamento uma nova engrenagem jurídica que se converte em rede de
regras flexíveis, adaptáveis às injunções de um mundo que opera sob o imperativo de
que tudo é possível.
Ainda no campo da filosofia e teoria do direito, Manuel Afonso Costa, pesquisador
e doutorando da Universidade Nova de Lisboa, em seu artigo A ideia de autonomia em
Locke: felicidade e jusnaturalismo, dispotivo metafísico-religioso e securalização revisita
um dos fundadores da tradição do direito liberal moderno. Após avaliar o conjunto de
tradições em que a filosofia lockiana se inscreve, Costa nos dá um panorama de suas
tensões (voluntarismo e racionalismo). Pretendento compreender o lugar do juízo e da
ação em Locke, o autor convida a um retorno necessário e detido ao conjunto de categorias
originalmente formuladas pelo filósofo inglês.
Por fim, a entrevista realizada sob mediação da Professora Katya Kozicki da
Universidade Federal do Paraná, com a colaboração dos mestrandos e pesquisadores
Bruno Lorenzetto, Fernanda Gonçalves, José Arthur Castillo e Miguel Godoy, com a
pesquisadora e professora do Center of Studies for Democracy da Universidade de
Westminster, Chantal Mouffe, inusitadamente encerra um circuito iniciado pelos
questionamentos de Bernal, no trabalho que abre a presente edição. Temas como o
sentido e os limites da democracia, sua natureza essencialmente agonística e o
cosmopolitismo como cidadania mundial são suscitados, desembocando também num
“paradoxo democrático”, que recusa o vínculo necessário entre os vetores da liberdade
e da igualdade no processo de construção das democracias liberais. Mouffe critica ainda
a forma como a crescente judicialização da política reflete o que chama de “visão pós-
política” e tenta demonstrar como a posição não-agonista de Barack Obama pode ser
um dos termômetros para explicar a falta de radicalidade de seu atual governo.
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Diante desse conjunto plural de reflexões, inegável a estatura que esta Revista já
assume entre as publicações jurídicas acadêmicas no Brasil e alhures. Ela pode ser
descrita como parte central da tarefa difícil, mas não impossível, de conjugar, de maneira
criteriosa, a tradição e a crítica, o global e o local, o dentro e o fora do próprio direito.
Para não permitir que a cultura jurídica naufrague num tecnicismo sem mais; para não
deixar o direito morrer na praia.
RESUMO: Este trabalho é uma análise de parte do livro “Soberania, representação, democracia: Ensaios
de história do pensamento jurídico”, do professor florentino Pietro Costa. São reflexões, a partir da
história que narra esta obra, sobre as tensões entre a vontade (o poder) e a razão (os direitos do sujeito)
e sobre os fracassos das múltiplas teorias propostas para evitar os efeitos negativos de tal tensão. Assim,
expõe-se o trajeto do Estado liberal de Direito (com seu estatismo e legicentrismo) ao Estado
Constitucional, que é o trajeto de um demos soberano, formado por maiorias, a um demos entendido
como sociedade pluralista.
ABSTRACT: This paper discusses part of Florentian Professor Pietro Costa’s book “Soberania,
representação, democracia: Ensaios de história do pensamento jurídico”. It reflects, from the story
Costa tells in his work, about the tensions between Voluntas (power) and Ratio (subject’s rights) and
about the failures of the many theories proposed in order to prevent the negative effects of such
tension.Thus, this paper shows the way from liberal State (with its statelism and law-centrism) to
Constitutional State, which is the way of a sovereign demos, made by majorities to a demos understood
as pluralistic society.
* Gostaria de agradecer aos professores Pietro Costa, Carlos Petit, Andrea Macía, Julián García e Érika
Arroyave, por seus comentários e sugestões.
** Professor da Universidade de Medellín (Colombia). E-mail: botero39@gmail.com
*** Traduzido porAlberto Krayyem Arbex, Mestre em Medicina pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro e doutorando em Direito pela Universidade de Buenos Aires. E-mail: albertoarbex@gmail.com
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1. INTRODUÇÃO
1
A saber: i) História do direito e história dos conceitos; ii) Soberania; iii) Representação; iv) Democracia.
2
Refiro-me, sem dúvida alguma, a: CARONI, Pío. La soledad del historiador del derecho: apuntes sobre
la conveniencia de una disciplina diferente. Apresentação de Italo Birocchi. Trad. Adela Mora e Manuel Martínez.
Madrid: Universidade Carlos III, 2010. 225p.
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já que aquele que cair nesta artimanha estilística não poderá perceber, pela velocidade
que conferiu em sua leitura, que cada página, cada parágrafo, cada frase, envolve um
mundo inteiro de conhecimentos. O leitor que acredita que este é um livro de fácil leitura
deve ter cuidado; pelo contrário, não se pode cair na tentação de ler completamente
acreditando que se transmitem ideias básicas, breves e generalizadas. É claro que se o
leitor cai nesta artimanha, efetivamente vai terminar o capítulo com conceitos fundamentais
(o que já é um mérito: melhor saber alguma coisa do que nada), porém vai passar ao
longo de centenas e milhares de assuntos que o autor camufla no seu estilo bom e ameno.
Já pode entender o porquê desta escrita ser traiçoeira.
É recorrente também no autor intercalar referências especializadas com outras muito
generalizadas. Com as primeiras, o autor parece mais destinado a convencer – continuo
com as paráfrases retóricas – a especialistas, e, com as segundas, sugerir bibliografia que
ilustra temas amplos para leitores menos experientes, desde sua própria postura, seja aquele
que deseja conceitos básicos (o leitor turista, aquele que busca paisagens para fotografar),
assim como o mais especializado (o leitor escalador, que deseja dominar montanhas),
encontrará o que procura com este intercâmbio de estilo nas referências compreendidas
nas notas de pé de página. No mais, este mesmo elemento ratifica, ao meu modo de ver,
a dualidade que finaliza o texto e que dá conta dessa escrita traiçoeira, pois a paisagem
que se oferece ao leitor, tão pacífica e atrativa, não está livre de debates que o autor italiano
assumiu em diferentes momentos de sua vida. A foto está pronta para ser tirada, alguns
dirão, as montanhas dificultosas abrem seus caminhos para outros; porém, decerto, se
engana quem acredita que estamos ante um manual de aula, ainda que também possa
servir para isso.
Continuando com as reflexões de estilo, o autor, diferente de mim, escreve em
terceira pessoa. Consegue assim se apresentar como uma testemunha, quase neutra, de
suas leituras e façanhas, que são, afinal de contas, as que se relatam neste belo livro. Nosso
autor assume, então, uma postura quase como aquela do antropólogo que descreve a forma
de cozinhar em uma tribo da Nova Guiné sem que para isso se atreva a sugerir a dieta
guineana como a melhor possível (formosa metáfora usada pelo próprio Costa, em conversa
particular). Acrescentamos que, dentro desta neutralidade na escrita, surge uma magnífica
articulação entre o uso do passado e do presente, não somente quanto ao gramatical, mas
muito além. O leitor se assombra, sem dúvida alguma, quando, de uma reflexão sobre o
passado, história nua e cura, aparecem entre linhas comentários pertinentes para uma
teoria contemporânea do direito, como exemplo deste contínuo balanço entre o ontem e
o hoje, extremamente como o papel que Costa estabelece ao historiador do Direito na
primeira linha de raciocínio do seu livro (especialmente p. 47-53).
Justamente este último ponto me permite referir a outro assunto que aqui, por
questão de espaço, apenas posso mencionar: a competência que a história do Direito
tem dado não somente a Costa, mas também a todos os outros membros da Escola de
3
PETIT, Carlos. Homenaje a Paolo Grossi (algo menos que uma laudatio). Em: Quaderni fiorentini, No.
39 (2010); p. 555-564. As palavras de homenagem dadas por Zagrebelsky seguem às de Petit no mesmo número
(p. 565-573). As duas contribuições foram publicadas sob o título “Per Paolo Grossi giudice costituzionale”.
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que se incrementa quando se quer administrar verdade em contextos diferentes aos
que teve em mente Costa, ao escrever estes ensaios, que agora são traduzidos para
o português.
A mistificação do bom livro acadêmico por parte do leitor ingênuo ou acrítico
prejudica a todos. Ao autor, porque acaba por ser considerado um sujeito por fora dos
movimentos típicos de falseamento; um indivíduo hercúleo que, a partir de seu discurso,
pode dar resposta a tudo aquilo que observamos, e que, no entanto, ao perceber que o
que observamos não foi, necessariamente, o que o autor observou (e não podia ser para
menos), é rebaixado em seu papel de Hércules, com a mesma força com que foi lisonjeado,
aos aposentos do Hades. Isso explica, até demais, a paixão cega de nossas culturas
jurídicas em mitificar um acadêmico europeu ou norte-americano para logo, com a
mesma paixão, odiá-lo e extirpá-lo de nossos sistemas de reprodução do saber jurídico,
em especial dos programas de ensino. Portanto, nada é mais arriscado para um autor
que ser endeusado por motivos e responsabilidades que lhe são alheios.
Porém, perde não somente o autor, como também o leitor que assume a postura
de fiel, tanto que, por querer ver o quanto acredita que vê o seu ídolo, acaba como
aquele pintor que, para poder continuar desenhando os bosques que amava, após o
incêndio, continua na mesma janela desenhando, porém com os olhos fechados.
Perde, ainda que exceda em dizê-lo, a própria disciplina, pois se nega o importante
e fundamental diálogo que impulsiona ao acúmulo do saber e aos sistemas de
administração deste.
Enfim, perdem todos.
Infelizmente, a história das culturas jurídico-acadêmicas latino-americanas está
repleta, enormemente, de exercícios colonialistas, surgidos, repito, em leitores ingênuos
que canonizam, antes do tempo, obras que podiam ter melhores resultados se tivessem
tratado o diálogo com antecipação. Não esquecendo que o diálogo evita o transplante.
Assim, querido leitor, este texto de Costa, para que dê seus melhores frutos, deve
ser esclarecido e contextualizado, o que presume partir de um preceito hermeneuta:
com a obra se antecipa o diálogo, mas não se o substitui. Com esta finalidade é que vou
propor cenários ao leitor inquieto, diferente do leitor religioso, para que possa dialogar
com esta boa obra e tirar o maior proveito, sem que se transforme em uma nova Bíblia.
E como consegui-lo? Com dois exercícios práticos: combinar (especialmente a partir da
contextualização) várias afirmações do autor italiano e perguntar incansavelmente pelos
alcances do que foi dito. Comecemos, pois.
O texto de Costa, no trecho a que nos referiremos, mas que creio concluir muito
dos capítulos prévios, propõe que a história das ideias jurídico-políticas pode ser re(con)
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do que de quem institui o Direito (p. 237). Eu me pergunto se este esquema de príncipe
do “dicere ius” pode se estender a todo o Antigo Regime, ou seja, se é aplicável ao
monarca absolutista prévio à Revolução Francesa. Além disso, o leitor pode levar em
conta que, apesar de ser generalizada a opinião de um príncipe amarrado a razão do
Direito (GROSSI, 1995; COSTA, 1969), existem opiniões encontradas que continuam se
referindo à potestade criativa do mesmo, isto é, que o príncipe não renunciou ao “legem
condere”, senão que soube camuflá-lo em um discurso simbólico de “iuris dictio”, pois,
afinal de contas, gozava de maior legitimidade a norma que se apresentava como prévia
à vontade do soberano (era mais aceita a norma que dizia que seu conteúdo não era
inovador no que se referia a voltar aos antigos costumes esquecidos), ainda que não
fosse realmente assim.
Costa continua indicando que a teoria de Hobbes – que seria, de fato, um bom
exemplo da vontade – é uma tentativa, a primeira na história que nos narra, de superar
a tensão (agora entendida como a relação estressante entre dois sistemas mais ou menos
iguais) a partir do monismo (a relação de dominação de um sobre o outro): a razão deve
estar submetida à vontade do soberano (p. 237). Porém, esta estratégia de superação
da tensão, a partir do monismo, foi rapidamente descartada se levamos em conta a
importância de um Coke no constitucionalismo inglês, que defenderá o historicismo do
common law como uma ordem objetiva que fundamenta as liberdades e mesmo limita
o poder (p. 238). Então a tensão continua, tanto no campo das ideias como no campo
das culturas políticas. Inclusive, a tensão se apresenta agora no esquema de divisão de
poderes, na medida em que, se há algo indisponível à vontade do soberano, é o que
pode ser atribuído à tradição do órgão que se exibe como uma expressão de uma razão
imperturbável e imparcial: o juiz (p. 238). Assim, o pronunciamento do juiz aparece
como um momento de transparência, como uma revelação e reconhecimento de uma
verdade preexistente da qual depende a solução de um conflito ou os privilégios de
certos sujeitos (p. 238). Isso explica uma perspectiva que une tanto o imaginário do juiz
do Antigo Regime – que incluía o príncipe medieval (e o fortalecia) – com aquele dos
iluministas, aqueles que o consideraram um poder neutro ou nulo na estrutura do Estado
desejado, submisso diante do soberano-legislador, pelo que aqui, inclusive com o
contratualismo iluminista, a tensão entre vontade e razão continua se apresentando.
Dessa forma, o leitor pode apreciar como se apresenta aquela escrita traiçoeira da qual
falei antes: em uma frase Costa nos descreve mundos inteiros4. Que profundidade a que
poderia se extrair deste paradoxo, como, por exemplo, o reconhecimento de certos
4
Basta elogiar a capacidade de Costa de reduzir em poucos parágrafos aquilo que, para quem deseja
maiores precisões, iria requerer livros inteiros, como a arguciosa análise histórica, do mesmo tema (a concepção
do juiz no iluminismo e no estatismo subsequente) feito por GARCÍA PACUAL, Cristina. Legitimidad democrática
y poder judicial. Valença: Edicions Alfons el Magnànim, 1996. p. 31-113.
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públicas, elite que se resumia a minorias socioeconômicas privilegiadas, seja por fatos
externos à política, seja pelas restrições à liberdade de participação feitas para evitar o
acesso ao poder, de forma incontrolável, das massas de desapropriados.
Trata-se de fazer um matiz, mas não uma crítica, em que Costa é tão claro ao
ensinar que tanto para aqueles que queriam o sufrágio universal quanto para aqueles
que o combateram, a democracia coincidia com a universalização dos direitos políticos
e se traduzia no comando (favorecido ou temido) da maioria.
Enfim, esse matiz parte da mesma dúvida metódica que propõe Costa, com o demos
no Estado constitucional, e que mais adiante vou expor, a qual, acredito, pode se ampliar,
mutatis mutandi, ao demos do Estado liberal de Direito, permitindo assim uma melhor
compreensão de tal sistema político. Como consequência, se o demos-maioria é um mito
fundador ou um elemento de eficácia simbólica da democracia, não teria sido melhor partir
disso desde o início do que tê-lo mencionado somente no momento de analisar o
constitucionalismo do pós-guerra? Justificaria ter se deixado a reflexão crítica do mito do
demos-maioria somente quando se manifestou o Estado Constitucional contemporâneo, se
pudesse afirmar que, nos séculos XVIII e XIX, nos pensamentos que circularam (pois isto
é uma história do pensamento) não existiram posturas ou discursos que deixaram claro a
consideração do demos-maioria como um mero mito. Isso remete, então, a várias questões:
existiram discursos que colocavam em discussão a realidade do demos-maioria? Lassalle
(com “Was ist eine Verfassung?”) (LASSALLE, 1992) não seria um dos muitos autores que
teriam denunciado, no campo do sistema burguês, o mito do demos-maioria?
Seguindo com Costa, este situa sua história de tensões e fracassos no contexto da
modernidade, que parte, por sua vez, do reconhecimento do sujeito. Então, a modernidade
jurídica expressa em termos democráticos é aquela que considera que os direitos passam
pelo sujeito (razão) que reclama a si próprio, diante do todo (vontade), como uma entidade
com identidade própria. Infelizmente, Costa, decerto por razões de espaço, e dentro
dessa escrita traiçoeira que citei, passa de um lugar a outro, esperando que seja o leitor
quem reconheça a complexidade ali existente. A modernidade jurídica e a tensão poder-
direitos não teriam sido tais sem a modernidade filosófica. A ideia de um sujeito
determinante da ação política (o que o italiano denominaria “liberdade de participação”)
e de um sujeito com direitos frente ao demos (“liberdade-propriedade”) é compatível
com a ideia de um sujeito substante (res cogitans de Descartes), uma mônada (Leibniz)
etc., que permitiu, no campo filosófico, falar-se de uma ruptura da filosofia medieval
com a moderna. Então o leitor não deve passar por cima das ligações que, em uma obra
como a que comento, é impossível para o autor deixar esboçadas.
5
ESCOBAR VILLEGAS, Juan Camilo e MAYA SALAZAR, Adolfo León. La formación intelectual de los
constituyentes colombianos en la primera mitad del siglo XIX. In: BOTERO BERNAL, Andrés (editor). Origen del
constitucionalismo colombiano. Ponencias del III Seminario Internacional de Teoría General del Derecho. Medellín:
Universidad de Medellín, 2006. p. 53-78. ESCOBAR VILLEGAS, Juan Camilo e MAYA SALAZAR, Adolfo León.
Otras “luces” sobre la temprana historia política de Colombia, 1780-1850: Gaetano Filangieri y la “ruta de Nápoles
a las Indias Occidentales”. In: Co-herencia: Revista de Humanas. Vol. 3, N° 4 (janeiro-junho de 2006); p. 79-111.
BOTERO BERNAL, Andrés. Algunas influencias del primer proceso constitucional neogranadino: El
constitucionalismo gaditano, las revoluciones, las ilustraciones y los liberalismos. In: Ambiente Jurídico, No. 10,
2008; p. 168-210.
6
Por sua parte, Levaggi (para dar um exemplo da literatura especializada) assinala que, apesar da força
simbólica destas duas revoluções (a norte-americana e a francesa), estas não explicam por completo o tema e as
disputas do federalismo e do centralismo na América Latina. Existiram, inclusive, outros modelos de organização
territorial e política tanto ou mais relevantes que, porém, foram minimizados, como o suíço e o holandês. LEVAGGI,
Abelardo. Confederación y federación en la génesis del Estado argentino. Buenos Aires: Faculdade de Direito da
Universidade de Buenos Aires, 2007. p. 17-32. Além do mais, contamos com uma importante obra que tem
analisado as diferenças do processo emancipador norte-americano com o hispano-americano: JACOBSON, J. Mark.
The Development of American Political Thought. New York: Appleton-Century-Crofts, 1932.
7
“A grande novidade levada a cabo pela revolução francesa (…) foi a de fazer surgir de improviso sobre
o cenário, em sua autonomia, uma sociedade civil unificada na perspectiva da vontade política constituinte, como
povo ou nação” (N.T.: traduzido do espanhol) FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de
historia de las Constituciones. 2.ed. Trad. Manuel Martínez Neira. Madrid: Trotta, 1998. p. 61. Ainda que se saiba,
cabe mencionar a proximidade existente entre a obra de Costa – que aqui resenho – com a de Fioravanti – que
acabo de citar.
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O que eu peço ao leitor é que, criticamente, rejeite como própria uma velha, mas
não por isso tolerável, tendência de se referir ao Estados Unidos como América, aspecto
que, além do mais, não foi devidamente corrigido na tradução; assim, o leitor poderá
reparar com sua atitude um uso inadequado que deixa claro uma confusão entre o todo
e a parte na linguagem acadêmica.
Voltemos a Costa. A tensão da democracia dos modernos se propõe, pois, entre
uma maioria dotada de uma vontade e alguns indivíduos dotados de direitos enquanto
são iguais e livres, o que fundamenta, no discurso, a mesma maioria que reclama seu
direito ao autogoverno. E ambos elementos da tensão se fundamentam em critérios
jusnaturalistas que atravessam o modelo histórico defendido por Coke, Locke, Hume e
Blackstone, para o caso inglês; o modelo individualista da revolução norte-americana;
e o modelo estatista que emerge por ocasião do desenvolvimento das teorias de Rousseau
e Sieyès, entre outros, na França8. O jusnaturalismo seria a maneira como os modernos
tentaram solucionar os problemas derivados de tal tensão: os sujeitos, por serem livres
e iguais, se constituem em um povo soberano que determinará os direitos dos sujeitos.
A vontade e a razão se reconhecem como interdependentes e com um mesmo substrato
natural, o que equivale considerar como superada qualquer possível tensão (entendida
como qualquer possível intenção de domínio) entre o querer majoritário, de um lado, e
os direitos dos sujeitos, do outro. O demos partiria, pois, de uma “declaração” (e não
de uma “criação”) dos direitos naturais dos sujeitos, com o que as liberdades, conquanto
não sejam fruto do querer do soberano, estariam garantidas (p. 243). Dessa maneira, o
demos, agora atuando como poder constituinte, ao expedir um tipo especial de constituição
que garantisse a divisão de poderes e os direitos naturais (que poderiam ser sintetizados
no binômio liberdade e propriedade que caracterizava o discurso jusnaturalista
racionalista europeu prévio à Revolução Francesa), eliminaria qualquer possibilidade
de arbitrariedade, e a relação vontade-razão (p. 243-244) se tornaria equilibrada.
Mas a história desta forma de superar os perigos do domínio da vontade sobre a
razão, no plano das ideias, envolve, segundo Costa, a história de seu fracasso, uma vez
que, se a vontade é soberana, não pode se submeter ao passado (o que explica muito a
rejeição ao Antigo Regime e ao modelo histórico de fundamentação das liberdades
preconizado pelos jusnaturalistas ingleses), nem ao futuro (o que explica por que se
pregou, em plena Revolução Francesa e norte-americana, que toda Constituição somente
rege para a geração que a faz), nem aos indivíduos (com o que a concepção de uma
limitação ao Estado por parte de direitos naturais do indivíduo somente faz que o Estado
deixe de ser soberano). Enfim, a crença de que a tensão teria se superado não era mais
que a suposição da boa intenção do soberano, mas este, por ser soberano, não estaria
8
Vali-me aqui da famosa distinção entre os modelos histórico, individualista e estatista proposta por outro
membro destacado da escola de Florença: Ibid., p. 25-48.
9
Por exemplo, existe uma longa tradição (que une, entre outros, a J. Locke com R. Nozick) que assinala
que cada um é proprietário de si mesmo, o que fundamenta as liberdades individuais. Então, se cada qual tem a
propriedade sobre sua própria consciência, ninguém pode lhe impor alguma religião ou crença (é claro que Locke
condenou o catolicismo e o ateísmo, assunto que não posso me deter a explicar aqui, mas remeto a: LOCKE, John.
A letter concerning toleration. New York: Prometheus Books, 1990. p. 63-64).
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não podem ser entendidas, na mesma lógica jusnaturalista do século XVIII, como uma
liberdade-propriedade do sujeito livre e igual? Somente as liberdades negativas podem
ser entendidas como liberdades-propriedade? Esta pergunta não seria de todo estranha
se levarmos em conta que o próprio Costa reconhece, acertadamente, que a propriedade
não era ainda concebida em termos estritamente econômicos, mas fazia parte de uma
grandeza antropológico-moral do sujeito moderno (p. 245), ou quando esclarece que o
poder do demos parte da igualdade (mas por acaso a igualdade não seria parte da
liberdade-propriedade?). É claro que esta pergunta questiona a precisão do termo usado
para a oposição discursiva à qual alude o italiano, mas não põe em dúvida que,
efetivamente, encontramos uma oposição entre os direitos de participação, que constituem
o quid da democracia, com os direitos e as garantias que reclamam os sujeitos diante
de decisões tomadas democraticamente pelas maiorias. Talvez, porém somente para
favorecer o diálogo, o leitor poderia considerar mais apropriado a dualidade entre
liberdades de participação e liberdades negativas; no entanto, esta classificação, como
qualquer outra, apresenta as mesmas críticas que se implantaram: é possível um termo
tão preciso que evite casos cinzentos ou a necessidade de matizes?
É claro que essa classificação das liberdades que Costa faz merece, como tudo,
uma matização, para não dizer uma sugestão. O que se deve entender por liberdade-
propriedade que constitui a antítese da liberdade de participação? Ele, a partir dos
exemplos que dá, inclui na mesma seara dois assuntos que devem ser diferenciados.
Vejamos casos concretos:
“Conceda-se a todos os cidadãos o direito de voto; rompa-se o tradicional círculo virtuoso entre
propriedade e direitos políticos e teremos o seguinte cenário: uma evidente afirmação, na competição
eleitoral, dos não proprietários, dada a exiguidade numérica dos proprietários. O parlamento
cairá legalmente nas mãos de maiorias que, privadas de quaisquer relações com as elites econômico-
sociais, começarão a demolir a golpes de decreto aquela liberdade-propriedade da qual dependem
os destinos progressivos da civilidade moderna” (p. 246).
Mais adiante (p. 248) ele segue com a mesma ideia: que a forma de se evitar
maiorias tirânicas, fruto do igualitarismo democrata, consistia em unir os direitos políticos
com a liberdade-propriedade, que foi justamente o que aconteceu – generalizando – no
constitucionalismo latino-americano no início do século XIX: somente têm acesso ao voto
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“O poder do demos não é o trâmite dos direitos fundamentais, mas ao contrário, apresenta-se
como sua principal ameaça. A democracia não realiza os direitos, mas sim os subverte” (p. 247).
Mais adiante, será o próprio Costa quem esclarecerá que essas observações, que
acabo de citar, remetem, fundamentalmente, à democracia do século XIX, já que a
constitucional contemporânea merecerá interpretações diversas, que exporei mais adiante.
Cairia, pois, em erro o leitor que ampliasse estes raciocínios, próprios de muitos membros
da Escola de Florença, a toda a democracia e a todo o Estado. Inclusive, nas proximidades
programáticas entre o neoconstitucionalismo e a Escola de Florença (ainda que esta
proximidade não se dê por igual em todos os seus membros) está claro que, nesta última,
pelo menos desde minha perspectiva, não existe a intenção de retorno ao período
medieval-estamental (como alguns quiseram ver na obra prima do mestre Grossi: L’ordine
giuridico medievale), mas um discurso que parte da necessidade de superar o princípio
de igualdade jurídica que, de alguma forma, já faz parte do imaginário político europeu
como uma conquista histórica, para chegar a um novo modelo que ponha no centro todos
os direitos (razão) e não somente os políticos, que aceite os direitos não determinados
pela maioria como fundamento do ordenamento, que se mova em torno do pluralismo
do povo, e que valorize a participação política, mediante partidos limitados por regras
que fogem ao seu controle parlamentar, entre outras coisas.
Neste momento, o leitor pode se perguntar pelo papel da democracia do século
XIX na realização dos direitos. Seriam muitas as perguntas, para incitar um diálogo, que
caberiam aqui, mas gostaria de deixar algumas especificamente para o leitor, sem me
comprometer, ainda, com uma resposta concreta: que responsabilidade têm os teóricos
estudados (lembrando que estamos diante de uma história das ideias) como Rousseau
ou Sieyès pela forma como foram adequados e interpretados (ou seja, em termos de
hermenêutica gadameriana: traduzidos) pelos políticos e juristas do século XIX? Que
vantagens obteve para o indivíduo, fonte da modernidade, a igualdade formal, em
contraposição com a estamentação da sociedade do Antigo Regime? Por acaso os
monarcas absolutistas anteriores à Revolução Francesa não eram, em parte, expressão
de uma vontade que queria evitar a liberdade-propriedade, em sentido amplo, dos
governados? Por que a queixa de muitos teóricos da liberdade-propriedade em sentido
amplo, baseada no direito natural racionalista justo, em épocas prévias às revoluções,
que bem analisa Costa? Não estou afirmando que Costa, em especial, e a Escola de
Florença, em geral, sejam filo-medievalistas, nem que consideram o século liberal como
uma perda para a (e da) ratio; simplesmente acredito que estas questões permitiriam ao
leitor se situar, quanto às reflexões críticas do italiano, sem chegar a mistificá-los nem
a absolutizá-los (tudo segundo nosso plano inicial: questionar e matizar).
Continuando com a democracia do século XIX, Costa adverte sobre a importância
da liberdade-propriedade, no sentido restrito antes proposto, na determinação dos direitos
10
É claro que a proposta norte-americana de fundamentação dos direitos, limitando a vontade do Estado,
foi mais além do judicial review, tema que Fioravanti expõe em: Ibíd., p. 77-95.
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“A desconfiança do Legislativo será, assim, uma ideia matriz em toda a organização
constitucional norte-americana. Para alcançar o objetivo proposto devia se idealizar um sistema
de controle dos atos do Parlamento. Pensou-se em um órgão especial de revisão composto por
membros do Poder Executivo e Judicial, mas a ideia não teve grande êxito. Algo estava
totalmente claro para os participantes na Convenção: os juízes deviam ter um papel totalmente
de protagonismo neste controle. Diversas são as razões que motivavam esta conclusão. Uma
razão, no entanto, normalmente não formulada, resulta ser especialmente interessante. Os
juízes no século XVIII não provêm precisamente dos setores desapropriados da sociedade
norte-americana. Eles representam, de certa forma, as elites governantes e são, para elas, uma
excelente forma de controlar, de apaziguar, de aquietar as massas apaixonadas” (LETELIER
WARTENGBERG, 2007, p. 544) (N.T.: traduzido do espanhol).
11
Durante as tentativas de implantação de uma legislação social no início do século XX (tentativas que se
viram profundamente afetadas por decisões individualistas por parte da Supreme Court e que originaram uma
exasperada reação de vários grupos sociais) a voz crítica de Pound se destacou, especialmente em uma conferência
oferecida em 1906 diante da American Bar Association (POUND, Roscoe. Causes of Popular Dissatisfaction with
the Administration of Justice. In: American Law Review, 40 (September-October, 1906); p. 729-749) que teria de
dar a conhecer seu nome nos círculos de advogados progressistas e abriu as portas à Northwestern University Law
School -graças a J. H. Wigmore- e, mais adiante, a Harvard.
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Assim, em sua história das ideias jurídico-políticas, Costa traz ao debate,
oportunamente, o direito administrativo. O leitor deve saber que esta pretendida maneira
de diluir a tensão não somente se refletiu no direito administrativo, mas também em
outras áreas, como no direito internacional, que justamente nesses momentos festejava
a consideração de que o direito internacional seria fruto da autolimitação dos Estados
(teoria defendida por Jellinek e Von Triepel, entre outros). Um tratado é, pois, norma
jurídico-internacional que obriga um Estado, já que este, soberanamente, decidiu se
autolimitar, ao ratificar o tratado.
Até aqui, poderia se considerar como superada, na história do pensamento, a
tensão (ou os perigos da supremacia da vontade sobre a razão); mas, como bem o afirmará
Costa, o fracasso se repetiu por dois motivos: a) o que aconteceria se o Estado, que
conserva a soberania, decidisse se retratar de sua própria norma que o limitava? Se as
coisas se desfazem como se fazem, o Estado pode se livrar de suas próprias autolimitações
(p. 250); b) a autolimitação do Estado permitiria julgar as atuações do Estado a partir
das próprias regras de autolimitação, que este se impôs a favor dos administrados, mas
esta função que exerceria o juiz se entende ante o poder Executivo, porém não diante
das ações do Estado quando atua como totalidade, como soberano12. Isso supõe que o
limitado é a Administração (sub lege), mas a lei continua sendo entendida como soberana
e, em consequência, impossível de ser controlada pelo juiz europeu (p. 251). Então, o
risco da arbitrariedade continua presente no legislador e, em virtude da lei, deve se
ceder ao administrador, que deverá obedecer à lei, seja ela arbitrária ou não.
Aqui o leitor deve ter presente algumas coisas: por que o silêncio de Costa sobre
o ramo judicial? Caberia uma responsabilidade do Estado sobre uma decisão judicial?
Seria controlável a decisão judicial? O juiz poderia ser despótico com os direitos dos
sujeitos? Já havíamos visto como Costa coloca a função de juiz que declara o direito
(jurisdictio) no braço da razão (ainda que, mais adiante, aceite como um problema a
politização – e, portanto, seu influxo na vontade – do juiz na contemporaneidade, p.
267-268), pelo que a preocupação pela tirania do demos está ancorada, justamente, nos
órgãos que representam essa maioria: o Executivo e o Legislativo. Além disso, dentro
do ramo judicial liberal, existem diversos controles de decisão, como a motivação, a
apelação, a cassação, o temor da prevaricação etc. Acrescentemos que, no século XIX,
na história que relata Costa, o juiz é um poder neutro, um aplicador da lei, pelo que a
doutrina do século XIX se concentra mais em explicar a soberania como um exercício
legislativo. Mas justamente isto nos remete a questões que puderam complementar o
12
Esse assunto é tão longo quanto amplo. Por sorte contamos com o trabalho de MARTÍNEZ MARTÍNEZ,
Faustino. De responsabilitate: una breve historia de la responsabilidad pública. Madrid: Universidad Complutense
de Madrid, 2008. Com o marco de Costa se entenderia muito melhor a história que Martínez narra sobre como o
aumento da responsabilidade do Estado está relacionada à erosão progressiva de sua soberania.
Após esse novo fracasso, surge em cena Kelsen, com outra proposta. Assinala
Costa que o austríaco entra para distinguir entre Estado real e Estado como ordenamento,
o que é compatível com a distinção entre fato e norma. O Estado real seria, segundo
esta versão da história, uma metafísica pré-científica. O Estado, visto pelo prisma do
positivismo kelseniano, seria o ordenamento normativo, pelo que a dualidade Estado–
Direito desaparece e, com ela, a tensão entre vontade de um Estado real, com a razão
entendida como os direitos e os deveres dos sujeitos (KELSEN, 1960, p. 289-320). Além
disso, Kelsen continua incendiando a casa ao indicar que o ordenamento é hierárquico,
porque a lei não é expressão da soberania na medida em que é limitada pela Constituição,
o que justificaria um controle da lei (que se somaria ao controle já existente sobre os
atos da Administração) a favor dos direitos dos sujeitos, direitos que estariam consagrados
na norma superior (p. 228-236). Portanto, a vontade que se traduzia em lei, ao deixar
de ser soberana, já não tem a força para colocar em xeque a razão, os direitos (p. 251).
Continua Kelsen reimplantando o esquema da tensão ao assinalar que o juiz é tanto um
declarador de direito quanto um criador dele mesmo (p. 351), porque a dualidade de
vontade-criadora e razão-declaratória perde sentido (p. 252). Então, a importância do
pensamento de Kelsen em torno do equilíbrio (melhor que dizer tensão) de vontade–razão
radica na visão hierárquica do ordenamento e do controle judicial da supremacia
constitucional. Dessa maneira, surge em Kelsen que o estatismo (agora desvinculado do
legicentrismo) e a democracia são compatíveis no Estado Constitucional, levando em
conta que indicava um tipo especial de democracia (não mais o governo natural do demos,
mas o respeito por certos valores políticos, como a proteção das minorias, alternância
do poder etc.) e de Constituição (uma que consagre esses valores políticos e que exija
maioria reforçadas no momento de expedirem leis que comprometam direitos de minorias,
que estabeleçam um tribunal constitucional etc.).
Acrescentemos, a favor da interpretação feita por Costa, que existem mais
argumentos que esclarecem como, para Kelsen, os perigos da relação vontade-razão que
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vislumbraram nas democracias do século XIX dissipariam com seu Reine Rechtslehre.
Em primeiro lugar, Kelsen critica que a igualdade material durante esta não existe
realmente, constituindo uma ideologia do que é justo e, portanto, deve ser reservada em
um positivismo puro (KELSEN, 2000, p. 34-35); e considera a igualdade formal
(fundamento da vontade liberal) como um princípio ideológico que busca a legitimação
do sistema político existente, seja qual for (p. 23-25). Em consequência, em uma Teoria
Pura do Direito, a igualdade, como ideologia, não é um argumento válido cientificamente
porque perde toda sua força como fundador da vontade do demos. Em segundo lugar,
e compatível com sua perspectiva sobre a igualdade, a segurança jurídica (que é um
ideal da vontade que assim justificava suas intromissões perigosas diante dos direitos
dos sujeitos) é outra ideologia rejeitável pela Reine Rechtslehre: é uma ilusão enquanto
não existe uma interpretação correta ou um único sentido da norma (KELSEN, 1960,
p. 349-356). Mas esses dois aspectos são apenas um par de exemplos dos muitos outros
que o leitor pode colocar para complementar a linha traçada por Costa, os quais se
resumem na impossibilidade de fazer compatível o estatismo-legicentrista liberal com a
Teoria Pura do Direito.
Apesar disso, Costa afirma, a teoria kelseniana acaba sendo, uma vez mais, um
fracasso, visto que a vontade já não é soberana em termos de Lei mas sim, em termos
de Constituição, pelo que, apenas ao modificar a Constituição, esta teria o efeito autoritário
e despótico de que antes padecia a Lei (ou seja, que a vontade continua ameaçadora,
já não em forma de Lei, mas de Constituição). O problema do uso despótico da Lei, por
parte das maiorias, fica de certo modo resolvido, mas não o uso despótico que elas
podem fazer da Constituição, enquanto conservam o poder de reformá-la. Acrescentemos
que, com Kelsen, os direitos dos sujeitos (quanto ao seu conteúdo, quanto a sua
interpretação e quanto à forma de resolver seus conflitos13) são determinações jurídicas
derivadas da vontade, porque o próprio Direito poderia mudar seu sentido a qualquer
momento, pois o contrário seria aceitar que existem direitos que são prévios ao Direito
positivo, assunto que Kelsen rejeita abertamente (p. 253). Ao que parece, somente
afirmando a objetividade dos direitos (ou seja, afirmando a necessidade e a existência
dos direitos antes e fora do Estado) seria possível a defesa dos direitos contra o Estado
(p. 254). Em consequência, Costa nos diz, a tensão (entendida como os perigos da
preeminência de uma sobre a outra) entre vontade e razão permanece em Kelsen, apesar
das boas tentativas deste último para superá-la, algumas das quais serão revisitadas pelos
que o seguiram.
13
Todo conflito entre valores (e os direitos fundamentais têm um elevado conteúdo de valor) se resolve,
realmente, por meio da vontade de quem decide. KELSEN, Was ist…, Op. Cit., p. 16-17 (parágrafos 6-7). “Es ist,
letzten Endes, unser Gefuhl, unser Wille, nicht unser Verstand, das emotionale, nicht das rationale Element unseres
Bewußtseins, das den Konflikt löst” (Ibíd., p. 16). Agora, essa vontade pode se transformar em vontade soberana,
se aquele que decide se considera, a si próprio, soberano ou delegado do soberano.
14
Sobre a recepção da obra kelseniana na América Latina, assinalando os efeitos de amor e ódio que esta
gerou, ver: LÓPEZ MEDINA, Diego. La teoría impura del derecho. Bogotá: Universidad de los Andes, Legis y
Universidad Nacional, 2004.
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que por ser a única possibilidade não tem nada de ingenuidade. Este outro Kelsen, que desconfia
dos computadores para nos lembrar que atrás de cada um deles existe um indivíduo que o
manipula, uma vontade que pode ou não fazer caminhar a razão conservada; que propõe o
mito de um deus semelhante ao deus do Estado; que pensa as normas como um ato de vontade,
que dá sentido à conduta de outros, ou seja, como um ato de dominação; que mostra a radical
irracionalidade da interpretação e a aplicação da lei, que não são mais que atos políticos
legitimados; que nos propõe a Grundnorm ao final, como uma ficção que atua em nossa
consciência, conferindo ao outro uma autoridade que não possui por si só; que mostra a todos
nós nosso papel de órgãos do Estado, de cidadãos vigilantes do cumprimento da lei que nos
domina; que propõe o Estado como ato ideológico de “imputação”; que explora a psicologia
individual dos totalitarismos e sua “visão do mundo”; que mostra o direito subjetivo como
técnica da sociedade capitalista, ou seja, o sujeito como criação histórica, muito antes de
Foucault” (p. 16) (N.T. Traduzido do espanhol).
A partir da ótica da leitura esboçada por Correas – que o leitor poderia considerar
exagerada em certos aspectos –, Kelsen, antes de buscar a supressão da tensão da vontade-
razão, parte de seu reconhecimento e, por fim, do reconhecimento de seus perigos para
a democracia, e assim propõe uma ciência do Direito neutro (a neutralidade é, no fundo,
uma decisão política e, além disso, uma forma de enfrentar, desde a academia, os riscos
do estatismo tirânico, que sempre busca ideologizar o Direito e sua ciência) e uma ação
política crucial para limitar a vontade do poder (que é a que determina o conteúdo do
Direito e guia a atividade interpretativa do órgão aplicador da norma jurídica) (KELSEN,
1960, p. 350-353).
Trata-se, pois, de outra leitura de Kelsen, mas não oposta à assinalada por Costa,
à medida que ambas leituras aceitam, por fim, que a tensão vontade-razão não desaparece,
querendo Kelsen ou não, na Teoria Pura do Direito.
Por último, o leitor latino-americano não deve perder de vista a importância de
Kelsen para o pensamento jurídico europeu no que tange à defesa judicial da constituição
e à supremacia constitucional diante da lei. Além disso, Costa deixa bem claro que fala
para as lideranças da cultura jurídica europeia-continental (p. 253). No entanto, na
América Latina, antes dos escritos de Kelsen, já existiam práticas normativas e judiciais
na mesma direção, como a ação de amparo mexicana (1841) ou a ação pública de
inconstitucionalidade colombiano-venezuelana (1897-1910), citando dois exemplos,
assuntos aos que me referi em outra ocasião (BOTERO BERNAL, In: Revista da Faculdade
de Direito, UFPR, 2009, p. 109-126).
Voltando a Costa, ele indica que essa objetividade (que falta em Kelsen) que se
requer para o apoderamento da razão ante a vontade se encontra, justamente, nas
ideologias de resistência aos totalitarismos dos anos trinta (p. 254-255), que, por sua
vez, deixaram claro um renascimento das doutrinas do direito natural prévias às
15
O fundamento dos direitos está no humanismo cristão-católico, segundo: ZAGREBELSKY, Il diritto…,
Op. Cit., especialmente o quarto capítulo. Uma crítica à consideração do jusnaturalismo católico como o fundamento
dos direitos modernos, em: PECES-BARBA, Gregorio. Epílogo: Desacuerdos y acuerdos con una obra importante.
In: ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Trad. Marina Gascón. Madrid: Trotta, 1995. p. 159-160
(p. 157-173).
16
Algo como um direito positivo que, por ser objetivado, atua como se fosse um direito natural. Ver:
ZAGREBELSKY, Il diritto…, Op. Cit., sexto capítulo.
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e o poder de revisão da constituição, de que dispõe a maioria parlamentar, tal como ele
o assinala expressamente (p. 259).
Assim, as teorias tradicionais do poder constituinte ficariam reservadas para a
primeira distinção, mas não para a segunda, ainda que o leitor possa se perguntar
habilmente, se o poder constituinte não parlamentar – ou seja, o povo (seja por meio de
uma Assembleia Nacional Constituinte, ou um referendo constitucional etc.) – pode ou
não modificar a Constituição, no que tange aos princípios jurídicos básicos de organização
do Estado democrático e aos direitos fundamentais. Se a resposta é positiva, então
continuamos no mesmo problema que Costa observou em Kelsen: não há garantia anti-
majoritária plena para evitar a eliminação ou suspensão dos direitos, senão, em suma,
dificuldades sistemáticas que se impõem à maioria; neste caso, já não seria o Parlamento
quem poderia modificar a Constituição contra os direitos, mas o próprio povo (soberano)
poderia fazê-lo no exercício de sua liberdade de participação. Outra resposta seria que
sequer o povo, como poder constituinte, poderia fazer tal coisa, o que suporia, de um
lado, que já não haveria soberano (não pode se afirmar que existe poder constituinte
para certas coisas e não para outras: se a soberania tem limites, já não é mais soberania),
e, do outro, que teria que perceber, não somente para o acadêmico, mas também para o
cidadão, algo dificílimo: que existe uma razão objetiva, e portanto válida, que permitiria
extrair do âmbito do constituinte estes temas, apesar de que se parte da pluralidade do
povo (como afirmar a existência de uma objetividade quando se parte da pluralidade?)17.
Sobre esse assunto, algo se pode se perceber em Costa quando afirma, junto a
Mortati18 (ainda que o texto de Lassalle “Was ist eine Verfassung?” (LASSALE, 1992)
também tivesse servido para este propósito), que a Constituição escrita é simplesmente
a ponta do iceberg de uma Constituição material (p. 259-260), e se essa Constituição
base é a que permite a existência das maiorias (parlamentares, volta a assinalar), então
elas não poderiam variar as regras do jogo que permitem sua própria existência. De
qualquer forma, o cético poderia continuar se perguntando: por que as maiorias não
estão legitimadas ou facultadas para transgredir a base que lhes permite ser maiorias?
A pergunta seria pertinente se se parte de que, ao que parece, não exista razão jurídica
que obrigue à continuidade, no futuro, das maiorias (inclusive, a democracia é um sistema
que permite a alternância do poder). Além disso, as maiorias podem continuar sendo
17
Bobbio, por exemplo, considera que a pergunta pelo fundamento dos direitos é uma tarefa inútil (BOBBIO,
Norberto. Per una teoría generale della política. Torino: Einaudi, 1999. p. 421-466; BOBBIO, Norberto. L’etá dei
diritti. 9.ed. Torino: Einaudi, 2006. p. 5-16) por não poderem esboçar uma base objetiva (Ibíd., p. VII-XX), pelo
que é mais relevante discutir sobre as garantias dos direitos (Ibíd., p. 17-44). Enfim, para este autor os direitos são
conquistas históricas que exigem, para sua sobrevivência, da ação política.
18
Autor predileto por muitos neoconstitucionalistas italianos, apesar de ser sua obra principal nesta linha,
“La costituzione in senso materiale” (1940), um texto próprio da cultura fascista. Ver esta crítica em: PECES,
Epílogo…, Op. Cit., p. 159.
Se entendi bem, Costa indica que o problema dos limites do poder constituinte,
entendido como demos, parece ainda incontrolável, com o que a tensão (o perigo)
subsiste. Não obstante, adiante, o florentino fará uma jogada que poderia dar novas
luzes a este problema: o demos abre caminho às elites, com o que a tensão, discursivamente,
poderia diminuir.
De qualquer forma, seja qual for a resposta à questão que esboço para o leitor,
Costa continua assinalando que o Estado vinculado a uma Constituição concreta como
as surgidas na Europa logo da Segunda Guerra Mundial, permite dar conta de um
característico antivoluntarismo e objetivismo no momento de buscar fundamentar os
direitos (ressaltando nisto a Hauriou e Häberle), que acabam assim situados no que
Ferrajoli denomina “o âmbito do não decidível” (p. 260).
Costa se questiona se o conceito de demos mudou. A resposta é contundente: não
que ele tenha mudado em si mesmo, mas que já estamos em condições de assinalar que
se tratou de um discurso fundamentador do sistema, que ocultava o poder de certas
elites que seguiam certas regras do jogo, consideradas mais aceitáveis do que as do
despotismo iluminista. Nada mais claro a respeito do que a seguinte frase:
“Não são ‘todos’, ou mesmo os ‘muitos’, a decidir, mas os ‘poucos’, os membros das elites. Os
mesmos partidos que, como novas organizações de massa, mudaram o quadro oitocentista da
representação, exprimem e repetem em seu interior a lógica elitista que caracteriza todo o sistema
político. O mecanismo democrático-representativo é, assim, apenas uma simulação legitimante:
não dá voz ao povo soberano, mas simplesmente oferece um método eficaz para a formação da
classe dirigente (para uma «simples designação» de «capaz», como já havia afirmado Vittorio
Emanuele Orlando), além de permitir sua troca de maneira ágil e indolor” (p. 262-263).
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E mais adiante lemos:
“A democracia não é o poder do demos: é uma arena onde se desenvolve uma (regulamentada)
competição entre líderes rivais, que não tanto exprimem a ‘vontade do povo’, quanto a ‘constroem’,
induzem-na, com técnicas não muito diversas daquelas empregadas pelos publicitários,
influenciando profundamente as inclinações dos eleitores. A concorrência entre políticos parece,
em certa medida, semelhante à concorrência entre empresários empenhados a disputar uma ou
outra categoria de consumidores” (p. 263).
Isso leva a duvidar de Rousseau (pois não existe uma vontade generalizada, mas
muitas vontades que expressam pluralidade de interesses) e de Marx (não existe um
povo unitário que luta por sua emancipação). A democracia é a interação de grupos e
poderes diversos, com interesses que se distinguem uns dos outros: é uma poliarquia
(p. 264) que não se expressa mediante maiorias, mas mediante minorias que, pelos jogos
democratas, mudam e se alternam mais facilmente que em outros modelos políticos. A
democracia, pois, parte do pluralismo que, por sua vez, é consequência de aceitar que
o demos, como maioria ou povo com um interesse identificável, é inexistente. Assim,
entendendo o demos como um acúmulo de interesses heterogêneos, a tensão (o perigo)
em uma democracia entre a vontade do poder estatal e a razão dos direitos perde muito
peso, visto que a democracia não põe em xeque-mate a ordem constitucional, se reconhece
a existência da pluralidade, à medida em que já não se pode falar de um povo, de uma
vontade, de um interesse. Enfim: o Estado pode ser ao mesmo tempo democrático e
constitucional (p. 265).
É claro que aqui o leitor latino-americano perguntará sobre seu contexto. Costa,
como já disse, fala da experiência europeia e, em alguns casos que ele mesmo deixa
claros, da dos Estados Unidos (assim o indica, no último tema comentado, na p. 264).
Mas, apesar dessas precauções do autor florentino, pode se transferir este pensamento
para a América Latina? Como discurso transnacional que o neoconstitucionalismo
pretende ser, é claro que sim, mas, como realidade sociopolítica, bem sabemos que a
América Latina não conquistou o reconhecimento efetivo da diversidade que se prevê
no Estado Constitucional. As forças homogeneizantes nos âmbitos socioculturais são mais
fortes em nossa tradição, e não somente se fala do hoje. Pense, por exemplo, como no
século XIX latino-americano os discursos do demos legitimante da ação política estiveram
filtrados pela homogeneização religiosa católica. Assim, o leitor poderá considerar a
importância destas reflexões em contextos bem diferentes.
Já para finalizar, Costa assinala que nem tudo mudou. Se analisamos bem,
sobrevive, no conceito de democracia do pensamento tradicional dos séculos XVII e
XVIII o seguinte: o demos se resolve nos sujeitos (p. 265), pois, afinal de contas, a
modernidade reivindica a existência do sujeito substante (assunto do qual se falou no
início do texto). No entanto, graças às novas ideias que atravessam o espaço-tempo vital
europeu de Pós-Guerra, podemos vislumbrar, em alguma medida, o fim da tensão (do
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transcenda o nacional). Mas por acaso a tensão no âmbito internacional só pode se dar
na democracia tal como evoluiu na atualidade? A mesma especialidade que a democracia
tomou, e que bem a ilustra Costa, fez com que esta deixasse de se conceber como um
ato de vontade justificada por um demos, para passar a ser um sistema regulatório do
poder dos grupos minoritários que se alternam mutuamente (um grupo elite que governa
em virtude de algumas regras preestabelecidas, consideradas como melhores diante das
regras do jogo do autoritarismo), requer por si que esta democracia tão específica já não
inclua todos os modelos possíveis nos quais pode se apresentar na atualidade o poder
do próprio demos. Isso nos leva, pois, a considerar como possível a tensão entre poder
e direitos nos (velhos e, especialmente, novos) poderes internacionais, muitos dos quais
se concebem como democratas, além daqueles poderes públicos que podem se considerar,
pelas pessoas comuns, como destacados dentro da nova posição que tomou a democracia
constitucional. Não confundamos os efeitos políticos gerados pelo FMI ou alguma
multinacional, se comparados com os que algum tribunal internacional de direitos
humanos ou a Corte Penal Internacional de Justiça procura, ao declarar algo19.
Acrescentemos que o leitor, neste momento, pode se perguntar se essas duas
complicações assinaladas por Costa são as únicas ou, pelo menos, as mais perigosas
para a tensão de que se fala no Estado Constitucional. Considero que outra complicação
está no debate entre a segurança e a certeza que requer todo o sistema social
para seu funcionamento – de um lado –, com os efeitos que pode produzir o
neoconstitucionalismo – de outro –, assunto que, se não é conduzido adequadamente,
poderia gerar um desapontamento generalizado ante o modelo que tanto Alexy e
Zagrebelsky defendem, entre outros. Também poderia mencionar a complicação derivada
do multiculturalismo e o discurso dos direitos individuais mais além do direito à igualdade.
Outra complicação é que, na medida em que se conferem mais limites às maiorias, se
sobe no sistema jurídico hierárquico (lembre-se da boa crítica que Costa fez a Kelsen:
limitou as maiorias no momento de fazer a Lei, não no momento de reformar a
Constituição), mas isso denota que aumenta a incerteza sobre o que o juiz dirá como
Direito tanto quanto a norma, seguindo Kelsen, quanto mais alta, mais geral (Hart
preferiria dizer que é mais vaga ou ambígua). Enfim, acredito que as complicações dentro
dos ordenamentos são muito mais numerosas do que as que o italiano destaca.
19
Para maior ilustração sobre a complexidade das relações entre vontade e razão no âmbito globalizado,
ver: DAHRENDORF, Ralf (em diálogo com Antonio Polito). Después de la democracia. Trad. Luciano Padilla López.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003. Este texto analisa muitas das preocupações expressas por Costa:
a crise da democracia no Estado-nação contemporâneo (p. 7-15 y 81-97), o problema da democracia no âmbito
internacional (p. 16-30), a ausência de um demos europeu (p. 39-63, especialmente 55-58), o poder dos meios de
comunicação como intermediários entre o governo e os sujeitos (p. 98-109) etc. O leitor poderia, sem maiores
dificuldades, comparar estas duas obras.
7. COMO CONCLUSÃO
Enfim, concluindo, queria deixar claro ao leitor que esta obra, sem dúvida alguma,
é uma ferramenta fundamental para os estudos de base que compartilham a história do
direito, a jusfilosofia e o direito constitucional. As virtudes da obra estão ancoradas,
especialmente, no estilo ameno do autor, na profundidade do que foi dito (para o leitor
especializado) e na tranquilidade da exposição do fundamental (para um leitor mais
generalista). Amplamente recomendo sua leitura, mas sem miticismos, sem dogmatismos,
sem atos de fé. E a melhor maneira de fazê-lo é matizando e questionando até o limite.
É por isso que finalizo com uma questão que tanto me preocupa, e que o leitor
poderá usar em seu exercício cognitivo: por acaso, a pretendida guerra contra o terrorismo
não seria a nova roupagem do estatismo para dominar, pela vontade (ou graças ao medo)
o demos, e a favor de certa elite que controla o público, a razão dos direitos?
20
E faço alusão especialmente ao seguinte texto: SARTORI, Giovanni. Homo videns. Roma-Bari:
Laterza, 1997.
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NOTAS PROGRAMÁTICAS PARA UMA NOVA HISTÓRIA DO
PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO BRASILEIRO*
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo contribuir para uma reflexão acerca do sentido normativo
que se autoexpressa na práxis de autodeterminação política no constitucionalismo, por meio de uma
reconstrução acerca do modo como o processo de constitucionalização brasileiro articula memória e
projeto, experiência e expectativa – e, assim, deixa entrever as suas relações com o tempo histórico.
Apresenta a hipótese segundo a qual as relações que a constitucionalização brasileira desenvolve com
o tempo histórico podem ser compreendidas como processo não linear e descontínuo, reconstruído
como processo de lutas por reconhecimento e de aprendizagem social com o Direito, que se realiza ao
longo da história, todavia sujeito a interrupções e a tropeços, mas que também é capaz de se autocorrigir.
A justificação teórica entrecruza, de forma tensa e complexa, três marcos ou perspectivas fundamentais,
a serem apenas esboçados aqui: 1 – Desconstrução, 2 – uma Filosofia Crítica da História atenta para
* Em sua versão original, o presente texto foi apresentado no II Congresso Internacional de História do
Direito, para o painel “Direito como processo de aprendizagem de longa duração: revisão ou reconstrução (da
história) e do direito”, promovido pela Faculdade de Direito Milton Campos, Nova Lima – MG e organizado pela
Associação Brasileira de Filosofia e Sociologia do Direito – ABRAFI. Ele foi redigido a partir do projeto de pesquisa
“História e Teoria do Processo de Constitucionalização Brasileiro”, coordenado por mim, junto ao Departamento
de Direito Público da Faculdade de Direito da UFMG, que se desdobra atualmente em orientações de mestrado e
de doutorado, assim como em três grupos de estudo e pesquisa, envolvendo pesquisadores da graduação e da
pós-graduação. Agradeço ao colega Professor Lucas de Alvarenga Gontijo, Coordenador do II Congresso, pelo
honroso convite. Naquela oportunidade, dediquei minha exposição a ele. Agradeço especialmente a David Francisco
Lopes Gomes, mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Direito, na linha de pesquisa Direito, Razão e
História, e bolsista CAPES/REUNI junto ao Bacharelado em Ciências do Estado da Faculdade de Direito da UFMG,
pelas importantes observações e sugestões. A minha referência originária e inesquecível, para distinguir falta e
ausência, é o poema Ausência, de Carlos Drummond de Andrade: “Por muito tempo achei que a ausência é falta./E
lastimava, ignorante, a falta./Hoje não a lastimo./Não há falta na ausência./A ausência é um estar em mim./E sinto-a,
branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,/que rio e danço e invento exclamações alegres,/porque a
ausência, essa ausência assimilada,/ninguém a rouba mais de mim.”
** Mestrado e Doutorado em Direito Constitucional (UFMG). Estágio pós-doutoral com bolsa da CAPES
em Teoria e Filosofia do Direito (Università degli studi di Roma TRE). Professor Associado do Departamento de
Direito Público e do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito (UFMG). Coordenador pro
tempore do Bacharelado em Ciências do Estado (UFMG). Membro do IDEJUST, do IHJ, da ABRAFI e do IBDP.
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os desafios postos pela Hermenêutica Crítica da Condição Histórica e 3 – Reconstrução. Com isso,
pretende-se romper com perspectivas teóricas presentes na chamada “tradição dos retratos ou intérpretes
do Brasil”, da qual parcela significativa da doutrina constitucional brasileira faz parte, marcadas por
uma leitura teológico política da falta de povo soberano, convergente quanto à proposta de uma
modernização autoritária no marco de uma democracia possível e dualista da chamada brasilidade. Tal
leitura tradicional contribui para a reificação da história constitucional brasileira ao impedir, com
consequências deslegitimizantes, o reconhecimento de lutas da cidadania por direitos, que constituem
internamente o processo político de aprendizado social com o Direito, de longa duração. Por fim, uma
vez definidos os desafios para uma nova história do processo de constitucionalização brasileiro, propõe
sete possíveis eixos de pesquisa.
ABSTRACT: This article aims to contribute to a reflection on the normative sense that expresses itself
in the praxis of political self-determination in constitutionalism through a reconstructive approch about
how the Brazilian process of constitutional-making articulates memory and project, experience and
expectation – and, thus, suggests its relationship with historical time. Presents the hypothesis that the
relationship between Brazilian constitutional-making and historical time can be understood as a process
that is not linear and discontinuous, reconstruct as a process of struggles for recognition and social
learning with the law, which takes place throughout history, however subject to interruptions and
setbacks, but is also able to correct itself. The theoretical justification intersects, in a tense and complex
sense, three fundamental perspectives or frameworks, to be only outlined here: 1 – Deconstruction, 2
– a Critical Philosophy of History’s attention to the challenges posed by Critical Hermeneutics of
historical condition and 3 – Reconstruction. With this, it aims to break with theoretical perspectives
present in the “tradition of pictures or interpreters of Brazil” in which a significant portion of Brazilian
constitutional doctrine is a part, marked by a theological reading of the lack of political sovereign people,
converged on the proposal an authoritarian modernization within the framework of a possible democracy
and the dualistic reading of the called Brazilianness. This traditional reading contributes to the reification
of the Brazilian constitutional history to prevent, with consequences deslegitimizantes, recognition of
the struggles for citizenship rights, which are inside the political process of social learning with the law,
long-lasting. Finally, once defined the challenges for a new history of Brazilian process of constitutional-
making, it proposes seven possible lines of research.
1. Introdução
O presente artigo tem por objetivo contribuir para uma reflexão acerca do sentido
normativo que se autoexpressa na práxis de autodeterminação política no constitucionalismo,
por meio de uma reconstrução acerca do modo como o processo de constitucionalização
brasileiro articula memória e projeto, experiência e expectativa – e, assim, deixa entrever
as suas relações com o tempo histórico. Avança a hipótese segundo a qual as relações que
a constitucionalização brasileira desenvolve com o tempo histórico podem ser compreendidas
como processo não linear e descontínuo, reconstruído como processo de lutas por
reconhecimento e de aprendizagem social com o Direito, que se realiza ao longo da história,
todavia sujeito a interrupções e a tropeços, mas que também é capaz de se autocorrigir.
A justificação e os marcos teóricos a serem desenvolvidos visam romper com perspectivas
teóricas presentes na chamada “tradição dos retratos ou intérpretes do Brasil”, da qual
parcela significativa da doutrina constitucional brasileira faz parte, marcadas por uma
leitura teológico política da falta de povo soberano, convergente quanto à proposta de uma
modernização autoritária no marco de uma democracia possível e dualista da chamada
brasilidade. Tal leitura tradicional contribui para a reificação da história constitucional
brasileira ao impedir, com consequências deslegitimizantes, o reconhecimento de lutas da
cidadania por direitos, que constituem internamente o processo político de aprendizado
social com o Direito, de longa duração (BRAUDEL, 2005, p. 41-78). Por fim, uma vez
definidos os desafios para uma nova história do processo de constitucionalização brasileiro,
propõe sete possíveis eixos de pesquisa.
2. Justificação Teórica
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consiste na exigência do reconhecimento e da explicitação de tudo aquilo que não possa
ser reduzido a certos pares irredutíveis de conceitos opostos, e que, portanto, acaba
sendo excluído e marginalizado, assim como reconhecer a hierarquia imposta que
estrutura esses pares conceituais: universal/particular, espiritual/material, eterno/
temporal, homem/mulher, humano/animal, público/privado, real/ideal, fatos/normas etc.
Primeiramente, busca-se a identificação das construções conceituais a partir das quais
se pretende descrever uma realidade, comumente construída com a utilização de um ou
mais pares de conceitos considerados, para determinado campo teórico, como irredutíveis.
Em um segundo momento, a explicitação das hierarquias subjacentes a essa descrição
dualista. Terceiro, a subversão dessa hierarquia, procurando mostrar que uma dada
ordenação reflete certas opções estratégicas e não algo que possa ser considerado inerente
ou natural a esses pares conceituais. Por fim, a produção de um terceiro termo
complicador que, em última análise, juntamente com a operação de subversão, leva a
uma deformação, a uma reformulação ou mesmo a uma transformação. (BORRADORI,
2003, p. 197-199; PERELLI in ORTIZ-OSÉS e LANCEROS, p. 143-149; DERRIDA IN
CORNELL, 1992, p. 3-67; DERRIDA e ROUDINESCO, 2004, p. 9-31).
Nesse sentido, o que se pretende é “escovar a contrapelo” (Benjamin, 1995)
a chamada tradição dos intérpretes e dos retratos do Brasil, da qual faz parte “a doutrina
constitucional brasileira”, procurando explicitar e subverter os seus pressupostos
não problematizados.
Leituras tradicionais da história brasileira são feitas no espelho de uma teologia
política segundo a qual somente por meio da “ruptura institucional” ou “revolucionária”,
promovida pelo macrossujeito “povo soberano”, poder-se-ia caracterizar o genuíno
exercício de um poder constituinte capaz de legitimar uma ordem constitucional, desde
a sua origem – algo no que, aliás, parecem convergir, quer sejam conservadores, quer
progressistas, importantes autores da chamada “tradição dos retratos do Brasil” (PACE
BARACHO JUNIOR, 2009, p. 158-166).
Há de se considerar – estando atento aos motivos, propícios e inibidores, para
uma história da mentira (em que inverdade é diferente de mentir. Cf. DERRIDA, 1996,
p. 32-35; 2006, p. 88-101) – que pontos de vista comuns aproximam autores tão
supostamente diferentes entre si, tais como Oliveira Vianna (2005, p. 347-408) e Sérgio
Buarque de Holanda (1995, p. 139-188): o darwinismo de um e o historicismo de outro
não deixam de convergir numa narrativa que é sempre contada, ritualizada, da perspectiva
do vencedor (Benjamin, 1995). Ou seja, da perspectiva das chamadas “elites” sociais,
econômicas e políticas; perspectiva essa que não apenas despreza a visão dos oprimidos,
mas fecha os olhos para as lutas políticas por direitos e pelo reconhecimento da cidadania,
que não podem ser reduzidos a meras concessões paternalistas. E dessa tão supostamente
esquecida, quanto louvada, “tradição do pensamento brasileiro” (cf. REIS, 2006a e
2006b; CÂNDIDO in HOLANDA, 1995; PAIM in VIANNA, 2005; SOUZA, 2009) também
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pelo domínio pré-moderno da emoção e da sentimentalidade como representação de sociedades
inteiras se torna, também, o preconceito que entra de contrabando na reflexão metódica, ou
seja, do conhecimento produzido com prestígio e a autoridade da ciência. Essa é a gênese
verdadeira da interpretação ‘científica’ até hoje dominante entre nós não só nas universidades,
mas também fora delas, na imprensa e no debate público.” (SOUZA, p. 57)
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entre Estado de Direito e democracia. A questão central é o agravamento do chamado
“déficit histórico e sociológico” na abordagem de temas normativos, apresentados pela
teoria do agir comunicativo, como Honneth chama atenção desde a década de 80 do
século passado (2002a, 2002b, 2006, 2007b). Cabe aqui sublinhar que Habermas insiste
em se utilizar da linguagem do contratualismo e prefere simular um “experimento de
pensamento”, ao invés de radicalizar o enfoque reconstrutivo que sua própria teoria
propõe, o que lhe permitiria situar historicamente as exigências normativas que se
impuseram ao longo do processo de modernização. Já o segundo aspecto remete ao
modo de compreensão do chamado deslocamento temporal do fundamento do direito,
do passado para o futuro, em razão do caráter de abertura ao futuro das constituições
democráticas (HABERMAS, 2001). Essa tese exige maiores precisões: a questão que o
tempo presente nos coloca ao pensamento não é propriamente a do deslocamento
temporal, puro e simples, do passado ao futuro (Cf. LUHMANN, 1990). É preciso estar
atento quanto ao modo e ao grau dessa abertura ao futuro (MARRAMAO, 2005b, p. 83).
O Direito não terá um “fundamento” no futuro se não tiver no presente e se o presente
também não se abrir ao passado como seu futuro, aprendendo a lidar com o risco de
perda do espaço de experiência – como no caso do Direito, com o risco permanente da
perda da memória dos percursos e das lutas por reconhecimento de direitos ao longo
da história (cf. RICOEUR, 2000, 2007; e HONNETH, 2002, 2006, 2007). Corremos o
risco de viver, recorrentemente, como chama atenção Marramao (2008a, p. 95-107), a
síndrome da pressa, ou seja, a de um futuro passado, a redução do espaço de experiência,
a hipertrofia do horizonte de expectativa, enfim, o não aprendizado com uma experiência
intercompartilhada. Aqui, o tema da reificação, em Honneth (2007, p. 63), “como
esquecimento do reconhecimento”, pode ser enriquecido com a reflexão de Marramao
(2005b, p. 73-106) sobre os temas do tempo cairológico – do tempo oportuno ou devido –
e da síndrome da pressa – ou do futuro passado –, por meio de instigantes inter-relações
(cf. MARRAMAO, 2008a, p. 33-36). E é assim que se deve, pois, perguntar, com Derrida
e Roudinesco, inspirados em Victor Hugo: “qual amanhã?” (2004).
Como bem lembrava Arendt, os revolucionários franceses e norte-americanos de
fins do século XVIII procuraram lidar de modo distinto com a questão acerca da
“necessidade de um absoluto”, que em ambos os lados do Atlântico teria surgido no
curso das revoluções, uma vez que nem os norte-americanos, nem os franceses poderiam
justificar, respectivamente, quer na tradicional Constituição britânica, quer no tradicional
direito francês anterior ao período do Absolutismo, as rupturas jurídico-políticas que
estavam empreendendo. Isto porque, do ponto de vista do direito tradicional, tanto uma
declaração de independência e o não reconhecimento da autoridade da Coroa britânica
quanto uma retirada do Terceiro Estado da Assembleia dos Estados Gerais seriam “atos
inconstitucionais”; e, assim, também as deliberações que a partir dali fossem tomadas
(1990, p.156-171).
A partir desse ato de começar, que traz dentro de si mesmo seu preceito – ou
sentido normativo que se autoexpressa na práxis de autodeterminação política –, o povo
(the People, que em inglês é uma palavra no plural) se autoconstituiria como um novo
corpo jurídico-político, autoconstituído de forma plural por cidadãos que, no exercício
de sua autonomia política, assumiriam o compromisso, a mútua promessa, de
reciprocamente reconhecerem-se iguais direitos de liberdade. Promessa mútua, essa,
que teria criado laços com o futuro, sendo, pois, renovável e alargada, a cada decisão
judicial, que possuiria a autoridade para reinterpretá-la, ou a cada emenda constitucional,
que viria a desenvolvê-la, resgatando, assim, o sentido normativo que se teria auto-
expressado no processo constituinte de elaboração e de ratificação do texto constitucional.
Assim, para a compreensão do sentido normativo inerente ao próprio ato de fundação,
nos termos em que Arendt o concebe, é fundamental, aqui, o conceito de “promessa”
(ARENDT, 1958, p. 243 e seguintes; CALVET de MAGALHÃES, 2007), assim como a
sua importância:
“Nesse sentido, o curso da Revolução Americana nos mostra um exemplo inesquecível e nos
ensina uma lição sem precedentes; pois essa revolução não eclodiu simplesmente, mas foi
antes conduzida por homens que tomaram juntos uma resolução, unidos pela força de
compromissos mútuos. O princípio veio à luz durante os conturbados anos em que foram
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lançadas as fundações – não por determinação de um arquiteto, mas pelo poder combinado
de muitos – foi o princípio interconexo da promessa mútua e da deliberação comum”
(ARENDT, 1990, p. 170).
2.2 – Uma Filosofia Crítica da História atenta para os desafios postos pela
Hermenêutica Crítica da Condição Histórica. Chaves hermenêuticas de releitura da
história: “historicidade”; “espaço de experiência e horizonte de expectativa”; “lutas por
reconhecimento”; “aprendizagem”; “narratividade”; “secularização”.
Embora para Koselleck não se possa pressupor um sentido imanente à história, isso
não significa que não se possa atribuir ou mesmo reconhecer sentido a ela. Para a
compreensão da especificidade do tempo histórico, Koselleck utiliza duas categorias meta-
históricas que, em última análise, poderiam justificar-se numa certa antropologia filosófica
de matriz pós-metafísica: 1 – espaço de experiência e 2 – horizonte de expectativa.
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A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados
e podem ser lembrados, em que se fundem tanto elaboração racional como formas
inconscientes de comportamento. Já a expectativa é o futuro presente. A expectativa pode
ser composta por desejo, vontade, medo, esperança, curiosidade, análise racional etc.
(KOSELLECK, 2006, p.310).
Experiência e expectativa não são termos complementares, apesar de se
relacionarem. Todavia, jamais coincidem, de tal modo que uma expectativa jamais pode
ser deduzida exclusivamente da experiência. Assim, as expectativas podem ser revistas,
já as experiências, recolhidas. Como afirma Koselleck, “uma experiência feita, está
completa na medida em que suas causas são passadas, ao passo que a experiência futura,
antecipada como expectativa, se decompõe em uma infinidade de momentos temporais”
(2006, p. 310).
Embora não se possa aprofundar aqui o rico debate acerca de uma reatualização
direta – que busca reinterpretar de forma sistemática o pensamento de Hegel, levando
a sério a sua Ciência da Lógica – ou de uma reatualização indireta – que pretende
romper seja com a ontologia hegeliana, seja com a sua visão orgânica de constituição,
seja com sua filosofia da historia –, cabe considerar as estruturas de reconhecimento
recíproco como próprias a formas de vida racionais.
Segundo Habermas:
“(a)s relações concretas de reconhecimento, que uma ordem jurídica legitima não
faz senão certificar, provêm sempre de uma luta por reconhecimento; esta luta vem
motivada pelo sofrimento que foi produzido pelo desapreço concreto de que alguém
é objeto e pela rebelião contra esse desapreço (Honneth). São, como mostrou Axel
Honneth, experiências de humilhação da dignidade humana que devem ser
articuladas para verificar os aspectos sob os quais no contexto concreto os iguais
devem ser tratados de forma igual e os desiguais de forma desigual. Essa disputa
[pública] em torno da interpretação de necessidades não podem ser delegadas nem
aos juízes, nem aos administradores, nem sequer aos legisladores.” (HABERMAS,
1998, p. 511)
Neste ponto, caberia retomar, em especial, para além das contribuições de Ricoeur
ou de Habermas, a tese do Direito como Integridade, de Ronald Dworkin (1986). Segundo
o jurista norte-americano, o Direito constitui a melhor justificação do conjunto das práticas
jurídicas, a narrativa que faz de tais práticas as melhores possíveis. A chamada metáfora
do romance em cadeia (chain novel), introduzida por Dworkin a partir da década de
1980, para sustentar a sua famosa tese da resposta correta, tanto em contraposição ao
positivismo jurídico quanto ao realismo jurídico, ilustra exatamente todo um processo
de aprendizado social subjacente ao Direito compreendido como prática social
interpretativa e argumentativa, um processo intergeracional, sujeito a tropeços, mas
capaz de corrigir a si mesmo. Assim, o Direito é visto por Dworkin (1985) como um
empreendimento público, que se dá ao longo de uma história institucional, reconstruída
de forma reflexiva à luz dos princípios jurídicos de moralidade política, que dão sentido
a essa história.
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sobre o qual tal mudança de perspectiva fora empreendida por Habermas refletiria
não apenas sua discussão com John Rawls acerca dos limites de uma reconciliação
por meio de um uso público da razão ou mesmo suas interpretações em paralelo com
as de Jacques Derrida sobre o 11 de setembro, mas também as posições que Habermas
passou a assumir acerca de questões de bioética após os debates com Ronald Dworkin
sobre o futuro da natureza humana, mas também, por fim, e em especial, seus
posicionamentos quanto à ciência e à religião, sua teoria da adaptação e sua tese da
sociedade pós-secular, nos debates com o então Cardeal Joseph Ratzinger.
Caberia indagar acerca de quais seriam as implicações para a arquitetura de uma
Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito, da nova tese segundo
a qual viveríamos não mais uma era de política integralmente secularizada mas sim numa
“sociedade pós-secular“, especialmente quanto ao modo com que são enunciadas por
Habermas em seu livro Entre naturalismo e religião, especialmente na introdução e no
capítulo que se chama “Fundamentos pré-políticos do Estado Democrático de Direito?”.
Se, segundo Habermas, vivemos numa época pós-secular, como ficaria a tese fundamental
de Facticidade e Validade segundo a qual “não se pode ter nem manter um Estado de
Direito sem democracia radical”, já que não mais viveríamos numa era da política
totalmente secularizada? Isso implicaria reconhecer, então, fundamentos pré-políticos
do Estado Democrático de Direito, no sentido de um aprendizado social recíproco entre
seculares e religiosos, e o caráter inesgotável de intuições normativas ou de fontes de
sentido às “grandes religiões mundiais“, ou seja, que o processo democrático, para não
dizer apenas uma Filosofia pós-metafísica, tem sempre muito o que ouvir e aprender
com as religiões, ao mesmo tempo em que a Filosofia como observador externo nada
teria a dizer?
Como nos lembra Marramao, em seu livro Céu e Terra (1997, p. 101), haveria pelo
menos cinco acepções de secularização: 1) como ocaso da religião; 2) como conformidade
ao mundo; 3) como dessacralização do mundo; 4) como descomprometimento da sociedade
para com a religião; e 5) como transposição de crenças e modelos de comportamento
da esfera religiosa para a secular.
Ao tema da secularização, portanto, ligam-se a questão da legitimidade da
modernidade como legitimidade na modernidade, o problema da dinâmica moderna do
tempo histórico, a questão da existência ou não de pressupostos pré-politicos de
legitimidade do Estado Democrático de Direito, a questão da relação, enfim, entre religião
e política, e entre elas e o Direito.
Menelick de Carvalho Netto (1998) nos chama a atenção para o modo como
tradicionalmente as teorias jurídicas vão lidar com o problema da efetividade do Direito,
com a questão do seu cumprimento e de sua aplicação efetivos. Essas teorias, que têm
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historicamente vinculada aos pré-conceitos sociais não problematizados daqueles que
vivenciam a Constituição. Aliás, como bem afirma Sorj:
“Muitos estudos de ciências sociais, no lugar de descobrirem as formas e sentidos de construção
social da cidadania a partir dos próprios agentes sociais, refletem as frustrações da
intelectualidade e das classes médias locais com suas próprias sociedades. Tal atitude, embora
compreensível, alimenta uma tendência secular à desmoralização das instituições democráticas
existentes, e as ciências sociais perdem a oportunidade de mostrar que a América Latina é um
canteiro de experiências sociais que, com os cuidados devidos, indica problemas igualmente
relevantes para os países capitalistas avançados” (SORJ, 2004, p. 20).
3. Desafios
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dinâmico, mas não relativo – dos princípios e direitos fundamentais que um texto
constitucional interpreta;
3.2.2) mostrar que a constitucionalização é a expressão de “uma fundação como
promessa” e, portanto, está sempre por-vir;
3.2.3) mostrar que a constitucionalização é processo não linear e, por vezes,
descontínuo, de aprendizagem social, de abertura a um futuro-em-aberto, a um porvir
(DERRIDA, 1992);
3.2.4) mostrar em que sentido a constituição democrática “não é uma utopia
social e nem sequer é um substituto para esta idéia” (HABERMAS, 1998, p. 530);
3.2.5) mostrar que esta abertura recoloca a constitucionalização como tarefa
permanente, e transmitida pelo passado, a cada nova geração – e, assim, os grandes
eventos que marcam a sua descontinuidade e abertura poderão ser retrospectivamente
recompostos como partes desse aprendizado histórico não linear, que representa a
experiência da cidadania –, no exercício da autodeterminação jurídico-política e na
defesa do patriotismo constitucional, sobre o pano de fundo de uma história mundial do
constitucionalismo. E talvez esta seja a nossa maior herança do passado a ser resgatada,
a responsabilidade no presente por um futuro-em-aberto, um porvir;
3.2.6) mostrar que o processo de constitucionalização é sempre “uma obra de
reconstrução do navio em mar aberto” (MARRAMAO, 2003, p. 240), de um navio que
já deixou o porto, que já navega pelo mar. Assim, num processo de constitucionalização,
as exigências normativas que se colocam historicamente no interior desse processo
constituinte – ou de constituição – que se realiza ao longo do tempo, ao contrário de
barreiras a ele, são, na verdade, constitutivas dele: elas são uma forma de explicitação
ou de autoexpressão da própria noção complexa de autonomia, que lhe é subjacente.
Em outras palavras, todo processo de constitucionalização é um processo de
autoconstitucionalização;
3.2.7) mostrar que a idéia do processo de constitucionalização como aprendizado
social, tarefa cotidiana e permanente, exige romper com a teologia política, com esta
máscara totêmica ou simulacro, de uma imagem icônica do sujeito-povo ou nação como
totalidade homogênea – este phantasma da soberania, como diria Derrida (2008, p. 39).
Um dos maiores problemas da democracia constitucional é ainda a obsessão pela falta,
pela presença de uma ausência, de uma soberana una e indivisível, pela nostalgia do
soberano deposto, morto ou exilado – que corre o risco, a todo momento, de ter o lugar
reocupado de forma autoritária –, na perspectiva democrática de que tal processo de
constitucionalização se desenvolve no tempo histórico como construção polêmica, conflituosa
e, portanto, rica e plural de uma identidade constitucional múltipla e aberta;
3.2.8) mostrar que é no sentido de uma identidade constitucional não identitária
e não idêntica construída ao longo do tempo, de uma identidade múltipla, aberta e, por
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isso, não mais passível de ser reificada, do(s) povo(s) como instância(s) plural(is), capaz
de romper com a retórica da democracia possível e de seu autoritarismo instrumental,
em direção a uma democracia sem espera (Cattoni de Oliveira in Cattoni de
Oliveira e Machado, 2009, p. 367-399) – atenta para uma democracia por-vir
(DERRIDA, 2003), para uma democracia compreendida como comunidade para-doxal,
“como comunidade dos sem comunidade” e para um “universalismo da diferença”
(MARRAMAO, 2003, p. 192) –, que podemos, mais uma vez, concordar com Habermas
quando afirma que “no Estado Democrático de Direito, compreendido como a morada
de uma comunidade jurídica que se organiza a si mesma, o lugar simbólico de uma
soberania discursivamente fluidificada deve permanecer vazio” (1998, p. 529).
Por fim, tendo em vista essa releitura tensa e complexa para uma nova história do
processo de constitucionalização brasileiro que se busca realizar, é, por exemplo, possível
adotar pelo menos sete eixos de pesquisa ou sete núcleos temáticos, a partir dos quais
se poderia proceder a uma desconstrução, a uma crítica hermenêutica e a uma
reconstrução de partes da história constitucional brasileira, de acordo com a justificação
teórica apresentada:
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RESUMO: Este estudo tem por objetivo comparar a concentração de atribuições legislativas e
administrativas nos sistemas federativos alemão, argentino, australiano, austríaco, suíço, brasileiro,
indiano e norte-americano. Com base na distribuição de competências legislativas entre a União e os
Estados, pretende-se analisar o grau de restrições existentes ao poder central e o consequente grau
autonomia normativa das subunidades. Serão consideradas as competências constitucionais quanto ao
conteúdo (classificadas segundo a matéria) e quanto à extensão (classificadas segundo a participação
um ou mais entes federativos), conforme a técnica de repartição adotada constitucionalmente. Constata-
se, desde já, que os modelos mais recentes de federação abordados distanciam-se do modelo clássico
norte-americano ao estabelecer menores restrições à capacidade normativa do governo central.
ABSTRACT: This study aims to compare the concentration of legislative and administrative powers in
federal systems of Germany, Argentine, Australia, Austria, Switzerland, Brazil, India and United States.
Based on the distribution of legislative powers between Union and States, it intends to analyze the degree
of restrictions to the central power and the consequent degree of legislative autonomy subunits. Will be
considered the constitutional powers on the content (classified by subject) and the extent (classified
according to one or more participating federal entities), as the adopted constitutional technique of power
assignment. It follows, first, that the newer models of federation investigated differentiate from the classical
model to U.S., establishing lower restrictions to the normative capacity of the central government.
* Doutor em Ciência Política (UNICAMP). Professor Adjunto do Departamento de Direito Público (UFPR).
Coordenador do Grupo de Pesquisa “Instituições Políticas e Processo Legislativo” (UFPR/CNPq). Email: fab_tom@
hotmail.com
** Formando da Faculdade de Direito (UFPR). Bolsista de Iniciação Científica CNPq e membro do Grupo
de Pesquisa “Instituições Políticas e Processo Legislativo” (UFPR/CNPq). Email: marcelo_ortolan@hotmail.com
*** Formando da Faculdade de Direito (UFPR). Bolsista de Iniciação Científica Fundação Araucária e
membro do Grupo de Pesquisa “Instituições Políticas e Processo Legislativo” (UFPR/CNPq). Email: fernandoscamargo@
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73
1. INTRODUÇÃO
1
Sobre o modelo de joint decision-making system, verWachendorfer-Schmidt (2000, p. 78-80); e Burgess
(2006, p. 76 e 162 e ss).
2
Nesse sentido, afirma Gamper: “it must be remembered that the comparison of federal systems is an
important method to develop the theory of federalism. Despite apparent differences, all theories of federalism are more
or less based on small number of historic prototypes and their comparison to other, similar systems allows us to
conceptualize the main characteristics of a federal system” (GAMPER, 2005, p. 1298).
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pode aumentar o número de atores com poder de veto, concluindo que o “federalismo é
uma variável independente evasiva (...) não possui nenhuma característica institucional
exclusiva ou necessária (bicameralismo, maiorias qualificadas, (...) independência do
judiciário), mas está associado à maioria dessas características” (2009, p. 205).
Logo, percebe-se que abordar comparativamente o federalismo implica
fazer escolhas quanto aos indicadores ou variáveis a serem comparados3. Nossa
abordagem, conforme já exposto, pretende analisar a distribuição de competências
administrativas e, sobretudo, legislativas atribuídas constitucionalmente entre a União
e unidades constitutivas4.
Metodologicamente, observamos que o ponto de partida da comparação desse
estudo é o texto constitucional brasileiro de 1988. Isto é, a pesquisa documental e a
interpretação nos textos constitucionais dos outros sete estados nacionais tiveram como
parâmetro as competências previstas entre os artigos 21 a 24 da Constituição brasileira.
Apesar de essa análise comparativa partir do estático sistema de repartição de
competências constitucionalmente estruturado em cada Federação, não se ignora
que a real extensão dos poderes atribuídos a cada ente federativo só se revela se
compreendida a maneira como esses poderes são exercidos. Para tanto, foram buscadas
na literatura as explicações quanto à dinâmica de cada sistema de repartição de
competências, que são expostas de maneira mais detalhada juntamente com os
resultados das comparações realizadas.
Na construção dos indicadores de comparação analisamos as competências
legislativas e administrativas quanto ao conteúdo (classificadas segundo a matéria) e
quanto à extensão (classificadas segundo a participação um ou mais entes federativos),
conforme a técnica de repartição adotada constitucionalmente. Em face da diversidade
de competências estabelecidas pela Constituição brasileira, optou-se por agrupar essas
previsões constitucionais, definindo trinta competências legislativas e treze competências
administrativas a ser comparadas5 (ver Figura 1), que foram organizadas, na classificação
quanto à extensão da participação dos entes federados, em um contínuo entre
descentralização/centralização para fins de hierarquização das competências
constitucionais (ver Figura 2).
3
Como instituições, federalismo fiscal, relações intergovernamentais, bicameralismo, políticas públicas,
revisão judicial, arranjo constitucional etc.
4
Nesse sentido, parece relevante a afirmação de Galligan ao descrever que a “função chave da constituição
escrita é especificar a divisão de poderes ou competências entre os governos nacionais e estaduais” (GALLIGAN, 2006,
p. 268).
5
Não se ignora a possibilidade desse processo de síntese ter agrupado, sob a mesma denominação,
competências qualitativamente díspares. Entretanto, a fim de viabilizar uma análise comparativa, inicialmente não
atribuímos nenhuma hierarquia normativa entre as competências listadas. Posteriormente, contudo, procedeu-se a
um novo agrupamento qualitativo das matérias comparadas em três grupos (I – Poderes de soberania; II – Econômico;
III – Políticas Públicas), que são explicados adiante de maneira mais detalhada.
• Fundamentais
• Nacionalidade
• Organização dos poderes
• Organização do estado
• Organização (território)
• Político
• Poderes de soberania
• Eleitoral
• Econômicos e financeiros
• Civil
• De planejamento e
• Penal
desenvolvimento
• Processual
• Comunicação e
• Social
telecomunicação
• Defesa
• Transporte
• Segurança
• Polícia
• Tributário
• Organização institucional
Direito/ • Orçamentário Direito/
• Monopólio de minérios
Legislação • Financeiro Administração
nucleares e derivados
• Política urbana
• Anistia
• Agrário
• Proteção da Constituição e
• Comercial
patrimônio público
• Comunicações
• Proteção de bens culturais,
• Riquezas minerais/atômicas
educação e ciência
• Marítimo
• Proteção do meio ambiente
• Aeronáutico/espacial
e produção agropecuária
• Trabalho
• Assistência pública social
• Trânsito
• Transportes
• Administrativo
• Econômico
• Ambiental
• Patrimônio histórico
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Figura 2. Classificação das competências legislativas e administrativas
quanto à centralização/descentralização
6
Silva reconhece que a Constituição não é rigorosa no emprego dos termos privativo e exclusivo, mas
defende a manutenção da distinção doutrinária por representarem realidades distintas (2007, p. 481). Parte da
doutrina, no entanto, não encontra mais razão para a distinção: “não nos parece apropriado, no entanto, é extremar
mediante o uso dos termos ‘privativo’ e ‘exclusivo’ as competências próprias que podem e as que não podem ser
delegadas, como se ‘privativo’ não exprimisse, tanto quanto ‘exclusivo’, a idéia do que é deferido a um titular com
exclusão de outros” (ALMEIDA, 1991, p. 86).
7
A literatura diverge quanto à utilização destes termos. Silva, por exemplo, distingue, quanto a extensão,
as competências que implicam na atuação de mais de um ente federativo em comum (expressão sinônima de
cumulativa e paralela), concorrente e suplementar: comum significaria “a faculdade de legislar ou praticar certos
atos, em determinada esfera, juntamente e em pé de igualdade, consistindo, pois, num campo de atuação comum
às várias entidades, sem que o exercício de uma venha a excluir a competência de outra, que pode assim ser exercida
cumulativamente”; concorrente, a “possibilidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma
entidade federativa” e “primazia da União no que tange à fixação de normas gerais”; suplementar, a “correlativa
da competência concorrente, e significa o poder de formular normas que desdobrem o conteúdo de princípios ou
normas gerais que supram a ausência ou omissão destas” (SILVA, 2007, p. 481). Moraes assevera que “No âmbito
da legislação concorrente, a doutrina tradicionalmente classifica-a em cumulativa sempre que inexistir limites prévios
para o exercício da competência, por parte de um ente, seja a União, seja o Estado-membro, e em não cumulativa,
que propriamente estabelece a chamada repartição vertical, pois, dentro de um mesmo campo material (concorrência
material de competência), reserva-se um nível superior ao ente federativo União, que fixa os princípios e normas
gerais, deixando-se ao Estado-membro a complementação” (MORAES, 2003, p. 297). Para os objetivos deste
estudo, a classificação adotada utiliza-se dos termos que efetivamente tenham pertinência para a avaliação da
centralização/descentralização. Assim, tomou-se por base uma distinção básica entre competências atribuídas a um
único ente (exclusivas) e atribuídas a mais de um ente federativo (concorrentes), para a posterior pormenorização,
conforme apresentado. Nessa linha, Canotilho diferencia “competência exclusiva – atribuída a um só órgão —, de
competência concorrente — atribuída, a título igual, a vários órgãos —, ou de competência-quadro —, atribuída
quanto à definição de bases ou princípios a um órgão e quanto à densificação particularizante a outro, tem de
obter-se recorrendo exclusivamente à interpretação das normas constitucionais” (CANOTILHO, 1996, p. 679-680).
Em classificação semelhante, Ferreira Filho classifica como competências reservadas ou exclusivas as que “somente
que recebeu a competência pode dispor sobre a matéria”, segundo uma repartição horizontal. Contudo, entende
que as competências concorrentes nos casos em que “a mesma matéria é deixada ao alcance de um ou de outro”
ente, campo no qual caberia à União estabelecer as normas gerais (repartição vertical); categoria que, nesse estudo,
é apenas uma das possíveis classificações da competência concorrente (FERREIRA FILHO, 2009, p. 55). Sobre
a distribuição de competências concorrentes no Brasil, ver também Souza (2005, p. 112).
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- (3) “Privativa U” – Atribuída à União, com a exclusão dos demais entes federativos.
- (2) “UC por encargo U” – Atribuídas às Unidades Constitutivas, mas exercidas por
funcionários federais8.
- (0) “Privativa UC” – Atribuída às Unidades Constitutivas, com a exclusão dos demais
entes da federação.
Além disso, para distinguir as razões que mais influenciaram na disposição dos
sistemas federativos examinados quanto à centralização/descentralização e, assim, apartar
aspectos considerados centrais das questões habitualmente reputadas como periféricas,
reunimos as competências legislativas e administrativas classificadas quanto ao conteúdo
predominante das matérias agrupadas, de modo a associar as categorias que conservavam
características semelhantes e, assim, conferir maior capacidade interpretativa e explicativa
ao modelo comparativo.
Assim, dividimos as competências legislativas e administrativas em três grupos
(I-Soberania, II-Econômico e III-Políticas públicas, descritos abaixo). O agrupamento
proposto é uma simplificação da distinção proposta por Horta, quanto às competências
constitucionais dispostas na Constituição Federal brasileira (HORTA, 2002, p. 350 e ss.):
- Grupo I – Soberania – Matérias legislativas relacionadas à soberania, à organização
institucional do país e à manutenção da unidade territorial, que, por representarem
interesses de ordem nacional, normalmente são atribuídas ao poder central (ao mesmo
os delineamentos gerais) e exigem certa uniformidade para a configuração de um sistema
federativo (subunidades com autonomia e não independência/soberania). Atividades
administrativas relacionadas à soberania e à proteção do território nacional.
8
Em princípio, as competências legislativas e administrativas são correlatas (FERREIRA FILHO, 2009,
p. 62). Desse modo, o ente competente para legislar em determinada matéria é também competente para aplicar
a lei. Contudo, é possível identificar três sistemas de repartição de competências administrativas nas federações
atuais: imediato, mediato e misto. No sistema imediato, a União e os Estados mantêm sua própria administração
com funcionários próprios (EUA, Argentina e Brasil). No sistema mediato, serviços federais nos Estados são
executados por funcionários estaduais e a União mantém apenas um pequeno corpo de funcionários responsáveis
pela fiscalização e vigilância desses serviços (Alemanha e Índia). No sistema misto, por sua vez, certos serviços
federais são executados por funcionários estaduais e vice-versa (Suíça e Áustria) (SILVA, 2007, p 482).
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Tabela 1. Competências Legislativas (quanto ao conteúdo e à extensão)
conclusão
Grupo Direito/legislação Brasil Alemanha Áustria Suíça Argentina Austrália USA Índia
Aeronáutico/
III Privativa U Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Exclusiva U Exclusivo U Exclusiva U
espacial
Concorrente Concorrente Divergente
III Trabalho Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Residual
G/E G/E U ou UC
Divergente
III Trânsito Privativa U Privativa U Privativa U Residual Residual Residual Paralela
U ou UC
III Transportes Privativa U Privativa U Privativa U Paralela Paralela Residual Residual Paralela
Concorrente Divergente Concorrente Divergente
III Ambiental Privativa U Residual Residual Residual
G/E U ou UC G/E U ou UC
Patrimônio Concorrente Privativa
III Privativa U Privativa U Residual Residual Residual Paralela
histórico G/E UC
1,0 1,0
Competências Administrativas
Competências Administrativas
Usa Índia
Índia austrália
Áustria Áustria Brasil
Brasil
austrália alemanha argentina
Usa alemanha
0,5 argentina 0,5
suíça
suíça
0,0 0,0
0,0 0,5 1,0 0,0 0,5 1,0
(1.3) Competências (Grupo II – Econômico) (1.4) Competências (Grupo III – Políticas Públicas)
1,0 1,0
Índia argentina
Brasil
austrália
alemanha Áustria
Competências Administrativas
Competências Administrativas
Usa suíça
Áustria
0,5 0,5
Índia Brasil
alemanha
Usa suíça
austrália
argentina
0,0 0,0
0,0 0,5 1,0 0,0 0,5 1,0
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83
de exercício dessas competências em cada sistema federativo, expostos a seguir de
maneira mais detalhada juntamente com os resultados das comparações realizadas.
9
“... A Constituição proposta (...) não é nem verdadeiramente federativa, nem verdadeiramente nacional,
é um composto de ambas; nos princípios que lhe servem de base é federativa; na origem de seus poderes é mista
(...); na operação destes poderes é nacional; na extensão deles é federativa; na maneira de introduzir as reformas
nem é inteiramente federativa, nem inteiramente nacional”. (MADISON, 1979, p. 123).
10
Embora seja possível encontrar certa uniformidade na divisão dos governos locais em condados, cities
e towns, o significado destes termos variam em cada Estado, que delegam diferentes atribuições para os governos
locais, classificados, por sua vez, com base em diferentes critérios (TOMIO, 2005a, p. 128).
11
Formada inicialmente por treze Estados, atualmente a Federação americana compreende cinquenta
Estados, duas federacies e três Estados associados, cf. U.S. Census Bureau.
12
USC = Constituição dos Estados Unidos da América (United States Constitution).
13
Composta por 26 unidades constitutivas chamadas cantões (Ständen), sendo que 17 deles são monolíngues
alemão, quatro são monolíngues francês, um italiano, três são bilíngues alemão e italiano e um trilíngue (alemão,
italiano e romanês) (WATTS, 2008, p. 30).
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maneira casuística no texto constitucional. Da doutrina juspublicista suíça (HÄFELIN e
HALLER, 2005, p. 316; TSCHANNEN, 2007, p. 294) extrai-se que na Constituição
podem se encontradas matérias com as seguintes características: 1) Legislação e
execução do Bund e execução (Ex: correios – art. 133, BV); 2) Legislação do
Bund e execução dos cantões (Ex: direito civil e penal – arts. 122 e 123, BV); 3)
Legislação de princípios ou normas gerais com execução pelos cantões (Ex:
nacionalidade – art. 38, BV); 4) Legislação paralela (Bund e cantões, cada qual
em seu âmbito) (Ex: organização do território – art. 75, BV); 5) Legislação e execução
dos cantões (Ex: impostos cantonais).
A nota particular da Confederação Suíça é que ela não tem soberania.14 De acordo
com o art.3.º da Constituição Suíça (BV15): “Os cantões são soberanos, desde que sua
soberania não seja limitada pela Constituição Federal; eles exercem todos os direitos não
delegados à Confederação”16. Observa-se, assim, que o legislador constitucional deixou um
amplo campo de matérias sob a competência do legislador cantonal, de modo que a
discricionariedade legislativa dos cantões é equiparável àquela dos states americanos.
Nesse aspecto, os resultados obtidos com as análises comparativas evidenciam
que a Suíça é, de fato, uma federação pouco centralizada, marcada, sobretudo, pela
singular descentralização legislativa e administrativa quanto às matérias do Grupo I, ou
seja, quanto aos poderes de soberania. O Gráfico 1.2 demonstra que a competência
para legislar e administrar matérias como nacionalidade, organização dos poderes,
organização do estado, político, defesa e celebração tratados internacionais (tipicamente
atribuídas ao poder central em outras federações), na federação suíça é atribuída
predominantemente aos cantões.
Certamente, os cantões suíços não são “soberanos” no sentido dado pelo
direito internacional ao termo. Mas, em decorrência disso, a Confederação Suíça só
pode assumir tarefas explicitamente enumeradas pela Constituição (art. 42, §1º,
BV), fato que denota a grande autonomia conferida pelo modelo federativo suíço as
suas unidades constitutivas.
Por outro lado, a Confederação possui o poder de legislar sobre aspectos
econômicos e de políticas públicas, gerando uma regulamentação uniforme (art. 42,
14
Por fim, a Confederação Suíça apresenta um sistema bicameral, sendo que o Ständerat suíço (Câmara
alta representativa dos cantões) é composto por 46 representantes, eleitos pelas normas estabelecidas em cada
cantão. Os menores cantões elegem um representante e os demais dois (art. 150, BV). A Constituição suíça deixa
claro que os cantões participam na formação da vontade da Confederação, especialmente quanto à legislação (art.
45, §1º BV) e a Confederação deve consultar os interesses dos cantões a respeito de seus projetos (§2º).
15
BV = abreviação, em alemão, para a palavra Constituição suíça.
16
De ressaltar, ainda, que a Confederação preserva a independência dos cantões (art. 47, BV) e que os
Cantões podem firmar contratos entre si, desde que não contrários a lei e ao interesse da Confederação (art.48,
§1º, BV).
17
Por compartilhar as linhas centrais de ambos os modelos federativos alemão e americano, alerta Klaus
Armingeon que o federalismo suíço também é suscetível às deficiências de ambos os modelos (ARMINGEON,
Klaus. Swiss federalism in comparative perspective. In:WACHENDORFER-SCHMIDT, 2000, p. 109).
18
A Federação alemã é formada por 16 Länder, sendo três deles cidades-Estado (Bremen, Hamburg
e Berlin).
19
Para uma análise mais detalhada desse processo e da atual conformação do sistema de repartição de
competências alemão, consultar o artigo: TOMIO, Fabrício; ORTOLAN, Marcelo. O sistema de repartição de
competências legislativas da lei fundamental alemã após a reforma federativa de 2006. 2010 (no prelo).
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leis federais é entregue aos Länder (Estados). Por razões históricas, essa matriz federativa
influenciou a organização das federações austríaca e suíça. Outra característica do sistema
federativo alemão é a opção pela completa separação topográfica entre competências
legislativas e administrativas no texto constitucional.
Após as mudanças da Reforma Federativa de 2006, o sistema de competências
legislativas estrutura-se em: 1) um título de legislação privativa do Bund (ausschließliche
Bundesgesetzgebung – art. 73, LF); 2) e três títulos de legislação concorrente
(art.72 e 74, LF), que segundo a doutrina de Jörn Ipsen (2006, p. 146-51) podem
ser classificados nos seguintes sub-títulos, com características próprias: a) Concorrente
de necessidade (Bedarfskompetenzen – art. 74, §1.º, n.º 4, 7, 11, 13, 15, 19a, 20,
22, 25 e 26, LF); b) Concorrente de núcleo (Kernkompetenzen – demais matérias
art. 74, §1.º); c) Concorrente de divergência (Abweichungskompetenzen – art. 72,
§3, da LF)20; 3) por fim, mais um título de concorrência legislativa denominado
legislação de princípios ou normas gerais (art. 109, §3 e art.91a, LF)
(Grundsatzgesetzgebung des Bundes)21.
Por sua vez, o sistema de repartição de competências administrativas caracteriza-
se, sobretudo, pela cláusula geral prevista no art. 83 da LF, que atribui aos Länder a
competência para executar as leis federais como matéria própria, exceto nos casos em
que a própria Lei Fundamental estabeleça de maneira diversa.
A doutrina de Zippelius e Würtenberger (2008, p. 490) classifica, de maneira
geral, as competências administrativas da Lei Fundamental alemã em quatro títulos:
1) Execução de leis federais sob Administração Federal Própria (apenas quando
expressamente indicado pela LF); 2) Execução de leis federais pela Administração
Estadual: 2.1) como matéria própria (art. 83, LF – regra geral); 2.2) por encargo
da Federação (por meio de delegação constitucional); 3) Execução estadual de
leis estaduais; e 4) um título de tarefas comuns22 (Gemeinschaftsaufgaben), que
correspondem a formas institucionalizadas de cooperação administrativa entre Bund
e Länder.
Os resultados obtidos com as pesquisas comparativas evidenciam que a Alemanha
é a federação com o sistema federativo mais equilibrado dentre aquelas analisadas.
Observe-se que nos gráficos relativos às matérias de soberania (1.2), econômico (1.3) e
20
Grande inovação da Reforma Federativa de 2006. Trata-se de verdadeira competência legislativa plena
dupla (doppelte Vollkompetenz) para o Bund e para os Länder. No âmbito dessas matérias, podem os Länder
estabelecer leis próprias e divergentes das leis federais, o que não impede que o Bund volte a legislar sobre a mesma
matéria. O critério de prevalência entre lei federal e estadual é temporal: Lex posteriori derrogat priori.
21
Anote-se que esta forma de legislação de princípios ou normas gerais foi recepcionada, pela primeira
vez, pela Constituição Federal Brasileira de 1934, sendo retomada pela Constituição de 1946. Na atualidade, esta
forma de legislação corresponde à competência legislativa concorrente prevista no art. 24 da CF de 1988.
22
Lei Fundamental alemã, 1949, art. 91a e 91b.
23
LF, art. 51, § 1: “O Conselho Federal é formado por membros dos governos dos estados, que os
designam e destituem. Os membros do Conselho podem fazer-se representar por outros membros dos seus governos”
(traduzido pelos autores)
24
Ronald Watts argumenta que, ao contrário das federações em que os membros da segunda câmara
federal são diretamente eleitos, naquelas em que seus membros são indiretamente eleitos pelas legislaturas estaduais,
ou quando são indicados ex officio como delegados das unidades constitutivas, como no caso da Alemanha, é a
visão desses governos que são diretamente representadas e apenas indiretamente aquela do eleitorado (WATTS,
2008, p. 151).
25
A Áustria é um país com sistema parlamentarista, de regime bicameral, sendo que os membros do
Bundesrat austríaco (Câmara Alta) são indiretamente eleitos pela assembléia legislativa dos Länder, com
representatividade praticamente simétrica à população dos Länder. A a Federação austríaca é formada por nove
Länder, sendo Viena, a capital federal, uma Cidade-estado.
26
B-VG = abreviação, em alemão, para a palavra Constituição austríaca.
27
Nesse sentido, ver Binder e Trauner (2008, p. 35) e Öhlinger (2007, p. 121).
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e execução privativas do Bund; 2) Matérias do art.11 B-VG (Elfermaterien): Legislação
privativa do Bund, mas execução privativa dos Länder; 3) Matérias do art.12 B-VG
(Zwölfermaterien): Legislação concorrente – norma geral Bund e norma específica Länder
– e execução privativa dos Länder; 4) Matérias do art.15 B-VG (Fünfzehnermaterien):
Legislação e execução privativas dos Länder; 5) Competências especiais espalhadas
pelo texto constitucional austríaco.
A simples análise do sistema constitucional de repartição de competências
evidencia que o modelo federativo da Áustria assemelha-se aos modelos alemão e suíço
do federalismo de execução (Vollzugföderalismus). Contudo, a Áustria distingue-se destes
pela alta centralização das competências legislativas no âmbito federal e relativa
descentralização administrativa estadual. Com efeito, perceba-se que o sistema de
repartição de competências austríaco só prevê um título de concorrência legislativa, pela
forma da emissão de normas gerais pelo Bund e normas específicas pelos Länder.
É isso que pode ser visto nos gráficos 1.3 e 1.4, nos quais a Áustria desponta como
a federação mais centralizada legislativamente no âmbito econômico e políticas públicas.
Ademais, na classificação geral das federações (Gráfico 1.1) observa-se que a Áustria só
não é mais centralizada legislativamente que o Brasil. Exceção deve ser feita às matérias
relativas à soberania, nas quais a Áustria apresenta grau de descentralização equiparável
à Alemanha, sendo que seus Länder também podem celebrar tratados internacionais.
Na literatura, Binder e Trauner (2008, p. 37) chamam a atenção para a fraca
posição dos Länder austríacos em comparação à Federação alemã ou suíça. De acordo
com os autores, a cláusula de competência legislativa residual em favor dos Länder é
enganosa (art. 15, §1.º, B-VG). A quantidade e qualidade das matérias enumeradas ao
Bund são de tamanho peso que aquelas que eventualmente sobram aos Länder são pouco
significativas. No campo legislativo, apenas as matérias do art. 15 B-VG e as leis específicas
de execução nas matérias do art.12 B-VG são da competência dos Länder.28
Por outro lado, quanto às atribuições administrativas dos Lander, a Áustria é
um pouco menos centralizada. Os Länder são responsáveis pela execução das matérias
dos artigos 15, 12 e 11 da B-VG. A organização administrativa federal compreende
apenas a administração direta. Por determinação constitucional (art. 102, §1.º, B-VG),
a administração federal indireta é realizada unicamente pelas secretarias e pelos órgãos
dos Länder.
Contudo, isso não permite classificá-la como uma federação administrativamente
descentralizada. Observe-se que, no quadro geral, a Áustria é a segunda federação mais
centralizada quanto à distribuição de competências administrativas, ficando atrás apenas
28
Convém destacar ainda que os Länder na Áustria não dispõem de tribunais próprios, uma vez que a
jurisdição é matéria exclusiva do Bund. Em outras palavras, a competência para dizer o direito na Áustria (jurisdição)
é unicamente federal.
Austrália (1901)
29
Corroborando os resultados encontrados, faz-se oportuno mencionar que Ronald Watts considera o
estudo da federação austríaca de grande interesse, pois ela demonstra até que ponto a centralização e a
interdependência federal-estadual pode ser levada no espectro da arquitetura federal (WATTS, 2008, p. 35).
30
A Austrália consiste numa federação de seis Estados e dez Territórios (a maior parte ultramarino), além
do Território da Capital Federal. Embora somente os Estados desfrutem de autonomia assegurada constitucionalmente
(Seções 103 e 102, ACA), três Territórios (Australian Capital Territory, Norfolk Island e Northen Territory) contam
com Poder Legislativo que, em sua maioria, é bicameral. A representação dos Estados no Poder Legislativo federal
é exercida pelo Senado, composto por membros eleitos diretamente nos Estados para mandatos de seis anos (total
de doze por Estado, mas o número pode ser aumentado pelo Parlamento desde que a igualdade na representação
seja mantida) (Seção 107, ACA), e pela Câmara de Representantes (House of Representatives), composta por membros
diretamente eleitos, em número proporcional à população dos Estados que os elegerem (o número total de membros
deve ser, conforme o possível, o dobro do número de senadores) (Seção 24, ACA), para mandatos de três anos,
contudo, podem ser dissolvidas em tempo menor (Seção 28, ACA). Ambas as Casas podem iniciar leis em diversas
matérias, conforme disciplinam, em extensas listas, as seções 51 e 52 da Constituição australiana, mas o Senado
não pode emendar leis sobre taxação nem iniciar leis sobre receitas, verbas ou arrecadação (Seção 53, ACA). A
promulgação das leis exige a aprovação nas duas Câmaras, sendo que o desacordo entre elas pode ensejar a
dissolução do Parlamento (Seção 57, ACA).
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91
pragmático do federalismo australiano: casuísta, inclinado a solução de problemas práticos
e não adstrito a dogmas teóricos (HOLLANDER e PATAPAN, 2007, p. 291).
Na federação australiana, os Estados têm sua autonomia garantida pela manutenção
das constituições coloniais, anteriores à federação, conforme o disposto na Constituição
federal (Seção 106, ACA31), que, por sua vez, não define quais matérias legislativas são
de competência estadual, mas estabelece exceções32. Desse modo, podem atuar
privativamente em importantes áreas, como criminal e educacional. Contudo, na hipótese
de divergência entre dispositivos legais, prevalece a norma federal (Seção 109, ACA).
Assim, apesar de a Austrália se apresentar como o segundo país mais
descentralizado legislativamente entre as federações comparadas (Gráfico 1.1), as
competências legislativas relacionadas aos Grupos I e II (Soberania e Econômico, Gráficos
1.2 e 1.3) encontram-se significativamente centralizadas. A posição relativa da Austrália
deve-se, portanto, essencialmente à descentralização das competências legislativas
relacionadas às Políticas Públicas (Gráfico 1.4). Do mesmo modo, como a repartição
das competências administrativas é influenciada pelo modelo norte-americano,
administrativamente a Austrália é uma federação pouco centralizada, fundamentalmente
pela excessiva descentralização administrativa referente às políticas públicas (Gráfico
1.4), encontrando-se tão centralizada administrativamente nos Grupos I (Soberania)
quanto Brasil, Alemanha e Áustria (Gráfico 1.2) e mais centralizada no Grupo II
(Econômico) do que países como Alemanha, Áustria e Suíça (Gráfico 1.3).
Índia (1950)
31
ACA = Constituição da Austrália (Commonwealth of Australia Constitution Act)
32
Os Estados não podem manter ou aumentar forças militares, impor taxas a bens pertencentes à União,
de consumo ou de alfândega, oferecer subsídios para a produção ou para a exportação de mercadorias (seções 90
e 114, ACA).
33
A Índia é uma união de vinte e oito Estados (que, por sua vez, são divididos em distritos), seis Territórios
e o Território da Capital Nacional. O Poder Legislativo Nacional é formado pelo Conselho de Estados (Rajya Sabha
ou Council of States) e pela Câmara de Representantes (Lok Sabha ou House of the People). O Conselho de Estados
é formado por doze membros nomeados pelo Presidente e até duzentos e trinta e oito membros eleitos indiretamente
pelas Assembléias estaduais e dos Territórios da União para mandatos de seis anos (art. 80, CI), com 1/3 da Casa
renovada a cada dois anos (art. 83, CI). A Câmara de Representantes, por sua vez, é composta por até quinhentos
e trinta membros eleitos diretamente nas circunscrições eleitorais estaduais e até vinte membros eleitos para
representar os Territórios da União (art. 81, CI). Ambas as Casas podem iniciar os projetos de lei, contudo, somente
a Câmara Baixa pode iniciar money bills (art. 109, CI), assim denominadas as leis referentes a finanças públicas
34
CI = Constituição da Índia (The Constitution of India)
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juntamente com a Assembléia Legislativa (Legislative Assembly) ou, em alguns Estados35,
com o Conselho Legislativo (Legislative Council) e Assembléia Legislativa, compõe o
Poder Legislativo estadual. A Assembléia Legislativa é composta por número de membros
entre sessenta e quinhentos, eleitos diretamente para mandatos de cinco anos, mas pode
ser dissolvida em período inferior (arts. 170 e 172, CI). O Conselho Legislativo, por sua
vez, eleitos segundo critérios diversos36 para mandatos de seis anos, não sujeitos à
dissolução e com renovação de 1/3 da Casa a cada dois anos (arts. 171 e 172, CI).
Argentina (1853)
35
A Constituição federal determina que terão Poder Legislativo bicameral os Estados de Andhra Pradesh,
Bihar, Madhya Pradesh, Maharashtra, Karnataka e Uttar Pradesh; nos demais, o Poder Legislativo é unicameral
(art. 168, CI).
36
A Constituição federal estabelece que, conforme for possível: 1/3 dos membros são eleitos por integrantes
das municipalidades, conselhos distritais ou qualquer outra autoridade local; 1/12 dos membros são eleitos por
pessoas graduadas em universidades indianas ou cujas qualificações foram definidas pelo Parlamento como
equivalente à graduação; 1/12 dos membros são eleitos por pessoas que tenham se engajado no ensino não inferior
ao secundário; 1/3 dos membros são eleitos pelos representantes da Assembleia Legislativa; as vagas restantes são
preenchidas por pessoas indicadas pelo governador (art. 171, CI).
37
A Argentina, além da capital federal, possui vinte e três províncias. O Poder Legislativo nacional, como
nas demais federações, é bicameral (art. 44, CNA). A Câmara de Deputados é composta por membros eleitos para
mandatos de quatro anos, em eleições proporcionais a cada quatro anos, com número de representantes definido
segundo o número de habitantes de cada província e da capital federal (art. 45, CNA). O Senado, por sua vez, é
composto por membros eleitos para mandados de seis anos, em eleições majoritárias a cada dois anos para a
renovação de 1/3 da Casa Legislativa, com número determinado de três representantes por província e três da
capital federal (art. 54, CNA). Apesar da composição segundo critérios de representação diferentes, a incongruência
no aspecto eleitoral não reflete uma diferença marcante nas atribuições das Câmaras Legislativas.
38
CNA = Constituição da Argentina (Constitución de la Nación Argentina).
39
Províncias com Poder Legislativo unicameral: Chaco, Chubut, Córdoba, Corrientes, Formosa, Jujuy,
La Pampa, La Rioja, Misiones, Neuquén, Río Negro, San Juan, Santa Cruz, Terra Del Fuego, Antártida e Islas del
Atlántico Sur. Províncias com Poder Legislativo bicameral: Buenos Aires, Catamarca, Entre Ríos, Mendoza, San
Luis, Santa Fe, Salta.
40
Segundo Watts (2008, p. 47), embora a cláusula residual favoreça as subunidades, a autoridade federal
pode ser exercida em áreas nas quais as províncias poderiam interferir no exercício de poderes atribuídos à União.
41
A Câmara de Deputados tem iniciativa privativa de leis sobre contribuições e recrutamento de tropas
(art. 52, CNA) e é responsável pela denúncia, perante ao Senado, em causas de responsabilidade ou por crimes
comuns, do Presidente, Vice-Presidente, Chefe de Gabinete dos Ministros e membros da Corte Suprema (art. 53,
CNA). O Senado é responsável, privativamente, pelo julgamento dos denunciados pela Câmara dos Deputados (art.
59, CNA) e pela autorização da declaração de estado de sítio, solicitado pelo Presidente da República, em caso de
ataque internacional (art. 61, CNA).
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República Federativa do Brasil (1891)
42
A República Federativa do Brasil é formada por 26 Estados, um Distrito Federal, e mais de 5.500
Municípios.
43
Deve-se ressaltar, entretanto, que este rol não é exaustivo, havendo outras competências legislativas da
União previstas no art. 48 da CF e outras tantas dispersas no texto constitucional (MENDES, COELHO e BRANCO,
2009, p. 868).
44
Cuja origem remonta aos artigos 10 e 11 da Constituição de Weimar e atual legislação de princípios
ou de normas gerais (Grundsatzgesetzgebung des Bundes) previsto pelo art. 109, §3 e art.91a, da Lei Fundamental
alemã de 1949.
45
De acordo com a lição de Raul Machado Horta, a nova competência legislativa concorrente foi abastecida
com matérias próprias, não deslocadas da competência legislativa privativa da União, como ocorreu nas Constituições
de 1934, 1946 e 1967 (HORTA, 2002, p. 346).
46
Não obstante a inexistência de hierarquia entre os entes federativos, pode-se falar em uma “hierarquia
de interesses”, em que os mais amplos (da União) devem preferir aos mais restritos (dos Estados) (MENDES,
COELHO e BRANCO, 2009, p. 870).
4. CONCLUSÕES
47
Apesar de voz minoritária, negando a qualidade de entidade federada ao Município (SILVA,, 2007, p.
640). Sobre esse tema, ver também Souza (2005, p. 110).
48
“It is my main purpose to sketch out the political, philosophical and theological contours of two quite
distinct traditions of federal thought that can be identified as the Continental European and the Anglo-American
strands of federalism and federation. This purpose is not meant to render invisible the existence of other federal political
traditions that have also evolved in Latin America, Africa, Asia and the Middle East. It is merely to focus upon the
two oldest known, mainstream, federal political traditions that have their philosophical and empirical bases in the
emergence of the modern state” (BURGESS, 2006, p. 162).
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Os resultados comparativos, bem como o próprio arranjo federativo das
competências constitucionalmente previstas nas federações da Austrália e Argentina
evidenciam a influência da matriz federativa anglo-americana, consubstanciada na
Constituição dos Estados Unidos de 1789, caracterizada pela atribuição de
responsabilidades exclusivas a cada ente federativo, que, via de regra, fica responsável
pela legislação e administração do assunto dentro de sua área. Já as federações da
Áustria, Suíça e Alemanha denotam a influência da matriz federativa europeia ou
germânica, caracterizada por formas de cooperação e codecisão legislativas e
administrativas, não havendo a coincidência entre a responsabilidade para legislar e
administrar no âmbito de muitas matérias.
Nesse contexto, apesar de constituir-se em aspecto amplamente ignorado pela
literatura política e constitucional brasileira, é da maior relevância observar que no atual
modelo federativo brasileiro convivem instituições tanto do federalismo executivo alemão
(Vollzugföderalismus), consubstanciadas nas formas de cooperação legislativa adotadas
pela Constituição, como do federalismo legislativo americano (legislative federalism),
evidenciadas, por exemplo, pela falta de coordenação e cooperação entre a União,
Estados-membros e Municípios na implementação das competências administrativas e
no “fraco” sistema bicameral brasileiro.
Assim, ante a percepção do déficit de instrumentos de cooperação administrativa
na federação brasileira, poder-se-ia cogitar, como futura linha de pesquisa, a investigação
de alternativas para uma maior institucionalização de relações de cooperação
administrativas entre os entes federativos, dentre as quais a nova Lei dos Consórcios
Públicos se insere.
Também poderia ser objeto de estudo o “fraco” sistema bicameral, que, assim
como o americano, caracteriza-se pela baixa influência dos governos estaduais na
formação das políticas nacionais. Nessa linha, estaria o Senado Federal mais voltado a
criar um dispositivo de atraso (Elster, 2009, p. 168-76) no processo legislativo federal49,
favorável à manutenção do status quo do que propriamente a representar as subunidades
no âmbito federal50.
Por fim, observa-se que a federação brasileira, não obstante a previsão de formas
de cooperação legislativa entre os entes federativos, comparativamente, aparece como
sendo o país mais centralizado em matéria legislativa e, ao lado da Áustria, como a
federação, em termos gerais, mais centralizada, colocando em evidência a tendência das
49
Que de acordo com a doutrina especializada de Tsebelis gera um aumentar o número de atores com
poderes de veto no processo legislativo e reduz o conjunto vencedor do status quo, resultando em um incremento
da estabilidade decisória (2009, p. 80-6 e 206-214).
50
Neiva, nesse sentido, procurou demonstrar que a principal variável explicativa para a força política das
câmaras altas é o sistema de governo e não a estrutura federativa (NEIVA, 2006, p. 286).
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ABSTRACT: The Civil Code of 2002 made substantial innovations in the subject of the statute of
limitations. In this paper, we propose a critical analysis of legislative options adopted by Brazilian Law.
From a comparative law analysis, which helps to understand the influences received from other systems
on the theme of limitation, we try to point out possible weaknesses in the coding and interpretive paths
to overcoming it. The conclusion is for seven argumentative and critic sets that demand hermeneutic
effort, also presented to the reader to a proper treatment of the subject.
* Professor adjunto de Direito Civil nos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal
do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Vice-Coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado.
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101
1. Introdução
O termo prescrição usualmente é utilizado tanto para traduzir uma espécie de fato
jurídico como para explicar uma particular eficácia jurídica. Essa indistinção entre os
significados reconhecidos ao mesmo significante pode ser considerada a primeira
dificuldade na abordagem do instituto.
Como uma particular espécie de fato jurídico2, a prescrição se forma a partir dum
determinado suporte fático composto por eventos e ações humanas. O suporte fático da
prescrição é complexo, envolvendo eventos (o transcurso do tempo) e ações humana (a
inação do titular de uma determinada situação jurídica ativa).
A tríade de elementos necessários à prescrição (transcurso do tempo, inação
e titularidade de situação jurídica ativa) se justifica por um olhar atento ao instituto
sob investigação.
Sob os mais diferentes enfoques, e em termos similares em direito comparado,
no conjunto plural de elementos para formação do fato jurídico prescrição é incontroverso
que o transcurso do tempo deve estar presente.
1
Em virtude dos limites inerentes a um artigo, decidiu-se abordar o direito comparado a partir do Direito
Civil dalguns países Europeus (Itália, França, Alemanha, Portugal Espanha) e da região da Catalúnia, ao lado dos
Códigos de outros países da América Latina (Argentina, Uruguai e Bolívia). A respeito do direito comparado como
disciplina que orienta uma reflexão crítica do direito positivo, cf. FRADERA, Véra Maria Jacob. Reflexões sobre a
contribuição do direito comparado para a elaboração do direito comunitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, em
especial p.158 e seguintes.
2
Adotamos a orientação teórica de que o fato jurídico é o resultado da incidência da norma jurídica sobre
determinado suporte fático. A incidência, por sua vez, se dá quando na realidade cotidiana ocorrem os fatos (suporte
fático concreto) em conformidade suficiente ao que é abstratamente descrito em norma jurídica (suporte fático
abstrato). Sobre o assunto, cf. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t.I. 3.ed. Rio de Janeiro: Borsoi,
1970; Mais recentemente, com grande avanço didático e inovações, o tema foi explorado de maneira singular por
BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico: plano da existência.15.ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
Ambos os autores servirão como marco teórico para a exposição realizada.
3
Deixemos, por ora, a discussão sobre o objeto da prescrição. O tema será abordado adiante.
4
Compreendendo que a avaliação subjetiva da conduta integra a noção de inércia que é própria e
indispensável à prescrição, CABRAL DE MONCADA, Luís. Lições de Direito Civil. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1995,
p.740; ANDRADE, Manuel A. D. Teoria geral da relação jurídica. t.II. Coimbra: Almedina, 1988, p.446; MOTA
PINTO, Carlos Alberto. Teoria geral do Direito Civil. 3.ed. Coimbra: Almedina, 1993, p.376).
5
Registre-se que, segundo a compreensão predominante, a referida adequação das circunstâncias diria
respeito, apenas e tão somente, à política legislativa. Isto porque, conforme adverte Messineo, “la legge non richiede
che l’inerzia del titolare sia volontaria, ossia effetto di negligenza; essa si riporta al fatto, schiettamente oggettivo, del
mancato esercizio”(MESSINEO, Francesco. Manuale di Diritto Civile e Commerciale. Milano: Giuffrè, 1957, p.178)
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103
Se em relação aos elementos do transcurso do tempo e da inação do sujeito se verifica
uma compreensão praticamente pacífica a respeito do tema, o esclarecimento da situação
jurídica que se titulariza na prescrição é um campo absolutamente controverso.
Nele se comunica a abordagem da prescrição como particular fato jurídico e como
espécie de eficácia jurídica, tal como antes alertado. Isto porque a situação jurídica
titularizada pelo sujeito que se queda inerte por um determinado lapso temporal, a um
só tempo, servirá para definir o terceiro elemento para a composição do fato jurídico e
indicará o objeto a ser atingido pelo efeito da prescrição.
Num esforço de comparação entre os ordenamentos jurídicos antes assinalados,
as soluções encontradas para esta questão podem ser agrupadas em quatro modelos.
No modelo francês, a prescrição é tratada como um meio de se adquirir e ou de
se liberar em virtude de um lapso temporal6. Reconhece-se, portanto, a possibilidade
de uma eficácia constitutiva e de uma eficácia extintiva a partir do fato jurídico prescrição.
A despeito de o texto legislativo não ser claro quanto ao objeto que se extingue ou se
constitui, mediante uma interpretação sistemática, pode-se dizer que a prescrição medeia
o surgimento ou a liberação de um direito subjetivo.
O direito subjetivo, portanto, seria o terceiro elemento para a configuração do
fato jurídico e, ao mesmo tempo, seria o alvo da eficácia da prescrição (bifurcada em
aquisitiva e extintiva).
Similar ao tratamento encontrado no Código Civil Francês são as soluções
verificadas no Código Civil Espanhol7, no Código Civil Argentino8 e no Código Civil
Uruguaio9, ainda que com algumas ressalvas10.
Para além das divergências pontuais – e sem pretender minorar a importância
de cada uma delas –, verifica-se como traço comum a circunstância de o fato jurídico
6
“Art. 2.219. La prescription est un moyen d’acquérir ou de se libérer par un certain laps de temps, et
sous les conditions déterminées para la loi”
7
“Art. 1.930. Por la prescripción se adquieren, de la manera y con las condiciones determinadas en la
ley, el dominio y demás derecho reales. También se extinguen del proprio modo por la prescripción los derechos
y las acciones, de cualquier clase que sean”
8
“Art. 3.947. Los derechos reales y personales se adquieren y se pierden por la prescripción. La
prescripción es un medio de adquirir un derecho, o de libertarse de una obligación por el transcurso del tempo”.
9
“Art. 1188. La prescripción es un modo de adquirir o de extinguir los derechos ajenos. En el primer
caso se adquiere el derecho por la posesión continuada por el tiempo y con los requisitos que la ley señala. En el
segundo, se pierde la acción por el no uso de ella en el tiempo señalado por la ley. Para esta clase de prescripción,
la ley no exige título ni buena fe”.
10
Advirta-se, no entanto, a ressalva de que, no Código Civil Espanhol, expressamente, reserva-se a
prescrição aquisitiva para os direitos reais e a prescrição extintiva para todos os demais direitos e ações; no Código
Civil Argentino, verifica-se a particularidade de que, expressamente, tanto a prescrição extintiva como a aquisitiva
atingiriam os direitos reais e pessoais e, por fim, no Código Civil Uruguaio, restringe-se a prescrição aquisitiva aos
direitos decorrentes da posse ou a perda de “ações” pela inércia de seu titular.
11
“Art. 2934. Ogni diritto si estingue per prescrizione, quando il titolare non lo esercita per il tempo
determinato dalla legge. Non sono soggetti alla prescrizione i diritti indisponibili e gli altri diritti indicati dalla legge”.
12
“Art. 1492. I. Los derechos se extinguen por la prescripción cuando su titular no los ejerce durante el tiempo
que la ley establece. II. Se exceptúan los derechos indisponibiles y los que la ley señala en casos particulares”.
13
Ҥ 194. Das Recht, von einem Anderen ein Thun oder ein Unterlassen zu verlangen (Anspruch),
unterliegt der Verjährung”. No volume que compõe a tradução espanhola do Tratado de Direito Civil de Enneccerus-
Kipp-Wolf pode-se ler a seguinte tradução: “§ 194. El derecho de exigir de otro una acción o una omisión (pretensión)
se extingue por prescripción” (INFANTE, Carlos Melon. Código Civil Aleman. Barcelona: Bosch, 1994, p.38)
14
“Art. 121-1. La prescripció extingeix les pretensions relatives a drets disponibles, tant si s’exerceixen
en forma d’acció com si s’exerceixen en forma d’excepció. S’entén com a pretensió el dret a reclamar d’altri una
acció o una omissió”.
15
“(...) 2 – A prescrição de direitos sujeitos a condição suspensiva ou termo inicial só começa depois de
a condição se verificar ou o termo se vencer”
16
Não obstante o texto do Código Civil Português não se posicionar no sentido de que a prescrição atingiria
o próprio direito subjetivo, esta concepção é forte na doutrina. Neste sentido, cf. CABRAL DE MONCADA, Luís.
Lições de Direito Civil. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1995, p.729; MOTA PINTO, Carlos Alberto. Teoria geral do
Direito Civil. 3.ed. Coimbra: Almedina, 1993, p.373; PRATA, Ana. Dicionário jurídico. t.I. 5.ed. Coimbra:
Almedina, 2008, p.1091; ANDRADE, Manuel A. D. Teoria geral da relação jurídica. t.II. Coimbra: Almedina,
1988, p.446 (com a observação de que, para este autor, uma vez extinto o direito subjetivo em decorrência da
prescrição, surgiria uma obrigação natural). Em sentido contrário, Pedro Paes de Vasconcelos defende que o efeito
jurídico da prescrição seria um “enfraquecimento” do direito subjetivo consistente em que a pessoa vinculada pode
recusar o cumprimento ou a conduta a que esteja adstrita (VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito
civil. 3.ed. Coimbra: Almedina, 2005, p.756).
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105
Diante destes modelos cabe questionar qual o que melhor auxilia a compreensão
do Código Civil Brasileiro de 2002.
17
A respeito do assunto, cf. BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico: plano da existência.
15.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, em especial p.182; TOMASETTI, Alcides (et alli). Comentários à Lei de locações
de imóveis urbanos. São Paulo: Saraiva, 1991, p.5. Em data mais recente, o assunto é enfrentado nestes termos
por NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria da ação de direito material. Salvador: Juspodivm, 2008, p.112
e EHRHARDT JR, Marcos. Direito Civil: LICC e Parte Geral. v.I. Salvador: JusPodivm, 2009, p.463-465.
Interessante leitura a respeito do tema, com enfoque no direito anglo-americano, pode ser encontrada em HOHFELD,
Wesley Newcomb. Fundamental legal conceptions as applied in judicial reasoning. New Haven: Yale University
Press, 1920, p.36. No Brasil, a partir da construção de HOHFELD, destaca-se o trabalho de FERREIRA, Daniel
Brantes. Teoria dos direitos subjetivos. Rio de Janeiro: GZ, 2009.
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Apenas quando se compreende a existência destas categorias eficaciais e a
diferença entre cada uma delas, torna-se possível compreender o que a prescrição atinge
e o que a prescrição não atinge em direito brasileiro.
Ao escolher como objeto da eficácia extintiva a pretensão18, ou seja, o poder de
exigir uma prestação, se torna claro que a prescrição é um fenômeno próprio ao campo
do direito material. As eventuais projeções ao direito de ação (em sentido processual)
só se justificam de modo reflexo, tal como se dá com o corpo em relação ao espelho19.
Porque a pretensão e a ação em sentido material são encobertas pela prescrição,
o seu titular não pode se servir dos remédios processuais, da ação em sentido processual.
A consequência processual de não poder se servir da “ação”, no entanto, não tem o
condão de explicar o instituto. Trata-se de um resultado decorrente de uma prévia eficácia
que se sucedeu no direito material.
A diferenciação entre as categorias eficaciais e a fixação do objeto da prescrição
sobre a pretensão tornou possível superar a confusão, reinante em direito nacional, de
que a prescrição extinguiria a ação, normalmente compreendida apenas no sentido de
remédio processual, de ação processual.
Em conclusão parcial, pode-se sustentar que o Código Civil Brasileiro busca se
alinhar ao modelo teórico alemão. Esta aproximação, no entanto, é parcial e acaba por
ensejar algumas inconsistências adiante expostas.
18
Pontes de Miranda e Marcos Bernardes de Mello mencionam que a prescrição atingiria a pretensão e
a ação em sentido material. Conforme explica Marcos Bernardes de Mello, a coextensão entre pretensão e ação em
sentido material não é necessária, ainda que em regra ela ocorra. Justamente por isso, segundo este autor, em
situações excepcionais, seria possível à prescrição atingir a ação em sentido material em situações em que não se
verifique uma prévia pretensão, uma vez que a coextensão entre a pretensão e a ação seria um princípio não essencial
(Sobre o assunto, cf. BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. 3.ed. São Paulo:
Saraiva, 2007, p.183).
19
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que “o prazo estatuído em lei como termo para a extinção do
direito, seja ele considerado de decadência ou de prescrição, é de direito material (dos que se integram no ramo
do direito em que nasce a pretensão); de direito processual é a norma sobre a forma de ação” (RTJ 61/93). Noutra
oportunidade, a mesma Corte decidiu que “a prescrição é causa extintiva da pretensão e não do direito abstrato de
ação. Por isso é instituto de direito material, a ela se aplicando a lei do tempo em que teria ocorrido (RTJ 165/1020).
Ambos os acórdãos foram reproduzidos a partir de Yussef Said Cahali que, por sua vez, explica: “O remédio jurídico
origina-se das leis processuais, representando o caminho a ser percorrido por aquele que vai a juízo, dizendo-se
com direito subjetivo, pretensão e ação, ou somente com ação; realizado o direito objetivo sem relutância, não terá
sido necessário que o titular do direito subjetivo, da pretensão e ação, se socorresse do remédio jurídico processual
(...) Em outros termos, o direito subjetivo, a pretensão e a ação preexistem ao exercício, ao uso dos remédios
processuais. Daí resulta que a prescrição e a decadência integram o direito material (...)” (CAHALI, Yussef Said.
Prescrição e decadência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.16-17). Em certa medida, o texto doutrinário
mais influente em direito nacional a respeito do tema não esclarece suficientemente o caráter material da prescrição,
ao tratar como critério de distinção entre a prescrição e a decadência as ações, aparentemente em sentido processual,
segundo a classificação trinária (açõs constitutivas, declaratórias e condenatórias) (AMORIM FILHO, Agnelo. Critério
científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais.
a.86, v.744, out.1997, p.725-750).
20
Estudos de Direito Romano apontam a inexistência de uma concepção unificada de prescrição ou, ainda,
de um prazo para o exercício das ações. Ao contrário, as ações do ius civile seriam perpétuas (actiones perpetuae).
Segundo Mario Amelotti, a busca por segurança e certeza nas relações jurídicas, por muito tempo, não se apresentou
à cultura romana como um problema, tornando desnecessário uma orientação unificada sobre o assunto até o período
pós-classico. No período das legis actiones, a orientação era pela perpetuidade. No período formulário, já se
verificariam algumas figuras concernentes à eficácia extintiva do tempo, sem que seja possível, no entanto, unificá-
las em um conceito (AMELOTI, Mario. La prescrizione delle azioni in Diritto Romano. Milano: Giuffrè, 1958,
p.1-23). Apenas no período pós-clássico, com Teodósio II, por volta do ano 424 D.C., cria-se um prazo geral para
o exercício das ações e, com Justiniano, o meio de defesa do possuidor de opor uma exceção pela prescrição da ação
reivindicatória (a chamada longi temporis praescriptio) foi considerada uma espécie de usucapião (Cf. VOCI, Pasquale.
Istituzioni di Diritto Romano. 3.ed. Milano: Giuffrè, 1954, p.197 e p. 232; JÖRS, Paul; KUNKEL; Wolfgang.
Derecho privado romano. Madrid: Labor, 1937, p. 191; KASER, Max. Direito privado romano. Lisboa: Calouste
Gulbekian, 1999, p.59 e p.155). Daí a se considerar a prescrição como gênero que albergaria uma prescrição
aquisitiva e outra extintiva, há muita diferença. Savigny explica a tentativa de se ampliar a noção de prescrição para
a perda e a aquisição de direito, de modo a albergar também a usucapião: “Le principe de la phraseologie vicieuse
que je combats se trouve déjà chez les glossateurs du douzième siècle, d’où il a passé dans le droit canon; mais là
on se borne à représenter l’usucapion et la prescription des actions comme deux espéces d’un même genre”
(SAVIGNY. Traité de Droit Romain. 2.ed. t.4. trad. M. Ch. Guenoux. Paris: Librairie de Firmin Didot Frères, 1856,
p. 317 e 319). Nesse mesmo sentido, Massimo Corsale apresenta uma glosa de Cardinalis que demonstraria o
caminho para a união de institutos tão diferentes: “venendo ora ai requisiti necessari per l’utile decorso del termine
di prescrizione, occore rilevare come, specialmente dai canonisti, fosse richiesto nel Medievo il ‘possesso’. É
interessante a questo proposito ricordare una glossa del Cardinalis al c.45, C.XV, q.1 (7): ‘Quod enim quis possidet,
praescritione acquirit vel retinet, actionem enim (autem?) alterius, quam nullus possidet, praescribit nemo, sed contra
actionem libertatem, quam sine interpellatione quis possidet, ipsam praescribit. Unde dicitur spatio XXX vel XL annorum
omnis actio tollitur, etc...’. Le affermazioni contenute in questo brano si basano, su una concezione estremamente
ampia del quasi-possesso utilizzata per assimilare la prescrizione estintiva alla acquisitiva, mediante la fusione in
un unico istituto con gli stessi fondamenti” (CORSALE, Massimo. Verb. Prescrizione estintiva. Storia del diritto.
In: Novissimo Digesto Italiano. t. XIII, p.641). No Brasil, o percurso e a crítica da união entre a usucapião e a
prescrição são apresentados por PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. VI. Rio de Janeiro: Borsoi,
1955, p.98 e seguintes).
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Para além do equívoco na interpretação do Direito Romano – usualmente adotado
como discurso competente para justificar soluções modernas ao direito privado21 –, a opção
de unir a usucapião à prescrição mostra insuficiências no plano teórico e prático.
Os elementos que integram o suporte fático da usucapião são completamente
diferentes dos elementos que compõem o suporte fático da prescrição, sobretudo ante
a crescente pluralidade de diferentes meios para se adquirir a propriedade mediante
usucapião22; a eficácia do que se compreende por prescrição e usucapião é diametralmente
oposta; a função prático-social da prescrição é completamente diversa da função prático-
social da usucapião. As causas que impedem, suspendem e interrompem a prescrição
são, em geral, imprestáveis para a usucapião, até mesmo pela diferente função prático-
social de cada uma delas; a prescrição tem aplicação em todas as searas do direito civil
e a usucapião é restrita ao direito das coisas.
Diante de tantas diferenças, qual o porquê de se unir estas duas figuras sob o
manto do mesmo instituto, senão o apego a uma leitura equivocada das fontes romanas?
O transcurso do tempo, verificável tanto na prescrição como na usucapião, não parece
ser razão suficiente para uní-las em um mesmo instituto23.
O Código Civil Brasileiro também mostrou acerto ao se afastar do modelo italiano.
A ideia de que a prescrição extingue um direito não se mostra coerente com a orientação
normativa, já assentada em direito nacional, de que o pagamento de uma dívida prescrita
pelo devedor não configuraria um pagamento indevido ou uma situação de enriquecimento
sem causa (art. 882, CCB).
A dívida prescrita é tão existente como o crédito que lhe é correspectivo, ainda
que seja mutilada de qualquer pretensão. Essa precisão conceitual se mostra importante
ao se analisar a prescrição sob o aspecto funcional: ao versar sobre a prescrição nunca
se teve em mente, pura e simplesmente, criar um impedimento para o credor receber
aquilo que lhe é devido. Ainda que porventura isto venha a ocorrer, esta não é a função
da prescrição24.
Outra evolução digna de nota foi a tentativa de separação dos prazos prescricionais
exclusivamente nos artigos 205 e 206 do Código Civil, indicando-se que todos os demais
21
A respeito do assunto, dentre outras obras do mesmo autor, cf. FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução
teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2010, p.23.
22
Uma leitura da Constituição Federal Brasileira (arts.183 e 191), do Código Civil (arts.1238, 1239,
1240, 1242e 1260) e do Estatuto da Cidade, Lei n.º 10.257/2001 (art. 9) esclarece as várias espécies de usucapião
que atualmente são verificáveis em direito brasileiro.
23
Sobre o assunto, cf. NEQUETE, Lenine. Prescrição aquisitiva e prescrição extintiva: semelhanças e
diferenças. Ajuris. v.32, n.100, p.9-16.
24
A função da prescrição diz respeito à “segurança e à paz públicas, para limite temporal à eficácia das
pretensões e das ações. A perda ou destruição das provas exporia os que desde muito se sentem seguros, em paz,
e confiantes no mundo jurídico, a verem levantarem-se – contra o seu direito, ou contra o que têm por seu direito –
pretensões ou ações ignoradas ou tidas por ilevantáveis. O fundamento da prescrição é proteger o que não é devedor
e pode não mais ter prova da inexistência da dívida; e não proteger o que era devedor e confiou na inexistência da
dívida, tal como juridicamente ela aparecia” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. VI. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1955, p.100).
25
Há limitações, no entanto, ante as situações que ensejam, por exemplo, alternativamente, pretensões e
direitos potestativos (poderes formativos), como nos vícios redibitórios que conferem ao prejudicado pretensão ao
abatimento do preço, sujeita ao prazo prescricional, e poder de rescisão do contrato, sujeito ao prazo de natureza
decadencial. Neste sentido, cf. NERY JR, Nelson; NERY; Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. São
Paulo: RT, 2008, p. 527. A respeito desta orientação no Código Civil brasileiro, cf. REALE, Miguel. História do
novo código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.61.
26
Em sentido contrário, defendendo a extinção ipso iure mediante prescrição, ainda que sob a dependência
de alegação da parte interessada, cf. CABRAL DE MONCADA, Luís. Lições de Direito Civil. 4.ed. Coimbra:
Almedina, 1995, p.734.
27
Cite-se, dentre outros, a crítica de Enneccerus e Nipperdey: “(...) con el fin de salvaguardar la seguridad
general del derecho y en orden a proteger contra las pretensiones ilegítimas, el ordenamiento jurídico tiene que
aceptar también que él deudor poco escrupuloso, que sabe exactamente que él debe todavía, esté favorecido por
las reglas de la prescripción. Pero sería poco decoroso el protegerle ipso iure. El deudor podrá invocar la prescripción,
pero tendrá que echar sobre sí la legítima censura de conducirse con poco miramiento” (ENNECCERUS-
NIPPERDEY. Parte General. t.I. v.2. In: Enneccerus-Kipp-Wolff. Tratado de Derecho Civil. Barcelona: Bosch,
1981, p.1017-1018).
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111
É interessante notar que a expressão praescriptio surge desvinculada de qualquer
ideia de aquisição ou perda de direitos, tomando contornos de exceção28, ou seja, de
oposição a determinado efeito pretendido por outrem.
Mais que conceitual e teórica, esta orientação foi e continua sendo eminentemente
prática, não se verificando qualquer razão para alterá-la.
A prescrição seria uma exceção porque sem a efetiva oposição do devedor à
pretensão nada ocorreria automaticamente ao direito, à pretensão ou à ação do credor.
O poder de se opor, mediante alegação da prescrição, necessariamente haveria de ser
exercido pelo devedor para que fosse possível promover uma alteração no plano do
direito material29.
Com isso, fica mais fácil compreender a possibilidade de renúncia à prescrição
e, até mesmo, a função do instituto que, como antes explicado, nunca se destinou a
impedir que alguém recebesse alguma prestação que é devida.
Se a prescrição extingue a pretensão, tal como está escrito no art. 189 do Código
Civil Brasileiro, sob a perspectiva do direito positivo, a configuração do instituto como
uma das espécies de exceções substanciais restaria prejudicada.
Talvez justamente em razão desse grave equívoco, o legislador brasileiro sentiu-
se à vontade para cometer um subsequente lapso muito pior: a determinação de que a
prescrição pode ser conhecida de ofício, pelo magistrado, tal como prevê a Lei n.º
11.280/2006, especialmente quanto ao § 5º do art. 219 do CPC.
Não se sabe se o raciocínio foi o de que, uma vez definitivamente extinta a pretensão
pelo advento da prescrição, não haveria razão para não conferir ao Juiz o poder de
reconhecer este fato de uma vez, agregando a aparente vantagem de desobstruir as pautas
do Poder Judiciário de maneira célere.
28
“Praescriptio est exceptio ex tempore substantiam capiens quae actioni personali vel in rem opponitur”
(BALBI, G.F. Tractatus praescriptionum. Veneza, 1574, n.2, cart. 5 Apud CORSALE, Massimo. Verb. Prescrizione
estintiva. Storia del diritto. In: Novissimo Digesto Italiano. t. XIII, p.641). Savigny, por sua sua vez, explica que
“dans les sources du droit, le mot praescriptio ne signifie jamais acquisition ou perte, toujours il a le sens d’exceptio,
exception” (SAVIGNY. Traité de Droit Romain. 2.ed. t.4. trad. M. Ch. Guenoux. Paris: Librairie de Firmin Didot
Frères, 1856, p. 317). Trata-se, portanto, de uma interessante situação em que o abandono da releitura moderna
das fontes do direito romano representa um retrocesso. Conforme atentou Windscheid: “Secondo il diritto romano
invero non s’estinguono in generale i diritti, ma bensì in generale le ragioni (azioni) per la continuazione del loro
non uso (...) La prescrizione toglie di mezzo la ragione. Non che la estingua, la ragione continua a sussistere; ma
la toglie di mezzo col produrre una eccezione, che la esclude” (WINDSCHEID, Bernardo. Diritto delle pandette.
trad. Fadda & Bensa. Torino: UTP, 1902, p.425 e 444, respectivamente). Sobre a progressiva construção da
prescrição como exceção, cf. AMELOTI, La prescrizione delle azioni in Diritto Romano, p.13).
29
Marcos Bernardes de Mello elucida:“A prescrição (...) não decorre da obrigação prescrita, mas é produto
de um ato-fato (=inação do credor + decurso de tempo), que a gera em favor do devedor, oponível (=contra) ao
credor. Trata-se, como se pode concluir, de um poder jurídico, que, por isso, se situa no plano das posições ativas
e não passivas”. Sobre a noção de exceção e, especificamente, da prescrição como exceção, cf. PONTES DE
MIRANDA. Tratado de direito privado, t. VI. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p.100. A respeito das exceções em
direito material, cf. BOLAFFI, Renzo. Le eccezioni nel diritto sostanziale. Milano: Società Editrice Libraria, 1936,
especialmente nas páginas 100 e seguintes.
30
Conforme anota Flavio Tartuce “(...) a autonomia privada manifestada pelo direito de se pagar uma
dívida prescrita em juízo e renunciando à prescrição, estará seriamente ferida. Sendo a autonomia privada um valor
associado à liberdade constitucional, pode-se até afirmar que a inovação é inconstitucional, caso este direito de
renúncia à prescrição não seja assegurado” (TARTUCE, Flavio. Direito Civil: Lei de introdução e parte geral. 6.ed.
São Paulo: Método, 2010, p.439). O mesmo autor menciona, por um lado, a súmula n. 409 do STJ que reforçaria
o poder de conhecimento de ofício da prescrição na execução fiscal e, por outro lado, interessante precedente do
Superior Tribunal de Justiça que sintetiza algumas das dificuldades acima apontadas para aplicação da regra
processual em comento: “(...) Apesar da clareza da legislação processual, não julgamos adequado o indeferimento
oficioso da inicial. De fato, constata-se uma perplexidade. O magistrado possui uma ‘bola de cristal’ para antever
a inexistência de causas impeditivas, suspensivas ou interruptivas ao curso da prescrição?” (...) A prévia oitiva da
Fazenda Pública é requisito para a decretação a prescrição (...) Deve-se interpretar sistematicamente a norma
processual que autoriza o juiz decretar ex officio a prescrição e a existência de causas interruptivas e suspensivas
do prazo que não podem ser identificadas pelo magistrado apenas à luz dos elementos constantes do processo”
(STJ, Resp n. 1.005.209/RJ, Rel. Min. Castro Meira, 2ª turma, j. 08.04.2008, DJ 22.04.2008). Sobre o assunto,
conferir os ensaios publicados em revistas especializadas. CIANCI, Mirna. A prescrição na Lei 11.280/2006.
Revista de Processo n. 148, p.31 e seguintes, 2007. Sobre a aplicação dessa regra no direito do trabalho, cf.
GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa Garcia. Prescrição de ofício: da crítica ao direito legislado à interpretação da
norma jurídica em vigor. Revista de Processo, n.145, p.163 e seguintes, 2007; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto
Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo – ou de como o art. 3.º da Lei n.º 11.280/2006
subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito
Privado, n.25, p.280, 2006.
31
A respeito da dificuldade em se definir a pretensão em direito brasileiro, cf. BARBOSA MOREIRA,
José Carlos. Notas sobre pretensão e prescrição no sistema do novo Código Civil brasileiro. Revista Trimestral de
Direito Civil. v.11, jul/set, 2002, p.67. Referida crítica foi também realizada por MALACHINI, Edson Ribas.
Prescrição e decadência. V Ciclo Nacional de Estudos sobre Pontes de Miranda, 2007 (anotações do autor).
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113
Uma vez escolhida a árdua tarefa de conceituar a prescrição, o legislador parou
na metade do caminho (ao contrário do próprio BGB e do recente Código Civil da
Catalúnia)32. Talvez não devesse se perder em definições e conceitos. A outra metade
do caminho que se deixou para trás, no entanto, lamentavelmente, pode conduzir a
grandes confusões3334.
Alguns autores já defendem que a pretensão seria equivalente à noção de ação
em sentido material35, o que não se pode aceitar ante a profunda diferença verificável
32
Ver notas de rodapé n. 9 e 10.
33
A expressão “pretensão” não é familiar à maior parte da doutrina brasileira, nem o era à cultura jurídica
alemã, sendo potencial criadora de muitas confusões teóricas. A experiência alemã pode antever dificuldades do
direito brasileiro de tratar a prescrição da pretensão, tal como previsto no art. 189 do Código Civil, ainda que, neste
particular, cremos que o direito positivo nacional se tornou mais técnico e preciso. A estipulação do termo pretensão
como objeto da prescrição, no direito positivo alemão, foi verdadeiramente tormentosa nos debates que antecederam
a edição do BGB. Conforme explicam Fadda e Bensa, a expressão Anspruchsverjährung (prescrição da pretensão),
não seria usual à cultura jurídica alemã da época, sendo mais comum os termos Retchsverjährung (prescrição do
direito), Shuldverjährung (prescrição do débito) e, mais que qualquer outra, Klagenverjährung (prescrição da ação).
Para prevalecer a Anspruchsverjährung foi preciso que a tese de Windscheid prevalecesse sobre as três outras. Nas
palavras desses autores: “(...) si soggiungeva, contro la prima di queste tre espressioni, che essa è inesatta in quanto
il diritto reale non è tocco dalla prescrizione della ragione che ne deriva; contro la seconda, che Shuld significa
normalmente l’obbligo derivante da un vincolo personale e ha il corrispondente in Forderung (credito); contro la
terza, che dà campo all’equivoco di una prescrizione rivolto contro la persecuzione giudiziale, mentre l’oggetto della
prescrizione è la facoltà che sta a base dell’azione (...) Il dibattito si ripetè in seno alla seconda Commissione, ma
il concetto della Anspruchsverjährung trionfò anche qui, sebbene con gravi difficoltà, tanto che la proposta di porre
l’intitolazione Klagenverjährung fu respinta a parità di voti (10 contro 10v. Protocolli, I, p.194 sgg.). In definitiva
il §161 del II Prog. e il § 189 del proggetto presentato al Reichstag, come il § 194 del Codice accettano il concetto
del W. in questa forma ‘il diritto di esigere da altri un fatto od una ommissione (Anspruch) soggiace alla prescrizione’.
Ed è con riluttanza, che i civilisti si assoggettano alla consacrazione legislativa della dottrina del W. (FADDA, Carlo;
BENSA, Paolo Emilio. Note e riferimenti al diritto italiano vigente. In: WINDSCHEID, Bernardo. Diritto delle
pandette. trad. Fadda & Bensa. Torino: UTP, 1902, p.1078). Pontes de Miranda propõe a questão sobre “o que
é pretensão?” no quinto volume do Tratado de Direito Privado. Podemos colher, a partir de trechos da obra de
Pontes de Miranda, uma tentativa de definição de pretensão: “Pretensão é a posição subjetiva de poder exigir de
outrem alguma prestação positiva ou negativa (...) Pretensão é, pois, a tensão para algum ato ou omissão dirigida a
alguém. O pre- esta, aí, por ‘diante de si (...). Na pretensão, o direito tende para diante de si, dirigindo-se para que
alguém cumpra o dever jurídico (...). Atividade potencial para frente, faculdade jurídica de exigir; portanto, algo
mais” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, v.V, p.452). Segundo Enneccerus e Nipperdey “a
pretensão e o direito de exigir de outra pessoa um ato ou uma omissão. Este direito pode nascer do poder decorrente
de um direito absoluto ou de um direito relativo. Distingue-se, pois, segundo seja a relação jurídica da qual procede
a pretensão, entre pretensões obrigatórias, reais, de direito de família e sucessórias” (ENNECCERUS-NIPPERDEY.
Derecho Civil (parte general). t.I. v.II – 2ª parte. In: ENNECCERUS-KIPP-WOLFF. Tratado de derecho civil.
Barcelona: Bosh, 1981, p.957).
34
A confusão já se inicia pela dificuldade em se traduzir o termo alemão Anspruch. Sobre o assunto, Carlos
Melon Infante apresenta interessante explicação ao traduzir o BGB para compor o apêndice do clássico Tratado de
Direito Civil por Enneccerus, Kipp e Wolf em idioma espanhol: “Es la ‘pretensión’ una facultad derivada de un
derecho subjetivo: la facultad de ejercitar el contenido del derecho de que ella misma es consecuencia. El equivalente
de la ‘Anspruch’ en nuestro Derecho es la acción; la equivalencia no es, sin embargo, plena, puesto que nuestra
acción tiee de la ‘Anspruch’ alemana y de la ‘Klage’ alemana (acción propriamente dicha)” (INFANTE, Carlos Melon.
Código Civil Aleman. Barcelona: Bosch, 1994, p.38, nota de rodapé n. 155).
35
Neste sentido, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao código civil. Rio de Janeiro: Forense,
2003, p.152. José Carlos Moreira Alves enuncia expressamente: “o projeto considera como pretensão o que
Savigny denominava ação em sentido substancial ou material, em contraposição à ação em sentido formal ou
processual” (MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do projeto de Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva,
2003, p.188).
36
Sobre o assunto, conferir, além de Pontes de Miranda e Marcos Bernardes de Mello, nas obras já
citadas, vale conferir a didática explicação de BAPTISTA DA SILVA, Ovídio. Ação de imissão de posse. 2.ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.35 e seguintes.
37
Windscheid, mais uma vez, é esclarecedor: “Se invece la ragione personale intende ad un atto dell’obbligato,
finchè quest’atto non si compia, la ragione non è soddisfatta, e quindi la prescrizione comincia, subito, senza che sia
necessario lo avere richiesto dell’adempimento l’obbligato, nè che questi lo abbia ricusato” (WINDSCHEID, Bernardo.
Diritto delle pandette. trad. Fadda & Bensa. Torino: UTP, 1902, p.430). Em direito brasileiro, Marcos Bernardes de
Mello explica: “Em verdade, a pretensão nasce no momento em que direito passa a ser exigível (no vencimento da
obrigação, por exemplo), nunca quando é violado. Quem pode ser violada é a pretensão, porque contém exigibilidade,
nascendo daí a ação (de direito material, como a pretensão)” (BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato
jurídico: plano da validade. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.237, nota 372).
38
A respeito do tema, seguimos MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. São Paulo: RT, 2003;
ARENHART, Sérgio Cruz. Perfiz da tutela inibitória coletiva. São Paulo: RT, 2003.
39
Nesse sentido, cite-se o enunciado n. 14 do CJF/STJ, proveniente da I Jornada de Direito Civil, que
reconstrói art. 189 para superar suas insuficiências: “Art. 189: 1) o início do prazo prescricional ocorre com o
surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo; 2) o art. 189 diz respeito a casos em
que a pretensão nasce imediatamente após a violação do direito absoluto ou da obrigação de não fazer”
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Curitiba, n.47,
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Em quarto lugar, o Código Civil perdeu a oportunidade de estabelecer causas de
impedimento ao curso prescricional em moldes mais abertos para determinadas situações
de grave vulnerabilidade, e de difícil verificação do surgimento da pretensão e do polo
passivo contra a qual ela se dirige.
A disciplina dos impedimentos ao curso da contagem do tempo na prescrição
praticamente repetiu o Código Civil de 1916 e, ao assim proceder, perdeu uma importante
oportunidade para concretizar as soluções pertinentes à diretriz da ética da situação
propugnadas pelo coordenador do projeto do Código Civil.
Lembre-se, nesse sentido, a disciplina da matéria no Código de Defesa do
Consumidor que, em casos de acidentes de consumo, fixa como ponto inicial para o
lapso prescricional o efetivo conhecimento do dano e de sua autoria (art. 27 da Lei n.º
8.078/90). Numa sociedade marcada por relações tão impessoais, os resquícios do
discurso sobre o direito romano na chamada teoria da actio nata precisariam encontrar
válvulas de alteração conforme as situações dos envolvidos.
Em quinto lugar, o Código Civil de 2002 trata, pelo menos explicitamente, apenas
de pretensões obrigacionais. Isso pode conduzir a uma equívoca interpretação de que a
prescrição atinge apenas as pretensões pertinentes ao direito das obrigações, relegando
as pretensões de direito das coisas, de direito societário, e outros. A situação se torna
mais perigosa, ainda, pela indistinção entre pretensões pessoais e pretensões reais que,
mesmo com outra denominação, encontrava-se presente no Código Civil de 1916, com
uma consolidada aplicação jurisprudencial (art.177, CCB 1916)40.
A sexta crítica se apresenta sobre a genérica determinação que a exceção prescreve
no mesmo prazo da prescrição (Art. 190 do CCB). Conforme Windscheid, as exceções,
em geral, não poderiam ser expostas à prescrição, uma vez que o titular desta posição
ativa não poderia dela se servir quando melhor lhe conviesse41.
40
As pretensões reais dirigem-se como os direitos de que emanam, contra todos. Há-as no direito das
coisas, no direito de família e no direito das sucessões. Tem-se dito que as pretensões reais não exsurgem com o
direito mesmo: é preciso que se dê conduta de alguém, contrária ao conteúdo do direito real ou do direito de família;
portanto, sem violação não haveria pretensão real. Mas essa proposição confunde ação e pretensão: a pretensão
preexiste, aí, à ação; aí, não é a pretensão que nasce mais tarde que o direito, é a ação (...) Porque direito e pretensão
são diferentes, têm de ser diferentemente tratados: direito não prescreve; prescreve a pretensão ou a ação; a
prescrição das pretensões reais somente começa do momento em que deixa de ser satisfeita; é contínua e negativa,
de modo que não infringi-la é i-la satisfazendo continuamente; contra as pretensões de propriedade pode, às vezes,
ser oposta exceção (direito de retenção), ainda que o direito do proprietário nada possa sofrer; a pretensão depende
do direito, que lhe é base, com ele nasce, ou dele nasce, e com ele se extingue (ainda se foi cedida) (PONTES DE
MIRANDA. Tratado das ações. t.I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, p.56-57).
41
“Le eccezioni, come tali, per la natura delle cose non sono sottoposte alla prescrizione, poichè il titolare
non può farle valere quando vuole, ma a tal fine deve attendere, che si eserciti la ragione” (WINDSCHEID, Bernardo.
Diritto delle pandette. trad. Fadda & Bensa. Torino: UTP, 1902, p.448).
42
“A exceção, em direito material, contrapõe-se à eficácia do direito, da pretensão, ou da ação, ou de
outra exceção” (PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado. t. VI., p.5).
43
Segundo Moreira Alves: “essa norma não diz respeito às exceções substanciais autônomas, ou seja,
àquelas que existem por si mesmas e não visam, em consequência, a fazer valer uma pretensão, mas, sim, a garantir
uma certa posição jurídica contra o ataque injusto de outrem. O artigo 190 só se aplica quando da mesma relação
jurídica depende esta, por ser a exceção o exercício da pretensão a título de defesa”. Para justificar esse
posicionamento, Moreira Alves recorre a Savigny: “É o que ocorre, por exemplo, com referência à exceção de
contrato não cumprido, na hipótese assim figurada por SAVIGNY (Sistema del Diritto Romano Attuale, vol. V, trad.
SCIALOJA, parágrafo 254, p.476, Torino, 1983): ‘No ano de 1841 foi vendido um imóvel, devendo a tradição
ocorrer de imediato, mas o pagamento do preço da compra deveria fazer-se no ano de 1843; por ambas as partes
foi negligenciada a execução. A actio empti prescreve no ano de 1871, a actio venditi no ano de 1873 (porque só
poderia ter sido ela intentada no ano de 1843). Durante todo esse tempo cada uma das partes tinha a exceptio non
impleti contractus, se o adversário quisesse agir. Se a actio venditi é intentada no ano de 1872, pergunta-se se o
comprador, cuja ação já está prescrita há um ano, pode, ainda, valer-se da referida exceção’. Neste caso, tratando-
se de exceção dependente da pretensão, a resposta, em face do art. 190 do Projeto, será negativa, porque a exceção
prescreveu quando ficou prescrita a pretensão. Em face dessa explicação, vê-se, claramente, que o dispositivo em
causa não é aplicável à hipótese de não-repetição do que se pagou para solver dívida prescrita. Nesta, a exceção é
autônoma, pois não depende da pretensão de cobrar o débito não pago, e, sim, resulta do pagamento espontâneo
do devedor, apesar de já prescrita a pretensão do seu credor. As exceções autônomas continuam imprescritíveis,
até porque não traduzem inércia de quem as pode invocar. Já as exceções dependentes de pretensões prescrevem
com estas” (MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do projeto de Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva,
2003, p.188).
44
Sobre as hipóteses de imprescritibilidade no Código Civil, Humberto Theodoro Jr. apresenta o seguinte
rol: a) a pretensão a partilha da herança (art. 2.013); b) a pretensão a dividir a coisa comum (art. 1.320); c) a
pretensão à demarcação de imóveis limítrofes (art. 1.297); d) a pretensão à meação sobre os muros divisórios (art.
1.297, parágrafo primeiro); e) os direitos que não se traduzem em pretensões; f) as pretensões decorrentes dos
direitos da personalidade; g) as pretensões surgidas em virtude dos direitos de estado e, em geral, os direitos
derivados das relações de família. Humberto Theodoro Júnior, ainda, cita a tese de Manuel Albaladejo (La prescripcíon
de la acción reinvindicatoria) que sustenta a possibilidade da prescrição da pretensão reivindicatória, como algo
diverso da usucapião (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao código civil. Rio de Janeiro: Forense,
2003, p.166).
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Tal falha, ademais, contraria o princípio da operacionalidade que se procurou
impingir na recente codificação. As pretensões fundadas nos direitos da personalidade
e as pretensões para proteção dos estados pessoais são imprescritíveis, mediante
interpretação, sem se esclarecer se a imprescritibilidade atingir o poder de exigir prestações
de respeito aos direitos da personalidade ou, ainda, se atingiriam o poder de exigir
indenização pelos danos decorrentes da violação.
Entre avanços e retrocessos, o Código Civil Brasileiro, à luz de uma investigação
crítica, expõe a fragilidade das esperanças em se resolverem todos os problemas de um
determinado instituto secular por meio de alterações legislativas.
Mais do que nunca, diante de um Código recente, o papel do intérprete é
insuperável e, em tema de prescrição, tal como se procurou demonstrar, continua presente
e urgente.
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ABSTRACT: Our intention in this work is to analyze the variations in contemporary law at a time
increasingly governed by the dynamics of decision-making power through negotiation procedures in
which the redistribution of the forms of participation in the composition of the rules at stake and the
current means of administration set in motion a new judicial organization. This organization ceases to
operate as a system of a priori norms – thus, a third function – to be converted into a network of flexible
rules, adaptable to the dictates of a world that operates under the imperative that anything is possible.
The understanding of these transformations requires, at first, a brief foray into the recent history of
judicial thinking where we can distinguish two types of states associated with two legal models, the
liberal and the social. Secondly, the text seeks to clarify how the bases of judicial construction of nation
states do not tolerate impacts resulting from redefining political frontiers in a globalized world economy
where the legislative state monopoly is being progressively supplanted by the normative ability of
innumerable multilateral organizations, national economic groups, international financial institutions
and multinational business corporations with decision-making power, stipulating the direction of public
business and state law making.
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Toda disciplina apresenta um limite epistemológico inevitável. Marcados por essa
contingência, nos resignamos, com frequência na academia, à exploração das fronteiras
conhecidas de um campo específico do saber, certos de que, com método, chegaremos
à verdade final.
Empenhados na preservação das certezas da representação, negamos – com
horror – os encontros faltosos que nos apresentam o real – o (i)mundo do qual emergimos,
queiramos ou não, como resposta. Sob a proteção dos enunciados anônimos que nos
preservam da dura tarefa de uma enunciação eticamente comprometida, perpetuamos o
trabalho de degradação da palavra e de aniquilamento do seu portador. Essa impostura
leva o pensamento à imobilidade e nos convoca como protagonistas de um jogo de máscaras
que oculta uma repetição básica: a resistência em questionar a mestria fundante dos ídolos
da tribo e em referenciar uma certa invenção. Assim, é sempre oportuno distinguir outro
horizonte de reflexão onde, além da certeza, a pergunta insiste lembrando ao sujeito que
ele pode constituir um ponto de partida onde se deixa sempre a desejar... (SILVA, p. 4)
Essa abertura nos restitui o sentido de um questionamento propriamente filosófico,
ou seja, o valor da indagação que, paradoxalmente, busca e rompe a estabilidade do saber.
Por isso, é lícito dizer que o ser daquele que questiona é desejo que perdura a despeito
da ausência do objeto. (JURANVILLE, 1987, p. 16) Pontuando a dimensão dessa errância,
Platão já dizia no Banquete: Eros é fundamentalmente uma falta... Nenhum dos deuses
poderia filosofar, pois a filosofia já é seu apanágio. O mesmo se pode dizer dos ignorantes,
nenhum dos quais deseja a filosofia, porque o mal da ignorância é tornar contentes consigo
mesmos os que, não sendo bons nem sábios, cuidam que o são... Ninguém deseja senão o de
que se julga privado. (PLATÃO, 1961, p. 57-63)
Quando a falta é a referência, as indagações filosóficas roubam a cena das ordens
unívocas, imprimindo um movimento crítico ao pensamento que permite expor distintas
fronteiras de enunciação, nas quais a segurança monótona das reproduções da verdade
cede espaço às tensões de uma reflexão desestabilizadora articulada à ética singular do
bem-dizer que evoca a responsabilidade do sujeito em relação àquilo que ele enuncia,
como também a sua implicação nos enunciados que acolhe como se fossem seus.
A possibilidade dessa resposta inspirou, neste trabalho, a análise das modulações
do direito em um tempo regido, cada vez mais, em sua dinâmica decisória, por processos
de negociação, em que a redistribuição das formas de participação na composição das
regras do jogo e os instrumentos atuais de gestão colocam em marcha uma nova
engrenagem jurídica que deixa de operar como um sistema de normas a priori – ou seja,
uma função terceira –, para converter-se em uma rede de regras flexíveis, adaptáveis
às injunções de um mundo que opera sob o imperativo de que tudo é possível...
A compreensão dessas transformações implica – em primeiro plano – uma breve
incursão na nossa história recente do pensamento jurídico em que podemos distinguir dois
tipos de estado aos quais associamos dois modelos de direito: o liberal e o social. No quadro
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internacionais e corporações empresariais multinacionais com poder decisório, que
condicionam a direção dos negócios públicos e a produção do direito estatal. (p. 14/15)
Em termos de técnica jurídica a consequência mais expressiva dessa transformação
é a flexibilização da ordem jurídica dos estados que, segundo os teóricos do direito reflexivo,
abre espaço para a produção de um tipo inédito de regras sociais ajustadas aos interesses
dos indivíduos implicados nas diversas prescrições normativas. Para os entusiastas da soft
law, o caráter democrático dessas deliberações é garantido por uma racionalidade
procedimental que orienta a formulação das decisões negociadas e pela capacidade de
discussão razoável dos sujeitos que atuam nos diversos foros de negociações. (p. 23/24)
Como podemos observar, o direito reflexivo possui pontos comuns com o modelo
do direito social. Eles partilham um modo muito próximo de encarar o direito como um
ensaio ou uma experiência de constituição de novas práticas normativas e de distintas
estruturas de poder. Não devemos, portanto, tomá-los como paradigmas colidentes no
âmbito do pensamento jurídico (p. 277), mas, tampouco, podemos confundi-los. Como
vimos acima, o direito social é um instrumento estratégico de resposta aos problemas
de redistribuição de recursos e poderes no âmbito dos estados nacionais.
O direito reflexivo, em contrapartida, surge em um processo de desterritorialização
da política – marca indelével da escalada da globalização econômica – que tem como
um dos seus corolários, a organização de um sistema de governos privados, no qual os
indivíduos – convocados a negociar o texto das regulações sociais – se encontram cada
vez mais impotentes para concretizar acordos que dizem respeito as suas necessidades
fundamentais. Nesse território despojado de espaço público, o direito refletivo representa
o resultado das negociações normativas – ou seja, dos ajustes de detalhes – que não
podem ultrapassar o quadro geral da regulação – fixado pelas instâncias decisórias do
mercado – apresentado como realidade insuperável. (ROTH, In: FARIA, 1996, p. 26)
Essa técnica jurídica vital para a eficácia do quadro de (des)regulação social
requerido pelo movimento da economia globalizada implica, também, uma alteração
da discricionariedade das esferas de ação do Judiciário. (FARIA, In: FARIA, 1999,
p. 131) Nesse novo contexto, as regras de julgamento que permitiam – no quadro do
direito social – o ajuste argumentativo das normas para uma solução adequada dos
problemas da sociedade, cedem espaço a um trabalho interpretativo contínuo que
reconstrói – por meio das decisões – o texto normativo social.
Para que tenham a sua eficácia garantida, as negociações das regras que
implementam as diretrizes fixadas pelas instâncias decisórias do mercado exigem que o
estado dote sua ordem jurídica de plasticidade aumentando as possibilidades de escolha,
decisão e controle oferecidas à magistratura. Hoje, é recorrente na teoria do direito a
distinção do conteúdo normativo – o início da significação jurídica – da norma
propriamente dita – a decisão na qual o aplicador do direito procede à valoração dos
dados objetivos e subjetivos presentes nos casos levados à apreciação do Judiciário,
submetendo, assim, o texto normativo à sua própria avaliação.
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lei.” ... É este o sentido último do paradoxo formulado por Schimitt, quando escreve que
a decisão soberana “demonstra não ter necessidade do direito para criar o direito.”
(AGAMBEN, 2002, p. 24-26)
O estado de exceção – como estrutura fundamental da política – emerge em nosso
tempo sempre ao primeiro plano e tende, por fim, a tornar-se regra. (p. 27) Nesse espectro,
vemos o campo – a matriz política do domínio totalitário – se definir como o paradigma
do mundo em que vivemos, onde, segundo Hannah Arendt, tudo é possível... (AGAMBEN,
2002, p. 43-44; 2004, p. 131) Hoje, adverte Agamben, o retorno desse estado de exceção
efetivo ao estado de direito não é possível, pois o que está em questão agora são os próprios
conceitos de estado e de direito. (AGAMBEN, 2004, p. 131)
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SILVA, Cyro Marcos. Vinte anos depois de quê? Juiz de Fora: inédito, p. 4
RESUMO: A partir da utilização do dialogismo pelo historiador Carlo Ginzburg na análise de autos
inquisitoriais, especialmente no caso dos benandanti, o artigo discute a possibilidade de uma leitura
do Direito baseada nas categorias relativas à Teoria Literária, especialmente as defendidas por Mikhail
Bakhtin, bem como sua capacidade de oportunizar uma nova reflexão sobre o fenômeno jurídico.
ABSTRACT: From historian Carlo Ginzburg’s use of dialogism in the analysis of inquisitorial papers,
especially in the benandanti case, the article aims to discuss the possibility of a legal reading based on
the categories related to literary theory, above all those Mikhail Bakhtin holds, as well as their capacity
to provide a new reflection on the legal phenomenon.
* Mestre e Doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Professor Assistente
da Universidade Federal de Goiás. Contato: darpinheiro@gmail.com.
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127
1. Nem jurista, nem literato: um historiador
1
“Chamam-se ‘Quatro Tempos’ os três dias de jejum prescritos pelo calendário eclesiástico durante a primeira
semana da Quaresma (Tempos da primavera), a oitava de Pentecostes (Tempos de verão), a terceira semana de Setembro
(Tempos de outono) e a terceira semana do Advento (Tempos de inverno)” (GINZBURG, 2007a, p. 217).
2
O texto original italiano foi publicado no livro Studi in onore di Armando Saitta dei suoi allievi pisani
organizado por R. Pozzi e A. Prosperi. A primeira tradução brasileira, feita por Jônatas Batista Neto, foi publicada
na Revista Brasileira de História de set./1990-fev./1991. Recentemente, em 2007, o texto recebeu nova tradução
e foi acrescido de um post scriptum feito pelo próprio Ginzburg, tendo sido incluído numa coletânea de artigos seus
publicada sob o título O fio e os rastros (2007b).
3
Em nota de rodapé, Ginzburg (2008, p. 201) admitiu: “Usei a tradução francesa de Bakhtin: L’oeuvre
de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance (Paris, 1970)”. Num artigo publicado
em 1996 – Estranhamento: pré-história de um procedimento literário – que também faz menção à reflexão bakhtiniana
da obra de Rabelais, a referência à tradução francesa deu lugar à publicação moscovita de 1965 e à versão italiana
de 1979 (GINZBURG, 2001, p. 231). Por seu conhecido rigor quanto às fontes, parece improvável que Ginzburg
tenha tido acesso ao texto original de Bakhtin antes de lançado O queijo e os vermes. Assim, é bem possível que a
versão francesa tenha marcado, de fato, o primeiro contato com a obra do filósofo russo.
4
“E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra,
existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento;
o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer
a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato da percepção em arte é um fim em si mesmo e
deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já ‘passado’ não importa para a
arte” (CHKLOVSKI, 1973, p. 45).
5
O artigo em questão é o mesmo referido na nota anterior. Oportuno lembrar que no texto O problema
do conteúdo, do material e da forma na criação literária, escrito entre 1923/1924 e incluído na edição brasileira
do livro Questões de literatura e de estética, Bakhtin (1990a, p. 60-61) já fazia uma crítica direta ao estranhamento
de Chklovski sob argumento de que o procedimento defendido pelo formalista levava em conta apenas a palavra e
isso por meio de uma destruição de sua série semântica habitual. Bakhtin argumentava que, desse modo, perdia-se
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uma quantidade maior de obras do filósofo6 russo, Ginzburg acabou identificando
polifonia onde, na verdade, existiu plurilinguismo – equívoco que será tratado abaixo.
Por ora, cabe apenas destacar um outro pós-escrito de Ginzburg, dessa vez aposto
ao final do já mencionado artigo sobre os inquisidores. Nele o historiador observa que
durante sua visita a Moscou, em novembro de 2003, um grupo que trabalha com a
história das perseguições desencadeadas na era stalinista entreveu, a partir da percepção
do dialogismo nos processos inquisitoriais, a possibilidade de se identificar o registro de
vozes dissonantes nos autos dos processos movidos durante a fase mais dura da repressão
interna soviética (GINZBURG, 2007b, p. 293). É justamente tal perspectiva que abre
caminho à possibilidade reflexiva do presente artigo.
Assim, embora a leitura de Ginzburg acerca da polifonia em Dostoiévski seja tardia
ou, pelo menos, não contemporânea aos estudos dos processos inquisitoriais com os quais,
posteriormente, foi vinculada e apesar da indistinção com que o historiador tratou
dialogismo, plurilinguismo e polifonia7, é importante destacar que foi ele quem demonstrou
com clareza a possibilidade de se utilizar categorias da teoria literária – especialmente as
desenvolvidas por Mikhail Bakhtin – para analisar processos judiciais.
Demonstrada a possibilidade, resta justificar a conveniência de tal utilização. Para
tanto, já de antemão, apontam-se as possíveis críticas à consideração do direito como
uma narrativa, fazendo-o em reconhecimento ao dialogismo como postura necessária às
defesas argumentativamente sustentadas na esfera pública, e, ato contínuo, refutam-se
essas mesmas críticas, para que os debates suscitados pelo presente artigo tenham novos
(ou, ao menos, outros) pontos de partida.
Todo discurso é marcado por uma dialogicidade interna que decorre, em certa
medida, da influência de uma resposta antecipada, um discurso-resposta que, mesmo
a dimensão de isolamento do conteúdo do objeto estético em relação ao acontecimento único e aberto da existência,
ou seja, de sua dimensão ético-cognitiva – crítica bastante próxima a de Ginzburg. Posteriormente, em texto escrito
em 1928 e publicado, em inglês, sob o título The formal method in literary scholarship, Bakhtin/Medvedev (1991,
p. 59-61), de forma ainda mais incisiva, chama o estranhamento formalista de niilista, na medida em que deixa de
explorar o caráter polissêmico da linguagem (dimensão positiva de construção de significados capaz de potencializar
a própria palavra), para se centrar na simples negação de velhos significados.
6
Bakhtin sempre se considerou um filósofo. Todavia, a visibilidade obtida pelos seus textos sobre linguística
e teoria literária, acompanhada da descoberta tardia e fragmentada de sua produção mais filosófica, acabaram
encobrindo, por muito tempo, sua vocação primeira (SHATSKIKH, 2007, p. 305).
7
No artigo As vozes do outro – Uma revolta indígena nas ilhas Marianas, publicado em grego, no volume
12 da revista Ta Istoriká – Historica, em junho de 1995, e depois integrado ao livro Relações de força, embora
Ginzburg demonstre muita propriedade na explicação do conceito polifonia, ao aplicá-lo à análise documental a
que se propõe no artigo novamente o utiliza equivocadamente no lugar do adequado plurilinguismo. Agradeço a
Raphael Marques por me chamar a atenção para tal fato.
Para Vespaziani (2009), porém, a incursão do jurista nesta seara assume uma
dimensão ética para além da cognitiva. Baseando-se no argumento de que a metáfora
não corresponde apenas a uma figura retórica dentre outras, mas que integra a própria
estrutura do discurso jurídico, o autor italiano defende que seu estudo permitiria desvelar
os possíveis projetos ideológicos ocultos por detrás de uma linguagem que indevidamente
se apresenta como neutra. Superado, pois, o argumento da improdutividade da metáfora,
permanece o da não essencialidade da relação entre direito e literatura.
Vera Karam de Chueiri demonstra, porém, que igualmente ele não subsiste.
Segundo Chueiri, o positivismo jurídico, ao defender uma compreensão descritiva do
direito, não consegue dar conta de sua dimensão prescritiva. Daí a imprescindibilidade
8
Tradução feita pelo autor do artigo. No original: “tutta la storia del pensiero giuridico potrebbe essere
studiata dal punto di vista del linguaggio, come un susseguirsi di metafore: basterebbe esaminare una qualsiasi
delle controversie della scienza giuridica per vedere come le diverse soluzioni siano condizionate dalle metafore
accettate, dalle similitudini, dal ricorso all’esempio. Potremmo trovare la conferma della tesi del Blumenberg ossia
della esistenza di termini chiave che sono metafore assolute, nel senso che mostrano resistenza ad una risoluzione
in termini logici: l’impossibilità di accordo sul termine ‘diritto’ ne sarebbe una testimonianza. Il lavoro del giurista
è correzione di metafore, chiarificazione del linguaggio” (GIULIANI apud VESPAZIANI, 2009, p. 2).
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de uma teoria narrativa do direito, na medida em que ela poderia, genuinamente,
mediar descrição e prescrição, visto que “alargaria o campo da ação (da prática) e
anteciparia considerações éticas na própria estrutura do ato de narrar”. Desse modo,
por consequência, a crítica literária poderia ser utilizada pelos juristas como forma de
melhor “compreender e avaliar o direito, as instituições jurídicas, os procedimentos
jurisdicionais e a justiça e, nesse sentido, a própria narrativa da obra literária” serviria
“para melhor compreender a narrativa jurídica (as sentenças judiciais, por exemplo)”
(CHUEIRI, 2007, p. 120).
Uma segunda reação poderia se fundar no argumento de que um olhar estético
sobre o direito colocaria em risco seu compromisso ético. Tal crítica não é de todo
suposta; afinal, preocupação semelhante já foi externada em relação à história. Ginzburg,
por exemplo, embora não negue uma dimensão literária no trabalho do historiador
(GINZBURG, 1990, p. 255), teme que o gradativo esmaecimento das fronteiras entre
narrativas ficcionais e históricas comprometa o princípio histórico da realidade9, do que
decorreriam efeitos éticos desastrosos – como, no limite exemplar, a validação da tese
Faurisson de que campos de concentração nazistas não teriam existido (GINZBURG,
2007b, p. 8 e 215-217).
Ora, antes de tudo é preciso ressaltar que uma teoria narrativa do direito não
corresponde a uma teoria ficcional do direito. Considerar uma sentença judicial como
um equivalente funcional da narrativa literária significa demonstrar como pessoas e fatos
reais são, de algum modo, esteticizados quando passam a integrar a tessitura criativa de
uma decisão10. A criatividade do intérprete não pode ser entendida como recurso à
invenção pura e simples, tão receada por Ginzburg (2007b, p. 334).
De algum modo, mesmo na literatura não existe um estatuto absoluto da invenção.
Toda criação é concatenada tanto por suas leis próprias quanto pelas leis do material sobre o
qual ela trabalha. Toda criação é determinada por seu objeto e sua estrutura e por isto não
admite o arbítrio e, em essência, nada inventa mas apenas descobre aquilo que é dado no
próprio objeto (BAKHTIN, 2008, p. 73).
Isso não significa que o objeto estético já se encontra pronto em algum lugar e
de algum modo à espera de ser descoberto, mas que pressupõe tanto um conteúdo (a
realidade do conhecimento e do ato), que ele apenas transfigura e formaliza (BAKHTIN,
1990a, p. 49 e 69), quanto os limites do material (palavra) e da forma (modo de isolamento
9
Não se debate, no presente artigo, a pertinência do princípio histórico da realidade defendido por
Ginzburg. Mas, apenas para suscitar uma inquietação, parece que o referido princípio aponta para uma objetividade
localizada para além do discurso de justificação, o que hermeneuticamente não se sustenta.
10
“A argumentação jurídica e as decisões judiciais passaram a ser compreendidas como atividades
interpretativas que permitem aos que as exercitam usar a sua criatividade, ainda que nos limites de valores que
são, num primeiro momento, estéticos” (CHUEIRI, 2007, p. 120).
11
“Existem obras que realmente não tem nada a ver com o mundo, mas somente com a palavra ‘mundo’
num contexto literário, obras que nascem, vivem e morrem nas folhas das revistas, sem ultrapassar as páginas das
edições periódicas contemporâneas e sem nos conduzir a nada que se encontre além dos seus limites. O elemento
ético-cognitivo do conteúdo, que apesar de tudo lhes é indispensável como elemento constitutivo da obra de arte,
não é haurido diretamente por elas do mundo do conhecimento e da realidade ética do ato, mas, das outras obras
de arte, ou é construído por analogia com elas” (BAKHTIN, 1990a, p. 37-38).
12
“Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a
mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as partes de seu
corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, e sua expressão –, o mundo atrás dele, toda uma série
de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e
inacessíveis a ele. (...) Esse excedente da minha visão (...) é condicionado pela singularidade e pela insubstitubilidade
do meu lugar no mundo” (BAKHTIN, 2006b, p. 21).
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visto que esta enfatizaria sobremaneira os aspectos formais da poética, tais como: ritmo,
entonação, articulação, motivo, gênero, dentre outros. De fato, tais estudos seriam
possíveis. Todavia, apontando para uma análise composicional do material, eles
abordariam, apenas, um dos elementos constitutivos do objeto estético.
Um olhar que se volte para o todo da obra de arte deve considerá-la em sua forma
arquitetônica, percebendo, para além do material, a tensão constante entre forma e
conteúdo: este opõe-se àquela como algo passivo que dela precisa, “algo receptivo,
acolhedor, englobante”; porém, tão logo deixe de ser ativo na forma, “o conteúdo que
a forma aquietou e concluiu revolta-se e aparece na sua significação pura e ético-cognitiva”
(BAKHTIN, 1990a, p. 58). Assim, a percepção do objeto estético se dá por meio de uma
relação ativa que faz com que o observador ingresse como criador no que vê, ouve e
pronuncia, superando, assim, o caráter determinado, material e extraestético da forma –
“ela deixa de existir no nosso exterior como um material percebido e organizado de
modo cognitivo, transformando-se na expressão de uma atividade valorizante que penetra
no conteúdo e o transforma” (BAKHTIN, 1990a, p. 59).
Ronald Dworkin, por outras vias, ao estabelecer uma comparação entre a prática
jurídica e o exercício literário, valendo-se da metáfora13 do romance em cadeia (chain
novel), demonstrou quão produtiva para o direito pode ser tal tensão forma-conteúdo.
O romance em cadeia corresponderia a uma narrativa em série, escrita por um grupo
distinto de romancistas. Estabelecida a ordem da composição de forma aleatória, por
meio da sorte, cada autor escreveria um capítulo, ao fim do qual confiaria a continuidade
da obra ao escritor imediatamente subsequente.
Cada romancista, excepcionado o primeiro, teria a dupla responsabilidade de
interpretar e criar, visto que o capítulo que lhe caberia escrever precisaria partir dos
elementos gerais já previamente trabalhados pelos demais autores, tais como gênero,
trama, tema, objetivo, personagens, espaço, tempo. Deveria verificar, pois, a plausibilidade
de sua contribuição literária e, havendo mais de uma escrita possível, qual se justificaria
melhor no contexto geral da obra (DWORKIN, 1999, p. 276-278; 2005, p. 235-237).
Do mesmo modo, cada juiz, como um romancista dessa cadeia, diante da unicidade
dos casos que lhe são apresentados, extraídos da complexa e aberta realidade ético-
cognitiva do mundo, deve saber conjugar um conteúdo de justiça, sem desmerecer
formas de restrição garantidoras da segurança jurídica14, observáveis por meio de uma
13
Dworkin, embora tenha dado grande contribuição aos estudos jurídico-literários, considera a aproximação
entre direito e literatura como sendo metafórica. Afinal, segundo ele, o direito não pode ser pensado como um
“empreendimento artístico”, mas sim, como “empreendimento político” (DWORKIN, 2005, p. 239). De qualquer
modo, tal posicionamento já foi analisado anteriormente no presente artigo.
14
Tal tensão, na verdade, mais que opositiva é mutuamente constitutiva. A forma, ao estabelecer uma
certa segurança jurídica, pode igualmente garantir a justiça – a construção histórica do habeas corpus é exemplo
disso (cf. PAIXÃO, 2008, p. 29-30).
15
Tal dialogismo diacrônico deve se somar ao dialogismo sincrônico que ocorre, em cada caso concreto,
entre as partes e o juiz.
16
“(...) may be especially helpful when rigidly established limits between academic disciplines and fields
of study are redefined or put into question” (NIKULIN, 1998, p. 381). Tive conhecimento do texto de Nikulin
graças ao artigo Shakespeare e o direito de Vera Karam de Chueiri (2004).
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que se aperfeiçoa no objeto e(ou) na atitude responsivamente esperada do interlocutor.
Em relação ao objeto, todo enunciado já o encontra, de algum modo,
desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário,
iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e
penetrado por idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações.
Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso
de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações (BAKHTIN, 1990b, p. 86).
17
No original, a citação refere-se à linguagem de Turguêniev em seus romances: “estão espalhadas palavras,
pequenos termos, definições e epítetos contaminados por intenções alheias, com as quais o autor não se solidariza
inteiramente e através das quais ele refrange suas próprias intenções” (Bakhtin, 1990b, p. 120).
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desconhecimento sobre o real significado do termo benandante e, por consequência, de
uma religiosidade popular complexa a ele vinculada, fez com que os inquisidores
registrassem nos interrogatórios uma outra visão de mundo, distinta daquela das classes
dominantes, quer quando transcreviam integralmente a fala dos acusados, quer quando
a re-elaboravam sem falsear o que havia sido dito18. Os discursos de outrem na linguagem
de outrem registrado nos autos inquisitoriais fizeram deles textos plurilíngues, permitindo
com que o historiador rastreasse uma diversidade religiosa então existente – diversidade
que não se mostrava perceptível na palavra autoritária dos tratados demonólogos.
Desse modo, não apenas os romances, mas também os processos judiciais podem
se mostrar, para além de dialógicos, plurilíngues. A questão, nesses casos, é o modo
como a linguagem do outro é considerada. Nos autos inquisitoriais, a surpresa dos
inquisidores fez com que o registro mantivesse a substancialidade do discurso alheio.
Nos processos judiciais ordinários, corre-se o risco de que a retórica torne a bivocalidade
superficial, limitando-a a vitórias puramente verbais sobre a palavra, degenerando-a
num jogo formalista de linguagem que se centra na palavra em si divorciada de seu
contexto (BAKHTIN, 1990b, p. 152-153).
A superação de tal risco leva à percepção das várias vozes que se fazem audíveis
em qualquer processo e de que maneira sua interação dialógica – ou o contraditório,
caso se queira utilizar uma linguagem própria do campo jurídico – é que conduz o feito
como seu elemento fundamental e inafastável. À luz desse novo paradigma, a sentença
judicial não é uma narrativa escrita pelo juiz com exclusividade de linguagem. Na medida
em que ele retoma argumentos e narrativas das partes que figuram no processo, quer
como autores, quer como réus, ainda que dizendo-os novamente ao seu modo, as palavras
da decisão são apenas parcialmente suas – uma metade de todas elas proveio do tecido
dialógico de que é feito o horizonte histórico, o contexto social, o ordenamento jurídico
e, principalmente, o processo judicial.
Ampliando o alcance jurídico da contribuição bakhtiniana, Mariela Vargova
valeu-se da distinção entre palavra autoritária e interiormente persuasiva para questionar
qual seria a compreensão atual acerca de um enunciado constitucional. Afinal, uma
abordagem do texto constitucional como palavra autoritária levaria a uma compreensão
originalista do mesmo, vinculando-o sempre ao passado e à intenção dos que o fizeram.
A Constituição, nessa perspectiva, ganharia um status de documento historicamente
distante e normativamente sagrado, de olhos fechados ao horizonte ético-cognitivo do
contexto no qual seria lido e avesso, pois, a novas práticas interpretativas sociais
(VARGOVA, 2007, p. 422).
18
“(...) relatar um texto com nossas próprias palavras é, até certo ponto, fazer um relato bivocal das
palavras de outrem; pois as ‘nossas palavras’ não devem dissolver completamente a originalidade das palavras
alheias, o relato com nossas próprias palavras deve trazer um caráter misto, reproduzir nos lugares necessários o
estilo e as expressões do texto transmitido” (BAKHTIN, 1990b, p. 142).
19
Não são ignoradas as citações literárias nos escritos de Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar e José
Geraldo de Sousa Júnior, alguns dos autores utilizados pela referida linha de pesquisa. Porém, a preocupação em
estabelecer uma crítica ao Direito sem se colocar fora dele fez com que as referências à literatura poucas vezes
avançassem para densas referências à teoria literária – a exceção que confirma a regra é Luis Alberto Warat (2000)
que trouxe para o direito o conceito bakhtiniano de carnavalização.
20
“O todo final em Dostoiévski é dialógico. Todas as personagens centrais são participantes do diálogo.
Escutam tudo o que as outras dizem a seu respeito e a todas respondem (sobre elas nada é dito à revelia ou a portas
fechadas). E o autor é apenas um participante do diálogo (o seu organizador)” (BAKHTIN, 2006c, p. 352).
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superior e decisiva, como se este se desse num passado concluído: “isto transformaria
imediatamente o diálogo autêntico e inacabado em modelo material e acabado do diálogo,
modelo comum a qualquer romance monológico21” (BAKHTIN, 2008, p. 72). Desse
modo, ele apenas garante para si o mínimo indispensável de excedente pragmático,
puramente informativo e necessário à condução da narração (BAKHTIN, 2008, p. 83).
Partindo dessa percepção do romance polifônico, em que o outro narrado não é
um ele, mas um tu plenivalente, ou seja, “o plenivalente eu de um outro (um tu és)”, fica
difícil vislumbrar polifonia nos autos inquisitoriais. Os inquisidores não respeitavam os
acusados como autoconsciências, punham-se acima do diálogo numa posição superior
e decisiva, mantinham para si a última palavra sobre a caracterização do outro como
feiticeiro, dando-lhe um acabamento muitas vezes questionável. Na verdade, o
plurilinguismo nos processos sobre os benandanti não garantiu uma polifonia, pois esta
exige observância da alteridade, uma postura discursiva de igual respeito e consideração
e o direito de cada um participar efetivamente da narrativa sobre si mesmo.
Ampliando, porém, a reflexão para o campo do direito resta o questionamento:
as decisões judiciais como narrativas jurídicas podem ser polifônicas? De fato, o juiz não
parece ser apenas um organizador do diálogo. As partes que litigam entre si em juízo
vivem plenamente no plano ético-cognitivo, orientando seus atos no acontecimento aberto
da existência. Porém, a decisão judicial, como narrativa jurídica (e objeto estético),
precisa promover um corte nesse acontecimento inconcluso, a fim de que o acabamento
promova a decidibilidade necessária. Obviamente que a polifonia pode (e deve) se colocar
como um horizonte para o processo em si: isso radicalizará o dialogismo e uma atitude
mútua respeitosa e responsável entre todos os atores judiciais, bem como evitará que a
esteticização das partes, que entram na narrativa jurídica como personagens, leve à
objetivação pura e simples delas, reduzindo-as a uma imagem de si forjada sem a
contribuição de suas autoconsciências.
Ocorre, porém, que em algum momento o juiz precisa narrar os fatos e dar-lhes
conclusibilidade, o que compromete a plena realização da polifonia. Como o acabamento
só se realiza na medida em que o autor possui um substancial excedente de visão em
relação a todas as personagens de sua narrativa, o juiz acaba por não se colocar no
mesmo patamar das partes que julga. Desse modo, mais do que gerar uma compreensão
relativa à maneira como se tece tal trama nas instâncias judiciais, legitimando-a, a
“polifonia” revela o quanto uma categoria da teoria literária pode apresentar potencialidade
crítica para a reflexão do direito. Afinal, se a narrativa jurídica proferida pelo Judiciário
21
Embora muitas vezes conste no referido livro a dualidade monológico/dialógico, o tradutor Paulo Bezerra
faz questão de ressaltar em algumas passagens que monológico equivale a homofônico, em oposição a polifônico.
Afinal, é possível um romance homofônico e dialógico (no sentido acima explicitado de dialogismo).
4. Inquietações inconclusas
22
Não se desconhece o fato de que, numa sociedade aberta, todas as forças pluralísticas públicas constituem-
se forças produtivas de interpretação, pré-intérpretes fundamentais no processo de descoberta e de obtenção do
direito (HÄBERLE, 2002, p. 41-43). Todavia, metodologicamente, o presente trabalho orienta-se pelas narrativas
jurídicas produzidas pelo Poder Judiciário, assim como Ginzburg se orientou pelos autos inquisitoriais.
23
A título de exemplo, cita-se: “Na realidade o que o sistema jurídico necessita são decisões que
correspondam a um maior consenso decorrente de um intenso processo de discussão e deliberação da Corte.
Evidente que sempre deverá haver espaço para votos discordantes e opiniões complementares, mas a maioria
deveria ser capaz de produzir uma decisão acordada, um acórdão, que representasse a opinião do Tribunal. Isto
daria mais consistência a decisões judiciais de grande impacto político” (VIEIRA, 2008, p. 75).
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posição emocional-volitiva do autor até que se constitua de modo estável e integral24.
Concluído o objeto estético, nada tem o artista a dizer sobre seu processo de criação,
todo situado no produto criado; resta a ele apenas indicar a própria obra. Ao falar para
além da obra criada, substitui sua atitude efetivamente criadora, não vivida por ele na
alma mas realizada na obra, por uma atitude nova, receptiva e contemplativa daquilo
que criou. Nesse momento, quem fala é o autor-pessoa: o autor-criador, presente no
todo da obra, já conquistou sua autonomia.
Esse autor-criador, também chamado de autor primário, embora manifesto no
todo daquilo que criou, não se situa internamente na própria narrativa – afinal, em
relação à obra, ele é a natureza não criada que cria. O autor secundário ou imagem do
autor é que, natureza criada que também cria, se insere na obra de forma imanente25.
“O autor secundário, mesmo sendo imagem, é imagem de autor que cria de dentro da
própria obra, e ao mesmo tempo é personagem que integra a estrutura da obra, cria
personagens, dialoga e interage com elas” (BEZERRA, 2005, p. 77). Como o “autor-
criador não pode ser criado na esfera em que ele próprio é o criador” (BAKHTIN, 2006d,
p. 400), autores primário e secundário não convivem no mesmo espaço da criação: na
narrativa, só a imagem do autor é visível, na condição dúplice de personagem criado e
autor de personagens e tramas.
Em relação às narrativas jurídicas, a pluralidade de votos proferidos26 em cada
caso submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal parece convertê-lo
em autor secundário formalmente exigido em todas essas situações, ao passo que os
Ministros permaneceriam, no mais das vezes, na condição de autores primários. Como
autor secundário de uma trama, o STF acaba por ecoar a voz do próprio autor primário,
o que não parece tão problemático. Mas, na medida em que ele entra na trama como
um personagem criado, invocado sucessivamente em cada narrativa e passível de ser
desvelado progressivamente a cada uma delas, surge a pergunta: quem é o guardião da
Constituição? Quem é esse autor/personagem, quais suas características e como elas
foram sendo estabilizadas de forma encadeada desde a redemocratização?
24
“Quando Charles deixou Sarah na beira do penhasco, ordenei-lhe que fosse diretamente para Lyme
Regis. Mas ele não foi; sem motivo algum, voltou-se e foi para a Leiteria. Ora, o que é isso, você dirá – o que
realmente quero dizer é que, enquanto escrevia, passou pela minha cabeça que talvez fosse mais engenhoso fazê-lo
parar para tomar leite... e encontrar Sarah outra vez. Isso certamente é uma explicação do que aconteceu, mas só
posso dizer – e sou a prova mais confiável – que a ideia claramente pareceu vir de Charles, não de mim” (FOWLES
apud DWORKIN, 2005, p. 232).
25
“Podemos citar os seguintes exemplos de autores secundários ou imagens de autor na literatura brasileira:
Aires em Esaú e Jacó, e Brás Cubas, o defunto autor de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis;
Paulo Honório em São Bernardo, de Graciliano Ramos; Rodrigo S.M. em A hora da estrela, de Clarice Lispector”
(BEZERRA, 2008, p. 77).
26
Ainda que um determinado caso possa ser decidido com um voto único ratificado pelos demais Ministros,
a pluralidade de narrativas sempre permanece, ao menos, como possibilidade.
REFERÊNCIAS
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BAKHTIN, Mikhail. Arte e responsabilidade. In: Estética da criação verbal. 4. ed., 2ª tir. Tr. Paulo
Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006a (Col. Biblioteca Universal).
27
“Recentemente, comecei um seminário na UCLA dizendo aos meus alunos: ‘Na Itália há um novo
movimento chamado Slow Food, em oposição ao Fast Food. Meu seminário será em Slow Reading’. (...) Realmente
gosto muitíssimo da idéia de leitura vagarosa” (GINZBURG, 2000, p. 275).
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UFPR,Curitiba,
Curitiba, n.47,
n.51, p.29-64,2010.
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BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In: Estética da criação verbal. 4.
ed., 2ª tir. Tr. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006b (Col. Biblioteca Universal).
BAKHTIN, Mikhail. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: Estética da criação verbal. 4. ed.,
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Tr. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2007a.
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Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007b.
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Inquisição. Tr. Maria Betânia Amoroso e José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008
(Companhia de Bolso).
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p.127-145, 2008.
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A IDEIA DE AUTONOMIA EM LOCKE.
FELICIDADE E JUSNATURALISMO. DISPOSITIVO
METAFÍSICO-RELIGIOSO E SECULARIZAÇÃO.
RESUMO: É verdade que Locke oscila entre uma tradição intelectualista e realista que lhe vem de
Hooker e uma tradição voluntarista, afim da sua própria formação religiosa. Num plano, o da
fundamentação última das obrigações, triunfa a segunda, mas no plano das decisões práticas, Locke
comporta-se como um puro racionalista.A grande originalidade de Locke reside no modo ecléctico
como ele utiliza os conceitos gregos de phronesis, sophrosyne e epoché, um essencialmente epicurista
e aristotélico e o outro proveniente da cultura do cepticismo; e, o que é talvez o mais importante
ainda, o modo como ele integra nesta preocupação, a da suspensão do juízo e da acção, o conceito
de «uneasiness».
ABSTRACT: It is true that Locke is between an intellectual and realist tradition that comes from Hooker
and a voluntarist tradition, akin to his own religious upbringing. In the plan of the ultimate grounding
of the bonds, the second triumph, but in terms of practical decisions, Locke behaves like a pure
rationalist. The great originality of Locke lies in the eclectic way as he uses the Greeks concepts of
phronesis, sophrosyne and epoché, the first and the second, both essentially Aristotelian and Epicurean
and the other from the culture of skepticism, and, what is perhaps most importantly, how it integrates
this concern, the suspension of court action and the concept of uneasiness.
* Doutorado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa
(UNL), na área de História e Teoria das Ideias, na especialidade de História e Teoria dos Paradigmas. Membro do
Centro de Estudos e Desenvolvimento, Direito e Sociedade (CEDIS) da Faculdade de Direito (FD) da Universidade
Nova de Lisboa (UNL).
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p.147-171, 2008.
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1. Introdução
A primeira sensação que se tem quando se passa pela primeira vez pelo
pensamento de Locke e, em particular, no que diz respeito às questões jurídicas, através
dos Questions Concerning the Laws of Nature, é a de que sobrevivem ainda muitos
elementos tomistas na sua obra. São geralmente atribuídos à importância que Hooker1
desempenhou na formação jurídico-política do grande empirista inglês. Mas quando se
passa uma segunda vez pelos textos a sensação altera-se e aproxima-se daquilo que
Haakonssen disse magistralmente: “Locke originally thought of natural law in traditional
voluntarist-cum-realist terms” (Haakonssen, 1996, p. 51). E é a fusão entre realismo
e voluntarismo que pode provocar alguma perplexidade. Mas o realismo neste caso
significa paradoxalmente artificialidade. Haakonssen toca o cerne do pensamento jurídico
lockeano quando diz: “like Pufendorf, Locke argues, as part of his criticism of innate
ideas, that moral phenomena are created by moral agents and imposed upon nature,
which, in abstraction from such activity, is value-neutral” (p. 52).
Mas a verdade é que não é este o núcleo duro do pensamento de Locke. Ver-
se-á mais à frente onde se situa o nó residual que compromete muito mais Locke com
o nominalismo do que com o realismo. Darwall está já mais perto da verdade quando
diz que Locke se situa no meio termo (Tal como Culverwell e Suarez) entre os (realist
natural lawyers) teóricos realistas do direito natural que consideram que a lei natural
moral existe e obriga intrinsecamente e os voluntaristas radicais que consideram que
a obrigação depende inteiramente da vontade arbitrária de Deus (Darwall, 1995,
p. 24). Pessoalmente partilho esta ideia conquanto reconheça que Locke é muito
1
“The most famous and most influential of all modern natural right teachers was John Locke. (...) His
authorithy seems to be Richard Hooker, (...) Now Hooker’s conception of natural right is the Thomistic conception,
in its turn, goes back to the Church Fathers, who, in their turn, were pupils of the Stoics, of the pupils of pupils of
Socrates. we are then apparently confronted with an unbroken tradition of perfect respectability that streches from
Socrates to Locke. But the moment we take the trouble to confront Locke’ s teaching as a whole with Hooker’s
teaching as a whole, we become aware that, in spite of a certain agreement between Locke and Hooker, Locke’s
conception of natural right is fundamentally different from Hooker’s”, in Strauss 1965: 165. De facto parece um
paradoxo, mas não é. A corrente contínua que vai desde Socrates até Locke quebrou-se afinal. De facto já se tinha
começado a quebrar com Hobbes, na opinião do autor, mas em minha opinião o começo deve atribuir-se a Grócio
e até por maioria de razão. Mas é justo reconhecer que a ruptura com a tradição metafísica realista e intelectualista
é muito maior com Hobbes do que com Grócio. Também não é menos verdade que a ligação estrutural entre o
empirismo e o protestantismo, sobretudo influenciado pelo nominalismo, gerou muitas vezes uma consequência
voluntarista que no plano jurídico se traduziu pela assunção de posições positivistas que empobrecem não só o
próprio domínio jurídico, com a reflexão ético-moral que lhe anda associada, mas sobretudo porque tanto o
voluntarismo quanto o positivismo reduzem a margem de manobra para o homem, sem a qual não se pode falar
completamente em secularização e em autonomia. Enquanto existir a mínima persistência heterónoma no quadro
de uma reflexão tanto moral quanto social e política, é ainda alguma coisa da velha armadura fundacionista teológico-
Metafísica que se mantém, ainda que com outros alicerces ideológicos, não necessariamente melhores que os
anteriores. O triunfo completo da secularização e da autonomia pressupõe a separação radical do domínio teológico,
e portanto a superação completa de todos os elementos extrínsecos transcendentes ou transcendentais.
Eu, por mim, considero Locke um voluntarista e por via disso, quer dizer da
posição extrínseca que toma relativamente ao fundamento da obrigação, um externalista.
Desde o fundamento moral relativamente ao bem e ao mal que é definido a partir da
questão do prazer e da dor até à ameaça consequente de rewards and punishments que
se percebe que se realiza em Locke o clássico enlace entre o empirismo (sensista), o
2
“The period between Hooker and Locke had witnessed the emergence of modern natural science, of
nonteleological natural science, and therewith the destruction of the basis of traditional natural right. The man who
was the first to draw the consequences for natural right from this momentous change was Thomas Hobbes”, in
Strauss 1965: 165. E que influenciou, muito em particular, Locke, acrescentou Strauss.
3
“The Lockean (orthodox christianity) has Puritan roots, which means its background is in a hyper-
Augustinian theology”. Exprime-se no homem uma espécie de “naturalistic transposition of the doctrine of original
sin”. Mas muito mais importante é o facto de que “he shares with the Puritans theological voluntarism. God’s law
is what he decides it is, and God’s law determines the good”, in Taylor 1989: 248.
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puritanismo (agostiniano) e o voluntarismo (positivista) e é claro que este dispositivo não
contempla a autonomia humanista como objectivo central, nem podia contemplar, seja
feita justiça4.
Mas o que perturba a tranquilidade do paradigma é que Locke, à semelhança de
Hobbes, logra uma inesperada margem de manobra para a intervenção autônoma dos
homens. E consegue mesmo numa área tão sensível quanto a área ético-moral e ético-
jurídica a assunção de uma posição internalista e autônoma. É como se o autor separasse
radicalmente as duas esferas: a da fundamentação, que é externalista e mesmo
transcendente e a da gestão dos recursos a partir de uma base pré-estabelecida. E essa
é orientada pela razão, pelo poder da suspensão do juízo e da acção e pressupõe uma
practical reasoning agency, no interior da qual todas as motivações, todos os cálculos e
todos os processos são de natureza racional, prática e prudencial e em momento nenhum
têm em conta senão aquilo que é o melhor para o agente na urdidura do seu bem e da
sua felicidade. É como se o agente tomasse o freio nos dentes e a partir de um determinado
momento não tivesse contas a dar a não ser a si mesmo. Então estaríamos na presença
de um processo puramente secular e autónomo5. Darwall considera justamente por causa
disso Locke um autonomista internalista de autodeterminação na linha de um neoplatônico
como Cudworth6. Darwall abstrai-se do externalismo de fundo e do externalismo ao nível
4
Só em pensamentos menores, como é o caso do pensamento da maior parte dos autores portugueses
do século XVIII, é que é possível encontrar combinados elementos ideológicos que são completamente contraditórios
entre si e portanto incompatíveis.
5
Como se irá ver, essa autonomia é mais aparente do que real. Pode quando muito falar-se de uma
semiautonomia e mesmo essa na perspectiva de que ocorre homologicamente, quer dizer num mundo duplicado.
Por um lado os homens exercem autonomamente a capacidade de reflectir sobre aquilo que lhes interessa, mas
isso ocorre no seio de uma crença mais abrangente, de que estamos sob as leis de Deus e de que lhes devemos
obediência. Porque em última análise a lei de Deus é “the only touchstone of moral rectitude”, in Locke 1995:
280 [1690]. Ou como Locke disse logo na introdução: “Hence naturally flows the great variety of opinions concerning
moral rules which are to be found amongst men, according to the different sorts of happiness they have a prospect
of, or propose to themselves; which could not be if practical principles were innate, and imprinted in our minds
immediately by the hand of God. I grant the existence of God is so many ways manifest, and the obedience we owe
him so congruous to the light of reason, that a great part of mankind give testimony to the law of nature; but yet I
think it must be allowed that several moral rules may receive from mankind a very general approbation, without
either knowing or admitting the true ground of morality; which can only be the will and law of a God, who sees men
in the dark, has in his hand rewards and punishments, and power enough to call to account the proudest offender”,
in Locke 1995: 29 [1690].
6
Mesmo assim Darwall cuida-se de não exorbitar na terminologia, uma vez que guarda para autores
como Shaftesbury, por exemplo, a dimensão da autorregulação e do autogoverno. Ora, só há autonomia completa
se o agente tiver dentro de si não apenas os instrumentos para se auto-determinar em função de premissas e
pressupostos que já o enformam, mas se, muito mais radicalmente, for ele o depositário de todos os intrumentos
de ponderação e decisão. Para Locke, a moralidade obriga-nos porque é prescrita com autoridade, a partir de um
ser superior, exterior ao eu. (…) Mas muito mais claramente que em Locke ou Cudworth, autores como, Shaftesbury
conceberam a autodeterminação como auto-regulação e auto-governo. E Shaftesbury limita-se a inaugurar uma
tradição que culminará no intuicionismo moral da razão ou do senso que já analisámos detalhadamente. (…) Em
Shaftesbury o governo moral é auto-governo. A autoridade existe mas permanece no interior do agente. Assim ele
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chama mal àquilo de que sente aversão, porque é óbvio que deseja o bem e sente aversão
pelo mal, mas sempre em última instância porque identifica o bem com o prazer e o mal
com a dor. E de resto, no amplo campo das paixões inventariado por Locke, logo se
percebe que é o desejo que é responsável pela uneasiness, quer dizer pelo sentimento
de insatisfação e desconforto. Ora, é a insatisfação do desejo que determina a vontade,
sendo que é o bem, o maior bem, que determina justamente essa insatisfação.
Portanto e por ordem: É a existência de qualquer coisa como o maior bem que
estimula um sentimento de insatisfação e desejo7, este sentimento mobiliza a vontade e
a vontade põe em marcha os mecanismos tendentes à obtenção desse maior bem. Só
então entra a razão, prática e auxiliar, para procurar os melhores caminhos e evitar os
maus. Ora, só falta designar esse greatest good pelo seu termo adequado, felicidade8.
Vamos assim começar pela felicidade uma vez que é a sede de felicidade que
estimula a autoconsciência da insatisfação:
“All desire Happiness. — If it be farther asked, what it is moves desire? I answer, Happiness,
and that alone. «Happiness» and «misery» are the names of two extremes, the utmost bounds
whereof we know not: it is what «eye hath not seen, ear hath not heard, nor hath it entered into
the heart of man to conceive». But of some degrees of both we have very lively impressions,
made by several instances of delight and joy on the one side, and torment and sorrow on the
other; which, for shortness’sake, I shall comprehend under the names of «pleasure» and «pain»,
(...) Happiness, what. — (...) for no other reason but for its aptness to produce pleasure and
pain in us, wherein consists our happiness and misery”9.
Até aqui Locke não acrescenta nada de muito especial àquilo que foram ao longo
da História das Ideias as posições hedonistas, subordinadas à persistência de uma equação
que articula, prazer, dor e felicidade. Salvo, talvez o conceito de uneasiness, mas só pela
7
O princípio remoto da insatisfação é, ele próprio, agostiniano. Para Santo Agostinho foi Deus que colocou
no coração dos homens este desejo infinito e insaciável, motivo e razão para a procura e para o aperfeiçoamento
moral e religioso. A insatisfação estimula a procura de todos os meios legítimos para a satisfação. Na perspectiva
agostiniana a insatisfação provoca um vazio ontológico que exige um aprofundamento ontológico e uma expansão
do ser que assim realiza a vocação metafísica da existência.
8
“By «reason», however, I do not think we should understand here that faculty of the intelect, (…) but
some definite practical principles from which flow the sources of all virtues (…) What is rightly deduced from these
principles is properly said to conform to right reason”, cf. John Locke [Questions concerning the law of nature], in
Horwitz 1990: 99.
9
Que esta é uma posição inabalável de Locke prova-o o número de vezes em que na sua obra o afirma
categoricamente. Devo trazer aqui um texto (um fragmento) intitulado “Thus I think”, citado por Lord William King,
na obra “Life of Locke”, segundo vol., p. 120, em que se atribuem a Locke as seguintes palavras: “It’s a man
proper business to seek happiness and avoid misery”. E onde a procura da felicidade aparece reforçada com o
sentido de que esse objectivo é a condição própria do homem. Mantém-se aqui muito do entendimento clássico
sobre o assunto mas também medieval, ainda que o conceito possa estar travestido de beatitude. Desde Aristóteles
até S. Tomás de Aquino passando pelo Santo Agostinho dos tempos de Cassicíaco, que a felicidade é entendida
como a finalidade por excelência do homem. Esse teleologismo está em Locke, pelo menos neste fragmento.
10
“Euthymia suggests Democrito, allows man the opportunity to be content and unruffled in the face of
misfortune. It provides «imperturbable wisdom», to face life’s adversities and suffer as little as possible from the
disturbances which threaten the equanimity of other men”, in Hibler 1984: 27.
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vida moral que à vida epistémica, e por isso também mais da ordem da razão prática e
não da razão teorética. Mas seja como for a figura da suspensão terá sempre um sabor
relacionado com o pirronismo. E é esta, a meu ver, a grande originalidade de Locke,
aquela que lhe permite uma certa distanciação relativamente ao voluntarismo da sua
base moral e ético-jurídica. Só um sabor porque agora a suspensão do desejo, do juízo
e da acção está amplamente subordinada à convicção intelectual de que a procura de
felicidade exige esta espécie de jurisprudência.
De fato a expressão da jurisprudência não é inocente, porque eu quero com ela
reaproximar-me outra vez de Epicuro, agora sim com convicção. É que também em
Epicuro estava subentendido este papel prudencial da razão, e este poder de suspensão
outra coisa não é do que um poder prudencial. Em Epicuro ele estava atribuído à
phronesis, virtude cardeal e iluminante do caminho a seguir, que nas Máximas vaticanas,
o Sábio convoca apropriadamente: “La fortune a peu de prise sur le sage, car, les choses
les plus grandes et les plus importantes, la raison calculante les a réglées, et, pendant
toute la durée de la vie, les régle et les règlera” (Epicuro COUCHE, In: Conche,
1992, p. 237). E na Carta a Meneceu não se coibe de identificar como o maior bem,
sobretudo quanto ao facto de que o agente deve escolher acertadamente sobre os caminhos
a seguir em ordem a encontrar o caminho para a felicidade, ou seja, o caminho para a
vida boa: “Quand donc nous dison que le plaisir est la fin, nous ne parlons pas des
plaisirs des gens dissolus (...) mais le raisonnement sobre cherchant les causes de tout
choix et de tout refus, et chassant les opinions par lesquelles le trouble le plus grade
s’empare des âmes. (...) Le principe de tout cela et le plus grand bien est la prudence
(φρόνησις)”11.
A convicção que tenho do contacto de Locke com o pensamento epicurista e o
fato de, desde a ética a Eudemo de Aristóteles, a phronesis ter evoluído no sentido de
uma sabedoria com maior acuidade prática, no sentido portanto de uma pudência, tudo
isso me leva a pensar que é num sentido puramente prudencial que a fórmula da
suspensão deve ser entendida e não na perspectiva de uma tranquilidade teorética. A
suspensão é assim mais suspensão do desejo e da ação e menos suspensão do juízo.
Mas anote-se então, em concreto, que direcção tomou a prudência em Locke, já
que é de prudência que se está a falar:
“The Power to suspend the Prosecution of any Desire makes way for Consideration. There
being in us a great many uneasinesses, always soliciting and ready to determine the will, it is
natural, as I have said, that the greatest and most pressing should determine the will to the
next action; and so it does for the most part, but not always. For, the mind having in most
cases, as is evident in experience, a power to suspend the execution and satisfaction of any of
11
Epicuro [Cartas e máximas], in Conche 1992: 224. Τούτων δέ πάντων ἀρχὴ χαὶ τὸ µέγιστον
ἀγαϑὸν φρόνησις. A prudência é o princípio e o grande bem de todas as coisas
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ci relève de l’éternel” (Polin, 1960, p. 22). O raciocínio de Raymond Polin coloca
Locke no caminho de Santo Agostinho e isso deveria agradar-me, uma vez que o seu
raciocínio vai no mesmo sentido que o meu, mas a verdade é que não me posso solidarizar
com esta ideia de que existiria em Locke um juízo direito que colocaria, segundo o seu
ponto de vista, o homem na direção de uma felicidade entrevista a priori, como corolário
da essência real da felicidade e do homem.
Porque a tarefa do homem na terra não é a de conhecer tudo mas apenas conhecer
e usar aqueles saberes que dizem respeito à sua conduta, ao seu comportamento acertado,
a fim de que possa lograr o grande objetivo humano possível, ou seja, a felicidade.
Portanto a natureza humana concebida por Deus é perfeita, a seu modo. Por exemplo
a uneasiness não é um elemento negativo, mas, pelo contrário, desempenha um papel
motor mediante o qual o homem se põe em marcha. O sofrimento de falta, a inquietação
que resulta da insatisfação que essa falta provoca, estimula a procura. As paixões são
positivas, desde que usadas, como se verá, com moderação. A uneasiness é decisiva.
Até parece que Deus terá tido isso em conta, uma vez que é a incompletude que mobiliza
a ação e com ela se mobilizam as qualidades próprias do homem, à cabeça das quais é
legítimo colocar a liberdade. À semelhança de Santo Agostinho que coloca a incompletude
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ontológica como fonte do desejo, desejo que ao visar à beatitude visa ao bem e escolhe
o caminho apropriado, no seu caso pela mobilização das virtudes, para o atingir, também
aqui a uneasiness estimula o desejo, a procura e o caminho para a realização do objetivo,
sendo que, tal como nas tradições eudemonistas, a felicidade é o bem supremo e a sua
realização é a realização da perfeição.
Em Locke, porém, há a assunção de que não se visa à divindade, mas apenas à
perfeição menor de um ser imperfeito. E agora, circularmente, é justamente porque é
imperfeito e deficiente que precisa da liberdade de suspender os seus desejos para não
se precipitar e assim cair no erro; erro esse, que é o mau caminho, ou seja aquele que
conduziria não ao highest good, ou seja, à felicidade, mas antes à miséria. E por que é
que a miséria é miséria e a felicidade é o bem? Muito simplesmente porque o prêmio
da miséria é a dor e o prêmio da felicidade é o prazer. O princípio da suspensão
desempenha assim no plano prático e terreno o que o princípio da Graça desempenha
no plano transcendente. Ambos assistem à criatura imperfeita e deficiente. Esta lógica
da imperfeição e da deficiência faz corpo com o hiper-augustinianis- mo de Locke e
resulta da sua formação puritana. Mais uma vez a combinação do empirismo com o
sensismo do prazer e da dor faz corpo com uma antropologia pessimista e sombria. Tanto
mais que, em simultâneo, se assiste a uma colocação da fasquia baixa no que diz respeito
às faculdades racionais e intelectuais do homem. Estas faculdades, reduzidas em Locke
à prossecução de soluções práticas, perderam seguramente o élan que apresentavam
por exemplo no humanismo do Renascimento e no neoplatonismo de Cambridge.
12
“It is impossible anyone should willingly put into his own draught any bitter ingredient, or leave out
anything in his power that would tend to his satisfaction and the completing of his happiness, but only by wrong
judgment”, in Locke 1995: 193 [1690]. É o juízo errado, a ignorância portanto que conduz ao erro, ao erro
moral, porque é uma imoralidade errar na prossecução da felicidade. Isso também é uma das facetas do mal.
13
“Quod malum non est aliqua natura” (O mal não é uma natureza). O mal (dado que é uma privação),
não é nunca causado de forma directa. O mal é sempre um efeito secundário, causado indirectamente. E o mal
moral é um caso particular disso. Sendo assim pode-se se dizer que o mal provem de uma vontade que escolhe um
fim ilegítimo (Finis indebitus).
14
A essencialidade do mal seria uma aberração uma vez que a escolástica escolheu o princípio da
convertibilidade do bem (ens et bonum convertuntur = aquilo que é, enquanto tal, é bom), cujos fundamentos se
encontram na filosofia socrático-platónica. Por outro lado em Aristóteles o bem é aquilo que todas as coisas desejam
(Hinc est quod philosophi diffinientes bonum dixerunt: bonum est quod omnia appetunt, Arist., E. N., I, 1) o que não
afronta a teoria anterior na medida em que a natureza em Aristóteles não é definida em termos estáticos mas
dinâmicos, quer dizer em termos teleológicos. Dizer que o bem é o que todas as coisas desejam é dizer que ele é
a natureza de todas as coisas, porque a natureza das coisas é aquilo para que tendem, logo ele é o ser, tal como no
pensamento socrático-platónico.
15
S. Tomás não podia, por outro lado, ter sido completamente indiferente a uma outra tradição da
escolástica que mergulhando as suas raízes em Santo Anselmo, mostrava já sinais de revitalização através das obras
de Alexandre de Halles, Jean de La Rochelle e S. Boaventura entre outros. Estou, bem entendido, a falar da
escolástica franciscana, que culminará, em época um pouco posterior à de S. Tomás, nas obras de Duns Scoto e
Guilherme de Ockham.
16
São várias as formulações aquinianas que exprimem este ponto de vista. O mal está fora da intenção.
Defeito de consideração (De ter em consideração). Falta de ordenamento (de o acto ser levado a cabo segundo a
ordem). Acção que a vontade poderia ter evitado. Ausência de querer. Nunca o resultado de um querer, de uma
vontade de transgressão. Eu teria e deveria ter podido considerar, mas não o fiz. Assim não ter tido em conta. Não
atenção à regra. Aliás S. Tomás enfatiza de uma forma absolutamente original o papel da regulação, de adesão a
uma regra. Mas na raiz do desregramento está sempre um defeito de atenção. Uma ausência da atenção devida a
Deus. E isso acaba por conduzir ao orgulho, no sentido de uma procura do bem próprio sem a consideração do
que deveria regular essa procura. Cf. Aquino, Suma C. G. III, 10; III, 109.
E finalmente o que se subentende na crítica e na condenação dessa não consideração ilumina bem o que
S. Paulo diz: “puisque connaisant Dieu, ils ne l’ont ni glorifié ni remercié comme Dieu; au contraire ils sont devenus
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Mas é verdade que o precursor desta inadvertência no sentido de uma
animadversão – e é sempre animadversão, ainda quando é inconsciente e involuntária
a inadvertência é animadversão na prática – foi Cícero. No De Officis, I, 103 Cícero
diz: “exercitandam esse animadversionem et diligentiam, ut ne quid temere ac fortuito,
inconsiderate negligenterque agamus”, que corresponde, traduzindo essencialmente o
sentido, mais ou menos, à ideia de que não se deve fazer nada de modo ligeiro e ao
acaso, ou seja, de maneira irrefletida e negligente.
Em Locke, de novo, a inadvertência tem o significado que, no fim de contas, lhe
conferem tanto Cícero quanto S. Tomás, ou seja: “When a man overlooks even that
which he does know. This is an affected and present ignorance, which misleads our
judgments” (LOCKE, 1995, p. 195 [1690]). A inadvertência tem para Locke uma
gravidade maior do que a ignorância porque acaba por ter a mesma consequência e
funcionar como se de uma completa ignorância se tratasse. É uma leviandade, uma
irresponsabilidade diria eu na nossa linguagem contemporânea. E portanto a inadvertência
é, do ponto de vista moral, muito mais grave que a ignorância. Aliás, a ignorância só é
imputável moralmente se ela obedece ao mecanismo psicológico da inadvertência, quer
dizer se o agente poderia não dar conta de uma ignorância acaso fosse mais preocupado,
ou seja, mais responsável. Overlook significa mesmo não ter em devida conta.
Depois Locke entra no domínio das paixões desreguladas, cedendo claramente
aos contornos de uma propedêutica antropológica coerente com a sua formação religiosa.
Locke refere-se muitas vezes à fragilidade ôntica das criaturas e à sua imperfeição, ou
no fim de contas à natureza corrupta do ser pós-lapsário, na linha, aliás, dos seus mestres,
como é o caso de S. Paulo que cita a propósito do célebre: “Car ce que je fais, je ne le
comprends pas; car ce que je veux, je ne le pratique pas, mais ce que je hais, je le fais,
(...) car le bien que je veux, je ne le fais pas, mais le mal que je ne veux pas, je le
pratique”17. Mas também na linha de Santo Agostinho e dos teóricos do protestantismo
e do puritanismo, sobretudo Calvino. É verdade que traz o assunto para a terra, mas o
significado é o mesmo18. E a primeira solução que ocorre a Locke no quadro daquilo
que posso considerar a sua posição terrena, humanista e promotora de uma certa margem
de autonomia, autonomia incompleta como se irá ver, é a identificação de um modo de
vida em que as paixões desregradas devem ser trazidas à ordem, ou seja à medida.
Locke chega mesmo a falar de mediocridade como sendo o ideal de vida, uma vida
vains dans leurs raisonnements” (Rom. I, 21). E é sempre aqui que vamos desembocar: ao crime de orgulho, ao
humanismo. Aos raciocínios vãos.
17
Rom. 7, 15 e 19.
18
“(…) that though all men desire happiness, yet their wills carry them so contrarily, and consequentley
some of them to what is evil”, in Locke 1995: 188 [1690].
19
De todo o modo não se pode esquecer que Locke só tem em conta o dispositivo da moderação e repressão
das paixões nas circunstâncias definidas no § 53, do cap. XXI do Livro II: Quando “any extreme disturbance (as
sometimes it happens) possesses our whole mind, (…) allows us not the liberty of thought, and we are not masters
enough of our minds to consider thoroughly and examine fairly”, In: Locke 1995: 188 [1690].
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“Good and evil, as hath been shown (book ii, cha. xx, sect. 2, and chap. xxi, sect. 42), are
nothing but pleasure or pain, or that which occasions or procures pleasure or pain to us. Moral
good and evil, then, is only the conformity or disagreement of our volontary actions to some
law, whereby goof and evil is drawn on us from the will and power of the lawmaker; which
good and evil, pleasure or pain, attending our observance or breach of the law, by the decree
of the law-maker, is that we call «reward» and «punishment»“ (p. 279).
20
É o que diz por exemplo Stephen Darwall: “Locke makes clear in a variety of places that he takes relation
to God’s law, and hence to His superior authority, to be necessary not just for moral obligation, but for morality to
exist in any fashion at all”, in Darwall 1995: 35. E acrescenta que a racionalidade de que os homens são dotados
tem um sabor pragmático no sentido em que Locke pensa que a única forma pela qual Deus pode fazer as suas
exigências é através do facto de proporcionar aos agentes motivos racionais para lhes obedecer. Os agentes obedecem
assim sempre a Deus, quer quando obedecem às leis, quer quando seguem as etapas do seu practical reasonimg.
21
Locke 1995: 283 [1690]. Não admira. O cap. XXVIII do Livro II é occamista do princípio ao fim.
É a parte da obra em que Locke desconstrói o realismo e defende o nominalismo com cópia de argumentos.
22
Polin 1960: 55. A ideia de bem associada à conformidade com a lei divina, da qual se infere a
externalidade tanto no plano do fundamento quanto no plano das obrigações, está também desenvolvida no Essay
concerning human understanding, Livro II, ao longo do cap. XXVIII.
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163
nos parágrafos finais do cap. XXI a introduzir uma nota de menor confiança, tanto nos
objectivos quanto no método. Eu diria que até ao § 53 não há verdadeiramente nenhuma
dissonância. A convergência resume-se assim:
• Ponto 1. A felicidade, ou melhor a procura da felicidade, é a maior perfeição de
natureza intelectual. A inclinação e a tendência para a felicidade constituem uma
verdadeira obrigação moral. A felicidade é o que se procura obter em todas as ações.
Toda a força do desejo é mobilizada para a obtenção da felicidade etc.
• Ponto 2. Os homens dispõem de um poder para lograr o seu grande objectivo, ou
seja, a felicidade. Esse poder é o poder de suspender os desejos (eu diria os desejos
e as ações), e assim ordenar a consideração das ideias. Esse poder é a expressão da
liberdade do agente, ou seja, a liberdade de realizar ou suspender, para pensar
melhor e realizar mais tarde de modo mais avisado. Ao suspender os desejos e as
ações fica a mente em condições de reconsiderar a finalidade desses mesmos desejos
e de os reexaminar sob todas as perspectivas possíveis, sem precipitação.
• E em jeito de síntese que enlaça os dois momentos: é pelo exercício dessa suspensão
prudencial e calculante que se tranquiliza a consciência, uma vez que o que está em
jogo é o maior bem que o agente pode alcançar, a saber, a sua felicidade. Até porque,
e convém não esquecer, a felicidade significa o abandono completo do sofrimento23.
À boa maneira epicurista.
Entretanto tudo se começa a complicar. Primeiro é o problema das perturbações
extremas que podem ser induzidas pelas paixões. O simples poder de suspensão ao qual
não faltava nem trabalho nem responsabilidades na resolução prudente das situações
normais, digamos assim, vê-se agora a braços com trabalhos de Hécules, uma vez que
deve meter ombros à responsabilidade de moderar e reprimir as paixões, o que desde
a filosofia antiga era considerado um labor muito difícil. Diz-se que as paixões obnibulam
o próprio entendimento, daí que se compreenda que não fui irônico ao considerar
hercúlea a sua lide. Ou elas não existem e não são nenhum problema ou estão presentes
e logo impedem a resolução intelectual das situações.
Depois há a ingente dificuldade, abundantemente glosada, tanto na literatura
pagã como na religiosa, do conflito de faculdades24. No nosso caso concreto a glosa
23
Como diz Locke: “For during this suspension of any desire, before the will be determined to action,
and the action (which follows that determination) done, we have opportunity to examine, view, and judge of the
good or evil of what we are going to do; and when upon due examination we have judged, we have done our duty,
all that we can or ought to do in pursuit of our happiness; and it is not a fault but a perfection of our nature to desire,
will and act, according to the last result of a fair examination”, in Locke 1995: 185 [1690].
24
Neste conflito ancestral entre o «Je-veux et le Je-non-veux», “ I’issue ne peut dépendre que d’une action – si
les Obras ne comptent plus, la Volonté est paralysée. Et puisque le conflit se place entre velte et nolte, la persuasion
n’entre pas en ligne de compte, comme elle le faisait dans la vieille querelle entre raison et appétits. Car l’état de
choses par lequel «le bien que je veux, je ne le fais pas, mais le mal que je ne veux pas, je le pratique» (in Romanos,
7, 19) n’est pas nouveau, c’est bien évident. On retrouve presque le mot-à- mot dans Ovide: «Video meliora proboque,
deteriora sequor (je vois le bien et je l’approuve, et c’est au mal que je me laisse entraîner), cf. Ovídio [As Metamorfoses],
in Chamonard 1966: 177, et c’est sans doute une traduction du fameux passage de Médée d’Euripide (vers
1078-1080) «Oui, je sens le forfait que je vais oser; mais la passion [thymos, ce qui me meut] I’emporte sur mes
résolutions [bouteumata], et c’est elle qui cause les pires maux aux humains». Euripide et Ovide déploraient peut-être
la faiblesse de la raison face à l’élan passionné des désirs, et Aristote a sans doute franchi un pas de plus et pressenti
une contradiction en soi dans le choix du pire, acte auquel il emprunte sa définition de «I’homme pervers», mais
aucun d’entre eux n’aurait attribué ce phénomène au libre choix de la Volonté”, in Arendt 1983: 87.
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hath a prospect of the different state of perfect happiness or misery that attends all men after
this life, depending on their behaviour here, the measures of good and evil that govern his
choice are mightily changed. For, since nothing of pleasure and pain in this life can bear
any proportion to endless happiness or exquisite misery of an immortal soul hereafter, actions
in his power will have their preference, not according to the transient pleasure or pain that
accompanies or follows them here, but as they serve to secure that perfect durable happiness
hereafter” (Locke, 1995, p. 192 [1690]).
Não está longe o dispositivo das remunerações e das penas. No parágrafo setenta
chama-se a atenção para isso tal como de resto no texto que citei, mas os argumentos
são tênues e fazem ainda apelo da capacidade racional dos agentes. O dispositivo
repressivo, a pastoral do medo associada ao voluntarismo teológico e jurídico completo,
virá mais tarde.
Nos Concernings o dispositivo ganha clareza e torna-se mesmo apelativo.
“Once it has been granted that some divine power presides over the world something it would
be impious to doubt, for he has commanded the heavens to turn in their perpetual revolution,
(...) and all creatures in their obedience to his will have their own proper laws governing
their birth and life; and there is nothing in all this world so unstable, so uncertain that it
does not recognize authoritative and fixed laws which are suited to its own nature – once
this has been granted it seems proper to ask if man alone has come into this world entirely
outside some Jurisdiction, with no law proper to him, without plan, without law, without a
rule for his life” (Horwitz, 1990, p. 95 a 97).
O motivo pelo qual a razão não pode dar-nos leis é porque ela é apenas uma
faculdade do espírito. Ela é apenas uma parte de nós. O carácter apodíctico deste
argumento mostra o externalismo congénito de Locke. O ente não pode dar-se leis a si
mesmo. O esquema pressupõe sempre duas entidades, uma que dá e outra que recebe.
A ideia de autonormatividade é incompreensível para Locke. Esta proposição deveria
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Isso em ordem a mostrar quais os limites da razão e dos sentidos no seu trabalho
coordenado de condução do conhecimento da lei natural. Bem. Os limites são quase
totais. Quer dizer, os sentidos e a razão podem trabalhar em conjunto no conhecimento
da lei natural desde que saibam que antes já existe uma lei que nos condiciona
absolutamente, que essa lei pressupõe um legislador que nos submete à sua vontade,
através de um inelutable power, e que – não está aqui mas está noutros pontos da obra –
nos pode forçar à obediência através de rewards and punishments. E por fim que esse
legislador já determinou o modo como se deve agir e não agir. E que devemos conduzir
a nossa vida de acordo com a sua vontade. Enfim a margem de autonomia é mínima.
Aquilo que estava anunciado e esboçado no cap. XXI do Ensaio sobre o
entendimento humano desenvolve-se no mesmo livro, mais à frente, no cap. XXVIII.
E não deixa de ser sintomático que o autor para passar definitivamente à explanação do
seu voluntarismo teológico, jurídico e moral, tenha necessidade de voltar a reintroduzir
a sua propedêutica sensista e hedonista. Assim começa por definir o bem e o mal moral
a partir do prazer e da dor:
“Good and evil, as hath been shown (book II, cha. XX, sect. 2, and chap. XXI, sect. 42),
are nothing but pleasure or pain, or that which occasions or procures pleasure or pain to us.
Moral good and evil, then, is only the conformity or disagreement of our voluntary actions
to some law, whereby goof and evil is drawn on us from the will and power of the lawmaker;
which good and evil, pleasure or pain, attending our observance or breach of the law, by
the decree of the law-maker, is that we call «reward» and «punishment»” (Locke, 1995, p.
279 [1690]).
Para Locke o fato de que os agentes dispõem de uma racionalidade prática e uma
liberdade para agir no quadro do seu interesse próprio, que é a procura da felicidade,
não é suficiente. Afinal a ação livre dos homens é sempre acompanhada de regras que
no fim de contas a superintendem e as regras não fariam sentido se não fossem
acompanhadas de imposições axiológicas e normativas. Por outro lado, tanto as regras,
como a normatividade que encerram, seriam vãs e fúteis se não contivessem explícita
ou implicitamente recompensas e castigos. “It would be in vain for one intelligent being
to set a rule to the actions of another, if he had it not in his power to reward the compliance
with, and punish deviation from, his rule by some good and evil that is not the natural
product and consequence of the action itself” (p. 279 e 280).
Aquilo que eu pretendo estabelecer como nexo de causalidade recíproca está
todo aqui. Não é tanto o carácter repressivo e autoritário da consciência moral lockeana,
fruto evidente do hiperaugustinianismo da sua formação calvinista. Não é tanto a
antropologia pessimista e sombria em que se fundamenta, mas essencialmente o nexo
causal entre essa antropologia, o sensismo e o hedonismo larvar. É tudo muito ilusório.
A enfatização do prazer e da dor no sensismo e no empirismo lockeano não são afinal
nem epicuristas nem cirenaicos. É na percepção da sua originalidade que reside a
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169
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Romantismo. Eticidade, moralidade e transcendência, Lisboa: Ed. Policopiada, 2008.
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University Press, 1991.
BURNS, J. H. (Ed.). Histoire de la pensée politique moderne, Paris: Presse Universitaires de France,
1997.
DARWALL, Stephen. The british moralists and the internal ‘ought’ (1640-1740), Cambridge:
Cambridge University Press, 1995.
EPICURO CONCHE, Marcel (Coord.). Épicure: Lettres et maximes, Paris: Presses Universitaires de
France, 1992.
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GERT, Bernard (Ed.). Thomas Hobbes: Man and citizen, de homine and de cive, Indianapolis:
Hackett Publishing Company. [1650], 1993.
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HIBLER, Richard W. Happiness through tranquility. The school of Epicurus, Boston: University
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HOBBES FLATHMAN, Richard e David Johnston (Ed.). Thomas Hobbes: Leviathan, Londres:
Norton. [1651], 1997.
LOCKE HORWITZ, Robert, e outros autores (Ed.). John Locke: Questions concerning the law of
nature, Ithaca: Cornell University Press. [1664], 1990.
LOCKE, John. John Locke: The second treatise on civil government, Nova Iorque: Prometheus Books.
[1689], 1986.
LOCKE, John. John Locke: A letter concerning toleration, Buffalo, Nova Iorque: Prometheus Books.
[1689], 1990.
LOCKE, John. John Locke: Essay concerning human understanding, Nova Iorque: Prometheus
Books. [1690], 1995.
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171
LA PRUEBA EN VIOLENCIA SEXUAL Y EN VIOLENCIA DE GÉNERO:
ESPECIAL REFERENCIA A LA PRUEBA DE ADN
RESUMEN: Los agresores se procuran, y más aún en este ámbito de delitos contra la vida y la libertad
sexual en las relaciones de pareja, de unos hechos en lo que respecta al lugar de comisión del delito,
en las que resulta muy difícil disponer de pruebas más allá de la declaración de la víctima. La prueba
de ADN puede tener una gran virtualidad a la hora de acreditar determinadas circunstancias que
tengan relación con la comisión del hecho punible. De ello se ocupa este estudio, incidiendo en la
regulación existente en el ordenamiento jurídico español en materia de obtención de prueba biológica
y valoración de la prueba genética, que considera los distintos pasos desde la recogida de las fuentes
de prueba hasta su apreciación judicial.
RESUMO: Os agressores são procurados, principalmente neste âmbito dos delitos contra a vida e a
liberdade sexual nos relacionamentos, por fatos relativos ao lugar de cometimento dos delitos, o que
torna muito difícil dispor de provas além da declaração das vítimas. A prova de DNA pode ter uma
grande virtude no momento de atribuir determinadas circunstâncias que tenham relação com o
cometimento do fato punível. Disso se ocupa este trabalho, incidindo na regulação existente no
ordenamento jurídico espanhol em matéria de obtenção de prova biológica e valoração da prova
genética que considera os distintos passos desde a recolhimento das fontes de prova até a sua
apreciação judicial.
ABSTRACT: The attackers were seeking, and even more in this area of crimes against life and sexual
freedom in relationships, in facts as regards the place of commission of the crime, which very difficult
to have evidence beyond the testimony of the victim. DNA testing can have great potentiality when
demonstrating certain circumstances that pertain to the commission of the crime. It occupies this study,
focusing on the existing regulation in the Spanish legal system to obtain evidence of biological and
genetic evaluation of evidence, that consider the various steps from the collection of the sources of
evidence to its judicial appreciation.
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173
I. INTRODUCCIÓN
1
Para un estudio de la problemática suscitada por el art. 416 LECrim. v. ALAÑÓN OLMEDO F. (Algunos
apuntes sobre el contenido del artículo 416 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal), “Violencia de género: perspectiva
jurídica y psicosocial”, Tirant lo Blanch, Valencia, 2009, págs. 63 y ss.).
Entendemos con este autor que “la persecución de los delitos englobados dentro de la categoría “violencia
de género” está mediatizada por el ámbito en el que se producen. Relaciones que fueron de afecto, íntimas, aparecen
en la génesis de estos tipos y justifican su propia existencia, tal y como nos enseña la exposición de motivos de la Ley
de medidas de protección integral contra la violencia de género 1/2004 de 28 de diciembre. Esta situación provoca la
colisión de intereses, los del Estado en la persecución de los delitos y los de la propia víctima para quien su derecho a
la intimidad personal y familiar se encuentra en juego.
Este contexto justifica el contenido del art. 416 LECRim., precepto cuya aplicación puede dificultar la
posibilidad de plasmar en los hechos probados de una sentencia la realidad acaecida. El análisis del precepto ofrece
una rica problemática y es dentro de la misma donde se debe concluir en la dificultad que presenta su elusión desde
la opción efectuada por la víctima, lo que a la postre deriva en situaciones nada deseables de impunidad. Habrá de
ser el legislador el que acometa una reforma del texto que acomode los intereses en conflicto y, desde luego, permita
una persecución del delito acorde con la lacra que representa la violencia de género en nuestra sociedad”.
2
V. en cuanto al concepto, naturaleza jurídica, constitucionalidad y presupuestos para la adopción de
las medidas de intervención corporal mi trabajo sobre “Investigación penal sobre el cuerpo humano y prueba científica”,
Madrid, 2004, págs. 14 y ss.
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No obstante, a todas estas cuestiones concernidas en el tema que nos ocupa,
trataremos de darle respuesta con la regulación vigente, sin renunciar a realizar esta llamada
al legislador, que consideramos urgente dada la importancia y trascendencia de estas
nuevas técnicas de investigación criminal, que tienen difícil encaje, como veremos, en el
actual marco legal procurado por la vigente Ley de Enjuiciamiento Criminal, la cual no
pudo en su día prever estos avances en materia de investigación criminal.
3
Partimos a estos efectos de la definición que proporciona GONZÁLEZ-CUÉLLAR SERRANO
(Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal, Madrid, 1990, pág. 290), pero sin entender la
coerción física como un rasgo definidor, dada la actual regulación del ordenamiento jurídico, español en los términos
que precisamos a continuación.
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177
eficacia práctica en las Resoluciones del Consejo de Europa relativas al intercambio de
resultados de análisis de ADN, de 9 de junio de 1997 y de 25 de julio de 2001 y,
últimamente, en las normas recogidas en el Reglamento de Eurojust relativas al
tratamiento y a la protección de datos personales, aprobado por el Consejo de Europa
el 24 de febrero de 2005 y, más recientemente, en el Convenio de Prüm4, que ha influido
directamente, como veremos, en la elaboración y aprobación de la Ley española objeto
de análisis5, y en la Decisión-Marco 2008/615/JAI del Consejo, de 23 de junio de 2008,
sobre la profundización de la cooperación transfronteriza, en particular en materia de
lucha contra el terrorismo y la delincuencia transfronteriza6.
Los problemas de inserción en el actual marco constitucional han sido objeto de
estudio y resolución adecuada en la jurisprudencia constitucional, sobre todo, a partir
del pronunciamiento de la STC 207/1996, de 16 de diciembre, al que ya hemos hecho
referencia anteriormente7. Posteriormente, se ha llevado a cabo el cumplimiento de la
exigencia constitucional sobre la legalidad y proporcionalidad de las medidas de
intervención corporal, como paso previo a la obtención de la muestra indubitada para
su posterior análisis de ADN, tal y como se deriva de la doctrina constitucional antes
referida, en la disposición final primera de la Ley Orgánica 15/2003, de 25 de noviembre,
de modificación del Código Penal, en los términos antes referidos.
Así, como hemos adelantado, la modificación consistió fundamentalmente, a los
efectos que ahora nos interesan, en la nueva redacción del art. 363 LECrim., de manera
que se pueda obtener ADN a partir de muestras biológicas del sospechoso para su posterior
contraste con perfiles genéticos provenientes de pruebas halladas en el lugar del delito, lo
que evidencia, a nuestro juicio, la falta de cobertura constitucional para la práctica de otras
diligencias de investigación corporal no contempladas por esta norma8.
4
Ratificado por nuestro país por INSTRUMENTO de ratificación de España del Convenio relativo a la
profundización de la cooperación transfronteriza, en particular en materia de lucha contra el terrorismo, la
delincuencia transfronteriza y la migración ilegal, hecho en Prüm el 27 de mayo de 2005.
5
Sobre estos aspectos, cfr. SANZ HERMIDA, A.M., «La protección de datos personales en la transferencia
automatizada de perfiles de ADN entre Estados miembros de la UE», en este mismo número de Iustel.
6
Esta Decisión establece las disposiciones de protección de datos que rigen la transferencia automatizada
de perfiles de ADN, datos dactiloscópicos y datos de registros nacionales de matriculación de vehículos. La Decisión
marco 2008/977/JAI, de 27 de noviembre de 2008, relativa a la protección de datos personales tratados en el marco
de la cooperación policial y judicial no se aplica en este ámbito, como se señala en el párrafo preliminar (39).
7
V. en este sentido el estudio llevado a cabo en mi obra Investigación penal sobre el cuerpo humano…,
op. cit., págs. 15 y ss.
8
De las consecuencias derivadas de esta reforma legal nos ocupamos en la obra colectiva “ Investigación
y prueba y proceso penal”, v. IGLESIAS CANLE, I. C, La nueva regulación de las medidas de intervención corporal
en el art. 363.2 LECrim.: la quiebra del principio de legalidad, págs. 175 y ss.
V. también PÉREZ MARÍN, M. A., Inspecciones, registros e intervenciones corporales. Las pruebas de ADN
y otros métodos de investigación en el proceso penal, Valencia, 2.008.
9
Un estudio pormenorizado de la regulación de las medidas de intervención corporal en el Derecho
Comparado se recoge en mi obra ya citada IGLESIAS CANLE, I. C., Investigación penal…, op. cit.
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Pero el no haber abordado tal posibilidad en forma explícita lleva a considerar
la negativa como un indicio en contra del sospechoso o incluso, en algunos casos, como
un delito de desobediencia grave a la autoridad judicial, sin que tal consecuencia jurídica
sea útil al efecto de perseguir adecuadamente determinadas conductas delictivas graves
como las que estamos analizando.
Es evidente que se ha perdido una nueva oportunidad de solucionar las muchas
incógnitas que la parca regulación de las medidas de intervención corporal planteaban,
incluso, en lo que se refiere a las que permiten la introducción de la prueba genética en
nuestro proceso penal. La apuesta por la coerción jurídica, que analizamos seguidamente,
parte pues de un punto de origen viciado por la defectuosa e insuficiente previsión legal,
al requerir para la obtención de la muestra objeto de análisis genético, consentimiento
o autorización judicial no coactiva, tal y como están entendiendo nuestros tribunales10.
El artículo 1 de esta ley crea la base de datos policial de identificadores obtenidos
a partir del ADN, que integrará los ficheros de esta naturaleza de titularidad de las
Fuerzas y Cuerpos de Seguridad del Estado tanto para la investigación y averiguación
de los delitos, como para los procedimientos de identificación de restos cadavéricos o
de averiguación de personas desaparecidas.
Se inscribirán en esa base de datos policial los identificadores obtenidos a partir
del ADN que se refieran a los siguientes datos:
a) Los datos identificativos extraídos a partir del ADN de muestras o fluidos que,
en el marco de una investigación criminal, hubieran sido hallados u obtenidos
a partir del análisis de las muestras biológicas del sospechoso, detenido o
imputado cuando se trate de delitos graves y, en todo caso, los que afecten a la
vida, la libertad, la indemnidad o la libertad sexual, la integridad de las personas,
el patrimonio siempre que fuesen realizados con fuerza en las cosas, o violencia
o intimidación en las personas, así como en los casos de la delincuencia
organizada, debiendo entenderse incluida, en todo caso, en el término
delincuencia organizada la recogida en el art. 282 bis del apartado 4 de la Ley
de Enjuiciamiento Criminal en relación con los delitos enumerados.
10
V. en este sentido resoluciones, como la del Juzgado número 2 de O Carballiño de 16 de marzo de
2.006, en la que en el auto que acuerda la medida, se le advierte al destinatario de la misma de que se le notifique
para que acceda voluntariamente a someterse a la realización de lo acordado (extracción de saliva recogida en
hisopos o extracción de sangre a los efectos de obtener muestras para la determinación de su ADN), con apercibimiento
expreso de posible delito de desobediencia a la autoridad judicial en caso contrario, con advertencia de la valoración
que de su negativa quepa hacerse en relación con los indicios ya existentes.
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1. Los datos pertenecientes a personas fallecidas se cancelarán una vez el encargado de la base
de datos tenga conocimiento del fallecimiento. En los supuestos contemplados en el art. 3.1
b)11, los datos inscritos no se cancelarán mientras sean necesarios para la finalización de
los correspondientes procedimientos.
2. EL ejercicio de los derechos de acceso, rectificación y cancelación en relación con la base
de datos policial de identificadores obtenidos a partir del ADN se podrá efectuar en los
términos establecidos en la Ley Orgánica 15/1999, de 13 de diciembre, y en su normativa
de desarrollo.
3. Los identificadores obtenidos a partir del ADN respecto de los que se desconozca la
identidad de la persona a la que corresponden, permanecerán inscritos en tanto se mantenga
dicho anonimato. Una vez identificados, se aplicará lo dispuesto en este artículo a efectos
de su cancelación.12
11
Art. 3.1 b) de la L. O. 10/2007: “Se inscribirán en la base de datos policial de identificadores obtenidos
a partir del ADN lo siguientes datos: …Los patrones identificativos obtenidos en los procedimientos de identificación
de restos cadavéricos o de averiguación de personas desaparecidas”.
12
En relación a este tema resulta capital la Sentencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos de
4 de diciembre de 2008 en la que se condena a Reino Unido por considerar que es el único Estado Miembro
que autoriza expresamente la conservación sistemática y por un plazo ilimitado perfiles de ADN y muestras
celulares de personas que se hayan beneficiado de una absolución o una renuncia de acciones. Al tiempo sienta,
con carácter general, las bases y los principios que deben regir en esta materia para salvaguardar los restantes
derechos en conflicto.
V., un estudio detenido sobre esta Sentencia y la doctrina que sienta en SANZ HERMIDA, A., Notas de
Derecho Procesal Angloamericano, Revista General del Derecho, 18, 2009.
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Estado miembro requerido, este último deberá prestar asistencia judicial mediante la
obtención y el análisis del material genético de dicha persona y la transmisión del perfil
de ADN resultante, siempre que:
a) el Estado miembro requirente comunique el fin para el que se requiere;
b) el Estado miembro requirente presente una orden o declaración de investigación
de la autoridad competente, exigible con arreglo a su Derecho interno, de la
que se desprenda que se cumplirían los requisitos para la obtención y análisis
de material genético si esa persona concreta se encontrara en el territorio del
Estado miembro requirente, y,
c) se cumplan los requisitos para la obtención y análisis de material genético y
para la transmisión del perfil de ADN obtenido con arreglo al Derecho del
Estado miembro requerido.
Es evidente que las dudas que suscita la regulación actual del art. 363 LECrim.
en lo que respecta al recurso a la coerción física ante la ausencia del consentimiento del
sujeto pasivo de la medida, deben despejarse para adaptar nuestra regulación a las
exigencias de claridad que la normativa europea demanda.
1. EFICACIA
13
Baste como referencia las SSTS de 11 de mayo de 1993 (RA 3878), de 13 de mayo de 1998 (RA
8278) y de 23 de junio de 1999 (RA 5847).
14
Valga como ejemplo la STS de 11 de mayo de 1993 (RA 3878) en la que se apunta tal posibilidad, si
bien, en esa ocasión, ante el sometimiento voluntario a tres previas extracciones sanguíneas, la negativa a la cuarta
no fue tenida en cuenta al valorar la prueba de cargo. V. también, en este sentido, el auto del Juzgado número 2
de O Carballiño de 16 de marzo de 2.006, al que hemos hecho anteriormente referencia, en el que se acuerda la
medida y se le advierte al destinatario de la misma de que se le notifique para que acceda voluntariamente a
someterse a la realización de lo acordado (extracción de saliva recogida en hisopos o extracción de sangre a los
efectos de obtener muestras para la determinación de su ADN), con apercibimiento expreso de posible delito de
desobediencia a la autoridad judicial en caso contrario, con advertencia de la valoración que de su negativa quepa
hacerse en relación con los indicios ya existentes.
Sobre esta cuestión v. mi obra Investigación penal…, op. cit., págs. 102-126.
15
El art. 287 de la LEC consagra nuevamente esta regla, considerando al efecto que “cuando alguna de
las partes entendiera que en la obtención u origen de alguna prueba admitida se han vulnerado derechos fundamentales
habrá de alegarlo de inmediato con traslado, en su caso, a las demás partes...”.
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efectos de considerar su posible validez probatoria, y, al fin y a la postre, su adecuada
interpretación por parte del órgano jurisdiccional decisor.
Los temas relacionados, de los que se trata seguidamente, son temas clave de la
disciplina y que, obviamente, se traen a colación en relación a las medidas de intervención
corporal sin ánimo de exhaustividad, sino simplemente, en la medida en que se necesitan
para procurar decisiones y ofrecer soluciones a los problemas que la incorporación al
proceso del resultado de tales diligencias suscita.
16
Sobre la recogida de muestras y vestigios del lugar de los hechos v. art. 326 LECrim. según el cual
“cuando el delito que se persiga haya dejado vestigios o pruebas materiales de su perpetración, el Juez instructor o el
que haga sus veces los recogerá y conservará para el juicio oral si fuere posible, procediendo al efecto a la inspección
ocular y a la descripción de todo aquello que pueda tener relación con la existencia y naturaleza del hecho.
A este fin habrá de consignar en los autos la descripción del lugar del delito, el sitio y estado en que se hallen
los objetos que en él se encuentren, los accidentes del terreno o situación de las habitaciones, y todos los demás detalles
que puedan utilizarse, tanto para la acusación como para la defensa.
Cuando se pusiera de manifiesto la existencia de huellas o vestigios cuyo análisis biológico pudiera contribuir
al esclarecimiento del hecho investigado, el Juez de instrucción adoptará u ordenará a la Policía Judicial o al médico
forense que adopte las medidas necesarias para que la recogida, custodia y examen de aquellas muestras se verifique
en condiciones que garanticen su autenticidad, sin perjuicio de lo establecido en el art. 282 LECrim.”.
Este último precepto por su parte establece que “la Policía Judicial tiene por objeto, y será obligación
de todos los que la componen, averiguar los delitos públicos que se cometieren en su territorio o demarcación;
practicar, según sus atribuciones, las diligencias necesarias para comprobarlos y descubrir a los delincuentes, y
recoger todos los efectos, instrumentos o pruebas del delito de cuya desaparición hubiera peligro, poniéndolos a
disposición de la autoridad judicial…”.
17
Si se quiere profundizar más en esta cuestión sobre la naturaleza de las diligencias llevadas a cabo en
la fase de instrucción y su validez como medios de prueba anticipada o preconstituida, v. mi trabajo sobre Investigación
penal…, op. cit.
18
La diferencia de las diligencias de prueba con los actos instructorios radica esencialmente en su finalidad
y virtualidad ya que sólo las primeras resultan aptas para desvirtuar la presunción de inocencia, de manera que el
órgano de enjuiciamiento pueda fundamentar una sentencia condenatoria en contra del acusado en tales diligencias
de naturaleza probatoria.
19
En este sentido deben tenerse en cuenta las prevenciones para una adecuada recogida de muestras,
evitando la posible contaminación química o biológica que desvirtuaría los resultados, hasta convertirlos en inútiles.
20
Recordemos que debe tenerse muy presente en esta materia el sentimiento de pudor de la persona
afectada, salvaguardando convenientemente su derecho a la intimidad personal, con la presencia, en su caso, de
una persona de su confianza y, por aplicación del principio de proporcionalidad, restringiendo en la medida de lo
posible los efectos lesivos para la intimidad de la persona, limitando al mínimo el número de personas intervinientes
o que presencien la intervención corporal.
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punción dactilar. El primero permite obtener un mínimo de 10 a 20 ml. de
sangre y debe realizarse en jeringas o tubos que contengan EDTA como
anticoagulante y este método es idóneo cuando se necesite “mucho” ADN
para realizar análisis en el laboratorio. El segundo sistema es menos invasivo
y menos doloroso para el sujeto pasivo y consiste en que se pinche el dedo
en la cara anterior y se deja que salgan algunas gotas de sangre que pueden
depositarse o dejarse secar en una gasa, algodón, papel secante...
En todo caso, no se trata de relacionar a continuación las técnicas para realizar
las intervenciones corporales porque por su heterogeneidad resultaría un
trabajo ingente y que además se escapa de la materia objeto de estudio. Pero
es indudable que la presencia de un perito a instancia de la parte y la constancia
escrita de todas estas circunstancias resultarán esenciales a la hora de valorar
los resultados obtenidos, razón por la cual se pone especial énfasis en esta
primera condición para dotar de validez a estas pruebas.
2. Una vez obtenidas las muestras debe procederse a su remisión por un medio
seguro, debiendo acompañarse la muestra de un oficio que refleje toda la
muestra enviada que debe ser comprobada antes de firmar el acuse de recibo,
de manera que haya identidad entre la muestra enviada y la que se recibe.
3. Recibidas las muestras en el Laboratorio, se debe realizar el Informe, y en él
se deben hacer constar las muestras recibidas y que se someten a examen,
con vistas a que quede constancia documental de todas estas cuestiones21.
4. Elaboración del correspondiente dictamen, posterior al reconocimiento y
análisis de las muestras, el cual será el punto de referencia esencial a la
hora de proceder a la valoración de los resultados obtenidos y que en él
se plasman22.
21
El que sean laboratorios especialmente acreditados y que utilicen técnicas homologadas o el mismo
protocolo en torno a la metodología y a los patrones a utilizar, son cuestiones de las que ya nos hemos ocupado en
el capítulo primero de este trabajo. A ello nos remitimos.
22
FABREGA RUIZ, C. F., Aspectos jurídicos de las nuevas técnicas de investigación criminal, con especial
referencia a la “huella genética” y su valoración judicial, “La Ley”, núm. 4721, págs. 3-4.
23
Tendrá sentido, por ejemplo, en aquellas situaciones en que ha habido contaminación biológica o
química, o en aquellas situaciones en que la muestra de ADN estaba muy deteriorada y los resultados puedan ser
relativos, pero, con carácter general, el resultado no planteará duda y los términos del debate deben más bien
referirse a su valoración y eficacia en relación con los hechos y con las restantes pruebas.
24
Así lo reconoce LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA (El ADN y la identificación en la investigación
criminal y en la paternidad biológica, Granada, 1995, págs. 195 y ss.) que concluye que el “recurso sistemático al
contraperitaje es poco aconsejable en los análisis con ADN ya que, salvo error grosero por parte del Laboratorio, las
características de las técnicas empleadas permiten pocas dudas: si a una persona se le excluye, normalmente no queda
ninguna duda; si por el contrario, existe una inclusión (se concluye que un indicio “X” proviene de una persona “X”),
han de buscarse siempre los resultados estadísticos, para ver la probabilidad de inclusión que se consigue. Existen pocos
supuestos en los que la poca cantidad de la muestra o la mala calidad de la misma (ADN muy degradado) no permite
al laboratorio obtener probabilidades de inclusión muy altas (al menos mayores al 99%, o uno de cada cien), por lo
que en estos supuesto puede quedar una duda razonable”.
25
Tal y como pone de relieve MIRANDA ESTRAMPES (El concepto de prueba ilícita y su tratamiento en
el proceso penal, Barcelona, 1999, págs. 15 y ss.) aunque el concepto de prueba ilícita no es uniforme en la doctrina
ni en la jurisprudencia, parece conveniente conceptuarla como “no sólo aquella en cuya obtención o práctica se
han violentado derechos fundamentales, sino también aquella que ha sido obtenida con infracción de la legalidad
procesal ordinaria”.
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En tal sentido, el punto de partida no es otro que la necesaria observancia en la
obtención de cualquier fuente de la prueba de una serie de garantías que, en definitiva,
no son más que un medio de respetar los derechos y libertades de los sujetos que se
ven afectados por tales actuaciones.
De lo que se trata es de evitar que el ejercicio del ius puniendi del Estado se
realice a cualquier precio, lo que se traduce en la ineficacia de los medios de investigación
y de prueba lesivos de derechos fundamentales de la persona, tanto si tal lesión ha dado
lugar a un medio de prueba directo como indirecto.
Estrictamente para que se pueda hablar de ilicitud probatoria es necesario que
además de menoscabar un derecho fundamental con motivo de esa actividad probatoria,
exista un nexo de causalidad entre ambos, de manera que la obtención de la fuente de
prueba sea el resultado de lesionar el derecho fundamental. Y es precisamente en la
fase de investigación en la que tienen normalmente lugar esas actuaciones porque, esas
lesiones de derechos fundamentales se producen con motivo de actos extraprocesales,
lo que no impide que esta violación ocurra también con posterioridad a lo largo del
desarrollo del juicio, aunque no sea lo más usual.
Pero siguiendo a DÍAZ CABIALE y a MARTÍN MORALES, debe distinguirse la
prueba ilícita de la violación de principios que rigen la actividad probatoria, supuestos
en los que no hay propiamente una prueba ilícitamente obtenida. Ante tales situaciones,
como reconoció la STC 64/1986, el ordenamiento jurídico no puede permanecer
indiferente, pero para denunciar estas situaciones debe acudirse a las causas de nulidad
previstas en los art. 238 a 243 LOPJ y el 225.3 de la nueva Ley de Enjuiciamiento
Civil, de manera que en estos supuestos no se hablaría de prueba ilícita, sino de privación
de eficacia en los términos que contempla el art. 238 LOPJ y el art. 225 de la nueva
LEC. En conclusión, “es imprescindible dejar fuera del concepto de ilicitud probatoria
cualquier infracción del ordenamiento jurídico en materia probatoria que no provoque
la obtención de la fuente o medio de prueba”, doctrina que resulta de la aplicación de
lo dispuesto en la STC 64/1986, de 21 de mayo.
En la materia objeto de comentario, se trata, dicho sucintamente, que tal medida
se haya previsto por una ley, con una autorización judicial expresa, y con una restricción
proporcionada de los derechos y libertades en juego, sin lesionar, en ningún caso, la
vida o la salud del sujeto objeto de tal intervención o registro corporal realizada para la
obtención de una mínima muestra de su material biológico.
La sanción que establece la ley no es otra que decretar la nulidad de lo actuado,
de manera que no será posible utilizar esa prueba o cualquier otra que tenga su origen
en ella, como medio de enervar la presunción de inocencia del acusado en ese proceso,
porque, en definitiva, es un medio de preservar la presunción de inocencia.
No obstante, la última jurisprudencia tiende a matizar este criterio, en el sentido
de explicar la ineficacia de las pruebas obtenidas ilícitamente en la lesión del derecho
al proceso con todas las garantías del art. 24.2 CE y al principio de igualdad de armas,
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de manera que la valoración de un medio de prueba obtenido ilícitamente lesionaría,
en primer término, el derecho al proceso debido y, si además tales pruebas son las
únicas que fundamentan una sentencia condenatoria en su contra, la presunción de
inocencia; cosa que no sucedería si tal condena se basase en otros medios de prueba
válidos e independientes26.
La teoría de la “fuente independiente” se introdujo por primera vez en nuestro
Derecho por medio del art. 11.1 LOPJ y, posteriormente, obtuvo reconocimiento
jurisprudencial, sobre todo a raíz de la STC 86/1995, de 6 de junio, si bien, el Tribunal
Supremo ya había hecho uso de ella con anterioridad27. Esta línea argumental es la que
discurre a lo largo de la STC 81/1998 que completa la doctrina sentada por el Tribunal
Constitucional sobre la prueba ilícita hasta el momento28.
Añade a su anterior doctrina que la invalidez de las pruebas reflejas sobreviene
como consecuencia de la existencia de una “conexión de antijuridicidad”, es decir, de
una relación entre ambos medios de prueba lo suficientemente fuerte para estimar que
la ilicitud originaria de las primeras trasciende a las segundas, hasta el punto de provocar
la sanción invalidante29.
26
DÍAZ CABIALE, J. A., MARTÍN MORALES, R., La garantía constitucional de la inadmisión de la
prueba ilícitamente obtenida, Madrid, 2001, págs. 22-33.
El origen de esta doctrina se encuentra en la STC 81/1998, refrendada por las SSTC 49/1999, 94/1999,
139/1999, 161/1999, 166/199, 171/1999, 238/1999, 239/1999, 8/2000, 50/2000, 126/2000, 127/2000
y 299/2000.
27
En esta sentencia se le dio validez a la declaración del acusado emitida en el momento del juicio oral,
considerando que se estaba en presencia de una fuente independiente de prueba que puede ser admitida y valorada,
ya que, desde que se produjo la actuación ilícita había transcurrido un cierto tiempo y, desde entonces, el acusado
había recibido asesoramiento legal, había podido evaluar sus posibilidades de defensa y, si se había producido su
valoración lo había sido tras haber sido advertido de que no tenía obligación de hacerlo, es decir, siendo plenamente
consciente de que sus manifestaciones podrían ser utilizadas en su contra.
28
Comentarios a esta resolución se pueden v. en JUANES PECES, A., La prueba prohibida. Análisis de
la sentencia 81/1998 del Tribunal Constitucional. Un nuevo enfoque de la presunción de inocencia, AJA, 30 de julio
de 1998, núm. 353, págs. 1-5; LÓPEZ ORTEGA, J. J., Prueba y proceso penal. El alcance derivado de la prueba
ilícita en la jurisprudencia constitucional (A propósito de la STC 81/1998), “Derecho y Proceso penal”, 1999, núm.
1, págs. 123 y ss.; MARTÍ SÁNCHEZ, N., La llamada “prueba ilícita” y sus consecuencias procesales, AP, 19998,
t. I., núm. 7, págs. 141-162.
29
En el supuesto concreto al que se refiere este pronunciamiento, “para determinar si esa conexión de
antijuridicidad existe o no hemos de analizar, en primer término, la índole y características de la vulneración del
derecho al secreto de las comunicaciones materializadas en la prueba originaria, así como su resultado, con el fin
de determinar si, desde el punto de vista interno, su inconstitucionalidad se transmite o no a la prueba obtenida
por derivación de aquella... Desde el punto de vista de la índole y características de la vulneración que aquí se trata
ha de considerarse, en primer término, cuál de las garantías de la injerencia en el derecho al secreto de las
comunicaciones telefónicas ha sido efectivamente menoscabada y en qué forma...Esto sentado, procede analizar el
resultado inmediato de la infracción, esto es, el conocimiento obtenido a través de la injerencia practicada
inconstitucionalmente. La sentencia impugnada subraya que, en virtud de la intervención telefónica, sólo se obtuvo
un dato neutro... A partir de ese hecho, el Tribunal Supremo entiende que dadas las circunstancias del caso y,
especialmente, la observación y seguimiento de que el recurrente era objeto, las sospechas que recaían contra él y
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El Tribunal Constitucional lo que pretende con su pronunciamiento es reducir el
contenido de la garantía de la exclusión de la prueba ilícita y para ello construye la teoría
de la conexión de antijuridicidad. Pero sin llegar al extremo de negar esta garantía, por
lo que debe determinar los supuestos en que las pruebas indirectas, por ser independientes
jurídicamente, pueden ser admitidas.
Se aprecia la recepción en nuestro Derecho de una serie de teorías norteamericanas
que han supuesto excepciones a la aplicación de la doctrina de “the fruit of the poisonous
tree doctrine”.
En tal sentido, según la teoría de la fuente independiente de lo que se trata es de
que la prueba que se presenta no sea consecuencia de la lesión de un derecho fundamental,
siendo ésta la única vía que la dicción literal del art. 11.1 LOPJ permite, ya que, al prohibir
absolutamente la valoración de las pruebas ilícitas, sin excepción alguna, es preciso para
dar validez a alguna de estas pruebas, que exista una desconexión causal entre la prueba
indirecta y la lesión del derecho fundamental, o si se prefiere, será válida siempre que los
hechos pueden alcanzarse a través de una fuente independiente.
La tesis del nexo causal atenuado supone que la prueba no se habría obtenido
de no producirse la lesión del derecho fundamental, pero existe una cierta diferenciación
entre la lesión del derecho y la obtención de la prueba derivada, razón por la cual se
rompe la conexión entre la prueba ilícita inicial y el acto independiente posterior. La
crítica a la aceptación de esta teoría es fácil, la dicción literal del art. 11.1 LOPJ
impide cualquier posible valoración de la prueba obtenida violentando, “directa o
indirectamente”, derechos fundamentales de la persona. No obstante, el Tribunal
Constitucional la admite considerando que se trata de una prueba que no guarda
relación con la lesión del derecho fundamental.
Por último, la STC 81/1998 supuso la importación definitiva de la teoría del
descubrimiento inevitable, y que ha desembocado en el reconocimiento de la teoría de
la “conexión de antijuridicidad”. Se trata de distinguir entre la prueba obtenida violando
derechos fundamentales y la prueba que se habría obtenido, hipotéticamente, sin
esa vulneración (DÍAZ CABIALE, MARTÍN MORALES, p. 88 y ss. y 110).
Lo que es evidente es que en nuestro sistema, al igual que sucede en el modelo
norteamericano, se busca la disuasión policial al negarle validez a las pruebas obtenidas
la irrelevancia de los datos obtenidos a través de la intervención telefónica, el conocimiento derivado de la injerencia
en el derecho fundamental contraria a la Constitución no fue indispensable ni determinante por sí solo de la ocupación
de la droga o, lo que es lo mismo, que esa ocupación se hubiera obtenido, también, razonablemente, sin la vulneración
del derecho. Esta afirmación que, desde la perspectiva jurídica que ahora estamos considerando rompe, según la
apreciación del Tribunal Supremo, el nexo entre la prueba originaria y la derivada, no es, en sí misma un hecho,
sino un juicio de experiencia acerca del grado de conexión que determina la pertinencia o impertinencia de la
prueba cuestionada. Por consiguiente, no se haya exento de nuestro control, pero, dado que, en principio, corresponde
a los jueces y tribunales ordinarios, el examen de este Tribunal ha de ceñirse a la comprobación de la razonabilidad
del mismo”. LÓPEZ ORTEGA, J. J., Prueba y proceso penal.., op. cit., págs. 123 y ss.
30
En apoyo de esta tesis MIRANDA ESTRAMPES (El concepto de prueba ilícita y su tratamiento en el
proceso penal, Barcelona, 1999, págs. 995 y ss.) cita la jurisprudencia del Tribunal Constitucional que, con referencia
a la interpretación de la expresión y concepto de pertinencia de la prueba (arts. 659 y 792.1 LECrim.) dice que
“el concepto de “medios de prueba pertinentes” que aparece en el art. 24.2 de la Constitución pasa, así, a
incorporarse, sobre su contenido esencialmente técnico-procesal, un alcance también sustantivo, en mérito del cual
nunca podrá considerarse “pertinente” un instrumento probatorio así obtenido” (STC 114/1984, de 29 de
noviembre). Con todo, este autor entiende que esta solución debe ser provisional, en tanto no se contemple
expresamente la inadmisión de las pruebas ilícitamente obtenidas, ya que, en pura técnica procesal, el concepto
de pertinencia poco o nada tiene que ver con la licitud o ilicitud de la prueba.
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la posibilidad de hacer alegaciones sobre la cuestión, sino también de practicar prueba,
resolviéndose en este momento inicial, sin necesidad de esperar al momento de dictar
sentencia. No obstante, el órgano que debe conocer y resolver sobre la posible ilicitud
probatoria es el mismo que debe decidir sobre el fondo del asunto, por lo que no se evita
con ello la posible influencia psicológica de estas pruebas ilícitas en el juzgador31.
Además, esta solución por arriesgada debe ser considerada por el momento como
una mera hipótesis, al fin y al cabo, trasladar soluciones del proceso civil cuando hay
un régimen jurídico específico en el proceso penal resulta, cuando menos, cuestionable.
Deben pues considerarse primero las opciones que permite actualmente la Ley de
Enjuiciamiento Criminal.
En primer lugar, debe considerarse el control de la ilicitud probatoria como una
cuestión que no debe quedar únicamente en poder de las partes del proceso, de manera
que el órgano jurisdiccional también, no sólo pueda, sino que deba controlar de oficio
esta cuestión.
En contra de esta posibilidad, se alegaba el tenor literal del art. 793.2 LECrim.
(hoy, 786.2 LECrim., en términos idénticos, salvedad hecha de la expresa denegación
de recurso frente a tal decisión, sin perjuicio de la pertinente protesta y de que la
cuestión pueda ser reproducida, en su caso, en el recurso frente a la sentencia), que
regulaba la audiencia saneadora del proceso abreviado, en los siguientes términos «El
juicio oral comenzará con la lectura de los escritos de acusación y de defensa.
Seguidamente, a instancia de parte, el juez o tribunal abrirá un turno de intervenciones
para que puedan las partes exponer lo que estimen oportuno acerca de la competencia
del órgano judicial, vulneración de algún derecho fundamental, existencia de artículos
de previo pronunciamiento, causas de suspensión del juicio oral, así como sobre el
contenido y finalidad de las pruebas propuestas o que se propongan para practicarse
en el acto. El juez o tribunal resolverá en el mismo acto lo procedente sobre las
cuestiones planteadas»32.
31
En este sentido parecía pronunciarse, si bien, sin referirse a la entonces futura Ley de Enjuiciamiento
Civil, MIRANDA ESTRAMPES (El concepto de prueba ilícita..., op. cit., págs. 97-98), valorando muy positivamente
esta hipotética solución.
Con la Ley de Enjuiciamiento Civil la solución ya no resulta tan hipotética partiendo de la vocación universalidad
con la que nace y reconoce expresamente la Exposición de motivos cuando dice que “en coincidencia con anteriores
iniciativas la nueva Ley de Enjuiciamiento Civil aspira también a ser Ley procesal común, para lo que, a la vez, se
pretende que la vigente Ley Orgánica del Poder Judicial, de 1.985, circunscriba su contenido a lo que indica su
denominación y se ajuste, por otra parte, a lo que señala el apartado primero del art. 122 de la Constitución. La
referencia en este precepto “al funcionamiento” de los Juzgados y Tribunales no puede entenderse, y nunca se ha
entendido, ni por el legislador postconstitucional ni por la jurisprudencia y la doctrina, como referencia a las normas
procesales que, en cambio, se mencionan en otros preceptos constitucionales....”. A mayor abundamiento, el art. 287
de la nueva LEC pertenece al capítulo V referido a las “disposiciones generales sobre la prueba”.
32
Redacción dada por la Ley de 13 de noviembre de 2009 de reforma de la legislación procesal para la
implantación de la nueva oficina judicial.
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Ya terminada la instrucción, en el ámbito del proceso abreviado debe considerarse
la audiencia saneadora regulada en los términos vistos en el art. 786.2 LECrim.33 Es
en esta audiencia preliminar, que tiene lugar al inicio de las sesiones del juicio oral,
donde deben concentrarse las peticiones de nulidad suscitadas, en lo que ahora nos
concierne, por la violación de derechos fundamentales en el momento de obtención de
una fuente de prueba en la fase de instrucción34. Y lo que debe estar fuera de toda duda
es que, pese a la postura vacilante de nuestro Tribunal Supremo en este sentido (v. por
ejemplo, SSTS de 6 de marzo y de 6 de octubre de 1995), esta cuestión debe resolverse
inmediatamente, no quedando diferida al momento de dictar sentencia, porque entonces
se podrá practicar la prueba en el momento del juicio oral, lo que no es deseable a
efectos de evitar que la convicción del tribunal se forme sobre la base de la prueba
obtenida ilícitamente.
Simplemente, concluir con el convencimiento de que la posibilidad que brinda
este precepto no es exclusiva ni excluyente, de manera que debe considerarse también
la posible denuncia y control de la prueba ilícita en la fase de instrucción, o, incluso,
con posterioridad a esta audiencia preliminar, de oficio o a instancia de parte, porque
la vulneración de derechos fundamentales exige tal flexibilidad.
De todos modos, lo que es evidente es que la situación actual es insatisfactoria,
y parece inaplazable una reforma de la Ley de Enjuiciamiento Criminal en el sentido
de arbitrar mecanismos que permitan el control, a instancia de las partes personadas en
el procedimiento, de los supuestos de ilicitud probatoria, con el establecimiento de una
audiencia preliminar en la que, con carácter previo, se debata sobre esta cuestión. No
obstante, como hemos visto, esta solución tiene el inconveniente de que se está controlando
la posible ilicitud por el órgano de enjuiciamiento, con lo que el influjo psicológico opera
igualmente y que evidencia la conveniencia de que, si la ilicitud tiene lugar en la fase
de instrucción, el órgano judicial que la dirija debe constatar tal ilicitud y apartar del
conocimiento del órgano de enjuiciamiento tales pruebas (MIRANDA ESTRAMPES,
p. 131-136).
Sino, lo que sucederá, tal y como viene siendo habitual, tanto en el proceso
abreviado, en el que según hemos visto la decisión sobre la ilicitud se difiere al momento
33
En la nueva redacción del proceso abreviado, reformado por la Ley 38/2002, de 24 de octubre, el
artículo citado se corresponde con el art. 786.2 LECrim. que mantiene la regulación anterior en términos
prácticamente idénticos. Simplemente se añade que «frente a la decisión adoptada no cabrá recurso alguno, sin
perjuicio de la pertinente protesta y de que la cuestión pueda ser reproducida, en su caso, en el recurso frente a
la sentencia».
34
Quizá por ello la jurisprudencia (v. STS de 24 de junio de 1993) se muestra reacia a permitir el control
de la ilicitud probatoria en el momento de la instrucción, salvo si se trata de situaciones de “extrema gravedad”,
como por ejemplo, una declaración prestada bajo tortura, nunca en otro caso.
35
Un estudio más detenido sobre este tema, particularmente sobre la denuncia de la ilicitud probatoria
en la Ley Orgánica del Tribunal del Jurado, v. en mi trabajo Investigación penal…, op. cit., págs. 145 y ss.
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en el momento de práctica de la prueba, será un elemento muy a tener en cuenta a la
hora de emitir su fallo36. Pero, si ni siquiera presenta esta nota, el juez, falto de
conocimientos específicos sobre la materia, prácticamente reproducirá el informe tal y
como ha sido emitido, o peor aún, tal y como ha sido presentado por la acusación y/o
la defensa.
Advertimos de los peligros que las nuevas tecnologías comportan, pero no negamos
con ello su virtualidad e importancia. Al contrario, simplemente, tratamos de constatar
una realidad que la ley actual permite y que hay que corregir.
En ese proceso de interpretación y valoración de la prueba pericial resulta esencial
y en él no se le puede exigir al juez que se convierta en un hombre de ciencia, pero sí que
pueda controlar la validez de las pruebas científicas. El juez, al igual que los abogados y
fiscales, debe controlar la competencia de los peritos y la corrección de la aplicación de
la técnica pericial al caso concreto, la adecuada recogida de las muestras, los resultados
presentados en términos de probabilidad... Y si una primera solución sería la de llamar a
un perito que informase sobre estas cuestiones, ello puede tener sentido en situaciones de
extrema complejidad, pero no así con carácter general. Generalmente los criterios que
permiten valorar esta actuación son otros: la valoración de la autoridad científica, la
incorporación al patrimonio científico comúnmente aceptado de los métodos de investigación
por él seguidos y, finalmente, la coherencia lógica de su argumentación. Sobre estos tres
pilares debe sentarse la valoración del juez, que, resultará después de la debida
contradicción de los informes periciales presentados por acusación y defensa.
La libre valoración de la prueba que preconiza el art. 741 LECrim. no debe
esgrimirse en esta materia como un medio de eludir una valoración razonada y
fundamentada de los medios de prueba. De hecho, la utilización de máximas de
experiencia provenientes de saberes especializados le aporta mayor rigidez al proceso
de valoración que si se tratase de reglas de la sana crítica provenientes de la experiencia
cotidiana. Y su vulneración podría llegar a fundamentar incluso un recurso de casación
por realizar la sentencia una interpretación irracional o arbitraria, carente de motivación
y que, por tanto, conculcaría la presunción de inocencia.
Sin llegar a estos extremos que nos sitúan ya en el tema del control de la motivación
de la decisión judicial, debemos prestar atención al proceso anterior de formación o
génesis de esa voluntad, en la que tendrán especial interés los dictámenes periciales que
se presenten.
36
Debe recordarse que la conveniencia de un contraanálisis se reduce a los supuestos en que la dificultad
de la materia o la complejidad es tal que el resultado debe contrastarse con un segundo informe. En los demás
casos, la propia dinámica del sistema, fundamentalmente, el hecho de que sea realizado por un equipo técnico y
su alto precio, desaconsejan este tipo de contrapericias, teniendo en cuenta, en todo caso, la posibilidad de que la
defensa la costee.
Los análisis genéticos arrojan resultados que simplemente dan lugar al reconocimiento
de un indicio y no una prueba directa sobre el delito, ni de la autoría o participación en
él del acusado. Ello es de trascendental importancia teniendo en cuenta que la prueba
indiciaria debe reunir unos requisitos para desvirtuar la presunción de inocencia.
Así, según reiterada jurisprudencia del Tribunal Constitucional y del Tribunal
Supremo, “el derecho a la presunción de inocencia no se opone a que la convicción
judicial en un proceso penal pueda formarse sobre la base de una prueba indiciaria, si
bien esta actividad probatoria debe reunir una serie de exigencias para ser considerada
como prueba de cargo suficiente para desvirtuar la presunción constitucional. Se coincide
en resaltar como requisitos que debe satisfacer la prueba indiciaria los siguientes: que
los indicios, que han de ser plurales y de naturaleza inequívocamente acusatoria, estén
absolutamente acreditados, que de ellos fluya de manera natural, conforme a la lógica
de las reglas de la experiencia humana, las consecuencias de la participación del
recurrente en el hecho delictivo del que fue acusado y que el órgano judicial ha de
explicitar el razonamiento en virtud del cual, partiendo de esos indicios probados, ha
llegado a la convicción judicial de que el acusado realizó la conducta tipificada como
delito” (STS de 28 de noviembre de 1997, RA 8561).
Los indicios, por tanto, deben ser plurales y deben, además, estar probados,
debiendo el órgano judicial explicitar el razonamiento seguido para, partiendo de esos
indicios probados, haber llegado a la conclusión de que el procesado realizó la conducta
tipificada como delito (STC 94/1990, de 23 de mayo).
Así, la prueba genética dará lugar en el proceso penal, mediante las conclusiones
presentadas por los peritos, a un indicio probatorio que el juzgador habrá de valorar,
“razonando expresamente en la sentencia tanto los motivos que le llevan a considerar
probado, en su caso, el indicio –esto es, la valoración del propio informe pericial- como
el hecho que considera probado con base en tal indicio –, y, en este último caso,
haciendo mención de las razones de su convicción y, así, su valoración en conjunción
con otros indicios.
La importancia de la prueba genética también se relativiza por el hecho de que
los indicios tendrán más o menos relevancia en función de otras circunstancias. Valga
como ejemplo el que utiliza el Profesor FRAGOSO-ÁLVAREZ que se refiere al análisis
de un pelo obtenido en el lugar en el que se cometió el asesinato. El resultado del
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reconocimiento pericial concluye con la coincidencia entre los marcadores genéticos
del pelo y de la muestra del acusado. El hecho puede significar mucho o no significar
nada según las circunstancias, y así según otra serie de indicios, que se presenten en
el caso. Si el acusado no tiene motivo alguno que explique la aparición del cabello en
el lugar de los hechos, la coincidencia producirá un indicio de gran valor. Por el
contrario, si el acusado visita con asiduidad ese lugar, el indicio perderá toda su
virtualidad probatoria. Mayor convicción cabrá adquirir de este indicio si, además, se
produce el denominado “doble vínculo”, a saber: junto al pelo obtenido del lugar del
crimen se obtiene una mancha de sangre del pantalón que fue recuperado del domicilio
del acusado, la cual, una vez analizada, da como resultado la coincidencia entre los
marcadores genéticos de dicha mancha y la sangre de la víctima (LÓPEZ-FRAGOSO
ÁLVAREZ, 1999, p. 212 y ss).
Del ejemplo expuesto se deduce claramente el valor indiciario del análisis genético,
porque, en definitiva, la presencia del ADN de una persona en el lugar de los hechos
no es concluyente. Simplemente demostrará su presencia y ello si no pensamos en que
lo que se ha producido es una contaminación biológica anterior, posterior o previa, de
manera que, en realidad, lo que puede haber sucedido es que esa persona ha estado
con la persona asesinada antes de la comisión del crimen, o que se encontraba
casualmente en el lugar de los hechos, o, bien, que posteriormente, antes del hallazgo
del cadáver, pasó por allí37.
Su relatividad aumenta al considerar su naturaleza probabilística, de la que
pasamos a ocuparnos a continuación y que supone, dicho en pocas palabras, que los
resultados que arrojan estas pruebas deben medirse en términos de probabilidad respecto
a la población de una región determinada.
Estas consideraciones no hacen sino matizar la importancia que la prueba genética
debe tener en el proceso, un indicio que, en conjunción con otros, puede destruir la
presunción de inocencia. En definitiva, lo que no puede aceptarse desde esta perspectiva
es que si esto es así, la negativa a la práctica de estas diligencias sea considerada a su
vez como un indicio, esto es, como si la prueba se hubiera practicado y, además, hubiera
arrojado un resultado positivo, que, recordemos, se manifiesta en términos relativos o
de probabilidad, no en términos absolutos.
37
Por citar alguna posibilidad porque, como dice LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA (El ADN y
la identificación..., op. cit., pág. 141), “...si en un caso determinado aparece una pequeña mancha de sangre
(evidencia) en el pomo de una puerta, en un fragmento de baldosa o en un cenicero, en el momento de recogerla
es inevitable que el investigador pueda arrastrar ADN de otras personas que, siendo ajenas al hecho criminal dejaron
el mismo depositado al abrir la puerta, al pisar la baldosa o al manejar el cenicero. Este tipo de contaminación
puede ser múltiple (en una baldosa que hay en el suelo pueden pasar muchas personas que arrastran en la suela
de sus zapatos materiales biológicos de un origen muy variado, amén de que se pueden acumular pelos, restos de
saliva, etc..., dificultan aún más la interpretación de los resultados)”.
38
CARRACEDO ÁLVAREZ, A., La valoración de la prueba en Criminalística, CGPJ, 1996, pág. 340.
Concluye diciendo este autor que “la realidad es que todos los avances técnicos realizados con la introducción del
polimorfismo del ADN tendrán poco valor si no se acompañan con una presentación más correcta por el perito de los
resultados de la prueba, y por un conocimiento suficientes por los jueces del significado de probabilidad y de cómo ésta
se aplica para valorar este tipo de pericias”.
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de ADN que no posee la persona acusada. Entonces, si se confirma la exclusión será
total sin que sea necesario realizar cálculos estadísticos39.
El problema aparece cuando el resultado es positivo, o de coincidencia de uno
o varios marcadores genéticos en la mancha analizada y en el material biológico obtenido
del sujeto pasivo de la intervención corporal. En ese caso la pregunta que formula el
juez es la siguiente, “¿cuál es la probabilidad de que esa mancha de sangre o ese pelo
o ese esperma provengan de ese individuo?”. Es decir, entonces los resultados deben
presentarse teniendo en cuenta los datos estadísticos poblacionales40.
La primera respuesta a esta pregunta puede parecer sorprendente porque aunque
coincidan varios marcadores genéticos, afirma este experto en la materia, “siempre
existirá una incertidumbre sobre si pertenece la mancha al individuo, que, repetimos,
puede ser mínima, pero siempre es evaluable y no puede hablarse en ningún caso de
incriminación o seguridad absoluta”. Debe pues procederse a la valoración en términos
de probabilidad de la coincidencia de grupos.
Y es entonces cuando se corre el peligro de presentar los resultados de manera
equivocada o exagerada, cayendo en lo que hemos llamado “falacia de la acusación y
de la defensa”. Valga como ejemplo el siguiente, que relata el Prof. CARRACEDO en
su trabajo: “Si se analiza un grupo de ADN y que la mancha y el acusado poseen el
fenotipo 19-29, que lo posee una persona de cada cien... la prueba se puede presentar
ante el juez, como ahora veremos, de forma muy diferente: El fiscal puede presentar el
caso así: “El análisis del Laboratorio Forense tiene en este caso una enorme importancia.
El grupo encontrado lo posee sólo el uno por cien de la población, de modo que sólo
hay un uno por ciento de probabilidades de que la sangre provenga de otro que no sea
el acusado. Es decir, solo hay el uno por ciento de probabilidades de que algún otro
haya cometido el crimen, de modo que el acusado tiene un 99% de probabilidades de
ser culpable”. La defensa puede al contrario decir: “La prueba del laboratorio forense
tiene una importancia muy escasa. Sólo el uno por ciento de la población posee ese
grupo de ADN, pero en una ciudad como ésta... (supongamos que el crimen se cometió
en Madrid) con unas 500.000 personas en edad de cometer el crimen, ese grupo será
39
De ahí la importancia, que ya hemos recalcado en varias ocasiones, de que los laboratorios que realicen
estos análisis sigan las recomendaciones de la ISFH (International Society for Forensic Haemogenetics), estando
en tal sentido, debidamente acreditados.
En este sentido, LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA (El ADN y la identificación..., op. cit., págs.
183 y ss) advierten de que ese criterio es esencial para dotar de validez a los informes presentados, pero, además,
los informes deberán incluir los tipos de técnicas empleadas y el fenotipo de los marcadores analizados, la probabilidad
de coincidencia y discriminación y, en su caso, la tasa de error a priori.
40
Debemos excluir los supuestos en que, como consecuencia de una contaminación genética, aparecen
en el resultado analítico una serie de alelos que corresponden a más de un individuo y entre los que se encuentra
el genotipo del sospechoso. En estos casos, la conclusión analítica debe ser que “el individuo no puede ser excluido”,
lo que no debe ser interpretado ni como una exclusión, ni como una inclusión con una probabilidad determinada.
(V. LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA, El ADN y la identificación..., op. cit, pág.185).
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automáticamente un valor de 0.5 a la probabilidad a priori, es decir, tantas probabilidades
de ser culpable como inocente. Si expresamos la probabilidad de que el individuo sea
culpable (P (C)) como el resultado de aplicar la siguiente fórmula, resulta evidente que
se van a falsear los resultados.
En un ejemplo se ve claro. En el caso Collins de 1968, una mujer mayor fue
arrojada al suelo y robada en Los Ángeles, y un testigo vio corriendo a una mujer blanca
con pelo rubio y cola de caballo que entró en un coche amarillo, conducido por un
hombre negro con barba y bigote. La policía arrestó a una pareja que presentaba
características similares, pero no había más pruebas que los acusaran. El perito aplicó
la regla de la independencia y consideró que:
Características:
Automóvil amarillo 1/10
Hombre con bigote 1/4
Mujer con cola de caballo 1/10
Mujer con pelo rubio 1/3
Hombre negro con barba 1/10
Pareja interracial en coche 1/1000
De estos datos el Ministerio Fiscal concluyó que había una posibilidad en doce
millones de que una pareja seleccionada al azar encajase en estas características. El
jurado los condenó. Posteriormente, el Tribunal Supremo de California revocó la
sentencia, al considerar que el testimonio del perito era erróneo ya que no se ajustaba
a la teoría de las probabilidades. En definitiva, si la probabilidad a priori era muy baja
(no había más pruebas que el testimonio de una mujer), la probabilidad a posteriori
también lo sería. Porque lo cierto es que si se busca una pareja con estas características,
probablemente se encuentre, y ello no quiere decir que sea culpable.
De lo dicho se desprende, de un lado la importancia de que el dato de la probabilidad
a priori de la culpabilidad la proporcione el juez, sino se falsearán los resultados y, de otro,
el hecho de que el resultado que se obtiene incluso en los supuestos en que la pericia de ADN
da como resultado la inclusión, puede ser relativo. Para evaluarlo hay que acudir a las
probabilidades, contempladas desde dos perspectivas o hipótesis alternativas, y expresada como
una proporción entre ambas. Si no se caería en la falacia de la acusación o de la defensa
(CARRACEDO ÁLVAREZ, 1999, p. 301-308; 1996, p. 339-358).
Lo dicho corrobora aún más el valor indiciario de la prueba genética, que debe ser
tenida en consideración conjuntamente con otros medios de prueba incriminatorios para el
acusado. En este proceso resulta particularmente interesante el modo en que se presenten
los resultados porque, KOEHLER demostró en un amplio estudio que, si se presentan en
términos matemáticos (0.1, 0.01, 0.001..), los jurados tienden a considerar culpable a un
acusado con mayor facilidad que si se presentan en términos de frecuencia ( 1 entre 1000,
3. A MODO DE CONCLUSIÓN
41
Cosa distinta es que para la obtención de este resultado se haya seguido correctamente en análisis
bayesiano, circunstancia que desconocemos.
42
Este dato es esencial, así, como ponen de relieve LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA (El ADN
y la identificación..., op. cit., págs. 193-194), “si unos genotipos son frecuentes en una población, podríamos
obtener que dicho perfil genético se da en uno de cada diez mil individuos de la población, mientras que si en la
subpoblación existente dentro del grupo poblacional anterior son poco frecuentes, se daría en un individuo de cada
cien mil. Lógicamente, no es igual un caso que otro”.
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de sus derechos fundamentales conforme a la previa autorización legal de la intervención
corporal, adecuada a las exigencias de la proporcionalidad y razonabilidad de la medida
(art. 363.2 LECrim.).
La impunidad que se procura el agresor de la víctima de violencia sexual, con
las dificultades que nos encontramos en sede probatoria al no existir prácticamente otro
medio de prueba, determinan la viabilidad de las mismas, según el juicio de
proporcionalidad que debe plasmar el juez en la autorización de la medida, al resultar
tal intervención corporal no sólo necesaria e idónea, sino también proporcional en sentido
estricto, al suponer una restricción a los derechos del imputado plenamente justificada
al no poder adoptarse otra medida menos lesiva para el imputado que resulte eficaz para
la realización de los fines del proceso penal43.
No obstante, por el contrario, la práctica de estas diligencias de intervención
corporal en relación a la víctima de delitos violentos, particularmente en el ámbito de
los delitos contra la libertad sexual, donde su reconocimiento por parte del personal
médico resulta fundamental para la búsqueda y recogida de vestigios biológicos
provenientes del autor de los hechos (semen, saliva, pelos…) y resultan esenciales para
la identificación del delincuente, debe respetar en todo caso la intimidad de la víctima,
sin que sea sometida a trato inhumano o degradante alguno, con la previa prestación de
su consentimiento informado. Si la víctima no autorizase la intervención corporal,
únicamente, siguiendo el modelo del Derecho Alemán, debiera permitirse la práctica
de aquellas diligencias que consistan en la búsqueda de las huellas del delito “sobre el
cuerpo” o “entre las ropas”, no “en el cuerpo” de la víctima, por mucho que en el
Derecho Alemán el recurso a la coerción física se admita sin reservas para la práctica
de diligencias de intervención corporal sobre el imputado44.
La valoración indiciaria y probabilística de los informes genéticos confirman esta
tesis inicial, debiendo, no obstante, rodear a la práctica de la prueba pericial,
particularmente de la prueba de ADN, de todos los requisitos examinados y que deben
observarse para lograr su eficacia y adecuada valoración e interpretación por el juez al
dictar sentencia45.
43
Sobre el principio de proporcionalidad v. GONZÁLEZ-CUÉLLAR SERRANO. N., Proporcionalidad…,
op. cit., Madrid, 1990.
44
En relación a quienes pueden ser sujeto pasivo de las intervenciones corporales y en qué condiciones
y presupuestos y con qué límites v. mi trabajo sobre Investigación penal…, op. cit., págs. 81 y ss.
45
Debe recordarse que, residualmente, sobre todo en relación con los registros e inspecciones corporales,
incluso sobre el imputado, no debe considerarse la posibilidad de su imposición coactiva porque ello sería
desproporcionado y lesivo para el derecho de defensa de la parte, de modo que, en tales situaciones resulta preferible
optar por la consideración de la negativa como un indicio en su contra.
ALAÑÓN OLMEDO F. (Algunos apuntes sobre el contenido del artículo 416 de la Ley de
Enjuiciamiento Criminal), “Violencia de género: perspectiva jurídica y psicosocial”, Tirant lo
Blanch, Valencia, 2009, págs. 63 y ss.).
ARRACEDO ÁLVAREZ, A., Valoración de la prueba del ADN, “La prueba de ADN”, Medicina
Forense, 1999, Barcelona, págs. 301-308; Idem, La valoración de la prueba de ADN .., op. cit.,
págs. 339-358.
CARRACEDO ÁLVAREZ, A., La valoración de la prueba en Criminalística, CGPJ, 1996, pág. 340.
DÍAZ CABIALE J. A., MARTÍN MORALES, R., La garantía constitucional..., op. cit., págs. 88
y ss. y 110.
En este sentido, LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA (El ADN y la identificación..., op. cit.,
págs. 183 y ss)
FABREGA RUIZ, C. F., Aspectos jurídicos de las nuevas técnicas de investigación criminal, con
especial referencia a la “huella genética” y su valoración judicial, “La Ley”, núm. 4721, págs. 3-4.
IGLESIAS CANLE, I. C, C.“Investigación penal sobre el cuerpo humano y prueba científica”, Madrid,
2004, págs. 14 y ss.
JUANES PECES, A., La prueba prohibida. Análisis de la sentencia 81/1998 del Tribunal
Constitucional. Un nuevo enfoque de la presunción de inocencia, AJA, 30 de julio de 1998, núm.
353, págs. 1-5; LÓPEZ ORTEGA, J. J., Prueba y proceso penal. El alcance derivado de la prueba
ilícita en la jurisprudencia constitucional (A propósito de la STC 81/1998), “Derecho y Proceso
penal”, 1999, núm. 1, págs. 123 y ss.; MARTÍ SÁNCHEZ, N., La llamada “prueba ilícita” y sus
consecuencias procesales, AP, 19998, t. I., núm. 7, págs. 141-162.
LÓPEZ ORTEGA, J. J., Prueba y proceso penal.., op. cit., págs. 123 y ss.
LÓPEZ-FRAGOSO ÁLVAREZ, T., El análisis de ADN en el proceso penal, La Laguna, 1999, pág.
212 y ss.
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207
MIRANDA ESTRAMPES (El concepto de prueba ilícita y su tratamiento en el proceso penal,
Barcelona, 1999, págs. 995 y ss.)
PÉREZ MARÍN, M. A., Inspecciones, registros e intervenciones corporales. Las pruebas de ADN y otros
métodos de investigación en el proceso penal, Valencia, 2.008.
SANZ HERMIDA, A., Notas de Derecho Procesal Angloamericano, Revista General del Derecho, 18, 2009.
RESUMO: O trabalho é inerente à própria existência do ser humano, sendo que a sua evolução,
associada ao uso da máquina no processo produtivo, gerou o fenômeno da industrialização, que é o
principal fator de crescimento das cidades e, por consequência, da sua desordem. Estabelecida essa
conexão, visa-se com o presente estudo aproximar o recente Estatuto da Cidade, especialmente por
meio de suas diretrizes, ao meio ambiente do trabalho. A qualidade de vida da população de uma
cidade está diretamente vinculada ao equilíbrio do ambiente laboral, motivo pelo qual os instrumentos
de política urbana podem e devem ser usados pelos Municípios em prol da melhoria desse importante
aspecto da vida diária dos trabalhadores.
ABSTRACT: The work is inherent in the very existence of mankind, with its development, associated
with the use of machinery in the production process, created the phenomenon of industrialization,
which is the main factor of growth of cities and, consequently, their disorder. Established this connection,
the present study aims to bring the recent Status of the City, especially through its guidelines, the
environment of work. The quality of life of a city is directly linked to the balance of the work environment,
for which the instruments of urban policy can and should be used by municipalities for the improvement
of this important aspect of daily life of workers.
* Graduada em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS, Mestranda em Direito pela Universidade
de Caxias do Sul – UCS e Procuradora Federal.
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1. INTRODUÇÃO
Pereira (2003, p. 11) assevera que as pessoas que migravam do campo para a
cidade imaginavam que o simples movimento de migração era suficiente para obter
oportunidades de vida, de trabalho e consequentes ganhos financeiros. Porém, o que a
migração realmente gerou em volta das cidades cosmopolitas atuais foi um cinturão de
pobreza e miséria, criando a periferia das grandes cidades, que são lugares sem as
mínimas condições de habitabilidade, com as pessoas vivendo em condições subumanas,
sem qualquer dignidade.
Segundo Rocha (1999, p. 6-8), a urbanização designa o processo pelo qual a
população urbana cresce em proporção superior à população rural, sendo que esse
processo suscita grande preocupação nas autoridades políticas e científicas internacionais,
na medida em que o crescimento populacional desordenado traz implicações de variadas
ordens, principalmente no que tange à qualidade de vida das pessoas, saúde, educação,
violência urbana e impactos ao meio ambiente. Além disso, destaca o autor, o desemprego
é outro ingrediente explosivo na crise urbana.
Torres (1995, p. 173-174) ensina que a rapidez do processo de urbanização no
Brasil teve características inéditas em termos mundiais, tendo o país, desde 1970, se
transformado numa nação urbana. Algumas raízes desse crescimento urbano,
contraditoriamente, se encontram nas áreas rurais, já que a “modernização da agricultura”
contribuiu substancialmente para a “expulsão” da população rural. Argumenta o autor:
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Independentemente da ocorrência mais intensa de poluição, oriunda diretamente do processo
de industrialização, a urbanização, dentro desses parâmetros de escassez de recursos para
políticas sociais, contribuiu crescentemente para a degradação do ambiente. O espaço foi
ocupado de maneira desordenada, a coleta de lixo, o calçamento das ruas, as redes de água,
luz e esgoto nunca puderam acompanhar o ritmo de crescimento das cidades.
Jacobi (1996, p. 178) explica que a crise econômica que persiste desde a década
de 1980 faz com que um número crescente de famílias não tenha outra opção senão
ocupar solo urbano localizado em áreas de proteção de mananciais, provocando uma
degradação de fontes de água potável e do seu entorno.
Antunes (2008, p. 184) esclarece que os principais problemas ambientais globais
têm sua origem na urbanização e na industrialização e confessa: “na verdade, hoje nós
sabemos perfeitamente que atrás da fábrica vêm os operários, atrás das cidades vem o
crescimento das populações etc”.
Moraes (2002, p. 39) observa que, com o crescimento industrial, a população
tem-se concentrado ao redor das indústrias, das cidades e das periferias, provocando
crescimento desordenado, sem estrutura mínima para atender às necessidades vitais dos
obreiros, como, por exemplo, saneamento básico. E conclui, atribuindo à busca pelo
trabalho, como o fator responsável pela concentração desordenada, resultando na
inobservância da qualidade de vida, direito inerente à dignidade da pessoa humana,
fundamento maior da nossa Constituição.
No entanto, para Rech (2007, p. 144-145), a cidade grande não é a causa do
caos. Para o autor, a causa está no desvio de sua finalidade antropológica; na deterioração
da convivência fraterna que deveria proporcionar; na insegurança, que agora adentrou
o perímetro urbano; na falta de ordenamento das funções básicas, como emprego,
economia, divisão do trabalho; na exclusão social praticada; na indefinição de estruturas
básicas e, fundamentalmente, na falta de formação para a cidadania, papel que as escolas
modernas têm ignorado.
Diante desses registros, resta evidente que o trabalho na era industrial gerou o
desejo do homem pela cidade, acreditando que encontraria nela tudo o que precisava
para ter uma vida melhor, com mais qualidade. Contudo, como bem demonstrado pelos
autores citados, essa ocupação desenfreada dos espaços urbanos, sem qualquer
planejamento, acabou gerando um grande caos na maioria das cidades, o que prejudicou
e continua prejudicando a população operária, que acaba laborando em ambientes
inadequados e degradantes, já que para sua instalação não há normas que busquem
preservar o interesse local; assim como toda a comunidade, que, por ser o “núcleo
sensitivo dos problemas urbanos” (SANT’ANNA, 2007, p. 163), sente os reflexos em sua
vida cotidiana, em todos os fundamentos de uma vida digna: moradia ruim, trânsito
impossível, saneamento básico deficiente quando não inexistente, acesso difícil aos
serviços de saúde, insegurança, educação precária, ausência de opções de lazer, entre
outros tantos aspectos.
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3. O ESTATUTO DA CIDADE E A CONEXÃO ENTRE O DIREITO
URBANÍSTICO E O DIREITO AMBIENTAL
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sociedade, que deve orientar-se de acordo com elas, redirecionando as cidades em
prol de uma sadia qualidade de vida, traduzida pelas funções sociais (DOMINGUES,
2007, p. 93).
Já o Direito Ambiental é o conjunto de normas jurídicas que visam garantir a todos
o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, nos termos do artigo 225, da Constituição Federal.
A cidade, portanto, tem importante função ambiental, segundo Sant’anna (2007,
p. 153 e 155), que vem a ser o conjunto de atividades que objetivam garantir a todos o
direito constitucional de desfrutar um meio ambiente equilibrado e sustentável, na busca
da sadia e satisfatória qualidade de vida, para a presente e futuras gerações.
Para garantir a função ambiental da cidade, cabe ao Poder Público e à coletividade
a tarefa de defesa e preservação do meio ambiente em todas as suas formas. Para Rocha
(1999, p. 37), significa que, para a cidade cumprir sua função ambiental, a existência
de um meio ambiente urbano ecologicamente equilibrado é imprescindível, assim como
a proteção aos ambientes culturais, aos ambientes naturais e aos ambientes de trabalho.
Contudo, tal função ambiental e social da cidade não vem sendo cumprida, já
que é fácil perceber que grande parte da população brasileira está privada de boa
qualidade de habitação, trabalho, transporte e lazer.
O Estatuto da Cidade vem para ajudar as cidades a cumprirem esse papel, visando
a que as ocupações e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, tanto no campo como
na cidade, ocorram de forma planejada. Para tal, a Lei aponta diretrizes, sintetizadas
por Mukai (2004, p. 29), como profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua
finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem
danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas,
permitindo o desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares
e os da coletividade.
Segundo Mukai (2008, p. 3), as diretrizes e normas do Estatuto da Cidade não
se destinam apenas ao direito urbanístico, mas também ao direito ambiental.
Para Rocha (1999, p. 20), “a correlação entre o microssitema ambiental e o
urbanístico efetiva-se em decorrência de seus objetivos mediatos e comuns: a proteção
e defesa da qualidade de vida e do bem-estar dos habitantes da cidade”.
Rocha (1999, p. 29) ainda leciona que no tocante à proteção urbanístico-ambiental,
a ação dos Municípios limita-se espacialmente ao seu território, mas materialmente
estende-se a tudo quanto possa afetar os seus habitantes. Para tanto, sua atuação nesse
campo deve promover a proteção nos seus aspectos fundamentais: controle da poluição
em todos os níveis, preservação dos recursos naturais, restauração dos elementos
destruídos, planejamento, ordenação e ocupação do solo urbano e proteção do patrimônio
histórico e cultural. A função urbanística e ambiental, portanto, em sua atuação mais
concreta, segundo o autor, é exercida no nível municipal.
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artigo 182 da Carta da República e tomando-se como parâmetro a garantia de bem-estar
de seus habitantes.
Pelo estudado até aqui, percebe-se que pensar em proteção do meio ambiente
passa, necessariamente, pela preocupação com a qualidade de vida da população, o
que leva, invariavelmente, a refletir sobre as cidades, isto é, sobre os ambientes em
que a pessoa vive e onde busca se desenvolver com dignidade, sendo o Estatuto da
Cidade importante ferramenta para a concretização desse objetivo que é, sobretudo,
um direito fundamental.
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arrolando diversas diretrizes que terão de ser observadas pelos Municípios para a
consecução desses objetivos. Tais diretrizes são de observância obrigatória na elaboração
do plano diretor municipal, sob pena de ilegalidade e nulidade, segundo lição de Mukai
(2008, p. 41). Dentre essas diretrizes, a maioria tem grande relevância para a melhoria
da qualidade do meio ambiente do trabalho. Vejamos:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações: nessa diretriz, encontra-
se o fundamento da busca de um meio ambiente de trabalho saudável, isto é, a própria garantia
ao trabalho;
VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a utilização inadequada dos imóveis
urbanos; a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; o parcelamento do solo, a
edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana; a instalação
de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego,
sem a previsão da infra-estrutura correspondente; a retenção especulativa de imóvel urbano,
que resulte na sua subutilização ou não utilização; a deterioração das áreas urbanizadas; a
poluição e a degradação ambiental: todos esses aspectos tendem a garantir melhores condições
de trabalho;
XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda
mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e
edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais:
melhores condições de moradia tendem a refletir em qualidade de saúde dos trabalhadores,
especialmente, para aqueles que usam a moradia como local de trabalho;
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foram distribuídos à periferia mas trabalham no centro. Essa migração pendular é uma elemento
essencial do sistema de distribuição populacional porque permite à indústria funcionar sem
providenciar moradia para os pobres. É o uso residencial pelos pobres que é empurrado à
periferia (com sua infra-estrutura inadequada) e não a indústria. A migração pendular emerge
como um mecanismo, dentro de uma economia de concentração de renda, que coloca um ônus
adicional nos pobres: não são só as horas de viagem diária que provocam violência política
atomizada (Moisés e Martinez-Alier, 1977), mas também as consequências para a saúde devidas
às condições ambientais da periferia.
O meio ambiente do trabalho está inserido no meio ambiente urbano sob todos
os aspectos, sendo sua proteção e melhoria decorrências lógicas do cumprimento das
diretrizes do Estatuto da Cidade, motivo pelo qual devem os trabalhadores e suas
entidades de classe atuar para exigir dos administradores públicos municipais a
implementação do projeto de cidade.
A qualidade de vida pode ser utilizada como um conceito unificador que permite
relacionar as necessidades humanas, os ambientes individuais e societais e o
desenvolvimento humano (BARBOSA, 1995, p. 206).
Segundo Oliveira (1998, p. 79), a preocupação de melhorar a ecologia do ambiente
laboral é de suma importância, porque
o homem passa a maior parte da sua vida útil no trabalho, exatamente no período da plenitude
de suas forças físicas e mentais, daí por que o trabalho, normalmente, determina o estilo de vida,
interfere na aparência e apresentação pessoal e até determina, muitas vezes, a forma da morte.
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Segundo Moraes (2003, p. 300), a atividade legislativa municipal submete-se aos
princípios da Constituição Federal com estrita obediência à Lei Orgânica dos Municípios,
a qual cabe o importante papel de definir as matérias de competência legislativa da
Câmara de Vereadores, uma vez que a Constituição Federal não a exaure, já que usa a
expressão “interesse local” como catalisador dos assuntos de competência municipal.
Ainda segundo o eminente constitucionalista (Idem, p. 301), a competência
genérica em virtude da predominância do interesse local, prevista no artigo 30, inciso
I, da Constituição Federal, refere-se àqueles interesses que disserem respeito mais
diretamente às necessidades imediatas do Município, mesmo que acabem gerando
reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União). Entre tais competências, o autor
cita como exemplo a disciplina a respeito da exploração da atividade de estabelecimento
comercial, expedindo alvarás ou licenças para regular funcionamento. Motta e Barchet
(2007, p. 478) complementam a exemplificação de matérias em que já é tradicional a
atuação dos Municípios: serviços de coleta de lixo, fiscalização das condições de higiene
e de salubridade dos bares, lanchonetes, restaurantes e assemelhados, política de
edificações, entre outras. Contudo, explicam os autores, é a jurisprudência que fixará,
caso a caso, quais as matérias que se enquadram no conceito do artigo 30, inciso I, da
Constituição da República. Como exemplos de assuntos de interesse predominantemente
local, segundo entendimento já assentado na jurisprudência, citam: a regulação dos
horários de funcionamento do comércio local (STF, Súmula n.º 645), os serviços funerários
(STF, RE n.º 387.990/SP), a imposição às instituições financeiras da obrigação de
instalarem portas eletrônicas, munidas com detector de metais, travamento e retorno
automático e vidros à prova de balas (STF, RE n.º 240A06/RS) etc.
Da maioria dos exemplos citados, extrai-se vinculação direta com o meio ambiente
de trabalho, em sua concepção mais ampla, conforme já analisado anteriormente.
O artigo 30, inciso II, da Constituição Federal, prevê a competência suplementar
dos Municípios, segundo a qual, cabe a esses entes suplementar a legislação federal e
estadual, podendo suprir as omissões e lacunas, mas sem contraditá-las, inclusive nas
matérias previstas no artigo 24, da Constituição Federal (MORAES, 2003, p. 303).
A decisão da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial
29.299-6/RS, relatado pelo Ministro Demócrito Reinaldo, julgado em 1994, foi
justamente nesse sentido, ou seja, de que a legislação municipal deve restringir-se a
atender às características próprias do território em que as questões, por suas
particularidades, não contem com o disciplinamento consignado na lei federal ou estadual,
não podendo tornar ineficazes os efeitos da lei que pretende suplementar. Portanto, a
suplementação visa à regulamentação pelos municípios das normas legislativas federais
ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais.
Antunes (2008, p. 87), ao analisar a competência municipal em matéria ambiental,
expõe que não há dúvidas de que o meio ambiente está incluído no conjunto de atribuições
legislativas e administrativas municipais. Afirma o autor:
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A importância dos Municípios é evidente por si mesma, pois as populações e as autoridades
locais reúnem amplas condições de bem conhecer os problemas e mazelas ambientais de cada
localidade, sendo certo que são as primeiras a localizar e identificar o problema. É através dos
Municípios que se pode implementar o princípio ecológico de agir localmente, pensar globalmente
[grifo do autor].
Rocha (1999, p. 33) defende que o Município pode exercer seu poder fiscalizatório
na defesa e proteção ambiental, inclusive, em relação ao Estado e à União, suas
autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, para observância da
legislação federal e estadual, tendo em vista os interesses dos munícipes por um meio
ambiente urbano ecologicamente equilibrado; pode a entidade municipal, inclusive,
utilizar de instrumentos processuais coletivos, como a ação civil pública (Lei n.º 7.347/85)
na tutela dos interesses difusos e coletivos, incluído o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado e à vida com dignidade nos espaços urbanos.
O artigo 23, da Constituição Federal dispõe sobre a competência material comum
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na proteção do meio
ambiente, especialmente quando prevê, no inciso VI, a proteção do meio ambiente e o
combate à poluição em qualquer de suas formas. Para Antunes (2008, p. 89), a
compatibilização constitucional dos Municípios para darem combate à poluição e proteger
o meio ambiente com o princípio da legalidade somente ocorre com a existência de uma
legislação municipal própria sobre o assunto e, principalmente, com a sua aplicação aos
casos concretos.
Para a concretização da competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer
de suas formas, prevista no artigo 23, VI, da Constituição Federal, Mukai (2008, p. 97)
sugere a aplicação do princípio da subsidiariedade, pelo qual se entende que os entes de
maior grau devem abster-se de se imiscuir e atuar na solução de problemas que o ente
menor, por suas próprias forças, tenha condições de resolver. Assim, a lei complementar,
prevista no parágrafo único do mesmo dispositivo constitucional, deveria estabelecer
que em todos os casos de proteção ambiental (licenciamento, fiscalização, controle e
aplicação de sanções), em primeiro lugar, compareceria o Município para solucionar a
questão; se suas forças, recursos técnicos e financeiros, entre outros, não fossem
suficientes, comunicaria tal fato ao Estado, que passaria a atuar sobre o caso; somente
se o Estado não solucionasse a questão, passaria a intervir a União. Só assim teríamos,
segundo o autor, a pretensa cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios, com vistas ao equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito
nacional. A inexistência de tal regra, para Antunes (2008, p. 92), só confirma que vivemos
muito mais em um federalismo competitivo do que um federalismo cooperativo.
Mukai (2004, p. 28) observa que, não obstante a competência concorrente (artigo
24 da Constituição Federal) da matéria urbanística, a grande massa de normas
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urbanísticas pertence mesmo à competência municipal, em razão do disposto no artigo
182 da Carta Magna, podendo o Município editar seus planos de desenvolvimento
urbano, seu zoneamento, distribuindo as atividades exercitáveis, disciplinando o
parcelamento do solo, entre outras definições.
Assim, por meio de normas que concretizam o Plano Diretor, como é o caso do
Código de Posturas, o Código de Obras e o Código Tributário, é possível o Município
garantir melhor qualidade ao meio ambiente do trabalho, pois tais regras terão o condão
de exigir construções e instalações que levem em conta o bem-estar da população
(especialmente a operária, que viverá em contato direto com aquele ambiente), assim
como observem a proteção do meio ambiente como um todo.
Rocha (1999, p. 24) relembra que na matéria urbanística e ambiental, a
competência municipal não é meramente suplementar às normas gerais federais ou
estaduais, mas deriva do interesse local. Afinal, sustenta o autor, “as pessoas moram e
se relacionam, na grande maioria das vezes, no espaço urbano”. E segue: “os processos
de construção das condições materiais de vida, tanto quanto os modos de viver, expressos
em valores, hábitos, comportamentos, atitudes, crenças, quer o viver, trabalhar e lutar,
ocorrem na cidade”.
E para reforçar a competência dos Municípios, Rech (2007, p. 42) refere que o
Estado Federal terá tantas preocupações no futuro com questões globais que, cada vez
menos, sobrará tempo para cuidar das questões locais, que dizem respeito à garantia
de direitos, ao bem-estar e ao exercício da cidadania exigidos pelo cidadão.
A execução da política urbana, prevista no artigo 182, da Constituição Federal,
é a mais especial das competências legislativas dos municípios. Contudo, a solução das
questões das cidades, não é responsabilidade isolada da municipalidade. Afinal, segundo
Vichi (2007, p. 123 e 125), executar política urbana não é sinônimo de custear (sozinho)
a execução. Logo, segue o autor, “é forçoso reconhecer-se que a atribuição de competência
material exclusiva para execução de política urbana outorgada aos Municípios não pode
ir além do manuseio dos instrumentos urbanísticos previstos na legislação aplicável”.
Para Rech (2007, p. 91), não há dúvidas de que o fortalecimento dos Municípios
é a forma de o Estado chegar até a população e assegurar direitos, mas o poder local
precisa também utilizar de forma efetiva as atribuições e as competências previstas na
Constituição Federal, organizando e criando condições ideais, mediante um ordenamento
jurídico local e de um projeto de cidade e de município não excludente, mas que assegure
direitos fundamentais a todos os cidadãos.
A competência dos Municípios para legislar em matéria urbanística e ambiental,
com vistas ao pleno desenvolvimento da política urbana, em prol do bem coletivo, da
segurança e do bem-estar dos cidadãos, ou seja, incluídos os trabalhadores, está mais
do que demonstrada, só restando ao Poder Público municipal efetivamente assumi-la,
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inclusive buscando o apoio das outras esferas da federação para a consecução da tarefa
de concretizar o direito da população de viver em um ambiente, também compreendido
o laboral, ecologicamente equilibrado, saudável e seguro.
Dentre os instrumentos da política urbana, o artigo 4°, inciso III, da Lei n.º
10.257/2001, prevê o planejamento municipal. Tal planejamento pode ser executado
por meio de diversas ferramentas, sendo o plano diretor (alínea a) a principal.
A Constituição da República, em seu artigo 182, § 1º, dispõe que o plano diretor,
aprovado pela Câmara Municipal, é obrigatório para cidades com mais de vinte mil
habitantes, sendo o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão
urbana. Além disso, disciplina no § 2º, que a propriedade urbana cumpre sua função
social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no
plano diretor. Logo, a existência do plano diretor é imprescindível, justamente porque
é por meio dele que o administrador público poderá atestar o cumprimento da função
social do imóvel pelo proprietário, ou seja, o uso do bem em prol da coletividade.
O plano diretor, segundo consta do artigo 40, do Estatuto da Cidade, repetindo a
Constituição, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana,
devendo englobar o território do Município como um todo (§ 2° do mesmo dispositivo).
Acerca da importância da consideração da totalidade do Município nessa atividade
de planejamento em busca da qualidade de vida de todos os cidadãos, Moraes (2002,
p. 37) faz importante comentário no tocante aos trabalhadores rurais e sobre a interação
do meio ambiente geral com o do trabalho, quando aponta que a contaminação do meio
ambiente do trabalho rurícola influencia, consideravelmente, no ambiente de vida do
trabalhador rural, “pois, na maioria dos casos, o meio agrícola é, ao mesmo tempo, o
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lugar de moradia do obreiro e de onde retira seu sustento e de sua família”. Assim, a
proteção do local de trabalho do rurícola está em relação direta com a sua própria
qualidade de vida, uma vez que trabalha na terra e dela extrai os alimentos.
Para Rech (2007, p. 161), independentemente do tamanho da cidade, a adoção
do Plano Diretor é indispensável e necessária para qualquer uma que queira iniciar um
processo de crescimento ordenado, bem como garantir direitos em nível local, no presente
e especialmente para o futuro.
O Estatuto da Cidade, em seu artigo 41, traz outras situações, além do número
de habitantes, que obrigam o Município a adotar o plano diretor, entre as quais, destaca-
se o inciso V, que dispõe sobre a indispensabilidade de a cidade inserida na área de
influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de
âmbito regional ou nacional ter um plano diretor, o que se mostra em perfeita consonância
com as diretrizes da política urbana.
O planejamento urbano deve estar vinculado ao planejamento econômico e social.
Assim, pelo fato de os Municípios não terem competência em parâmetros suficientes
para que sua atuação ocorra de forma eficaz, acabam sequer utilizando a competência
que sempre foi sua, a de implantar o plano diretor. Nesse sentido, assevera Rech (2007,
p. 101), “o legalismo na aplicação do Direito, somado à cultura centralizadora, tem
inibido os municípios para criarem mecanismos de proteção do cidadão e garantir-lhes
os direitos fundamentais”.
O plano diretor é a norma geral de planejamento da cidade, devendo ser
complementada para sua efetiva concretização por outras leis, como a do zoneamento
ambiental, do parcelamento do solo, o Código de Obras, o Código de Posturas, a lei de
proteção ambiental e da paisagem urbana, e também por outros planos, como os de
renovação urbana, de distritos industriais, de áreas e locais de interesse turístico, entre
outros (MUKAI, 2004, p. 37-38).
Apenas para reforçar a importância do plano diretor no planejamento municipal,
importa referir que o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual
deverão incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas, conforme disposto no §
1°, do artigo 40, do Estatuto da Cidade.
Para Rech (2007, p. 99), “um projeto de cidade sustentável implica regulamentar
a convivência local, não criando novas normas de Direito Civil e Penal, mas condições
para que essas normas privativas da União sejam concretizadas na convivência equilibrada
na cidade”.
O papel do plano diretor, justamente por ser o instrumento básico da política de
desenvolvimento e expansão urbana, é exatamente esse: criar condições para concretizar
os direitos sociais no ambiente em que vivem as pessoas, em especial, as funções sociais
da cidade (habitação, trabalho, circulação e recreação).
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6.2 O ZONEAMENTO AMBIENTAL
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trabalhadores, bem como, frequentemente, causa danos profundos ao meio ambiente,
dando causa ao que chama de “convivência difícil”, que é, quase sempre, danosa para
ambas as partes, ou seja, comunidade e indústria.
Contudo, é preciso ter claro que, na atualidade, tal caos somente é gerado se
as normas de zoneamento, embasadas nas linhas gerais do plano diretor, não forem
respeitadas. Para Antunes (2008, p. 191), opor-se o pretenso direito de poluir ao
direito humano fundamental à boa saúde e ao meio ambiente sadio é antijurídico,
além de cruel, tendo o Poder Público Municipal parcela muito relevante, senão a maior,
de culpa, quando não impede a construção de habitações em locais de risco, como no
entorno de fábricas.
Mas o zoneamento também é importante ferramenta diante de eventual necessidade
de orientação do direito de pré-ocupação ou de relocalização da empresa, esta muitas vezes
preferida pela própria indústria, como refere Antunes (2008, p. 190), especialmente diante
dos riscos que a fábrica tem de assumir ao permanecer cercada pela comunidade.
Rech (2007, p. 153) explica que o zoneamento dos espaços urbanos, com a
descentralização e a criação de novos centros, é uma forma eficiente de organizar
comunidades bem planejadas, com o incremento de atividades econômicas específicas,
que evitem o congestionamento do trânsito e dos transportes, bem como garantam maior
qualidade de vida às populações locais.
O zoneamento ambiental urbano dá-se mediante a criação de zonas, tais como a
industrial, a estritamente industrial, a predominantemente industrial, a de uso
diversificado, a residencial, a residencial popular, a comercial, as institucionais e de
lazer, as de atividades noturnas, entre outras.
O adequado zoneamento da cidade e o respeito às regras estabelecidas tende
a gerar melhores condições de vida aos trabalhadores e um meio ambiente de trabalho
equilibrado.
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As limitações administrativas são formas de restrições do Estado sobre a
propriedade privada, impostas pelo interesse público. Segundo Di Pietro (2007, p. 117-
118), elas decorrem de normas gerais e abstratas, que se dirigem a propriedades
indeterminadas, com o fim de satisfazer interesses coletivos abstratamente considerados.
O interesse público a que atende a limitação pode referir-se à segurança, à salubridade,
à tranquilidade pública, à estética, à defesa nacional ou qualquer outro fim em que o
interesse da coletividade se sobreponha ao dos particulares. A limitação administrativa
pode constituir-se em uma obrigação de não fazer ou deixar de fazer (negativa), que é
a mais comum, mas também de fazer (prestação positiva).
A operação urbana consorciada, disciplina pelos artigos 32 a 34 do Estatuto da
Cidade, é o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público
municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e
investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área (a) transformações
urbanísticas estruturais, (b) melhorias sociais e (c) a valorização ambiental. Segundo
Lomar (2006, p. 251), os três objetivos devem se concretizar cumulativamente por meio
da operação urbana consorciada, pois é justamente essa exigência que a diferencia de
outras possíveis intervenções urbanísticas.
As operações urbanas consorciadas visam preservar, recuperar ou transformar
áreas urbanas. Assim, tal instrumento pode, por exemplo, prever a regularização de
construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação, conforme
disposto no inciso II, do § 2°, da Lei n.º 10.257/2001. Contudo, importa reforçar que
o objetivo da operação urbana consorciada deverá estar previsto em lei própria e
devidamente amparada nas diretrizes do plano diretor.
A participação de toda a sociedade é possível nas operações urbanas consorciadas,
em razão do próprio princípio da participação popular ou da gestão democrática da
cidade que se extrai do contexto do Estatuto da Cidade. Todavia, referindo-se ao meio
ambiente do trabalho, imprescindível destacar a participação dos trabalhadores, que
podem ser os usuários permanentes de imóveis incluídos na operação.
O inciso VI, do artigo 33, do Estatuto da Cidade, estabelece a necessidade da
lei que aprovar a operação urbana consorciada prever a contrapartida a ser exigida dos
proprietários, usuários permanentes e investidores privados em função da utilização dos
benefícios previstos nos incisos I e II do § 2o do artigo 32 da mesma Lei. Assim, todos
que, de alguma forma, se beneficiarem com os resultados da operação, deverão contribuir,
sob pena de, se não o fizerem no início, estarem se locupletando ilicitamente em
detrimento dos demais investidores, conforme entendimento de Mukai (2008, p. 29).
O disciplinamento desses dois instrumentos jurídicos e políticos no plano diretor
é de fundamental importância para o desenvolvimento da cidade voltado à busca da
dignidade humana de seus habitantes, em especial, da classe trabalhadora, que pode
almejar desempenhar suas atividades laborais em ambientes mais agradáveis, salubres
e seguros a partir do efetivo uso dessas ferramentas pelo Poder Público municipal.
Dentre os instrumentos da política urbana, o artigo 4°, inciso VI, da Lei n.º
10.257/2001, apresenta o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e o Estudo Prévio
de Impacto de Vizinhança (EIV).
O EIV, assim como o EIA, é um aperfeiçoamento das análises de custo/benefício
de um determinado empreendimento. Segundo Antunes (2008, p. 315), ambos são
espécies de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA), previsto na Constituição para todas
as atividades efetiva ou potencialmente poluidoras.
O Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança, conforme disposto no artigo 37 do
Estatuto da Cidade, será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos
do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na
área e suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes questões:
adensamento populacional; equipamentos urbanos e comunitários; uso e ocupação do
solo; valorização imobiliária; geração de tráfego e demanda por transporte público;
ventilação e iluminação; e paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.
Antunes (2008, p. 316-317) apresenta em sua obra “Direito Ambiental”, o Estudo
de Impacto de Vizinhança do Município de São Paulo. O Relatório de Impacto de
Vizinhança previsto na Lei Municipal paulista n.º 11.426/93, deve ser instruído por
diversos documentos, entre os quais, alguns necessários para a análise das condições
ambientais específicas do local e seu entorno, como dados sobre produção e nível de
ruído e sobre produção e volume de partículas em suspensão e de fumaça. Tais
indicadores são de extrema relevância para a garantia da qualidade do meio ambiente
do trabalho.
O Estudo de Impacto de Vizinhança, segundo Soares (2006, p. 311-312), é uma
exigência que não visa diminuir a liberdade do proprietário como na restrição ou na
limitação administrativa, mas apenas adequar o empreendimento ao meio do qual fará
parte. Nesse sentido, a autora reforça que, se o impacto puder ser sentido em função
de obras realizadas fora do perímetro urbano, nada mais prudente que a realização do
respectivo EIV, para que o Poder Público evite a ocorrência de distúrbios da mesma
forma que tenta amenizá-los naqueles empreendimentos realizados dentro do próprio
perímetro urbano.
O Relatório de Impacto de Vizinhança (RIVI) destina-se a permitir que os órgãos
competentes da Prefeitura examinem a adequação do empreendimento no respectivo
local e entorno, com relação aos aspectos do sistema viário e de transportes, produção
de ruídos e resíduos sólidos, capacidade de infraestrutura instalada etc. Mukai (2008,
p. 36) entende que as restrições que eventualmente forem feitas pelo Poder Público
municipal em decorrência do RIVI não são de natureza civil, mas sim, limitações
administrativas, mais propriamente de caráter ambiental urbanístico.
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O artigo 38 do Estatuto da Cidade dispõe que a elaboração do EIV não substitui
a elaboração e a aprovação de EIA, requeridas nos termos da legislação ambiental. No
entanto, destaca Mukai (2008, p. 36), enquanto o EIA é exigível somente nos casos em
que haja potencialmente, significativa degradação do meio ambiente, o EIV é exigível
em qualquer caso, independentemente da ocorrência ou não de significativo impacto de
vizinhança. Contudo, o plano diretor é que terá o papel de definir os empreendimentos
e atividades privados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de
estudo prévio de impacto de vizinhança para obter as licenças ou autorizações de
construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal, segundo
consta do artigo 36 da Lei n.º 10.257/2001.
A Lei n.º 6.938/81, em seu artigo 10, deu competência exclusiva para os Estados-
membros licenciarem a construção, instalação, ampliação e funcionamento de
estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva
ou potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar
degradação ambiental. Mukai (2008, p. 58) critica tal dispositivo, inclusive declarando-o
inconstitucional, pois atividades potencialmente poluidoras em âmbito puramente local
não teriam por que ser licenciadas pelo órgão estadual, já que o interesse é local. Destaca
o autor:
Com o plano diretor em vigor não será mais possível contrariar a competência exclusiva do
Município em exercer suas atividades de licenciamento e sancionatórias em relação ao meio
ambiente, pois competir-lhe-á mais do que aos Estados-membros, dar cumprimento à função
ambiental da propriedade.
Com esse espírito, o Estado do Rio Grande do Sul, com a aprovação do Código
Estadual de Meio Ambiente (Lei Estadual n° 11.520/2000), que estabelece em seu artigo
69, que “caberá aos municípios o licenciamento ambiental dos empreendimentos e
atividades consideradas como de impacto local, bem como aquelas que lhe forem
delegadas pelo Estado por instrumento legal ou Convênio”, vem desenvolvendo, por
meio da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA), o incremento do processo de
descentralização do licenciamento ambiental municipal para aquelas atividades cujo
impacto é estritamente local, e que estão descritas no Anexo I da Resolução 102/2005
do Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA), nos seus Anexos II e III, referentes
a manejo florestal (adicionados pela Resolução 110/2005), nas atividades adicionadas
pela Resolução 111/2005, bem como nas adições relativas ao licenciamento de atividades
de mineração descritas pela Resolução 168/2007.
Assim, também o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e o Estudo Prévio
de Impacto de Vizinhança (EIV), se previstos e usados de maneira adequada, poderão
ser importantes instrumentos na melhoria do meio ambiente do trabalho.
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CHANTAL MOUFFE – ENTREVISTA
1
Doutorando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR.
2
Mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR.
3
Mestrando em Direito do Estado pela UFPR.
4
Mestrando em Direito do Estado pela UFPR.
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a junção de duas tradições que vão por lados distintos, pois por muito tempo a democracia
era uma coisa que os liberais entendiam como muito negativa. A união ocorreu, na
verdade, em sua oposição comum ao absolutismo. Carl Schmitt faz uma reflexão similar
quando diz em seu livro The Crisis of Parliamentary Democracy que essa união – que é
contra a natureza – pode ter funcionado em algum momento quando possuíam um
inimigo comum, mas agora, ele diz, está claro que são duas tradições que não caminham
juntas pois, para ele, o liberalismo nega a democracia enquanto a democracia nega o
liberalismo. O argumento de Macpherson é distinto, ele busca mostrar como o liberalismo
foi democratizado enquanto a democracia foi liberalizada. Mas os dois, de alguma
maneira, reconhecem que não há nenhuma união necessária entre o liberalismo e a
democracia. Contrariamente a Habermas, que fala da co-originalidade dos princípios
de liberdade e igualdade, eles ocorrem necessariamente juntos, enquanto tanto
Macpherson quanto Schmitt têm razão de mostrar a articulação histórica por trás deste
processo – que não há uma vinculação necessária. Logo, resta claro que, para nós, no
âmbito ocidental, quando falamos de democracia falamos da maneira como o ideal
democrático foi inscrito em uma tradição particular. O que também foi reconhecido por
muitos historiadores, ou seja, de que a tradição judaico-cristã possui uma importância
muito grande na maneira como nós, no ocidente, definimos a democracia. Trata-se de
uma concepção do que é a democracia, mas me parece que uma vez que isto é
reconhecido, realmente, pensar que este modelo é um modelo universalmente válido,
que deva ser o único que, por exemplo, os chineses, os árabes e os africanos têm
necessariamente que aceitar essa formulação democrática como a sua forma, não me
parece que haja nenhuma razão para acreditar nisso. Contrariamente – a Habermas e
outros autores – uma das coisas que eu critico na filosofia política atual é que eles, em
sua maioria, refletem sobre a democracia e procuram justificar, demonstrar que essa
ideia democrática como nós a entendemos possui um privilégio racional. Esta é a maneira
com a qual, por exemplo, se todas as pessoas pudessem estar em uma situação na qual
pudessem discutir racionalmente, teriam que aceitar esta forma racional, a qual tem um
valor universal porque é a fórmula democrática que as pessoas racionalmente escolheriam
se não estivessem influenciadas por alguns interesses particulares. As maneiras de
argumentar são distintas, no caso de Rawls, se estivermos sob um véu de ignorância, ao
contrário para Habermas, se for seguido um procedimento de argumentação, cada um
possui sua estratégia específica, mas basicamente o que todos querem é provar,
demonstrar o caráter de racionalidade superior do modelo liberal democrático. E isso
é justamente o que quero questionar e dizer, à maneira de Wittgenstein, que se trata de
um jogo de linguagem político particular, e sobre esta base eu não quero rechaçá-lo. Na
medida em que, uma ideia de democracia que corresponde a uma tradição e a todo um
tipo de cultura é uma coisa que é perfeitamente válida porque, no que diz respeito ao
mundo ocidental, minha estratégia é a de que precisamos radicalizar esta ideia de
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modelo deliberativo e modelo agonístico. Eu posso imaginar que alguns autores
apresentam seu modelo deliberativo de tal maneira, que a diferença com o modelo
agonístico seja somente o nome. Mas para poder julgar especificamente precisava saber
o que da proposta de Nino que se aproxima ao que estou dizendo (a democracia radical).
Pode haver um modelo de democracia deliberativa que comporte o conflito, mas é preciso
saber quais são os mecanismos, as instituições (que propõe). É certo que eu não estou
contra a deliberação, evidentemente, o modelo agonístico tem uma grande parte de
deliberação. Eu diria que as diferenças consistem em que, por exemplo, no modelo
agonístico se parte do fato de que o político sempre apresenta um caráter partisan, não
haverá, nunca, a possibilidade de uma reconciliação final, enquanto a proposta de
Habermas vem em sentido contrário. Ele reconhece que é uma idéia regulativa, que não
será possível empiricamente, mas que é necessário tentar chegar o mais próximo possível,
é um ideal que nunca se poderá alcançar. Eu parto da premissa que toda comunicação
em política é distorcida, já que as pessoas participam (“there´s partisanship”), e que não
se pode ter como idéia regulativa algo que é conceitualmente impossível. Na realidade,
eu diria que as diferenças entre as concepções agonísticas e deliberativas são
fundamentalmente de tipo ontológico, pois partem de duas concepções ontológicas
completamente irreconciliáveis. Acredito que em alguns casos não haja diferenças entre
as duas propostas, porque, por exemplo, em certos casos, tanto Habermas quanto eu
proporíamos a mesma coisa. Mas, de todas as maneiras, há uma grande diferença, pois
quem parte de uma problemática agonística não irá buscar as instituições que vão permitir
chegar a um acordo, mas as instituições que permitirão o dissenso. Desde o princípio,
trata-se de pensar como se pode multiplicar as posições e não de encontrar como elas
poderão permitir a reconciliação. Mas dentro disto haverá uma série de instituições que
serão comuns evidentemente. Uma vez discuti com James Bohman, que, para haver a
verdadeira deliberação, é necessário que haja possibilidade de escolhas entre alternativas
reais, bem diferenciadas, senão não é uma deliberação. Esta é minha crítica fundamental
à posição que se chama “pós-política” da terceira via, porque, evidentemente, há muita
deliberação, mas deliberação sobre algo que não oferece nenhuma alternativa. Portanto,
se uma pessoa não pode escolher entre duas alternativas bem diferenciadas, eu não
chamo isso de deliberação. A deliberação, para mim, pressupõe a possibilidade de
decisão entre duas posições realmente diferentes. E, é por isso que eu insisto que a
distinção entre direita e esquerda é fundamental. Isso não significa que devem se manter
os sentidos tradicionais de esquerda e direita. Eles podem ser reformulados, alguém
poderia chamar de modo diferente e não de “direita e esquerda”, mas como foi
organizando assim o panorama político, então acho que vale a pena manter esta distinção.
Mas o que está em jogo aqui é o reconhecimento da divisão sócia, e é uma divisão que
nunca poderá ser realmente superada. Para mim, a categoria de esquerda e direita
indica isso. Que sempre haverá uma forma de conflito na sociedade que é irreconciliável,
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em que o conflito agonístico, que não deixa de ser um antagonismo, toma a forma
domesticada – as feministas não gostam desta palavra, pois o “doméstico” possui
conotações que não as agrada –, e essa imagem do animal selvagem que foi domesticado
é boa porque isso mostra que essa domesticação nunca será total. Um antagonismo é
sempre precário e está sempre mantido dentro de certos limites que sempre são precários.
Se alguém tenta domesticá-lo de forma que não exista, haverá a eliminação do
antagonismo. Penso que o antagonismo não pode ser eliminado, pode apenas ser
pacificado temporariamente. Esta é, para mim, uma das tarefas da democracia: encontrar
as instituições que permitem ao conflito expressar-se, de forma que não coloque em
questão a própria existência da comunidade política e não leve à guerra civil. Meu modelo
poderia se chamar modelo de deliberação agonística. Evidentemente, não elimino o
elemento de deliberação, não existem só as paixões, mas há que se reconhecer que o
antagonismo é ineliminável; que sempre haverá dois projetos hegemônicos que não
podem se conciliar; que haverá sempre um caráter partisan na política. Existem muitas
propostas agonísticas, que se denominam assim, mas que eu chamo agonismo sem
antagonismo; por exemplo eu critiquei recentemente a posição de Hannah Arendt,
sobretudo as pessoas que usam Arendt como Bonnie Honig. É um agonismo sem
antagonismo, enquanto o agonismo como eu proponho é um agonismo que sempre é
uma domesticação do antagonismo. O critério seria esse, se se reconhece o antagonismo
como deliberável. Eu diria que, na realidade, outra diferença que eu vejo entre a
perspectiva deliberativa e a agonística consiste em uma maneira distinta de entender o
pluralismo. Porque temos duas maneiras de entender o pluralismo: pluralismo com
antagonismo e pluralismo sem antagonismo. Pois a maneira liberal, em um sentido muito
amplo, em Habermas, por exemplo, é aceitar o pluralismo, o que se encontra em Rawls
e em Habermas, mas concebê-lo da seguinte maneira, de que no nosso mundo moderno
há uma pluralidade de valores, já não há uma visão única do bem comum (eudaimonia),
e isto é justamente o que há de específico no mundo moderno. E, evidentemente, não
seremos capazes de ocupar sempre todas essas posições, ou, como se diz em inglês:
“put into the shoes of everybody else” (colocar-se no lugar dos outros). Mas o que se
necessita, é o que chama Arendt, retomando a expressão de Kant, de um pensamento
ampliado (“enlarged thought”), precisa ter a mente aberta às perspectivas dos outros, é
preciso reconhecer a pluralidade. Contudo, este tipo de pluralismo não aceita que este
necessariamente implique a existência de um conflito antagônico, porque pensa que
finalmente nós vamos nos colocar nos sapatos dos outros, por algumas limitações do tipo
empírico. Evidentemente, não se pode ocupar este lugar, mas se o vemos de um ponto
de vista desde cima, colocados juntos, todos estes valores podem constituir um todo
harmonioso. Isso é que chamo de um pluralismo sem antagonismo. Há outra concepção
de pluralismo, que se encontra em Max Weber e em Nitzsche, em que os dois reconhecem
que o pluralismo implica o antagonismo. Por exemplo, Nietzsche fala da guerra entre
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por experts, ou por juízes, porque são muito complicadas para serem feitas de um modo
democrático. Esse é um ponto que Norberto Bobbio mostra, o papel dos QUANGOs
(quasi-autonomus non-governmental organisation), pensando na democracia parlamentar,
quando mais e mais decisões importantes são retiradas dos parlamentos e levadas para
comitês, experts, cientistas, que irão decidir, ou para o Judiciário, então, é um movimento
que retira muitas decisões importantes do campo onde elas poderiam ser tomadas
mediante a participação, ainda que uma participação parlamentar limitada, mas, ao
revés, elas são levadas para um campo onde podem ser feitas num modo imparcial. Essa
é uma característica da despolitização de nossas sociedades. Mas, por outro lado, eu
também acredito que o sistema legal é muito importante, de forma que estou em completo
desacordo com Agamben e outros, quando acreditam que uma sociedade democrática
deveria estar além do Direito, além do Estado, não havendo mais Estado, não havendo
mais Leis. Mas o que está por trás dessa ideia? Mesmo porque Agamben nunca apresenta
uma proposição concreta disso, é encantador precisarmos de uma nova Política, mas
ele nunca diz nada sobre como ela seria, como seria uma comunidade à qual não
pertencemos, uma sociedade sem Direito e sem Estado, sem nada. O fantasma por trás
disso é a possibilidade de uma sociedade completamente reconciliada, uma sociedade
na qual sequer precisaríamos de instituições. Uma vez que se reconhece que a sociedade
é necessariamente dividida, precisamos de instituições para lidar com isso, precisamos
do Direito, precisamos dos Estados. A ideia dessa sociedade além do Direito e do Estado
é completamente ilusória e perigosa. Eu ainda vejo uma similaridade com a ideia de
democracia absoluta da “Multidão” (“absolute democracy of the ‘Multitude’”) de Hart e
Negri, para além da hegemonia, além da política, além do Direito, além dos Estados,
viveríamos em algum tipo de reconciliação feliz, isso para mim é uma visão de política
que acho completamente errada. Mas, novamente, aqui estamos nós, enfrentando o que
eu vejo como duas formas rivais e diferentes de compreensão do Político, elas são, por
um lado, o que eu chamaria de visão associativa do político e visão dissociativa do político.
A visão associativa, que encontramos em muitos diferentes pensadores, como Agamben
e outros, mas também em Hannah Arendt, por exemplo, essa ideia de que a política é
agir em conjunto, e isso, para algumas pessoas, não requer nenhum Direito, instituições.
Uma vez que se supere o capitalismo, essa é a ideia proposta pelo comunismo, quando
se atinge o consenso, não haverá mais conflito que necessite de instituições para lidar
com ele. Algumas pessoas não vão tão longe, no sentido de não mais precisarmos de
instituições, mas ainda tem a idéia de que política é uma atuação conjunta, é também,
basicamente, a concepção de Rousseau, de que os homens são bons e que quando nos
livrarmos de todas as instituições que criam conflitos, obteremos essa harmonia. Há uma
outra concepção do Político, que é aquela à qual eu pertenço, que é a concepção
dissociativa de política, se a dimensão do político é a de que nas sociedades há hostilidade,
há conflito, e ela não é contrária a Marx, ao que ele disse, à sociedade de classes, porque
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pode ter um papel protetivo muito importante. Estamos reconsiderando aquelas
instituições e começando a perceber que o fato de elas terem sido retiradas pelo
neoliberalismo não significa progresso democrático, mas, pelo contrário, é algo muito
importante que nós perdemos. Essa posição não representa toda a esquerda, Hart, Negri,
Agamben não reconhecem isso, mas parte da esquerda também está revisitando o papel
das instituições e reconhecendo sua importância.
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possa fazer isso, precisamos dizer quem não vai poder fazê-lo; é isso que eu chamo de
inclusão-exclusão, pois para definir a democracia deve-se estabelecer os seus limites, e
esses limites significam que será preciso dizer quem estará fora do povo. Isto é inevitável,
não se tem democracia sem a inclusão e a exclusão. Mas é claro, essa inclusão-exclusão
é sempre contestável. Quem nós vamos incluir? Imigrantes? Quais imigrantes? Quais
critérios? Há uma luta constante sobre os limites da democracia. Eu penso que sob este
ponto de vista, a ideia liberal do pluralismo e do universalismo é importante porque este
aspecto desafia constantemente os limites impostos pela tradição democrática, então,
por um lado, um regime puramente liberal não irá aceitar os limites para definir o povo,
não vai autorizar o exercício da cidadania democrática. Porque ter-se-ão direitos, e essa
é uma das minhas críticas ao cosmopolitismo, nós teremos direitos mas não teremos a
democracia para exercê-los. Penso que, deste ponto de vista, esta lógica liberal de direitos
universais, que não nos possibilita exercer a democracia, não será nada. Por outro lado,
caso se tenha somente a lógica democrática, sem esse constante desafio do universalismo
liberal, estes limites não poderão ser alterados, não poderão se tornar mais inclusivos.
É claro que não se tornará completamente inclusivo, é preciso ter sempre alguém excluído
para que possa defini-lo. Mas, também, é preciso enxergá-los como uma tensão, pelo
fato da articulação entre liberdade e igualdade, como tensão produtiva, isso é o que eu
valorizo na democracia liberal. Mas precisamos reconhecer também que há uma luta
constante pela hegemonia entre estes dois princípios, haverá um momento de domínio
do princípio liberal, em outros momentos haverá o predomínio do princípio igualitário,
ou democrático se se prefere. Na história de Europa, particularmente, é possível ver
momentos de democracia liberal e outros liberal-democráticos. Até nas teorias liberais
consegue-se ver, por exemplo, Rawls é definitivamente um liberal-democrático, já
Habermas é um democrata liberal. Porém, hoje, precisamente como consequência pela
quase completa hegemonia do neoliberalismo, o aspecto democrático tornou-se bem
subordinado, é por isso que pessoas como Jacques Rancière e Colin Crouch falam em
pós-democracia. Nós vivemos, de fato, hoje, em sociedades que se dizem democráticas,
porém nas quais os elementos democráticos foram reduzidos ao mínimo, por conta desta
hegemonia do liberalismo. E os critérios para se definir uma sociedade como democrática
são o Estado de Direito (“Rule of Law”), eleições regulares, e algumas declarações
dizendo que vão respeitar os direitos humanos. Isto é suficiente para chamá-la de
democracia, mas ela é só é democrática no nome. O que está acontecendo na América
Latina é contrário desta situação, até porque vocês sofreram muito mais as consequências
do neoliberalismo do que nós tivemos até o momento. Eu acho que está havendo uma
grande reação ao neoliberalismo; e, na verdade, o que eu vejo nos presentes governos
democráticos de esquerda na América Latina é um retorno ao acesso da dimensão
democrática-liberal. Então, aqui (na América Latina) o aspecto liberal tornou-se
subordinado ao aspecto democrático. Estou aqui falando, sempre, do ponto de vista
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particularmente que um mundo unipolar, o qual vivemos desde o colapso do comunismo,
é muito problemático. Na verdade, apesar de todos os outros problemas, o mundo bipolar
era mais equilibrado. Eu tenho certeza de que em um mundo bipolar a Guerra do Iraque
não teria sido possível, pois haveria outro poder contrastante que limitaria a ambição
dos Estados Unidos. O poder em uma ordem em que se tem apenas uma potência,
hegemônica, sem oposição é muito perigoso. Por isso, as novas formas de terrorismo,
como o Al-Qaeda, são consequências do fato de que não há canais legítimos para o povo
expressar suas resistências e, quando estes canais são ausentes, a expressão ocorre de
forma violenta. Se houvesse a possibilidade para críticas legítimas, as coisas seriam
diferentes. Pois, para George W. Bush, como pode ser lembrado, se estava “conosco”
ou “contra nós”, o povo era tratado como antagonista, além da oposição entre “civilizados”
e “bárbaros”, para aqueles que não estavam do lado do “modelo americano”. E é claro
que existem pessoas bem-intencionadas, como Daniele Archibugi, que propõe algo a
mais, como um mundo para além da hegemonia, e minha perspectiva é a de que não é
possível. Claro, um mundo unipolar é muito perigoso, mas qual é a solução, então? A
minha solução é a de que precisamos pluralizar as hegemonias. Ao invés de ter um
mundo hegemônico, temos uma pluralidade de hegemonias, uma pluralidade de blocos
regionais, os quais nunca estarão no mesmo nível, mas que terão uma espécie de equilíbrio
instável entre si. Assim, os americanos não poderão impor sua vontade. Desde esta
perspectiva, o que está acontecendo na América Latina é muito interessante, como a
reforma da UNASUL. É muito bom que a América Latina busque se organizar como
um bloco de poder regional. Eu também espero que a União Europeia se torne uma
“Europa política”, para que possa ter um verdadeiro papel político. Além do que pode
ser observado na China e na Índia. Eu acredito que já estamos nos direcionando para
um mundo multipolar. É muito interessante que quando eu comecei a falar sobre um
mundo multipolar, há anos atrás, as pessoas perguntavam sobre o que se travava. Hoje,
ao ler os jornais, a ideia de um mundo multipolar se tornou parte do vocabulário. Se
vamos pensar que outra palavra seria melhor para organizar o conceito de cosmopolitismo,
deve-se lembrar que ele é um modelo político e eu entendo que a alternativa é o mundo
multipolar. Por outro lado, se por cosmopolitismo se compreende a importância de estar
aberto ao outro, vejo isso como a expressão de uma solidariedade transnacional. Mas
entendo que se deva realizar uma distinção entre os termos para evitar confusões, este
é o motivo, por exemplo, que eu acho muito problemático o fato de o cosmopolitismo
ter se tornado um termo “da moda”. Todos querem se tornar cosmopolitas, cada um
com suas especificidades, como as 15 maneiras diferentes de cosmopolitismo. Mas qual
o sentido em se buscar redefinir este termo, para significar, basicamente que eles são
contra o universalismo? Quero dizer, o cosmopolitismo está vinculado ao universalismo,
o cosmopolitismo está ligado a uma forma do mundo democrático. Mas buscam reconhecer
diferenças, mantendo o mesmo termo, porém com um significado completamente
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deles, eles buscam, para sobreviver, emigrar, e eles são impedidos. Eu acredito que
neste plano há realmente a necessidade de uma solidariedade transnacional, mas, para
isso, seria necessário estabelecer alguma forma de protecionismo, e não devemos entender
o protecionismo de uma forma negativa. Há um antropologista francês chamado
Emmanuel Todd que está defendendo uma forma de protecionismo europeu e eu
concordo com isso, pois eu penso que a Europa deveria começar a produzir produtos
basicamente para a própria Europa e não, basicamente para a exportação. A produção
voltada para a exportação implica duas coisas, primeiro significa, como explica Emmanuel
Todd, que as consequências disso para a Europa serão negativas, pois leva as grandes
corporações transnacionais a ocupar a Europa. Nas fases anteriores do capitalismo a
produção era voltada para o mercado nacional, então os preços se relacionavam com os
trabalhadores, pois eles deveriam estar em condições de comprar os produtos. Agora,
eles procuram realizar a exportação e não se responsabilizam mais pela situação
doméstica, existe, claro, a deslocalização, o que traz consequências negativas para o país
de origem e ainda piores para o país onde o produto está sendo exportado. Assim, os
blocos regionais procuram, basicamente, primeiro produzir aquilo que é necessário para
eles, de maneira a evitar a exportação e a destruição de indústrias em outro lugar. Uma
área que considero particularmente importante é a da Soberania Alimentar (ou Produção
Autossuficiente), é uma área crucial, pois, é um absurdo quando se têm países em que
a população não possui o suficiente para comer pelo fato de que tudo que é produzido
é feito para exportação. Entendo que isso deveria ser impedido, e o seria de uma maneira
muito melhor em um mundo multipolar. Em que não haveria um protecionismo doméstico,
que é inimaginável nos dias de hoje, e o problema está em que o termo protecionismo
é subestimado, devemos pensar em algo diferente. Como no caso em que nos
responsabilizamos, não apenas por algo que é necessário para nós, mas também dos
efeitos disto em outro país, com a paralisação dessa produção voltada para a exportação,
que é destrutiva. Essa seria uma forma de solidariedade transnacional, em que seria
importante organizar movimentos como a Via Campesina, conscientizando as pessoas
sobre as condições dos outros países. É possível chamar isso de cosmopolitismo, mas
eu entendo que é confuso, pois o cosmopolitismo não possui um significado tão forte.
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na América, porque o que eles chamam de “foreclosure”, quando as pessoas estão
deixando suas casas, estão perdendo seus empregos, mas essa reação ainda não
aconteceu. Quando vi Frances tempos depois, questionei sobre o movimento, e ela disse
“não, isso leva tempo”, ela está otimista, nos anos trinta levou algum tempo, então ela
ainda está aberta à possibilidade de que aconteça. Mas é verdade, eu realmente não
acho que Obama irá governar de uma forma radical, mas ele é definitivamente melhor.
Outra coisa que acho interessante apontar é que nada substitui os movimentos sociais
reais, porque muitas pessoas afirmam que haverá uma incrível mobilização social pela
internet, é verdade que isso é importante, mobilizar as pessoas para votarem, mas depois
essa mobilização desaparece, e não se pode substituir a mobilização real das pessoas
pela internet, porque é muito fácil enviar um e-mail, no conforto da sua casa, mas é
completamente diferente de comparecer a uma manifestação. Houve muita celebração
dessa nova forma de manifestação, mas é algo muito vazio, não estou dizendo que a
internet não desempenhe um certo papel, mas não é suficiente para sustentar um
movimento, não pode substituí-lo. Nessas manifestações, essas pessoas pensam que irão
fazer uma revolução, mas não, não é suficiente, é importante pensar que nada substitui
a mobilização real. Voltando a Obama, muitas pessoas estão falando que talvez se corra
o risco de se ter um presidente de um ano, como Carter, por outro lado, as pessoas mais
críticas dizem, não, é precisamente porque ele é tão ineficiente que não representa uma
ameaça se for reeleito, eu não sei, vamos ver, mas eu não penso que ele deva ser visto
como um grande ponto de mudança, definitivamente não.
OBJETIVOS
A Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná é uma publicação semestral de trabalhos
inéditos relacionados à dogmática e à critica jurídica, nacional ou estrangeira, bem como aos direitos humanos.
A Revista tem interesse na publicação de artigos, comentários jurisprudenciais e resenhas críticas.
NORMAS EDITORIAIS
1. Os trabalhos encaminhados para avaliação e posterior publicação deverão ser inéditos e não devem ter sido
submetidos para avaliação em outro periódico
2. Os originais serão submetidos à avaliação de especialistas nos temas apresentados. Os trabalhos serão enviados
para avaliação sem identificação da autoria.
3. O processo de seleção dos originais envolve avaliação de especialista ad hoc e do Comitê Editorial, que poderão
devolvê-los aos autores para providenciarem as alterações indicadas.
4. No caso de autorias múltiplas, os originais deverão ser encaminhados com a sequência de apresentação dos
autores, bem como a autorização de todos, por escrito, para a publicação.
5. Após aceitos, os artigos passarão por revisão quanto à forma, tais como correções ortográficas, gramaticais e
adequação ao formato da Revista, mas não em relação ao seu conteúdo.
6. Os autores não serão remunerados pela publicação dos artigos, recebendo 2 (dois) exemplares da Revista em
que seu trabalho for publicado.
7. Os trabalhos publicados passam a ser propriedade da Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal
do Paraná, sendo sua reimpressão, total ou parcial, condicionada à autorização expressa do Comitê Editorial,
que poderá autorizar, ainda, a versão eletrônica, no Sistema Eletrônico de Revistas – SER, da UFPR.
8. Os originais não serão devolvidos aos autores.
9. As opiniões e os conceitos emitidos pelos autores nos artigos são de sua inteira responsabilidade.
Revista
Revistada
da Faculdade de Direito
Faculdade de Direito- -UFPR,
UFPR,Curitiba,
Curitiba, n.47,
n.51, p.29-64,2010.
p.255-256, 2008.
255
“Times New Roman”, tamanho 12, estilo normal. As palavras devem ser separadas entre si por ponto e
finalizadas também por ponto.
5. Para a formatação dos títulos das seções deve ser seguida a seguinte configuração:
a) Seção Primária: caixa alta, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, negrito;
b) Seção Secundária: caixa alta, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, estilo normal;
c) Seção Terciária: somente a primeira letra em maiúsculo, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, negrito;
d) O título de cada seção deve ser precedido pela numeração correspondente;
e) Não se utilizam ponto, hífen, travessão ou qualquer sinal após o indicativo de numeração de seção ou de
seu título.
6. Para a formatação do corpo do texto devem ser seguidas as seguintes configurações:
a) Fonte “Times New Roman”, tamanho 12, estilo normal.
b) Espaçamento 1,5 cm entre as linhas e alinhamento justificado.
c) Parágrafos iniciados a 1,25 cm da margem esquerda.
7. Para a normalização das citações deve ser seguida a seguinte configuração, com base na norma da ABNT
NBR 10520:
a) O sistema adotado para as citações deve ser o autor-data, conforme NBR 10520;
b) Citações diretas (Transcrição textual de parte da obra do autor consultado) até 3 (três) linhas devem estar no
corpo do texto entre aspas;
c) Citações diretas (Transcrição textual de parte da obra do autor consultado) com mais de 3 (três) linhas devem
iniciar em novo parágrafo, com recuo de 1,25 cm, fonte “Times New Roman”, tamanho 10 e com espaçamento
entre linhas simples. As aspas devem ser suprimidas. Deixar uma linha em branco antes e depois da citação;
d) Citações indiretas (texto baseado na obra do autor consultado) devem constar no corpo do texto seguindo a
mesma formatação.
8. Notas explicativas: devem ser reduzidas ao mínimo necessário e apresentadas em nota de rodapé na página
onde forem indicadas, com a numeração sequencial em algarismos arábicos.
9. As referências devem ser precedidas pelo título REFERÊNCIAS com formatação: caixa alta, fonte “Times
New Roman”, tamanho 12, negrito. Para a elaboração das mesmas, deve-se consultar a norma vigente da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), NBR6023.
10. Após as Referências devem constar:
a) o título e subtítulo (se houver) em língua estrangeira (alemão, espanhol, francês ou inglês), com formação: caixa
alta, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, negrito;
b) resumo em língua estrangeira: versão do resumo na língua do texto, para idioma de divulgação internacional,
com a mesma formatação do resumo na língua do texto (em inglês Abstract, em espanhol Resumen, em francês
Resumé, por exemplo);
c) palavras-chave em língua estrangeira (em inglês keywords, em espanhol Palavras clave, em francês Mots-clés,
por exemplo).