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2010 • número 2008

51 • ISSN 2236-7284
• número (versão
47 • ISSN digital)
0104-3315

Revista da Faculdade de

DIREITO
U F P R

2008
Universidade FederaL do paranÁ

Universidade Federal do Paraná


Reitor – Prof. Dr. Zaki Akel Sobrinho
Vice-Reitor – Prof. Rogério Mulinari
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação – Prof. Dr. Sergio Scheer
Diretor do Setor de Ciências Jurídicas – Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca
Vice-Diretora do Setor de Ciências Jurídicas – Prof.ª Dr.ª Vera Karam de Chueiri
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito – Prof. Dr. José Antônio Peres Gediel
Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito – Prof. Dr. Rodrigo Xavier Leonardo

Faculdade de Direito
Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos – Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal
Prof. Dr. Cesar Antônio Serbena – Chefe do Departamento de Direito Privado
Prof. Dr. Abili Lázaro Castro de Lima – Chefe do Departamento de Direito Público
Prof. Dr. Elimar Szaniawski – Chefe do Departamento de Direito Civil e Processual Civil
Bibliotecária Eglen Maria Veronese Fujimoto – Chefe da Biblioteca de Ciências Jurídicas
2010 • número 2008
51 • •
ISSN 2236-7284
número (versão
47 • ISSN digital)
0104-3315

Revista da Faculdade de

DIREITO
U F P R
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná
Objetivo
A Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná é uma publicação semestral de trabalhos
científicos inéditos da área jurídica, nacional ou estrangeira. A Revista tem interesse na publicação de artigos, análises
de decisões judiciais, comentários críticos jurisprudenciais e resenhas críticas. A linha editorial da revista prestigia o
movimento de aproximação do direito com outras áreas do conhecimento e o compromisso da Universidade Pública
com a construção de uma sociedade democrática, justa e solidária.
Editor
Vera Karam de Chueiri
Conselho Editorial
Antonio Carlos Wolkmer (Universidade Federal de Santa Catarina), António José Avelãs Nunes (Universidade de
Coimbra), Antonio Manuel Hespanha (Universidade Nova de Lisboa), Bethania Assy (PUC-Rio de Janeiro e Universidade
Estadual do Rio de Janeiro), Claudia Lima Marques (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Claudia Perroné-
Moises (Universidade de São Paulo), David Ritchie (Mercer University School of Law, Georgia, EUA), Giovanni Cazzetta
(Università degli Studi di Ferrara), José Antônio Peres Gediel (Universidade Federal do Paraná), José Carlos Moreira
da Silva Filho (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), Juliana Neuenschwander Magalhães (Universidade Federal do
Rio Janeiro), Laymert Garcia dos Santos (Universidade Estadual de Campinas) Marcelo Cattoni (Universidade Federal
de Minas Gerais), Menelick de Carvalho Netto (Universidade de Brasília), Paulo Luiz Netto Lôbo (Universidade Federal
de Alagoas), Ricardo Marcelo Fonseca (Universidade Federal do Paraná), Roberto Gargarella (Universidad de Buenos
Aires), Samuel Barbosa (Universidade de São Paulo).
Pareceristas permanentes: Alexandre Bernardino Costa (Universidade de Brasília), Cristiano Paixão (Universidade
de Brasília), Eduardo Henrique Lopes Figueiredo (USM – Universidade do Sul de Minas), Fabiola Albuquerque
(Universidade Federal de Pernambuco), Jeanine Nicolazzi Phillippi (Universidade Federal de Santa Catarina),
José Ramón Narváez Hernández (UNAM – México), Osvaldo Lopes Ruiz (Universidade de Mendonza).
Os membros do Conselho Editorial, o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, pesquisadores
da Faculdade de Direito, além dos professores e pesquisadores de outras instituições nomeados ad-hoc também serão
responsáveis pelos pareceres dos artigos submetidos para publicação.

Endereço para contato:


Faculdade de Direito da UFPR – PPGD
Praça Santos Andrade 50 - 3º andar - CEP 80020-300
Email: posjur@ufpr.br

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

R454
Revista da Faculdade de Direito UFPR / Universidade Federal do
Paraná, Programa de Pós-Graduação em Direito.– ano 1, n. 1
(dez. 1953)- . – Curitiba: UFPR, 1953-
v. ; 24 cm.

Irregular.
Publicado também como revista eletrônica.
ISSN 2236-7284 (versão digital)

1. Direito. I. Universidade Federal do Paraná. Programa de


Pós-Graduação em Direito.
CDU 34
CDD 340
Catalogação na Fonte UFPR – Sistema de Bibliotecas - SiBi
Bibliotecária: Paula Carina de Araújo CRB 9/1562

Intercâmbio UFPR
SIBI/Biblioteca Central / Seção de Intercâmbio
Rua General Carneiro, 370 – Centro – CEP 80020-300
E-mail: bc@ufpr.br – Fone / Fax: (041) 3360-5280
SUMÁRIO

7 EDITORIAL
Vera Karam de Chueiri
José Antonio Peres Gediel
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
Edna Torres Felício Câmara

11 O PODER E OS DIREITOS: UMA HISTÓRIA FLORENTINA SOBRE TENSÕES E FRACASSOS


POWER AND RIGTHS: A FLORENTIAN HISTORY ON TENSIONS AND FAILURES
Andrés Botero Bernal

45 NOTAS PROGRAMÁTICAS PARA UMA NOVA HISTÓRIA DO PROCESSO DE


CONSTITUCIONALIZAÇÃO BRASILEIRO
PROGRAMMATIC REMARKS FOR A NEW HISTORY OF BRAZILIAN
CONSTITUTIONALIZING PROCESS
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

73 ANÁLISE COMPARATIVA DOS MODELOS DE REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS


LEGISLATIVAS NOS ESTADOS FEDERADOS
COMPARATIVE ANALYSIS OF MODELS OF DISTRIBUTION OF LEGISLATIVE AND
ADMINISTRATIVE POWERS IN FEDERATED STATES
Fabricio Ricardo de Limas Tomio
Marcelo Augusto Biehl Ortolan
Fernando Santos de Camargo

101 A PRESCRIÇÃO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO (OU O JOGO DOS SETE ERROS)
THE STATUTE OF LIMITATIONS IN THE BRAZILIAN CIVIL CODE (OR THE GAME OF
SEVEN ERRORS)
Rodrigo Xavier Leonardo

121 AS MODULAÇÕES DO DIREITO CONTEMPORÂNEO EM UM BREVE EXERCÍCIO DE


FILOSOFIA DO DIREITO
VARICTIONS OF CONTEMPORARY LAW IN A BRIEF EXERCISE OF PHILOSOPHY OF LAW
Jeanine Nicolazzi Philippi

127 POR UMA TEORIA DA NARRATOLOGIA JURÍDICA: De que modo a Teoria Literária
pode servir à compreensão e crítica do Direito
FOR A THEORY OF LEGAL NARRATOLOGY: How can a Literary Theory be useful for
the comprehension and criticism of Law
Douglas Antônio Rocha Pinheiro
147 A IDEIA DE AUTONOMIA EM LOCKE. FELICIDADE E JUSNATURALISMO. DISPOSITIVO
METAFÍSICO-RELIGIOSO E SECULARIZAÇÃO
THE IDEA OF AUTONOMY IN LOCKE. HAPPINESS AND NATURAL LAW. METAPHYSICAL
APPARATUS AND SECULARIZATION
Manuel Afonso Costa

173 LA PRUEBA EN VIOLENCIA SEXUAL Y EN VIOLENCIA DE GÉNERO: ESPECIAL


REFERENCIA A LA PRUEBA DE ADN
A prova em violência sexual e a violencia contra a mulher: referência
especial a prova de DNA
The evidence in sexual violence and violence against women: Special
reference to DNA testing
Inés C. Iglesias Canle

209 O PAPEL DOS MUNICÍPIOS PARA A MELHORIA DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
THE ROLE OF MUNICIPALITIES TO IMPROVE THE ENVIRONMENT OF WORK
Cirlene Luiza Zimmermann

237 CHANTAL MOUFFE – ENTREVISTA

256 NORMAS PARA O ENVIO E PUBLICAÇÃO DE ARTIGOS NA REVISTA DA FACULDADE DE
DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ (UFPR)
EDITORIAL

Vera Karam de Chueiri*


José Antonio Peres Gediel**
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino***
Edna Torres Felício Câmara***

A Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná chega ao


seu volume 51 e, assim, já passa de meio século de vida e vai superando, formalmente,
a meia centena de edições. Em sua longa trajetória de discussão (crítica), o que significa
passar o Bojador? Sobretudo, um esforço reflexivo conjunto para, desde esta (outra)
margem do Ocidente, fazermos as travessias como uma espécie de disseminação, como
diria Derrida. Isto é, quando as marcas não podem mais ser resumidas em oposições
binárias ou fechadas em uma taxonomia finita, pois seus movimentos penetram todo os
espaços da escrita, disseminamos. Empresa de fôlego escrever, atravessar, inscrever, de
margens a margens, a desafiar os centros do saber e do poder. Nesse sentido, esta
Revista é uma navegação (de cabotagem), iniciada em 1953, ano de sua fundação, e
que não se acomoda em suas atracagens. Ao contrário, se abre para novos rumos,
destinos e desafios. Experimentamos isso a cada edição e a cada nova exigência de forma
e conteúdo, sem descurar da sua qualidade editorial e intelectual. O processo rigoroso
de revisão pela comissão de pareceristas, a padronização dos trabalhos, a adequação às
novas regras de referência e bibliografia e a sua internacionalização são os sinais dos
desafios, da disseminação e do seu arrojo.
Assim, o presente volume se inicia com o artigo O poder e os direitos: uma história
florentina sobre tensões e fracassos, do Professor Andrés Botero Bernal, da Universidad
de Medellín, Colômbia, o qual, a partir do discurso historiográfico, promove um
deslocamento em categorias naturalizadas como a de “Estado de Direito”, explicitando
o mal-estar implícito em tal síntese moderna. Ao recuperar um contraditório campo de

*
Editora da Revista da Faculdade de Direito da UFPR.
**
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.
***
Equipe executiva da Revista da Faculdade de Direito da UFPR.

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forças em que se equilibram o poder (voluntas), de um lado, e o direito (ratio), de outro,
o autor dá continuidade aos estudos da Escola Florentina de história do direito,
especialmente aos problemas tematizados por Pietro Costa. Se, em cada contexto,
respostas diversas foram ensaiadas para dar conta dessa oposição, subsiste ainda uma
tensão no âmago da própria democracia constitucional expressa entre a soberania do
demos e os seus limites.
História, democracia e constitucionalismo estão presentes também no trabalho
Notas programáticas para uma nova história do processo de constitucionalização brasileiro,
de Marcelo Cattoni de Oliveira, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, ao
debater a forma específica na qual se articula memória e projeto, experiência e expectativa
no processo de constitucionalização brasileiro, caracterizado como não linear e
descontínuo, uma vez que forjado nos (des)encontros de reivindicações e demanadas
múltiplas por cidadania e direitos. Ao se posicionar contrário a um paradigma de
interpretação conservador da realidade brasileira, o autor ultrapassa a crítica
desconstrutiva, valendo-se da hermenêutica diacrônica para avançar num marco
reconstrutivo para a história do constitucionalismo nacional, com a proposição de um
novo programa de pesquisa neste campo do saber.
No âmbito da discussão do constitucionalismo e da democracia também se
insere o artigo do professor Fabrício de Limas Tomio, da Universidade Federal do
Paraná e dos pesquisadores Marcelo Biehl Ortolon e Fernando Santos Camargo
intitulado Análise comparativa dos modelos de repartição de competências legislativas
nos Estados Federados, o qual tem por objeto as esferas de distribuição de competências
legislativas e administrativas na Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Suíça, Índida,
Estados Unidos e Brasil. A partir desta metodologia comparada, os autores buscam
aferir o grau de centralização do poder existente em tais sistemas, em face da autonomia
de suas subunidades.
Autonomia que é também categoria fundamental à investigação no campo do
direito privado, particularmente, do direito civil. Partindo de uma perspectiva, igualmente,
comparativa, mas verticalizando a análise no sistema brasileiro, o Professor Rodrigo
Xavier Leonardo, da Universidade Federal do Paraná discute em seu A prescrição no
Código Civil Brasileiro (ou o jogo dos sete erros) as opções legislativas realizadas pelo
Código de 2002 acerca da prescrição e as influências de que são tributárias. Destaca,
de maneira particular, as insuficiências da codifição, ao indicar sete grupos de argumentos
a partir dos quais é possível reformular a ótica do problema e viabilizar um acesso teórico
mais adequado à matéria.
A Professora da Universidad de Vigo, Espanha, Inés Iglesias Canle, propõe uma
análise sobre a utilização das chamadas provas genéticas no curso do processo penal.
Especialmente em relação aos delitos cometidos no âmbito das relações conjugais, em
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que a relativa ausência de indícios dificulda a instrução, o teste de DNA surge como
elemento determinante na caracterização do fato punível, mercendo uma reflexão desde
o momento de coleta até o da sua efetiva apreciação judicial.
O doutorando e pesquisador da Universidade de Brasília, Douglas Antônio Rocha
Pinheiro, em seu artigo Por uma teoria da Narratologia Jurídica: de que modo a Teoria
Literária pode servir à compreensão e crítica do Direito, apresenta um rico debate sobre
as obras de Carlo Ginzburg e Mikhail Bakhtin, para fundamentar a possibilidade de uma
leitura do fenômeno jurídico pela via da teoria literária, propondo resgatar sua polifonia
constitutiva mediante a elaboração de uma teoria narrativa do direito.
A professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Jeanine Nicolazzi
Philippi, em seu artigo As modulações do direito contemporâneo em um breve exercício de
filosofia do direito, analisa as modulações do direito contemporâneo em um tempo regido,
em sua dinâmica decisória, por processos de negociação, no qual a redistribuição das
formas de participação na composição das regras do jogo e os instrumentos de gestão
colocam em funcionamento uma nova engrenagem jurídica que se converte em rede de
regras flexíveis, adaptáveis às injunções de um mundo que opera sob o imperativo de
que tudo é possível.
Ainda no campo da filosofia e teoria do direito, Manuel Afonso Costa, pesquisador
e doutorando da Universidade Nova de Lisboa, em seu artigo A ideia de autonomia em
Locke: felicidade e jusnaturalismo, dispotivo metafísico-religioso e securalização revisita
um dos fundadores da tradição do direito liberal moderno. Após avaliar o conjunto de
tradições em que a filosofia lockiana se inscreve, Costa nos dá um panorama de suas
tensões (voluntarismo e racionalismo). Pretendento compreender o lugar do juízo e da
ação em Locke, o autor convida a um retorno necessário e detido ao conjunto de categorias
originalmente formuladas pelo filósofo inglês.
Por fim, a entrevista realizada sob mediação da Professora Katya Kozicki da
Universidade Federal do Paraná, com a colaboração dos mestrandos e pesquisadores
Bruno Lorenzetto, Fernanda Gonçalves, José Arthur Castillo e Miguel Godoy, com a
pesquisadora e professora do Center of Studies for Democracy da Universidade de
Westminster, Chantal Mouffe, inusitadamente encerra um circuito iniciado pelos
questionamentos de Bernal, no trabalho que abre a presente edição. Temas como o
sentido e os limites da democracia, sua natureza essencialmente agonística e o
cosmopolitismo como cidadania mundial são suscitados, desembocando também num
“paradoxo democrático”, que recusa o vínculo necessário entre os vetores da liberdade
e da igualdade no processo de construção das democracias liberais. Mouffe critica ainda
a forma como a crescente judicialização da política reflete o que chama de “visão pós-
política” e tenta demonstrar como a posição não-agonista de Barack Obama pode ser
um dos termômetros para explicar a falta de radicalidade de seu atual governo.

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Revista Faculdade
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Diante desse conjunto plural de reflexões, inegável a estatura que esta Revista já
assume entre as publicações jurídicas acadêmicas no Brasil e alhures. Ela pode ser
descrita como parte central da tarefa difícil, mas não impossível, de conjugar, de maneira
criteriosa, a tradição e a crítica, o global e o local, o dentro e o fora do próprio direito.
Para não permitir que a cultura jurídica naufrague num tecnicismo sem mais; para não
deixar o direito morrer na praia.

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O PODER E OS DIREITOS:
UMA HISTÓRIA FLORENTINA SOBRE TENSÕES E FRACASSOS*

POWER AND RIGTHS:


A FLORENTIAN HISTORY ON TENSIONS AND FAILURES

Andrés Botero Bernal** ***

RESUMO: Este trabalho é uma análise de parte do livro “Soberania, representação, democracia: Ensaios
de história do pensamento jurídico”, do professor florentino Pietro Costa. São reflexões, a partir da
história que narra esta obra, sobre as tensões entre a vontade (o poder) e a razão (os direitos do sujeito)
e sobre os fracassos das múltiplas teorias propostas para evitar os efeitos negativos de tal tensão. Assim,
expõe-se o trajeto do Estado liberal de Direito (com seu estatismo e legicentrismo) ao Estado
Constitucional, que é o trajeto de um demos soberano, formado por maiorias, a um demos entendido
como sociedade pluralista.

PALAVRAS-CHAVE: Soberania. Democracia. Representação. Escola de Florença. Estatismo.


Vontade. Razão.

ABSTRACT: This paper discusses part of Florentian Professor Pietro Costa’s book “Soberania,
representação, democracia: Ensaios de história do pensamento jurídico”. It reflects, from the story
Costa tells in his work, about the tensions between Voluntas (power) and Ratio (subject’s rights) and
about the failures of the many theories proposed in order to prevent the negative effects of such
tension.Thus, this paper shows the way from liberal State (with its statelism and law-centrism) to
Constitutional State, which is the way of a sovereign demos, made by majorities to a demos understood
as pluralistic society.

KEYWORDS: Sovereignty. Democracy. Representation. Florence’s School. State. Will (Voluntad).


Reason (Ratio).

* Gostaria de agradecer aos professores Pietro Costa, Carlos Petit, Andrea Macía, Julián García e Érika
Arroyave, por seus comentários e sugestões.
** Professor da Universidade de Medellín (Colombia). E-mail: botero39@gmail.com
*** Traduzido porAlberto Krayyem Arbex, Mestre em Medicina pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro e doutorando em Direito pela Universidade de Buenos Aires. E-mail: albertoarbex@gmail.com

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Revista Faculdadede
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1. INTRODUÇÃO

Contamos, agora, com a satisfação da tradução de vários ensaios do professor


florentino Pietro Costa, editados graças ao judicioso empenho dos amigos de Curitiba,
com o intrépido título de “Soberania, representação, democracia: Ensaios de história do
pensamento jurídico” (COSTA, 2010, p. 301). Não nos surpreende, inclusive, que a
editora Juruá tenha assumido este compromisso, já que oferece uma coleção de história
do direito, dirigida por um conselho editorial de alto nível, do que fazem parte colegas
de destaque que, antes de tudo, são queridos amigos.
Atendendo ao amável convite do professor Ricardo Fonseca, daqueles impossíveis
de se recusar, compareci a um merecido evento de discussão e análise desta obra,
denominado “Estilo Florentino: A historiografia jurídica italiana da América Latina”,
realizado no dia 05 de novembro de 2010, na Universidade Federal do Paraná. A reflexão
agora apresentada é o resultado de minha conferência em tal evento e, além disso, fruto
do intercâmbio que, com a conjuntura deste, tem surgido nos últimos dias deste ano cheio
de celebrações bicentenárias em cada canto do Atlântico.
O livro em questão é constituído de quatro partes1, que, na verdade, se traduzem
em duas linhas distintas. A primeira (COSTA, 2010, p. 17-78) está baseada em reflexões
sobre a epistemologia da história do direito e abrange tanto o trabalho do historiador –sujeito
que transita pelos tempos, o que lhe permite servir de ponte entre a alteridade do passado
e o horizonte do presente–, como do acadêmico -que deve justificar seu trabalho
constantemente para convencer aos outros e, certamente, convencer-se a si próprio de que
seu trabalho é útil dentro da inutilidade que poderia imputar. Justo esta primeira linha de
reflexões leva ao uso de belas e ostentosas metáforas que convidam a dar continuidade ao
pensamento do autor, mesmo com o livro fechado, pois a imaginação é que é motivada
quando se lê “a história como labirinto: a inutilidade da historiografia” (p. 74-78), que
relembra esse mesmo efeito produzido por outro importante texto, recentemente traduzido
ao espanhol, de nosso Pío Caroni2. A segunda linha está presente nas três últimas partes
do texto, que acabam por se concretizar no que considero, a meu modo de ver, a conclusão
que aglutina todos os ensaios prévios. Refiro-me ao capítulo denominado “Democracia
política e Estado Constitucional” (p. 235-268).
Ambas suscitam muitas reflexões, mas, no momento de decidir comentar (e refletir
sobre) um texto, a questão da estratégia de comunicação de um livro – com duas linhas
distintas tão diferenciadas – obriga a quem faz a resenha a se perguntar se é melhor partir

1
A saber: i) História do direito e história dos conceitos; ii) Soberania; iii) Representação; iv) Democracia.
2
Refiro-me, sem dúvida alguma, a: CARONI, Pío. La soledad del historiador del derecho: apuntes sobre
la conveniencia de una disciplina diferente. Apresentação de Italo Birocchi. Trad. Adela Mora e Manuel Martínez.
Madrid: Universidade Carlos III, 2010. 225p.

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da análise generalizada de ambas ou se concentrar em uma delas. Ante tal dilema decidi,
então, abordar somente uma das duas linhas, pois assim poderia me prolongar mais em
certos aspectos que urge dialogar já não tanto com o próprio autor, mas com o leitor
(especialmente o latino-americano, pois se trata de uma edição brasileira). Considerei, para
este texto, a segunda linha (p. 81-301) que é, na verdade, a que dá sentido ao título da
obra. Passo, pois, para a apresentação e a análise crítica do capítulo já mencionado
(p. 235-268).
Esta epígrafe corresponde ao já conhecido texto “Democrazia politica e Stato
costituzionale” (COSTA, 2006) e traduzido por Érica Hartman, a quem se deve fazer o
reconhecimento do caso, pois conseguiu conservar o estilo ameno e pedagógico que sempre
caracterizou nosso autor florentino.
No entanto, antes de entrar por inteiro no que nos ocupa, vale a pena fazer outra
reflexão inicial: qual é o público-alvo, tomando emprestado este conceito de Perelman, de
uma reflexão analítica sobre uma obra acadêmica? Comumente, quem faz uma resenha
crítica tem, diante de si, uma dualidade de público-alvo que determina as estratégias
retóricas: o leitor interessado e, fundamentalmente, o próprio autor analisado. Este afã de
quem faz a resenha (em um sentido amplo), de saber que foi lido pelo próprio autor,
determina, em muito, a forma das resenhas que geralmente se fazem, e que abundam no
mercado das revistas científicas. Além disso, tradicionalmente, as resenhas que valem a
pena (descartando, pois, de início, aquelas que são simplesmente aplausos entre acadêmicos)
começam com variadas reflexões sobre a escrita e a retórica do autor analisado, tentando
despir as últimas intenções de quem escreveu, para propiciar assim debates (geralmente
disciplinares) que convençam o leitor de que aquele que resenha não somente leu, senão
leu bem, e que convençam ao próprio autor analisado de que quem fez a resenha é tão
valioso em suas opiniões quanto ele mesmo.
No entanto, eu terei que marcar uma pauta diferenciadora, uma vez que a maioria
das minhas reflexões – com algumas exceções, é claro –, está mais focada em preparar o
leitor para que possa tirar o máximo proveito desta obra, sem mitificá-la. Portanto, não é
uma resenha por inteiro tradicional, pois a intenção retórica e o público-alvo eu definirei
diante do que normalmente se faz.
É claro que bem poderia formular algumas ideias muito generalizadas sobre certas
estratégias retóricas de Costa que podem ser de utilidade para qualquer leitor, além de
sua procedência geográfica. Por exemplo, o texto de Costa, tanto em sua versão italiana
como na portuguesa, à qual nos dedicamos, apresenta aquilo que poderia se denominar
“escrita traiçoeira”. Denominamos assim os trabalhos que se apresentam com modelos
pedagógicos, parágrafos que podem ser lidos rapidamente, páginas escritas no melhor
dos estilos, que o estudante costuma encontrar nos bons manuais de aula. Mas essa
forma de escrever geralmente está acompanhada, por sua utilidade retórica, de conteúdos
básicos, breves, generalizados. Isso não acontece, completamente, com a obra de Costa,

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Direito -- UFPR, Curitiba,n.51,
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p.29-64, 2008.
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já que aquele que cair nesta artimanha estilística não poderá perceber, pela velocidade
que conferiu em sua leitura, que cada página, cada parágrafo, cada frase, envolve um
mundo inteiro de conhecimentos. O leitor que acredita que este é um livro de fácil leitura
deve ter cuidado; pelo contrário, não se pode cair na tentação de ler completamente
acreditando que se transmitem ideias básicas, breves e generalizadas. É claro que se o
leitor cai nesta artimanha, efetivamente vai terminar o capítulo com conceitos fundamentais
(o que já é um mérito: melhor saber alguma coisa do que nada), porém vai passar ao
longo de centenas e milhares de assuntos que o autor camufla no seu estilo bom e ameno.
Já pode entender o porquê desta escrita ser traiçoeira.
É recorrente também no autor intercalar referências especializadas com outras muito
generalizadas. Com as primeiras, o autor parece mais destinado a convencer – continuo
com as paráfrases retóricas – a especialistas, e, com as segundas, sugerir bibliografia que
ilustra temas amplos para leitores menos experientes, desde sua própria postura, seja aquele
que deseja conceitos básicos (o leitor turista, aquele que busca paisagens para fotografar),
assim como o mais especializado (o leitor escalador, que deseja dominar montanhas),
encontrará o que procura com este intercâmbio de estilo nas referências compreendidas
nas notas de pé de página. No mais, este mesmo elemento ratifica, ao meu modo de ver,
a dualidade que finaliza o texto e que dá conta dessa escrita traiçoeira, pois a paisagem
que se oferece ao leitor, tão pacífica e atrativa, não está livre de debates que o autor italiano
assumiu em diferentes momentos de sua vida. A foto está pronta para ser tirada, alguns
dirão, as montanhas dificultosas abrem seus caminhos para outros; porém, decerto, se
engana quem acredita que estamos ante um manual de aula, ainda que também possa
servir para isso.
Continuando com as reflexões de estilo, o autor, diferente de mim, escreve em
terceira pessoa. Consegue assim se apresentar como uma testemunha, quase neutra, de
suas leituras e façanhas, que são, afinal de contas, as que se relatam neste belo livro. Nosso
autor assume, então, uma postura quase como aquela do antropólogo que descreve a forma
de cozinhar em uma tribo da Nova Guiné sem que para isso se atreva a sugerir a dieta
guineana como a melhor possível (formosa metáfora usada pelo próprio Costa, em conversa
particular). Acrescentamos que, dentro desta neutralidade na escrita, surge uma magnífica
articulação entre o uso do passado e do presente, não somente quanto ao gramatical, mas
muito além. O leitor se assombra, sem dúvida alguma, quando, de uma reflexão sobre o
passado, história nua e cura, aparecem entre linhas comentários pertinentes para uma
teoria contemporânea do direito, como exemplo deste contínuo balanço entre o ontem e
o hoje, extremamente como o papel que Costa estabelece ao historiador do Direito na
primeira linha de raciocínio do seu livro (especialmente p. 47-53).
Justamente este último ponto me permite referir a outro assunto que aqui, por
questão de espaço, apenas posso mencionar: a competência que a história do Direito
tem dado não somente a Costa, mas também a todos os outros membros da Escola de

Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.51, p.11-43, 2010.


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Florença, para abordar outros campos disciplinares; em especial, a teoria do Direito, a
jusfilosofia e o Direito constitucional. A história do Direito, desde as próprias origens da
escola das que nos fala – desta vez – Costa, convida a sair destas fronteiras intradisciplinares
e aproveitar a bagagem adquirida e da qual carecem, em geral, os dogmáticos e os
filósofos do Direito. Por isso, não é de se estranhar as contínuas projeções dos jushistóricos
de Florença nos campos antes destacados, nem os títulos de obras como “Prima Lezione
di diritto” (GROSSI, 2003). Estas põem em manifesto, assim como outras coisas, as
proximidades programáticas que existem, em diversos pontos, entre o neoconstitucionalismo
(especialmente Zagrebelsky) com Paolo Grossi, fundador da Escola de Florença, que se
manifestou, entre outros atos, na homenagem feita à tão importante personagem florentina,
agora destinada ao Tribunal Constitucional, por parte do Istituto Italiano per le Scienze
Umane, em que fizeram as respectivas laudatórias o mestre Carlos Petit3 e, não
surpreende, o próprio autor do “Diritto mitte” (ZAGREBELSKY, 1992). Inclusive, obras
de Costa como “Un diritto giusto? Giusnaturalismo e democrazia nel secondo dopoguerra”
(COSTA, In: CUNHA, 2005, p. 213-244) deixam claro o que se vem dizendo.
Continuando com a linha adotada, este texto parte de dois pontos de análise que
o leitor não pode perder de vista em nenhum momento. O primeiro é que se trata de
uma história do pensamento, uma história das ideias, motivo pelo qual não será possível
pedir uma história dos fatos sociojurídicos que marcaram o rumo concreto das culturas
jurídicas. O segundo é que se trata de uma história do pensamento jurídico-político
europeu-ocidental que, ainda que pelas mil conexões atlânticas, foi fundamental para
as ideias jurídico-políticas da América Latina, estas (pensamento europeu e latino-
americano) não podem equiparar-se por completo.
Agora, após esses esclarecimentos sobre a escrita, devo introduzir a presente
resenha, ou reflexão analítico-crítica. Esta é uma reflexão, como já foi dito, dirigida para
um leitor, especialmente latino-americano, informando-o do quanto poderia ser útil para
suas próprias experiências culturais, evitando assim o grande perigo dessas obras que,
desde seu nascimento, se perfilam como clássicos. E não poderia ser diferente tendo
em conta a fama que precede o autor e o cenário no qual o livro foi produzido: um
excelente campo fértil para a escola florentina na América Latina (Curitiba em especial,
e o Brasil em geral).
Qual é o perigo a que me refiro? O colonialismo cultural. Este termo é difícil
de se conceituar, mas nem por isso é irreal nos cenários acadêmicos. Infelizmente,
estas obras como a que agora é resenhada, tendem, por intenção dos leitores, mas
não tanto pela do autor, a se transformar em lugares de busca da verdade, assunto

3
PETIT, Carlos. Homenaje a Paolo Grossi (algo menos que uma laudatio). Em: Quaderni fiorentini, No.
39 (2010); p. 555-564. As palavras de homenagem dadas por Zagrebelsky seguem às de Petit no mesmo número
(p. 565-573). As duas contribuições foram publicadas sob o título “Per Paolo Grossi giudice costituzionale”.

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que se incrementa quando se quer administrar verdade em contextos diferentes aos
que teve em mente Costa, ao escrever estes ensaios, que agora são traduzidos para
o português.
A mistificação do bom livro acadêmico por parte do leitor ingênuo ou acrítico
prejudica a todos. Ao autor, porque acaba por ser considerado um sujeito por fora dos
movimentos típicos de falseamento; um indivíduo hercúleo que, a partir de seu discurso,
pode dar resposta a tudo aquilo que observamos, e que, no entanto, ao perceber que o
que observamos não foi, necessariamente, o que o autor observou (e não podia ser para
menos), é rebaixado em seu papel de Hércules, com a mesma força com que foi lisonjeado,
aos aposentos do Hades. Isso explica, até demais, a paixão cega de nossas culturas
jurídicas em mitificar um acadêmico europeu ou norte-americano para logo, com a
mesma paixão, odiá-lo e extirpá-lo de nossos sistemas de reprodução do saber jurídico,
em especial dos programas de ensino. Portanto, nada é mais arriscado para um autor
que ser endeusado por motivos e responsabilidades que lhe são alheios.
Porém, perde não somente o autor, como também o leitor que assume a postura
de fiel, tanto que, por querer ver o quanto acredita que vê o seu ídolo, acaba como
aquele pintor que, para poder continuar desenhando os bosques que amava, após o
incêndio, continua na mesma janela desenhando, porém com os olhos fechados.
Perde, ainda que exceda em dizê-lo, a própria disciplina, pois se nega o importante
e fundamental diálogo que impulsiona ao acúmulo do saber e aos sistemas de
administração deste.
Enfim, perdem todos.
Infelizmente, a história das culturas jurídico-acadêmicas latino-americanas está
repleta, enormemente, de exercícios colonialistas, surgidos, repito, em leitores ingênuos
que canonizam, antes do tempo, obras que podiam ter melhores resultados se tivessem
tratado o diálogo com antecipação. Não esquecendo que o diálogo evita o transplante.
Assim, querido leitor, este texto de Costa, para que dê seus melhores frutos, deve
ser esclarecido e contextualizado, o que presume partir de um preceito hermeneuta:
com a obra se antecipa o diálogo, mas não se o substitui. Com esta finalidade é que vou
propor cenários ao leitor inquieto, diferente do leitor religioso, para que possa dialogar
com esta boa obra e tirar o maior proveito, sem que se transforme em uma nova Bíblia.
E como consegui-lo? Com dois exercícios práticos: combinar (especialmente a partir da
contextualização) várias afirmações do autor italiano e perguntar incansavelmente pelos
alcances do que foi dito. Comecemos, pois.

2. OS PRIMEIROS RASTROS DA TENSÃO ENTRE VONTADE E RAZÃO

O texto de Costa, no trecho a que nos referiremos, mas que creio concluir muito
dos capítulos prévios, propõe que a história das ideias jurídico-políticas pode ser re(con)

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duzida a partir de uma dualidade que se apresenta como uma tensão constante e
permanente: voluntas e ratio, que no fundo é a mesma tensão existente entre poder e
direitos (p. 236). E esta re(con)dução é feita em virtude de que, para Costa, a história,
de certa forma, é uma espécie de retorno do idêntico, pelo qual a tensão em si não
desaparece com o passar dos anos, mesmo que de fato se modifiquem as ideias que
entram em jogo para resolvê-la ou complementá-la. Portanto, o que se propõe é a
dualidade que marcará esta história do pensamento.
Aqui, o leitor não pode perder de vista a importância das dualidades na disciplina
jurídica, pois, a partir delas, por seu grande valor narrativo, tem se explicado e
desenvolvido o pensamento jurídico. Isso explica, porém questiona igualmente, a
pretensão kelseniana de eliminar as dualidades no estudo do direito, para conseguir
uma única e clara dimensão do estudo do jurídico. O que teria sido, pois, do direito,
se desaparecesse a redução da complexidade que implica a dualidade? Pois,
parafraseando Luhmann, as dicotomias são intenções acadêmicas de redução da
complexidade do sistema que deseja ser explicado, e Costa não renuncia a este exercício
retórico, como podemos observar, mas estou certo de que o uso desta dualidade não
implica substituir a complexidade dos sistemas reais que existem por trás desta. É por
isso que sugiro ao leitor que considere esta dualidade somente como um bom exercício
retórico do autor, que não nega a complexidade das épocas, as ideias e os autores que
a seguir serão expostos.
Voltando a Costa, o termo recorrente é o da tensão entre a vontade e a razão. No
entanto, no desenvolvimento do texto, o que se sugere são os riscos que derivam para
o Direito (razão) de um Poder (vontade) que, por falta de controles, se transforme em
arbitrário diante dos direitos do sujeito. Em consequência, o leitor deverá interpretar a
tensão, não como uma alteridade (que supõe relações estressantes entre duas entidades
situadas relativamente no mesmo nível), senão como os perigos derivados para a entidade
reivindicada na modernidade como central (o sujeito) quando o poder tenta dominar os
direitos. A tensão a que alude o texto é, simplesmente, os riscos de dominação de uma
(a vontade) sobre a outra (a razão). Inclusive, bem poderia propor ao leitor que uma
tensão (entendida tradicionalmente: como a relação estressante de sistemas que não
estão hierarquizados entre si) seria benéfica em uma democracia pluralista (à qual Costa
chegará). Justamente, então, é possível ver como o significado que o leitor atribui a um
conceito tão recorrente (tensão, pelo momento) mudaria o sentido do que poderia ser
dito do texto.
Agora, no que tange à vontade, poderia se pensar que o príncipe medieval seria
seu melhor exemplo, segundo aquela imagem de tirano que os revolucionários do século
XVIII nos deixaram como ideologia cultural, ao se referir ao temível Antigo Regime.
Mas isso não é assim, a critério de Costa, enquanto o príncipe medieval se concebeu
mais como um juiz do que como um legislador, ou seja, mais como quem diz o Direito

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do que de quem institui o Direito (p. 237). Eu me pergunto se este esquema de príncipe
do “dicere ius” pode se estender a todo o Antigo Regime, ou seja, se é aplicável ao
monarca absolutista prévio à Revolução Francesa. Além disso, o leitor pode levar em
conta que, apesar de ser generalizada a opinião de um príncipe amarrado a razão do
Direito (GROSSI, 1995; COSTA, 1969), existem opiniões encontradas que continuam se
referindo à potestade criativa do mesmo, isto é, que o príncipe não renunciou ao “legem
condere”, senão que soube camuflá-lo em um discurso simbólico de “iuris dictio”, pois,
afinal de contas, gozava de maior legitimidade a norma que se apresentava como prévia
à vontade do soberano (era mais aceita a norma que dizia que seu conteúdo não era
inovador no que se referia a voltar aos antigos costumes esquecidos), ainda que não
fosse realmente assim.
Costa continua indicando que a teoria de Hobbes – que seria, de fato, um bom
exemplo da vontade – é uma tentativa, a primeira na história que nos narra, de superar
a tensão (agora entendida como a relação estressante entre dois sistemas mais ou menos
iguais) a partir do monismo (a relação de dominação de um sobre o outro): a razão deve
estar submetida à vontade do soberano (p. 237). Porém, esta estratégia de superação
da tensão, a partir do monismo, foi rapidamente descartada se levamos em conta a
importância de um Coke no constitucionalismo inglês, que defenderá o historicismo do
common law como uma ordem objetiva que fundamenta as liberdades e mesmo limita
o poder (p. 238). Então a tensão continua, tanto no campo das ideias como no campo
das culturas políticas. Inclusive, a tensão se apresenta agora no esquema de divisão de
poderes, na medida em que, se há algo indisponível à vontade do soberano, é o que
pode ser atribuído à tradição do órgão que se exibe como uma expressão de uma razão
imperturbável e imparcial: o juiz (p. 238). Assim, o pronunciamento do juiz aparece
como um momento de transparência, como uma revelação e reconhecimento de uma
verdade preexistente da qual depende a solução de um conflito ou os privilégios de
certos sujeitos (p. 238). Isso explica uma perspectiva que une tanto o imaginário do juiz
do Antigo Regime – que incluía o príncipe medieval (e o fortalecia) – com aquele dos
iluministas, aqueles que o consideraram um poder neutro ou nulo na estrutura do Estado
desejado, submisso diante do soberano-legislador, pelo que aqui, inclusive com o
contratualismo iluminista, a tensão entre vontade e razão continua se apresentando.
Dessa forma, o leitor pode apreciar como se apresenta aquela escrita traiçoeira da qual
falei antes: em uma frase Costa nos descreve mundos inteiros4. Que profundidade a que
poderia se extrair deste paradoxo, como, por exemplo, o reconhecimento de certos

4
Basta elogiar a capacidade de Costa de reduzir em poucos parágrafos aquilo que, para quem deseja
maiores precisões, iria requerer livros inteiros, como a arguciosa análise histórica, do mesmo tema (a concepção
do juiz no iluminismo e no estatismo subsequente) feito por GARCÍA PACUAL, Cristina. Legitimidad democrática
y poder judicial. Valença: Edicions Alfons el Magnànim, 1996. p. 31-113.

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vestígios de historicismo nas propostas dos intelectuais do século XVIII, a partir do olhar
da função do juiz.
Assim, com o fortalecimento das teses iluministas que implicavam uma
revalorização da vontade, o soberano se transforma em um povo, segundo, o discurso
político da época, dono de seu próprio destino, enquanto a razão se vislumbra no Direito
que limita o poder que governa o povo e que, por sua vez, possibilita os direitos de seus
integrantes (p. 239). Costa, com isso, introduz no modo que trata a tensão (entendida
como sistemas estressados, porém mais ou menos equilibrados) já com ocasião da
modernidade política: de um lado, a vontade que se concretiza no poder das maiorias –
que, a partir de suas liberdades positivas, determinam o destino do povo –, e de outro,
os direitos dos sujeitos, que, em certos momentos, rivalizam com a unidade de destino
planejada por essa maioria que é, em última instância, o demos.
Acontece que a democracia padeceu, durante boa parte da Idade Média, de uma
má fama, pois era considerada um regime desequilibrado que permitia o governo de
muitos (os pobres) sobre poucos (os nobres, os escolhidos, os ricos). Este olhar pejorativo
foi substituído paulatinamente, entre outros, por Marsilio de Padova (no Defensor Pacis
de 1324: o leitor se perguntará pela omissão de Juan de Jandún) para quem o povo
deve governar a si próprio, porém seu conceito de povo difere, enormemente, dos
modernos, pois, para aquele, o povo é uma entidade coletiva internamente diferenciada
e estruturada, diferente de um povo como relação de sujeitos iguais, predicado no século
XVIII (p. 240). O demos dos modernos passa por um princípio que constituirá, como
explica o italiano, um eixo central na tensão entre a vontade e a razão, o poder e o Direito:
a ideia de um autogoverno de um povo composto por indivíduos livres e iguais (p. 240).
Aqui o leitor argucioso poderá se perguntar se o demos que governa na república
sonhada pelos iluministas é, na verdade, uma maioria que pode se impor sobre os direitos
do sujeito moderno. Costa, fazendo uma história do pensamento jurídico-político, afirmará
que é possível falar desse demos como maioria, pois foi um discurso legítimo e muito
eficaz. No entanto, como direi mais adiante, o próprio Costa duvidará sensatamente da
existência de uma maioria governante nas democracias pluralistas do século XX, já que,
no fundo, aquele que governa nestas democracias é uma elite, que se submete a certas
regras do jogo. Posto isto, existiu um demos-maioria na democracia iluminista do século
XIX? Em uma história do pensamento, basta mencionar a importância do demos como
discurso de eficácia simbólica, sem requerer comprovação empírica, especialmente
porque o projeto instruído do século XVIII foi, como seu nome o diz, um projeto que
não se concretizou tal como fora pensado. É claro que se pode associar a afirmação de
um demos governante na democracia projetada no pensamento daquele momento por
dois motivos: a) os direitos políticos das maiorias foram, como indica Costa, restringidos
em favor do exercício político de uma minoria proprietária; b) o demos exigia, inclusive
em sua vertente mais radical, uma elite que traduzisse a vontade geral em políticas

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públicas, elite que se resumia a minorias socioeconômicas privilegiadas, seja por fatos
externos à política, seja pelas restrições à liberdade de participação feitas para evitar o
acesso ao poder, de forma incontrolável, das massas de desapropriados.
Trata-se de fazer um matiz, mas não uma crítica, em que Costa é tão claro ao
ensinar que tanto para aqueles que queriam o sufrágio universal quanto para aqueles
que o combateram, a democracia coincidia com a universalização dos direitos políticos
e se traduzia no comando (favorecido ou temido) da maioria.
Enfim, esse matiz parte da mesma dúvida metódica que propõe Costa, com o demos
no Estado constitucional, e que mais adiante vou expor, a qual, acredito, pode se ampliar,
mutatis mutandi, ao demos do Estado liberal de Direito, permitindo assim uma melhor
compreensão de tal sistema político. Como consequência, se o demos-maioria é um mito
fundador ou um elemento de eficácia simbólica da democracia, não teria sido melhor partir
disso desde o início do que tê-lo mencionado somente no momento de analisar o
constitucionalismo do pós-guerra? Justificaria ter se deixado a reflexão crítica do mito do
demos-maioria somente quando se manifestou o Estado Constitucional contemporâneo, se
pudesse afirmar que, nos séculos XVIII e XIX, nos pensamentos que circularam (pois isto
é uma história do pensamento) não existiram posturas ou discursos que deixaram claro a
consideração do demos-maioria como um mero mito. Isso remete, então, a várias questões:
existiram discursos que colocavam em discussão a realidade do demos-maioria? Lassalle
(com “Was ist eine Verfassung?”) (LASSALLE, 1992) não seria um dos muitos autores que
teriam denunciado, no campo do sistema burguês, o mito do demos-maioria?
Seguindo com Costa, este situa sua história de tensões e fracassos no contexto da
modernidade, que parte, por sua vez, do reconhecimento do sujeito. Então, a modernidade
jurídica expressa em termos democráticos é aquela que considera que os direitos passam
pelo sujeito (razão) que reclama a si próprio, diante do todo (vontade), como uma entidade
com identidade própria. Infelizmente, Costa, decerto por razões de espaço, e dentro
dessa escrita traiçoeira que citei, passa de um lugar a outro, esperando que seja o leitor
quem reconheça a complexidade ali existente. A modernidade jurídica e a tensão poder-
direitos não teriam sido tais sem a modernidade filosófica. A ideia de um sujeito
determinante da ação política (o que o italiano denominaria “liberdade de participação”)
e de um sujeito com direitos frente ao demos (“liberdade-propriedade”) é compatível
com a ideia de um sujeito substante (res cogitans de Descartes), uma mônada (Leibniz)
etc., que permitiu, no campo filosófico, falar-se de uma ruptura da filosofia medieval
com a moderna. Então o leitor não deve passar por cima das ligações que, em uma obra
como a que comento, é impossível para o autor deixar esboçadas.

3. A TENSÃO ENTRE VONTADE E RAZÃO NA DEMOCRACIA LIBERAL

Costa segue explicando como a ideia de sujeitos livres e iguais determina o


pensamento moderno, a partir do estudo dos franceses, em especial Rousseau e Sieyès,

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bem como dos norte-americanos. O leitor latino-americano poderia agora se perguntar:
e por que os franceses e os norte-americanos? Por acaso o iluminismo foi somente
francês? Por acaso as revoluções norte-americana e francesa foram as únicas
pertinentes, para o caso de uma história das culturas jurídicas, em especial das latino-
americanas? Bem se sabe que a Ilustração não foi um movimento nacional, similar ao
que já existe em abundante literatura, deixando claro que o Iluminismo conhecido
como “francês”, apesar de muito influente globalmente, não tenha sido o único, pois
que se deve reivindicar, especialmente nos estudos das Revoluções de Independência
latino-americanas, outras escolas iluministas, como a napolitana e a espanhola, citando
dois exemplos geográficos5. Também já existe ampla literatura indicando que, no caso
hispano-americano, apesar de as revoluções norte-americana e francesa terem sido
importantes, estas não foram o único elemento levado em conta pelos reformadores
independentistas6.
O leitor, porém, não pode perder de vista os marcos que o autor deixou claro:
na história das ideias políticas europeias, as propostas de Rousseau e Sieyès, de um
lado, e dos revolucionários norte-americanos, de outro, foram determinantes na explicação
da tensão entre vontade e razão. Assim, o leitor não pode esquecer que foi na França
onde o sujeito moderno se converteu, pela primeira vez, no poder constituinte7, e que
sua revolução exerceu uma influência considerável sobre o debate europeu, inclusive
até pleno século XX.

5
ESCOBAR VILLEGAS, Juan Camilo e MAYA SALAZAR, Adolfo León. La formación intelectual de los
constituyentes colombianos en la primera mitad del siglo XIX. In: BOTERO BERNAL, Andrés (editor). Origen del
constitucionalismo colombiano. Ponencias del III Seminario Internacional de Teoría General del Derecho. Medellín:
Universidad de Medellín, 2006. p. 53-78. ESCOBAR VILLEGAS, Juan Camilo e MAYA SALAZAR, Adolfo León.
Otras “luces” sobre la temprana historia política de Colombia, 1780-1850: Gaetano Filangieri y la “ruta de Nápoles
a las Indias Occidentales”. In: Co-herencia: Revista de Humanas. Vol. 3, N° 4 (janeiro-junho de 2006); p. 79-111.
BOTERO BERNAL, Andrés. Algunas influencias del primer proceso constitucional neogranadino: El
constitucionalismo gaditano, las revoluciones, las ilustraciones y los liberalismos. In: Ambiente Jurídico, No. 10,
2008; p. 168-210.
6
Por sua parte, Levaggi (para dar um exemplo da literatura especializada) assinala que, apesar da força
simbólica destas duas revoluções (a norte-americana e a francesa), estas não explicam por completo o tema e as
disputas do federalismo e do centralismo na América Latina. Existiram, inclusive, outros modelos de organização
territorial e política tanto ou mais relevantes que, porém, foram minimizados, como o suíço e o holandês. LEVAGGI,
Abelardo. Confederación y federación en la génesis del Estado argentino. Buenos Aires: Faculdade de Direito da
Universidade de Buenos Aires, 2007. p. 17-32. Além do mais, contamos com uma importante obra que tem
analisado as diferenças do processo emancipador norte-americano com o hispano-americano: JACOBSON, J. Mark.
The Development of American Political Thought. New York: Appleton-Century-Crofts, 1932.
7
“A grande novidade levada a cabo pela revolução francesa (…) foi a de fazer surgir de improviso sobre
o cenário, em sua autonomia, uma sociedade civil unificada na perspectiva da vontade política constituinte, como
povo ou nação” (N.T.: traduzido do espanhol) FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de
historia de las Constituciones. 2.ed. Trad. Manuel Martínez Neira. Madrid: Trotta, 1998. p. 61. Ainda que se saiba,
cabe mencionar a proximidade existente entre a obra de Costa – que aqui resenho – com a de Fioravanti – que
acabo de citar.

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O que eu peço ao leitor é que, criticamente, rejeite como própria uma velha, mas
não por isso tolerável, tendência de se referir ao Estados Unidos como América, aspecto
que, além do mais, não foi devidamente corrigido na tradução; assim, o leitor poderá
reparar com sua atitude um uso inadequado que deixa claro uma confusão entre o todo
e a parte na linguagem acadêmica.
Voltemos a Costa. A tensão da democracia dos modernos se propõe, pois, entre
uma maioria dotada de uma vontade e alguns indivíduos dotados de direitos enquanto
são iguais e livres, o que fundamenta, no discurso, a mesma maioria que reclama seu
direito ao autogoverno. E ambos elementos da tensão se fundamentam em critérios
jusnaturalistas que atravessam o modelo histórico defendido por Coke, Locke, Hume e
Blackstone, para o caso inglês; o modelo individualista da revolução norte-americana;
e o modelo estatista que emerge por ocasião do desenvolvimento das teorias de Rousseau
e Sieyès, entre outros, na França8. O jusnaturalismo seria a maneira como os modernos
tentaram solucionar os problemas derivados de tal tensão: os sujeitos, por serem livres
e iguais, se constituem em um povo soberano que determinará os direitos dos sujeitos.
A vontade e a razão se reconhecem como interdependentes e com um mesmo substrato
natural, o que equivale considerar como superada qualquer possível tensão (entendida
como qualquer possível intenção de domínio) entre o querer majoritário, de um lado, e
os direitos dos sujeitos, do outro. O demos partiria, pois, de uma “declaração” (e não
de uma “criação”) dos direitos naturais dos sujeitos, com o que as liberdades, conquanto
não sejam fruto do querer do soberano, estariam garantidas (p. 243). Dessa maneira, o
demos, agora atuando como poder constituinte, ao expedir um tipo especial de constituição
que garantisse a divisão de poderes e os direitos naturais (que poderiam ser sintetizados
no binômio liberdade e propriedade que caracterizava o discurso jusnaturalista
racionalista europeu prévio à Revolução Francesa), eliminaria qualquer possibilidade
de arbitrariedade, e a relação vontade-razão (p. 243-244) se tornaria equilibrada.
Mas a história desta forma de superar os perigos do domínio da vontade sobre a
razão, no plano das ideias, envolve, segundo Costa, a história de seu fracasso, uma vez
que, se a vontade é soberana, não pode se submeter ao passado (o que explica muito a
rejeição ao Antigo Regime e ao modelo histórico de fundamentação das liberdades
preconizado pelos jusnaturalistas ingleses), nem ao futuro (o que explica por que se
pregou, em plena Revolução Francesa e norte-americana, que toda Constituição somente
rege para a geração que a faz), nem aos indivíduos (com o que a concepção de uma
limitação ao Estado por parte de direitos naturais do indivíduo somente faz que o Estado
deixe de ser soberano). Enfim, a crença de que a tensão teria se superado não era mais
que a suposição da boa intenção do soberano, mas este, por ser soberano, não estaria

8
Vali-me aqui da famosa distinção entre os modelos histórico, individualista e estatista proposta por outro
membro destacado da escola de Florença: Ibid., p. 25-48.

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limitado com que o (a razão do) sujeito ficaria sempre a sua mercê. Dessa maneira, a
tensão permanece, porém com uma arriscada preponderância no discurso da vontade,
ou seja, de uma nova forma de se manifestar o desejo monista já presente em Hobbes.
O historicismo e, em maior medida, o individualismo (FIORAVANTI, 1998, p. 43-48),
que são outras caras do jusnaturalismo fundamentador das revoluções do século XVIII,
acabam por dar lugar a um estatismo dominante e a um monismo que deseja a submissão
da razão diante da vontade (p. 242-243).
Em consequência, a tensão (entendida como os riscos do controle de um sobre
o outro) se expressa com maior força, quanto mais se fortalecem as tentativas da vontade
de se submeter à razão. A soberania, como absoluta, radicada agora na cabeça do Estado
fruto do Contrato Social, enfrentou o discurso de direitos fundamentais, o que no fundo
implicou o enfrentamento de duas visões da ação moderna das liberdades: a soberania
do demos, como efeito das liberdades de participação política (o que justamente permitiu
que a maioria se expressasse mediante o uso de suas liberdades positivas ou de direitos
civis como o voto, deixando de manifestar sua intenção governante sobre o destino
comum), e os direitos fundamentais ancorados em concepções de liberdades negativas
ou, melhor ainda, do binômio liberdade-propriedade (que tem tanta história por trás e
que Costa menciona de forma geral, mas que o leitor deve complementar9) (LOCKE,
1990, p. 244-245). Assim, assinala bem o italiano, que o que parecia uma democracia
moderada, que evitaria a tensão, terminaria por ser um governo ameaçador à razão, dos
direitos, dos sujeitos, visto que implanta um Estado com o poder absoluto do demos e
desvincula a tradicional dependência dos direitos políticos da liberdade-propriedade,
atribuindo os direitos políticos aos cidadãos como tais, sem considerar as qualidades
morais e antropológicas dos sujeitos (aspecto central do pensamento filosófico moderno)
que ficaram como o fundamento da liberdade-propriedade (p. 245). Agora, este poder
absoluto do demos não ficou somente no discurso, mas se concretizou no mundo da vida
com o jacobismo, que, atuando em nome do direito natural à soberania radicada no
demos, passa por cima de qualquer outra consideração (LOCKE, 1990, p. 246;
FIORAVANTI, 1998, p. 68). Os sujeitos, individualmente considerados, são sacrificados
em nome do povo soberano; a liberdade-propriedade dos sujeitos depende da ação
política social, ou seja, da liberdade de participação das maiorias.
Justamente neste momento, o leitor poderia se perguntar se a liberdade-
propriedade, à que alude Costa como um dos motivos de tensão, não poderia se aplicar,
igualmente, como as liberdades de participação. Por acaso as liberdades de participação

9
Por exemplo, existe uma longa tradição (que une, entre outros, a J. Locke com R. Nozick) que assinala
que cada um é proprietário de si mesmo, o que fundamenta as liberdades individuais. Então, se cada qual tem a
propriedade sobre sua própria consciência, ninguém pode lhe impor alguma religião ou crença (é claro que Locke
condenou o catolicismo e o ateísmo, assunto que não posso me deter a explicar aqui, mas remeto a: LOCKE, John.
A letter concerning toleration. New York: Prometheus Books, 1990. p. 63-64).

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não podem ser entendidas, na mesma lógica jusnaturalista do século XVIII, como uma
liberdade-propriedade do sujeito livre e igual? Somente as liberdades negativas podem
ser entendidas como liberdades-propriedade? Esta pergunta não seria de todo estranha
se levarmos em conta que o próprio Costa reconhece, acertadamente, que a propriedade
não era ainda concebida em termos estritamente econômicos, mas fazia parte de uma
grandeza antropológico-moral do sujeito moderno (p. 245), ou quando esclarece que o
poder do demos parte da igualdade (mas por acaso a igualdade não seria parte da
liberdade-propriedade?). É claro que esta pergunta questiona a precisão do termo usado
para a oposição discursiva à qual alude o italiano, mas não põe em dúvida que,
efetivamente, encontramos uma oposição entre os direitos de participação, que constituem
o quid da democracia, com os direitos e as garantias que reclamam os sujeitos diante
de decisões tomadas democraticamente pelas maiorias. Talvez, porém somente para
favorecer o diálogo, o leitor poderia considerar mais apropriado a dualidade entre
liberdades de participação e liberdades negativas; no entanto, esta classificação, como
qualquer outra, apresenta as mesmas críticas que se implantaram: é possível um termo
tão preciso que evite casos cinzentos ou a necessidade de matizes?
É claro que essa classificação das liberdades que Costa faz merece, como tudo,
uma matização, para não dizer uma sugestão. O que se deve entender por liberdade-
propriedade que constitui a antítese da liberdade de participação? Ele, a partir dos
exemplos que dá, inclui na mesma seara dois assuntos que devem ser diferenciados.
Vejamos casos concretos:
“Conceda-se a todos os cidadãos o direito de voto; rompa-se o tradicional círculo virtuoso entre
propriedade e direitos políticos e teremos o seguinte cenário: uma evidente afirmação, na competição
eleitoral, dos não proprietários, dada a exiguidade numérica dos proprietários. O parlamento
cairá legalmente nas mãos de maiorias que, privadas de quaisquer relações com as elites econômico-
sociais, começarão a demolir a golpes de decreto aquela liberdade-propriedade da qual dependem
os destinos progressivos da civilidade moderna” (p. 246).

Claramente, Costa alude a uma liberdade-propriedade que garante a sobrevivência


das elites econômicas e sociais. Dessa forma, o leitor poderia acreditar que a tensão
entre liberdade de participação e liberdade-propriedade acaba se reduzindo à tensão
entre pobres e ricos, muitos e poucos, igualdade formal e propriedade, assunto que é
apenas uma das arestas do verdadeiro problema que o italiano implanta:
“Uma maioria parlamentar, que não obstante legalmente empossada, pode acabar com os direitos
fundamentais dos indivíduos: pode ser, precisamente, ‘tirânica’” (p. 247).

Mais adiante (p. 248) ele segue com a mesma ideia: que a forma de se evitar
maiorias tirânicas, fruto do igualitarismo democrata, consistia em unir os direitos políticos
com a liberdade-propriedade, que foi justamente o que aconteceu – generalizando – no
constitucionalismo latino-americano no início do século XIX: somente têm acesso ao voto

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aqueles que podiam demonstrar ser proprietários, brancos, católicos etc. Tratar-se-ia de
uma concepção da liberdade-propriedade entendida como garantia de um grupo social
determinado. O mais grave é que um leitor anacrônico julgaria severamente a liberdade-
propriedade, por considerar que com ela estaria enfrentando os bons ideais do atual
Estado Social de Direito: integração das maiorias desapropriadas.
Mas, em outros momentos do texto, Costa alude aos direitos fundamentais, sem
radicá-los em um grupo social determinado, como derivações da liberdade-propriedade.
Isso poderia ter duas explicações igualmente plausíveis no texto que comento: a primeira
é que, como já foi dito, seguindo a tradição racionalista prévia às revoluções de finais
do século XVIII, a liberdade mesma se considerava uma propriedade (assunto que já
mencionei em uma nota de pé de página), visto que esta não era entendida somente em
termos econômicos. Havia então propriedade sobre a consciência, com a qual a liberdade
e a propriedade seriam termos que se implicam, quase sinônimos. Assim, a liberdade-
propriedade como uma estrutura similar seria levada a todos os seres humanos como
seres racionais. A segunda é que deveria se diferenciar liberdade e propriedade, mas
que, apesar de serem direitos diferentes, estão em relação íntima, pois consistem na
proteção do indivíduo ante o poder. É claro que, em um ou outro caso, se chegaria ao
mesmo ponto: a liberdade-propriedade, agora entendida como um assunto individual
mais que coletivo (portanto, em um sentido mais moderno), e com ênfase em liberdades
e(ou) propriedade mais além das que garantem o exercício de dominação de uma elite
já favorecida; inclusive, este conceito de liberdade-propriedade seria o que poderia ser
utilizado com sucesso no momento em que um indivíduo, que não faz parte da elite
governante, tivesse que resistir ao furor desta última.
Sendo assim, teria sido melhor que Costa tivesse diferenciado a liberdade-
propriedade em sentido restrito (a que é empregada em defesa dos interesses da elite
para contrastar um demos popular), da liberdade-propriedade em sentido amplo (a
que é posta para a defesa dos direitos dos indivíduos, inclusive contra a elite proprietária
quando esta determina a vontade do soberano). Essa classificação não somente
tranquilizaria o leitor, mas, além do mais, teria sido muito iluminista para explicar
como estas podem entrar em tensão e como, dessa forma, a maneira em que se acreditou
superada (pela limitação dos direitos políticos restringidos aos proprietários de bens
econômicos) acabou sendo um fracasso, pois os riscos da supremacia da vontade sobre
a razão continuaram, apesar de uma predominância da liberdade-propriedade em
sentido restrito (ou seja, limitando os direitos políticos a uma elite proprietária), mas
colocando em xeque a liberdade-propriedade em sentido amplo (ou seja, os direitos
do sujeito em geral).
Enfim, a tensão entre vontade e razão nos discursos dos modernos permite a
Costa, segundo as propostas de seu mestre Grossi, questionar a eficácia da democracia
para sustentar os direitos fundamentais:

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“O poder do demos não é o trâmite dos direitos fundamentais, mas ao contrário, apresenta-se
como sua principal ameaça. A democracia não realiza os direitos, mas sim os subverte” (p. 247).

Mais adiante, será o próprio Costa quem esclarecerá que essas observações, que
acabo de citar, remetem, fundamentalmente, à democracia do século XIX, já que a
constitucional contemporânea merecerá interpretações diversas, que exporei mais adiante.
Cairia, pois, em erro o leitor que ampliasse estes raciocínios, próprios de muitos membros
da Escola de Florença, a toda a democracia e a todo o Estado. Inclusive, nas proximidades
programáticas entre o neoconstitucionalismo e a Escola de Florença (ainda que esta
proximidade não se dê por igual em todos os seus membros) está claro que, nesta última,
pelo menos desde minha perspectiva, não existe a intenção de retorno ao período
medieval-estamental (como alguns quiseram ver na obra prima do mestre Grossi: L’ordine
giuridico medievale), mas um discurso que parte da necessidade de superar o princípio
de igualdade jurídica que, de alguma forma, já faz parte do imaginário político europeu
como uma conquista histórica, para chegar a um novo modelo que ponha no centro todos
os direitos (razão) e não somente os políticos, que aceite os direitos não determinados
pela maioria como fundamento do ordenamento, que se mova em torno do pluralismo
do povo, e que valorize a participação política, mediante partidos limitados por regras
que fogem ao seu controle parlamentar, entre outras coisas.
Neste momento, o leitor pode se perguntar pelo papel da democracia do século
XIX na realização dos direitos. Seriam muitas as perguntas, para incitar um diálogo, que
caberiam aqui, mas gostaria de deixar algumas especificamente para o leitor, sem me
comprometer, ainda, com uma resposta concreta: que responsabilidade têm os teóricos
estudados (lembrando que estamos diante de uma história das ideias) como Rousseau
ou Sieyès pela forma como foram adequados e interpretados (ou seja, em termos de
hermenêutica gadameriana: traduzidos) pelos políticos e juristas do século XIX? Que
vantagens obteve para o indivíduo, fonte da modernidade, a igualdade formal, em
contraposição com a estamentação da sociedade do Antigo Regime? Por acaso os
monarcas absolutistas anteriores à Revolução Francesa não eram, em parte, expressão
de uma vontade que queria evitar a liberdade-propriedade, em sentido amplo, dos
governados? Por que a queixa de muitos teóricos da liberdade-propriedade em sentido
amplo, baseada no direito natural racionalista justo, em épocas prévias às revoluções,
que bem analisa Costa? Não estou afirmando que Costa, em especial, e a Escola de
Florença, em geral, sejam filo-medievalistas, nem que consideram o século liberal como
uma perda para a (e da) ratio; simplesmente acredito que estas questões permitiriam ao
leitor se situar, quanto às reflexões críticas do italiano, sem chegar a mistificá-los nem
a absolutizá-los (tudo segundo nosso plano inicial: questionar e matizar).
Continuando com a democracia do século XIX, Costa adverte sobre a importância
da liberdade-propriedade, no sentido restrito antes proposto, na determinação dos direitos

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26
políticos (p. 248), como forma de se evitar os perigos da tensão (entendida agora como
os perigos de que o demos popular determine os direitos de uma minoria proprietária).
Se aqueles que participam politicamente são os proprietários, as maiorias (de pobres)
tirânicas serão impossíveis e os direitos (de poucos) estarão resguardados, ainda que,
este não fosse o único critério restritivo nas liberdades de participação, sendo outros a
incorporação à religião oficial, cor da pele, gênero masculino etc. (isso deve levar o leitor
a matizar a importância que a propriedade tinha na determinação dos direitos políticos,
que, além de ser fundamental naquele momento, não era o único critério nas culturas
jurídicas do século XIX). Isso teve uma particularidade, adverte o italiano, no caso
norte-americano, no qual, para resguardar os direitos fundamentais, se implantou o
judicial review ou a defesa judicial da Constituição, gerando uma “sinergia” ou uma
“conciliação” entre os diversos componentes do sistema jurídico-político, entre a vontade
e a razão, entre o demos e os indivíduos, entre o criar direito e o dizer direito10.
Justamente aqui considero que valeria a pena fazer alguns comentários ao leitor.
Costa, por um lado, desnuda os interesses em jogo na tensão entre demos e indivíduo
no início do século XIX, deixando claro como a liberdade-propriedade em sentido restrito
tenta uma nova conciliação entre vontade e razão (outra história sobre um modo de
superar os riscos do monismo –vontade sobre razão – em bons termos), porém para seu
próprio benefício (outra história sobre um fracasso). Mas, por outro lado, utiliza certas
palavras que, em conformidade com sua visão de Estado constitucional e dos tribunais
constitucionais, sobre os quais irei esclarecer mais adiante, poderiam dar a entender
um olhar benigno, por parte de nosso autor, a esta forma, em que se pretendeu evitar
os efeitos perversos da tensão de que se vem falando. Como o leitor poderia compreender
esta página? Difícil tarefa lhe espera, mas posso colocar mais lenha na fogueira.
Costa, nestes momentos propícios, relata o contexto da proposta norte-americana
do judicial review, mas não aprofunda, nem tinha porque fazê-lo, o que implicaria a
articulação, em seu seio, da vontade e da razão, algo que o leitor pode, e deve fazer.
Os juízes constitucionais, pelo menos no marco temporal de que vem se falando, seriam
defensores da liberdade-propriedade em sentido cabal e, de alguma maneira,
responsáveis pelos direitos das elites burguesas? Costa poderia ter chegado a este
ponto? Sim, por direitos fundamentais, se a liberdade-propriedade fosse entendida
como principal objeto de proteção em sentido restrito, acredito que Costa poderia
concluir da mesma forma. Assim, articularia-se o texto, neste ponto em concreto, com
outras leituras que, tempos atrás, colocavam em questão a defesa dos direitos por
parte da Supreme Court norte-americana.
Entre essas outras leituras está a de Letelier, que afirma:

10
É claro que a proposta norte-americana de fundamentação dos direitos, limitando a vontade do Estado,
foi mais além do judicial review, tema que Fioravanti expõe em: Ibíd., p. 77-95.

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“A desconfiança do Legislativo será, assim, uma ideia matriz em toda a organização
constitucional norte-americana. Para alcançar o objetivo proposto devia se idealizar um sistema
de controle dos atos do Parlamento. Pensou-se em um órgão especial de revisão composto por
membros do Poder Executivo e Judicial, mas a ideia não teve grande êxito. Algo estava
totalmente claro para os participantes na Convenção: os juízes deviam ter um papel totalmente
de protagonismo neste controle. Diversas são as razões que motivavam esta conclusão. Uma
razão, no entanto, normalmente não formulada, resulta ser especialmente interessante. Os
juízes no século XVIII não provêm precisamente dos setores desapropriados da sociedade
norte-americana. Eles representam, de certa forma, as elites governantes e são, para elas, uma
excelente forma de controlar, de apaziguar, de aquietar as massas apaixonadas” (LETELIER
WARTENGBERG, 2007, p. 544) (N.T.: traduzido do espanhol).

Igualmente, é o caso de Ran Hirschl, que em sua obra Towards Juristocracy dá


forma ao conceito de juristocracy como a ascensão da Supreme Court ao controle
constitucional sobre a atividade legal (assunto que Roscoe Pound11, para Estados Unidos,
e Eduard Lambert (LAMBERT, 1921), para França, em um diálogo interatlântico (PETIT,
In: DURAND & MAYALI, 2000, p. 503-554), criticariam fortemente), o qual ele explica,
entre outras razões, com base na necessidade de se contar com um órgão que garantisse
o direito de propriedade e oferecesse segurança às elites (hoje em dia, aos investidores)
(HIRSCHL, 2004, p. 37-38).
O exposto anteriormente está também conectado às críticas de Rosenberg
(ROSENBERG, 1993) aos tribunais constitucionais, ao considerar que estes não são os
verdadeiros promotores da mudança social, exceto em temas de ampla relevância social
(como a segregação racial, o acesso ao voto, o aborto, a discriminação quanto ao acesso
ao transporte e a moradia, etc.). Inclusive, até nessas decisões, a mudança social que
se anunciava se produziu, realmente, apenas quando estes temas chegaram à agenda
do Executivo ou do Legislador, sendo ali onde a mudança social significante foi possível.
Em consequência, a função da defesa dos direitos fundamentais como um contraponto
ao demos, por parte do tribunal constitucional ou a Supreme Court, está mitificada, visto
que é próprio dos ramos do poder público que representam o demos (Legislativo e
Executivo) a promoção eficiente e duradoura das mudanças sociais, neste caso, dos
direitos. Mas tudo isto questiona o que foi dito por Costa? Não, na medida em que Costa
faz uma história do pensamento e Rosenberg explana a partir de uma análise comparada
das culturas políticas. São duas abordagens distintas.

11
Durante as tentativas de implantação de uma legislação social no início do século XX (tentativas que se
viram profundamente afetadas por decisões individualistas por parte da Supreme Court e que originaram uma
exasperada reação de vários grupos sociais) a voz crítica de Pound se destacou, especialmente em uma conferência
oferecida em 1906 diante da American Bar Association (POUND, Roscoe. Causes of Popular Dissatisfaction with
the Administration of Justice. In: American Law Review, 40 (September-October, 1906); p. 729-749) que teria de
dar a conhecer seu nome nos círculos de advogados progressistas e abriu as portas à Northwestern University Law
School -graças a J. H. Wigmore- e, mais adiante, a Harvard.

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28
4. A TENSÃO NO ESTADO DE DIREITO

Costa segue, expondo pensamentos que expressavam o medo das maiorias


tirânicas, sendo Antonio Rosmini um bom exemplo disso (o leitor fica esperando uma
indicação temporal sobre sua obra), que preconiza, para evitar os perigos do demos
(maioria de pobres legislando), a restrição dos direitos políticos e um tribunal judicial
que sirva de poder contramajoritário em defesa da liberdade e da propriedade
(p. 248). Apesar disso, na Europa, a estratégia norte-americana não aportará logo,
uma vez que ali se optou, como forma de se superar os efeitos perigosos da tensão,
pelo “Estado de Direito”.
O Estado de Direito foi a maneira pela qual se pretendeu evitar os perigos da
tensão (ou os perigos da dominação de uma sobre a outra) entre vontade e razão, sem
se fazer uso do jusnaturalismo racionalista. Então, com a chegada do positivismo (que
somente se pode entender com o surgimento moderno do Estado, que Costa, como
muitos historiadores contemporâneos, considera uma criação fundamentalmente do
século XIX), surge a necessidade de se fundamentar os direitos – que já são parâmetro
de civilização inclusive no século liberal – no código, na lei. O direito válido, positivo,
ou seja, o expedido pelo Estado, contemplará os direitos dos sujeitos e limitará o poder
em benefício daqueles (p. 249). No fundo, trata-se de um discurso de autolimitação do
Estado, o que contribuiria para que o demos não usurpasse os direitos dos sujeitos, o
que faria, além disso, possível um controle judicial da administração, de um lado, e uma
tutela judicial dos direitos outorgados pelo Estado (p. 249), do outro, visto que não se
pode esquecer que, neste século, sim, pode-se falar em direitos, porém, limitados em
seu alcance, conquanto sejam os concedidos pelo Estado (p. 255).
Sobre o controle judicial à Administração, Costa diz que se deve, nesse momento
(especialmente no fim do século XIX), à ameaça que se via para os direitos não estarem
tanto no campo do legislador (que continuava ancorado, ainda que cada vez em menor
medida, nas elites proprietárias, fruto das políticas de redução dos direitos políticos
das massas populares), mas do Executivo, que, nesse momento, era um agente muito
ativo em seu papel de mediador dos conflitos sociais e de integração das classes
subalternas (p. 251). Afinal de contas, estamos diante do Estado que cresce em seu
papel interventor, e diante do surgimento do direito social (com suas variantes de
serviços públicos, direito do trabalho etc.). Isso explica o rápido surgimento de um
sistema de controle da Administração, provocado pelo próprio Estado, agora entendido
como soberano. Além disso, ao controlar a Administração, garante-se a submissão do
Executivo diante da lei, pois o juiz, no momento de julgar o ato administrativo, deverá
partir do ordenado pelo Legislador, que continua conservando para si os rastros do
poder incontrolável da soberania.

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Assim, em sua história das ideias jurídico-políticas, Costa traz ao debate,
oportunamente, o direito administrativo. O leitor deve saber que esta pretendida maneira
de diluir a tensão não somente se refletiu no direito administrativo, mas também em
outras áreas, como no direito internacional, que justamente nesses momentos festejava
a consideração de que o direito internacional seria fruto da autolimitação dos Estados
(teoria defendida por Jellinek e Von Triepel, entre outros). Um tratado é, pois, norma
jurídico-internacional que obriga um Estado, já que este, soberanamente, decidiu se
autolimitar, ao ratificar o tratado.
Até aqui, poderia se considerar como superada, na história do pensamento, a
tensão (ou os perigos da supremacia da vontade sobre a razão); mas, como bem o afirmará
Costa, o fracasso se repetiu por dois motivos: a) o que aconteceria se o Estado, que
conserva a soberania, decidisse se retratar de sua própria norma que o limitava? Se as
coisas se desfazem como se fazem, o Estado pode se livrar de suas próprias autolimitações
(p. 250); b) a autolimitação do Estado permitiria julgar as atuações do Estado a partir
das próprias regras de autolimitação, que este se impôs a favor dos administrados, mas
esta função que exerceria o juiz se entende ante o poder Executivo, porém não diante
das ações do Estado quando atua como totalidade, como soberano12. Isso supõe que o
limitado é a Administração (sub lege), mas a lei continua sendo entendida como soberana
e, em consequência, impossível de ser controlada pelo juiz europeu (p. 251). Então, o
risco da arbitrariedade continua presente no legislador e, em virtude da lei, deve se
ceder ao administrador, que deverá obedecer à lei, seja ela arbitrária ou não.
Aqui o leitor deve ter presente algumas coisas: por que o silêncio de Costa sobre
o ramo judicial? Caberia uma responsabilidade do Estado sobre uma decisão judicial?
Seria controlável a decisão judicial? O juiz poderia ser despótico com os direitos dos
sujeitos? Já havíamos visto como Costa coloca a função de juiz que declara o direito
(jurisdictio) no braço da razão (ainda que, mais adiante, aceite como um problema a
politização – e, portanto, seu influxo na vontade – do juiz na contemporaneidade, p.
267-268), pelo que a preocupação pela tirania do demos está ancorada, justamente, nos
órgãos que representam essa maioria: o Executivo e o Legislativo. Além disso, dentro
do ramo judicial liberal, existem diversos controles de decisão, como a motivação, a
apelação, a cassação, o temor da prevaricação etc. Acrescentemos que, no século XIX,
na história que relata Costa, o juiz é um poder neutro, um aplicador da lei, pelo que a
doutrina do século XIX se concentra mais em explicar a soberania como um exercício
legislativo. Mas justamente isto nos remete a questões que puderam complementar o

12
Esse assunto é tão longo quanto amplo. Por sorte contamos com o trabalho de MARTÍNEZ MARTÍNEZ,
Faustino. De responsabilitate: una breve historia de la responsabilidad pública. Madrid: Universidad Complutense
de Madrid, 2008. Com o marco de Costa se entenderia muito melhor a história que Martínez narra sobre como o
aumento da responsabilidade do Estado está relacionada à erosão progressiva de sua soberania.

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30
texto: se o juiz é concebido como um aplicador ou declarador da lei, como um poder
neutro, não seria este um órgão limitado dentro dos que estão na órbita da vontade, e
não da razão? Certamente, Costa responderia que, na ótica do estatismo do século XIX,
a lei surgia como a síntese entre razão e vontade, pelo que a submissão do juiz diante
da lei soberana implicaria a continuidade da união entre política e Direito. Mas, apesar
disto, o juiz pode ser um fator importante de desestabilização de um equilíbrio entre
vontade e razão, tal como foi a soberania do demos, de forma que o leitor não poderia
descartar por completo, em seu exercício complementar, o estudo do papel judicial na
(possível resolução da) tensão que nos ocupa desde o início.

5. A TENSÃO NA TEORIA KELSENIANA

Após esse novo fracasso, surge em cena Kelsen, com outra proposta. Assinala
Costa que o austríaco entra para distinguir entre Estado real e Estado como ordenamento,
o que é compatível com a distinção entre fato e norma. O Estado real seria, segundo
esta versão da história, uma metafísica pré-científica. O Estado, visto pelo prisma do
positivismo kelseniano, seria o ordenamento normativo, pelo que a dualidade Estado–
Direito desaparece e, com ela, a tensão entre vontade de um Estado real, com a razão
entendida como os direitos e os deveres dos sujeitos (KELSEN, 1960, p. 289-320). Além
disso, Kelsen continua incendiando a casa ao indicar que o ordenamento é hierárquico,
porque a lei não é expressão da soberania na medida em que é limitada pela Constituição,
o que justificaria um controle da lei (que se somaria ao controle já existente sobre os
atos da Administração) a favor dos direitos dos sujeitos, direitos que estariam consagrados
na norma superior (p. 228-236). Portanto, a vontade que se traduzia em lei, ao deixar
de ser soberana, já não tem a força para colocar em xeque a razão, os direitos (p. 251).
Continua Kelsen reimplantando o esquema da tensão ao assinalar que o juiz é tanto um
declarador de direito quanto um criador dele mesmo (p. 351), porque a dualidade de
vontade-criadora e razão-declaratória perde sentido (p. 252). Então, a importância do
pensamento de Kelsen em torno do equilíbrio (melhor que dizer tensão) de vontade–razão
radica na visão hierárquica do ordenamento e do controle judicial da supremacia
constitucional. Dessa maneira, surge em Kelsen que o estatismo (agora desvinculado do
legicentrismo) e a democracia são compatíveis no Estado Constitucional, levando em
conta que indicava um tipo especial de democracia (não mais o governo natural do demos,
mas o respeito por certos valores políticos, como a proteção das minorias, alternância
do poder etc.) e de Constituição (uma que consagre esses valores políticos e que exija
maioria reforçadas no momento de expedirem leis que comprometam direitos de minorias,
que estabeleçam um tribunal constitucional etc.).
Acrescentemos, a favor da interpretação feita por Costa, que existem mais
argumentos que esclarecem como, para Kelsen, os perigos da relação vontade-razão que

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vislumbraram nas democracias do século XIX dissipariam com seu Reine Rechtslehre.
Em primeiro lugar, Kelsen critica que a igualdade material durante esta não existe
realmente, constituindo uma ideologia do que é justo e, portanto, deve ser reservada em
um positivismo puro (KELSEN, 2000, p. 34-35); e considera a igualdade formal
(fundamento da vontade liberal) como um princípio ideológico que busca a legitimação
do sistema político existente, seja qual for (p. 23-25). Em consequência, em uma Teoria
Pura do Direito, a igualdade, como ideologia, não é um argumento válido cientificamente
porque perde toda sua força como fundador da vontade do demos. Em segundo lugar,
e compatível com sua perspectiva sobre a igualdade, a segurança jurídica (que é um
ideal da vontade que assim justificava suas intromissões perigosas diante dos direitos
dos sujeitos) é outra ideologia rejeitável pela Reine Rechtslehre: é uma ilusão enquanto
não existe uma interpretação correta ou um único sentido da norma (KELSEN, 1960,
p. 349-356). Mas esses dois aspectos são apenas um par de exemplos dos muitos outros
que o leitor pode colocar para complementar a linha traçada por Costa, os quais se
resumem na impossibilidade de fazer compatível o estatismo-legicentrista liberal com a
Teoria Pura do Direito.
Apesar disso, Costa afirma, a teoria kelseniana acaba sendo, uma vez mais, um
fracasso, visto que a vontade já não é soberana em termos de Lei mas sim, em termos
de Constituição, pelo que, apenas ao modificar a Constituição, esta teria o efeito autoritário
e despótico de que antes padecia a Lei (ou seja, que a vontade continua ameaçadora,
já não em forma de Lei, mas de Constituição). O problema do uso despótico da Lei, por
parte das maiorias, fica de certo modo resolvido, mas não o uso despótico que elas
podem fazer da Constituição, enquanto conservam o poder de reformá-la. Acrescentemos
que, com Kelsen, os direitos dos sujeitos (quanto ao seu conteúdo, quanto a sua
interpretação e quanto à forma de resolver seus conflitos13) são determinações jurídicas
derivadas da vontade, porque o próprio Direito poderia mudar seu sentido a qualquer
momento, pois o contrário seria aceitar que existem direitos que são prévios ao Direito
positivo, assunto que Kelsen rejeita abertamente (p. 253). Ao que parece, somente
afirmando a objetividade dos direitos (ou seja, afirmando a necessidade e a existência
dos direitos antes e fora do Estado) seria possível a defesa dos direitos contra o Estado
(p. 254). Em consequência, Costa nos diz, a tensão (entendida como os perigos da
preeminência de uma sobre a outra) entre vontade e razão permanece em Kelsen, apesar
das boas tentativas deste último para superá-la, algumas das quais serão revisitadas pelos
que o seguiram.

13
Todo conflito entre valores (e os direitos fundamentais têm um elevado conteúdo de valor) se resolve,
realmente, por meio da vontade de quem decide. KELSEN, Was ist…, Op. Cit., p. 16-17 (parágrafos 6-7). “Es ist,
letzten Endes, unser Gefuhl, unser Wille, nicht unser Verstand, das emotionale, nicht das rationale Element unseres
Bewußtseins, das den Konflikt löst” (Ibíd., p. 16). Agora, essa vontade pode se transformar em vontade soberana,
se aquele que decide se considera, a si próprio, soberano ou delegado do soberano.

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32
Mas antes de continuar com esta história, o leitor pode ver como nesta obra se
recorre a Kelsen, que, por ter sido mitificado indevidamente décadas atrás, agora
passa, pouco a pouco, a ser odiado nas culturas acadêmicas latino-americanas14. De
fato, Kelsen é um democrata e defensor de um Estado Constitucional, mas, o italiano
assinala bem, seus conceitos de democracia e Estado Constitucional não serão os
mesmos que defenderia um neoconstitucionalista contemporâneo (KELSEN, 2002), tal
como irei explicar adiante.
O leitor poderia, ainda, deter-se e escalar, com cuidado, esta montanha que Costa
desenha bem. E como fazê-lo? Em primeiro lugar, matizando a afirmação de que Kelsen
considerava o Estado real (vontade soberana) como uma metafísica pré-científica,
enquanto o que o australiano indica é que o Estado real é um objeto que não é próprio
da ciência do Direito. Assim, o que Kelsen define como ideologia (ou seja, metafísica
pré-científica para a Rechtswissenschaftliche) são os discursos que, dentro da ciência do
Direito, queriam justificar certo tipo de Estado, ou os que queriam limitar, com base em
supostas normas superiores, o (Direito do) próprio Estado. A separação entre política e
ciência do Direito não implica per se a consideração do Estado-real como inexistente ou
como ideologia pré-científica para todo o saber possível, mas, simplesmente, como objeto
estranho à pureza que deve defender o positivismo jurídico; o que é pré-científico, à luz
da Teoria Pura do Direito, são os discursos políticos e(ou) morais que se pretendem
legitimar a si próprios ao se catalogar como científico-jurídicos. Que seja o leitor aquele
que forme seu critério, mas não sem antes ler, pelo menos, o prólogo da primeira edição
da “Reine Rechtlehre” (KELSEN, 1960, p. III-VI). Kelsen, pois, não pretende a supressão
da ciência política nem afirma a inexistência de seus objetos de reflexão prioritários,
como o Estado entendido como vontade; o que ele defende é uma pureza metodológica
da ciência do Direito a partir de uma cosmovisão fragmentada das disciplinas.
Isso me leva a outra consideração para o leitor: Kelsen pode ser reinvidicado por
uma teoria política do Estado e, desde esta ótica (mas não tanto desde a jurídica), observar
como, com sua teoria, se mantém a dualidade e, por fim, a tensão que se produz entre
a vontade com os direitos. Isso pode saltar aos olhos na recém-editada “A new science
of politics. Hans Kelsen’s reply to Erik Voegelin’s “New science of politics”. A contribution
to the critique of ideology” (KELSEN, 2004), na qual Kelsen se refere às opções de uma
ciência política (e aproveita para defender, em 1954, o positivismo diante dos embates
acadêmicos de Pós-Guerra), bem como em trabalhos, com maior proporção latino-
americana, como os que Oscar Correas (CORREAS, 2003) agrupou e afirma:
“Este outro Kelsen, que propõe o direito como espaço e resultado, sempre provisório, da
política; que propõe o direito como mecanismo da democracia, antiestatista, mas sem
ingenuidades anarquistas; que propõe o direito internacional como possibilidade para a paz,

14
Sobre a recepção da obra kelseniana na América Latina, assinalando os efeitos de amor e ódio que esta
gerou, ver: LÓPEZ MEDINA, Diego. La teoría impura del derecho. Bogotá: Universidad de los Andes, Legis y
Universidad Nacional, 2004.

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que por ser a única possibilidade não tem nada de ingenuidade. Este outro Kelsen, que desconfia
dos computadores para nos lembrar que atrás de cada um deles existe um indivíduo que o
manipula, uma vontade que pode ou não fazer caminhar a razão conservada; que propõe o
mito de um deus semelhante ao deus do Estado; que pensa as normas como um ato de vontade,
que dá sentido à conduta de outros, ou seja, como um ato de dominação; que mostra a radical
irracionalidade da interpretação e a aplicação da lei, que não são mais que atos políticos
legitimados; que nos propõe a Grundnorm ao final, como uma ficção que atua em nossa
consciência, conferindo ao outro uma autoridade que não possui por si só; que mostra a todos
nós nosso papel de órgãos do Estado, de cidadãos vigilantes do cumprimento da lei que nos
domina; que propõe o Estado como ato ideológico de “imputação”; que explora a psicologia
individual dos totalitarismos e sua “visão do mundo”; que mostra o direito subjetivo como
técnica da sociedade capitalista, ou seja, o sujeito como criação histórica, muito antes de
Foucault” (p. 16) (N.T. Traduzido do espanhol).

A partir da ótica da leitura esboçada por Correas – que o leitor poderia considerar
exagerada em certos aspectos –, Kelsen, antes de buscar a supressão da tensão da vontade-
razão, parte de seu reconhecimento e, por fim, do reconhecimento de seus perigos para
a democracia, e assim propõe uma ciência do Direito neutro (a neutralidade é, no fundo,
uma decisão política e, além disso, uma forma de enfrentar, desde a academia, os riscos
do estatismo tirânico, que sempre busca ideologizar o Direito e sua ciência) e uma ação
política crucial para limitar a vontade do poder (que é a que determina o conteúdo do
Direito e guia a atividade interpretativa do órgão aplicador da norma jurídica) (KELSEN,
1960, p. 350-353).
Trata-se, pois, de outra leitura de Kelsen, mas não oposta à assinalada por Costa,
à medida que ambas leituras aceitam, por fim, que a tensão vontade-razão não desaparece,
querendo Kelsen ou não, na Teoria Pura do Direito.
Por último, o leitor latino-americano não deve perder de vista a importância de
Kelsen para o pensamento jurídico europeu no que tange à defesa judicial da constituição
e à supremacia constitucional diante da lei. Além disso, Costa deixa bem claro que fala
para as lideranças da cultura jurídica europeia-continental (p. 253). No entanto, na
América Latina, antes dos escritos de Kelsen, já existiam práticas normativas e judiciais
na mesma direção, como a ação de amparo mexicana (1841) ou a ação pública de
inconstitucionalidade colombiano-venezuelana (1897-1910), citando dois exemplos,
assuntos aos que me referi em outra ocasião (BOTERO BERNAL, In: Revista da Faculdade
de Direito, UFPR, 2009, p. 109-126).

6. A TENSÃO NOS ESTADOS CONSTITUCIONAIS DO PÓS-GUERRA

Voltando a Costa, ele indica que essa objetividade (que falta em Kelsen) que se
requer para o apoderamento da razão ante a vontade se encontra, justamente, nas
ideologias de resistência aos totalitarismos dos anos trinta (p. 254-255), que, por sua
vez, deixaram claro um renascimento das doutrinas do direito natural prévias às

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revoluções do século XVIII (p. 256), renascimento que o italiano situa em duas linhas:
a) no tronco da reflexão teológica cristã (não é estranho que seja mais ou menos a mesma
posição de Zagrebelsky15), que a cataloga como jusnaturalismo em sentido cabal (p. 256);
b) no entanto, é muito mais revelador da nova cultura jurídica o jusnaturalismo em
sentido amplo, que, com orientações heterogêneas, defende a existência de um vínculo
imediato entre pessoa e Direito, com independência do Estado, mas que determina a
legitimidade deste último (p. 256). Esta última linha apresenta uma grande vantagem:
por sua heterogeneidade, não pode contar com um único sistema fundacional dos direitos,
o que dá lugar a debates construtivos nas culturas políticas multiculturais contemporâneas
no momento de fundar, no âmbito nacional e internacional, os direitos (p. 256). Enfim,
uma vez que a Segunda Guerra Mundial passou, as novas constituições refletem este
ideal objetivador dos direitos, pois estes são o melhor baluarte contra o despotismo
estatal (p. 255).
Os Estados constitucionais europeus do Pós-Guerra são, de algum modo, resultado
da teoria kelseniana, por sua concepção hierárquica do sistema jurídico e pela defesa
judicial da Constituição como sistema contra-majoritário (p. 257), mas sem cair no
formalismo do austríaco que foi, segundo Costa, o culpado do fracasso de seu sistema
de equilíbrio entre vontade-razão. Como se evita o formalismo? Com a concepção dos
direitos como princípios superiores objetivados (p. 257), assunto que aproxima, em
muito, o relato de Costa ao neojusnaturalismo, desde a ótica dos positivistas, ou ao não-
positivismo, desde a postura dos jusnaturalistas clássicos.
Dessa maneira, entramos em outra fase da história da tensão (entendida como o
perigo da supremacia da política sobre o direito) entre a vontade e a razão: a segunda
metade do século XX europeu. Aqui, na teoria, a vontade seria assumida pelo Estado –
mas não qualquer Estado, e sim o constitucional –, e a razão pela Constituição, não
qualquer Constituição, mas as novas constituições (neoconstitucionalismo). Nesse espaço
e tempo do pensamento jurídico-político (pois é uma história do pensamento), os direitos
ficam formados em uma Constituição, pela qual já não há esboços morais, mas direitos
positivos (p. 258)16 que, aprendendo com os erros de Kelsen, resistem às maiorias, não
somente no plano legislativo (com a subordinação da Lei ante a Constituição), mas
também no constituinte, visto que se convertem em cláusulas que não se modificam para
o Parlamento (p. 259), o que implica uma distinção muito particular: o poder constituinte

15
O fundamento dos direitos está no humanismo cristão-católico, segundo: ZAGREBELSKY, Il diritto…,
Op. Cit., especialmente o quarto capítulo. Uma crítica à consideração do jusnaturalismo católico como o fundamento
dos direitos modernos, em: PECES-BARBA, Gregorio. Epílogo: Desacuerdos y acuerdos con una obra importante.
In: ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Trad. Marina Gascón. Madrid: Trotta, 1995. p. 159-160
(p. 157-173).
16
Algo como um direito positivo que, por ser objetivado, atua como se fosse um direito natural. Ver:
ZAGREBELSKY, Il diritto…, Op. Cit., sexto capítulo.

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e o poder de revisão da constituição, de que dispõe a maioria parlamentar, tal como ele
o assinala expressamente (p. 259).
Assim, as teorias tradicionais do poder constituinte ficariam reservadas para a
primeira distinção, mas não para a segunda, ainda que o leitor possa se perguntar
habilmente, se o poder constituinte não parlamentar – ou seja, o povo (seja por meio de
uma Assembleia Nacional Constituinte, ou um referendo constitucional etc.) – pode ou
não modificar a Constituição, no que tange aos princípios jurídicos básicos de organização
do Estado democrático e aos direitos fundamentais. Se a resposta é positiva, então
continuamos no mesmo problema que Costa observou em Kelsen: não há garantia anti-
majoritária plena para evitar a eliminação ou suspensão dos direitos, senão, em suma,
dificuldades sistemáticas que se impõem à maioria; neste caso, já não seria o Parlamento
quem poderia modificar a Constituição contra os direitos, mas o próprio povo (soberano)
poderia fazê-lo no exercício de sua liberdade de participação. Outra resposta seria que
sequer o povo, como poder constituinte, poderia fazer tal coisa, o que suporia, de um
lado, que já não haveria soberano (não pode se afirmar que existe poder constituinte
para certas coisas e não para outras: se a soberania tem limites, já não é mais soberania),
e, do outro, que teria que perceber, não somente para o acadêmico, mas também para o
cidadão, algo dificílimo: que existe uma razão objetiva, e portanto válida, que permitiria
extrair do âmbito do constituinte estes temas, apesar de que se parte da pluralidade do
povo (como afirmar a existência de uma objetividade quando se parte da pluralidade?)17.
Sobre esse assunto, algo se pode se perceber em Costa quando afirma, junto a
Mortati18 (ainda que o texto de Lassalle “Was ist eine Verfassung?” (LASSALE, 1992)
também tivesse servido para este propósito), que a Constituição escrita é simplesmente
a ponta do iceberg de uma Constituição material (p. 259-260), e se essa Constituição
base é a que permite a existência das maiorias (parlamentares, volta a assinalar), então
elas não poderiam variar as regras do jogo que permitem sua própria existência. De
qualquer forma, o cético poderia continuar se perguntando: por que as maiorias não
estão legitimadas ou facultadas para transgredir a base que lhes permite ser maiorias?
A pergunta seria pertinente se se parte de que, ao que parece, não exista razão jurídica
que obrigue à continuidade, no futuro, das maiorias (inclusive, a democracia é um sistema
que permite a alternância do poder). Além disso, as maiorias podem continuar sendo

17
Bobbio, por exemplo, considera que a pergunta pelo fundamento dos direitos é uma tarefa inútil (BOBBIO,
Norberto. Per una teoría generale della política. Torino: Einaudi, 1999. p. 421-466; BOBBIO, Norberto. L’etá dei
diritti. 9.ed. Torino: Einaudi, 2006. p. 5-16) por não poderem esboçar uma base objetiva (Ibíd., p. VII-XX), pelo
que é mais relevante discutir sobre as garantias dos direitos (Ibíd., p. 17-44). Enfim, para este autor os direitos são
conquistas históricas que exigem, para sua sobrevivência, da ação política.
18
Autor predileto por muitos neoconstitucionalistas italianos, apesar de ser sua obra principal nesta linha,
“La costituzione in senso materiale” (1940), um texto próprio da cultura fascista. Ver esta crítica em: PECES,
Epílogo…, Op. Cit., p. 159.

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maioria, porém fora do sistema constitucional; o que a Constituição material faz é outorgar
ou não poderes públicos a essas maiorias, mas não é quem faz, necessariamente, essas
maiorias. Em consequência, uma coisa é indicar que a Constituição não dá poderes às
maiorias para que a reformem, e outra é dizer que a Constituição é a que permite a
criação delas, com o que não seria válido que o efeito variasse sua causa. Tudo se reduz,
pois, a entender os alcances da Constituição material, e como se forma uma maioria. O
que fica claro, no momento, é que a preocupação maior de Costa –e não é para menos
– não é o poder constituinte do demos, mas o poder de reforma da Constituição por parte
do Parlamento, que é um poder mais real e, portanto, perigoso.
Não obstante, o autor italiano nos dá alguma luz ao finalizar este parágrafo:
“Por certo, ainda parece juridicamente incontrolável o poder constituinte: um poder que, de Sieyès
em diante, concentra em si a imagem da absoluta liberdade criativa e destrutiva do demos e
poderia parecer ainda livre para agir (‘revolucionariamente’), desarranjando a ordem constitucional
existente. Parece, então, abrir-se novamente um processo ad infinitum e se repropor, em seu interior,
aquele dilema fundamental – a tensão entre o soberano e a norma, entre o poder do demos e a
ordem do direito e dos direitos – que ameaça tornar problemática a aliança entre a democracia
política e o Estado constitucional” (p. 261).

Se entendi bem, Costa indica que o problema dos limites do poder constituinte,
entendido como demos, parece ainda incontrolável, com o que a tensão (o perigo)
subsiste. Não obstante, adiante, o florentino fará uma jogada que poderia dar novas
luzes a este problema: o demos abre caminho às elites, com o que a tensão, discursivamente,
poderia diminuir.
De qualquer forma, seja qual for a resposta à questão que esboço para o leitor,
Costa continua assinalando que o Estado vinculado a uma Constituição concreta como
as surgidas na Europa logo da Segunda Guerra Mundial, permite dar conta de um
característico antivoluntarismo e objetivismo no momento de buscar fundamentar os
direitos (ressaltando nisto a Hauriou e Häberle), que acabam assim situados no que
Ferrajoli denomina “o âmbito do não decidível” (p. 260).
Costa se questiona se o conceito de demos mudou. A resposta é contundente: não
que ele tenha mudado em si mesmo, mas que já estamos em condições de assinalar que
se tratou de um discurso fundamentador do sistema, que ocultava o poder de certas
elites que seguiam certas regras do jogo, consideradas mais aceitáveis do que as do
despotismo iluminista. Nada mais claro a respeito do que a seguinte frase:
“Não são ‘todos’, ou mesmo os ‘muitos’, a decidir, mas os ‘poucos’, os membros das elites. Os
mesmos partidos que, como novas organizações de massa, mudaram o quadro oitocentista da
representação, exprimem e repetem em seu interior a lógica elitista que caracteriza todo o sistema
político. O mecanismo democrático-representativo é, assim, apenas uma simulação legitimante:
não dá voz ao povo soberano, mas simplesmente oferece um método eficaz para a formação da
classe dirigente (para uma «simples designação» de «capaz», como já havia afirmado Vittorio
Emanuele Orlando), além de permitir sua troca de maneira ágil e indolor” (p. 262-263).

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E mais adiante lemos:
“A democracia não é o poder do demos: é uma arena onde se desenvolve uma (regulamentada)
competição entre líderes rivais, que não tanto exprimem a ‘vontade do povo’, quanto a ‘constroem’,
induzem-na, com técnicas não muito diversas daquelas empregadas pelos publicitários,
influenciando profundamente as inclinações dos eleitores. A concorrência entre políticos parece,
em certa medida, semelhante à concorrência entre empresários empenhados a disputar uma ou
outra categoria de consumidores” (p. 263).

Isso leva a duvidar de Rousseau (pois não existe uma vontade generalizada, mas
muitas vontades que expressam pluralidade de interesses) e de Marx (não existe um
povo unitário que luta por sua emancipação). A democracia é a interação de grupos e
poderes diversos, com interesses que se distinguem uns dos outros: é uma poliarquia
(p. 264) que não se expressa mediante maiorias, mas mediante minorias que, pelos jogos
democratas, mudam e se alternam mais facilmente que em outros modelos políticos. A
democracia, pois, parte do pluralismo que, por sua vez, é consequência de aceitar que
o demos, como maioria ou povo com um interesse identificável, é inexistente. Assim,
entendendo o demos como um acúmulo de interesses heterogêneos, a tensão (o perigo)
em uma democracia entre a vontade do poder estatal e a razão dos direitos perde muito
peso, visto que a democracia não põe em xeque-mate a ordem constitucional, se reconhece
a existência da pluralidade, à medida em que já não se pode falar de um povo, de uma
vontade, de um interesse. Enfim: o Estado pode ser ao mesmo tempo democrático e
constitucional (p. 265).
É claro que aqui o leitor latino-americano perguntará sobre seu contexto. Costa,
como já disse, fala da experiência europeia e, em alguns casos que ele mesmo deixa
claros, da dos Estados Unidos (assim o indica, no último tema comentado, na p. 264).
Mas, apesar dessas precauções do autor florentino, pode se transferir este pensamento
para a América Latina? Como discurso transnacional que o neoconstitucionalismo
pretende ser, é claro que sim, mas, como realidade sociopolítica, bem sabemos que a
América Latina não conquistou o reconhecimento efetivo da diversidade que se prevê
no Estado Constitucional. As forças homogeneizantes nos âmbitos socioculturais são mais
fortes em nossa tradição, e não somente se fala do hoje. Pense, por exemplo, como no
século XIX latino-americano os discursos do demos legitimante da ação política estiveram
filtrados pela homogeneização religiosa católica. Assim, o leitor poderá considerar a
importância destas reflexões em contextos bem diferentes.
Já para finalizar, Costa assinala que nem tudo mudou. Se analisamos bem,
sobrevive, no conceito de democracia do pensamento tradicional dos séculos XVII e
XVIII o seguinte: o demos se resolve nos sujeitos (p. 265), pois, afinal de contas, a
modernidade reivindica a existência do sujeito substante (assunto do qual se falou no
início do texto). No entanto, graças às novas ideias que atravessam o espaço-tempo vital
europeu de Pós-Guerra, podemos vislumbrar, em alguma medida, o fim da tensão (do

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perigo) entre poder e direito (p. 265), pois a constituição entra em harmonia discursiva
com uma democracia entendida como pluralidade (p. 266). Aqui o leitor levantaria sua
voz: para protestar (terminará a tensão, ou melhor, o risco para os direitos, por parte do
Estado, se este agora é Constitucional?) ou por alegria (chegou o fim – glorioso – dos
tempos despóticos!). Acreditei, devo confessá-lo, que Costa seria parte deste segundo
grupo. Já tinha preparado meus argumentos para indicar ao leitor que algo tão bom não
ocorre com frequência, visto que a cultura dos direitos do neoconstitucionalismo pode
levar ao totalitarismo (agora do juiz, o que poderia ser ainda mais tenebroso, dependendo
dos contextos onde atua) e à extinção de identidades culturais em nome dos direitos
ocidentais, que são, mutatis mutandi, os mesmos perigos do Iluminismo.
Mas, claramente, Costa não se deixa levar por essas expressões quase românticas
das vozes de exagerado otimismo, e deixa claro que o tema ainda não termina, e que
existem complicações que, por não serem bem conduzidas, implicariam um retorno à
tensão (ao perigo) que agora, discursivamente, está resolvido, ou a caminho da resolução.
A primeira complicação se manifesta no interior de cada ordenamento constitucional, no
qual existe a tensão entre o direito de participação em condições iguais de todos os sujeitos,
de um lado, com a ordem hierarquizada da sociedade poliárquica, na qual os grupos sociais
mais fortes e organizados predominam sobre os outros, do outro (p. 266).
A segunda complicação é como articular o Estado constitucional com a
globalização, que implica direito supranacional (como a normativa da União europeia),
tribunais de justiça internacionais, cartas de princípios e direitos transnacionais etc. Esta
segunda complicação ocupa mais o florentino, que deixa claro que ali não se enquadra
uma tensão vontade-razão, pois não está ali, ele disse, um demos planetário nem um
poder constituinte global, especialmente porque já não há mais lugar para este mito
fundador da democracia (p. 267). Isso supõe que o constitucionalismo contemporâneo
leva seu campo de batalha a favor da razão (a favor dos direitos), mais além dos
ordenamentos nacionais, e a guerra seria vencida com a conquista de que, na ordem
global, o fundamento dos novos poderes transnacionais fossem os direitos fundamentais
garantidos, inclusive, por cartas internacionais (p. 267), em que os órgãos judiciais –
agora internacionais – seriam os guardiões naturais dos direitos – no âmbito global (p.
267; desta maneira, voltamos à consideração do juiz como braço da razão na tensão
com a vontade, que está na p. 238).
Mas o leitor pode ver bem que Costa, apesar de reconhecer a complicação do
Direito global, não deixa claro a que poderes se refere, e talvez fosse um tanto breve o
modo que considerou, desde o dever ser, os riscos de uma nova tensão poder-direitos
fora do marco democrático. Ou seja, desde a democracia, na sua maturidade europeia,
a tensão não deveria ser forte justamente pela ausência de um demos e um poder
constituinte planetário (ainda que nada impeça que se dê – primeiro por blocos regionais,
depois por blocos continentais e, até mesmo, mundial – um poder constituinte que

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transcenda o nacional). Mas por acaso a tensão no âmbito internacional só pode se dar
na democracia tal como evoluiu na atualidade? A mesma especialidade que a democracia
tomou, e que bem a ilustra Costa, fez com que esta deixasse de se conceber como um
ato de vontade justificada por um demos, para passar a ser um sistema regulatório do
poder dos grupos minoritários que se alternam mutuamente (um grupo elite que governa
em virtude de algumas regras preestabelecidas, consideradas como melhores diante das
regras do jogo do autoritarismo), requer por si que esta democracia tão específica já não
inclua todos os modelos possíveis nos quais pode se apresentar na atualidade o poder
do próprio demos. Isso nos leva, pois, a considerar como possível a tensão entre poder
e direitos nos (velhos e, especialmente, novos) poderes internacionais, muitos dos quais
se concebem como democratas, além daqueles poderes públicos que podem se considerar,
pelas pessoas comuns, como destacados dentro da nova posição que tomou a democracia
constitucional. Não confundamos os efeitos políticos gerados pelo FMI ou alguma
multinacional, se comparados com os que algum tribunal internacional de direitos
humanos ou a Corte Penal Internacional de Justiça procura, ao declarar algo19.
Acrescentemos que o leitor, neste momento, pode se perguntar se essas duas
complicações assinaladas por Costa são as únicas ou, pelo menos, as mais perigosas
para a tensão de que se fala no Estado Constitucional. Considero que outra complicação
está no debate entre a segurança e a certeza que requer todo o sistema social
para seu funcionamento – de um lado –, com os efeitos que pode produzir o
neoconstitucionalismo – de outro –, assunto que, se não é conduzido adequadamente,
poderia gerar um desapontamento generalizado ante o modelo que tanto Alexy e
Zagrebelsky defendem, entre outros. Também poderia mencionar a complicação derivada
do multiculturalismo e o discurso dos direitos individuais mais além do direito à igualdade.
Outra complicação é que, na medida em que se conferem mais limites às maiorias, se
sobe no sistema jurídico hierárquico (lembre-se da boa crítica que Costa fez a Kelsen:
limitou as maiorias no momento de fazer a Lei, não no momento de reformar a
Constituição), mas isso denota que aumenta a incerteza sobre o que o juiz dirá como
Direito tanto quanto a norma, seguindo Kelsen, quanto mais alta, mais geral (Hart
preferiria dizer que é mais vaga ou ambígua). Enfim, acredito que as complicações dentro
dos ordenamentos são muito mais numerosas do que as que o italiano destaca.

19
Para maior ilustração sobre a complexidade das relações entre vontade e razão no âmbito globalizado,
ver: DAHRENDORF, Ralf (em diálogo com Antonio Polito). Después de la democracia. Trad. Luciano Padilla López.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003. Este texto analisa muitas das preocupações expressas por Costa:
a crise da democracia no Estado-nação contemporâneo (p. 7-15 y 81-97), o problema da democracia no âmbito
internacional (p. 16-30), a ausência de um demos europeu (p. 39-63, especialmente 55-58), o poder dos meios de
comunicação como intermediários entre o governo e os sujeitos (p. 98-109) etc. O leitor poderia, sem maiores
dificuldades, comparar estas duas obras.

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Voltando a Costa, ele finaliza seu trabalho matizando o otimismo do
neoconstitucionalismo, indicando que existem outros dois problemas que se somam às
complicações do novo estado de coisas. O primeiro destes problemas deriva de que o
juiz, especialmente o constitucional, ao se reconhecer como um agente político (pois
desaparece o mito do juiz imparcial), como um criador de políticas públicas, passa a ser
um órgão que oscila entre a vontade e a razão (já não apenas um órgão defensor da
razão), o que se soma à carência da legitimação que dá a liberdade de participação, já
que ele não é eleito (p. 268). Enfim, alude tangencialmente nosso autor ao que foi
denunciado como a tirania dos juízes como um risco político no Estado constitucional.
O segundo problema é que o baluarte da democracia, a todo instante, é a liberdade
de participação. Porém, atualmente, esta liberdade de participação não foi deteriorada
justamente pelos ataques constantes que recebe a autonomia de decisão dos sujeitos?
(p. 268). Dito em outras palavras, a videocracia20, por assim dizer, que domina os âmbitos
eleitorais contemporâneos, está de acordo com o novo âmbito democrático, que, ao se
articular com a Constituição, dá lugar a um possível fim da tensão vontade-razão?
Costa, pedagogicamente, não responde a esses questionamentos, apenas nos
indica no último parágrafo da sua obra: se o leitor considera que as complicações e os
problemas não têm fundamento, então a tensão foi resolvida; mas poderia concluir por
outra via: que a democracia contemporânea renunciou ao sonho de reconduzir o mundo
por intermédio dos (direitos dos) sujeitos (p. 268).

7. COMO CONCLUSÃO

Enfim, concluindo, queria deixar claro ao leitor que esta obra, sem dúvida alguma,
é uma ferramenta fundamental para os estudos de base que compartilham a história do
direito, a jusfilosofia e o direito constitucional. As virtudes da obra estão ancoradas,
especialmente, no estilo ameno do autor, na profundidade do que foi dito (para o leitor
especializado) e na tranquilidade da exposição do fundamental (para um leitor mais
generalista). Amplamente recomendo sua leitura, mas sem miticismos, sem dogmatismos,
sem atos de fé. E a melhor maneira de fazê-lo é matizando e questionando até o limite.
É por isso que finalizo com uma questão que tanto me preocupa, e que o leitor
poderá usar em seu exercício cognitivo: por acaso, a pretendida guerra contra o terrorismo
não seria a nova roupagem do estatismo para dominar, pela vontade (ou graças ao medo)
o demos, e a favor de certa elite que controla o público, a razão dos direitos?

20
E faço alusão especialmente ao seguinte texto: SARTORI, Giovanni. Homo videns. Roma-Bari:
Laterza, 1997.

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Recebido: julho 2010


Aprovado: abril 2011

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NOTAS PROGRAMÁTICAS PARA UMA NOVA HISTÓRIA DO
PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO BRASILEIRO*

PROGRAMMATIC REMARKS FOR A NEW HISTORY


OF BRAZILIAN CONSTITUTIONALIZING PROCESS

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira**

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo contribuir para uma reflexão acerca do sentido normativo
que se autoexpressa na práxis de autodeterminação política no constitucionalismo, por meio de uma
reconstrução acerca do modo como o processo de constitucionalização brasileiro articula memória e
projeto, experiência e expectativa – e, assim, deixa entrever as suas relações com o tempo histórico.
Apresenta a hipótese segundo a qual as relações que a constitucionalização brasileira desenvolve com
o tempo histórico podem ser compreendidas como processo não linear e descontínuo, reconstruído
como processo de lutas por reconhecimento e de aprendizagem social com o Direito, que se realiza ao
longo da história, todavia sujeito a interrupções e a tropeços, mas que também é capaz de se autocorrigir.
A justificação teórica entrecruza, de forma tensa e complexa, três marcos ou perspectivas fundamentais,
a serem apenas esboçados aqui: 1 – Desconstrução, 2 – uma Filosofia Crítica da História atenta para

* Em sua versão original, o presente texto foi apresentado no II Congresso Internacional de História do
Direito, para o painel “Direito como processo de aprendizagem de longa duração: revisão ou reconstrução (da
história) e do direito”, promovido pela Faculdade de Direito Milton Campos, Nova Lima – MG e organizado pela
Associação Brasileira de Filosofia e Sociologia do Direito – ABRAFI. Ele foi redigido a partir do projeto de pesquisa
“História e Teoria do Processo de Constitucionalização Brasileiro”, coordenado por mim, junto ao Departamento
de Direito Público da Faculdade de Direito da UFMG, que se desdobra atualmente em orientações de mestrado e
de doutorado, assim como em três grupos de estudo e pesquisa, envolvendo pesquisadores da graduação e da
pós-graduação. Agradeço ao colega Professor Lucas de Alvarenga Gontijo, Coordenador do II Congresso, pelo
honroso convite. Naquela oportunidade, dediquei minha exposição a ele. Agradeço especialmente a David Francisco
Lopes Gomes, mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Direito, na linha de pesquisa Direito, Razão e
História, e bolsista CAPES/REUNI junto ao Bacharelado em Ciências do Estado da Faculdade de Direito da UFMG,
pelas importantes observações e sugestões. A minha referência originária e inesquecível, para distinguir falta e
ausência, é o poema Ausência, de Carlos Drummond de Andrade: “Por muito tempo achei que a ausência é falta./E
lastimava, ignorante, a falta./Hoje não a lastimo./Não há falta na ausência./A ausência é um estar em mim./E sinto-a,
branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,/que rio e danço e invento exclamações alegres,/porque a
ausência, essa ausência assimilada,/ninguém a rouba mais de mim.”
** Mestrado e Doutorado em Direito Constitucional (UFMG). Estágio pós-doutoral com bolsa da CAPES
em Teoria e Filosofia do Direito (Università degli studi di Roma TRE). Professor Associado do Departamento de
Direito Público e do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito (UFMG). Coordenador pro
tempore do Bacharelado em Ciências do Estado (UFMG). Membro do IDEJUST, do IHJ, da ABRAFI e do IBDP.

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os desafios postos pela Hermenêutica Crítica da Condição Histórica e 3 – Reconstrução. Com isso,
pretende-se romper com perspectivas teóricas presentes na chamada “tradição dos retratos ou intérpretes
do Brasil”, da qual parcela significativa da doutrina constitucional brasileira faz parte, marcadas por
uma leitura teológico política da falta de povo soberano, convergente quanto à proposta de uma
modernização autoritária no marco de uma democracia possível e dualista da chamada brasilidade. Tal
leitura tradicional contribui para a reificação da história constitucional brasileira ao impedir, com
consequências deslegitimizantes, o reconhecimento de lutas da cidadania por direitos, que constituem
internamente o processo político de aprendizado social com o Direito, de longa duração. Por fim, uma
vez definidos os desafios para uma nova história do processo de constitucionalização brasileiro, propõe
sete possíveis eixos de pesquisa.

PALAVRAS-CHAVE: Desconstrução. Hermenêutica Crítica. Reconstrução. Retratos do Brasil – processo


de constitucionalização.

ABSTRACT: This article aims to contribute to a reflection on the normative sense that expresses itself
in the praxis of political self-determination in constitutionalism through a reconstructive approch about
how the Brazilian process of constitutional-making articulates memory and project, experience and
expectation – and, thus, suggests its relationship with historical time. Presents the hypothesis that the
relationship between Brazilian constitutional-making and historical time can be understood as a process
that is not linear and discontinuous, reconstruct as a process of struggles for recognition and social
learning with the law, which takes place throughout history, however subject to interruptions and
setbacks, but is also able to correct itself. The theoretical justification intersects, in a tense and complex
sense, three fundamental perspectives or frameworks, to be only outlined here: 1 – Deconstruction, 2
– a Critical Philosophy of History’s attention to the challenges posed by Critical Hermeneutics of
historical condition and 3 – Reconstruction. With this, it aims to break with theoretical perspectives
present in the “tradition of pictures or interpreters of Brazil” in which a significant portion of Brazilian
constitutional doctrine is a part, marked by a theological reading of the lack of political sovereign people,
converged on the proposal an authoritarian modernization within the framework of a possible democracy
and the dualistic reading of the called Brazilianness. This traditional reading contributes to the reification
of the Brazilian constitutional history to prevent, with consequences deslegitimizantes, recognition of
the struggles for citizenship rights, which are inside the political process of social learning with the law,
long-lasting. Finally, once defined the challenges for a new history of Brazilian process of constitutional-
making, it proposes seven possible lines of research.

KEYWORDS: Desconstruction. Critical hermeneutics. Reconstruction. Pictures of Brazil. Constitutional-


making process.

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“Meu tempo é quando” – Vinicius de Moraes.

1. Introdução

O presente artigo tem por objetivo contribuir para uma reflexão acerca do sentido
normativo que se autoexpressa na práxis de autodeterminação política no constitucionalismo,
por meio de uma reconstrução acerca do modo como o processo de constitucionalização
brasileiro articula memória e projeto, experiência e expectativa – e, assim, deixa entrever
as suas relações com o tempo histórico. Avança a hipótese segundo a qual as relações que
a constitucionalização brasileira desenvolve com o tempo histórico podem ser compreendidas
como processo não linear e descontínuo, reconstruído como processo de lutas por
reconhecimento e de aprendizagem social com o Direito, que se realiza ao longo da história,
todavia sujeito a interrupções e a tropeços, mas que também é capaz de se autocorrigir.
A justificação e os marcos teóricos a serem desenvolvidos visam romper com perspectivas
teóricas presentes na chamada “tradição dos retratos ou intérpretes do Brasil”, da qual
parcela significativa da doutrina constitucional brasileira faz parte, marcadas por uma
leitura teológico política da falta de povo soberano, convergente quanto à proposta de uma
modernização autoritária no marco de uma democracia possível e dualista da chamada
brasilidade. Tal leitura tradicional contribui para a reificação da história constitucional
brasileira ao impedir, com consequências deslegitimizantes, o reconhecimento de lutas da
cidadania por direitos, que constituem internamente o processo político de aprendizado
social com o Direito, de longa duração (BRAUDEL, 2005, p. 41-78). Por fim, uma vez
definidos os desafios para uma nova história do processo de constitucionalização brasileiro,
propõe sete possíveis eixos de pesquisa.

2. Justificação Teórica

A justificação teórica entrecruza, de forma tensa e complexa, três marcos ou


perspectivas fundamentais, a serem apenas esboçados aqui: 2.1 – Desconstrução, 2.2 –
Uma Filosofia Crítica da História atenta para os desafios postos pela Hermenêutica Crítica
da Condição Histórica e 2.3 – Reconstrução.
2.1 – Desconstrução: “escovar a contrapelo” (BENJAMIN, 1995) a chamada
tradição dos intérpretes e dos retratos do Brasil, da qual faz parte “a doutrina
constitucional brasileira”.
A desconstrução, no sentido de Derrida, consiste na realização complexa de
quatro operações interventivas, visando desmontar, desmantelar, desestabilizar ou
subverter uma determinada construção teórica, o modo com que ideias, crenças e valores
são estruturados e se sustentam mutuamente, dentro de um dado esquema conceitual.
A razão pela qual se pretende intervir nos esquemas conceituais desconstruindo-os

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consiste na exigência do reconhecimento e da explicitação de tudo aquilo que não possa
ser reduzido a certos pares irredutíveis de conceitos opostos, e que, portanto, acaba
sendo excluído e marginalizado, assim como reconhecer a hierarquia imposta que
estrutura esses pares conceituais: universal/particular, espiritual/material, eterno/
temporal, homem/mulher, humano/animal, público/privado, real/ideal, fatos/normas etc.
Primeiramente, busca-se a identificação das construções conceituais a partir das quais
se pretende descrever uma realidade, comumente construída com a utilização de um ou
mais pares de conceitos considerados, para determinado campo teórico, como irredutíveis.
Em um segundo momento, a explicitação das hierarquias subjacentes a essa descrição
dualista. Terceiro, a subversão dessa hierarquia, procurando mostrar que uma dada
ordenação reflete certas opções estratégicas e não algo que possa ser considerado inerente
ou natural a esses pares conceituais. Por fim, a produção de um terceiro termo
complicador que, em última análise, juntamente com a operação de subversão, leva a
uma deformação, a uma reformulação ou mesmo a uma transformação. (BORRADORI,
2003, p. 197-199; PERELLI in ORTIZ-OSÉS e LANCEROS, p. 143-149; DERRIDA IN
CORNELL, 1992, p. 3-67; DERRIDA e ROUDINESCO, 2004, p. 9-31).
Nesse sentido, o que se pretende é “escovar a contrapelo” (Benjamin, 1995)
a chamada tradição dos intérpretes e dos retratos do Brasil, da qual faz parte “a doutrina
constitucional brasileira”, procurando explicitar e subverter os seus pressupostos
não problematizados.
Leituras tradicionais da história brasileira são feitas no espelho de uma teologia
política segundo a qual somente por meio da “ruptura institucional” ou “revolucionária”,
promovida pelo macrossujeito “povo soberano”, poder-se-ia caracterizar o genuíno
exercício de um poder constituinte capaz de legitimar uma ordem constitucional, desde
a sua origem – algo no que, aliás, parecem convergir, quer sejam conservadores, quer
progressistas, importantes autores da chamada “tradição dos retratos do Brasil” (PACE
BARACHO JUNIOR, 2009, p. 158-166).
Há de se considerar – estando atento aos motivos, propícios e inibidores, para
uma história da mentira (em que inverdade é diferente de mentir. Cf. DERRIDA, 1996,
p. 32-35; 2006, p. 88-101) – que pontos de vista comuns aproximam autores tão
supostamente diferentes entre si, tais como Oliveira Vianna (2005, p. 347-408) e Sérgio
Buarque de Holanda (1995, p. 139-188): o darwinismo de um e o historicismo de outro
não deixam de convergir numa narrativa que é sempre contada, ritualizada, da perspectiva
do vencedor (Benjamin, 1995). Ou seja, da perspectiva das chamadas “elites” sociais,
econômicas e políticas; perspectiva essa que não apenas despreza a visão dos oprimidos,
mas fecha os olhos para as lutas políticas por direitos e pelo reconhecimento da cidadania,
que não podem ser reduzidos a meras concessões paternalistas. E dessa tão supostamente
esquecida, quanto louvada, “tradição do pensamento brasileiro” (cf. REIS, 2006a e
2006b; CÂNDIDO in HOLANDA, 1995; PAIM in VIANNA, 2005; SOUZA, 2009) também

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não deixam de participar autores como Gilberto Freyre (1998), Caio Prado Junior (1969),
Raymundo Faoro (FAORO, 2001, p. 865-887), Roberto da Matta (1981, 1999) e José
Murilo de Carvalho (1990; 1998; 2001). Em tal contexto, cabe salientar a existência de
uma tradição que se faz representar pelo chamado discurso do mesmo, em termos de
diagnóstico e de solução possível para o Brasil. Primeiro, o diagnóstico: “nunca ou poucas
vezes teriam acontecido rupturas genuínas na história política do País”. Em segundo, a
seguinte e inevitável consequência a que esse diagnóstico convergente poderia levar a
uma solução negociada e de “centro”, entre as elites, e todavia reificante, como
“esquecimento e negação, não reconhecimento” (HONNETH, 2007a, p. 51-62) da
cidadania: na falta de rupturas revolucionárias, a denunciar a própria falta de povo ou
nação que pudesse ser o sujeito, titular, de um genuíno poder constituinte, a única via
que permaneceria aberta seria a da “modernização autoritária” ou do “autoritarismo
instrumental” (cf. SANTOS, 1978), no contexto de uma democracia possível (pelo e para
o “povo”, mas não do “povo”), a ser conduzida pela “máscara totêmica” (KELSEN,
2000, p. 303-343) de um “suposto substituto funcional” (NEUMANN, 1957, p. 22-68;
1996, p. 101-141) do velho Poder Moderador imperial, na figura secularizada (SCHMITT,
1988, p. 46), seja a de um presidente forte, a das forças armadas, ou até mesmo, mais
recentemente, a de uma corte constitucional. Este “substituto-mascarado” – que
paradoxalmente pudesse ser escolhido/erigido pela elite política esclarecida, consciente
e responsável, e que, assim, a representasse – seria ao mesmo tempo capaz de
salvaguardar e de ocupar o lugar vazio da cidadania e da nacionalidade inexistentes, a
fim de forjá-las e para governá-las...
Em obra recente, Jessé Souza (2009) chama atenção acertadamente para o caráter
racista e conservador dessa tradição de pensamento, ao comparar, por um lado, o
pensamento de Gilberto Freyre, glorificador da herança luso-brasileira e de uma
identidade nacional mestiça, e, de outro, o pensamento (pseudo) crítico de autores como
Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Simon Schwartzman e Roberto da Matta,
defensores da tese segundo a qual “o brasileiro” sofreria de um “mal de origem”, ou
seja, a mesma herança, agora valorada de modo invertido, como patrimonialista e
personalista, que nos teria sido legada pelos portugueses (SOUZA, 2009, p. 56). Segundo
Souza, Buarque de Holanda inverte especularmente a leitura “positiva” de Freyre,
todavia sem questionar-lhe os fundamentos racistas (SOUZA, 2009, p. 54), ou seja, dá
continuidade a uma espécie de “teoria emocional da ação social”, combinada a uma
visão economicista de mundo, que insiste num suposto caráter pré-moderno da sociedade
brasileira, com todas as suas “compensações fantasiosas” (SOUZA, 2009, p. 58): o brasileiro
é “cordial”, “caloroso”, “hospitaleiro”, “sensual”, “exótico”, “edênico”. Para Souza:
“A visão que aceita a tese de nosso mal de origem possui apenas um ‘charminho crítico’
superficial, porque, na verdade, aceita o ‘racismo disfarçado’ do culturalismo como verdadeiro.
Desse modo, o preconceito do senso comum, ou seja, o preconceito do ‘exotismo’ construído

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pelo domínio pré-moderno da emoção e da sentimentalidade como representação de sociedades
inteiras se torna, também, o preconceito que entra de contrabando na reflexão metódica, ou
seja, do conhecimento produzido com prestígio e a autoridade da ciência. Essa é a gênese
verdadeira da interpretação ‘científica’ até hoje dominante entre nós não só nas universidades,
mas também fora delas, na imprensa e no debate público.” (SOUZA, p. 57)

Segundo Jessé Souza (2009, p. 54-72), sobretudo a partir de Sérgio Buarque de


Holanda, o que caracterizaria a chamada “brasilidade” seria a sua plasticidade (conceito
apropriado de Gilberto Freyre), tida como nossa herança ibérica, conceito fundamental
para a construção das teses do patrimonialismo, do personalismo, do “homem cordial”,
do estamento, da “malandragem”, do “jeitinho brasileiro” etc., que irão permear as
leituras (pseudo) críticas posteriores, criadoras verdadeiramente de toda uma mitologia
culturalista da brasilidade (o mito do mercado virtuoso confundido com a sociedade e
o mito do Estado corrupto, por natureza, sem falar no mito do pioneirismo bandeirante
e no mito de São Paulo como a “Massachussets tropical”, em contraposição ao Brasil
“tradicional” e “arcaico” etc., ou seja, “o resto”). Tal mitologia culturalista – que “generaliza
um preconceito arraigado do senso comum e o continua com o beneplácito da ‘autoridade
científica’” (SOUZA, 2009, p. 79) – é extremamente atuante, como imaginário social
historicamente “reproduzido todo dia nas famílias por pessoas que amamos, e na escola
e nas universidades, por pessoas que respeitamos, a sua reprodução se torna automática
e não refletida” (SOUZA, 2009, p. 71). E isso de tal modo a justificar ideologicamente
desigualdades e privilégios estruturais, todavia não naturais (SOUZA, 2009, p. 71).
Não se pode mais pensar em todo esse “patrimônio cultural” e suas origens – não
tanto “a fadiga dos grandes gênios que o criaram, mas antes a escravidão sem nome de
seus contemporâneos” – “sem sentir horror”: “Não existe documento da cultura sem
que seja, ao mesmo tempo, documento da barbárie” (BENJAMIN, 1995, p. 79). Longe
de assumir a mera perspectiva piedosa ou de compaixão em prol das vítimas e dos
oprimidos idealizados, típica de uma retórica fácil e ruim, do chamado “politicamente
correto” (SOUZA, 2009, p. 89-100), o que está em questão é o difícil e insaturável
caminho da construção pública da justiça como possibilidade de toda desconstrução
(DERRIDA in CORNELL, 1992). É, portanto, chegada a hora, e a hora do presente é a
do juízo, de seguir a recomendação de Benjamin e assumir como nossa a tarefa de “escovar
a contrapelo a história” (BENJAMIN, 1995, p. 78-79; BENJAMIN, 2006, p. 483-517; cf.
MARRAMAO, 2000, p. 311-329, 2008a, p. 108-130; COSTA, 2008, p. 143-214).
Afinal, como se pode considerar a legitimidade de um processo de
constitucionalização senão como sendo a própria construção, aqui e agora, dessa
legitimidade por-vir? (DERRIDA, 2003; 2004) E de uma legitimidade por meio da
legalidade, do reconhecimento segundo o qual se deve, inclusive, rever a teologia política
atribuída à concepção francesa do poder constituinte como ato do soberano (MARRAMAO,

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2003, p. 225-232) e compreender que, hoje, após mais de dois séculos de
constitucionalismo, o poder constituinte “requer mais do que a simples e bruta tomada
do poder ou manipulações palacianas para obter apoio do povo.”? (CARVALHO NETTO
2002, p. 45). Nesse sentido, para Menelick de Carvalho Netto, o poder constituinte,
embora ilimitado em relação à ordem com a qual rompe,
“(...) encontra-se vinculado a criar instituições capazes de garantir esses princípios [liberdade
e igualdade] jurídica e politicamente, pois, ao institucionalizar o poder público, o faz de tal
modo que a própria constituição dos órgãos e a forma de atuação dos mesmos os densifique.
O Estado moderno retira de seu próprio operar, de seu funcionamento regido por esses mesmos
princípios, o substrato de legitimidade necessário à sua reprodução cotidiana” (CARVALHO
NETTO, 2002, p. 41-42).

E é assim que Habermas (2001), ao reconstruir a pergunta pressuposta a um


processo constituinte legítimo – acerca de quais direitos devemos atribuir-nos,
reciprocamente, caso queiramos regular legitimamente nossa convivência por meio do
Direito –, afirma que numa leitura que leva a sério a relação interna entre Direito e
democracia, bem como a relação de complementaridade entre Direito e moral, a forma
jurídica moderna, justificada normativamente com base no princípio do discurso como
princípio democrático, não se encontra à disposição da autolegislação democrática, visto
que a constituiu internamente. Na modernidade, o poder constituinte legítimo só se
expressa mediante o medium do Direito moderno. Nesse sentido, Habermas afirma:
“Ao invés de apoiar-me num realismo moral, que tem poucas chances de ser defendido, sugiro
que entendamos o próprio regresso [ao infinito] como a expressão compreensível de um aspecto
do caráter da constituição dos Estados democráticos de direito, isto é, a sua abertura para o
futuro: uma constituição que é democrática, não somente de acordo com seu conteúdo, mas
também de acordo com a fonte de sua legitimação, constitui um projeto capaz de formar
tradições com um início marcado na história. Todas as gerações posteriores enfrentarão a tarefa
de atualizar a substância normativa inesgotável do sistema de direitos estatuído no documento
da constituição (...) É verdade que essa continuação falível do evento fundador só pode escapar
do círculo da autoconstituição discursiva de uma comunidade, se esse processo, que não é
imune a interrupções e a recaídas históricas, puder ser interpretado, a longo prazo, como um
processo de aprendizagem que se corrige a si mesmo” (2001, p. 768).

Ou seja, a relação interna entre Estado de Direito e democracia, direitos humanos


e soberania popular, realiza-se, na dimensão do tempo histórico, como um processo de
aprendizagem social com o Direito, que é sujeito a tropeços, mas é capaz de corrigir a
si mesmo, se compreendermos a Constituição como projeto que transforma o ato fundador
num processo constituinte que tem continuidade por meio de sucessivas gerações.
Contudo, proponho uma modificação desse argumento desenvolvido por Habermas
em resposta às críticas de Michelman, no que se refere ao modo de se compreender o
problema do regresso ao infinito e a questão do fundamento do Estado Democrático de
Direito. O primeiro aspecto diz respeito ao modo de exposição da tese da relação interna

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entre Estado de Direito e democracia. A questão central é o agravamento do chamado
“déficit histórico e sociológico” na abordagem de temas normativos, apresentados pela
teoria do agir comunicativo, como Honneth chama atenção desde a década de 80 do
século passado (2002a, 2002b, 2006, 2007b). Cabe aqui sublinhar que Habermas insiste
em se utilizar da linguagem do contratualismo e prefere simular um “experimento de
pensamento”, ao invés de radicalizar o enfoque reconstrutivo que sua própria teoria
propõe, o que lhe permitiria situar historicamente as exigências normativas que se
impuseram ao longo do processo de modernização. Já o segundo aspecto remete ao
modo de compreensão do chamado deslocamento temporal do fundamento do direito,
do passado para o futuro, em razão do caráter de abertura ao futuro das constituições
democráticas (HABERMAS, 2001). Essa tese exige maiores precisões: a questão que o
tempo presente nos coloca ao pensamento não é propriamente a do deslocamento
temporal, puro e simples, do passado ao futuro (Cf. LUHMANN, 1990). É preciso estar
atento quanto ao modo e ao grau dessa abertura ao futuro (MARRAMAO, 2005b, p. 83).
O Direito não terá um “fundamento” no futuro se não tiver no presente e se o presente
também não se abrir ao passado como seu futuro, aprendendo a lidar com o risco de
perda do espaço de experiência – como no caso do Direito, com o risco permanente da
perda da memória dos percursos e das lutas por reconhecimento de direitos ao longo
da história (cf. RICOEUR, 2000, 2007; e HONNETH, 2002, 2006, 2007). Corremos o
risco de viver, recorrentemente, como chama atenção Marramao (2008a, p. 95-107), a
síndrome da pressa, ou seja, a de um futuro passado, a redução do espaço de experiência,
a hipertrofia do horizonte de expectativa, enfim, o não aprendizado com uma experiência
intercompartilhada. Aqui, o tema da reificação, em Honneth (2007, p. 63), “como
esquecimento do reconhecimento”, pode ser enriquecido com a reflexão de Marramao
(2005b, p. 73-106) sobre os temas do tempo cairológico – do tempo oportuno ou devido –
e da síndrome da pressa – ou do futuro passado –, por meio de instigantes inter-relações
(cf. MARRAMAO, 2008a, p. 33-36). E é assim que se deve, pois, perguntar, com Derrida
e Roudinesco, inspirados em Victor Hugo: “qual amanhã?” (2004).
Como bem lembrava Arendt, os revolucionários franceses e norte-americanos de
fins do século XVIII procuraram lidar de modo distinto com a questão acerca da
“necessidade de um absoluto”, que em ambos os lados do Atlântico teria surgido no
curso das revoluções, uma vez que nem os norte-americanos, nem os franceses poderiam
justificar, respectivamente, quer na tradicional Constituição britânica, quer no tradicional
direito francês anterior ao período do Absolutismo, as rupturas jurídico-políticas que
estavam empreendendo. Isto porque, do ponto de vista do direito tradicional, tanto uma
declaração de independência e o não reconhecimento da autoridade da Coroa britânica
quanto uma retirada do Terceiro Estado da Assembleia dos Estados Gerais seriam “atos
inconstitucionais”; e, assim, também as deliberações que a partir dali fossem tomadas
(1990, p.156-171).

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Segundo Arendt, para solucionar o problema deste “círculo vicioso”, que poderia
levar à falta de um fundamento capaz de justificar suas ações, é que Sieyes teria construído
a concepção do poder constituinte distinto dos poderes constituídos, bem como atribuído
a origem comum do poder e da autoridade à Nação soberana, encarnada pelo Terceiro
Estado e, mais tarde, pela Assembleia Nacional Constituinte, pelas convenções que a
sucederam, assim como por todos que, como Bonaparte, se autoproclamaram delegados
desse “soberano” (1990, p. 156-171). Por outro lado, já a “solução norte-americana”
teria envolvido, justamente, a atribuição de um duplo sentido ao ato jurídico-político de
constituição dos Estados Unidos da América: a Constituição norte-americana, como “ato
de fundação”, teria ao mesmo tempo o sentido de um principium, ou seja, de princípio,
e de preceito, de começo e de norma que se autoexpressa no próprio começar (beginning).
Assim, segundo Arendt:
“O que salva o ato de [começar] de sua própria arbitrariedade é que ele traz dentro de si
mesmo a sua própria norma, ou, mais precisamente, que o princípio e a norma, o principium
e o preceito, além de se relacionarem um com o outro, são também contemporâneos. O absoluto,
do qual o começo deve derivar sua própria validade e que deve salvá-lo de sua inerente
arbitrariedade, é a norma, que aparece no mundo ao mesmo tempo que o começo. O modo
pelo qual o iniciador principia o que quer que pretenda fazer determina a lei da ação a ser
observada por todos os que a ele se unirem, para partilhar de seu empreendimento e levá-lo
à concretização. A norma, como tal, inspira as ações que haverão de se seguir e permanece
atuante durante todo o tempo em que essas ações perdurarem” (1990, p. 170).

A partir desse ato de começar, que traz dentro de si mesmo seu preceito – ou
sentido normativo que se autoexpressa na práxis de autodeterminação política –, o povo
(the People, que em inglês é uma palavra no plural) se autoconstituiria como um novo
corpo jurídico-político, autoconstituído de forma plural por cidadãos que, no exercício
de sua autonomia política, assumiriam o compromisso, a mútua promessa, de
reciprocamente reconhecerem-se iguais direitos de liberdade. Promessa mútua, essa,
que teria criado laços com o futuro, sendo, pois, renovável e alargada, a cada decisão
judicial, que possuiria a autoridade para reinterpretá-la, ou a cada emenda constitucional,
que viria a desenvolvê-la, resgatando, assim, o sentido normativo que se teria auto-
expressado no processo constituinte de elaboração e de ratificação do texto constitucional.
Assim, para a compreensão do sentido normativo inerente ao próprio ato de fundação,
nos termos em que Arendt o concebe, é fundamental, aqui, o conceito de “promessa”
(ARENDT, 1958, p. 243 e seguintes; CALVET de MAGALHÃES, 2007), assim como a
sua importância:
“Nesse sentido, o curso da Revolução Americana nos mostra um exemplo inesquecível e nos
ensina uma lição sem precedentes; pois essa revolução não eclodiu simplesmente, mas foi
antes conduzida por homens que tomaram juntos uma resolução, unidos pela força de
compromissos mútuos. O princípio veio à luz durante os conturbados anos em que foram

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lançadas as fundações – não por determinação de um arquiteto, mas pelo poder combinado
de muitos – foi o princípio interconexo da promessa mútua e da deliberação comum”
(ARENDT, 1990, p. 170).

Desse modo, é possível resgatar um importante “tesouro” para a teoria


constitucional contemporânea, a partir das reflexões de Arendt sobre as revoluções do
século XVIII: o constitucionalismo democrático não possui necessariamente uma
legitimidade vivida como falta de um fundamento último, como uma espécie de nostalgia
desse fundamento, como dor e obsessão da perda de fundamento último, soberano
(MARRAMAO, 2000, p. 311-329), enfim, como se um fundamento último fizesse falta
ao constitucionalismo democrático. O fundamento último e soberano não faz falta. Ao
contrário, o constitucionalismo democrático lança-se, pois, aqui e agora, a um por-vir, a
um futuro-em-aberto, como projeto falível, mas no sentido de que o presente pode ser o
futuro de um passado que agora é redimido pelo agir político-jurídico, constitucional,
que o constitui. Essa abertura remete à própria questão da legitimidade vivida como
vazio, não mais passível de ser preenchido, e como ausência assimilada – e não como
falta – de fundamento último, ao processo jurídico-político de construção da legitimidade
por meio da realização no tempo histórico da relação interna entre as noções de
autogoverno e de iguais direitos individuais de liberdade, concretizadores de uma noção
complexa de autonomia. E somente assim se pode, portanto, afirmar que as exigências
normativas, que se colocam a esse processo constituinte, ao invés de barreiras a ele,
são, na verdade, constitutivos dele: elas são uma forma de explicitação ou de auto-
expressão da própria noção complexa de autonomia que lhe é subjacente (HABERMAS,
2001, p. 171).
Nesses termos, nossas hipóteses desconstrutivas podem ser formuladas, então,
da seguinte forma:
2.1.1) uma teologia política da falta (seja do imperador exilado; da nacionalidade
não forjada; e do povo soberano), num diálogo com Benjamin, Derrida e Marramao;
2.1.2) a convergência entre conservadores e progressistas quanto ao diagnóstico da
falta de povo e quanto à proposta de uma modernização autoritária ou a um “autoritarismo
instrumental” (Santos, 1978) como meio para se forjar a nacionalidade.

2.2 – Uma Filosofia Crítica da História atenta para os desafios postos pela
Hermenêutica Crítica da Condição Histórica. Chaves hermenêuticas de releitura da
história: “historicidade”; “espaço de experiência e horizonte de expectativa”; “lutas por
reconhecimento”; “aprendizagem”; “narratividade”; “secularização”.

Por um lado, podemos afirmar com Koselleck que:

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“Os conceitos decerto incluem conteúdos políticos e sociais, mas a sua função semântica, o
seu desempenho, não é dedutível (ableitbar) somente dos dados sociais e políticos aos quais
se referem. Um conceito não é só um indicador, mas também um fator das conexões por eles
compreendidas.” (2006, p.109)

Ou seja, um conceito tem também a capacidade de “produzir relações, de


modelar e orientar os próprios referenciais sócio-políticos” (KOSELLECK, 2006, p.109-
110; Marramao, 1995, p. 80; Paixão e Barbosa, in Pereira e Dias, 2008, p.
128-129).
E, por outro lado, queremos destacar com Arendt que:
“[s]e é verdade que todo pensamento se inicia com a lembrança, não é menos correto que
nenhuma memória perdura e permanece intacta, a menos que seja condensada e inserida num
conjunto de noções conceituais, dentro do qual ela possa afirmar-se cada vez mais. As
experiências e as narrativas que brotam de tudo aquilo que os homens fazem e atravessam,
dos acontecimentos e ocorrências, se dissipam na inanidade inerente à palavra viva e aos feitos
vivos, a menos que sejam discutidos e comentados vezes sem conta. O que salva as ações dos
homens de sua inerente inutilidade não é outra coisa senão essa discussão incessante que se
trava em torno delas, a qual, por sua vez, permanece inútil a não ser que dê origem a certas
concepções e a determinados marcos dominantes que favoreçam a futura evocação ou que
simplesmente lhe sirvam de referência” (ARENDT, 1990, p. 176).

Uma filosofia crítica da historia, desenvolvida num contexto pós-hegeliano e


construída a partir da história dos conceitos, propõe, num primeiro momento em que a
ação investigativa em História se processe pela análise sincrônica do passado que, ao
ser redefinida, é completada de forma diacrônica. E, num segundo momento, propõe
que os conceitos não sejam reduzidos a um contexto situacional único: os sentidos lexicais
devem ser investigados ao longo de uma sequência temporal, a fim de serem ordenados
uns em relação com os outros, de tal modo que as análises de cada sentido possa agregar-
se a uma história do conceito. Nesses termos, por meio da história dos conceitos pode-
se perceber por quanto tempo permaneceu inalterado o sentido de um conceito, assim
como o quanto este foi alterado, ao longo do tempo. Assim, é com base na análise
diacrônica do uso de um conceito que se poderia, inclusive, avaliar seu impacto social
ou político.
Os marcos para uma filosofia crítica da história são os seguintes:
2.2.1) “Espaço de experiência e horizonte de expectativa” como categorias do
tempo histórico (KOSELLECK, 2006, p. 305-327);

Embora para Koselleck não se possa pressupor um sentido imanente à história, isso
não significa que não se possa atribuir ou mesmo reconhecer sentido a ela. Para a
compreensão da especificidade do tempo histórico, Koselleck utiliza duas categorias meta-
históricas que, em última análise, poderiam justificar-se numa certa antropologia filosófica
de matriz pós-metafísica: 1 – espaço de experiência e 2 – horizonte de expectativa.

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A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados
e podem ser lembrados, em que se fundem tanto elaboração racional como formas
inconscientes de comportamento. Já a expectativa é o futuro presente. A expectativa pode
ser composta por desejo, vontade, medo, esperança, curiosidade, análise racional etc.
(KOSELLECK, 2006, p.310).
Experiência e expectativa não são termos complementares, apesar de se
relacionarem. Todavia, jamais coincidem, de tal modo que uma expectativa jamais pode
ser deduzida exclusivamente da experiência. Assim, as expectativas podem ser revistas,
já as experiências, recolhidas. Como afirma Koselleck, “uma experiência feita, está
completa na medida em que suas causas são passadas, ao passo que a experiência futura,
antecipada como expectativa, se decompõe em uma infinidade de momentos temporais”
(2006, p. 310).

2.2.2) Os conceitos de reconhecimento recíproco e aprendizagem histórico no


contexto da discussão contemporânea em torno de uma reatualização direta ou indireta
do sistema hegeliano (Cf. HONNETH, 2007b; WILLIAMS, 1997; PIPPER, 2008;
PEPERZAK, 2001; GADAMER e KOSELLECK, 1997; LABARRIÈRE e JARCZIK, 1989;
BOURGEOIS, 2003, 2004; KERVÉGAN, 2007; RICOEUR, 2000);

Embora não se possa aprofundar aqui o rico debate acerca de uma reatualização
direta – que busca reinterpretar de forma sistemática o pensamento de Hegel, levando
a sério a sua Ciência da Lógica – ou de uma reatualização indireta – que pretende
romper seja com a ontologia hegeliana, seja com a sua visão orgânica de constituição,
seja com sua filosofia da historia –, cabe considerar as estruturas de reconhecimento
recíproco como próprias a formas de vida racionais.
Segundo Habermas:
“(a)s relações concretas de reconhecimento, que uma ordem jurídica legitima não
faz senão certificar, provêm sempre de uma luta por reconhecimento; esta luta vem
motivada pelo sofrimento que foi produzido pelo desapreço concreto de que alguém
é objeto e pela rebelião contra esse desapreço (Honneth). São, como mostrou Axel
Honneth, experiências de humilhação da dignidade humana que devem ser
articuladas para verificar os aspectos sob os quais no contexto concreto os iguais
devem ser tratados de forma igual e os desiguais de forma desigual. Essa disputa
[pública] em torno da interpretação de necessidades não podem ser delegadas nem
aos juízes, nem aos administradores, nem sequer aos legisladores.” (HABERMAS,
1998, p. 511)

Nesse prisma, uma mudança paradigmática do sentido normativo dos direitos


fundamentais, como princípios insaturáveis e interpretáveis de modo construtivo, se dá
publicamente por meio de uma luta por reconhecimento de novos sujeitos de direitos.
São lutas por reconhecimento que colocam em questão compreensões paradigmáticas

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em disputa acerca do Direito e, assim, podem mobilizar a opinião pública e protestar
diante de situações de discriminação e de exclusão, visando não apenas influenciar o
processo de tomada de decisões, mas também dele legitimamente participar.

2.2.3) A discussão sobre aprendizagem e narratividade históricas (DWORKIN,


1986; RICOEUR, 2000; HABERMAS, 2001);

Neste ponto, caberia retomar, em especial, para além das contribuições de Ricoeur
ou de Habermas, a tese do Direito como Integridade, de Ronald Dworkin (1986). Segundo
o jurista norte-americano, o Direito constitui a melhor justificação do conjunto das práticas
jurídicas, a narrativa que faz de tais práticas as melhores possíveis. A chamada metáfora
do romance em cadeia (chain novel), introduzida por Dworkin a partir da década de
1980, para sustentar a sua famosa tese da resposta correta, tanto em contraposição ao
positivismo jurídico quanto ao realismo jurídico, ilustra exatamente todo um processo
de aprendizado social subjacente ao Direito compreendido como prática social
interpretativa e argumentativa, um processo intergeracional, sujeito a tropeços, mas
capaz de corrigir a si mesmo. Assim, o Direito é visto por Dworkin (1985) como um
empreendimento público, que se dá ao longo de uma história institucional, reconstruída
de forma reflexiva à luz dos princípios jurídicos de moralidade política, que dão sentido
a essa história.

2.2.4) A reconstrução do conceito de secularização (Cf. acepções, MARRAMAO, 1994)


e da crítica à noção em Habermas de “sociedade pós-secular” (Cf. MARRAMAO, 2008).

Na obra La passione del presente (2008, p. 214-221), Giacomo Marramao faz


duas observações cruciais em relação à obra recente de Habermas, sobretudo a partir
do ensaio Fé e Ciência, que vale a pena considerar: a primeira é a de que Habermas
teria revisto sua compreensão da secularização, retomando o conceito jurídico-político
de separação entre Estado e Igreja, ou seja, secularização não é necessariamente
sinônimo de dessacralização e desencantamento das visões de mundo (Weber), visto
que tal separação implica uma autonomia não apenas do Estado, unilateralmente, mas
também das igrejas. E, além disso, não haveria, portanto, uma espécie quer de
reocupação, quer de usurpação pelo Estado do antigo lugar ocupado pela religião nos
processos de integração social (Blumenberg ou Löwith). E a segunda observação, de
que com base nessa nova ênfase, Habermas reconheceria, sob um ponto de vista
político, cidadania à religião na esfera pública: a secularização seria vista como
transvalorização de conteúdos religiosos em critérios informadores dos debates
públicos, uma vez traduzidos ao léxico secular, tendo assim sempre algo a dizer,
mesmo àqueles que não compartilham de tais valores religiosos. O pano de fundo

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sobre o qual tal mudança de perspectiva fora empreendida por Habermas refletiria
não apenas sua discussão com John Rawls acerca dos limites de uma reconciliação
por meio de um uso público da razão ou mesmo suas interpretações em paralelo com
as de Jacques Derrida sobre o 11 de setembro, mas também as posições que Habermas
passou a assumir acerca de questões de bioética após os debates com Ronald Dworkin
sobre o futuro da natureza humana, mas também, por fim, e em especial, seus
posicionamentos quanto à ciência e à religião, sua teoria da adaptação e sua tese da
sociedade pós-secular, nos debates com o então Cardeal Joseph Ratzinger.
Caberia indagar acerca de quais seriam as implicações para a arquitetura de uma
Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito, da nova tese segundo
a qual viveríamos não mais uma era de política integralmente secularizada mas sim numa
“sociedade pós-secular“, especialmente quanto ao modo com que são enunciadas por
Habermas em seu livro Entre naturalismo e religião, especialmente na introdução e no
capítulo que se chama “Fundamentos pré-políticos do Estado Democrático de Direito?”.
Se, segundo Habermas, vivemos numa época pós-secular, como ficaria a tese fundamental
de Facticidade e Validade segundo a qual “não se pode ter nem manter um Estado de
Direito sem democracia radical”, já que não mais viveríamos numa era da política
totalmente secularizada? Isso implicaria reconhecer, então, fundamentos pré-políticos
do Estado Democrático de Direito, no sentido de um aprendizado social recíproco entre
seculares e religiosos, e o caráter inesgotável de intuições normativas ou de fontes de
sentido às “grandes religiões mundiais“, ou seja, que o processo democrático, para não
dizer apenas uma Filosofia pós-metafísica, tem sempre muito o que ouvir e aprender
com as religiões, ao mesmo tempo em que a Filosofia como observador externo nada
teria a dizer?
Como nos lembra Marramao, em seu livro Céu e Terra (1997, p. 101), haveria pelo
menos cinco acepções de secularização: 1) como ocaso da religião; 2) como conformidade
ao mundo; 3) como dessacralização do mundo; 4) como descomprometimento da sociedade
para com a religião; e 5) como transposição de crenças e modelos de comportamento
da esfera religiosa para a secular.
Ao tema da secularização, portanto, ligam-se a questão da legitimidade da
modernidade como legitimidade na modernidade, o problema da dinâmica moderna do
tempo histórico, a questão da existência ou não de pressupostos pré-politicos de
legitimidade do Estado Democrático de Direito, a questão da relação, enfim, entre religião
e política, e entre elas e o Direito.

2.3 – Reconstrução: por uma teoria constitucional reconstrutiva

Menelick de Carvalho Netto (1998) nos chama a atenção para o modo como
tradicionalmente as teorias jurídicas vão lidar com o problema da efetividade do Direito,
com a questão do seu cumprimento e de sua aplicação efetivos. Essas teorias, que têm

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como exemplo a teoria constitucional de Loewenstein (1976) e sua classificação ontológica
das constituições, afirmam em linhas gerais que o Direito representa um ideal de
sociedade a ser perseguido, mas que, todavia, em face desses ideais normativos, a própria
realidade poderia se apresentar como um obstáculo, a todo o momento, para que esse
ideal pudesse ser realizado.
O problema desse enfoque é que, por um lado, desconhece que essa mesma
realidade é também uma construção histórica e, por outro, que mesmo esse suposto
ideal de uma nova sociedade que representaria o Direito surgiu na e, assim, faz parte
da própria sociedade que o projeta. Ora, em última análise, tal enfoque revela-se uma
postura reificada e reificante das identidades constitucionais que agrava ainda mais o
problema que pretende denunciar, visto que acaba por contribuir para naturalizá-lo
(CARVALHO NETTO, 2002, p. 46-52), ao contrário de procurar mostrar como é que os
ideais de democracia e de justiça que pressupõem já estão inscritos, ainda que
parcialmente, na realidade social, buscando resgatar criticamente e reconstruir, portanto,
seus vestígios na própria história constitucional.
É preciso, pois, explorar as tensões presentes nas próprias práticas jurídicas
cotidianas e reconstruir, de forma adequada ao Estado Democrático de Direito, os
fragmentos de uma racionalidade normativa já presente e vigente nas próprias realidades
sociais e políticas, pois é exatamente essa dimensão principiológica que inclusive torna
passível de crítica uma realidade excludente (CATTONI DE OLIVEIRA, 2007b, p. 79-
84). Se esses ideais, como exigências de princípio, já não estivessem presentes, ainda
que fragmentariamente, na própria história, a nos possibilitar a capacidade de reconhecer
mesmo toda uma “catastrófica realidade social”, nós não seríamos também capazes nem
mesmo de reconhecer as exigências normativas que o próprio projeto de construção e
realização desses ideais nos coloca: sem uma vivência da exclusão, por um lado, e sem
a pré-compreensão de um “constitucionalismo simbólico” (NEVES, 2006, 2007) daí
decorrente, por outro, nem sequer os textos de normas constitucionais que se opõem à
discriminação e a toda e qualquer forma de exclusão social teriam sido provavelmente
incluídos, e de forma tão veemente, na Constituição da República de 1988.
Cabe lembrar com Muller (1998, p. 89) que a positivação jurídico-moderna como
“textificação é faca de dois gumes”, porque a Constituição pode ser tanto compreendida
quanto desvirtuada no sentido de um “constitucionalismo simbólico”, quanto também
pode ser normativamente levada a sério. O texto da Constituição brasileira de 1988 não
apenas fala de exclusão social, senão que se pronuncia incontestavelmente contra ela,
como no caso dos textos de normas de direitos fundamentais, podendo revelar, portanto,
diferentemente de um contraste entre ideal e real, uma tensão entre texto e contexto.
Numa leitura reconstrutiva, deve-se, portanto, virar o texto constitucional contra a
exclusão social que, ao contrário de se ancorar numa lei natural, na verdade permanece

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historicamente vinculada aos pré-conceitos sociais não problematizados daqueles que
vivenciam a Constituição. Aliás, como bem afirma Sorj:
“Muitos estudos de ciências sociais, no lugar de descobrirem as formas e sentidos de construção
social da cidadania a partir dos próprios agentes sociais, refletem as frustrações da
intelectualidade e das classes médias locais com suas próprias sociedades. Tal atitude, embora
compreensível, alimenta uma tendência secular à desmoralização das instituições democráticas
existentes, e as ciências sociais perdem a oportunidade de mostrar que a América Latina é um
canteiro de experiências sociais que, com os cuidados devidos, indica problemas igualmente
relevantes para os países capitalistas avançados” (SORJ, 2004, p. 20).

É exatamente nos termos de uma teoria constitucional comprometida com uma


perspectiva reconstrutiva e atenta para os riscos de uma visão excessivamente normativa
dos problemas de legitimidade/efetividade constitucional que proponho recolocar a
pergunta acerca das histórias constitucional e política brasileiras e reconhecer, por
exemplo, a importância do processo constituinte brasileiro de 1987-88, sobre o pano
de fundo do constitucionalismo democrático.
Assim, pode-se afirmar que o processo constituinte de 1987-88 é um marco
importantíssimo na história brasileira de um processo de constitucionalização
(MARRAMAO, 2003, p. 228) que se reinicia antes mesmo do momento de promulgação
do texto da Constituição e que se expressa tanto na tensão constitutiva entre
desterritorialização e reterritorialização, presente em sua declaração de direitos e seus
princípios fundamentais, quanto no caráter infuturante – histórico, polêmico e dinâmico,
embora não relativo – desses direitos e princípios (MARRAMAO, 2008a, p. 170, e 2008b,
p. 17-27). Numa leitura reconstrutiva, o processo constituinte de 1987-88 resgata, pois
nele também se expressam, os princípios de autonomia e de emancipação das grandes
revoluções do final do século XVIII – a liberdade, a igualdade e a fraternidade – sobre
o pano de fundo da história política brasileira: ele, assim, se faz “herdeiro sem testamento”
(ARENDT, 1990) de um processo de constitucionalização, perpassado por lutas por
reconhecimento de atores e de direitos, que se desenvolve há pelo menos duzentos anos,
todavia, de modo não linear, sujeito a tropeços e interrupções. Assim, cabe também
resgatar nossa história política aqui e agora e relê-la no sentido da afirmação de princípio
de que só em liberdade se garantem condições para o exercício da liberdade
(MARRAMAO, 2003, p. 229). E, assim, contra o discurso da democracia possível, para
além do reconhecimento da democracia inesperada, é que proponho a tese da democracia
sem espera.
Uma teoria reconstrutiva da Constituição envolve, pelo menos, os seguintes pontos:
2.3.1) A pergunta central é como e não por quê: ou seja, de que modo, o Estado
Democrático de Direito e a sua existência, e não qualquer outra forma de legitimação
política, se tornaram não apenas possíveis mas exigíveis – e somente assim justificáveis
– historicamente, assumindo-se a perspectiva do participante de um processo não linear

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e descontínuo de aprendizagem social com o Direito, que se desenvolve, ao longo do
tempo, como construção dinâmica, polêmica, conflituosa e, portanto, rica e plural, de
uma identidade constitucional democrática, não idêntica e não identitária, múltipla
e aberta;
2.3.2) Romper com a perspectiva tradicional que compreende os problemas de
legitimidade/efetividade a partir de uma dicotomia ou hiato entre um idealismo da
Constituição e uma realidade social recalcitrante. Tal perspectiva agrava ainda mais o
problema que pretende denunciar, e reifica a história constitucional, ao desconsiderar
que a realidade é construída e não dada; nesta construção, as lutas jurídico-políticas por
reconhecimento possuem um papel central;
2.3.3) Explorar as tensões presentes nas práticas sociais, políticas e jurídicas
cotidianas e reconstruir os fragmentos de uma racionalidade normativa já presente e
vigente nas realidades sociais e políticas, inclusive como critério crítico interno para
esta realidade.

3. Desafios

3.1. Objetivo central

Recapitulando, o objetivo central para uma história do processo de


constitucionalização brasileiro é o de contribuir para uma reflexão acerca do sentido
normativo que se autoexpressa na práxis de autodeterminação política no
constitucionalismo, por meio de uma reconstrução acerca do modo como o processo
de constitucionalização brasileiro articula memória e projeto, experiência e expectativa –
e, assim, deixa entrever as suas relações com o tempo histórico. Em outras palavras,
busca-se demonstrar – por meio do desenvolvimento de uma concepção histórica e
teorética que, incorporando as grandes contribuições da Teoria da História e da
Filosofia contemporâneas, venha a romper com a perspectiva reificante da história
constitucional brasileira vinculada à “tradição dos chamados retratos ou intérpretes
do Brasil” – que as relações que a constitucionalização brasileira desenvolve com o
tempo histórico podem ser compreendidas como processo não linear e descontínuo,
reconstruído como processo de lutas por reconhecimento e de aprendizagem social
com o Direito, que se realiza ao longo da história, todavia sujeito a interrupções e a
tropeços, mas que também é capaz de se autocorrigir.

3.2. Desafios específicos

3.2.1) mostrar que um processo de constitucionalização não pode ser reduzido


de forma historicista a um único “grande evento”, em razão do caráter desterritorializante,
insaturável e “infuturante” (MARRAMAO, 2008 a, p.169-189) – ou seja, polêmico,

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dinâmico, mas não relativo – dos princípios e direitos fundamentais que um texto
constitucional interpreta;
3.2.2) mostrar que a constitucionalização é a expressão de “uma fundação como
promessa” e, portanto, está sempre por-vir;
3.2.3) mostrar que a constitucionalização é processo não linear e, por vezes,
descontínuo, de aprendizagem social, de abertura a um futuro-em-aberto, a um porvir
(DERRIDA, 1992);
3.2.4) mostrar em que sentido a constituição democrática “não é uma utopia
social e nem sequer é um substituto para esta idéia” (HABERMAS, 1998, p. 530);
3.2.5) mostrar que esta abertura recoloca a constitucionalização como tarefa
permanente, e transmitida pelo passado, a cada nova geração – e, assim, os grandes
eventos que marcam a sua descontinuidade e abertura poderão ser retrospectivamente
recompostos como partes desse aprendizado histórico não linear, que representa a
experiência da cidadania –, no exercício da autodeterminação jurídico-política e na
defesa do patriotismo constitucional, sobre o pano de fundo de uma história mundial do
constitucionalismo. E talvez esta seja a nossa maior herança do passado a ser resgatada,
a responsabilidade no presente por um futuro-em-aberto, um porvir;
3.2.6) mostrar que o processo de constitucionalização é sempre “uma obra de
reconstrução do navio em mar aberto” (MARRAMAO, 2003, p. 240), de um navio que
já deixou o porto, que já navega pelo mar. Assim, num processo de constitucionalização,
as exigências normativas que se colocam historicamente no interior desse processo
constituinte – ou de constituição – que se realiza ao longo do tempo, ao contrário de
barreiras a ele, são, na verdade, constitutivas dele: elas são uma forma de explicitação
ou de autoexpressão da própria noção complexa de autonomia, que lhe é subjacente.
Em outras palavras, todo processo de constitucionalização é um processo de
autoconstitucionalização;
3.2.7) mostrar que a idéia do processo de constitucionalização como aprendizado
social, tarefa cotidiana e permanente, exige romper com a teologia política, com esta
máscara totêmica ou simulacro, de uma imagem icônica do sujeito-povo ou nação como
totalidade homogênea – este phantasma da soberania, como diria Derrida (2008, p. 39).
Um dos maiores problemas da democracia constitucional é ainda a obsessão pela falta,
pela presença de uma ausência, de uma soberana una e indivisível, pela nostalgia do
soberano deposto, morto ou exilado – que corre o risco, a todo momento, de ter o lugar
reocupado de forma autoritária –, na perspectiva democrática de que tal processo de
constitucionalização se desenvolve no tempo histórico como construção polêmica, conflituosa
e, portanto, rica e plural de uma identidade constitucional múltipla e aberta;
3.2.8) mostrar que é no sentido de uma identidade constitucional não identitária
e não idêntica construída ao longo do tempo, de uma identidade múltipla, aberta e, por
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isso, não mais passível de ser reificada, do(s) povo(s) como instância(s) plural(is), capaz
de romper com a retórica da democracia possível e de seu autoritarismo instrumental,
em direção a uma democracia sem espera (Cattoni de Oliveira in Cattoni de
Oliveira e Machado, 2009, p. 367-399) – atenta para uma democracia por-vir
(DERRIDA, 2003), para uma democracia compreendida como comunidade para-doxal,
“como comunidade dos sem comunidade” e para um “universalismo da diferença”
(MARRAMAO, 2003, p. 192) –, que podemos, mais uma vez, concordar com Habermas
quando afirma que “no Estado Democrático de Direito, compreendido como a morada
de uma comunidade jurídica que se organiza a si mesma, o lugar simbólico de uma
soberania discursivamente fluidificada deve permanecer vazio” (1998, p. 529).

4. Um possível plano de trabalho

Por fim, tendo em vista essa releitura tensa e complexa para uma nova história do
processo de constitucionalização brasileiro que se busca realizar, é, por exemplo, possível
adotar pelo menos sete eixos de pesquisa ou sete núcleos temáticos, a partir dos quais
se poderia proceder a uma desconstrução, a uma crítica hermenêutica e a uma
reconstrução de partes da história constitucional brasileira, de acordo com a justificação
teórica apresentada:

1o eixo – O constitucionalismo imperial da Constituinte de 1823 à consolidação


do Estado brasileiro no Segundo Reinado: o papel do Poder Moderador na
formação da nacionalidade.

2º eixo – A crise do Império e a transição à República: os “bestializados“ e a


atuação política do Partido Republicano.

3º eixo – O constitucionalismo liberal de 1891 e suas contradições internas: a


questão social como caso de polícia ou de políticas?

4º eixo – A Revolução de 1930 e seus desdobramentos. O Brasil sob Vargas,


1930-1954: o tema da integração nacional.

5º eixo – O constitucionalismo brasileiro do pós-guerra: história do conceito de


populismo.

6º eixo – A autocracia militar de 1964-85: a tensão entre autocracia e Estado


de Direito.

7º eixo – O processo de (re)democratização e o constitucionalismo democrático


de 1988: projeto, perspectivas e desafios.

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deDireito
Direito -- UFPR, Curitiba,n.51,
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Recebido: setembro 2010


Aprovado: abril 2011

Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.51, p.45-72, 2010.


72
ANÁLISE COMPARATIVA DOS MODELOS DE REPARTIÇÃO DE
COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NOS ESTADOS FEDERADOS

COMPARATIVE ANALYSIS OF MODELS OF DISTRIBUTION


OF LEGISLATIVE AND ADMINISTRATIVE POWERS
IN FEDERATED STATES

Fabricio Ricardo de Limas Tomio*


Marcelo Augusto Biehl Ortolan**
Fernando Santos de Camargo***

RESUMO: Este estudo tem por objetivo comparar a concentração de atribuições legislativas e
administrativas nos sistemas federativos alemão, argentino, australiano, austríaco, suíço, brasileiro,
indiano e norte-americano. Com base na distribuição de competências legislativas entre a União e os
Estados, pretende-se analisar o grau de restrições existentes ao poder central e o consequente grau
autonomia normativa das subunidades. Serão consideradas as competências constitucionais quanto ao
conteúdo (classificadas segundo a matéria) e quanto à extensão (classificadas segundo a participação
um ou mais entes federativos), conforme a técnica de repartição adotada constitucionalmente. Constata-
se, desde já, que os modelos mais recentes de federação abordados distanciam-se do modelo clássico
norte-americano ao estabelecer menores restrições à capacidade normativa do governo central.

PALAVRAS-CHAVE: Federalismo. Repartição constitucional de competências. Modelos federativos.

ABSTRACT: This study aims to compare the concentration of legislative and administrative powers in
federal systems of Germany, Argentine, Australia, Austria, Switzerland, Brazil, India and United States.
Based on the distribution of legislative powers between Union and States, it intends to analyze the degree
of restrictions to the central power and the consequent degree of legislative autonomy subunits. Will be
considered the constitutional powers on the content (classified by subject) and the extent (classified
according to one or more participating federal entities), as the adopted constitutional technique of power
assignment. It follows, first, that the newer models of federation investigated differentiate from the classical
model to U.S., establishing lower restrictions to the normative capacity of the central government.

KEYWORDS: Federalism. Constitutional distribution of legislative powers. Federal models.

* Doutor em Ciência Política (UNICAMP). Professor Adjunto do Departamento de Direito Público (UFPR).
Coordenador do Grupo de Pesquisa “Instituições Políticas e Processo Legislativo” (UFPR/CNPq). Email: fab_tom@
hotmail.com
** Formando da Faculdade de Direito (UFPR). Bolsista de Iniciação Científica CNPq e membro do Grupo
de Pesquisa “Instituições Políticas e Processo Legislativo” (UFPR/CNPq). Email: marcelo_ortolan@hotmail.com
*** Formando da Faculdade de Direito (UFPR). Bolsista de Iniciação Científica Fundação Araucária e
membro do Grupo de Pesquisa “Instituições Políticas e Processo Legislativo” (UFPR/CNPq). Email: fernandoscamargo@
hotmail.com

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1. INTRODUÇÃO

A história moderna do federalismo começa com a matriz clássica da Constituição


estadunidense de 1787, que estruturou uma divisão do poder estatal baseada em uma
rígida separação de responsabilidades entre dois centros de governo, o total (União) e
os parciais (Estados), que as exerceriam com independência e autonomia em seu âmbito
(BURGESS, 2006, p. 162 e ss.).
Também a tradição continental européia adotava a forma confederativa como
forma de organização dos Estados, marcada por características próprias, que resultou
na criação de outras matrizes federativas. Exemplos desta via institucional são a Suíça,
que passou da forma confederativa a uma Federação em 1848, e o Império alemão,
estruturado sob a forma federativa em 1871 por Bismarck. Ao contrário do modelo
americano, esses Estados apostaram em um modelo federativo caracterizado por relações
de codecisão e cooperação entre os governos federal e estaduais1.
Contudo, a consolidação dos elementos normativos tipicamente federais se firmou
de maneira muito variável nas diversas federações que se estabeleceram a partir desse
momento. A diversidade dos modos de organização dos Estados federais (em sua maioria
menos restritiva ao poder central) e as diferentes razões históricas que influenciaram a
escolha por esse sistema (grande parte das vezes, não como produto de um acordo, cujo
propósito inicial era “unir” – come togehter –, mas com o objetivo de “manter” a união –
hold together) inviabilizam assumir os EUA como o único parâmetro interpretativo para
os demais modelos federativos (ARRECTHE, 2001, p. 24).
A consciência dessa fragilidade ensejou o emprego de um método hermenêutico
que distribui as federações em um continuum, em que estão situados em cada extremidade
sistemas que apresentam restrições mínimas e máximas ao poder central. Desse modo,
permite-se uma abertura conceitual capaz de englobar as diferentes conformações do
sistema federal de organização de Estado (STEPAN, 1999).
Atualmente, dos 192 estados politicamente soberanos reconhecidos pelas Nações
Unidas, 25 podem ser classificados como Federações, formadas por mais de 510 unidades
constitutivas, que compreendem cerca de 2 bilhões de pessoas ou 40% da população
mundial (WATTS, 2008, p. 4-5). Além disso, é cada vez mais nítido fenômeno global de
diminuição da soberania dos Estados-nações em prol do fortalecimento de entidades
supraestatais com características federativas, sendo a União Europeia o protótipo por
excelência desse influxo.
Diante de tais circunstâncias, sem um melhor entendimento acerca das
características principais das históricas matrizes federativas e da influência de seus

1
Sobre o modelo de joint decision-making system, verWachendorfer-Schmidt (2000, p. 78-80); e Burgess
(2006, p. 76 e 162 e ss).

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institutos aos diversos modelos federativos posteriormente consolidados, dificilmente se
entenderá as razões das variações existentes em cada Federação, os problemas práticos
comuns às diversas Federações e suas atuais tendências. Por isso, o estudo comparativo
entre sistemas federativos avulta como importante método para compreensão dos
elementos cruciais das diversas experiências federativas mundiais2, permitindo a difusão
de soluções federativas comuns, além de viabilizar a análise crítica do sistema federativo
nacional, sobretudo, mediante a comparação de seu sistema de repartição de competências
com as experiências estrangeiras.
Quanto ao sistema de distribuição de competências, a princípio, todas as
competências (legislativas, administrativas e judiciárias) podem ser distribuídas entre o
governo federal e os governos estaduais. As competências judiciárias podem até ser
centralizadas pelo nível federal sem grandes prejuízos ao pacto federativo. Contudo, não
há dúvidas de que a atribuição de competências legislativas e administrativas aos governos
estaduais é indispensável para um sistema federal (GAMPER, 2005, p. 1308).
Partido dessas considerações, este estudo tem por objetivo comparar a
concentração de atribuições normativas previstas constitucionalmente nos sistemas
federativos alemão, argentino, australiano, austríaco, brasileiro, indiano, norte-americano
e suíço a fim de analisar o grau de restrições existentes ao poder central e o consequente
grau de autonomia normativa das subunidades. Ao final, os resultados obtidos serão
confrontados com as explicações propostas pela teoria e pela doutrina constitucional
para cada modelo federativo.

2. ANÁLISE COMPARATIVA: METODOLOGIA E INDICADORES

Uma análise comparativa das experiências federativas, todavia, não é fácil de


ser empreendida. Inicialmente, é possível mencionar as dificuldades semânticas de
se estudar tantos modelos federativos com idiomas distintos entre si. Ligado a isso,
convém também ressaltar a falta de consenso terminológico na literatura da Ciência
Política e do Direito Constitucional nos estudos de direito comparado realizados sobre
as experiências federativas.
Nesse sentido, Lijphart, em estudo comparativo sobre modelos de democracias
majoritárias e consensuais, apresenta um índice quantitativo de federalismo que relaciona
duas dimensões (federal-unitário e centralizado-descentralizado), atribuindo um índice
entre “1,0” e “5,0” associando essas duas dimensões (2003, p. 217). Já Tsebelis, em seu
estudo sobre instituições, revendo a classificação de Lijphart, propõe que o federalismo

2
Nesse sentido, afirma Gamper: “it must be remembered that the comparison of federal systems is an
important method to develop the theory of federalism. Despite apparent differences, all theories of federalism are more
or less based on small number of historic prototypes and their comparison to other, similar systems allows us to
conceptualize the main characteristics of a federal system” (GAMPER, 2005, p. 1298).

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pode aumentar o número de atores com poder de veto, concluindo que o “federalismo é
uma variável independente evasiva (...) não possui nenhuma característica institucional
exclusiva ou necessária (bicameralismo, maiorias qualificadas, (...) independência do
judiciário), mas está associado à maioria dessas características” (2009, p. 205).
Logo, percebe-se que abordar comparativamente o federalismo implica
fazer escolhas quanto aos indicadores ou variáveis a serem comparados3. Nossa
abordagem, conforme já exposto, pretende analisar a distribuição de competências
administrativas e, sobretudo, legislativas atribuídas constitucionalmente entre a União
e unidades constitutivas4.
Metodologicamente, observamos que o ponto de partida da comparação desse
estudo é o texto constitucional brasileiro de 1988. Isto é, a pesquisa documental e a
interpretação nos textos constitucionais dos outros sete estados nacionais tiveram como
parâmetro as competências previstas entre os artigos 21 a 24 da Constituição brasileira.
Apesar de essa análise comparativa partir do estático sistema de repartição de
competências constitucionalmente estruturado em cada Federação, não se ignora
que a real extensão dos poderes atribuídos a cada ente federativo só se revela se
compreendida a maneira como esses poderes são exercidos. Para tanto, foram buscadas
na literatura as explicações quanto à dinâmica de cada sistema de repartição de
competências, que são expostas de maneira mais detalhada juntamente com os
resultados das comparações realizadas.
Na construção dos indicadores de comparação analisamos as competências
legislativas e administrativas quanto ao conteúdo (classificadas segundo a matéria) e
quanto à extensão (classificadas segundo a participação um ou mais entes federativos),
conforme a técnica de repartição adotada constitucionalmente. Em face da diversidade
de competências estabelecidas pela Constituição brasileira, optou-se por agrupar essas
previsões constitucionais, definindo trinta competências legislativas e treze competências
administrativas a ser comparadas5 (ver Figura 1), que foram organizadas, na classificação
quanto à extensão da participação dos entes federados, em um contínuo entre
descentralização/centralização para fins de hierarquização das competências
constitucionais (ver Figura 2).

3
Como instituições, federalismo fiscal, relações intergovernamentais, bicameralismo, políticas públicas,
revisão judicial, arranjo constitucional etc.
4
Nesse sentido, parece relevante a afirmação de Galligan ao descrever que a “função chave da constituição
escrita é especificar a divisão de poderes ou competências entre os governos nacionais e estaduais” (GALLIGAN, 2006,
p. 268).
5
Não se ignora a possibilidade desse processo de síntese ter agrupado, sob a mesma denominação,
competências qualitativamente díspares. Entretanto, a fim de viabilizar uma análise comparativa, inicialmente não
atribuímos nenhuma hierarquia normativa entre as competências listadas. Posteriormente, contudo, procedeu-se a
um novo agrupamento qualitativo das matérias comparadas em três grupos (I – Poderes de soberania; II – Econômico;
III – Políticas Públicas), que são explicados adiante de maneira mais detalhada.

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A cada uma das competências listadas quanto ao conteúdo foi atribuída um valor
entre “0” (que significaria o máximo da descentralização normativa ou administrativa
atribuída às unidades constitutivas) e “3” (máximo da centralização normativa e
administrativa atribuída à União). Essa classificação permitiu comparar as oito federações
estudadas nas dimensões legislativas e administrativas.
Destaque-se ainda que, justamente em razão da diversidade dos títulos e formas
de repartição de competência institucionalizados em cada federação, estabeleceram-se
como padrões classificatórios, para este estudo, aquelas formas de legislação e administração
predominantes e mais aptas a evidenciarem a real distribuição dos poderes legislativos e
administrativos no contexto dos sistemas federativos analisados. Esta é a razão de a
nomenclatura proposta para a classificação das modalidades de competências não
corresponder àquela prevista pelo documento constitucional de cada federação.

Figura 1. Classificação das competências legislativas e administrativas


quanto ao conteúdo

Competências Legislativas Competências Administrativas

• Fundamentais
• Nacionalidade
• Organização dos poderes
• Organização do estado
• Organização (território)
• Político
• Poderes de soberania
• Eleitoral
• Econômicos e financeiros
• Civil
• De planejamento e
• Penal
desenvolvimento
• Processual
• Comunicação e
• Social
telecomunicação
• Defesa
• Transporte
• Segurança
• Polícia
• Tributário
• Organização institucional
Direito/ • Orçamentário Direito/
• Monopólio de minérios
Legislação • Financeiro Administração
nucleares e derivados
• Política urbana
• Anistia
• Agrário
• Proteção da Constituição e
• Comercial
patrimônio público
• Comunicações
• Proteção de bens culturais,
• Riquezas minerais/atômicas
educação e ciência
• Marítimo
• Proteção do meio ambiente
• Aeronáutico/espacial
e produção agropecuária
• Trabalho
• Assistência pública social
• Trânsito
• Transportes
• Administrativo
• Econômico
• Ambiental
• Patrimônio histórico

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Figura 2. Classificação das competências legislativas e administrativas
quanto à centralização/descentralização

Assim, classificaram-se as competências constitucionais legislativas em sete


modalidades, atribuindo-se quatro valores conforme o grau de centralização/
descentralização, para fins de comparação:
- (3) “Exclusiva U” – Atribuída explicitamente à União, com a exclusão dos demais entes
federativos e sem possibilidade de delegação às Unidades Constitutivas (CANOTILHO,
1993, p. 679 e SILVA, 2007, p. 481).

“Privativa U” – Atribuída explicitamente à União, com a exclusão dos demais entes


federativos e com possibilidade de delegação às Unidades Constitutivas6. Como a
decisão sobre a delegação é da União, o valor atribuído à centralização foi equiparado
ao da competência exclusiva.

- (2) “Concorrente G/E”7 – Atribuída explicitamente à União e às Unidades Constitutivas


simultaneamente, porém com amplitude de ação diversa: à União cabe editar a norma

6
Silva reconhece que a Constituição não é rigorosa no emprego dos termos privativo e exclusivo, mas
defende a manutenção da distinção doutrinária por representarem realidades distintas (2007, p. 481). Parte da
doutrina, no entanto, não encontra mais razão para a distinção: “não nos parece apropriado, no entanto, é extremar
mediante o uso dos termos ‘privativo’ e ‘exclusivo’ as competências próprias que podem e as que não podem ser
delegadas, como se ‘privativo’ não exprimisse, tanto quanto ‘exclusivo’, a idéia do que é deferido a um titular com
exclusão de outros” (ALMEIDA, 1991, p. 86).
7
A literatura diverge quanto à utilização destes termos. Silva, por exemplo, distingue, quanto a extensão,
as competências que implicam na atuação de mais de um ente federativo em comum (expressão sinônima de
cumulativa e paralela), concorrente e suplementar: comum significaria “a faculdade de legislar ou praticar certos
atos, em determinada esfera, juntamente e em pé de igualdade, consistindo, pois, num campo de atuação comum
às várias entidades, sem que o exercício de uma venha a excluir a competência de outra, que pode assim ser exercida
cumulativamente”; concorrente, a “possibilidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma
entidade federativa” e “primazia da União no que tange à fixação de normas gerais”; suplementar, a “correlativa

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geral, delineando os limites legais e, às Unidades Constitutivas, editar a norma
específica dentro do âmbito previamente determinado, adequando-a às suas
necessidades específicas.

- (1,5) “Divergente U ou UC” – Atribuída explicitamente ou à União ou às Unidades


Constitutivas, com exclusão do outro, ficando o ente competente responsável pela
legislação plena da matéria.

- (1) “Paralela” – Atribuída explicitamente à União e às Unidades Constitutivas


simultaneamente, mas com âmbitos de ação determinados conforme o interesse afetado
(estadual ou federal), na qual o exercício da competência por um ente não exclui o
do outro.

- (0) “Residual” – Atribuída implicitamente às Unidades Constitutivas, nas federações onde,


por dispositivo constitucional explícito ou interpretação jurisprudencial, as Unidades
Constitutivas conservam os poderes não conferidos à União. Como na prática também
é exercida privativamente pela Unidade Constitutiva, atribui-se o mesmo valor quanto
à centralização/descentralização às competências Residual e Privativa UC.

“Privativa UC” – Atribuída explicitamente às Unidades Constitutivas, com a exclusão


dos demais entes da federação.

Da mesma forma, as competências constitucionais administrativas foram


classificadas em quatro modalidades, atribuindo-se quatro valores conforme o grau de
centralização/descentralização, para fins de comparação:

da competência concorrente, e significa o poder de formular normas que desdobrem o conteúdo de princípios ou
normas gerais que supram a ausência ou omissão destas” (SILVA, 2007, p. 481). Moraes assevera que “No âmbito
da legislação concorrente, a doutrina tradicionalmente classifica-a em cumulativa sempre que inexistir limites prévios
para o exercício da competência, por parte de um ente, seja a União, seja o Estado-membro, e em não cumulativa,
que propriamente estabelece a chamada repartição vertical, pois, dentro de um mesmo campo material (concorrência
material de competência), reserva-se um nível superior ao ente federativo União, que fixa os princípios e normas
gerais, deixando-se ao Estado-membro a complementação” (MORAES, 2003, p. 297). Para os objetivos deste
estudo, a classificação adotada utiliza-se dos termos que efetivamente tenham pertinência para a avaliação da
centralização/descentralização. Assim, tomou-se por base uma distinção básica entre competências atribuídas a um
único ente (exclusivas) e atribuídas a mais de um ente federativo (concorrentes), para a posterior pormenorização,
conforme apresentado. Nessa linha, Canotilho diferencia “competência exclusiva – atribuída a um só órgão —, de
competência concorrente — atribuída, a título igual, a vários órgãos —, ou de competência-quadro —, atribuída
quanto à definição de bases ou princípios a um órgão e quanto à densificação particularizante a outro, tem de
obter-se recorrendo exclusivamente à interpretação das normas constitucionais” (CANOTILHO, 1996, p. 679-680).
Em classificação semelhante, Ferreira Filho classifica como competências reservadas ou exclusivas as que “somente
que recebeu a competência pode dispor sobre a matéria”, segundo uma repartição horizontal. Contudo, entende
que as competências concorrentes nos casos em que “a mesma matéria é deixada ao alcance de um ou de outro”
ente, campo no qual caberia à União estabelecer as normas gerais (repartição vertical); categoria que, nesse estudo,
é apenas uma das possíveis classificações da competência concorrente (FERREIRA FILHO, 2009, p. 55). Sobre
a distribuição de competências concorrentes no Brasil, ver também Souza (2005, p. 112).

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- (3) “Privativa U” – Atribuída à União, com a exclusão dos demais entes federativos.

- (2) “UC por encargo U” – Atribuídas às Unidades Constitutivas, mas exercidas por
funcionários federais8.

- (1) “Comum” – Atribuída à União e às Unidades Constitutivas simultaneamente, que


executam a ação conjuntamente.

- (0) “Privativa UC” – Atribuída às Unidades Constitutivas, com a exclusão dos demais
entes da federação.

Além disso, para distinguir as razões que mais influenciaram na disposição dos
sistemas federativos examinados quanto à centralização/descentralização e, assim, apartar
aspectos considerados centrais das questões habitualmente reputadas como periféricas,
reunimos as competências legislativas e administrativas classificadas quanto ao conteúdo
predominante das matérias agrupadas, de modo a associar as categorias que conservavam
características semelhantes e, assim, conferir maior capacidade interpretativa e explicativa
ao modelo comparativo.
Assim, dividimos as competências legislativas e administrativas em três grupos
(I-Soberania, II-Econômico e III-Políticas públicas, descritos abaixo). O agrupamento
proposto é uma simplificação da distinção proposta por Horta, quanto às competências
constitucionais dispostas na Constituição Federal brasileira (HORTA, 2002, p. 350 e ss.):
- Grupo I – Soberania – Matérias legislativas relacionadas à soberania, à organização
institucional do país e à manutenção da unidade territorial, que, por representarem
interesses de ordem nacional, normalmente são atribuídas ao poder central (ao mesmo
os delineamentos gerais) e exigem certa uniformidade para a configuração de um sistema
federativo (subunidades com autonomia e não independência/soberania). Atividades
administrativas relacionadas à soberania e à proteção do território nacional.

- Grupo II – Econômico – Matérias legislativas relacionada à regulação da propriedade


pública e privada, envolvendo: aquisição, disposição, utilização, transmissão, tributação
etc. Atividades administrativas relacionadas à promoção econômica.

- Grupo III – Políticas Públicas – Matérias legislativas relacionadas à coletividade,


compreendendo tanto aspectos relacionados à promoção (social, trabalho etc.) quanto
à convivência social, por meio da regulação (trânsito, transportes etc.) ou proteção

8
Em princípio, as competências legislativas e administrativas são correlatas (FERREIRA FILHO, 2009,
p. 62). Desse modo, o ente competente para legislar em determinada matéria é também competente para aplicar
a lei. Contudo, é possível identificar três sistemas de repartição de competências administrativas nas federações
atuais: imediato, mediato e misto. No sistema imediato, a União e os Estados mantêm sua própria administração
com funcionários próprios (EUA, Argentina e Brasil). No sistema mediato, serviços federais nos Estados são
executados por funcionários estaduais e a União mantém apenas um pequeno corpo de funcionários responsáveis
pela fiscalização e vigilância desses serviços (Alemanha e Índia). No sistema misto, por sua vez, certos serviços
federais são executados por funcionários estaduais e vice-versa (Suíça e Áustria) (SILVA, 2007, p 482).

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80
de patrimônio “coletivo” (ambiental, patrimônio histórico etc). Atividades
administrativas relacionadas à promoção social e à regulação da convivência.

O quadro geral comparativo das competências legislativas e administrativas das


oito federações, quanto ao conteúdo e à extensão, são representados, respectivamente,
pela Tabela 1 e Tabela 2, enquanto os resultados comparativos da relação entre
competências legislativas e administrativas são apresentados no Gráfico 1.

Tabela 1. Competências Legislativas (quanto ao conteúdo e à extensão)


continua
Grupo Direito/legislação Brasil Alemanha Áustria Suíça Argentina Austrália USA Índia

I Fundamentais Privativa U Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U


Divergente Concorrente
I Nacionalidade Privativa U Privativa U Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U
U ou UC G/E
Organização dos
I Privativa U Privativa U Privativa U Paralela Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U
poderes
Organização
I Privativa U Paralela Paralela Paralela Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U
do estado
Organização Divergente Concorrente
I Paralela Paralela Paralela Paralela Paralela Paralela
(território) U ou UC G/E
I Político Privativa U Paralela Paralela Paralela Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U
I Eleitoral Privativa U Paralela Paralela Paralela Paralela Paralela Residual Paralela
Concorrente Privativa Divergente
I Penal Privativa U Privativa U Exclusiva U Residual Paralelo
G/E UC U ou UC
Concorrente Privativa Concorrente
I Processual Privativa U Privativa U Paralela Paralela Paralela
G/E UC G/E
I Defesa Privativa U Privativa U Privativa U Paralela Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U
Concorrente Divergente
II Civil Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Paralela Residual
G/E U ou UC
Concorrente
II Tributário Paralela Paralela Privativa U Paralela Paralela Paralela Paralela
G/E
Concorrente Concorrente Concorrente
II Orçamentário Paralela Paralela Paralela Paralela Paralela
G/E G/E G/E
Concorrente
II Financeiro Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U
G/E
Divergente Concorrente Privativa
II Agrário Privativa U Privativa U Paralela Residual Paralelo
U ou UC G/E UC
Divergente
II Comercial Privativa U Privativa U Paralela Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U Paralela
U ou UC
II Comunicações Privativa U Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Exclusiva U Paralelo Exclusiva U
Riquezas Divergente
II Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Exclusiva U Paralelo Exclusiva U
minerais/atômicas U ou UC
Concorrente
II Administrativo Paralela Privativa U Paralela Paralela Paralela Paralela Paralela
G/E
Concorrente Divergente Concorrente Concorrente Divergente
II Econômico Privativa U Paralela Residual
G/E U ou UC G/E G/E U ou UC
Concorrente Concorrente Concorrente Concorrente Divergente
III Social Paralela Paralela Paralelo
G/E G/E G/E G/E U ou UC
III Segurança Privativa U Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Paralela Paralela Paralela
Concorrente Divergente Concorrente Privativa Privativa
III Política urbana Privativa U Residual Residual
G/E U ou UC G/E UC UC
III Marítimo Privativa U Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Exclusiva U Exclusivo U Exclusiva U

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Tabela 1. Competências Legislativas (quanto ao conteúdo e à extensão)
conclusão
Grupo Direito/legislação Brasil Alemanha Áustria Suíça Argentina Austrália USA Índia
Aeronáutico/
III Privativa U Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Exclusiva U Exclusivo U Exclusiva U
espacial
Concorrente Concorrente Divergente
III Trabalho Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Residual
G/E G/E U ou UC
Divergente
III Trânsito Privativa U Privativa U Privativa U Residual Residual Residual Paralela
U ou UC
III Transportes Privativa U Privativa U Privativa U Paralela Paralela Residual Residual Paralela
Concorrente Divergente Concorrente Divergente
III Ambiental Privativa U Residual Residual Residual
G/E U ou UC G/E U ou UC
Patrimônio Concorrente Privativa
III Privativa U Privativa U Residual Residual Residual Paralela
histórico G/E UC

Tabela 2. Competências Administrativas (quanto ao conteúdo e à extensão)


Direito/
Grupo Brasil Alemanha Áustria Suíça Argentina Austrália USA Índia
administração
Tratados Exclusiva
I Privativa U Comum Comum Comum Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U
Internacionais U
Exclusiva
I Defesa Privativa U Privativa U Privativa U Comum Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U
U
I Polícia Comum Comum Comum Comum Comum Comum Comum Comum
Organização
I Comum Comum Comum Comum Comum Comum Comum Comum
Instituições
Proteção da
constituição e
I Comum Privativa U Privativa U Privativa U Comum Comum Exclusiva U Exclusiva U
patrimônio
público
Econômicos e
II Privativa U Privativa U Privativa U Comum Privativa U Privativa U Exclusiva U Privativa U
financeiros
Planejamento e Privativa
II Comum Comum Comum Comum Comum Comum Comum
desenvolvimento UC
Comunicação e Exclusiva
II Privativa U Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Exclusiva U Exclusiva U
telecomunicação U
Minérios
UC por Exclusiva
II nucleares e Privativa U Privativa U Privativa U Exclusiva U Comum Exclusiva U
encargo U U
derivados
Transporte/ UC por Privativa Privativa
III Comum Comum Privativa U Comum Comum
Trânsito encargo U UC UC
Proteção de bens
culturais, Privativa Privativa Privativa Privativa Privativa
III Comum Privativa U Comum
educação e UC UC UC UC UC
ciência
Proteção do meio
ambiente e Privativa Privativa Privativa Privativa Privativa Privativa
III Comum Comum
produção UC UC UC UC UC UC
agropecuária
Assistência UC por Privativa Privativa
III Comum Comum Comum Comum Comum
pública social encargo U UC UC

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Gráfico 1. Relação entre competências legislativas e administrativas

(1.1) Competências (Grupos I, II e III) (1.2) Competências (Grupo I – Soberania)

1,0 1,0
Competências Administrativas

Competências Administrativas
Usa Índia

Índia austrália
Áustria Áustria Brasil
Brasil
austrália alemanha argentina
Usa alemanha
0,5 argentina 0,5
suíça
suíça

0,0 0,0
0,0 0,5 1,0 0,0 0,5 1,0

Competências Legislativas Competências Legislativas

(1.3) Competências (Grupo II – Econômico) (1.4) Competências (Grupo III – Políticas Públicas)
1,0 1,0

Índia argentina
Brasil
austrália
alemanha Áustria
Competências Administrativas

Competências Administrativas

Usa suíça

Áustria
0,5 0,5

Índia Brasil

alemanha

Usa suíça
austrália
argentina

0,0 0,0
0,0 0,5 1,0 0,0 0,5 1,0

Competências Legislativas Competências Legislativas

3. ANÁLISE COMPARATIVA: ANÁLISE DA DISTRIBUIÇÃO DE


COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NAS FEDERAÇÕES

O resultado dessa classificação demonstra algumas similaridades e diferenças


significativas entre os arranjos constitucionais das oito federações comparadas (Alemanha,
Argentina, Austrália, Áustria, Brasil, Estados Unidos, Índia e Suíça). Relembramos que
o ponto de partida desta análise comparativa é o sistema de repartição de competências
constitucionalmente estruturado em cada Federação. Contudo, a fim de reduzir a margem
de desvio dos resultados, recorremos à literatura para as explicações quanto às formas

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de exercício dessas competências em cada sistema federativo, expostos a seguir de
maneira mais detalhada juntamente com os resultados das comparações realizadas.

Estados Unidos da América (1789)

O sistema federativo norte-americano, originado em 1789, representou uma


fórmula inédita de organização estatal. O objetivo era assegurar a autonomia dos governos
estaduais e, ao mesmo tempo, constituir um governo central forte, apto a garantir a
defesa externa e a estabelecer uma estrutura equânime para o comércio interno e externo.
A organização federativa, assim, substituiu a confederação dos Estados norte-americanos,
firmada em 1781, logo após sua independência da Coroa Britânica.
A novidade do novo arranjo constitucional foi permitir um relacionamento direto
entre a União e os cidadãos, sem a intermediação dos Estados. A eliminação desse
obstáculo permitiu a constituição de um governo central vigoroso, hábil a realizar as
aspirações que a estrutura confederativa não fora capaz de efetivar, sem, contudo,
suprimir as liberdades locais garantidoras da não submissão das subunidades ao poder
central. A ideia não era firmar uma hierarquia, mas delinear âmbitos de ação entre as
esferas estaduais e a União9. Fixou-se, deste modo, um sistema de repartição de
competências caracterizado pela atribuição de poderes enumerados a União e pela
reserva de poderes não enumerados aos Estados.
Assim, assegurou-se aos Estados, que contam com extensa lista de poderes
residuais, ampla autonomia na criação das suas próprias instituições. A diversidade das
instituições estaduais torna-se evidente, por exemplo, na organização dos governos locais,
aos quais as Constituições estaduais costumam distingui-los em diferentes classes,
delegando poderes desiguais10. Variações também são encontradas na organização do
Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, embora se exija que a divisão de poderes, por
decisão da Suprema Corte, oriente-se pelo modelo presidencialista.11
O Poder Legislativo federal é exercido por duas Casas. A Casa dos Representantes,
composta por representantes eleitos para mandatos de dois anos, tem seu número de
membros estabelecido segundo o número de habitantes de cada Estado (art. I, seção 2,

9
“... A Constituição proposta (...) não é nem verdadeiramente federativa, nem verdadeiramente nacional,
é um composto de ambas; nos princípios que lhe servem de base é federativa; na origem de seus poderes é mista
(...); na operação destes poderes é nacional; na extensão deles é federativa; na maneira de introduzir as reformas
nem é inteiramente federativa, nem inteiramente nacional”. (MADISON, 1979, p. 123).
10
Embora seja possível encontrar certa uniformidade na divisão dos governos locais em condados, cities
e towns, o significado destes termos variam em cada Estado, que delegam diferentes atribuições para os governos
locais, classificados, por sua vez, com base em diferentes critérios (TOMIO, 2005a, p. 128).
11
Formada inicialmente por treze Estados, atualmente a Federação americana compreende cinquenta
Estados, duas federacies e três Estados associados, cf. U.S. Census Bureau.

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USC12). O Senado, por sua vez, é composto por representantes eleitos para mandatos
de seis anos, no número de dois por Estado, sendo que 1/3 da Casa deve ser renovada
a cada dois anos (art. I, seção 3, USC). A diversidade dos critérios para eleição e da
duração de mandatos ao lado da ampla lista de atribuições comuns (art. I, seção 8, USC)
a ambas as Casas denotam a criação do Senado como uma Câmara revisora da legislação,
originalmente representativa dos interesses estaduais, mas não com a competência adstrita
a eles.
Contudo, passados mais de dois séculos desde a promulgação da Constituição
federal, as características descentralizadoras originais foram abrandadas. O governo
federal tornou-se mais poderoso e a federação mais integrada. Nas últimas décadas essa
tendência acentuou-se, transmutando de uma forma cooperativa para uma forma coercitiva
de federalismo, embora, ao mesmo tempo, fossem frequentes as pressões políticas para
maior descentralização (WATTS, 2008, p. 30). Apesar disso, os Estados Unidos ainda
são a federação que atribui mais competências legislativas aos estados. Mais o faz,
fundamentalmente, nos grupos (II e III) das competências legislativas tipicamente
vinculadas ao direito civil, organização econômica da sociedade, direito administrativo
e políticas públicas (ver Gráfico 1). Da mesma forma, os Estados Unidos mais
descentralizam as competências administrativas da gestão das políticas públicas e sociais.
Por outro lado, quando comparamos os aspectos mais centrais do Estado, relacionados
à soberania, os Estados Unidos se assemelham mais à maioria das federações

Confederação Suíça (1848)

A Suíça é caracterizada, sobretudo, por sua diversidade cultural, sendo a prova


viva de que o sistema federalista é capaz de manter a unidade na pluralidade.13 A
Confederação Suíça, existente de várias formas desde 1291, converteu-se em uma
legítima Federação em 1848, combinando o histórico modelo confederativo germânico
e o modelo constitucional norte americano de 1787. Desde então sua Constituição passou
por diversas reformas e duas totais revisões, em 1874 e em 1999, que procederam a
uma reordenação da repartição de competências entre Bund e cantões (HÄFELIN e
HALLER, 2005, 17). Por fim, já na vigência da nova Constituição, em novembro de
2004 foi aprovada, via referendo, uma reforma no sistema fiscal a fim de fortalecer
financeiramente os cantões.
Não há uma sistematização na Constituição Suíça do sistema de competências. A
repartição das competências legislativas e administrativas para cada matéria é feita de

12
USC = Constituição dos Estados Unidos da América (United States Constitution).
13
Composta por 26 unidades constitutivas chamadas cantões (Ständen), sendo que 17 deles são monolíngues
alemão, quatro são monolíngues francês, um italiano, três são bilíngues alemão e italiano e um trilíngue (alemão,
italiano e romanês) (WATTS, 2008, p. 30).

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maneira casuística no texto constitucional. Da doutrina juspublicista suíça (HÄFELIN e
HALLER, 2005, p. 316; TSCHANNEN, 2007, p. 294) extrai-se que na Constituição
podem se encontradas matérias com as seguintes características: 1) Legislação e
execução do Bund e execução (Ex: correios – art. 133, BV); 2) Legislação do
Bund e execução dos cantões (Ex: direito civil e penal – arts. 122 e 123, BV); 3)
Legislação de princípios ou normas gerais com execução pelos cantões (Ex:
nacionalidade – art. 38, BV); 4) Legislação paralela (Bund e cantões, cada qual
em seu âmbito) (Ex: organização do território – art. 75, BV); 5) Legislação e execução
dos cantões (Ex: impostos cantonais).
A nota particular da Confederação Suíça é que ela não tem soberania.14 De acordo
com o art.3.º da Constituição Suíça (BV15): “Os cantões são soberanos, desde que sua
soberania não seja limitada pela Constituição Federal; eles exercem todos os direitos não
delegados à Confederação”16. Observa-se, assim, que o legislador constitucional deixou um
amplo campo de matérias sob a competência do legislador cantonal, de modo que a
discricionariedade legislativa dos cantões é equiparável àquela dos states americanos.
Nesse aspecto, os resultados obtidos com as análises comparativas evidenciam
que a Suíça é, de fato, uma federação pouco centralizada, marcada, sobretudo, pela
singular descentralização legislativa e administrativa quanto às matérias do Grupo I, ou
seja, quanto aos poderes de soberania. O Gráfico 1.2 demonstra que a competência
para legislar e administrar matérias como nacionalidade, organização dos poderes,
organização do estado, político, defesa e celebração tratados internacionais (tipicamente
atribuídas ao poder central em outras federações), na federação suíça é atribuída
predominantemente aos cantões.
Certamente, os cantões suíços não são “soberanos” no sentido dado pelo
direito internacional ao termo. Mas, em decorrência disso, a Confederação Suíça só
pode assumir tarefas explicitamente enumeradas pela Constituição (art. 42, §1º,
BV), fato que denota a grande autonomia conferida pelo modelo federativo suíço as
suas unidades constitutivas.
Por outro lado, a Confederação possui o poder de legislar sobre aspectos
econômicos e de políticas públicas, gerando uma regulamentação uniforme (art. 42,

14
Por fim, a Confederação Suíça apresenta um sistema bicameral, sendo que o Ständerat suíço (Câmara
alta representativa dos cantões) é composto por 46 representantes, eleitos pelas normas estabelecidas em cada
cantão. Os menores cantões elegem um representante e os demais dois (art. 150, BV). A Constituição suíça deixa
claro que os cantões participam na formação da vontade da Confederação, especialmente quanto à legislação (art.
45, §1º BV) e a Confederação deve consultar os interesses dos cantões a respeito de seus projetos (§2º).
15
BV = abreviação, em alemão, para a palavra Constituição suíça.
16
De ressaltar, ainda, que a Confederação preserva a independência dos cantões (art. 47, BV) e que os
Cantões podem firmar contratos entre si, desde que não contrários a lei e ao interesse da Confederação (art.48,
§1º, BV).

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§3º, BV). Nos termos da Constituição suíça, a Confederação e os cantões se apoiam
mutuamente no cumprimento das suas tarefas e cooperam entre si (art.44, §1º, BV).
Nesse sentido, quanto à distribuição dos poderes econômicos (Grupo II – Gráfico 1.3)
e das políticas públicas (Grupo III – Gráfico 1.4), observa-se que a Suíça situa-se sempre
no ponto médio de centralização/descentralização legislativa entre as oito federações
comparadas. Contudo, se analisadas a repartição das competências para execução dessas
matérias, nota-se uma nítida opção pela descentralização administrativa, sendo, portanto,
os cantões responsáveis pela execução de leis econômicas e financeiras, bem como de
leis de planejamento e desenvolvimento.
Tais características permitem concluir que o modelo federativo suíço também partilha
de marcantes traços da matriz germânica caracterizada pelo federalismo de execução
(Vollzugföderalismus), estruturando um sistema de co-decisão e cooperação entre os governos
federal e cantonais17. Nesse sentido, prevê o art. 46 da BV que são os cantões que executam
o direito federal, observando a Constituição e a lei. Os resultados comparativos corroboram
a corrente afirmação doutrinária de que a Suíça é a federação mais descentralizada
administrativamente dentre aquelas comparadas (ver Gráfico 1.1).

República Federal da Alemanha (1949)

Apesar de o atual modelo federativo alemão decorrer do sistema federativo


estruturado pela Lei Fundamental de Bonn de 194918, suas características remontam
às antigas experiências federativas alemãs, sobretudo, do modelo federativo do Império
alemão (criado por Bismarck, 1871-1918) e da República de Weimar (1919-34), que
estruturaram um sistema parlamentarista de relações de cooperação e de codecisão entre
governos federal e estaduais (joint decision-making). De ressaltar que certas incongruências
neste sistema federativo de políticas cruzadas (interlocking politics) levaram em 2006 a
uma ampla reforma federativa, com a reorganização do sistema de repartição de
competências alemão (chamada de Föderalismusreform I)19.
Essa matriz federativa consagrou-se pela doutrina com a denominação de
federalismo de execução (Vollzugföderalismus), pois, o grande peso das competências
legislativas é atribuído ao Bund (União), enquanto a execução da grande maioria das

17
Por compartilhar as linhas centrais de ambos os modelos federativos alemão e americano, alerta Klaus
Armingeon que o federalismo suíço também é suscetível às deficiências de ambos os modelos (ARMINGEON,
Klaus. Swiss federalism in comparative perspective. In:WACHENDORFER-SCHMIDT, 2000, p. 109).
18
A Federação alemã é formada por 16 Länder, sendo três deles cidades-Estado (Bremen, Hamburg
e Berlin).
19
Para uma análise mais detalhada desse processo e da atual conformação do sistema de repartição de
competências alemão, consultar o artigo: TOMIO, Fabrício; ORTOLAN, Marcelo. O sistema de repartição de
competências legislativas da lei fundamental alemã após a reforma federativa de 2006. 2010 (no prelo).

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leis federais é entregue aos Länder (Estados). Por razões históricas, essa matriz federativa
influenciou a organização das federações austríaca e suíça. Outra característica do sistema
federativo alemão é a opção pela completa separação topográfica entre competências
legislativas e administrativas no texto constitucional.
Após as mudanças da Reforma Federativa de 2006, o sistema de competências
legislativas estrutura-se em: 1) um título de legislação privativa do Bund (ausschließliche
Bundesgesetzgebung – art. 73, LF); 2) e três títulos de legislação concorrente
(art.72 e 74, LF), que segundo a doutrina de Jörn Ipsen (2006, p. 146-51) podem
ser classificados nos seguintes sub-títulos, com características próprias: a) Concorrente
de necessidade (Bedarfskompetenzen – art. 74, §1.º, n.º 4, 7, 11, 13, 15, 19a, 20,
22, 25 e 26, LF); b) Concorrente de núcleo (Kernkompetenzen – demais matérias
art. 74, §1.º); c) Concorrente de divergência (Abweichungskompetenzen – art. 72,
§3, da LF)20; 3) por fim, mais um título de concorrência legislativa denominado
legislação de princípios ou normas gerais (art. 109, §3 e art.91a, LF)
(Grundsatzgesetzgebung des Bundes)21.
Por sua vez, o sistema de repartição de competências administrativas caracteriza-
se, sobretudo, pela cláusula geral prevista no art. 83 da LF, que atribui aos Länder a
competência para executar as leis federais como matéria própria, exceto nos casos em
que a própria Lei Fundamental estabeleça de maneira diversa.
A doutrina de Zippelius e Würtenberger (2008, p. 490) classifica, de maneira
geral, as competências administrativas da Lei Fundamental alemã em quatro títulos:
1) Execução de leis federais sob Administração Federal Própria (apenas quando
expressamente indicado pela LF); 2) Execução de leis federais pela Administração
Estadual: 2.1) como matéria própria (art. 83, LF – regra geral); 2.2) por encargo
da Federação (por meio de delegação constitucional); 3) Execução estadual de
leis estaduais; e 4) um título de tarefas comuns22 (Gemeinschaftsaufgaben), que
correspondem a formas institucionalizadas de cooperação administrativa entre Bund
e Länder.
Os resultados obtidos com as pesquisas comparativas evidenciam que a Alemanha
é a federação com o sistema federativo mais equilibrado dentre aquelas analisadas.
Observe-se que nos gráficos relativos às matérias de soberania (1.2), econômico (1.3) e

20
Grande inovação da Reforma Federativa de 2006. Trata-se de verdadeira competência legislativa plena
dupla (doppelte Vollkompetenz) para o Bund e para os Länder. No âmbito dessas matérias, podem os Länder
estabelecer leis próprias e divergentes das leis federais, o que não impede que o Bund volte a legislar sobre a mesma
matéria. O critério de prevalência entre lei federal e estadual é temporal: Lex posteriori derrogat priori.
21
Anote-se que esta forma de legislação de princípios ou normas gerais foi recepcionada, pela primeira
vez, pela Constituição Federal Brasileira de 1934, sendo retomada pela Constituição de 1946. Na atualidade, esta
forma de legislação corresponde à competência legislativa concorrente prevista no art. 24 da CF de 1988.
22
Lei Fundamental alemã, 1949, art. 91a e 91b.

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políticas públicas (1.4), a federação alemã nunca aparece demasiadamente descentralizada
ou centralizada, ocupando, preponderantemente, o ponto médio.
Sem prejuízo disso, contudo, no quadro geral das federações, pode-se classificar
a Alemanha com uma nação relativamente centralizada quanto à distribuição de
competências legislativas e preponderantemente descentralizada administrativamente
(Gráfico 1.1). Nesse sentido, a análise do sistema de distribuição das matérias legislativas
evidencia que, apesar de a lista de matérias entregues à União ser quantitativamente e
qualitativamente superiores a dos Estados, há uma preponderância de títulos de
concorrência legislativa entre Bund e Länder, que exigem a participação tanto do Bund
quanto dos Länder no processo legislativo.
Nesse âmbito, destaca-se o singular papel exercido pelo Bundesrat alemão (Câmara
alta, semelhante ao Senado brasileiro). Em razão de sua forma de composição, por
delegados escolhidos ex officio pelos governos estaduais23, e de suas atribuições, com
voto absoluto sobre qualquer legislação federal relacionadas a funções administrativas
estatais e veto suspensivo sobre as demais leis federais, a câmara alta alemã pode ser
classificada no extremo de poder de influência e representação dos interesses dos Estados
e dos governos locais na formação da política nacional24.

República Federal da Áustria (1920)

As características fundamentais do modelo federativo austríaco remontam à


Constituição federal de 1920, com as alterações de 1929 e 1945.25 A vigente Constituição
austríaca (B-VG26) não faz a distinção topográfica entre competências legislativas
(legislação) e administrativas (execução), cumulando em certos artigos os dois tipos de
atribuições. A doutrina juspublicista austríaca27 classifica o sistema de repartição de
competências austríaco em: 1) Matérias do art.10 B-VG (Zehnermaterien): Legislação

23
LF, art. 51, § 1: “O Conselho Federal é formado por membros dos governos dos estados, que os
designam e destituem. Os membros do Conselho podem fazer-se representar por outros membros dos seus governos”
(traduzido pelos autores)
24
Ronald Watts argumenta que, ao contrário das federações em que os membros da segunda câmara
federal são diretamente eleitos, naquelas em que seus membros são indiretamente eleitos pelas legislaturas estaduais,
ou quando são indicados ex officio como delegados das unidades constitutivas, como no caso da Alemanha, é a
visão desses governos que são diretamente representadas e apenas indiretamente aquela do eleitorado (WATTS,
2008, p. 151).
25
A Áustria é um país com sistema parlamentarista, de regime bicameral, sendo que os membros do
Bundesrat austríaco (Câmara Alta) são indiretamente eleitos pela assembléia legislativa dos Länder, com
representatividade praticamente simétrica à população dos Länder. A a Federação austríaca é formada por nove
Länder, sendo Viena, a capital federal, uma Cidade-estado.
26
B-VG = abreviação, em alemão, para a palavra Constituição austríaca.
27
Nesse sentido, ver Binder e Trauner (2008, p. 35) e Öhlinger (2007, p. 121).

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e execução privativas do Bund; 2) Matérias do art.11 B-VG (Elfermaterien): Legislação
privativa do Bund, mas execução privativa dos Länder; 3) Matérias do art.12 B-VG
(Zwölfermaterien): Legislação concorrente – norma geral Bund e norma específica Länder
– e execução privativa dos Länder; 4) Matérias do art.15 B-VG (Fünfzehnermaterien):
Legislação e execução privativas dos Länder; 5) Competências especiais espalhadas
pelo texto constitucional austríaco.
A simples análise do sistema constitucional de repartição de competências
evidencia que o modelo federativo da Áustria assemelha-se aos modelos alemão e suíço
do federalismo de execução (Vollzugföderalismus). Contudo, a Áustria distingue-se destes
pela alta centralização das competências legislativas no âmbito federal e relativa
descentralização administrativa estadual. Com efeito, perceba-se que o sistema de
repartição de competências austríaco só prevê um título de concorrência legislativa, pela
forma da emissão de normas gerais pelo Bund e normas específicas pelos Länder.
É isso que pode ser visto nos gráficos 1.3 e 1.4, nos quais a Áustria desponta como
a federação mais centralizada legislativamente no âmbito econômico e políticas públicas.
Ademais, na classificação geral das federações (Gráfico 1.1) observa-se que a Áustria só
não é mais centralizada legislativamente que o Brasil. Exceção deve ser feita às matérias
relativas à soberania, nas quais a Áustria apresenta grau de descentralização equiparável
à Alemanha, sendo que seus Länder também podem celebrar tratados internacionais.
Na literatura, Binder e Trauner (2008, p. 37) chamam a atenção para a fraca
posição dos Länder austríacos em comparação à Federação alemã ou suíça. De acordo
com os autores, a cláusula de competência legislativa residual em favor dos Länder é
enganosa (art. 15, §1.º, B-VG). A quantidade e qualidade das matérias enumeradas ao
Bund são de tamanho peso que aquelas que eventualmente sobram aos Länder são pouco
significativas. No campo legislativo, apenas as matérias do art. 15 B-VG e as leis específicas
de execução nas matérias do art.12 B-VG são da competência dos Länder.28
Por outro lado, quanto às atribuições administrativas dos Lander, a Áustria é
um pouco menos centralizada. Os Länder são responsáveis pela execução das matérias
dos artigos 15, 12 e 11 da B-VG. A organização administrativa federal compreende
apenas a administração direta. Por determinação constitucional (art. 102, §1.º, B-VG),
a administração federal indireta é realizada unicamente pelas secretarias e pelos órgãos
dos Länder.
Contudo, isso não permite classificá-la como uma federação administrativamente
descentralizada. Observe-se que, no quadro geral, a Áustria é a segunda federação mais
centralizada quanto à distribuição de competências administrativas, ficando atrás apenas

28
Convém destacar ainda que os Länder na Áustria não dispõem de tribunais próprios, uma vez que a
jurisdição é matéria exclusiva do Bund. Em outras palavras, a competência para dizer o direito na Áustria (jurisdição)
é unicamente federal.

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90
da Índia (Gráfico 1.1). Além disso, no âmbito das políticas públicas a federação austríaca
apresenta um elevado grau de centralização legislativa e administrativa, destoante das
demais federações comparadas (Gráfico 1.4). Exceção deve ser feita ao grupo de poderes
econômicos, em que a Áustria é tão descentralizada quanto a Alemanha, sendo superada
apenas pelos Estados Unidos e pela Suíça.29
Outra peculiaridade centralizadora austríaca é que o legislador constitucional
decidiu na Constituição que é da competência do Bund o poder para fazer a distribuição
das competências/tarefas entre as entidades federativas. Ou seja, diz-se que a competência
das competências (Kompetenz-Kompetenz) é privativa do Bund. Tudo isso permite
classificar a federação austríaca dentre aquelas com alta centralização legislativa e relativa
centralização administrativa federal.

Austrália (1901)

A federação australiana resulta da reunião de colônias britânicas pela promulgação


da Constituição Federal de 1901,30 que combinou elementos do federalismo norte-
americano quanto à repartição de poderes e do federalismo canadense, quanto ao sistema
de governo. Assim, o parlamentarismo, adotado nos âmbitos federal e estadual, foi
conformado com um modelo de repartição de poderes que lista os poderes da União e
reserva aos Estados os poderes não-enumerados. Contudo, a presença de uma substancial
lista de poderes concorrentes incorpora elementos de um federalismo de integração, o
que distancia a federação australiana do modelo clássico norte-americano, embora
elementos dualistas permaneçam marcantes no arranjo administrativo (ANDERSON,
2009, p. 43). Decisões judiciais recentes, nesse sentido, têm salientado o caráter

29
Corroborando os resultados encontrados, faz-se oportuno mencionar que Ronald Watts considera o
estudo da federação austríaca de grande interesse, pois ela demonstra até que ponto a centralização e a
interdependência federal-estadual pode ser levada no espectro da arquitetura federal (WATTS, 2008, p. 35).
30
A Austrália consiste numa federação de seis Estados e dez Territórios (a maior parte ultramarino), além
do Território da Capital Federal. Embora somente os Estados desfrutem de autonomia assegurada constitucionalmente
(Seções 103 e 102, ACA), três Territórios (Australian Capital Territory, Norfolk Island e Northen Territory) contam
com Poder Legislativo que, em sua maioria, é bicameral. A representação dos Estados no Poder Legislativo federal
é exercida pelo Senado, composto por membros eleitos diretamente nos Estados para mandatos de seis anos (total
de doze por Estado, mas o número pode ser aumentado pelo Parlamento desde que a igualdade na representação
seja mantida) (Seção 107, ACA), e pela Câmara de Representantes (House of Representatives), composta por membros
diretamente eleitos, em número proporcional à população dos Estados que os elegerem (o número total de membros
deve ser, conforme o possível, o dobro do número de senadores) (Seção 24, ACA), para mandatos de três anos,
contudo, podem ser dissolvidas em tempo menor (Seção 28, ACA). Ambas as Casas podem iniciar leis em diversas
matérias, conforme disciplinam, em extensas listas, as seções 51 e 52 da Constituição australiana, mas o Senado
não pode emendar leis sobre taxação nem iniciar leis sobre receitas, verbas ou arrecadação (Seção 53, ACA). A
promulgação das leis exige a aprovação nas duas Câmaras, sendo que o desacordo entre elas pode ensejar a
dissolução do Parlamento (Seção 57, ACA).

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pragmático do federalismo australiano: casuísta, inclinado a solução de problemas práticos
e não adstrito a dogmas teóricos (HOLLANDER e PATAPAN, 2007, p. 291).
Na federação australiana, os Estados têm sua autonomia garantida pela manutenção
das constituições coloniais, anteriores à federação, conforme o disposto na Constituição
federal (Seção 106, ACA31), que, por sua vez, não define quais matérias legislativas são
de competência estadual, mas estabelece exceções32. Desse modo, podem atuar
privativamente em importantes áreas, como criminal e educacional. Contudo, na hipótese
de divergência entre dispositivos legais, prevalece a norma federal (Seção 109, ACA).
Assim, apesar de a Austrália se apresentar como o segundo país mais
descentralizado legislativamente entre as federações comparadas (Gráfico 1.1), as
competências legislativas relacionadas aos Grupos I e II (Soberania e Econômico, Gráficos
1.2 e 1.3) encontram-se significativamente centralizadas. A posição relativa da Austrália
deve-se, portanto, essencialmente à descentralização das competências legislativas
relacionadas às Políticas Públicas (Gráfico 1.4). Do mesmo modo, como a repartição
das competências administrativas é influenciada pelo modelo norte-americano,
administrativamente a Austrália é uma federação pouco centralizada, fundamentalmente
pela excessiva descentralização administrativa referente às políticas públicas (Gráfico
1.4), encontrando-se tão centralizada administrativamente nos Grupos I (Soberania)
quanto Brasil, Alemanha e Áustria (Gráfico 1.2) e mais centralizada no Grupo II
(Econômico) do que países como Alemanha, Áustria e Suíça (Gráfico 1.3).

Índia (1950)

A Constituição indiana, promulgada em 1950, três anos após a independência,


tem como principal desafio manter a unidade em uma sociedade notadamente
heterogênea.33 A adoção de um Estado federativo foi a fórmula encontrada para solucionar
o paradoxo entre unidade e diversidade, questão que anteriormente havia levado o

31
ACA = Constituição da Austrália (Commonwealth of Australia Constitution Act)
32
Os Estados não podem manter ou aumentar forças militares, impor taxas a bens pertencentes à União,
de consumo ou de alfândega, oferecer subsídios para a produção ou para a exportação de mercadorias (seções 90
e 114, ACA).
33
A Índia é uma união de vinte e oito Estados (que, por sua vez, são divididos em distritos), seis Territórios
e o Território da Capital Nacional. O Poder Legislativo Nacional é formado pelo Conselho de Estados (Rajya Sabha
ou Council of States) e pela Câmara de Representantes (Lok Sabha ou House of the People). O Conselho de Estados
é formado por doze membros nomeados pelo Presidente e até duzentos e trinta e oito membros eleitos indiretamente
pelas Assembléias estaduais e dos Territórios da União para mandatos de seis anos (art. 80, CI), com 1/3 da Casa
renovada a cada dois anos (art. 83, CI). A Câmara de Representantes, por sua vez, é composta por até quinhentos
e trinta membros eleitos diretamente nas circunscrições eleitorais estaduais e até vinte membros eleitos para
representar os Territórios da União (art. 81, CI). Ambas as Casas podem iniciar os projetos de lei, contudo, somente
a Câmara Baixa pode iniciar money bills (art. 109, CI), assim denominadas as leis referentes a finanças públicas

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governo britânico a valer-se de propostas federativas, com o Government of India Act,
em 1935 (WATTS, 2008, p. 36), cujas divisões administrativas não levaram muito em
consideração as diferenças linguísticas (LIJPHART, 2003, p. 223). A Constituição de
1950, assim, amparou-se na clivagem linguística ao fixar limites estatais e concedeu
poderes excepcionais à União de caráter interventivo, para garantir a coesão sem eliminar
a diversidade. Porém, a base étnico-linguística de muitos estados e as poderosas forças
regionais tornaram, na prática, a atenuação dos elementos centralizadores (WATTS,
2008, p. 37).
A pretensão de garantia do sistema federativo, de modo a assegurar que a União
e as subunidades não extrapolem os limites de atuação fixados constitucionalmente,
transparece na minúcia e na extensão da redação da Lei Fundamental. A divisão de
competências entre as unidades constitutivas e a unidade central, desse modo, é fixada
por três listas exaustivas de matérias legislativas, segundo um sistema de repartição
integral das competências legislativas (HORTA, 2002, p. 344-5). A primeira lista
determina os poderes legislativos exclusivos da União, incluídas atribuições características
dos governos centrais em federações, como defesa, cidadania, extradição e moeda, e
demais prerrogativas não necessariamente essenciais ao poder central nos sistemas
federativos, como a taxação de determinados produtos. Também estabelece que as
matérias não enumeradas nas demais listas são exclusivas da União. A segunda lista,
por sua vez, fixa os poderes exclusivos dos Estados. Por fim, a terceira lista expõe as
atribuições legislativas concorrentes entre o poder central e as subunidades.
Diversamente do que costuma se esperar de uma Constituição detalhista, a
repartição de competências faz da Índia uma federação pouco centralizada quanto às
competências legislativas, mas relativamente centralizada quanto às competências
administrativas (Gráfico 1.1). Isto porque, embora, como a Constituição brasileira, seja
exaustiva ao abordar as competências legislativas da União, atribuindo-lhe noventa e
seis itens e as demais matérias não enumeradas, também é minuciosa na discriminação
das competências estaduais, reservando privativamente às subunidades federais sessenta
e seis itens e, em concorrência com a esfera federal, quarenta e sete. A centralização
administrativa deve-se, sobretudo, às matérias Econômicas (Gráfico 1.3) e de Soberania
(Gráfico 1.2), esta, por sua vez, também responsável pela centralização legislativa,
significativamente inferior nos demais grupos.
A Constituição fixa limites rígidos para as instituições estaduais, delineando a
organização dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário das subunidades. Assim,
determina que os Poder Executivo é exercido por um Governador, nomeado pelo
Presidente, que igualmente pode destituí-lo do cargo (arts. 153-158, CI34). O Governador,

34
CI = Constituição da Índia (The Constitution of India)

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juntamente com a Assembléia Legislativa (Legislative Assembly) ou, em alguns Estados35,
com o Conselho Legislativo (Legislative Council) e Assembléia Legislativa, compõe o
Poder Legislativo estadual. A Assembléia Legislativa é composta por número de membros
entre sessenta e quinhentos, eleitos diretamente para mandatos de cinco anos, mas pode
ser dissolvida em período inferior (arts. 170 e 172, CI). O Conselho Legislativo, por sua
vez, eleitos segundo critérios diversos36 para mandatos de seis anos, não sujeitos à
dissolução e com renovação de 1/3 da Casa a cada dois anos (arts. 171 e 172, CI).

Argentina (1853)

A organização federativa argentina foi estruturada na Constituição Federal


promulgada em 1853, mas períodos posteriores de ditaduras militares e oligárquicas
culminaram na centralização do Estado e na conseqüente descaracterização dos elementos
federais originais. A formatação atual do federalismo argentino foi delineada na última
reforma constitucional, em 1994, que procurou reverter a tendência centrípeta.37
Após seis reformas, a Constituição, quanto à disposição de matérias, recupera,
em certa medida, a formatação inicial, denunciando a influência do modelo clássico
norte-americano. Assim, lista as competências exclusivas da União e, expressamente,
reserva os poderes não enumerados às províncias (art. 121, CNA38), respeitados os
princípios e as garantias afirmados na Constituição Federal. Autônomas, as províncias
criam suas instituições, editam suas constituições, elegem seus governadores e legisladores
sem intervenção federal (arts. 5º, 122 e 123, CNA).

35
A Constituição federal determina que terão Poder Legislativo bicameral os Estados de Andhra Pradesh,
Bihar, Madhya Pradesh, Maharashtra, Karnataka e Uttar Pradesh; nos demais, o Poder Legislativo é unicameral
(art. 168, CI).
36
A Constituição federal estabelece que, conforme for possível: 1/3 dos membros são eleitos por integrantes
das municipalidades, conselhos distritais ou qualquer outra autoridade local; 1/12 dos membros são eleitos por
pessoas graduadas em universidades indianas ou cujas qualificações foram definidas pelo Parlamento como
equivalente à graduação; 1/12 dos membros são eleitos por pessoas que tenham se engajado no ensino não inferior
ao secundário; 1/3 dos membros são eleitos pelos representantes da Assembleia Legislativa; as vagas restantes são
preenchidas por pessoas indicadas pelo governador (art. 171, CI).
37
A Argentina, além da capital federal, possui vinte e três províncias. O Poder Legislativo nacional, como
nas demais federações, é bicameral (art. 44, CNA). A Câmara de Deputados é composta por membros eleitos para
mandatos de quatro anos, em eleições proporcionais a cada quatro anos, com número de representantes definido
segundo o número de habitantes de cada província e da capital federal (art. 45, CNA). O Senado, por sua vez, é
composto por membros eleitos para mandados de seis anos, em eleições majoritárias a cada dois anos para a
renovação de 1/3 da Casa Legislativa, com número determinado de três representantes por província e três da
capital federal (art. 54, CNA). Apesar da composição segundo critérios de representação diferentes, a incongruência
no aspecto eleitoral não reflete uma diferença marcante nas atribuições das Câmaras Legislativas.
38
CNA = Constituição da Argentina (Constitución de la Nación Argentina).

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O tratamento constitucional é simétrico para todas as províncias, mas reserva à
cidade de Buenos Aires um regime autônomo, com faculdades próprias de legislação
(art. 128, CNA). A autonomia assegurada permite diferentes estruturas institucionais,
coexistindo Estados com Poder Legislativo unicameral e bicameral39, regimes próprios
de democracia (como consultas eleitorais, iniciativa popular e revogação de mandados)
(Sagüés, 1999, p. 11) e diferentes arranjos na organização dos governos locais (art.
123, CNA).
A influência inicial norte-americana e da pretensão em revigorar elementos
federativos após sucessivas experiências não-democráticas parecem ter mitigado os
componentes centralizadores, sobretudo no que diz respeito à atuação material
governamental. Entre os países pesquisados, a federação argentina apresentou-se pouco
centralizada quanto às competências administrativas (superior somente à Suíça e
praticamente empatada com a Austrália) e moderadamente centralizada quanto às
competências legislativas (mais descentralizada do que Alemanha, Áustria e Brasil,
Gráfico 1.1). No entanto, quando os grupos de matérias são analisados separadamente,
nota-se relevante variação quanto à concentração de competências: é tão centralizada
quanto o Brasil nas atividades econômicas e de desenvolvimento40 (Gráfico 1.3), enquanto
possui um arranjo mais descentralizada que os EUA na gestão de políticas públicas
(Gráfico 1.4), ocupando, nos dois momentos, posição próxima à da Austrália.
O artigo 75 da Constituição Nacional define uma extensa lista de atribuições
legislativas e administrativas do Congresso. Entre as faculdades comuns está, por
exemplo, a iniciativa legislativa em matéria aduaneira, civil, comercial, penal, trabalhista
e de nacionalidade. Por sua vez, o rol reduzido de atribuições privativas e a possibilidade
de propositura de leis41, salvo exceções constitucionais, em qualquer uma das Câmaras
(com exigência de discussão e exame de projeto em ambas as Casas), denotam a
atuação do Senado mais como instância revisora do que primordialmente representativa
dos Estados.

39
Províncias com Poder Legislativo unicameral: Chaco, Chubut, Córdoba, Corrientes, Formosa, Jujuy,
La Pampa, La Rioja, Misiones, Neuquén, Río Negro, San Juan, Santa Cruz, Terra Del Fuego, Antártida e Islas del
Atlántico Sur. Províncias com Poder Legislativo bicameral: Buenos Aires, Catamarca, Entre Ríos, Mendoza, San
Luis, Santa Fe, Salta.
40
Segundo Watts (2008, p. 47), embora a cláusula residual favoreça as subunidades, a autoridade federal
pode ser exercida em áreas nas quais as províncias poderiam interferir no exercício de poderes atribuídos à União.
41
A Câmara de Deputados tem iniciativa privativa de leis sobre contribuições e recrutamento de tropas
(art. 52, CNA) e é responsável pela denúncia, perante ao Senado, em causas de responsabilidade ou por crimes
comuns, do Presidente, Vice-Presidente, Chefe de Gabinete dos Ministros e membros da Corte Suprema (art. 53,
CNA). O Senado é responsável, privativamente, pelo julgamento dos denunciados pela Câmara dos Deputados (art.
59, CNA) e pela autorização da declaração de estado de sítio, solicitado pelo Presidente da República, em caso de
ataque internacional (art. 61, CNA).

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República Federativa do Brasil (1891)

De acordo com Almeida (2007, p. 58), o regime federativo consagrado pela


Constituição Federal de 1988 estruturou um modelo federativo em que convivem
competências privativas, repartidas horizontalmente (sem existência de hierarquização
entre os entes federados para o exercício da competência, que a exerce com plena
autonomia), com espaço para delegação, e competências concorrentes, repartidas
verticalmente (com existência de subordinação entre o tipo de atuação previsto para
cada ente federativo), reaproximando a federação brasileira do chamado federalismo
cooperativo.42
No âmbito das competências legislativas, observam-se os seguintes títulos: 1)
Competência legislativa privativa da União composta por 29 matérias de disciplina
privativa da União (art.22, CF), com possibilidade de delegação normativa aos Estados,
mediante lei complementar43; 2) Competência legislativa remanescente dos Estados
(art. 25, §1, CF); 3) Competência legislativa concorrente (art. 24 e parágrafos, CF)
que, reproduzindo a técnica de legislação de princípios alemã44, se constitui em técnica
de repartição vertical de competências (de normas gerais da União e normas particulares
pelos Estados)45, formada por 16 matérias.
No âmbito das competências administrativas, observam-se apenas dois títulos de
competências: 1) Competências administrativas privativas da União (art.21, CF) que
compreende 25 matérias deferidas à atuação política e administrativa das autoridades
administrativas federais; e 2) Competências administrativas comum da União, Estados,
DF e Municípios (art.23, CF) que condensam matérias não exclusivas, paralelas ou
cumulativas, que poderão ser implementadas, em condições de igualdade e de maneira
plena, pela União, Estados e DF e Municípios46.

42
A República Federativa do Brasil é formada por 26 Estados, um Distrito Federal, e mais de 5.500
Municípios.
43
Deve-se ressaltar, entretanto, que este rol não é exaustivo, havendo outras competências legislativas da
União previstas no art. 48 da CF e outras tantas dispersas no texto constitucional (MENDES, COELHO e BRANCO,
2009, p. 868).
44
Cuja origem remonta aos artigos 10 e 11 da Constituição de Weimar e atual legislação de princípios
ou de normas gerais (Grundsatzgesetzgebung des Bundes) previsto pelo art. 109, §3 e art.91a, da Lei Fundamental
alemã de 1949.
45
De acordo com a lição de Raul Machado Horta, a nova competência legislativa concorrente foi abastecida
com matérias próprias, não deslocadas da competência legislativa privativa da União, como ocorreu nas Constituições
de 1934, 1946 e 1967 (HORTA, 2002, p. 346).
46
Não obstante a inexistência de hierarquia entre os entes federativos, pode-se falar em uma “hierarquia
de interesses”, em que os mais amplos (da União) devem preferir aos mais restritos (dos Estados) (MENDES,
COELHO e BRANCO, 2009, p. 870).

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Os resultados comparativos demonstram que o Brasil, juntamente com a Áustria,
é a federação mais centralizada em quase todos os aspectos de distribuição de
competências legislativa e administrativas comparadas. De fato, quanto à extensão das
competências legislativas atribuídas às unidades constitutivas (estados), o constituinte
brasileiro relegou quase nenhuma descentralização às competências de soberania (Gráfico
1.2) e manteve muito centralizado, no âmbito federal, a legislação sobre políticas públicas,
com relativa centralização quanto à execução das políticas públicas (Gráfico 1.4).
O relativo papel legislativo dos estados verifica-se no grupo das competências
econômicas (Gráfico 1.3), sobretudo, devido ao poder paralelo de legislar sobre questões
de direito administrativo, orçamentário e tributário. Contudo, nesse âmbito a execução
dessas competências é preponderantemente federal. Nesse contexto, o Brasil é mais
descentralizado quanto às competências administrativas de soberania e políticas públicas
do que quanto às competências para legislar sobre estas matérias, que são centralizadas
no âmbito federal.
Por fim, faz-se relevante ressaltar que a grande inovação trazida pela CF88 foi a
elevação do Município ao status de ente integrante do pacto federativo47, e, por consequência,
à qualidade de pessoa política, que além de autonomia, possui Executivo e Legislativo
próprios e poder de auto-organização, mediante lei orgânica (art. 29, CF).

4. CONCLUSÕES

Da análise dos resultados comparativos encontrados, a conclusão primeira que


se observa é que a consolidação dos elementos normativos federais foi, efetivamente,
muito variável de federação a federação, resultando na formação de modelos federativos
mais centralizados ou descentralizados. Contudo, os resultados também permitem
identificar nas federações analisadas a existência de um grupo de institutos e princípios
federativos comuns a certas matrizes federativas, fato que permite (e torna até mesmo
conveniente) classificá-las como integrante ou da “família” de tradição federativa anglo-
americana, ou da “família” de tradição federativa continental europeia (ou germânica),
conforme nomenclatura proposta por Michael Burgess48.

47
Apesar de voz minoritária, negando a qualidade de entidade federada ao Município (SILVA,, 2007, p.
640). Sobre esse tema, ver também Souza (2005, p. 110).
48
“It is my main purpose to sketch out the political, philosophical and theological contours of two quite
distinct traditions of federal thought that can be identified as the Continental European and the Anglo-American
strands of federalism and federation. This purpose is not meant to render invisible the existence of other federal political
traditions that have also evolved in Latin America, Africa, Asia and the Middle East. It is merely to focus upon the
two oldest known, mainstream, federal political traditions that have their philosophical and empirical bases in the
emergence of the modern state” (BURGESS, 2006, p. 162).

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Os resultados comparativos, bem como o próprio arranjo federativo das
competências constitucionalmente previstas nas federações da Austrália e Argentina
evidenciam a influência da matriz federativa anglo-americana, consubstanciada na
Constituição dos Estados Unidos de 1789, caracterizada pela atribuição de
responsabilidades exclusivas a cada ente federativo, que, via de regra, fica responsável
pela legislação e administração do assunto dentro de sua área. Já as federações da
Áustria, Suíça e Alemanha denotam a influência da matriz federativa europeia ou
germânica, caracterizada por formas de cooperação e codecisão legislativas e
administrativas, não havendo a coincidência entre a responsabilidade para legislar e
administrar no âmbito de muitas matérias.
Nesse contexto, apesar de constituir-se em aspecto amplamente ignorado pela
literatura política e constitucional brasileira, é da maior relevância observar que no atual
modelo federativo brasileiro convivem instituições tanto do federalismo executivo alemão
(Vollzugföderalismus), consubstanciadas nas formas de cooperação legislativa adotadas
pela Constituição, como do federalismo legislativo americano (legislative federalism),
evidenciadas, por exemplo, pela falta de coordenação e cooperação entre a União,
Estados-membros e Municípios na implementação das competências administrativas e
no “fraco” sistema bicameral brasileiro.
Assim, ante a percepção do déficit de instrumentos de cooperação administrativa
na federação brasileira, poder-se-ia cogitar, como futura linha de pesquisa, a investigação
de alternativas para uma maior institucionalização de relações de cooperação
administrativas entre os entes federativos, dentre as quais a nova Lei dos Consórcios
Públicos se insere.
Também poderia ser objeto de estudo o “fraco” sistema bicameral, que, assim
como o americano, caracteriza-se pela baixa influência dos governos estaduais na
formação das políticas nacionais. Nessa linha, estaria o Senado Federal mais voltado a
criar um dispositivo de atraso (Elster, 2009, p. 168-76) no processo legislativo federal49,
favorável à manutenção do status quo do que propriamente a representar as subunidades
no âmbito federal50.
Por fim, observa-se que a federação brasileira, não obstante a previsão de formas
de cooperação legislativa entre os entes federativos, comparativamente, aparece como
sendo o país mais centralizado em matéria legislativa e, ao lado da Áustria, como a
federação, em termos gerais, mais centralizada, colocando em evidência a tendência das

49
Que de acordo com a doutrina especializada de Tsebelis gera um aumentar o número de atores com
poderes de veto no processo legislativo e reduz o conjunto vencedor do status quo, resultando em um incremento
da estabilidade decisória (2009, p. 80-6 e 206-214).
50
Neiva, nesse sentido, procurou demonstrar que a principal variável explicativa para a força política das
câmaras altas é o sistema de governo e não a estrutura federativa (NEIVA, 2006, p. 286).

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últimas Constituições brasileiras em ampliar as atribuições do poder central ao sacrifício
da autonomia dos Estados. No extremo oposto, situam-se os Estado Unidos, Austrália e
Suíça, que se colocam como exemplos de experiências de descentralização legislativa.
É nessa linha que a melhor compreensão das características de nosso sistema
federativo, bem como da herança incorporada das históricas matrizes federativas, pode nos
auxiliar na identificação e explicação de problemas práticos existentes em nossa federação.

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Recebido: setembro 2010


Aprovado: abril 2010

Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.51, p.73-100, 2010.


100
A PRESCRIÇÃO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
(OU O JOGO DOS SETE ERROS)

THE STATUTE OF LIMITATIONS IN THE BRAZILIAN CIVIL CODE


(OR THE GAME OFSEVEN ERRORS)

Rodrigo Xavier Leonardo*

RESUMO: O Código Civil de 2002 apresentou inovações substanciais em tema de prescrição. No


presente artigo, propõe-se uma análise crítica das opções legislativas adotadas pelo direito brasileiro.
A partir de uma análise de direito comparado, que auxilia a compreender as influências recebidas de
outros sistemas em tema de prescrição, procura-se apontar insuficiências da codificação e possíveis
caminhos interpretativos para sua superação. A conclusão é por sete conjuntos argumentativos críticos
que demandam esforço hermenêutico, também apresentado ao leitor, para um tratamento adequado
da matéria.

PALAVRAS-CHAVE: Prescrição. Direito comparado. Insuficiências. Perspectivas hermenêuticas.

ABSTRACT: The Civil Code of 2002 made substantial innovations in the subject of the statute of
limitations. In this paper, we propose a critical analysis of legislative options adopted by Brazilian Law.
From a comparative law analysis, which helps to understand the influences received from other systems
on the theme of limitation, we try to point out possible weaknesses in the coding and interpretive paths
to overcoming it. The conclusion is for seven argumentative and critic sets that demand hermeneutic
effort, also presented to the reader to a proper treatment of the subject.

KEYWORDS: Comparative Law. Shortcomings. Hermeneutical perspectives.

* Professor adjunto de Direito Civil nos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal
do Paraná (UFPR). Mestre e Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Vice-Coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado.

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Revistada
da Faculdade de Direito
Faculdade de Direito- -UFPR,
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Curitiba, n.47,
n.51, p.29-64,2010.
p.101-120, 2008.
101
1. Introdução

A prescrição se insere dentre os assuntos que, não obstante todo o estudo e a


experiência acumulados por séculos, ainda se verificam espaços para dúvidas e incertezas.
Isso se faz ainda mais presente diante duma nova codificação que alterou
substancialmente as linhas mestras deste instituto, tal como se sucedeu no direito brasileiro
mais recente.
No presente escrito se propõe uma análise crítica da prescrição no Código Civil
de 2002, em busca da demonstração das vantagens e vicissitudes da legislação codificada,
tomando por fontes de reflexão os aportes da doutrina, da jurisprudência e, em especial,
do direito comparado1.

2. A prescrição: lineamentos gerais

O termo prescrição usualmente é utilizado tanto para traduzir uma espécie de fato
jurídico como para explicar uma particular eficácia jurídica. Essa indistinção entre os
significados reconhecidos ao mesmo significante pode ser considerada a primeira
dificuldade na abordagem do instituto.
Como uma particular espécie de fato jurídico2, a prescrição se forma a partir dum
determinado suporte fático composto por eventos e ações humanas. O suporte fático da
prescrição é complexo, envolvendo eventos (o transcurso do tempo) e ações humana (a
inação do titular de uma determinada situação jurídica ativa).
A tríade de elementos necessários à prescrição (transcurso do tempo, inação
e titularidade de situação jurídica ativa) se justifica por um olhar atento ao instituto
sob investigação.
Sob os mais diferentes enfoques, e em termos similares em direito comparado,
no conjunto plural de elementos para formação do fato jurídico prescrição é incontroverso
que o transcurso do tempo deve estar presente.

1
Em virtude dos limites inerentes a um artigo, decidiu-se abordar o direito comparado a partir do Direito
Civil dalguns países Europeus (Itália, França, Alemanha, Portugal Espanha) e da região da Catalúnia, ao lado dos
Códigos de outros países da América Latina (Argentina, Uruguai e Bolívia). A respeito do direito comparado como
disciplina que orienta uma reflexão crítica do direito positivo, cf. FRADERA, Véra Maria Jacob. Reflexões sobre a
contribuição do direito comparado para a elaboração do direito comunitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, em
especial p.158 e seguintes.
2
Adotamos a orientação teórica de que o fato jurídico é o resultado da incidência da norma jurídica sobre
determinado suporte fático. A incidência, por sua vez, se dá quando na realidade cotidiana ocorrem os fatos (suporte
fático concreto) em conformidade suficiente ao que é abstratamente descrito em norma jurídica (suporte fático
abstrato). Sobre o assunto, cf. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t.I. 3.ed. Rio de Janeiro: Borsoi,
1970; Mais recentemente, com grande avanço didático e inovações, o tema foi explorado de maneira singular por
BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico: plano da existência.15.ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
Ambos os autores servirão como marco teórico para a exposição realizada.

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102
O fluir do tempo, entremeado por um termo inicial e um termo final fixado pela
Lei, no entanto, não é suficiente para configurar a prescrição. Além da fluência do tempo,
mostra-se necessária a ocorrência de uma inação do titular de uma situação jurídica
ativa (direito/pretensão/ação)3.
Segundo fórmula em geral adotada nos diversos ordenamentos jurídicos, o lapso
prescricional pode ser impedido (evitando o termo inicial para o cômputo do tempo),
pode ser suspenso (detendo o progresso da contagem do tempo) e pode ser interrompido
(rompendo o cálculo do tempo para que o mesmo seja reiniciado).
A possibilidade do impedimento, suspensão ou interrupção do prazo prescricional
decorre, justamente, do segundo elemento que se deve verificar para a composição do
fato jurídico prescrição: a inércia do sujeito.
Nem toda inércia, nem toda a omissão do titular duma situação jurídica ativa será
considerada adequada para a configuração da prescrição. Em certos casos, o elemento
inércia do titular se dá em circunstâncias nas quais o direito positivo reconhece não ser
conveniente configurar a prescrição, razão pela qual seria injusto imputar os efeitos a
ela pertinentes. Justamente por isso, a norma jurídica possibilita o impedimento, a
suspensão e a interrupção do lapso prescricional4.
Tome-se como exemplo a disciplina encontrada no Código Civil Brasileiro, nos
artigos 197 a 202. Quando a legislação impede que o termo inicial da prescrição inicie,
entre os cônjuges, na constância do casamento (art. 197, I, CCB) ou quando suspende
o curso da prescrição contra um militar em serviço das Forças Armadas em tempos de
guerra (art. 198, III, CCB), a objetiva inação do titular de uma situação jurídica ativa é
desqualificada para o fim da composição da prescrição.
Em tais circunstâncias concretas não seria razoável exigir qualquer atuação por
parte daqueles sujeitos e, justamente por isso, a legislação cria válvulas para impedir,
suspender ou interromper o lapso temporal prescricional.
Dispositivos similares a esses podem ser encontrados em todas as legislações
estrangeiras aqui analisadas. Em termos razoavelmente gerais, pode-se dizer que a
composição da prescrição não se dá apenas e tão somente pela fluência do tempo.
Mostra-se necessária a ocorrência de uma inação do titular em circunstâncias que o
direito positivo considere adequado avaliar esta inércia como justificadora da composição
da prescrição e da subsequente eficácia prescricional5.

3
Deixemos, por ora, a discussão sobre o objeto da prescrição. O tema será abordado adiante.
4
Compreendendo que a avaliação subjetiva da conduta integra a noção de inércia que é própria e
indispensável à prescrição, CABRAL DE MONCADA, Luís. Lições de Direito Civil. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1995,
p.740; ANDRADE, Manuel A. D. Teoria geral da relação jurídica. t.II. Coimbra: Almedina, 1988, p.446; MOTA
PINTO, Carlos Alberto. Teoria geral do Direito Civil. 3.ed. Coimbra: Almedina, 1993, p.376).
5
Registre-se que, segundo a compreensão predominante, a referida adequação das circunstâncias diria
respeito, apenas e tão somente, à política legislativa. Isto porque, conforme adverte Messineo, “la legge non richiede
che l’inerzia del titolare sia volontaria, ossia effetto di negligenza; essa si riporta al fatto, schiettamente oggettivo, del
mancato esercizio”(MESSINEO, Francesco. Manuale di Diritto Civile e Commerciale. Milano: Giuffrè, 1957, p.178)

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p.101-120, 2008.
103
Se em relação aos elementos do transcurso do tempo e da inação do sujeito se verifica
uma compreensão praticamente pacífica a respeito do tema, o esclarecimento da situação
jurídica que se titulariza na prescrição é um campo absolutamente controverso.
Nele se comunica a abordagem da prescrição como particular fato jurídico e como
espécie de eficácia jurídica, tal como antes alertado. Isto porque a situação jurídica
titularizada pelo sujeito que se queda inerte por um determinado lapso temporal, a um
só tempo, servirá para definir o terceiro elemento para a composição do fato jurídico e
indicará o objeto a ser atingido pelo efeito da prescrição.
Num esforço de comparação entre os ordenamentos jurídicos antes assinalados,
as soluções encontradas para esta questão podem ser agrupadas em quatro modelos.
No modelo francês, a prescrição é tratada como um meio de se adquirir e ou de
se liberar em virtude de um lapso temporal6. Reconhece-se, portanto, a possibilidade
de uma eficácia constitutiva e de uma eficácia extintiva a partir do fato jurídico prescrição.
A despeito de o texto legislativo não ser claro quanto ao objeto que se extingue ou se
constitui, mediante uma interpretação sistemática, pode-se dizer que a prescrição medeia
o surgimento ou a liberação de um direito subjetivo.
O direito subjetivo, portanto, seria o terceiro elemento para a configuração do
fato jurídico e, ao mesmo tempo, seria o alvo da eficácia da prescrição (bifurcada em
aquisitiva e extintiva).
Similar ao tratamento encontrado no Código Civil Francês são as soluções
verificadas no Código Civil Espanhol7, no Código Civil Argentino8 e no Código Civil
Uruguaio9, ainda que com algumas ressalvas10.
Para além das divergências pontuais – e sem pretender minorar a importância
de cada uma delas ­–, verifica-se como traço comum a circunstância de o fato jurídico

6
“Art. 2.219. La prescription est un moyen d’acquérir ou de se libérer par un certain laps de temps, et
sous les conditions déterminées para la loi”
7
“Art. 1.930. Por la prescripción se adquieren, de la manera y con las condiciones determinadas en la
ley, el dominio y demás derecho reales. También se extinguen del proprio modo por la prescripción los derechos
y las acciones, de cualquier clase que sean”
8
“Art. 3.947. Los derechos reales y personales se adquieren y se pierden por la prescripción. La
prescripción es un medio de adquirir un derecho, o de libertarse de una obligación por el transcurso del tempo”.
9
“Art. 1188. La prescripción es un modo de adquirir o de extinguir los derechos ajenos. En el primer
caso se adquiere el derecho por la posesión continuada por el tiempo y con los requisitos que la ley señala. En el
segundo, se pierde la acción por el no uso de ella en el tiempo señalado por la ley. Para esta clase de prescripción,
la ley no exige título ni buena fe”.
10
Advirta-se, no entanto, a ressalva de que, no Código Civil Espanhol, expressamente, reserva-se a
prescrição aquisitiva para os direitos reais e a prescrição extintiva para todos os demais direitos e ações; no Código
Civil Argentino, verifica-se a particularidade de que, expressamente, tanto a prescrição extintiva como a aquisitiva
atingiriam os direitos reais e pessoais e, por fim, no Código Civil Uruguaio, restringe-se a prescrição aquisitiva aos
direitos decorrentes da posse ou a perda de “ações” pela inércia de seu titular.

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104
prescrição albergar tanto uma eficácia aquisitiva como uma eficácia extintiva. Não se
percebe muita clareza sobre o objeto da prescrição no texto da legislação comparada
analisada, mencionando-se por vezes a extinção das figuras direito e ação.
O Código Civil Italiano nos conduz a um segundo modelo. Nele, a prescrição teria
eficácia extintiva, capaz de atingir qualquer direito subjetivo, com exceção para os direitos
indisponíveis e para outros direitos indicados pela Lei11. O mesmo enunciado legal pode
ser encontrado no Código Civil Boliviano12
O terceiro modelo a ser destacado provém do Código Civil Alemão. No BGB, a
prescrição é definida no parágrafo 194 como a extinção da pretensão (Anspruch),
conceituada como o “direito de se exigir de outrem uma ação ou omissão”13. A influência
do BGB pode ser verificada no recente Código Civil da Catalúnia14.
Por fim, pode-se encontrar noutras legislações algumas opções não alinhadas aos
modelos anteriores. Por razões didáticas, vamos considerá-las como um quarto modelo.
O Código Civil português é paradigmático neste sentido, ao evitar definir a prescrição,
limitando-se a discipliná-la nos artigos 300 a 327. Ainda que o artigo 306, 2 deste
Código mencione de passagem “a prescrição de direitos”15, não se pode afirmar que o
legislador daquele país assimilou a orientação teórica que defende a extinção de direitos
subjetivos pela prescrição16.

11
“Art. 2934. Ogni diritto si estingue per prescrizione, quando il titolare non lo esercita per il tempo
determinato dalla legge. Non sono soggetti alla prescrizione i diritti indisponibili e gli altri diritti indicati dalla legge”.
12
“Art. 1492. I. Los derechos se extinguen por la prescripción cuando su titular no los ejerce durante el tiempo
que la ley establece. II. Se exceptúan los derechos indisponibiles y los que la ley señala en casos particulares”.
13
Ҥ 194. Das Recht, von einem Anderen ein Thun oder ein Unterlassen zu verlangen (Anspruch),
unterliegt der Verjährung”. No volume que compõe a tradução espanhola do Tratado de Direito Civil de Enneccerus-
Kipp-Wolf pode-se ler a seguinte tradução: “§ 194. El derecho de exigir de otro una acción o una omisión (pretensión)
se extingue por prescripción” (INFANTE, Carlos Melon. Código Civil Aleman. Barcelona: Bosch, 1994, p.38)
14
“Art. 121-1. La prescripció extingeix les pretensions relatives a drets disponibles, tant si s’exerceixen
en forma d’acció com si s’exerceixen en forma d’excepció. S’entén com a pretensió el dret a reclamar d’altri una
acció o una omissió”.
15
“(...) 2 – A prescrição de direitos sujeitos a condição suspensiva ou termo inicial só começa depois de
a condição se verificar ou o termo se vencer”
16
Não obstante o texto do Código Civil Português não se posicionar no sentido de que a prescrição atingiria
o próprio direito subjetivo, esta concepção é forte na doutrina. Neste sentido, cf. CABRAL DE MONCADA, Luís.
Lições de Direito Civil. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1995, p.729; MOTA PINTO, Carlos Alberto. Teoria geral do
Direito Civil. 3.ed. Coimbra: Almedina, 1993, p.373; PRATA, Ana. Dicionário jurídico. t.I. 5.ed. Coimbra:
Almedina, 2008, p.1091; ANDRADE, Manuel A. D. Teoria geral da relação jurídica. t.II. Coimbra: Almedina,
1988, p.446 (com a observação de que, para este autor, uma vez extinto o direito subjetivo em decorrência da
prescrição, surgiria uma obrigação natural). Em sentido contrário, Pedro Paes de Vasconcelos defende que o efeito
jurídico da prescrição seria um “enfraquecimento” do direito subjetivo consistente em que a pessoa vinculada pode
recusar o cumprimento ou a conduta a que esteja adstrita (VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito
civil. 3.ed. Coimbra: Almedina, 2005, p.756).

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105
Diante destes modelos cabe questionar qual o que melhor auxilia a compreensão
do Código Civil Brasileiro de 2002.

3. A prescrição no Direito Civil Brasileiro

O Código Civil de 2002 procura alinhar o Direito Civil brasileiro, em tema de


prescrição, ao modelo alemão. Isso se percebe claramente pelo texto do artigo 189, que
abre o capítulo a respeito do assunto.
Pode-se ler nesse dispositivo que “violado o direito, nasce para o titular a pretensão,
a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”.
Não bastasse a menção textual de que a eficácia da prescrição corresponderia à
extinção de uma pretensão (e não de um direito subjetivo), a aproximação teórica com
o Código Civil Alemão é também confirmada por José Carlos Moreira Alves, jurista
responsável pela redação da Parte Geral no anteprojeto do Código Civil de 2002
(MOREIRA ALVES, 2003, p. 157).
O Código Civil Brasileiro, no entanto, está muito longe de ser uma mera reprodução
do modelo alemão, a começar pelo fato de que em seu texto não se encontra uma definição
do que vem a ser a pretensão que seria supostamente extinta pela prescrição.
Enquanto o BGB definiu expressamente a pretensão como o “direito de exigir
de outrem uma ação ou omissão”, o Código Civil Brasileiro limita-se a dispor que a
pretensão nasceria da violação de um direito, sem estipular o que se deve compreender
pelo termo pretensão.
Ademais, para além da semelhança na definição legislativa, especialmente no que
diz respeito ao objeto de aplicação da prescrição, se verificam grandes diferenças entre os
códigos nos temas do impedimento, suspensão e interrupção do prazo prescricional.
Tomando em conta o desenvolvimento da matéria entre os autores nacionais,
pode-se interpretar o termo pretensão como o poder de exigir uma prestação de outrem,
num sentido similar à definição encontrada no Código Civil Alemão.
A pretensão seria algo a mais do que o direito subjetivo, que é categoria eficacial
de cunho estático. Quem tem em mãos um direito subjetivo é titular de uma situação
jurídica ativa que é estática por estar destituída, ainda que em princípio, de um poder
de exigibilidade, de uma possibilidade de atuação sobre a esfera jurídica alheia para se
exigir um cumprimento.
Justamente para diferenciar o momento estático do momento tensionado, parece
adequado adotar, para a segunda situação, quando já há pré-tensão, o termo pretensão.
O credor de uma determinada quantia entregue em mútuo com termo final para
devolução daqui a dois meses já é credor, hoje. É titular de um direito subjetivo. O crédito
integra o seu patrimônio. Não obstante tudo isso, este mesmo credor nada pode exigir
do devedor antes do advento do termo final para a devolução da importância mutuada.

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106
Quem é titular de uma pretensão tem em mãos, repita-se, algo a mais. Titulariza
uma situação jurídica dinâmica: detém o poder de exigir uma prestação, positiva ou
negativa, de alguém. Em nosso exemplo anterior, com o advento do termo ad quem para
a devolução da importância emprestada, o credor passaria a deter não apenas o direito
subjetivo, mas também a pretensão.
Nem todos os direitos subjetivos ensejariam pretensões e, na medida em que esta
figura seria o objeto da prescrição, nem todos os direitos subjetivos estariam sujeitos à
prescrição. A pretensão só surgiria nas situações em que o titular da posição subjetiva
ativa na relação jurídica fosse munido do poder de exigir uma prestação daquele que se
encontra na posição subjetiva passiva correspectiva.
A diferenciação entre o direito subjetivo e a pretensão, no entanto, não é suficiente
para a interpretação da prescrição no Código Civil Brasileiro. Mostra-se necessário o
prévio conhecimento de outras categorias eficaciais que hipoteticamente podem compor
o objeto da relação jurídica.
A precisão teórica na diferenciação das categorias eficaciais foi alcançada em
direito nacional a partir da obra de Pontes de Miranda, podendo ser representada por
quatro binômios de eficácias de conteúdo contraposto:

ao direito subjetivo ↔ corresponde o dever;

à pretensão ↔ corresponde a obrigação;

à ação em sentido material ↔ corresponde a situação de acionado;

à exceção de direito material ↔ corresponde a situação de exceptuado;

ao poder formativo (constitutivo, modificativo ou extintivo) ↔ corresponde a


situação de sujeição.

A original contribuição de Pontes de Miranda em esclarecer essas diversas


categorias eficaciais, seguido do singular trabalho interpretativo e explicativo dalguns
juristas nacionais17, é um pressuposto essencial para a compreensão da prescrição.

17
A respeito do assunto, cf. BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico: plano da existência.
15.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, em especial p.182; TOMASETTI, Alcides (et alli). Comentários à Lei de locações
de imóveis urbanos. São Paulo: Saraiva, 1991, p.5. Em data mais recente, o assunto é enfrentado nestes termos
por NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria da ação de direito material. Salvador: Juspodivm, 2008, p.112
e EHRHARDT JR, Marcos. Direito Civil: LICC e Parte Geral. v.I. Salvador: JusPodivm, 2009, p.463-465.
Interessante leitura a respeito do tema, com enfoque no direito anglo-americano, pode ser encontrada em HOHFELD,
Wesley Newcomb. Fundamental legal conceptions as applied in judicial reasoning. New Haven: Yale University
Press, 1920, p.36. No Brasil, a partir da construção de HOHFELD, destaca-se o trabalho de FERREIRA, Daniel
Brantes. Teoria dos direitos subjetivos. Rio de Janeiro: GZ, 2009.

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Curitiba, n.47,
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p.101-120, 2008.
107
Apenas quando se compreende a existência destas categorias eficaciais e a
diferença entre cada uma delas, torna-se possível compreender o que a prescrição atinge
e o que a prescrição não atinge em direito brasileiro.
Ao escolher como objeto da eficácia extintiva a pretensão18, ou seja, o poder de
exigir uma prestação, se torna claro que a prescrição é um fenômeno próprio ao campo
do direito material. As eventuais projeções ao direito de ação (em sentido processual)
só se justificam de modo reflexo, tal como se dá com o corpo em relação ao espelho19.
Porque a pretensão e a ação em sentido material são encobertas pela prescrição,
o seu titular não pode se servir dos remédios processuais, da ação em sentido processual.
A consequência processual de não poder se servir da “ação”, no entanto, não tem o
condão de explicar o instituto. Trata-se de um resultado decorrente de uma prévia eficácia
que se sucedeu no direito material.
A diferenciação entre as categorias eficaciais e a fixação do objeto da prescrição
sobre a pretensão tornou possível superar a confusão, reinante em direito nacional, de
que a prescrição extinguiria a ação, normalmente compreendida apenas no sentido de
remédio processual, de ação processual.
Em conclusão parcial, pode-se sustentar que o Código Civil Brasileiro busca se
alinhar ao modelo teórico alemão. Esta aproximação, no entanto, é parcial e acaba por
ensejar algumas inconsistências adiante expostas.

18
Pontes de Miranda e Marcos Bernardes de Mello mencionam que a prescrição atingiria a pretensão e
a ação em sentido material. Conforme explica Marcos Bernardes de Mello, a coextensão entre pretensão e ação em
sentido material não é necessária, ainda que em regra ela ocorra. Justamente por isso, segundo este autor, em
situações excepcionais, seria possível à prescrição atingir a ação em sentido material em situações em que não se
verifique uma prévia pretensão, uma vez que a coextensão entre a pretensão e a ação seria um princípio não essencial
(Sobre o assunto, cf. BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. 3.ed. São Paulo:
Saraiva, 2007, p.183).
19
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que “o prazo estatuído em lei como termo para a extinção do
direito, seja ele considerado de decadência ou de prescrição, é de direito material (dos que se integram no ramo
do direito em que nasce a pretensão); de direito processual é a norma sobre a forma de ação” (RTJ 61/93). Noutra
oportunidade, a mesma Corte decidiu que “a prescrição é causa extintiva da pretensão e não do direito abstrato de
ação. Por isso é instituto de direito material, a ela se aplicando a lei do tempo em que teria ocorrido (RTJ 165/1020).
Ambos os acórdãos foram reproduzidos a partir de Yussef Said Cahali que, por sua vez, explica: “O remédio jurídico
origina-se das leis processuais, representando o caminho a ser percorrido por aquele que vai a juízo, dizendo-se
com direito subjetivo, pretensão e ação, ou somente com ação; realizado o direito objetivo sem relutância, não terá
sido necessário que o titular do direito subjetivo, da pretensão e ação, se socorresse do remédio jurídico processual
(...) Em outros termos, o direito subjetivo, a pretensão e a ação preexistem ao exercício, ao uso dos remédios
processuais. Daí resulta que a prescrição e a decadência integram o direito material (...)” (CAHALI, Yussef Said.
Prescrição e decadência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.16-17). Em certa medida, o texto doutrinário
mais influente em direito nacional a respeito do tema não esclarece suficientemente o caráter material da prescrição,
ao tratar como critério de distinção entre a prescrição e a decadência as ações, aparentemente em sentido processual,
segundo a classificação trinária (açõs constitutivas, declaratórias e condenatórias) (AMORIM FILHO, Agnelo. Critério
científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais.
a.86, v.744, out.1997, p.725-750).

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108
4. Análise crítica da disciplina da prescrição no Código Civil
Brasileiro de 2002

Tal como antes afirmado, desconhece-se uma codificação isenta de críticas


quanto ao tratamento do tema da prescrição. Com o Código Civil Brasileiro não poderia
ser diferente.
As reservas ao trabalho do legislador, no entanto, devem ser justificadas, seja
pela coerência científica, seja pela repercussão social de suas opções.
O Código Civil brasileiro acertou ao se aproximar do modelo alemão, estipulando
que o objeto da prescrição seria a pretensão. Não parece atender aos pressupostos mínimos
de rigorosidade científica, nem o modelo francês nem, tampouco, o modelo italiano.
O Código Civil Francês, ao unir sob o manto do instituto da prescrição também
a aquisição mediante usucapião incorreu em erro, cujas origens remontam ao trabalho
dos glosadores do século XII sobre as fontes romanas20.

20
Estudos de Direito Romano apontam a inexistência de uma concepção unificada de prescrição ou, ainda,
de um prazo para o exercício das ações. Ao contrário, as ações do ius civile seriam perpétuas (actiones perpetuae).
Segundo Mario Amelotti, a busca por segurança e certeza nas relações jurídicas, por muito tempo, não se apresentou
à cultura romana como um problema, tornando desnecessário uma orientação unificada sobre o assunto até o período
pós-classico. No período das legis actiones, a orientação era pela perpetuidade. No período formulário, já se
verificariam algumas figuras concernentes à eficácia extintiva do tempo, sem que seja possível, no entanto, unificá-
las em um conceito (AMELOTI, Mario. La prescrizione delle azioni in Diritto Romano. Milano: Giuffrè, 1958,
p.1-23). Apenas no período pós-clássico, com Teodósio II, por volta do ano 424 D.C., cria-se um prazo geral para
o exercício das ações e, com Justiniano, o meio de defesa do possuidor de opor uma exceção pela prescrição da ação
reivindicatória (a chamada longi temporis praescriptio) foi considerada uma espécie de usucapião (Cf. VOCI, Pasquale.
Istituzioni di Diritto Romano. 3.ed. Milano: Giuffrè, 1954, p.197 e p. 232; JÖRS, Paul; KUNKEL; Wolfgang.
Derecho privado romano. Madrid: Labor, 1937, p. 191; KASER, Max. Direito privado romano. Lisboa: Calouste
Gulbekian, 1999, p.59 e p.155). Daí a se considerar a prescrição como gênero que albergaria uma prescrição
aquisitiva e outra extintiva, há muita diferença. Savigny explica a tentativa de se ampliar a noção de prescrição para
a perda e a aquisição de direito, de modo a albergar também a usucapião: “Le principe de la phraseologie vicieuse
que je combats se trouve déjà chez les glossateurs du douzième siècle, d’où il a passé dans le droit canon; mais là
on se borne à représenter l’usucapion et la prescription des actions comme deux espéces d’un même genre”
(SAVIGNY. Traité de Droit Romain. 2.ed. t.4. trad. M. Ch. Guenoux. Paris: Librairie de Firmin Didot Frères, 1856,
p. 317 e 319). Nesse mesmo sentido, Massimo Corsale apresenta uma glosa de Cardinalis que demonstraria o
caminho para a união de institutos tão diferentes: “venendo ora ai requisiti necessari per l’utile decorso del termine
di prescrizione, occore rilevare come, specialmente dai canonisti, fosse richiesto nel Medievo il ‘possesso’. É
interessante a questo proposito ricordare una glossa del Cardinalis al c.45, C.XV, q.1 (7): ‘Quod enim quis possidet,
praescritione acquirit vel retinet, actionem enim (autem?) alterius, quam nullus possidet, praescribit nemo, sed contra
actionem libertatem, quam sine interpellatione quis possidet, ipsam praescribit. Unde dicitur spatio XXX vel XL annorum
omnis actio tollitur, etc...’. Le affermazioni contenute in questo brano si basano, su una concezione estremamente
ampia del quasi-possesso utilizzata per assimilare la prescrizione estintiva alla acquisitiva, mediante la fusione in
un unico istituto con gli stessi fondamenti” (CORSALE, Massimo. Verb. Prescrizione estintiva. Storia del diritto.
In: Novissimo Digesto Italiano. t. XIII, p.641). No Brasil, o percurso e a crítica da união entre a usucapião e a
prescrição são apresentados por PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. VI. Rio de Janeiro: Borsoi,
1955, p.98 e seguintes).

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109
Para além do equívoco na interpretação do Direito Romano – usualmente adotado
como discurso competente para justificar soluções modernas ao direito privado21 –, a opção
de unir a usucapião à prescrição mostra insuficiências no plano teórico e prático.
Os elementos que integram o suporte fático da usucapião são completamente
diferentes dos elementos que compõem o suporte fático da prescrição, sobretudo ante
a crescente pluralidade de diferentes meios para se adquirir a propriedade mediante
usucapião22; a eficácia do que se compreende por prescrição e usucapião é diametralmente
oposta; a função prático-social da prescrição é completamente diversa da função prático-
social da usucapião. As causas que impedem, suspendem e interrompem a prescrição
são, em geral, imprestáveis para a usucapião, até mesmo pela diferente função prático-
social de cada uma delas; a prescrição tem aplicação em todas as searas do direito civil
e a usucapião é restrita ao direito das coisas.
Diante de tantas diferenças, qual o porquê de se unir estas duas figuras sob o
manto do mesmo instituto, senão o apego a uma leitura equivocada das fontes romanas?
O transcurso do tempo, verificável tanto na prescrição como na usucapião, não parece
ser razão suficiente para uní-las em um mesmo instituto23.
O Código Civil Brasileiro também mostrou acerto ao se afastar do modelo italiano.
A ideia de que a prescrição extingue um direito não se mostra coerente com a orientação
normativa, já assentada em direito nacional, de que o pagamento de uma dívida prescrita
pelo devedor não configuraria um pagamento indevido ou uma situação de enriquecimento
sem causa (art. 882, CCB).
A dívida prescrita é tão existente como o crédito que lhe é correspectivo, ainda
que seja mutilada de qualquer pretensão. Essa precisão conceitual se mostra importante
ao se analisar a prescrição sob o aspecto funcional: ao versar sobre a prescrição nunca
se teve em mente, pura e simplesmente, criar um impedimento para o credor receber
aquilo que lhe é devido. Ainda que porventura isto venha a ocorrer, esta não é a função
da prescrição24.
Outra evolução digna de nota foi a tentativa de separação dos prazos prescricionais
exclusivamente nos artigos 205 e 206 do Código Civil, indicando-se que todos os demais

21
A respeito do assunto, dentre outras obras do mesmo autor, cf. FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução
teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2010, p.23.
22
Uma leitura da Constituição Federal Brasileira (arts.183 e 191), do Código Civil (arts.1238, 1239,
1240, 1242e 1260) e do Estatuto da Cidade, Lei n.º 10.257/2001 (art. 9) esclarece as várias espécies de usucapião
que atualmente são verificáveis em direito brasileiro.
23
Sobre o assunto, cf. NEQUETE, Lenine. Prescrição aquisitiva e prescrição extintiva: semelhanças e
diferenças. Ajuris. v.32, n.100, p.9-16.
24
A função da prescrição diz respeito à “segurança e à paz públicas, para limite temporal à eficácia das
pretensões e das ações. A perda ou destruição das provas exporia os que desde muito se sentem seguros, em paz,
e confiantes no mundo jurídico, a verem levantarem-se – contra o seu direito, ou contra o que têm por seu direito –
pretensões ou ações ignoradas ou tidas por ilevantáveis. O fundamento da prescrição é proteger o que não é devedor
e pode não mais ter prova da inexistência da dívida; e não proteger o que era devedor e confiou na inexistência da
dívida, tal como juridicamente ela aparecia” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. VI. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1955, p.100).

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110
prazos ditos “extintivos”, dispersos noutros setores da parte geral e da parte especial do
código, seriam de natureza decadencial. O esforço do legislador rende frutos de
operacionalidade, superando o Código revogado que foi marcado por uma extrema
dificuldade de distinção entre os prazos prescricionais e decadenciais25.
A legislação brasileira, no entanto, no afã de conceituar a prescrição, abriu as
portas de outras incoerências e insuficiências, teóricas e práticas. As principais críticas
podem ser organizadas em sete pontos.
Em primeiro lugar, ao atribuir à prescrição uma eficácia extintiva da pretensão
(peremptoriamente extintiva), o legislador incorreu em grave erro lógico26.
Tradicionalmente se concebe a possibilidade, em favor daquele que é beneficiado
pela prescrição, de renunciar ao efeito da prescrição. O artigo 191 do Código Civil
Brasileiro, nesse sentido, é expresso ao estabelecer que “a renúncia da prescrição pode
ser expressa ou tácita, e só valerá (sic.), sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois
que a prescrição se consumar (...)”.
Se a prescrição extinguisse realmente a pretensão, fulminando-a em moldes
peremptórios, a renúncia seria um ato jurídico capaz de conferir uma ressurreição daquilo
que já foi extinto. Isso parece incoerente e sem sentido.
Já há muito tempo alguns juristas brasileiros advertiram que, conforme os contornos
que a matéria tomou em direito nacional, a prescrição encobriria, paralisaria a pretensão,
sem destruí-la (TOMASETTI (et alli), 1991, p.5; BERNARDES DE MELLO, 2008). Desse
modo, aquele que se beneficiasse da eficácia limitadora prescricional poderia renunciar
a tal eficácia para, deste modo, descobrir a pretensão.
Da equívoca afirmação de uma peremptória extinção da pretensão27, decorre um
embaraço à compreensão de que a prescrição seria não uma causa extintiva, peremptória
em sua aplicação, mas uma exceção substancial a ser oposta pelo interessado.

25
Há limitações, no entanto, ante as situações que ensejam, por exemplo, alternativamente, pretensões e
direitos potestativos (poderes formativos), como nos vícios redibitórios que conferem ao prejudicado pretensão ao
abatimento do preço, sujeita ao prazo prescricional, e poder de rescisão do contrato, sujeito ao prazo de natureza
decadencial. Neste sentido, cf. NERY JR, Nelson; NERY; Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. São
Paulo: RT, 2008, p. 527. A respeito desta orientação no Código Civil brasileiro, cf. REALE, Miguel. História do
novo código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.61.
26
Em sentido contrário, defendendo a extinção ipso iure mediante prescrição, ainda que sob a dependência
de alegação da parte interessada, cf. CABRAL DE MONCADA, Luís. Lições de Direito Civil. 4.ed. Coimbra:
Almedina, 1995, p.734.
27
Cite-se, dentre outros, a crítica de Enneccerus e Nipperdey: “(...) con el fin de salvaguardar la seguridad
general del derecho y en orden a proteger contra las pretensiones ilegítimas, el ordenamiento jurídico tiene que
aceptar también que él deudor poco escrupuloso, que sabe exactamente que él debe todavía, esté favorecido por
las reglas de la prescripción. Pero sería poco decoroso el protegerle ipso iure. El deudor podrá invocar la prescripción,
pero tendrá que echar sobre sí la legítima censura de conducirse con poco miramiento” (ENNECCERUS-
NIPPERDEY. Parte General. t.I. v.2. In: Enneccerus-Kipp-Wolff. Tratado de Derecho Civil. Barcelona: Bosch,
1981, p.1017-1018).

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111
É interessante notar que a expressão praescriptio surge desvinculada de qualquer
ideia de aquisição ou perda de direitos, tomando contornos de exceção28, ou seja, de
oposição a determinado efeito pretendido por outrem.
Mais que conceitual e teórica, esta orientação foi e continua sendo eminentemente
prática, não se verificando qualquer razão para alterá-la.
A prescrição seria uma exceção porque sem a efetiva oposição do devedor à
pretensão nada ocorreria automaticamente ao direito, à pretensão ou à ação do credor.
O poder de se opor, mediante alegação da prescrição, necessariamente haveria de ser
exercido pelo devedor para que fosse possível promover uma alteração no plano do
direito material29.
Com isso, fica mais fácil compreender a possibilidade de renúncia à prescrição
e, até mesmo, a função do instituto que, como antes explicado, nunca se destinou a
impedir que alguém recebesse alguma prestação que é devida.
Se a prescrição extingue a pretensão, tal como está escrito no art. 189 do Código
Civil Brasileiro, sob a perspectiva do direito positivo, a configuração do instituto como
uma das espécies de exceções substanciais restaria prejudicada.
Talvez justamente em razão desse grave equívoco, o legislador brasileiro sentiu-
se à vontade para cometer um subsequente lapso muito pior: a determinação de que a
prescrição pode ser conhecida de ofício, pelo magistrado, tal como prevê a Lei n.º
11.280/2006, especialmente quanto ao § 5º do art. 219 do CPC.
Não se sabe se o raciocínio foi o de que, uma vez definitivamente extinta a pretensão
pelo advento da prescrição, não haveria razão para não conferir ao Juiz o poder de
reconhecer este fato de uma vez, agregando a aparente vantagem de desobstruir as pautas
do Poder Judiciário de maneira célere.

28
“Praescriptio est exceptio ex tempore substantiam capiens quae actioni personali vel in rem opponitur”
(BALBI, G.F. Tractatus praescriptionum. Veneza, 1574, n.2, cart. 5 Apud CORSALE, Massimo. Verb. Prescrizione
estintiva. Storia del diritto. In: Novissimo Digesto Italiano. t. XIII, p.641). Savigny, por sua sua vez, explica que
“dans les sources du droit, le mot praescriptio ne signifie jamais acquisition ou perte, toujours il a le sens d’exceptio,
exception” (SAVIGNY. Traité de Droit Romain. 2.ed. t.4. trad. M. Ch. Guenoux. Paris: Librairie de Firmin Didot
Frères, 1856, p. 317). Trata-se, portanto, de uma interessante situação em que o abandono da releitura moderna
das fontes do direito romano representa um retrocesso. Conforme atentou Windscheid: “Secondo il diritto romano
invero non s’estinguono in generale i diritti, ma bensì in generale le ragioni (azioni) per la continuazione del loro
non uso (...) La prescrizione toglie di mezzo la ragione. Non che la estingua, la ragione continua a sussistere; ma
la toglie di mezzo col produrre una eccezione, che la esclude” (WINDSCHEID, Bernardo. Diritto delle pandette.
trad. Fadda & Bensa. Torino: UTP, 1902, p.425 e 444, respectivamente). Sobre a progressiva construção da
prescrição como exceção, cf. AMELOTI, La prescrizione delle azioni in Diritto Romano, p.13).
29
Marcos Bernardes de Mello elucida:“A prescrição (...) não decorre da obrigação prescrita, mas é produto
de um ato-fato (=inação do credor + decurso de tempo), que a gera em favor do devedor, oponível (=contra) ao
credor. Trata-se, como se pode concluir, de um poder jurídico, que, por isso, se situa no plano das posições ativas
e não passivas”. Sobre a noção de exceção e, especificamente, da prescrição como exceção, cf. PONTES DE
MIRANDA. Tratado de direito privado, t. VI. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p.100. A respeito das exceções em
direito material, cf. BOLAFFI, Renzo. Le eccezioni nel diritto sostanziale. Milano: Società Editrice Libraria, 1936,
especialmente nas páginas 100 e seguintes.

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112
As consequências dessa alteração legislativa, no entanto, são desastrosas. Ao se
atacar algumas das pilastras mais importantes que sustentam teoricamente a prescrição,
criou-se um embaraço para a aplicação cotidiana do instituto e se afastou, absolutamente
sem razão, o direito brasileiro das soluções encontradas em direito comparado sobre o
mesmo tema.
Não se trata de um apego aos conceitos, frise-se bem. Ao conhecer de ofício uma
prescrição, o Poder Judiciário pode induzir um comportamento de não pagamento pelo
devedor que, uma vez acionado, poderia cumprir com a sua obrigação.
Ao conhecer de ofício uma prescrição, o juízo pode desconhecer circunstâncias
de interrupção, de suspensão ou de impedimento do prazo prescricional, ou até mesmo
de renúncia do credor à prescrição, forçando o autor a se servir de recursos processuais
para que sua demanda possa ter prosseguimento.
Não bastasse tudo isso, o conhecimento de ofício da prescrição retira do credor
o poder, fundado em legítimo exercício da autonomia privada, de renunciá-la.
Essa confusão somente pode ser superada com um grande esforço hermenêutico
que já se apresenta na doutrina e jurisprudência, inclusive com entendimento do Superior
Tribunal de Justiça que sugere a limitação da aplicação do dispositivo apenas após a
oitiva da outra parte30.
Em segundo lugar, o Código Civil Brasileiro indica que a prescrição extinguiria
a pretensão sem explicar o que seria a tal pretensão a ser fulminada31.

30
Conforme anota Flavio Tartuce “(...) a autonomia privada manifestada pelo direito de se pagar uma
dívida prescrita em juízo e renunciando à prescrição, estará seriamente ferida. Sendo a autonomia privada um valor
associado à liberdade constitucional, pode-se até afirmar que a inovação é inconstitucional, caso este direito de
renúncia à prescrição não seja assegurado” (TARTUCE, Flavio. Direito Civil: Lei de introdução e parte geral. 6.ed.
São Paulo: Método, 2010, p.439). O mesmo autor menciona, por um lado, a súmula n. 409 do STJ que reforçaria
o poder de conhecimento de ofício da prescrição na execução fiscal e, por outro lado, interessante precedente do
Superior Tribunal de Justiça que sintetiza algumas das dificuldades acima apontadas para aplicação da regra
processual em comento: “(...) Apesar da clareza da legislação processual, não julgamos adequado o indeferimento
oficioso da inicial. De fato, constata-se uma perplexidade. O magistrado possui uma ‘bola de cristal’ para antever
a inexistência de causas impeditivas, suspensivas ou interruptivas ao curso da prescrição?” (...) A prévia oitiva da
Fazenda Pública é requisito para a decretação a prescrição (...) Deve-se interpretar sistematicamente a norma
processual que autoriza o juiz decretar ex officio a prescrição e a existência de causas interruptivas e suspensivas
do prazo que não podem ser identificadas pelo magistrado apenas à luz dos elementos constantes do processo”
(STJ, Resp n. 1.005.209/RJ, Rel. Min. Castro Meira, 2ª turma, j. 08.04.2008, DJ 22.04.2008). Sobre o assunto,
conferir os ensaios publicados em revistas especializadas. CIANCI, Mirna. A prescrição na Lei 11.280/2006.
Revista de Processo n. 148, p.31 e seguintes, 2007. Sobre a aplicação dessa regra no direito do trabalho, cf.
GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa Garcia. Prescrição de ofício: da crítica ao direito legislado à interpretação da
norma jurídica em vigor. Revista de Processo, n.145, p.163 e seguintes, 2007; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto
Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo – ou de como o art. 3.º da Lei n.º 11.280/2006
subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito
Privado, n.25, p.280, 2006.
31
A respeito da dificuldade em se definir a pretensão em direito brasileiro, cf. BARBOSA MOREIRA,
José Carlos. Notas sobre pretensão e prescrição no sistema do novo Código Civil brasileiro. Revista Trimestral de
Direito Civil. v.11, jul/set, 2002, p.67. Referida crítica foi também realizada por MALACHINI, Edson Ribas.
Prescrição e decadência. V Ciclo Nacional de Estudos sobre Pontes de Miranda, 2007 (anotações do autor).

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113
Uma vez escolhida a árdua tarefa de conceituar a prescrição, o legislador parou
na metade do caminho (ao contrário do próprio BGB e do recente Código Civil da
Catalúnia)32. Talvez não devesse se perder em definições e conceitos. A outra metade
do caminho que se deixou para trás, no entanto, lamentavelmente, pode conduzir a
grandes confusões3334.
Alguns autores já defendem que a pretensão seria equivalente à noção de ação
em sentido material35, o que não se pode aceitar ante a profunda diferença verificável

32
Ver notas de rodapé n. 9 e 10.
33
A expressão “pretensão” não é familiar à maior parte da doutrina brasileira, nem o era à cultura jurídica
alemã, sendo potencial criadora de muitas confusões teóricas. A experiência alemã pode antever dificuldades do
direito brasileiro de tratar a prescrição da pretensão, tal como previsto no art. 189 do Código Civil, ainda que, neste
particular, cremos que o direito positivo nacional se tornou mais técnico e preciso. A estipulação do termo pretensão
como objeto da prescrição, no direito positivo alemão, foi verdadeiramente tormentosa nos debates que antecederam
a edição do BGB. Conforme explicam Fadda e Bensa, a expressão Anspruchsverjährung (prescrição da pretensão),
não seria usual à cultura jurídica alemã da época, sendo mais comum os termos Retchsverjährung (prescrição do
direito), Shuldverjährung (prescrição do débito) e, mais que qualquer outra, Klagenverjährung (prescrição da ação).
Para prevalecer a Anspruchsverjährung foi preciso que a tese de Windscheid prevalecesse sobre as três outras. Nas
palavras desses autores: “(...) si soggiungeva, contro la prima di queste tre espressioni, che essa è inesatta in quanto
il diritto reale non è tocco dalla prescrizione della ragione che ne deriva; contro la seconda, che Shuld significa
normalmente l’obbligo derivante da un vincolo personale e ha il corrispondente in Forderung (credito); contro la
terza, che dà campo all’equivoco di una prescrizione rivolto contro la persecuzione giudiziale, mentre l’oggetto della
prescrizione è la facoltà che sta a base dell’azione (...) Il dibattito si ripetè in seno alla seconda Commissione, ma
il concetto della Anspruchsverjährung trionfò anche qui, sebbene con gravi difficoltà, tanto che la proposta di porre
l’intitolazione Klagenverjährung fu respinta a parità di voti (10 contro 10v. Protocolli, I, p.194 sgg.). In definitiva
il §161 del II Prog. e il § 189 del proggetto presentato al Reichstag, come il § 194 del Codice accettano il concetto
del W. in questa forma ‘il diritto di esigere da altri un fatto od una ommissione (Anspruch) soggiace alla prescrizione’.
Ed è con riluttanza, che i civilisti si assoggettano alla consacrazione legislativa della dottrina del W. (FADDA, Carlo;
BENSA, Paolo Emilio. Note e riferimenti al diritto italiano vigente. In: WINDSCHEID, Bernardo. Diritto delle
pandette. trad. Fadda & Bensa. Torino: UTP, 1902, p.1078). Pontes de Miranda propõe a questão sobre “o que
é pretensão?” no quinto volume do Tratado de Direito Privado. Podemos colher, a partir de trechos da obra de
Pontes de Miranda, uma tentativa de definição de pretensão: “Pretensão é a posição subjetiva de poder exigir de
outrem alguma prestação positiva ou negativa (...) Pretensão é, pois, a tensão para algum ato ou omissão dirigida a
alguém. O pre- esta, aí, por ‘diante de si (...). Na pretensão, o direito tende para diante de si, dirigindo-se para que
alguém cumpra o dever jurídico (...). Atividade potencial para frente, faculdade jurídica de exigir; portanto, algo
mais” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, v.V, p.452). Segundo Enneccerus e Nipperdey “a
pretensão e o direito de exigir de outra pessoa um ato ou uma omissão. Este direito pode nascer do poder decorrente
de um direito absoluto ou de um direito relativo. Distingue-se, pois, segundo seja a relação jurídica da qual procede
a pretensão, entre pretensões obrigatórias, reais, de direito de família e sucessórias” (ENNECCERUS-NIPPERDEY.
Derecho Civil (parte general). t.I. v.II – 2ª parte. In: ENNECCERUS-KIPP-WOLFF. Tratado de derecho civil.
Barcelona: Bosh, 1981, p.957).
34
A confusão já se inicia pela dificuldade em se traduzir o termo alemão Anspruch. Sobre o assunto, Carlos
Melon Infante apresenta interessante explicação ao traduzir o BGB para compor o apêndice do clássico Tratado de
Direito Civil por Enneccerus, Kipp e Wolf em idioma espanhol: “Es la ‘pretensión’ una facultad derivada de un
derecho subjetivo: la facultad de ejercitar el contenido del derecho de que ella misma es consecuencia. El equivalente
de la ‘Anspruch’ en nuestro Derecho es la acción; la equivalencia no es, sin embargo, plena, puesto que nuestra
acción tiee de la ‘Anspruch’ alemana y de la ‘Klage’ alemana (acción propriamente dicha)” (INFANTE, Carlos Melon.
Código Civil Aleman. Barcelona: Bosch, 1994, p.38, nota de rodapé n. 155).
35
Neste sentido, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao código civil. Rio de Janeiro: Forense,
2003, p.152. José Carlos Moreira Alves enuncia expressamente: “o projeto considera como pretensão o que

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114
entre cada uma dessas categorias eficaciais, com profundas consequências práticas
(com esforço de síntese e simplificação, pode-se dizer que quem detém poder de exigir,
segundo seus critérios, pode efetivamente agir ou não, empreendendo, deste modo,
a ação em sentido material. Pretensão e ação, portanto, são categorias eficaciais
flagrantemente diferentes)36.
Em terceiro lugar, mostra-se equivocada a afirmação de que “violado o direito,
nasce para o titular a pretensão”. A pretensão, como poder de exigir uma prestação de
outrem, surge independentemente de qualquer violação ao direito que lhe é
correspondente.
O exemplo do contrato de mútuo, antes apresentado, mais uma vez é elucidativo:
o advento do termo para a devolução de uma importância mutuada não representa a
violação do contrato ou do direito do credor mutuante37.
Ao se determinar o surgimento da pretensão apenas a partir da violação do
direito, para além da imprecisão teórica denunciada, percebe-se uma restrição
ideológica inaceitável.
Se a pretensão só surge com a violação do direito subjetivo, inexistiriam as
pretensões inibitórias, destinadas a exigir uma prestação hábil a evitar a violação do
direito e, até mesmo, a prática do ato ilícito por outrem.
As pretensões inibitórias são cada vez mais caras ao direito contemporâneo,
mormente no que diz respeito à defesa dos direitos da personalidade que, ao fim e ao
cabo, dificilmente são adequadamente tutelados por uma prestação patrimonial posterior
ao dano38. A falta de técnica legislativa exige do intérprete um esforço especial contrário
aos postulados de operacionalidade que informam o Código.39

Savigny denominava ação em sentido substancial ou material, em contraposição à ação em sentido formal ou
processual” (MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do projeto de Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva,
2003, p.188).
36
Sobre o assunto, conferir, além de Pontes de Miranda e Marcos Bernardes de Mello, nas obras já
citadas, vale conferir a didática explicação de BAPTISTA DA SILVA, Ovídio. Ação de imissão de posse. 2.ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.35 e seguintes.
37
Windscheid, mais uma vez, é esclarecedor: “Se invece la ragione personale intende ad un atto dell’obbligato,
finchè quest’atto non si compia, la ragione non è soddisfatta, e quindi la prescrizione comincia, subito, senza che sia
necessario lo avere richiesto dell’adempimento l’obbligato, nè che questi lo abbia ricusato” (WINDSCHEID, Bernardo.
Diritto delle pandette. trad. Fadda & Bensa. Torino: UTP, 1902, p.430). Em direito brasileiro, Marcos Bernardes de
Mello explica: “Em verdade, a pretensão nasce no momento em que direito passa a ser exigível (no vencimento da
obrigação, por exemplo), nunca quando é violado. Quem pode ser violada é a pretensão, porque contém exigibilidade,
nascendo daí a ação (de direito material, como a pretensão)” (BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato
jurídico: plano da validade. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.237, nota 372).
38
A respeito do tema, seguimos MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. São Paulo: RT, 2003;
ARENHART, Sérgio Cruz. Perfiz da tutela inibitória coletiva. São Paulo: RT, 2003.
39
Nesse sentido, cite-se o enunciado n. 14 do CJF/STJ, proveniente da I Jornada de Direito Civil, que
reconstrói art. 189 para superar suas insuficiências: “Art. 189: 1) o início do prazo prescricional ocorre com o
surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo; 2) o art. 189 diz respeito a casos em
que a pretensão nasce imediatamente após a violação do direito absoluto ou da obrigação de não fazer”

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Em quarto lugar, o Código Civil perdeu a oportunidade de estabelecer causas de
impedimento ao curso prescricional em moldes mais abertos para determinadas situações
de grave vulnerabilidade, e de difícil verificação do surgimento da pretensão e do polo
passivo contra a qual ela se dirige.
A disciplina dos impedimentos ao curso da contagem do tempo na prescrição
praticamente repetiu o Código Civil de 1916 e, ao assim proceder, perdeu uma importante
oportunidade para concretizar as soluções pertinentes à diretriz da ética da situação
propugnadas pelo coordenador do projeto do Código Civil.
Lembre-se, nesse sentido, a disciplina da matéria no Código de Defesa do
Consumidor que, em casos de acidentes de consumo, fixa como ponto inicial para o
lapso prescricional o efetivo conhecimento do dano e de sua autoria (art. 27 da Lei n.º
8.078/90). Numa sociedade marcada por relações tão impessoais, os resquícios do
discurso sobre o direito romano na chamada teoria da actio nata precisariam encontrar
válvulas de alteração conforme as situações dos envolvidos.
Em quinto lugar, o Código Civil de 2002 trata, pelo menos explicitamente, apenas
de pretensões obrigacionais. Isso pode conduzir a uma equívoca interpretação de que a
prescrição atinge apenas as pretensões pertinentes ao direito das obrigações, relegando
as pretensões de direito das coisas, de direito societário, e outros. A situação se torna
mais perigosa, ainda, pela indistinção entre pretensões pessoais e pretensões reais que,
mesmo com outra denominação, encontrava-se presente no Código Civil de 1916, com
uma consolidada aplicação jurisprudencial (art.177, CCB 1916)40.
A sexta crítica se apresenta sobre a genérica determinação que a exceção prescreve
no mesmo prazo da prescrição (Art. 190 do CCB). Conforme Windscheid, as exceções,
em geral, não poderiam ser expostas à prescrição, uma vez que o titular desta posição
ativa não poderia dela se servir quando melhor lhe conviesse41.

40
As pretensões reais dirigem-se como os direitos de que emanam, contra todos. Há-as no direito das
coisas, no direito de família e no direito das sucessões. Tem-se dito que as pretensões reais não exsurgem com o
direito mesmo: é preciso que se dê conduta de alguém, contrária ao conteúdo do direito real ou do direito de família;
portanto, sem violação não haveria pretensão real. Mas essa proposição confunde ação e pretensão: a pretensão
preexiste, aí, à ação; aí, não é a pretensão que nasce mais tarde que o direito, é a ação (...) Porque direito e pretensão
são diferentes, têm de ser diferentemente tratados: direito não prescreve; prescreve a pretensão ou a ação; a
prescrição das pretensões reais somente começa do momento em que deixa de ser satisfeita; é contínua e negativa,
de modo que não infringi-la é i-la satisfazendo continuamente; contra as pretensões de propriedade pode, às vezes,
ser oposta exceção (direito de retenção), ainda que o direito do proprietário nada possa sofrer; a pretensão depende
do direito, que lhe é base, com ele nasce, ou dele nasce, e com ele se extingue (ainda se foi cedida) (PONTES DE
MIRANDA. Tratado das ações. t.I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, p.56-57).
41
“Le eccezioni, come tali, per la natura delle cose non sono sottoposte alla prescrizione, poichè il titolare
non può farle valere quando vuole, ma a tal fine deve attendere, che si eserciti la ragione” (WINDSCHEID, Bernardo.
Diritto delle pandette. trad. Fadda & Bensa. Torino: UTP, 1902, p.448).

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A oposição da exceção, pelo menos em sua razão de ser, depende do prévio
exercício de um direito, pretensão ou ação. A exceção visaria justamente impedir que os
efeitos decorrentes de um direito, pretensão ou ação tenham repercussão42.
Se é assim, não faz o menor sentido a determinação legal pura e simples, tal como
lançada no art. 190 de que “A exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão”,
até mesmo porque o poder de exceção não tem coincidência temporal como o surgimento
da pretensão. Em princípio, a exceção, como defesa, só poderia ser manejada ante um
exercício de uma pretensão (ação).
Mais uma vez, esforços hermenêuticos são necessários para tornar possível a
aplicação da regra que, em si mesma, traz uma contradição. Segundo orientação
doutrinária que procura adaptar o dispositivo, apenas as chamadas exceções dependentes
seriam paralisadas pela prescrição43.
Em sétimo e último lugar, o Código Civil não apresentou qualquer orientação
sobre a imprescritibilidade. Ainda que esta seja uma situação excepcional, a falta de um
tratamento unificado (tal como se espera de um Código) deixa ao intérprete a difícil
tarefa de garimpar as situações de imprescritibilidade44.

42
“A exceção, em direito material, contrapõe-se à eficácia do direito, da pretensão, ou da ação, ou de
outra exceção” (PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado. t. VI., p.5).
43
Segundo Moreira Alves: “essa norma não diz respeito às exceções substanciais autônomas, ou seja,
àquelas que existem por si mesmas e não visam, em consequência, a fazer valer uma pretensão, mas, sim, a garantir
uma certa posição jurídica contra o ataque injusto de outrem. O artigo 190 só se aplica quando da mesma relação
jurídica depende esta, por ser a exceção o exercício da pretensão a título de defesa”. Para justificar esse
posicionamento, Moreira Alves recorre a Savigny: “É o que ocorre, por exemplo, com referência à exceção de
contrato não cumprido, na hipótese assim figurada por SAVIGNY (Sistema del Diritto Romano Attuale, vol. V, trad.
SCIALOJA, parágrafo 254, p.476, Torino, 1983): ‘No ano de 1841 foi vendido um imóvel, devendo a tradição
ocorrer de imediato, mas o pagamento do preço da compra deveria fazer-se no ano de 1843; por ambas as partes
foi negligenciada a execução. A actio empti prescreve no ano de 1871, a actio venditi no ano de 1873 (porque só
poderia ter sido ela intentada no ano de 1843). Durante todo esse tempo cada uma das partes tinha a exceptio non
impleti contractus, se o adversário quisesse agir. Se a actio venditi é intentada no ano de 1872, pergunta-se se o
comprador, cuja ação já está prescrita há um ano, pode, ainda, valer-se da referida exceção’. Neste caso, tratando-
se de exceção dependente da pretensão, a resposta, em face do art. 190 do Projeto, será negativa, porque a exceção
prescreveu quando ficou prescrita a pretensão. Em face dessa explicação, vê-se, claramente, que o dispositivo em
causa não é aplicável à hipótese de não-repetição do que se pagou para solver dívida prescrita. Nesta, a exceção é
autônoma, pois não depende da pretensão de cobrar o débito não pago, e, sim, resulta do pagamento espontâneo
do devedor, apesar de já prescrita a pretensão do seu credor. As exceções autônomas continuam imprescritíveis,
até porque não traduzem inércia de quem as pode invocar. Já as exceções dependentes de pretensões prescrevem
com estas” (MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do projeto de Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva,
2003, p.188).
44
Sobre as hipóteses de imprescritibilidade no Código Civil, Humberto Theodoro Jr. apresenta o seguinte
rol: a) a pretensão a partilha da herança (art. 2.013); b) a pretensão a dividir a coisa comum (art. 1.320); c) a
pretensão à demarcação de imóveis limítrofes (art. 1.297); d) a pretensão à meação sobre os muros divisórios (art.
1.297, parágrafo primeiro); e) os direitos que não se traduzem em pretensões; f) as pretensões decorrentes dos
direitos da personalidade; g) as pretensões surgidas em virtude dos direitos de estado e, em geral, os direitos
derivados das relações de família. Humberto Theodoro Júnior, ainda, cita a tese de Manuel Albaladejo (La prescripcíon
de la acción reinvindicatoria) que sustenta a possibilidade da prescrição da pretensão reivindicatória, como algo
diverso da usucapião (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao código civil. Rio de Janeiro: Forense,
2003, p.166).

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Tal falha, ademais, contraria o princípio da operacionalidade que se procurou
impingir na recente codificação. As pretensões fundadas nos direitos da personalidade
e as pretensões para proteção dos estados pessoais são imprescritíveis, mediante
interpretação, sem se esclarecer se a imprescritibilidade atingir o poder de exigir prestações
de respeito aos direitos da personalidade ou, ainda, se atingiriam o poder de exigir
indenização pelos danos decorrentes da violação.
Entre avanços e retrocessos, o Código Civil Brasileiro, à luz de uma investigação
crítica, expõe a fragilidade das esperanças em se resolverem todos os problemas de um
determinado instituto secular por meio de alterações legislativas.
Mais do que nunca, diante de um Código recente, o papel do intérprete é
insuperável e, em tema de prescrição, tal como se procurou demonstrar, continua presente
e urgente.

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Recebido: novembro 2010


Aprovado: abril 2010

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AS MODULAÇÕES DO DIREITO CONTEMPORÂNEO EM UM BREVE
EXERCÍCIO DE FILOSOFIA DO DIREITO

VARICTIONS OF CONTEMPORARY LAW IN A BRIEF


EXERCISE OF PHILOSOPHY OF LAW

Jeanine Nicolazzi Philippi*

RESUMO: Pretendemos neste trabalho analisar as modulações do direito contemporâneo em um tempo


regido, cada vez mais, em sua dinâmica decisória, por processos de negociação, no qual a redistribuição
das formas de participação na composição das regras do jogo e os instrumentos atuais de gestão colocam
em marcha uma nova engrenagem jurídica que deixa de operar como um sistema de normas a priori – ou
seja, uma função terceira –, para converter-se em rede de regras flexíveis, adaptáveis às injunções de um
mundo que opera sob o imperativo de que tudo é possível. A compreensão dessas transformações
implica – em um primeiro plano – uma breve incursão na história recente do pensamento jurídico no
qual podemos distinguir dois tipos de Estados aos quais associamos dois modelos de direito: o liberal e
o social. Em um segundo momento, o texto procura esclarecer como as bases da construção jurídica dos
Estados nacionais não suportaram os impactos decorrentes da redefinição das fronteiras políticas em um
mundo economicamente globalizado onde o monopólio estatal da legislação está sendo progressivamente
suplantado pela capacidade normativa de inúmeras organizações multilaterais, grupos econômicos
nacionais, instituições financeiras internacionais e corporações empresariais multinacionais com poder
decisório, que condicionam a direção dos negócios públicos e a produção do direito estatal.

PALAVRAS-CHAVE: direito contemporâneo. processo de negociação. rede de regras flexíveis.

ABSTRACT: Our intention in this work is to analyze the variations in contemporary law at a time
increasingly governed by the dynamics of decision-making power through negotiation procedures in
which the redistribution of the forms of participation in the composition of the rules at stake and the
current means of administration set in motion a new judicial organization. This organization ceases to
operate as a system of a priori norms – thus, a third function – to be converted into a network of flexible
rules, adaptable to the dictates of a world that operates under the imperative that anything is possible.
The understanding of these transformations requires, at first, a brief foray into the recent history of
judicial thinking where we can distinguish two types of states associated with two legal models, the
liberal and the social. Secondly, the text seeks to clarify how the bases of judicial construction of nation
states do not tolerate impacts resulting from redefining political frontiers in a globalized world economy
where the legislative state monopoly is being progressively supplanted by the normative ability of
innumerable multilateral organizations, national economic groups, international financial institutions
and multinational business corporations with decision-making power, stipulating the direction of public
business and state law making.

KEYWORDS: Contemporary law. negotiation procedure. flexible rules network.

* Doutora em Direito, Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito – na área de


Teoria e Filosofia do Direito – da Universidade Federal de Santa Catarina, Tutora do PET/Direito da UFSC

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Toda disciplina apresenta um limite epistemológico inevitável. Marcados por essa
contingência, nos resignamos, com frequência na academia, à exploração das fronteiras
conhecidas de um campo específico do saber, certos de que, com método, chegaremos
à verdade final.
Empenhados na preservação das certezas da representação, negamos – com
horror – os encontros faltosos que nos apresentam o real – o (i)mundo do qual emergimos,
queiramos ou não, como resposta. Sob a proteção dos enunciados anônimos que nos
preservam da dura tarefa de uma enunciação eticamente comprometida, perpetuamos o
trabalho de degradação da palavra e de aniquilamento do seu portador. Essa impostura
leva o pensamento à imobilidade e nos convoca como protagonistas de um jogo de máscaras
que oculta uma repetição básica: a resistência em questionar a mestria fundante dos ídolos
da tribo e em referenciar uma certa invenção. Assim, é sempre oportuno distinguir outro
horizonte de reflexão onde, além da certeza, a pergunta insiste lembrando ao sujeito que
ele pode constituir um ponto de partida onde se deixa sempre a desejar... (SILVA, p. 4)
Essa abertura nos restitui o sentido de um questionamento propriamente filosófico,
ou seja, o valor da indagação que, paradoxalmente, busca e rompe a estabilidade do saber.
Por isso, é lícito dizer que o ser daquele que questiona é desejo que perdura a despeito
da ausência do objeto. (JURANVILLE, 1987, p. 16) Pontuando a dimensão dessa errância,
Platão já dizia no Banquete: Eros é fundamentalmente uma falta... Nenhum dos deuses
poderia filosofar, pois a filosofia já é seu apanágio. O mesmo se pode dizer dos ignorantes,
nenhum dos quais deseja a filosofia, porque o mal da ignorância é tornar contentes consigo
mesmos os que, não sendo bons nem sábios, cuidam que o são... Ninguém deseja senão o de
que se julga privado. (PLATÃO, 1961, p. 57-63)
Quando a falta é a referência, as indagações filosóficas roubam a cena das ordens
unívocas, imprimindo um movimento crítico ao pensamento que permite expor distintas
fronteiras de enunciação, nas quais a segurança monótona das reproduções da verdade
cede espaço às tensões de uma reflexão desestabilizadora articulada à ética singular do
bem-dizer que evoca a responsabilidade do sujeito em relação àquilo que ele enuncia,
como também a sua implicação nos enunciados que acolhe como se fossem seus.
A possibilidade dessa resposta inspirou, neste trabalho, a análise das modulações
do direito em um tempo regido, cada vez mais, em sua dinâmica decisória, por processos
de negociação, em que a redistribuição das formas de participação na composição das
regras do jogo e os instrumentos atuais de gestão colocam em marcha uma nova
engrenagem jurídica que deixa de operar como um sistema de normas a priori – ou seja,
uma função terceira –, para converter-se em uma rede de regras flexíveis, adaptáveis
às injunções de um mundo que opera sob o imperativo de que tudo é possível...
A compreensão dessas transformações implica – em primeiro plano – uma breve
incursão na nossa história recente do pensamento jurídico em que podemos distinguir dois
tipos de estado aos quais associamos dois modelos de direito: o liberal e o social. No quadro

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do liberalismo político, compreendíamos a ordem jurídica como conjunto de regras gerais,
abstratas e previsíveis destinadas à proteção dos direitos individuais, da propriedade e dos
contratos. (ROTH, In: FARIA, 1996) Nesse contexto, estudar direito seria, então, aprender
uma técnica capaz de controlar a sociedade por meio de instrumentos normativos formais
convertidos em medidas universais de comportamento – sem vinculação com conteúdos
materiais –, organizados a partir de um sistema hierarquizado que subordina as normas
inferiores às superiores em um movimento linear de fundamentação ou validade. A essa
compreensão dos ordenamentos jurídicos agregávamos, também, a funcionalidade dos
princípios que estabeleciam a livre circulação de pessoas, idéias e bens contra a interferência
ou arbítrio do estado.
Essa aposta na capacidade autorreguladora da sociedade começou, no entanto,
a mostrar seus limites já no final do século XIX. Em um tempo no qual a ideia da luta
pela vida contribuiu para o sucesso de uma teoria que conseguiu tornar aceitável – como
explicação válida para o progresso humano – uma seleção fundada na conquista do
espaço pelo animal –, o laissez-faire dos devoradores mais fortes (LACAN, 1998, p. 123)
levou ao reconhecimento da necessidade de uma regulamentação positiva que tornasse
controlável os riscos de explosão de litígios e anomia da sociedade.
Assim, a ordem jurídica converte-se – especialmente a partir da Segunda Guerra
Mundial – em um instrumento estratégico para viabilizar a realização política de objetivos
e valores indispensáveis à manutenção de uma certa legitimidade do Estado.
Acompanhando essas mudanças o direito social foi pensado não apenas para definir as
regras do jogo, mas, sobretudo, para modificar os resultados desse jogo, alterando,
implicitamente, as suas regras. Por essa razão, ele transforma, também, o horizonte do
Judiciário, convocando-o a operar a partir de estratégias hermenêuticas que permitem
ajustar o discurso do intérprete à necessidade de respostas aos problemas ligados à
redistribuição dos recursos comuns e à desigualdade social. (FARIA, 1999, p. 276)
Essas regras de julgamento que facultam a adaptação argumentativa das normas
à realidade promovem, sem dúvida, um novo tipo de racionalidade para o direito, mas,
ao mesmo tempo, conservam a forma jurídica herdada da tradição liberal, uma vez que
continuam a ser dadas no âmbito de uma unidade lógico-formal – sem lacunas ou
antinomias – com base na qual é sempre possível deduzir decisões sobre o que é
de direito. (p. 44/45)
As bases dessa construção jurídica dos estados nacionais não suportaram, contudo,
os impactos decorrentes da redefinição das fronteiras políticas em um mundo
economicamente globalizado. Nele, o monopólio estatal da legislação – que permitiu a
concepção do sistema jurídico como um complexo unitário e hierarquizado de normas –
está sendo progressivamente suplantado pela capacidade normativa de inúmeras
organizações multilaterais, grupos econômicos nacionais, instituições financeiras

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internacionais e corporações empresariais multinacionais com poder decisório, que
condicionam a direção dos negócios públicos e a produção do direito estatal. (p. 14/15)
Em termos de técnica jurídica a consequência mais expressiva dessa transformação
é a flexibilização da ordem jurídica dos estados que, segundo os teóricos do direito reflexivo,
abre espaço para a produção de um tipo inédito de regras sociais ajustadas aos interesses
dos indivíduos implicados nas diversas prescrições normativas. Para os entusiastas da soft
law, o caráter democrático dessas deliberações é garantido por uma racionalidade
procedimental que orienta a formulação das decisões negociadas e pela capacidade de
discussão razoável dos sujeitos que atuam nos diversos foros de negociações. (p. 23/24)
Como podemos observar, o direito reflexivo possui pontos comuns com o modelo
do direito social. Eles partilham um modo muito próximo de encarar o direito como um
ensaio ou uma experiência de constituição de novas práticas normativas e de distintas
estruturas de poder. Não devemos, portanto, tomá-los como paradigmas colidentes no
âmbito do pensamento jurídico (p. 277), mas, tampouco, podemos confundi-los. Como
vimos acima, o direito social é um instrumento estratégico de resposta aos problemas
de redistribuição de recursos e poderes no âmbito dos estados nacionais.
O direito reflexivo, em contrapartida, surge em um processo de desterritorialização
da política – marca indelével da escalada da globalização econômica – que tem como
um dos seus corolários, a organização de um sistema de governos privados, no qual os
indivíduos – convocados a negociar o texto das regulações sociais – se encontram cada
vez mais impotentes para concretizar acordos que dizem respeito as suas necessidades
fundamentais. Nesse território despojado de espaço público, o direito refletivo representa
o resultado das negociações normativas – ou seja, dos ajustes de detalhes – que não
podem ultrapassar o quadro geral da regulação – fixado pelas instâncias decisórias do
mercado – apresentado como realidade insuperável. (ROTH, In: FARIA, 1996, p. 26)
Essa técnica jurídica vital para a eficácia do quadro de (des)regulação social
requerido pelo movimento da economia globalizada implica, também, uma alteração
da discricionariedade das esferas de ação do Judiciário. (FARIA, In: FARIA, 1999,
p. 131) Nesse novo contexto, as regras de julgamento que permitiam – no quadro do
direito social – o ajuste argumentativo das normas para uma solução adequada dos
problemas da sociedade, cedem espaço a um trabalho interpretativo contínuo que
reconstrói – por meio das decisões – o texto normativo social.
Para que tenham a sua eficácia garantida, as negociações das regras que
implementam as diretrizes fixadas pelas instâncias decisórias do mercado exigem que o
estado dote sua ordem jurídica de plasticidade aumentando as possibilidades de escolha,
decisão e controle oferecidas à magistratura. Hoje, é recorrente na teoria do direito a
distinção do conteúdo normativo – o início da significação jurídica – da norma
propriamente dita – a decisão na qual o aplicador do direito procede à valoração dos
dados objetivos e subjetivos presentes nos casos levados à apreciação do Judiciário,
submetendo, assim, o texto normativo à sua própria avaliação.

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A composição desse direito flexível – no qual o intérprete torna-se coparticipante
do processo de criação de normas jurídicas –, como podemos perceber, é vital para o
curso tranquilo da globalização econômica, na medida em que os veredictos judiciais –
como os ditames do mercado – são imunes às pressões políticas e sociais, o que facilita,
de forma significativa, os ajustes de detalhes necessários à implementação incondicional
do modelo de redenção capitalista.
Assim, na contraface das justificativas de adequação da ordem jurídica ao
desenvolvimento das sociedades contemporâneas, a diferença de escala entre o conteúdo
normativo e a decisão nos leva a compreender – com Agamben – a configuração de um
espaço jurídico vazio próprio ao estado de exceção. (AGAMBEN, 1999, p. 79) A marca
desse campo onde o mínimo de vigência formal coincide com o máximo de aplicação real
(p. 58), vemos impressa em julgados dos nossos Tribunais superiores como, por exemplo,
o voto-vista do Ministro Eros Roberto Grau no Agravo regimental n.º 3034-2 de
21/09/2006 em que, entendendo ser o caso em análise, uma exceção, argumenta: como
observa Karl Schimitt, as normas só valem para as situações normais. A normalidade da
situação que pressupõem é um elemento básico do seu “valer”. A propósito, Maurice Hauriou
menciona: “... é muito justa sta idéia que as normas são feitas apenas para um certo estado
normal da sociedade, e que, se este estado normal é modificado, é natural que as leis e
suas garantias sejam suspensas.”... “As leis são muito bonitas, mas é preciso ter tempo de
fazê-las, e trata-se de não estar morto antes que elas não sejam feitas.”
Continuando o raciocínio o ministro Eros Grau acrescenta: o estado de exceção é
uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade, uma zona de indiferença
capturada pela norma. De sorte que não é a exceção que se subtrai à norma, mas ela que,
suspendendo-se, dá lugar à exceção... apenas desse modo ela se constitui como regra,
mantendo-se em relação com a exceção. A esta Corte, sempre que necessário, incumbe
decidir regulando também essas situações de exceção. Ao fazê-lo, não se afasta do
ordenamento, eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da
exceção. Ao final do voto, afirma, ainda, que: não estamos aqui para prestar contas a
Montesquieu ou Kelsen, porém para vivificarmos o ordenamento, todo ele... Não somos
meros leitores dos seus textos – para o que bastaria a alfabetização – mas magistrados que
produzem normas, tecendo e recompondo o próprio ordenamento.
Nesse voto, o Ministro Eros Grau cita a obra de Agamben Homo sacer – o poder
soberano e a vida nua. As páginas do texto ao qual faz referência pertencem ao capítulo
intitulado O paradoxo da soberania no qual Agamben escreve: o paradoxo da soberania
se enuncia da seguinte forma: “o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do
ordenamento jurídico”... A especificação “ao mesmo tempo” não é trivial: o soberano
tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto
significa que o paradoxo pode ser formulado também deste modo: “a lei está fora dela
mesma”, ou então: “eu soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da

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lei.” ... É este o sentido último do paradoxo formulado por Schimitt, quando escreve que
a decisão soberana “demonstra não ter necessidade do direito para criar o direito.”
(AGAMBEN, 2002, p. 24-26)
O estado de exceção – como estrutura fundamental da política – emerge em nosso
tempo sempre ao primeiro plano e tende, por fim, a tornar-se regra. (p. 27) Nesse espectro,
vemos o campo – a matriz política do domínio totalitário – se definir como o paradigma
do mundo em que vivemos, onde, segundo Hannah Arendt, tudo é possível... (AGAMBEN,
2002, p. 43-44; 2004, p. 131) Hoje, adverte Agamben, o retorno desse estado de exceção
efetivo ao estado de direito não é possível, pois o que está em questão agora são os próprios
conceitos de estado e de direito. (AGAMBEN, 2004, p. 131)

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer – o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002, p. 24/26
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989,
p. 477/478
FARIA, José Eduardo. Democracia e governabilidade – os direitos humanos à luz da globalização
econômica. In: FARIA, Direito e globalização econômica, op. cit., p.131
FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 276
JURANVILLE, Alain. Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, p. 16
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 123
PLATÃO. O Banquete. São Paulo: Editora Atena, 1961. p. 57/63.
ROTH, André-Noël. O direito em crise: fim do Estado moderno. In: FARIA, José Eduardo (Org.).
Direito e globalização econômica – implicações e perspectivas. São Paulo: Malheiros, 1996
SILVA, Cyro Marcos. Vinte anos depois de quê? Juiz de Fora: inédito, p. 4

Recebido: outubro 2010


Aprovado: abril 2010

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126
POR UMA TEORIA DA NARRATOLOGIA JURÍDICA:
De que modo a Teoria Literária pode servir à
compreensão e crítica do Direito

FOR A THEORY OF LEGAL NARRATOLOGY:


How can a Literary Theory be useful for the
comprehension and criticism of Law

Douglas Antônio Rocha Pinheiro*

RESUMO: A partir da utilização do dialogismo pelo historiador Carlo Ginzburg na análise de autos
inquisitoriais, especialmente no caso dos benandanti, o artigo discute a possibilidade de uma leitura
do Direito baseada nas categorias relativas à Teoria Literária, especialmente as defendidas por Mikhail
Bakhtin, bem como sua capacidade de oportunizar uma nova reflexão sobre o fenômeno jurídico.

PALAVRAS-CHAVE: narrativa jurídica. dialogismo. plurilinguismo. polifonia. 

ABSTRACT: From historian Carlo Ginzburg’s use of dialogism in the analysis of inquisitorial papers,
especially in the benandanti case, the article aims to discuss the possibility of a legal reading based on
the categories related to literary theory, above all those Mikhail Bakhtin holds, as well as their capacity
to provide a new reflection on the legal phenomenon.

KEYWORDS: juridical narrative. dialogism. heteroglossia. polyphony.

* Mestre e Doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Professor Assistente
da Universidade Federal de Goiás. Contato: darpinheiro@gmail.com.

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127
1. Nem jurista, nem literato: um historiador

Em 1966, o historiador Carlo Ginzburg publicou seu primeiro livro. Fruto de


uma minuciosa pesquisa realizada no Arquivo da Cúria Arquiepiscopal de Udine, que
conserva o material relativo ao Santo Ofício de Aquileia e de Concórdia, a obra reconstruiu
a mentalidade dos chamados andarilhos do bem (benandanti), grupo de indivíduos da
região italiana do Friul que, durante os séculos XVI e XVII, nas noites dos Quatro
Tempos1, entravam em letargia e saíam “em espírito” ou para ver os mortos ou para
combater contra os feiticeiros pela abundância nas colheitas (GINZBURG, 2007a).
A identificação de traços de uma religiosidade popular em documentos oficiais
redigidos com cautela considerável, como os autos inquisitoriais, só foi possível na medida
em que o relato dos benandanti, revelador de uma realidade desconcertante e não
ajustável aos esquemas demonológicos já conhecidos, gerou um registro sem grandes
deformações, graças ao misto de espanto e curiosidade que causava nos inquisidores.
Assim, a discrepância presente em tais documentos entre as perguntas dos inquisidores
e as respostas dos acusados, que não poderia ser atribuída a interrogatórios sugestivos
nem à tortura, trouxe à tona “um estrato profundo de crenças populares substancialmente
autônomas” (GINZBURG, 2008, p. 19).
Apesar de bem recebido, o livro sofreu algumas críticas por ter dado insuficiente
atenção aos inquisidores e à atitude deles perante a feitiçaria, o que gerou um desequilíbrio
na pesquisa admitido pelo próprio Ginzburg em um pós-escrito de 1972 (2007a, p. 15).
Posteriormente, em 1989, o historiador, de algum modo, supriu essa lacuna por meio
do artigo O inquisidor como antropólogo2, texto no qual voltava a mencionar os processos
inquisitoriais desencadeados contra os benandanti; dessa vez, porém, a utilização de
tais processos foi justificada por meio da noção de romance polifônico defendida por
Mikhail Bakhtin.
Fazendo a ressalva de que o seu artigo não era o espaço adequado para discutir
“as observações de Bakhtin sobre o gênero específico em que deveriam ser inseridos os
romances de Dostoiévski” e admitindo que as personagens que se enfrentavam em tais
interrogatórios não se encontravam no mesmo plano do poder, Ginzburg defendeu que,
ainda assim, em alguns momentos, os textos deles decorrentes apresentavam alguma
polifonia. Para o historiador, o desacordo entre a narrativa das batalhas noturnas dos

1
“Chamam-se ‘Quatro Tempos’ os três dias de jejum prescritos pelo calendário eclesiástico durante a primeira
semana da Quaresma (Tempos da primavera), a oitava de Pentecostes (Tempos de verão), a terceira semana de Setembro
(Tempos de outono) e a terceira semana do Advento (Tempos de inverno)” (GINZBURG, 2007a, p. 217).
2
O texto original italiano foi publicado no livro Studi in onore di Armando Saitta dei suoi allievi pisani
organizado por R. Pozzi e A. Prosperi. A primeira tradução brasileira, feita por Jônatas Batista Neto, foi publicada
na Revista Brasileira de História de set./1990-fev./1991. Recentemente, em 2007, o texto recebeu nova tradução
e foi acrescido de um post scriptum feito pelo próprio Ginzburg, tendo sido incluído numa coletânea de artigos seus
publicada sob o título O fio e os rastros (2007b).

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friulanos e a descrição tradicional de sabá a que estavam habituados os inquisidores
gerou desconforto e surpresa tais que permitiram o registro de vozes distintas, diferentes
e até opostas nos processos inquisitoriais, vozes que não significavam simples eco a
perguntas indutivas e que fizeram desse interrogatório um texto polifônico (GINZBURG,
2007b, p. 286-287).
Tal releitura feita pelo historiador enseja algumas reflexões. O texto de Bakhtin
sobre os problemas da poética de Dostoiévski só foi publicado na Itália em 1968 sob o
título Dostoievskij: poetica e stilistica (SCHNAIDERMAN, 1973, p. XX). Isso explica a
inexistência de referências bakhtinianas no livro sobre os benandanti, publicado dois
anos antes. Na verdade, a primeira citação à Bakhtin na obra de Ginzburg somente
acontece em seu segundo livro – O queijo e os vermes, publicado na Itália em 19763.
Em tal livro, Ginzburg assumidamente se valeu da tese bakhtiniana sobre a
existência, na Europa pré-industrial, de uma circularidade entre a cultura das classes
dominantes e a cultura das classes subalternas, feita de influências recíprocas entre
ambos os planos, quer de baixo para cima, quer de cima para baixo. Com isso, justificava
como o desconhecido moleiro Domenico Scandella, também chamado Menocchio, poderia
sustentar perante o Santo Ofício opiniões surpreendentemente convergentes com as
defendidas por grupos de sofisticados intelectuais de sua época (GINZBURG, 2008).
Porém, após ter se valido das teses de Bakhtin sobre Rabelais e Dostoiévski para
analisar processos inquisitoriais, o historiador não manifestou aproximação em relação
aos demais textos do teórico russo. Prova disso é que ao fazer uma crítica ao formalismo
mecanicista de Chklovski, por reduzir o estranhamento a mero procedimento literário4,
Ginzburg (2001, p. 15-41) voltou a citar o Bakhtin da cultura popular, em nota marginal,
desconsiderando totalmente o Bakhtin da teoria literária5. Desse modo, por não justapor

3
Em nota de rodapé, Ginzburg (2008, p. 201) admitiu: “Usei a tradução francesa de Bakhtin: L’oeuvre
de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance (Paris, 1970)”. Num artigo publicado
em 1996 – Estranhamento: pré-história de um procedimento literário – que também faz menção à reflexão bakhtiniana
da obra de Rabelais, a referência à tradução francesa deu lugar à publicação moscovita de 1965 e à versão italiana
de 1979 (GINZBURG, 2001, p. 231). Por seu conhecido rigor quanto às fontes, parece improvável que Ginzburg
tenha tido acesso ao texto original de Bakhtin antes de lançado O queijo e os vermes. Assim, é bem possível que a
versão francesa tenha marcado, de fato, o primeiro contato com a obra do filósofo russo.
4
“E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra,
existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento;
o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer
a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato da percepção em arte é um fim em si mesmo e
deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já ‘passado’ não importa para a
arte” (CHKLOVSKI, 1973, p. 45).
5
O artigo em questão é o mesmo referido na nota anterior. Oportuno lembrar que no texto O problema
do conteúdo, do material e da forma na criação literária, escrito entre 1923/1924 e incluído na edição brasileira
do livro Questões de literatura e de estética, Bakhtin (1990a, p. 60-61) já fazia uma crítica direta ao estranhamento
de Chklovski sob argumento de que o procedimento defendido pelo formalista levava em conta apenas a palavra e
isso por meio de uma destruição de sua série semântica habitual. Bakhtin argumentava que, desse modo, perdia-se

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uma quantidade maior de obras do filósofo6 russo, Ginzburg acabou identificando
polifonia onde, na verdade, existiu plurilinguismo – equívoco que será tratado abaixo.
Por ora, cabe apenas destacar um outro pós-escrito de Ginzburg, dessa vez aposto
ao final do já mencionado artigo sobre os inquisidores. Nele o historiador observa que
durante sua visita a Moscou, em novembro de 2003, um grupo que trabalha com a
história das perseguições desencadeadas na era stalinista entreveu, a partir da percepção
do dialogismo nos processos inquisitoriais, a possibilidade de se identificar o registro de
vozes dissonantes nos autos dos processos movidos durante a fase mais dura da repressão
interna soviética (GINZBURG, 2007b, p. 293). É justamente tal perspectiva que abre
caminho à possibilidade reflexiva do presente artigo.
Assim, embora a leitura de Ginzburg acerca da polifonia em Dostoiévski seja tardia
ou, pelo menos, não contemporânea aos estudos dos processos inquisitoriais com os quais,
posteriormente, foi vinculada e apesar da indistinção com que o historiador tratou
dialogismo, plurilinguismo e polifonia7, é importante destacar que foi ele quem demonstrou
com clareza a possibilidade de se utilizar categorias da teoria literária – especialmente as
desenvolvidas por Mikhail Bakhtin – para analisar processos judiciais.
Demonstrada a possibilidade, resta justificar a conveniência de tal utilização. Para
tanto, já de antemão, apontam-se as possíveis críticas à consideração do direito como
uma narrativa, fazendo-o em reconhecimento ao dialogismo como postura necessária às
defesas argumentativamente sustentadas na esfera pública, e, ato contínuo, refutam-se
essas mesmas críticas, para que os debates suscitados pelo presente artigo tenham novos
(ou, ao menos, outros) pontos de partida.

2. Por uma teoria narrativa do direito

Todo discurso é marcado por uma dialogicidade interna que decorre, em certa
medida, da influência de uma resposta antecipada, um discurso-resposta que, mesmo

a dimensão de isolamento do conteúdo do objeto estético em relação ao acontecimento único e aberto da existência,
ou seja, de sua dimensão ético-cognitiva – crítica bastante próxima a de Ginzburg. Posteriormente, em texto escrito
em 1928 e publicado, em inglês, sob o título The formal method in literary scholarship, Bakhtin/Medvedev (1991,
p. 59-61), de forma ainda mais incisiva, chama o estranhamento formalista de niilista, na medida em que deixa de
explorar o caráter polissêmico da linguagem (dimensão positiva de construção de significados capaz de potencializar
a própria palavra), para se centrar na simples negação de velhos significados.
6
Bakhtin sempre se considerou um filósofo. Todavia, a visibilidade obtida pelos seus textos sobre linguística
e teoria literária, acompanhada da descoberta tardia e fragmentada de sua produção mais filosófica, acabaram
encobrindo, por muito tempo, sua vocação primeira (SHATSKIKH, 2007, p. 305).
7
No artigo As vozes do outro – Uma revolta indígena nas ilhas Marianas, publicado em grego, no volume
12 da revista Ta Istoriká – Historica, em junho de 1995, e depois integrado ao livro Relações de força, embora
Ginzburg demonstre muita propriedade na explicação do conceito polifonia, ao aplicá-lo à análise documental a
que se propõe no artigo novamente o utiliza equivocadamente no lugar do adequado plurilinguismo. Agradeço a
Raphael Marques por me chamar a atenção para tal fato.

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não tendo sido dito ainda, já é esperado, pressentido e presentificado, orientando, desde
agora, a formulação do enunciado que se profere (BAKHTIN, 1990b, p. 89). Assim,
mesmo que as críticas cogitadas não se vinculem a algum autor em particular, tal prática
dialógica é fundamental para tornar o discurso mais vivo e corrente.
Uma primeira reação à tese da narratologia jurídica poderia partir do pressuposto
de que a aproximação entre direito e literatura não passaria de um exercício metafórico
de linguagem. Desse modo, como metáfora, tal relação acabaria se tornando não essencial,
na medida em que qualquer outra vinculação entre imagens seria possível: por exemplo,
direito como organismo ou direito como mecanismo. Ora, ainda que se tratasse de mera
metáfora, tal aproximação já permitiria alguma reflexão.
Afinal, a metáfora – que não tem um valor objetivo em si, mas serve de crisol de
visões de mundo, culturas e tradições específicas, hermeneuticamente conjugadas – preserva
a capacidade criadora da linguagem e, por consequência, do próprio direito. Não sem
motivo, Alessandro Giuliani aconselhava que os juristas se aventurassem pelo campo das
metáforas a fim de adquirir conhecimento sobre termos e institutos jurídicos:
Toda a história do pensamento jurídico poderia ser estudada sob o ponto de vista da
linguagem, como uma sucessão de metáforas: bastaria examinar qualquer uma das
controvérsias da ciência jurídica para ver como as diversas soluções são condicionadas pelas
metáforas admitidas, pelas similitudes, pelo recurso ao exemplo. Podemos encontrar a
confirmação da tese de Blumenberg, sobre a existência de palavras-chave que são metáforas
absolutas, no sentido que resiste a uma resolução em termos lógicos: a impossibilidade de
consenso sobre o termo “direito” seria disso testemunha. O trabalho do jurista é de
aperfeiçoamento de metáforas, clarificação da linguagem8.

Para Vespaziani (2009), porém, a incursão do jurista nesta seara assume uma
dimensão ética para além da cognitiva. Baseando-se no argumento de que a metáfora
não corresponde apenas a uma figura retórica dentre outras, mas que integra a própria
estrutura do discurso jurídico, o autor italiano defende que seu estudo permitiria desvelar
os possíveis projetos ideológicos ocultos por detrás de uma linguagem que indevidamente
se apresenta como neutra. Superado, pois, o argumento da improdutividade da metáfora,
permanece o da não essencialidade da relação entre direito e literatura.
Vera Karam de Chueiri demonstra, porém, que igualmente ele não subsiste.
Segundo Chueiri, o positivismo jurídico, ao defender uma compreensão descritiva do
direito, não consegue dar conta de sua dimensão prescritiva. Daí a imprescindibilidade

8
Tradução feita pelo autor do artigo. No original: “tutta la storia del pensiero giuridico potrebbe essere
studiata dal punto di vista del linguaggio, come un susseguirsi di metafore: basterebbe esaminare una qualsiasi
delle controversie della scienza giuridica per vedere come le diverse soluzioni siano condizionate dalle metafore
accettate, dalle similitudini, dal ricorso all’esempio. Potremmo trovare la conferma della tesi del Blumenberg ossia
della esistenza di termini chiave che sono metafore assolute, nel senso che mostrano resistenza ad una risoluzione
in termini logici: l’impossibilità di accordo sul termine ‘diritto’ ne sarebbe una testimonianza. Il lavoro del giurista
è correzione di metafore, chiarificazione del linguaggio” (GIULIANI apud VESPAZIANI, 2009, p. 2).

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de uma teoria narrativa do direito, na medida em que ela poderia, genuinamente,
mediar descrição e prescrição, visto que “alargaria o campo da ação (da prática) e
anteciparia considerações éticas na própria estrutura do ato de narrar”. Desse modo,
por consequência, a crítica literária poderia ser utilizada pelos juristas como forma de
melhor “compreender e avaliar o direito, as instituições jurídicas, os procedimentos
jurisdicionais e a justiça e, nesse sentido, a própria narrativa da obra literária” serviria
“para melhor compreender a narrativa jurídica (as sentenças judiciais, por exemplo)”
(CHUEIRI, 2007, p. 120).
Uma segunda reação poderia se fundar no argumento de que um olhar estético
sobre o direito colocaria em risco seu compromisso ético. Tal crítica não é de todo
suposta; afinal, preocupação semelhante já foi externada em relação à história. Ginzburg,
por exemplo, embora não negue uma dimensão literária no trabalho do historiador
(GINZBURG, 1990, p. 255), teme que o gradativo esmaecimento das fronteiras entre
narrativas ficcionais e históricas comprometa o princípio histórico da realidade9, do que
decorreriam efeitos éticos desastrosos – como, no limite exemplar, a validação da tese
Faurisson de que campos de concentração nazistas não teriam existido (GINZBURG,
2007b, p. 8 e 215-217).
Ora, antes de tudo é preciso ressaltar que uma teoria narrativa do direito não
corresponde a uma teoria ficcional do direito. Considerar uma sentença judicial como
um equivalente funcional da narrativa literária significa demonstrar como pessoas e fatos
reais são, de algum modo, esteticizados quando passam a integrar a tessitura criativa de
uma decisão10. A criatividade do intérprete não pode ser entendida como recurso à
invenção pura e simples, tão receada por Ginzburg (2007b, p. 334).
De algum modo, mesmo na literatura não existe um estatuto absoluto da invenção.
Toda criação é concatenada tanto por suas leis próprias quanto pelas leis do material sobre o
qual ela trabalha. Toda criação é determinada por seu objeto e sua estrutura e por isto não
admite o arbítrio e, em essência, nada inventa mas apenas descobre aquilo que é dado no
próprio objeto (BAKHTIN, 2008, p. 73).

Isso não significa que o objeto estético já se encontra pronto em algum lugar e
de algum modo à espera de ser descoberto, mas que pressupõe tanto um conteúdo (a
realidade do conhecimento e do ato), que ele apenas transfigura e formaliza (BAKHTIN,
1990a, p. 49 e 69), quanto os limites do material (palavra) e da forma (modo de isolamento

9
Não se debate, no presente artigo, a pertinência do princípio histórico da realidade defendido por
Ginzburg. Mas, apenas para suscitar uma inquietação, parece que o referido princípio aponta para uma objetividade
localizada para além do discurso de justificação, o que hermeneuticamente não se sustenta.
10
“A argumentação jurídica e as decisões judiciais passaram a ser compreendidas como atividades
interpretativas que permitem aos que as exercitam usar a sua criatividade, ainda que nos limites de valores que
são, num primeiro momento, estéticos” (CHUEIRI, 2007, p. 120).

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da realidade, conferindo-lhe algum acabamento). A originalidade e a singularidade do
campo estético não decorreriam, pois, dele criar sua própria realidade, mas de celebrar,
ornar e evocar uma realidade preexistente ético-cognitiva, apresentando-a transformada
(BAKHTIN, 1990a, p. 33).
Bakhtin não desconhece a existência de obras desconectadas com o mundo11.
Todavia, tais expressões de arte somam-se à vida de forma mecânica e externa, deixando,
assim, de constituir uma unidade interna e arquitetônica com o próprio homem. Naquele
que é considerado seu primeiro texto, datado de 1919, o filósofo russo, antecipando o
debate europeu sobre o papel da arte, ocorrido no pós-Segunda Guerra, já afirmava que
a “inspiração” não podia justificar a irresponsabilidade, pois a “inspiração que ignora
a vida é ela mesma ignorada pela vida, não é inspiração mas obsessão” (BAKHTIN,
2006a, p. XXXIV). Assim, somente na unicidade da responsabilidade é que arte e vida
poderiam se encontrar e mutuamente se iluminar, na medida em que uma ensejaria a
visão excedente12 sobre a outra, gerando um contínuo ato reflexivo – ou, segundo a
terminologia bakhtiniana, ato responsível (um misto de dialogicamente responsivo e de
eticamente responsável).
Além dessa própria impossibilidade estética de exclusão da esfera ética, o
enunciado jurídico ainda se submete a um complexo controle discursivo intersubjetivo,
que ocorre primeiramente dentro do processo, integrando o juiz e as partes, via
contraditório, mas que, depois, acontece em círculos comunicativos de deliberação
pública cada vez mais ampliados: os tribunais, para onde a parte insatisfeita recorre;
outros juízes e doutrinadores, quando a decisão isolada se converte em precedente
judicial ou referencial didático; a mídia, ampliando o alcance da decisão para um auditório
não jurídico; e, por fim, a sociedade em geral quando o caso se converte em assunto
cotidiano (VAN HOECKE apud MELLO, 2004, p. 190-191). Restringe-se, assim, a
possibilidade ficcional do direito – não a sua narratividade.
Uma terceira reação poderia apontar que o direito, mesmo conservando sua
dimensão ética, perderia sua capacidade crítica quando lido pelas lentes da teoria literária,

11
“Existem obras que realmente não tem nada a ver com o mundo, mas somente com a palavra ‘mundo’
num contexto literário, obras que nascem, vivem e morrem nas folhas das revistas, sem ultrapassar as páginas das
edições periódicas contemporâneas e sem nos conduzir a nada que se encontre além dos seus limites. O elemento
ético-cognitivo do conteúdo, que apesar de tudo lhes é indispensável como elemento constitutivo da obra de arte,
não é haurido diretamente por elas do mundo do conhecimento e da realidade ética do ato, mas, das outras obras
de arte, ou é construído por analogia com elas” (BAKHTIN, 1990a, p. 37-38).
12
“Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a
mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as partes de seu
corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, e sua expressão –, o mundo atrás dele, toda uma série
de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e
inacessíveis a ele. (...) Esse excedente da minha visão (...) é condicionado pela singularidade e pela insubstitubilidade
do meu lugar no mundo” (BAKHTIN, 2006b, p. 21).

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visto que esta enfatizaria sobremaneira os aspectos formais da poética, tais como: ritmo,
entonação, articulação, motivo, gênero, dentre outros. De fato, tais estudos seriam
possíveis. Todavia, apontando para uma análise composicional do material, eles
abordariam, apenas, um dos elementos constitutivos do objeto estético.
Um olhar que se volte para o todo da obra de arte deve considerá-la em sua forma
arquitetônica, percebendo, para além do material, a tensão constante entre forma e
conteúdo: este opõe-se àquela como algo passivo que dela precisa, “algo receptivo,
acolhedor, englobante”; porém, tão logo deixe de ser ativo na forma, “o conteúdo que
a forma aquietou e concluiu revolta-se e aparece na sua significação pura e ético-cognitiva”
(BAKHTIN, 1990a, p. 58). Assim, a percepção do objeto estético se dá por meio de uma
relação ativa que faz com que o observador ingresse como criador no que vê, ouve e
pronuncia, superando, assim, o caráter determinado, material e extraestético da forma –
“ela deixa de existir no nosso exterior como um material percebido e organizado de
modo cognitivo, transformando-se na expressão de uma atividade valorizante que penetra
no conteúdo e o transforma” (BAKHTIN, 1990a, p. 59).
Ronald Dworkin, por outras vias, ao estabelecer uma comparação entre a prática
jurídica e o exercício literário, valendo-se da metáfora13 do romance em cadeia (chain
novel), demonstrou quão produtiva para o direito pode ser tal tensão forma-conteúdo.
O romance em cadeia corresponderia a uma narrativa em série, escrita por um grupo
distinto de romancistas. Estabelecida a ordem da composição de forma aleatória, por
meio da sorte, cada autor escreveria um capítulo, ao fim do qual confiaria a continuidade
da obra ao escritor imediatamente subsequente.
Cada romancista, excepcionado o primeiro, teria a dupla responsabilidade de
interpretar e criar, visto que o capítulo que lhe caberia escrever precisaria partir dos
elementos gerais já previamente trabalhados pelos demais autores, tais como gênero,
trama, tema, objetivo, personagens, espaço, tempo. Deveria verificar, pois, a plausibilidade
de sua contribuição literária e, havendo mais de uma escrita possível, qual se justificaria
melhor no contexto geral da obra (DWORKIN, 1999, p. 276-278; 2005, p. 235-237).
Do mesmo modo, cada juiz, como um romancista dessa cadeia, diante da unicidade
dos casos que lhe são apresentados, extraídos da complexa e aberta realidade ético-
cognitiva do mundo, deve saber conjugar um conteúdo de justiça, sem desmerecer
formas de restrição garantidoras da segurança jurídica14, observáveis por meio de uma

13
Dworkin, embora tenha dado grande contribuição aos estudos jurídico-literários, considera a aproximação
entre direito e literatura como sendo metafórica. Afinal, segundo ele, o direito não pode ser pensado como um
“empreendimento artístico”, mas sim, como “empreendimento político” (DWORKIN, 2005, p. 239). De qualquer
modo, tal posicionamento já foi analisado anteriormente no presente artigo.
14
Tal tensão, na verdade, mais que opositiva é mutuamente constitutiva. A forma, ao estabelecer uma
certa segurança jurídica, pode igualmente garantir a justiça – a construção histórica do habeas corpus é exemplo
disso (cf. PAIXÃO, 2008, p. 29-30).

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postura dialógica15 quer com as decisões proferidas anteriormente (o que é mais forte
no sistema norte-americano), quer com um texto constitucional de referência (tal qual o
sistema brasileiro).
Não há, pois, como pensar a forma desconsiderando o conteúdo e vice-versa.
Uma postura contrária a tal entendimento parece ser tributária da mesma compreensão
que ignora o constante trânsito comunicacional verificável entre os distintos campos de
conhecimento, por considerá-los territórios bem determinados. Na verdade, todo ato
cultural está inteiramente situado sobre fronteiras. Fora delas, o ato torna-se vazio e
superficial; sobre elas, em contato com outros pontos de vista criadores, ele afirma sua
singularidade criativa, encontra seu fundamento e sua justificação sólida (BAKHTIN,
1990a, p. 29).
Bakhtin tinha plena compreensão dessa realidade, razão por que estudá-lo pode
se tornar “especialmente proveitoso quando os limites rigidamente estabelecidos entre
disciplinas acadêmicas e campos de estudo são redefinidos ou postos em xeque”16.
Parece, pois, cada vez mais, que a utilização das categorias bakhtinianas como
instrumental de análise de processos judiciais, como fez Ginzburg em relação aos autos
inquisitoriais, é plenamente justificável. Acima, porém, afirmou-se que o historiador
italiano equivocou-se quanto à diferenciação de tais categorias. Passa-se, pois, a explicar
no que consistiu tal equívoco.

3. O dialógico, o plurilíngue e o polifônico

Como forma de exemplificar o tipo de leitura adotado durante a pesquisa sobre


os benandanti, Ginzburg transcreveu, ao término de seu primeiro livro, os autos do
processo inquisitorial movido em face de Paolo Gasparutto e Batista Moduco. Obviamente
que, durante o interrogatório, alternavam-se enunciados de inquisidores e acusados;
alternância essa que, inclusive, se fazia notar graficamente nos documentos por meio do
sinal de “travessão”. Todavia, tal diálogo evidente, a que Bakhtin (1990b, p. 92) chama
de externo-composicional, não exaure a possibilidade dialógica do texto em prosa. Não
fosse assim, bastante restrita seria a análise da narratologia jurídica pelas categorias
bakhtinianas de teoria literária.
Na verdade, um determinado discurso pode se apresentar totalmente desprovido
de formas dialógicas externas de composição e, apesar disso (ou, até mesmo, indiferente
a isso), se caracterizar como fortemente dialógico em razão de uma dialogização interna

15
Tal dialogismo diacrônico deve se somar ao dialogismo sincrônico que ocorre, em cada caso concreto,
entre as partes e o juiz.
16
“(...) may be especially helpful when rigidly established limits between academic disciplines and fields
of study are redefined or put into question” (NIKULIN, 1998, p. 381). Tive conhecimento do texto de Nikulin
graças ao artigo Shakespeare e o direito de Vera Karam de Chueiri (2004).

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135
que se aperfeiçoa no objeto e(ou) na atitude responsivamente esperada do interlocutor.
Em relação ao objeto, todo enunciado já o encontra, de algum modo,
desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário,
iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e
penetrado por idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações.
Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso
de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações (BAKHTIN, 1990b, p. 86).

Assim, o discurso não encontra resistência apenas no objeto. Antes de atingi-lo,


toca milhares de fios dialógicos circundantes, cada qual capaz de revelar ou ocultar
algum ponto de vista sobre ele. A voz do autor que narra o objeto acaba sendo, em
última instância, impregnada por diversas ressonâncias, ecos e entonações anteriormente
proferidos sobre esse mesmo objeto. Apenas o Adão mítico poderia ter evitado por
completo essa mútua-orientação dialógica do discurso alheio sobre o objeto e transitado
por uma linguagem realmente neutra (BAKHTIN, 1990b, p. 88) – para todos os demais
discursos históricos e concretos, isso seria impossível.
Surge, assim, uma dialogicidade interna que acaba sendo potencializada quando
o discurso se orienta pela antecipação da atitude responsiva do destinatário. De certo
modo, a resposta ao discurso, quer seja uma aquiescência, quer seja uma objeção
motivada, mesmo quando meramente projetada, repercute na elaboração presente do
próprio discurso. “O falante penetra no horizonte alheio de seu ouvinte, constrói a sua
enunciação no território de outrem,” (BAKHTIN, 1990b, p. 91) considerando suas
expressões, acentos, entonações. Assim, para cada ouvinte real ou hipoteticamente
considerado, surge um discurso permeado pela presença do outro, com quem se dialoga
bem antes do efetivo diálogo.
Nesse sentido, a rigor, seria difícil apontar um texto monológico. Afinal, a todo
tempo, o homem interroga, ouve, responde, concorda, transita por palavras alheias: a
vida, por ela mesma, é um diálogo constante e inconcluso (BAKHTIN, 2006c, p. 348).
Um diálogo, aliás, que ocorre entre vozes muitas vezes dissonantes. Da análise da
pluralidade desses enunciados ditos nos mais diversos espaços dialógicos, fica perceptível
uma estratificação da linguagem que decorre dos gêneros utilizados (oratórios,
publicitários, jornalísticos, literários, dentre outros), do momento histórico e das condições
pessoais do falante (profissão, classe social, idade). Assim, se, por um lado, o enunciado
individual é marcado pelas forças de unificação da linguagem, que decorrem da vitória
histórica de um dialeto proeminente sobre os demais, da canonização de regras e de
seu ensino sistematizado, por outro, ele aponta para a resistência de um plurilinguismo,
ou seja, a multiplicidade de pontos de vista específicos e verbalizáveis sobre o mundo
que, expulsos da linguagem padronizada, nela re-entram pela enunciação do sujeito
historicamente situado.
Por causa dessa estratificação, a língua na qual se dá o dialogismo não pode mais
ser percebida como asséptica. Plena de entonações, a palavra da língua torna-se

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uma palavra semi-alheia. Ela só se torna ‘própria’ quando o falante a povoa com sua intenção,
com seu acento, quando a domina através do discurso, torna-a familiar com a sua orientação
semântica e expressiva. Até o momento em que foi apropriado, o discurso não se encontra em
uma língua neutra e impessoal (pois não é do dicionário que ele é tomado pelo falante!), ele
está nos lábios de outrem, nos contextos de outrem e a serviço das intenções de outrem; e é
lá que é preciso que ele seja isolado e feito próprio (BAKHTIN, 1990b, p. 100).

Tal palavra apropriável do outro pode se apresentar de dois modos: autoritária


ou interiormente persuasiva. A palavra autoritária recorda a palavra dos pais. Não sendo
passível de ser selecionada, é encontrada de antemão e, apenas, reconhecida. Embora
organize em torno de si massas de outras palavras, que a interpretam, que a exaltam,
que a aplicam de uma ou outra forma, a palavra autoritária permanece nitidamente
isolada em seu caráter monumental. Assim, ela entra na consciência verbal do sujeito
como compacta e indivisível, confirmável ou recusável na íntegra, não admitindo variações
livres e estilizantes (BAKHTIN, 1990b, p. 142-144).
Por outro lado, a palavra interiormente persuasiva revela possibilidades bastante
diferentes. Compreendida e livremente assimilada, a palavra do outro entrelaça-se com
a palavra do self, tornando-se metade própria metade alheia. Desse modo, livra-se da
condição de isolamento e imobilidade, potencializa sua capacidade criativa, adapta-se
ao jogo das fronteiras e permanece aberta, capaz de revelar continuamente todas as suas
“novas possibilidade semânticas em cada um dos seus novos contextos dialogizados”
(BAKHTIN, 1990b, p. 146).
Vê-se, pois, que o plurilinguismo social, revelador de uma pluralidade de visões
de mundo, acaba se convertendo em força centrífuga que, ao tensionar a linguagem em
seu processo de unificação, enriquece-a. No romance, segundo Bakhtin (1990b, p. 127),
tal diversidade acaba sendo esteticizada de vários modos: no relato do narrador ou de
um suposto autor, no discurso autônomo semântico-verbal das personagens ou, ainda,
pela intercalação de gêneros. Todavia, em quaisquer desses modos, o plurilinguismo se
mostra como o discurso de outrem na linguagem de outrem, mas de um modo capaz de
refratar as intenções do autor. A palavra, nesse caso, torna-se bivocal, serve
simultaneamente a dois locutores e exprime duas intenções diferentes: a intenção direta
da personagem que fala e a intenção refrangida do autor.
Semelhante fenômeno ocorreu nos processos inquisitoriais conforme demonstrou
Ginzburg (ainda que com impropriedade terminológica). Parafraseando Bakhtin, nos
autos sobre os benandanti “estão espalhadas palavras, pequenos termos, definições e
epítetos contaminados por intenções alheias, com as quais o inquisidor não se solidariza
inteiramente e através das quais ele refrange suas próprias intenções”17. O próprio

17
No original, a citação refere-se à linguagem de Turguêniev em seus romances: “estão espalhadas palavras,
pequenos termos, definições e epítetos contaminados por intenções alheias, com as quais o autor não se solidariza
inteiramente e através das quais ele refrange suas próprias intenções” (Bakhtin, 1990b, p. 120).

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desconhecimento sobre o real significado do termo benandante e, por consequência, de
uma religiosidade popular complexa a ele vinculada, fez com que os inquisidores
registrassem nos interrogatórios uma outra visão de mundo, distinta daquela das classes
dominantes, quer quando transcreviam integralmente a fala dos acusados, quer quando
a re-elaboravam sem falsear o que havia sido dito18. Os discursos de outrem na linguagem
de outrem registrado nos autos inquisitoriais fizeram deles textos plurilíngues, permitindo
com que o historiador rastreasse uma diversidade religiosa então existente – diversidade
que não se mostrava perceptível na palavra autoritária dos tratados demonólogos.
Desse modo, não apenas os romances, mas também os processos judiciais podem
se mostrar, para além de dialógicos, plurilíngues. A questão, nesses casos, é o modo
como a linguagem do outro é considerada. Nos autos inquisitoriais, a surpresa dos
inquisidores fez com que o registro mantivesse a substancialidade do discurso alheio.
Nos processos judiciais ordinários, corre-se o risco de que a retórica torne a bivocalidade
superficial, limitando-a a vitórias puramente verbais sobre a palavra, degenerando-a
num jogo formalista de linguagem que se centra na palavra em si divorciada de seu
contexto (BAKHTIN, 1990b, p. 152-153).
A superação de tal risco leva à percepção das várias vozes que se fazem audíveis
em qualquer processo e de que maneira sua interação dialógica – ou o contraditório,
caso se queira utilizar uma linguagem própria do campo jurídico – é que conduz o feito
como seu elemento fundamental e inafastável. À luz desse novo paradigma, a sentença
judicial não é uma narrativa escrita pelo juiz com exclusividade de linguagem. Na medida
em que ele retoma argumentos e narrativas das partes que figuram no processo, quer
como autores, quer como réus, ainda que dizendo-os novamente ao seu modo, as palavras
da decisão são apenas parcialmente suas – uma metade de todas elas proveio do tecido
dialógico de que é feito o horizonte histórico, o contexto social, o ordenamento jurídico
e, principalmente, o processo judicial.
Ampliando o alcance jurídico da contribuição bakhtiniana, Mariela Vargova
valeu-se da distinção entre palavra autoritária e interiormente persuasiva para questionar
qual seria a compreensão atual acerca de um enunciado constitucional. Afinal, uma
abordagem do texto constitucional como palavra autoritária levaria a uma compreensão
originalista do mesmo, vinculando-o sempre ao passado e à intenção dos que o fizeram.
A Constituição, nessa perspectiva, ganharia um status de documento historicamente
distante e normativamente sagrado, de olhos fechados ao horizonte ético-cognitivo do
contexto no qual seria lido e avesso, pois, a novas práticas interpretativas sociais
(VARGOVA, 2007, p. 422).

18
“(...) relatar um texto com nossas próprias palavras é, até certo ponto, fazer um relato bivocal das
palavras de outrem; pois as ‘nossas palavras’ não devem dissolver completamente a originalidade das palavras
alheias, o relato com nossas próprias palavras deve trazer um caráter misto, reproduzir nos lugares necessários o
estilo e as expressões do texto transmitido” (BAKHTIN, 1990b, p. 142).

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138
Do contrário, a percepção da Constituição como plurilíngue permitiria pensá-la
como texto heterogêneo e aberto, pluralizando o conceito de normatividade constitucional,
além de conectá-la diretamente a lutas e práticas de transformação sociais. A ostensiva
dialogicidade do enunciado constitucional abriria possibilidades semânticas infinitas,
tornando-o sensível a novos discursos e demandas sociais, mantendo-o em um estado
permanente de criatividade e produtividade – convertendo-o, em resumo, numa constante
ameaça a qualquer concepção autoritária, unitária, hierárquica e excludente da sociedade,
da arte e da vida (VARGOVA, 2007, p. 423).
Essa última percepção, bastante convergente com a postura admitida por uma
linha de pesquisa surgida na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, não
referenciada na teoria literária19 e chamada Direito Achado na Rua, demonstra quão
eticamente comprometida, crítica e oportuna pode ser uma leitura bakhtiniana do universo
jurídico, o que mais uma vez justifica o presente artigo. Aclarada a distinção entre
dialogismo e plurilinguismo, resta, por fim, explicar o que seja polifonia para dirimir o
equívoco de Ginzburg.
Segundo Bakhtin, foi Dostoiévski quem deu origem ao romance polifônico, um
gênero inteiramente novo marcado por uma multiplicidade de vozes e consciências
independentes e imiscíveis que, não objetivadas, participam do grande diálogo romanesco
em pé de absoluta igualdade. Nessa polifonia, o autor não reserva para si qualquer
excedente de visão e, por consequência, não dá à personagem acabamento ou
conclusibilidade. Do contrário, todas as qualidades objetivas estáveis da personagem –
“a sua posição social, a tipicidade sociológica e caracterológica, o habitus, o perfil
espiritual e inclusive sua aparência externa” – ou seja, elementos de que se serve o autor
para criar uma imagem rígida e estável da personagem, “tornam-se objeto de reflexão
da própria personagem e objeto de sua autoconsciência” (BAKHTIN, 2008, p. 53).
O leitor e o autor não sabem nada a mais do que sabe a própria personagem
sobre si própria. Tal autoconsciência faz com que a última palavra sobre o herói caiba
a ele, o que o insere num plano ético de horizonte aberto, insolúvel e inconcluso. Assim,
as personagens dialogicamente se constroem em discursos bivocais, podendo o autor
apenas opor às mesmas a consciência de um outro com quem elas possam dialogar.
Embora o autor seja um organizador20, ele não se põe acima do diálogo numa posição

19
Não são ignoradas as citações literárias nos escritos de Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar e José
Geraldo de Sousa Júnior, alguns dos autores utilizados pela referida linha de pesquisa. Porém, a preocupação em
estabelecer uma crítica ao Direito sem se colocar fora dele fez com que as referências à literatura poucas vezes
avançassem para densas referências à teoria literária – a exceção que confirma a regra é Luis Alberto Warat (2000)
que trouxe para o direito o conceito bakhtiniano de carnavalização.
20
“O todo final em Dostoiévski é dialógico. Todas as personagens centrais são participantes do diálogo.
Escutam tudo o que as outras dizem a seu respeito e a todas respondem (sobre elas nada é dito à revelia ou a portas
fechadas). E o autor é apenas um participante do diálogo (o seu organizador)” (BAKHTIN, 2006c, p. 352).

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superior e decisiva, como se este se desse num passado concluído: “isto transformaria
imediatamente o diálogo autêntico e inacabado em modelo material e acabado do diálogo,
modelo comum a qualquer romance monológico21” (BAKHTIN, 2008, p. 72). Desse
modo, ele apenas garante para si o mínimo indispensável de excedente pragmático,
puramente informativo e necessário à condução da narração (BAKHTIN, 2008, p. 83).
Partindo dessa percepção do romance polifônico, em que o outro narrado não é
um ele, mas um tu plenivalente, ou seja, “o plenivalente eu de um outro (um tu és)”, fica
difícil vislumbrar polifonia nos autos inquisitoriais. Os inquisidores não respeitavam os
acusados como autoconsciências, punham-se acima do diálogo numa posição superior
e decisiva, mantinham para si a última palavra sobre a caracterização do outro como
feiticeiro, dando-lhe um acabamento muitas vezes questionável. Na verdade, o
plurilinguismo nos processos sobre os benandanti não garantiu uma polifonia, pois esta
exige observância da alteridade, uma postura discursiva de igual respeito e consideração
e o direito de cada um participar efetivamente da narrativa sobre si mesmo.
Ampliando, porém, a reflexão para o campo do direito resta o questionamento:
as decisões judiciais como narrativas jurídicas podem ser polifônicas? De fato, o juiz não
parece ser apenas um organizador do diálogo. As partes que litigam entre si em juízo
vivem plenamente no plano ético-cognitivo, orientando seus atos no acontecimento aberto
da existência. Porém, a decisão judicial, como narrativa jurídica (e objeto estético),
precisa promover um corte nesse acontecimento inconcluso, a fim de que o acabamento
promova a decidibilidade necessária. Obviamente que a polifonia pode (e deve) se colocar
como um horizonte para o processo em si: isso radicalizará o dialogismo e uma atitude
mútua respeitosa e responsável entre todos os atores judiciais, bem como evitará que a
esteticização das partes, que entram na narrativa jurídica como personagens, leve à
objetivação pura e simples delas, reduzindo-as a uma imagem de si forjada sem a
contribuição de suas autoconsciências.
Ocorre, porém, que em algum momento o juiz precisa narrar os fatos e dar-lhes
conclusibilidade, o que compromete a plena realização da polifonia. Como o acabamento
só se realiza na medida em que o autor possui um substancial excedente de visão em
relação a todas as personagens de sua narrativa, o juiz acaba por não se colocar no
mesmo patamar das partes que julga. Desse modo, mais do que gerar uma compreensão
relativa à maneira como se tece tal trama nas instâncias judiciais, legitimando-a, a
“polifonia” revela o quanto uma categoria da teoria literária pode apresentar potencialidade
crítica para a reflexão do direito. Afinal, se a narrativa jurídica proferida pelo Judiciário

21
Embora muitas vezes conste no referido livro a dualidade monológico/dialógico, o tradutor Paulo Bezerra
faz questão de ressaltar em algumas passagens que monológico equivale a homofônico, em oposição a polifônico.
Afinal, é possível um romance homofônico e dialógico (no sentido acima explicitado de dialogismo).

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140
não consegue garantir a absoluta igualdade polifônica, talvez seja evidente a necessidade
cada vez maior de se estimular formas alternativas e horizontais de solução de conflitos,
tais como a mediação.

4. Inquietações inconclusas

Não se pretende, ao final do presente artigo, apresentar um rol das sínteses


alcançadas. Afinal, as conclusões foram se construindo de tal modo dialógico no decorrer
da argumentação que tão somente enumerá-las poderia gerar demasiada simplificação.
Pretende-se, porém, restando demonstrada a proficuidade de uma teoria narrativa do
direito, bem como a pertinência metodológica de leitura das decisões e autos judiciais à
luz das categorias bakhtinianas da teoria literária, apontar algumas inquietações quanto ao
mais evidente autor jurídico, deixando aberta tal investigação para futuras incursões.
Se o autor da narrativa não-polifônica é caracterizado por sua exotopia, seu
excedente de visão em relação às personagens, o que lhe permite envolvê-las e seus
horizontes ético-cognitivos dando-lhes acabamento, no campo do direito o principal autor
será o Supremo Tribunal Federal (STF). Afinal, a Corte Constitucional, posta
hierarquicamente numa posição superior aos demais juízes e tribunais, detém maior
poder de conclusibilidade em relação às narrativas jurídicas produzidas, caracterizando-
se, assim, como autor de maior visão transgrediente no Poder Judiciário22.
Todavia, não há, na verdade, uma única narrativa escrita pelo STF a cada nova
decisão. Haveria se os casos fossem precedidos de um debate argumentativo e que, da
orientação vencedora, decorresse um texto coeso e único, ainda que com ressalvas das
divergências. Todavia, pela atual lógica da corte, cada nova decisão pode gerar onze
narrativas distintas, uma para cada Ministro que a integra. Tal situação, embora apontada
como inconsistente por alguns autores23, revela um aspecto extremamente sutil da relação
autor-personagem nas decisões da Corte.
Segundo Bakhtin (2006b, p. 4-6; 2006d, p. 399), o autor-criador é encontrado
no momento inseparável em que o conteúdo e a forma se fundem intimamente. Durante
a elaboração da obra, a personagem vai se desvelando, dialogicamente respondendo à

22
Não se desconhece o fato de que, numa sociedade aberta, todas as forças pluralísticas públicas constituem-
se forças produtivas de interpretação, pré-intérpretes fundamentais no processo de descoberta e de obtenção do
direito (HÄBERLE, 2002, p. 41-43). Todavia, metodologicamente, o presente trabalho orienta-se pelas narrativas
jurídicas produzidas pelo Poder Judiciário, assim como Ginzburg se orientou pelos autos inquisitoriais.
23
A título de exemplo, cita-se: “Na realidade o que o sistema jurídico necessita são decisões que
correspondam a um maior consenso decorrente de um intenso processo de discussão e deliberação da Corte.
Evidente que sempre deverá haver espaço para votos discordantes e opiniões complementares, mas a maioria
deveria ser capaz de produzir uma decisão acordada, um acórdão, que representasse a opinião do Tribunal. Isto
daria mais consistência a decisões judiciais de grande impacto político” (VIEIRA, 2008, p. 75).

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141
posição emocional-volitiva do autor até que se constitua de modo estável e integral24.
Concluído o objeto estético, nada tem o artista a dizer sobre seu processo de criação,
todo situado no produto criado; resta a ele apenas indicar a própria obra. Ao falar para
além da obra criada, substitui sua atitude efetivamente criadora, não vivida por ele na
alma mas realizada na obra, por uma atitude nova, receptiva e contemplativa daquilo
que criou. Nesse momento, quem fala é o autor-pessoa: o autor-criador, presente no
todo da obra, já conquistou sua autonomia.
Esse autor-criador, também chamado de autor primário, embora manifesto no
todo daquilo que criou, não se situa internamente na própria narrativa – afinal, em
relação à obra, ele é a natureza não criada que cria. O autor secundário ou imagem do
autor é que, natureza criada que também cria, se insere na obra de forma imanente25.
“O autor secundário, mesmo sendo imagem, é imagem de autor que cria de dentro da
própria obra, e ao mesmo tempo é personagem que integra a estrutura da obra, cria
personagens, dialoga e interage com elas” (BEZERRA, 2005, p. 77). Como o “autor-
criador não pode ser criado na esfera em que ele próprio é o criador” (BAKHTIN, 2006d,
p. 400), autores primário e secundário não convivem no mesmo espaço da criação: na
narrativa, só a imagem do autor é visível, na condição dúplice de personagem criado e
autor de personagens e tramas.
Em relação às narrativas jurídicas, a pluralidade de votos proferidos26 em cada
caso submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal parece convertê-lo
em autor secundário formalmente exigido em todas essas situações, ao passo que os
Ministros permaneceriam, no mais das vezes, na condição de autores primários. Como
autor secundário de uma trama, o STF acaba por ecoar a voz do próprio autor primário,
o que não parece tão problemático. Mas, na medida em que ele entra na trama como
um personagem criado, invocado sucessivamente em cada narrativa e passível de ser
desvelado progressivamente a cada uma delas, surge a pergunta: quem é o guardião da
Constituição? Quem é esse autor/personagem, quais suas características e como elas
foram sendo estabilizadas de forma encadeada desde a redemocratização?

24
“Quando Charles deixou Sarah na beira do penhasco, ordenei-lhe que fosse diretamente para Lyme
Regis. Mas ele não foi; sem motivo algum, voltou-se e foi para a Leiteria. Ora, o que é isso, você dirá – o que
realmente quero dizer é que, enquanto escrevia, passou pela minha cabeça que talvez fosse mais engenhoso fazê-lo
parar para tomar leite... e encontrar Sarah outra vez. Isso certamente é uma explicação do que aconteceu, mas só
posso dizer – e sou a prova mais confiável – que a ideia claramente pareceu vir de Charles, não de mim” (FOWLES
apud DWORKIN, 2005, p. 232).
25
“Podemos citar os seguintes exemplos de autores secundários ou imagens de autor na literatura brasileira:
Aires em Esaú e Jacó, e Brás Cubas, o defunto autor de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis;
Paulo Honório em São Bernardo, de Graciliano Ramos; Rodrigo S.M. em A hora da estrela, de Clarice Lispector”
(BEZERRA, 2008, p. 77).
26
Ainda que um determinado caso possa ser decidido com um voto único ratificado pelos demais Ministros,
a pluralidade de narrativas sempre permanece, ao menos, como possibilidade.

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142
Uma resposta adequada exigiria uma retomada do debate constituinte de 1987-
1988, que culminou na escolha do STF como guardião constitucional, bem como das
narrativas que se seguiram nas décadas seguintes, especialmente as construídas por
decisões proferidas pela própria Corte Constitucional a respeito de sua competência
jurisdicional e as decorrentes de emendas constitucionais reformadoras do Poder
Judiciário aprovadas pelo Congresso Nacional. Tal acervo disponível deveria ser analisado
por meio de uma leitura minuciosamente detida.
Ginzburg, esclarecendo tal método, cita como inspiradora a participação em um
seminário ministrado por Delio Cantimori no qual, durante uma semana inteira, foram
estudadas doze linhas de um texto de Burckhardt – aliás, tão inspiradora que ele admite
utilizar a mesma estratégia atualmente27. Óbvio que a prática da leitura lenta não é
importante em si mesma, mas pelo favorecimento de uma observação das entrelinhas,
dos discursos bivocais e do plurilinguismo reveladores de um dialogismo interno, fazendo
com que a atitude de como se debruçar sobre o texto integre a própria metodologia de
estudo do texto, assim como desenvolvido pelo historiador no caso dos benandanti.
Em recente trabalho, Paulo Maia (2008) demonstrou como uma decisão do STF,
em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, apontava para a
autocompreensão da Corte Constitucional como tribunal político. O artigo partia de um
referencial luhmaniano e procurava estabelecer os riscos de uma indistinção entre os
sistemas político e jurídico. Todavia, o que o autor chama de autocompreensão parece,
conforme acima demonstrado, mais um desvelamento da personagem dado pelo autor-
criador no processo de tecedura da trama constitucional. Rastrear que outras características
já foram construídas nessa narrativa, bem como as circunstâncias em que o foram, pode
clarificar os contornos dessa personagem, a quem se reconhece legitimidade de autor na
arte da vida democrática. Sobre isso, pretendo escrever numa outra ocasião.

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27
“Recentemente, comecei um seminário na UCLA dizendo aos meus alunos: ‘Na Itália há um novo
movimento chamado Slow Food, em oposição ao Fast Food. Meu seminário será em Slow Reading’. (...) Realmente
gosto muitíssimo da idéia de leitura vagarosa” (GINZBURG, 2000, p. 275).

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da Faculdade de Direito
Faculdade de Direito- -UFPR,
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Recebido: março 2010


Aprovado: abril 2011

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A IDEIA DE AUTONOMIA EM LOCKE.
FELICIDADE E JUSNATURALISMO. DISPOSITIVO
METAFÍSICO-RELIGIOSO E SECULARIZAÇÃO.

THE IDEA OF AUTONOMY IN LOCKE. HAPPINESS AND NATURAL LAW.


METAPHYSICAL APPARATUS AND SECULARIZATION.

Manuel Afonso Costa*

RESUMO: É verdade que Locke oscila entre uma tradição intelectualista e realista que lhe vem de
Hooker e uma tradição voluntarista, afim da sua própria formação religiosa. Num plano, o da
fundamentação última das obrigações, triunfa a segunda, mas no plano das decisões práticas, Locke
comporta-se como um puro racionalista.A grande originalidade de Locke reside no modo ecléctico
como ele utiliza os conceitos gregos de phronesis, sophrosyne e epoché, um essencialmente epicurista
e aristotélico e o outro proveniente da cultura do cepticismo; e, o que é talvez o mais importante
ainda, o modo como ele integra nesta preocupação, a da suspensão do juízo e da acção, o conceito
de «uneasiness».

PALAVRAS-CHAVE: «Uneasiness». Felicidade. Heteronomia. Remunerações e Penas.

ABSTRACT: It is true that Locke is between an intellectual and realist tradition that comes from Hooker
and a voluntarist tradition, akin to his own religious upbringing. In the plan of the ultimate grounding
of the bonds, the second triumph, but in terms of practical decisions, Locke behaves like a pure
rationalist. The great originality of Locke lies in the eclectic way as he uses the Greeks concepts of
phronesis, sophrosyne and epoché, the first and the second, both essentially Aristotelian and Epicurean
and the other from the culture of skepticism, and, what is perhaps most importantly, how it integrates
this concern, the suspension of court action and the concept of uneasiness.

KEYWORDS: «Uneasiness». Happiness. Heteronomy. Rewards and Punishments.

* Doutorado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa
(UNL), na área de História e Teoria das Ideias, na especialidade de História e Teoria dos Paradigmas. Membro do
Centro de Estudos e Desenvolvimento, Direito e Sociedade (CEDIS) da Faculdade de Direito (FD) da Universidade
Nova de Lisboa (UNL).

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1. Introdução

A primeira sensação que se tem quando se passa pela primeira vez pelo
pensamento de Locke e, em particular, no que diz respeito às questões jurídicas, através
dos Questions Concerning the Laws of Nature, é a de que sobrevivem ainda muitos
elementos tomistas na sua obra. São geralmente atribuídos à importância que Hooker1
desempenhou na formação jurídico-política do grande empirista inglês. Mas quando se
passa uma segunda vez pelos textos a sensação altera-se e aproxima-se daquilo que
Haakonssen disse magistralmente: “Locke originally thought of natural law in traditional
voluntarist-cum-realist terms” (Haakonssen, 1996, p. 51). E é a fusão entre realismo
e voluntarismo que pode provocar alguma perplexidade. Mas o realismo neste caso
significa paradoxalmente artificialidade. Haakonssen toca o cerne do pensamento jurídico
lockeano quando diz: “like Pufendorf, Locke argues, as part of his criticism of innate
ideas, that moral phenomena are created by moral agents and imposed upon nature,
which, in abstraction from such activity, is value-neutral” (p. 52).
Mas a verdade é que não é este o núcleo duro do pensamento de Locke. Ver-
se-á mais à frente onde se situa o nó residual que compromete muito mais Locke com
o nominalismo do que com o realismo. Darwall está já mais perto da verdade quando
diz que Locke se situa no meio termo (Tal como Culverwell e Suarez) entre os (realist
natural lawyers) teóricos realistas do direito natural que consideram que a lei natural
moral existe e obriga intrinsecamente e os voluntaristas radicais que consideram que
a obrigação depende inteiramente da vontade arbitrária de Deus (Darwall, 1995,
p. 24). Pessoalmente partilho esta ideia conquanto reconheça que Locke é muito

1
“The most famous and most influential of all modern natural right teachers was John Locke. (...) His
authorithy seems to be Richard Hooker, (...) Now Hooker’s conception of natural right is the Thomistic conception,
in its turn, goes back to the Church Fathers, who, in their turn, were pupils of the Stoics, of the pupils of pupils of
Socrates. we are then apparently confronted with an unbroken tradition of perfect respectability that streches from
Socrates to Locke. But the moment we take the trouble to confront Locke’ s teaching as a whole with Hooker’s
teaching as a whole, we become aware that, in spite of a certain agreement between Locke and Hooker, Locke’s
conception of natural right is fundamentally different from Hooker’s”, in Strauss 1965: 165. De facto parece um
paradoxo, mas não é. A corrente contínua que vai desde Socrates até Locke quebrou-se afinal. De facto já se tinha
começado a quebrar com Hobbes, na opinião do autor, mas em minha opinião o começo deve atribuir-se a Grócio
e até por maioria de razão. Mas é justo reconhecer que a ruptura com a tradição metafísica realista e intelectualista
é muito maior com Hobbes do que com Grócio. Também não é menos verdade que a ligação estrutural entre o
empirismo e o protestantismo, sobretudo influenciado pelo nominalismo, gerou muitas vezes uma consequência
voluntarista que no plano jurídico se traduziu pela assunção de posições positivistas que empobrecem não só o
próprio domínio jurídico, com a reflexão ético-moral que lhe anda associada, mas sobretudo porque tanto o
voluntarismo quanto o positivismo reduzem a margem de manobra para o homem, sem a qual não se pode falar
completamente em secularização e em autonomia. Enquanto existir a mínima persistência heterónoma no quadro
de uma reflexão tanto moral quanto social e política, é ainda alguma coisa da velha armadura fundacionista teológico-
Metafísica que se mantém, ainda que com outros alicerces ideológicos, não necessariamente melhores que os
anteriores. O triunfo completo da secularização e da autonomia pressupõe a separação radical do domínio teológico,
e portanto a superação completa de todos os elementos extrínsecos transcendentes ou transcendentais.

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convincentemente voluntarista quando o é e menos convincente quando cede ao
realismo moral e jurídico.
A convicção que resulta da leitura de Locke é a mesma que Haakonssen exprime,
quer dizer, a convicção de que o seu realismo é superficial e tem mais a ver com uma
linguagem aprendida com Hooker e da qual Locke não teria tido a capacidade suficiente
para se desfazer. Mas o que me parece mais importante é que Locke permite a sobrevivência
de dois dispositivos completamente distintos. Eles seriam contraditórios se estivessem
juntos, mas uma vez separados podem aceitar-se como momentos distintos da análise social
ou mesmo como correspondendo a timings diferenciados. Neste plano a obra de Locke
apresenta muitos pontos de proximidade estratégica com a obra de Pufendorf, que aliás
reiteradamente elogiou, ou seja, a coabitação de posições voluntaristas com uma ideia de
fundo racional e científica para a compreensão do fenômeno jurídico-político.
Por outro lado ainda, a dívida de Locke relativamente a Hobbes é explícita, tal
como viu Leo Strauss2. O empiro-naturalismo de Locke é da mesma família epistêmica
que o empiro-naturalismo hobbesiano, sendo que a posição de Hobbes é sempre menos
ambígua e a separação entre o seu voluntarismo meramente teológico e a racionalidade
da sua construção política é absolutamente nítida e evidente. Em Hobbes sente-se sempre
que o voluntarismo teológico é coisa para Igreja ver e em boa verdade não tem nada a
ver com o seu sistema de pensamento, racional, empírico e claramente laico e secularizado.
São duas instâncias que quase não se tocam. Em Locke não é bem assim e o seu
hiperaugustianismo, denunciado por Taylor, por Schneewind, por Haakonssen e por
muitos outros, não deixa margem para dúvidas e contaminou explicitamente o seu
pensamento ético-jurídico3.

2. Externalismo e voluntarismo em Locke

Eu, por mim, considero Locke um voluntarista e por via disso, quer dizer da
posição extrínseca que toma relativamente ao fundamento da obrigação, um externalista.
Desde o fundamento moral relativamente ao bem e ao mal que é definido a partir da
questão do prazer e da dor até à ameaça consequente de rewards and punishments que
se percebe que se realiza em Locke o clássico enlace entre o empirismo (sensista), o

2
“The period between Hooker and Locke had witnessed the emergence of modern natural science, of
nonteleological natural science, and therewith the destruction of the basis of traditional natural right. The man who
was the first to draw the consequences for natural right from this momentous change was Thomas Hobbes”, in
Strauss 1965: 165. E que influenciou, muito em particular, Locke, acrescentou Strauss.
3
“The Lockean (orthodox christianity) has Puritan roots, which means its background is in a hyper-
Augustinian theology”. Exprime-se no homem uma espécie de “naturalistic transposition of the doctrine of original
sin”. Mas muito mais importante é o facto de que “he shares with the Puritans theological voluntarism. God’s law
is what he decides it is, and God’s law determines the good”, in Taylor 1989: 248.

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puritanismo (agostiniano) e o voluntarismo (positivista) e é claro que este dispositivo não
contempla a autonomia humanista como objectivo central, nem podia contemplar, seja
feita justiça4.
Mas o que perturba a tranquilidade do paradigma é que Locke, à semelhança de
Hobbes, logra uma inesperada margem de manobra para a intervenção autônoma dos
homens. E consegue mesmo numa área tão sensível quanto a área ético-moral e ético-
jurídica a assunção de uma posição internalista e autônoma. É como se o autor separasse
radicalmente as duas esferas: a da fundamentação, que é externalista e mesmo
transcendente e a da gestão dos recursos a partir de uma base pré-estabelecida. E essa
é orientada pela razão, pelo poder da suspensão do juízo e da acção e pressupõe uma
practical reasoning agency, no interior da qual todas as motivações, todos os cálculos e
todos os processos são de natureza racional, prática e prudencial e em momento nenhum
têm em conta senão aquilo que é o melhor para o agente na urdidura do seu bem e da
sua felicidade. É como se o agente tomasse o freio nos dentes e a partir de um determinado
momento não tivesse contas a dar a não ser a si mesmo. Então estaríamos na presença
de um processo puramente secular e autónomo5. Darwall considera justamente por causa
disso Locke um autonomista internalista de autodeterminação na linha de um neoplatônico
como Cudworth6. Darwall abstrai-se do externalismo de fundo e do externalismo ao nível

4
Só em pensamentos menores, como é o caso do pensamento da maior parte dos autores portugueses
do século XVIII, é que é possível encontrar combinados elementos ideológicos que são completamente contraditórios
entre si e portanto incompatíveis.
5
Como se irá ver, essa autonomia é mais aparente do que real. Pode quando muito falar-se de uma
semiautonomia e mesmo essa na perspectiva de que ocorre homologicamente, quer dizer num mundo duplicado.
Por um lado os homens exercem autonomamente a capacidade de reflectir sobre aquilo que lhes interessa, mas
isso ocorre no seio de uma crença mais abrangente, de que estamos sob as leis de Deus e de que lhes devemos
obediência. Porque em última análise a lei de Deus é “the only touchstone of moral rectitude”, in Locke 1995:
280 [1690]. Ou como Locke disse logo na introdução: “Hence naturally flows the great variety of opinions concerning
moral rules which are to be found amongst men, according to the different sorts of happiness they have a prospect
of, or propose to themselves; which could not be if practical principles were innate, and imprinted in our minds
immediately by the hand of God. I grant the existence of God is so many ways manifest, and the obedience we owe
him so congruous to the light of reason, that a great part of mankind give testimony to the law of nature; but yet I
think it must be allowed that several moral rules may receive from mankind a very general approbation, without
either knowing or admitting the true ground of morality; which can only be the will and law of a God, who sees men
in the dark, has in his hand rewards and punishments, and power enough to call to account the proudest offender”,
in Locke 1995: 29 [1690].
6
Mesmo assim Darwall cuida-se de não exorbitar na terminologia, uma vez que guarda para autores
como Shaftesbury, por exemplo, a dimensão da autorregulação e do autogoverno. Ora, só há autonomia completa
se o agente tiver dentro de si não apenas os instrumentos para se auto-determinar em função de premissas e
pressupostos que já o enformam, mas se, muito mais radicalmente, for ele o depositário de todos os intrumentos
de ponderação e decisão. Para Locke, a moralidade obriga-nos porque é prescrita com autoridade, a partir de um
ser superior, exterior ao eu. (…) Mas muito mais claramente que em Locke ou Cudworth, autores como, Shaftesbury
conceberam a autodeterminação como auto-regulação e auto-governo. E Shaftesbury limita-se a inaugurar uma
tradição que culminará no intuicionismo moral da razão ou do senso que já analisámos detalhadamente. (…) Em
Shaftesbury o governo moral é auto-governo. A autoridade existe mas permanece no interior do agente. Assim ele

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da obrigação para valorizar essencialmente o plano da motivação e ainda mais o plano
da decisão racional prática.

3. A presença de Epicuro na propedêutica moral de Locke.


Prazer e felicidade

O ponto de partida no pensamento de Locke é, tal como em Hobbes, a problemática


do bem e do mal, por um lado, do prazer e da dor, por outro lado. Mas o que estabelece
o nexo entre as duas instâncias são dois conceitos absolutamente nucleares: happiness
e uneasiness (felicidade e desconforto ou insatisfação).
Antes de passar para o ponto que articula os vários planos do problema interessa
deixar já bem claro que a posição de Locke é epicurista no plano da fundamentação do
problema do bem e do mal e sensista no plano gnoseológico em convergência, de resto,
com o seu epicurismo de base. Quer isto dizer que os homens recebem através da
sensação, e só da reflexão depois, as ideias de prazer e de dor, que são estas ideias que
determinam as ideias de bem e de mal, o que significa, desde logo que o homem não
as possui nem possui nenhum órgão intelectual ou sensível capaz de as criar ou produzir
ou captar directamente a partir de essências à margem da experiência sensitiva em
contacto com o mundo: “Things then are good or evil only in reference to pleasure and
pain. That we call ‘good’, which is apt to cause or increase pleasure, or diminish pain,
in us; or else to procure or preserve us the possession of any other good, or absence of
any evil. And, on the contrary, we name that ‘evil’, which is apt to produce or increase
any pain, or diminish any pleasure, in us; or else to procure us any evil, or deprive us
of any good” (Locke, 1995, p. 160 [1690]).
A posição não difere muito da posição de Hobbes. Em boa verdade não difere
nada se se tiver em conta que imediatamente a seguir Locke tratará de dizer que as
paixões que são movidas pelo bem e pelo mal, são de facto movidas pelo prazer e pela
dor. Se se identificarem as paixões em Locke com o desejo em Hobbes, chega-se à
conclusão que a fórmula é a mesma, isto é o homem chama bem àquilo que deseja e

interioriza a normatividade ao interiorizar a autoridade. Fundamental: Só se o agente observa as suas melhores


auto-prescrições como sendo autoritárias e obrigatórias, e actua de acordo com elas, a actividade auto-determinada
é possível. Autodeterminação, para se conformar com as exigências da autonomia, requer auto-governo. E este
requer que o agente seja predominantemente movido, e a sua conduta determinada, por uma concepção normativa
que ele aceita. Pode-se chamar a isto uma normativa teoria da vontade, cf. Darwall 1995: 205, 206.
É neste ponto que Shaftesbury mais se aproxima de Kant uma vez que esta vontade racional de Shaftesbury
permite defender a ideia já kantiana de que a moralidade obriga porque uma vontade racional livre age debaixo
de uma ideia de lei que no entanto o agente ele próprio produziu. Ele é lei para si mesmo. Tudo o que tenho tentado
dizer no sentido de que se perceba a minha ideia de autonomia está muito bem resumida nesta última proposição:
no quadro da autonomia o agente produz a lei e depois torna-se a lei para si mesmo, porque se submete à lei que
ele próprio produziu. Por isso venho considerando o pacto como o instrumento social que exprime na realidade a
natureza teorética da autonomia.

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151
chama mal àquilo de que sente aversão, porque é óbvio que deseja o bem e sente aversão
pelo mal, mas sempre em última instância porque identifica o bem com o prazer e o mal
com a dor. E de resto, no amplo campo das paixões inventariado por Locke, logo se
percebe que é o desejo que é responsável pela uneasiness, quer dizer pelo sentimento
de insatisfação e desconforto. Ora, é a insatisfação do desejo que determina a vontade,
sendo que é o bem, o maior bem, que determina justamente essa insatisfação.
Portanto e por ordem: É a existência de qualquer coisa como o maior bem que
estimula um sentimento de insatisfação e desejo7, este sentimento mobiliza a vontade e
a vontade põe em marcha os mecanismos tendentes à obtenção desse maior bem. Só
então entra a razão, prática e auxiliar, para procurar os melhores caminhos e evitar os
maus. Ora, só falta designar esse greatest good pelo seu termo adequado, felicidade8.
Vamos assim começar pela felicidade uma vez que é a sede de felicidade que
estimula a autoconsciência da insatisfação:
“All desire Happiness. — If it be farther asked, what it is moves desire? I answer, Happiness,
and that alone. «Happiness» and «misery» are the names of two extremes, the utmost bounds
whereof we know not: it is what «eye hath not seen, ear hath not heard, nor hath it entered into
the heart of man to conceive». But of some degrees of both we have very lively impressions,
made by several instances of delight and joy on the one side, and torment and sorrow on the
other; which, for shortness’sake, I shall comprehend under the names of «pleasure» and «pain»,
(...) Happiness, what. — (...) for no other reason but for its aptness to produce pleasure and
pain in us, wherein consists our happiness and misery”9.

Até aqui Locke não acrescenta nada de muito especial àquilo que foram ao longo
da História das Ideias as posições hedonistas, subordinadas à persistência de uma equação
que articula, prazer, dor e felicidade. Salvo, talvez o conceito de uneasiness, mas só pela

7
O princípio remoto da insatisfação é, ele próprio, agostiniano. Para Santo Agostinho foi Deus que colocou
no coração dos homens este desejo infinito e insaciável, motivo e razão para a procura e para o aperfeiçoamento
moral e religioso. A insatisfação estimula a procura de todos os meios legítimos para a satisfação. Na perspectiva
agostiniana a insatisfação provoca um vazio ontológico que exige um aprofundamento ontológico e uma expansão
do ser que assim realiza a vocação metafísica da existência.
8
“By «reason», however, I do not think we should understand here that faculty of the intelect, (…) but
some definite practical principles from which flow the sources of all virtues (…) What is rightly deduced from these
principles is properly said to conform to right reason”, cf. John Locke [Questions concerning the law of nature], in
Horwitz 1990: 99.
9
Que esta é uma posição inabalável de Locke prova-o o número de vezes em que na sua obra o afirma
categoricamente. Devo trazer aqui um texto (um fragmento) intitulado “Thus I think”, citado por Lord William King,
na obra “Life of Locke”, segundo vol., p. 120, em que se atribuem a Locke as seguintes palavras: “It’s a man
proper business to seek happiness and avoid misery”. E onde a procura da felicidade aparece reforçada com o
sentido de que esse objectivo é a condição própria do homem. Mantém-se aqui muito do entendimento clássico
sobre o assunto mas também medieval, ainda que o conceito possa estar travestido de beatitude. Desde Aristóteles
até S. Tomás de Aquino passando pelo Santo Agostinho dos tempos de Cassicíaco, que a felicidade é entendida
como a finalidade por excelência do homem. Esse teleologismo está em Locke, pelo menos neste fragmento.

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152
designação, uma vez que no próprio epicurismo a equação: κενοσις (kenosis, depleção,
esvaziamento) – ενδεια (endeia, falta, necessidade), επιϑυµια (epithymia, desejo) e
αναπληροσις (anaplerosis, enchimento, satisfação), contém o momento da uneasiness
na figura semântica da ενδεια (endeia). Esta equação, mau grado a longa tradição de
calúnias antiepicuristas, é muito mais cirenaica do que epicurista. É que o objetivo
epicurista consiste ou consistiu sempre em pôr termo a este processo infernal. Segundo
esse objetivo, no epicurismo foi sempre ou é sempre proposto como termo final da
equação, não um elemento conjuntural e provisório, mas se possível definitivo, e que é
a katastematike (χαταστηµατιχή), ou seja, a serenidade de um estado estável donde
se ausenta toda a pertubação. Este estado estável deve ser portanto dominado pela
tranquilidade, o que só pode ocorrer no quadro de um prazer estático (permanente),
onde pelo equilíbrio e pela ausência de esvaziamento se interrompe o ciclo infernal e
sempre repetido. É por isso que o conceito de ataraxia (αταραξία) é determinante e
decisivo. Só em estado de ausência de perturbação e em plena tranquilidade pode o
sábio encontrar a felicidade. O que eu quero dizer é que esta equação é cirenaica e se
ocorre no epicurismo, só ocorre porque alguma coisa falhou, uma vez que o sábio
epicurista jamais abandona o estado de tranquilidade e de ataraxia para correr atrás de
prazeres condenados ao malogro. O malogro é justamente esta insatisfação, acompanhada
infinitamente das etapas subsequentes numa lógica infernal sem fim. O processo pode
ser travado tanto na lógica epicurista como na lógica estóica pela introdução do elemento
da apatia nos estóicos e da ataraxia nos epicuristas e a atitude de espírito que funciona
como conceito nuclear e motor destes processos é a eutimia (euthymia, ευτιµια)10.
Pela leitura que faço, no plano do seu hedonismo, depreende-se que Locke é
mais cirenaico que epicurista, embora tudo leve a crer ele tenha entrado em contacto
em França com o universo ideológico do círculo neoepicurista. Mas também se sabe que
até em França a lógica neoepicurista conduziu não a um epicurismo suave à imagem e
semelhança do modo de vida do sábio do jardim, mas em alguns casos à perspectiva de
um libertinismo deletério.

4. Locke: Prudência e <<Suspensão>>

Ora, a novidade está na combinação de dois elementos distintos da cultura antiga.


Locke revisita ao mesmo tempo o hedonismo antigo com um vago sabor epicurista e ao
mesmo tempo o cepticismo, uma vez que propõe uma espécie de epoché, com a
particularidade de que esta epoché seja essencialmente prática e portanto mais ligada à

10
“Euthymia suggests Democrito, allows man the opportunity to be content and unruffled in the face of
misfortune. It provides «imperturbable wisdom», to face life’s adversities and suffer as little as possible from the
disturbances which threaten the equanimity of other men”, in Hibler 1984: 27.

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vida moral que à vida epistémica, e por isso também mais da ordem da razão prática e
não da razão teorética. Mas seja como for a figura da suspensão terá sempre um sabor
relacionado com o pirronismo. E é esta, a meu ver, a grande originalidade de Locke,
aquela que lhe permite uma certa distanciação relativamente ao voluntarismo da sua
base moral e ético-jurídica. Só um sabor porque agora a suspensão do desejo, do juízo
e da acção está amplamente subordinada à convicção intelectual de que a procura de
felicidade exige esta espécie de jurisprudência.
De fato a expressão da jurisprudência não é inocente, porque eu quero com ela
reaproximar-me outra vez de Epicuro, agora sim com convicção. É que também em
Epicuro estava subentendido este papel prudencial da razão, e este poder de suspensão
outra coisa não é do que um poder prudencial. Em Epicuro ele estava atribuído à
phronesis, virtude cardeal e iluminante do caminho a seguir, que nas Máximas vaticanas,
o Sábio convoca apropriadamente: “La fortune a peu de prise sur le sage, car, les choses
les plus grandes et les plus importantes, la raison calculante les a réglées, et, pendant
toute la durée de la vie, les régle et les règlera” (Epicuro COUCHE, In: Conche,
1992, p. 237). E na Carta a Meneceu não se coibe de identificar como o maior bem,
sobretudo quanto ao facto de que o agente deve escolher acertadamente sobre os caminhos
a seguir em ordem a encontrar o caminho para a felicidade, ou seja, o caminho para a
vida boa: “Quand donc nous dison que le plaisir est la fin, nous ne parlons pas des
plaisirs des gens dissolus (...) mais le raisonnement sobre cherchant les causes de tout
choix et de tout refus, et chassant les opinions par lesquelles le trouble le plus grade
s’empare des âmes. (...) Le principe de tout cela et le plus grand bien est la prudence
(φρόνησις)”11.
A convicção que tenho do contacto de Locke com o pensamento epicurista e o
fato de, desde a ética a Eudemo de Aristóteles, a phronesis ter evoluído no sentido de
uma sabedoria com maior acuidade prática, no sentido portanto de uma pudência, tudo
isso me leva a pensar que é num sentido puramente prudencial que a fórmula da
suspensão deve ser entendida e não na perspectiva de uma tranquilidade teorética. A
suspensão é assim mais suspensão do desejo e da ação e menos suspensão do juízo.
Mas anote-se então, em concreto, que direcção tomou a prudência em Locke, já
que é de prudência que se está a falar:
“The Power to suspend the Prosecution of any Desire makes way for Consideration. There
being in us a great many uneasinesses, always soliciting and ready to determine the will, it is
natural, as I have said, that the greatest and most pressing should determine the will to the
next action; and so it does for the most part, but not always. For, the mind having in most
cases, as is evident in experience, a power to suspend the execution and satisfaction of any of

11
Epicuro [Cartas e máximas], in Conche 1992: 224. Τούτων δέ πάντων ἀρχὴ χαὶ τὸ µέγιστον
ἀγαϑὸν φρόνησις. A prudência é o princípio e o grande bem de todas as coisas

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its desires, and so all, one after another, is at liberty to consider the objects of them, examine
them on all sides, and weigh them with others. In this lies the liberty man has; and from the
not using of it right comes all that variety of mistakes, errors, and faults which we run into in
the conduct of our lives, and our endeavours after happiness, whilst we precipitate the
determination of our wills, and engage too soon, before due examination. To prevent this, we
have a power to suspend the prosecution of this or that desire, as everyone daily may experiment
in himself. This seems to me the source of all liberty; in this seems to consist that which is (as
I think improperly) called free-will. For, during this suspension of any desire, before the will
be determined to action, and he action (which follows that determination) done, we have
opportunity to examine, view, and judge of the good or evil of what we are going to do; and
when, upon due examination, we have judged, we have done our duty, all that we can, or ought
to do, in pursuit of our happiness; and it is not a fault, but a perfection of our nature, to desire,
will, and act according to the last result of a fair examination (...) The Reason of it. This is the
hinge on which turns the liberty of intellectual beings, in their constant endeavours after, and
a steady prosecution of, true felicity, that they can suspend this prosecution in particular cases,
till they have looked before them, and informed themselves whether that particular thing which
is then proposed or desired lie in the way to their main end, and make a real part of that which
is their greatest good” (Locke, 1995, p. 184-187 [1690]).

Ora, e isto é decisivo no pensamento de Locke, a verdade é que a obrigação


de suspender os desejos é um imperativo determinado pela obrigatoriedade moral que
o homem tem de se bater pela sua felicidade, isto é, de procurar aquilo que lhe traz
prazer e combater aquilo que lhe traz dor, pois é assim que simultaneamente se bate
pelo bem contra o mal. Nesse contexto o reino da necessidade tem que ser abolido.
Não faz sentido para Locke, uma vez que isso seria contranatura, crer num determinismo
de tipo metafísico que conduziria à felicidade. Isso pressuporia duas coisas, ambas
erradas para Locke: uma, a clarividência que resultaria da existência de princípios
orientadores inatos em nós. Outra, uma perfeição metafísica, personalizada na perfeição
das nossa faculdades. Ora, se o puritanismo moral de Locke impede a segunda
possibilidade, o empirismo anti-inatista impede a primeira e a relação de contraposição
que ambas expressam relativamente ao nominalismo occamista, tão do agrado de
Locke, impede as duas simultaneamente. O que há de especificamente humano é a
sua liberdade. A liberdade não coroa uma ideia de perfeição, consagra, pelo contrário,
uma ideia de deficiência. Deus, na sua perfeição, não precisa da liberdade nem do
livre-arbítrio, e muito menos de suspender o seu desejo ou as sua ações e muito menos
ainda, por maioria de razão, os seus juízos. A sua omnisciência e a sua perfeição
colocam-no imediatamente no caminho certo.
A liberdade é uma consequência da imperfeição humana que necessita para a
sua realização de utilizar o mecanismo da suspensão do desejo: “ce qu’il y a de
spécifiquement humain dans la liberté à la Locke, c’est, par conséquent, une rupture
avec les désirs particuliers, qui sont naturels et présents, donc une rupture avec la nature
temporelle et sensible, grâce au contact pris dans un jugement droit, avec le vrai bonheur
de l’homme et avec son essence réelle, avec sa nature parfaite, dans la mesure où celle-

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ci relève de l’éternel” (Polin, 1960, p. 22). O raciocínio de Raymond Polin coloca
Locke no caminho de Santo Agostinho e isso deveria agradar-me, uma vez que o seu
raciocínio vai no mesmo sentido que o meu, mas a verdade é que não me posso solidarizar
com esta ideia de que existiria em Locke um juízo direito que colocaria, segundo o seu
ponto de vista, o homem na direção de uma felicidade entrevista a priori, como corolário
da essência real da felicidade e do homem.

5. Razão prática: <<Practical Agency>>.

O internalismo autonomista de que fala Stephen Darwall coloca Locke dentro de


um relativismo moral centrado nas motivações e numa decisão moral sempre prática e
sempre aberta. Não há nada que corresponda a uma decisão global, a priori, mas há
antes, e pelo contrário, uma practical agency permanentemente centrada no exercício
reiterado da suspensão e da prudência. É nisso que consiste a autonomia possível do
agente. É verdade que suspende os desejos particulares para poder optar com sabedoria,
mas o agente não o faz no pressuposto de que pode encaminhar-se para uma espécie
de absoluto. O agente interrompe a prossecução de desejos particulares mas opta sempre
pela prossecução de objectivos conjunturais e contingentes. É claro que o agente possui
a ideia de uma finalidade, até porque se não possuísse ideia nenhuma ficaria obviamente
paralisado. De facto, o agente possui sempre qualquer coisa que possa funcionar como
motivo para desencadear o processo do desejo, simplesmente o caminho está sempre
em aberto.
Mas a verdade é que se na aparência Locke insititui um reino de absoluta
liberdade e desse modo se colocaria no enquadramento de uma perspectiva que abriria
caminho, disso estou certo, ao advento de uma autonomia genuinamente humanista,
é a própria base de sustentação da sua argumentação que, cedendo aos lugares comuns
da tradição escolástica, trai os desígnios do autor e abre paradoxalmente caminho a
uma interpretação metafísica, e, especificamente, do determinismo metafísico tomista.
Sobretudo quando afirma:
“For the inclination and tendency of their nature to happiness is an obligation and motive to
them, to take care not to mistake or miss it; and so necessarily puts them upon caution,
deliberation, and wariness, in the direction of their particular actions, which are the means to
obtain it. Whatever necessity determines to the pursuit of real bliss, the same necessity, with
the same force, establishes suspense deliberation, and scrutiny of each successive desire,
whether the satisfaction of it does not interfere with our true happiness, and mislead us from
it. This, as seems to me, is the great privilege of finite intellectual beings” (Locke, 1995,
p. 187 [1690]).

Inclinação e tendência para, que é no seu pensamento uma necessidade várias


vezes assumida, conferem ao pensamento de Locke uma conotação finalista e teleológica,

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que não se encontra por exemplo em Hobbes. Em Hobbes há uma pulsão absolutamente
naturalista e biológica, que se prende com o estado de natureza, e que é o instinto de
sobrevivência ou de preservação. Nada que se pareça com esta tendência e inclinação
para a realização da natureza do homem e da sua perfeição. Chame-se-lhe felicidade ou
não. A obrigatoriedade do homem à felicidade é do reino da necessidade e para que
ele não a falhe ela é acompanhada de uma obrigação moral.
E de fato, pelo menos uma vez na sua obra, Locke estabelece um nexo real e
concreto entre a realização da natureza humana como realização da sua perfeição e a
realização da sua felicidade: “As therefore the highest perfection of intellectual nature lies
in a careful and constant pursuit of true and solid happiness” (p. 187). E só depois enfatiza
a articulação com a liberdade: “so the care of ourselves, that we mistake not imaginary for
real happiness, is the necessary foundation of our liberty” (p. 187). E a prova de que a
realização da felicidade é a realização da perfeição da natureza humana ou, em última
instância, aquilo para que fomos criados é que Locke não se lamenta das deficiências e
da imperfeição constitutiva dos homens. O que ele diz é mais ou menos o seguinte: se
formos humildes e modestos não nos sentiremos frustrados e nem podemos deitar as culpas
das nossas imperfeições para cima de Deus, uma vez que ele nos forneceu as faculdades
suficientes para lograrmos realizar a nossa natureza e os nossos objectivos terrenos. A
nossa capacidade está no fim de contas adequada aos nossos objectíveis possíveis.
“For though the comprehension of our understanding comes exceeding short of the vast
extent of things, yet we shall have cause enough to magnify the bountiful Author of our being
for that portion and degree of knowledge he has bestowed on us, (...) We shall not have
much reason to complain of the narrowness of our minds, if we will but employ them about
what may be of use to us (...) Men have reason to be well satisfied with what God hath thought
fit for them, since he has given them, as S. Peter says: «Whatsoever is necessary for the
conveniences of life, and information of virtue», and has put within the reach of their discovery
the comfortable provision for this life, and the way that leads to a better” (p. 3). [tudo pela
vida e pelo amor (da virtude)]

Porque a tarefa do homem na terra não é a de conhecer tudo mas apenas conhecer
e usar aqueles saberes que dizem respeito à sua conduta, ao seu comportamento acertado,
a fim de que possa lograr o grande objetivo humano possível, ou seja, a felicidade.
Portanto a natureza humana concebida por Deus é perfeita, a seu modo. Por exemplo
a uneasiness não é um elemento negativo, mas, pelo contrário, desempenha um papel
motor mediante o qual o homem se põe em marcha. O sofrimento de falta, a inquietação
que resulta da insatisfação que essa falta provoca, estimula a procura. As paixões são
positivas, desde que usadas, como se verá, com moderação. A uneasiness é decisiva.
Até parece que Deus terá tido isso em conta, uma vez que é a incompletude que mobiliza
a ação e com ela se mobilizam as qualidades próprias do homem, à cabeça das quais é
legítimo colocar a liberdade. À semelhança de Santo Agostinho que coloca a incompletude

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ontológica como fonte do desejo, desejo que ao visar à beatitude visa ao bem e escolhe
o caminho apropriado, no seu caso pela mobilização das virtudes, para o atingir, também
aqui a uneasiness estimula o desejo, a procura e o caminho para a realização do objetivo,
sendo que, tal como nas tradições eudemonistas, a felicidade é o bem supremo e a sua
realização é a realização da perfeição.
Em Locke, porém, há a assunção de que não se visa à divindade, mas apenas à
perfeição menor de um ser imperfeito. E agora, circularmente, é justamente porque é
imperfeito e deficiente que precisa da liberdade de suspender os seus desejos para não
se precipitar e assim cair no erro; erro esse, que é o mau caminho, ou seja aquele que
conduziria não ao highest good, ou seja, à felicidade, mas antes à miséria. E por que é
que a miséria é miséria e a felicidade é o bem? Muito simplesmente porque o prêmio
da miséria é a dor e o prêmio da felicidade é o prazer. O princípio da suspensão
desempenha assim no plano prático e terreno o que o princípio da Graça desempenha
no plano transcendente. Ambos assistem à criatura imperfeita e deficiente. Esta lógica
da imperfeição e da deficiência faz corpo com o hiper-augustinianis- mo de Locke e
resulta da sua formação puritana. Mais uma vez a combinação do empirismo com o
sensismo do prazer e da dor faz corpo com uma antropologia pessimista e sombria. Tanto
mais que, em simultâneo, se assiste a uma colocação da fasquia baixa no que diz respeito
às faculdades racionais e intelectuais do homem. Estas faculdades, reduzidas em Locke
à prossecução de soluções práticas, perderam seguramente o élan que apresentavam
por exemplo no humanismo do Renascimento e no neoplatonismo de Cambridge.

6. Apesar de tudo um Intelectualismo resistente

Agora o que é de fato paradoxal é a emergência de uma redefinição da teoria


neoclássica do argumento ontognoseológico12 com o consequente enfeudamento moral
às noções nada voluntaristas da medida, do limite, da moderação etc. Locke começa
por acentuar que a mãe de todos os erros é a nossa ignorância logo seguida da nossa
inadvertência. Se a referência à ignorância coloca Locke mais perto da tradição
intelectualista, a inadvertência ainda mais, uma vez que esse argumento foi reiteradamente
utilizado, por exemplo, por Cícero e por S. Tomás de Aquino. Em S. Tomás o recurso
à inadvertência, não no sentido da animadversão, mas no sentido de uma presunção,
de uma leviandade, de um convencimento narcísico, que é genuinamente humanista
segundo as teologias mais integristas, é mesmo o fundamento por excelência do mal.

12
“It is impossible anyone should willingly put into his own draught any bitter ingredient, or leave out
anything in his power that would tend to his satisfaction and the completing of his happiness, but only by wrong
judgment”, in Locke 1995: 193 [1690]. É o juízo errado, a ignorância portanto que conduz ao erro, ao erro
moral, porque é uma imoralidade errar na prossecução da felicidade. Isso também é uma das facetas do mal.

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Uma vez que o mal não tem essência13, ele está apenas no erro da escolha, e uma vez
que o intelectualismo tomista o impede de conceber uma vontade obstinadamente má
já que segundo o argumento ontognoseológico só se pratica o mal porque se erra, e
erra-se por ignorância, S. Tomás encontrou este meio termo entre o mal-erro e o mal-
vontade-má nesta escolha que não é deliberadamente má, o que conferiria essencialidade
ao mal14, mas também não é sinal de pura ignorância, o que laicizaria em excesso o seu
pensamento teológico15, no fim de contas, mediante o recurso a esta escapatória da
inadvertância, da leviandade. A lógica da inadvertência, na perspectiva de uma leviandade
responsabilizável, está bem sintetizada na expressão de que o agente atua sem ter a
regra em conta, como se não precisasse dela. Regra que em latim se diz regula e que
de algum modo conecta com régua e que de uma forma metaforicamente mais clara
quer dizer que aquele que não tem em conta a regula denuncia a arrogância e o orgulho
de quem se tem como regra e régua para si mesmo. De algum modo sabe-se por
experiência própria que é difícil a linha reta sem a régua e, ainda que metaforicamente,
tudo isto remete para a ideia de que a retidão sem a régua, quer dizer sem a regra é
obra tão difícil, que provavelmente só pode ser obra de Deus16.

13
“Quod malum non est aliqua natura” (O mal não é uma natureza). O mal (dado que é uma privação),
não é nunca causado de forma directa. O mal é sempre um efeito secundário, causado indirectamente. E o mal
moral é um caso particular disso. Sendo assim pode-se se dizer que o mal provem de uma vontade que escolhe um
fim ilegítimo (Finis indebitus).
14
A essencialidade do mal seria uma aberração uma vez que a escolástica escolheu o princípio da
convertibilidade do bem (ens et bonum convertuntur = aquilo que é, enquanto tal, é bom), cujos fundamentos se
encontram na filosofia socrático-platónica. Por outro lado em Aristóteles o bem é aquilo que todas as coisas desejam
(Hinc est quod philosophi diffinientes bonum dixerunt: bonum est quod omnia appetunt, Arist., E. N., I, 1) o que não
afronta a teoria anterior na medida em que a natureza em Aristóteles não é definida em termos estáticos mas
dinâmicos, quer dizer em termos teleológicos. Dizer que o bem é o que todas as coisas desejam é dizer que ele é
a natureza de todas as coisas, porque a natureza das coisas é aquilo para que tendem, logo ele é o ser, tal como no
pensamento socrático-platónico.
15
S. Tomás não podia, por outro lado, ter sido completamente indiferente a uma outra tradição da
escolástica que mergulhando as suas raízes em Santo Anselmo, mostrava já sinais de revitalização através das obras
de Alexandre de Halles, Jean de La Rochelle e S. Boaventura entre outros. Estou, bem entendido, a falar da
escolástica franciscana, que culminará, em época um pouco posterior à de S. Tomás, nas obras de Duns Scoto e
Guilherme de Ockham.
16
São várias as formulações aquinianas que exprimem este ponto de vista. O mal está fora da intenção.
Defeito de consideração (De ter em consideração). Falta de ordenamento (de o acto ser levado a cabo segundo a
ordem). Acção que a vontade poderia ter evitado. Ausência de querer. Nunca o resultado de um querer, de uma
vontade de transgressão. Eu teria e deveria ter podido considerar, mas não o fiz. Assim não ter tido em conta. Não
atenção à regra. Aliás S. Tomás enfatiza de uma forma absolutamente original o papel da regulação, de adesão a
uma regra. Mas na raiz do desregramento está sempre um defeito de atenção. Uma ausência da atenção devida a
Deus. E isso acaba por conduzir ao orgulho, no sentido de uma procura do bem próprio sem a consideração do
que deveria regular essa procura. Cf. Aquino, Suma C. G. III, 10; III, 109.
E finalmente o que se subentende na crítica e na condenação dessa não consideração ilumina bem o que
S. Paulo diz: “puisque connaisant Dieu, ils ne l’ont ni glorifié ni remercié comme Dieu; au contraire ils sont devenus

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Mas é verdade que o precursor desta inadvertência no sentido de uma
animadversão – e é sempre animadversão, ainda quando é inconsciente e involuntária
a inadvertência é animadversão na prática – foi Cícero. No De Officis, I, 103 Cícero
diz: “exercitandam esse animadversionem et diligentiam, ut ne quid temere ac fortuito,
inconsiderate negligenterque agamus”, que corresponde, traduzindo essencialmente o
sentido, mais ou menos, à ideia de que não se deve fazer nada de modo ligeiro e ao
acaso, ou seja, de maneira irrefletida e negligente.
Em Locke, de novo, a inadvertência tem o significado que, no fim de contas, lhe
conferem tanto Cícero quanto S. Tomás, ou seja: “When a man overlooks even that
which he does know. This is an affected and present ignorance, which misleads our
judgments” (LOCKE, 1995, p. 195 [1690]). A inadvertência tem para Locke uma
gravidade maior do que a ignorância porque acaba por ter a mesma consequência e
funcionar como se de uma completa ignorância se tratasse. É uma leviandade, uma
irresponsabilidade diria eu na nossa linguagem contemporânea. E portanto a inadvertência
é, do ponto de vista moral, muito mais grave que a ignorância. Aliás, a ignorância só é
imputável moralmente se ela obedece ao mecanismo psicológico da inadvertência, quer
dizer se o agente poderia não dar conta de uma ignorância acaso fosse mais preocupado,
ou seja, mais responsável. Overlook significa mesmo não ter em devida conta.
Depois Locke entra no domínio das paixões desreguladas, cedendo claramente
aos contornos de uma propedêutica antropológica coerente com a sua formação religiosa.
Locke refere-se muitas vezes à fragilidade ôntica das criaturas e à sua imperfeição, ou
no fim de contas à natureza corrupta do ser pós-lapsário, na linha, aliás, dos seus mestres,
como é o caso de S. Paulo que cita a propósito do célebre: “Car ce que je fais, je ne le
comprends pas; car ce que je veux, je ne le pratique pas, mais ce que je hais, je le fais,
(...) car le bien que je veux, je ne le fais pas, mais le mal que je ne veux pas, je le
pratique”17. Mas também na linha de Santo Agostinho e dos teóricos do protestantismo
e do puritanismo, sobretudo Calvino. É verdade que traz o assunto para a terra, mas o
significado é o mesmo18. E a primeira solução que ocorre a Locke no quadro daquilo
que posso considerar a sua posição terrena, humanista e promotora de uma certa margem
de autonomia, autonomia incompleta como se irá ver, é a identificação de um modo de
vida em que as paixões desregradas devem ser trazidas à ordem, ou seja à medida.
Locke chega mesmo a falar de mediocridade como sendo o ideal de vida, uma vida

vains dans leurs raisonnements” (Rom. I, 21). E é sempre aqui que vamos desembocar: ao crime de orgulho, ao
humanismo. Aos raciocínios vãos.
17
Rom. 7, 15 e 19.
18
“(…) that though all men desire happiness, yet their wills carry them so contrarily, and consequentley
some of them to what is evil”, in Locke 1995: 188 [1690].

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160
mediana portanto, apolínea no fim de contas. Como numa carta ao Conde de Pembroke.
“I have often thought that our state here in this world is a state of mediocrity, which is
not capable of extremes” (Polin, 1960, p. 43).
Mas o seu sentido da moderação19, da proporção e da medida é seguramente o
resultado da sua outra formação estóico-epicurista, quer dizer, de uma formação obtida
através, sobretudo, do contacto com o caldo ecléctico do academismo e do
medioplatonismo, isto é: Cícero, Plutarco e Séneca, sobretudo. Polin sintetiza bem o
ideário moral e existencial de Locke: “En définissant l’homme par sa fonction obligée
en vue de sa fin, le bonheur raisonnable, Locke a préféré à une définition de l’homme
par sa nature et par ses faits, une définition morale et il a subordonné son anthropologie
à une morale de la mesure du sens des limites et des compromis raisonnables” (Polin,
1960, p. 45).
Já disse que intuo uma autonomia mais aparente do que real, embora eventualmente
possante no plano do practical reasonning, ou, se se preferir, no sentido de uma practical
agency. Interessa percorrer os textos onde Locke mais evidencia o sentido da autonomia,
nomeadamente o Livro I e o Livro IV do Ensaio sobre o entendimento humano e a Carta
sobre a tolerância. O resultado é decepcionante. Locke explora sobretudo a autonomia
relativamente aos outros, estimulando cada homem a deixar-se guiar pelo seu próprio
juízo, pondo obviamente termo aos ídolos, às ideias feitas etc., e de resto tudo isso em
articulação, mormente, com a dimensão exclusivamente prática da ação, quer dizer no
sentido do reforço da capacidade raciocinante implícita na suspensão dos desejos, uma
vez que essa suspensão é intencionalmente a abertura de um tempo de ponderação, de
cálculo, de reasonning, enfim. E finalmente tudo isso ocorre no contexto de um reforço
do culto de uma racionalidade anti-inatista. E pouco mais do que isso.

7. Triunfo final da lógica repressiva e heterÔnoma

Mantenho que no mesmo capítulo em que sobre o poder se explicitam e promovem


os poderes próprios do homem, se faz também o diagnóstico das suas limitações profundas
e assim se lançam os caboucos de uma filosofia que lança as bases da morte da autonomia.
Uma morte anunciada. Anunciada porque em minha opinião ela estava já subentendida
na definição do bem e do mal a partir do prazer e da dor. E a verdade é que aí está
agora finalmente a articulação completa, assim como a enumeração de todas as partes
do sistema:

19
De todo o modo não se pode esquecer que Locke só tem em conta o dispositivo da moderação e repressão
das paixões nas circunstâncias definidas no § 53, do cap. XXI do Livro II: Quando “any extreme disturbance (as
sometimes it happens) possesses our whole mind, (…) allows us not the liberty of thought, and we are not masters
enough of our minds to consider thoroughly and examine fairly”, In: Locke 1995: 188 [1690].

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161
“Good and evil, as hath been shown (book ii, cha. xx, sect. 2, and chap. xxi, sect. 42), are
nothing but pleasure or pain, or that which occasions or procures pleasure or pain to us. Moral
good and evil, then, is only the conformity or disagreement of our volontary actions to some
law, whereby goof and evil is drawn on us from the will and power of the lawmaker; which
good and evil, pleasure or pain, attending our observance or breach of the law, by the decree
of the law-maker, is that we call «reward» and «punishment»“ (p. 279).

E o sentido encontra-se no fato de que o que os rewards and punishments prometem


é justamente prazer e dor. O enlace está assim feito entre a dimensão imanente, terrena,
da procura da felicidade e a lógica transcendente, uma vez que em última análise a lei
é a lei de Deus20, e os castigos e remunerações são divinos também. Tudo o resto é o
resultado de uma homologia.
Existe liberdade nessa realidade homóloga, liberdade e autonomia, mas
obviamente relativa. Já no § anterior Locke chama a atenção para o fato de que uma
relação moral outra coisa não é senão “the conformity or disagreement (that) men’s
voluntary actions have to a rule to which they are referred, and by which they are judged
of” (Locke, 1995, p. 279 [1690]). E também não falta a Locke o sentido da arbitrariedade
das leis morais bem expressa quando diz que: “this rule being nothing but a collection
of several simple ideas, the conformity thereto is but so ordering the action that the
simple ideas belonging to it may correspond to those which the law requires”21. Mas
noutros lugares da sua obra a que tive acesso através da obra de Raymond Polin, Locke
é ainda mais conclusivo e afirma que:
“il y a, en effet, une autre sorte de moralité dont les règles ne sont pas de notre fabrication,
auxquelles nous nous bornons à donner des noms, mais qui dépendent «upon something
without us, and so not made by us, but for us», — de quelque chose qui est sans nous et qui,
par conséquent n’a pas été fait par nous, mais pour nous. Ce sont les règles assignées à nos
actions «by a lawgiver to all mankind», par un être autre que nous, capable de donner des
lois à l’humanité entière et disposant du pouvoir de punir nos manquements. Ces règles se
ramènent à la loi de la nature, qu’elle soit notifiée à l’homme par la lumière naturelle, ou
par la révélation, et ce pouvoir supérieur est Dieu lui-même source directe ou indirecte de
toute obligation en nous”22.

20
É o que diz por exemplo Stephen Darwall: “Locke makes clear in a variety of places that he takes relation
to God’s law, and hence to His superior authority, to be necessary not just for moral obligation, but for morality to
exist in any fashion at all”, in Darwall 1995: 35. E acrescenta que a racionalidade de que os homens são dotados
tem um sabor pragmático no sentido em que Locke pensa que a única forma pela qual Deus pode fazer as suas
exigências é através do facto de proporcionar aos agentes motivos racionais para lhes obedecer. Os agentes obedecem
assim sempre a Deus, quer quando obedecem às leis, quer quando seguem as etapas do seu practical reasonimg.
21
Locke 1995: 283 [1690]. Não admira. O cap. XXVIII do Livro II é occamista do princípio ao fim.
É a parte da obra em que Locke desconstrói o realismo e defende o nominalismo com cópia de argumentos.
22
Polin 1960: 55. A ideia de bem associada à conformidade com a lei divina, da qual se infere a
externalidade tanto no plano do fundamento quanto no plano das obrigações, está também desenvolvida no Essay
concerning human understanding, Livro II, ao longo do cap. XXVIII.

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Só isso já seria suficiente para haver a certeza de que a suspensão lockeana não
é nunca uma suspensão do juízo teorético à maneira dos céticos, uma vez que este
argumento é pelo contrário um poderoso argumento contra o pirronismo. Mas, e isso é
muito interessante, Locke não o faz negando o que no ceticismo é substantivo, quer dizer
a nossa incapacidade estrutural para o conhecimento, mas operando uma torsão no
sentido da epistemologia para a ontologia, querendo dizer que o que mais nos deve
preocupar não é o que podemos ou não conhecer teoreticamente falando, mas o poder
que temos para governar a nossa vida do ponto de vista existencial.
E o mais sugestivo ainda é que é neste argumento contra o ceticismo que se
desenha o ceticismo larvar que existe em Locke e sobretudo que é através dele que
Locke começa a construir o seu voluntarismo positivista, porque aí se intui uma dimensão
do saber e do conhecimento que preexiste à dimensão estritamente humana, e ainda
porque aí se pressupõe uma dimensão do conhecimento que é interdita ao homem.
O cap. XXI do Livro II intitula-se justamente, power, e eu não posso deixar de
pensar imediatamente que este poder de que Locke fala neste capítulo, consiste, na
circunstância, de uma delimitação do que está ou não no nosso poder, bem na linha do
pensamento estóico, ou seja no eph’ hemin grego e no ad manum est, quod sat est latino,
provavelmente muito mais o latino, na medida em que no ecletismo latino, estoicismo e
epicurismo já se aproximaram o suficiente para não serem orientações existenciais e
morais antagónicas e contraditórias. Este capítulo é assim de uma inportância enorme
na economia do pensamento de Locke porque é nele que se traçam as linhas mestras
da autonomia humanista, mas também o primeiro esboço das linhas da não autonomia.
É nesse deslindar do que está ou não está em nosso poder, poder esse já remetido a
uma dimensão essencialmente ontológica e existentiva, que Locke encontrará os
ingredientes sólidos de um internalismo autonomista, mas também os indícios do
externalismo próprio do voluntarismo positivista. Num determinado momento eu intuí
que o externalismo tinha por força que estar na obra de Locke e noutro momento acabei
por concluir que estava lá inevitavelmente. Vou mostrar como.
Há que reconhecer que Locke não vai além de indícios, isto é, fazendo jus ao
seu conceito nuclear de uneasiness, ele não exprimirá mais do que um desconforto
pelas contradições que o tema do internalismo autonomista lhe sugere. Na sequência
desse desconforto insinuará aquilo que se lhe afigura a solução, mas não a desenvolve,
de resto nem chegará mesmo a abordá-la de uma forma inequívoca. Mas para mim
esses indícios e a consciência das contradições é até mais importante do que tudo o
que acabará por dizer de forma mais clara sobretudo na sua obra sobre a lei natural.
Vamos ao assunto.
Apesar de Locke ter enfatizado ao longo de muitas páginas, duas questões, aliás
complementares, a questão da felicidade e a questão da suspensão dos desejos, começa

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nos parágrafos finais do cap. XXI a introduzir uma nota de menor confiança, tanto nos
objectivos quanto no método. Eu diria que até ao § 53 não há verdadeiramente nenhuma
dissonância. A convergência resume-se assim:
• Ponto 1. A felicidade, ou melhor a procura da felicidade, é a maior perfeição de
natureza intelectual. A inclinação e a tendência para a felicidade constituem uma
verdadeira obrigação moral. A felicidade é o que se procura obter em todas as ações.
Toda a força do desejo é mobilizada para a obtenção da felicidade etc.
• Ponto 2. Os homens dispõem de um poder para lograr o seu grande objectivo, ou
seja, a felicidade. Esse poder é o poder de suspender os desejos (eu diria os desejos
e as ações), e assim ordenar a consideração das ideias. Esse poder é a expressão da
liberdade do agente, ou seja, a liberdade de realizar ou suspender, para pensar
melhor e realizar mais tarde de modo mais avisado. Ao suspender os desejos e as
ações fica a mente em condições de reconsiderar a finalidade desses mesmos desejos
e de os reexaminar sob todas as perspectivas possíveis, sem precipitação.
• E em jeito de síntese que enlaça os dois momentos: é pelo exercício dessa suspensão
prudencial e calculante que se tranquiliza a consciência, uma vez que o que está em
jogo é o maior bem que o agente pode alcançar, a saber, a sua felicidade. Até porque,
e convém não esquecer, a felicidade significa o abandono completo do sofrimento23.
À boa maneira epicurista.
Entretanto tudo se começa a complicar. Primeiro é o problema das perturbações
extremas que podem ser induzidas pelas paixões. O simples poder de suspensão ao qual
não faltava nem trabalho nem responsabilidades na resolução prudente das situações
normais, digamos assim, vê-se agora a braços com trabalhos de Hécules, uma vez que
deve meter ombros à responsabilidade de moderar e reprimir as paixões, o que desde
a filosofia antiga era considerado um labor muito difícil. Diz-se que as paixões obnibulam
o próprio entendimento, daí que se compreenda que não fui irônico ao considerar
hercúlea a sua lide. Ou elas não existem e não são nenhum problema ou estão presentes
e logo impedem a resolução intelectual das situações.
Depois há a ingente dificuldade, abundantemente glosada, tanto na literatura
pagã como na religiosa, do conflito de faculdades24. No nosso caso concreto a glosa

23
Como diz Locke: “For during this suspension of any desire, before the will be determined to action,
and the action (which follows that determination) done, we have opportunity to examine, view, and judge of the
good or evil of what we are going to do; and when upon due examination we have judged, we have done our duty,
all that we can or ought to do in pursuit of our happiness; and it is not a fault but a perfection of our nature to desire,
will and act, according to the last result of a fair examination”, in Locke 1995: 185 [1690].
24
Neste conflito ancestral entre o «Je-veux et le Je-non-veux», “ I’issue ne peut dépendre que d’une action – si
les Obras ne comptent plus, la Volonté est paralysée. Et puisque le conflit se place entre velte et nolte, la persuasion
n’entre pas en ligne de compte, comme elle le faisait dans la vieille querelle entre raison et appétits. Car l’état de
choses par lequel «le bien que je veux, je ne le fais pas, mais le mal que je ne veux pas, je le pratique» (in Romanos,
7, 19) n’est pas nouveau, c’est bien évident. On retrouve presque le mot-à- mot dans Ovide: «Video meliora proboque,

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lockeana afirma que os homens desejam a felicidade, mas que pela vontade são muitas
vezes conduzidos à infelicidade e ao mal. É o clássico conflito entre a razão e a vontade.
Eu sei o que é o bem e decido-me pelo mal. Eu sei qual é o melhor caminho para atingir
a felicidade e meto-me por atalhos. Às vezes mais ainda do que meter-me por atalhos
eu meto mesmo os pés pelas mãos, quando afinal tudo parecia tão claro.
Depois há ainda o conflito das temporalidades. A felicidade a curto prazo pode
colidir com a felicidade a longo termo, ou vice-versa. Como resolver o conflito. Que
opção tomar, quando não se possuem outras referências senão a pulsão imediata e uma
vaga esperança calculada pela razão. E se o curto prazo traz prazeres em abundância e
mil remunerações, o longo prazo oferece para já sacrifícios e renúncias em troca de
qualquer coisa duvidosa. É óbvio que o futuro mais tarde ou mais cedo, às vezes mais
depressa do que parecia, torna-se presente, e quando Deus quer, um presente envenenado
porque não foi sábia e pacientemente preparado. O remoto só é remoto até ao momento
em que se torna presente. Mas convenhamos que a gestão do que está ausente é muito
mais complicada do que aquilo que se oferece imediatamente como fonte de uneasiness.
De algum modo faz parte da natureza da intranquilidade (insatisfação, mal-estar) a sua
imediateza e a sua presentificação. Faz parte da natureza ontológica da uneasiness um
excesso ôntico, uma excessiva concreticidade existencial, que desfavorece o trabalho da
suspensão estrutural. O Dasein atua na conjuntura sob a pressão do seu próprio
desconforto ôntico, mas também ontológico.
Finalmente, por outro lado ainda, a noção do que é o bem e do que é o mal em
face da definição de Locke, relativista e hedonista, varia de pessoa para pessoa e nem
vale a pena inventariar casos e situações. E querendo ou não a verdade é que nos vamos,
quer dizer Locke vai-se circunscrevendo a uma felicidade limitada e até precária.
O parágrafo sessenta é o momento de viragem. E pela primeira vez neste capítulo
sobre o poder, coloca-se a possibilidade da necessidade de Deus. Repare-se que se está
em sede não teológica. O cap. XXI tinha tudo para ser o lugar do triunfo do humanismo
autonomista em Locke. As dificuldades apressaram as coisas. Vale a pena sublinhar:
“Change but a man’s view of these things; let him see that virtue and religion are necessary
to his happiness; let him look into the future state of bliss or misery, and see their God the
righteous Judge ready to «render to every man according to his deeds; to them who by patient
continuance in welldoing seek for glory, and honour, and immortality, eternal life; but unto
every soul that doth evil, indignation and wrath, tribulation and anguish»; to him, I say, who

deteriora sequor (je vois le bien et je l’approuve, et c’est au mal que je me laisse entraîner), cf. Ovídio [As Metamorfoses],
in Chamonard 1966: 177, et c’est sans doute une traduction du fameux passage de Médée d’Euripide (vers
1078-1080) «Oui, je sens le forfait que je vais oser; mais la passion [thymos, ce qui me meut] I’emporte sur mes
résolutions [bouteumata], et c’est elle qui cause les pires maux aux humains». Euripide et Ovide déploraient peut-être
la faiblesse de la raison face à l’élan passionné des désirs, et Aristote a sans doute franchi un pas de plus et pressenti
une contradiction en soi dans le choix du pire, acte auquel il emprunte sa définition de «I’homme pervers», mais
aucun d’entre eux n’aurait attribué ce phénomène au libre choix de la Volonté”, in Arendt 1983: 87.

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hath a prospect of the different state of perfect happiness or misery that attends all men after
this life, depending on their behaviour here, the measures of good and evil that govern his
choice are mightily changed. For, since nothing of pleasure and pain in this life can bear
any proportion to endless happiness or exquisite misery of an immortal soul hereafter, actions
in his power will have their preference, not according to the transient pleasure or pain that
accompanies or follows them here, but as they serve to secure that perfect durable happiness
hereafter” (Locke, 1995, p. 192 [1690]).

Não está longe o dispositivo das remunerações e das penas. No parágrafo setenta
chama-se a atenção para isso tal como de resto no texto que citei, mas os argumentos
são tênues e fazem ainda apelo da capacidade racional dos agentes. O dispositivo
repressivo, a pastoral do medo associada ao voluntarismo teológico e jurídico completo,
virá mais tarde.
Nos Concernings o dispositivo ganha clareza e torna-se mesmo apelativo.
“Once it has been granted that some divine power presides over the world something it would
be impious to doubt, for he has commanded the heavens to turn in their perpetual revolution,
(...) and all creatures in their obedience to his will have their own proper laws governing
their birth and life; and there is nothing in all this world so unstable, so uncertain that it
does not recognize authoritative and fixed laws which are suited to its own nature – once
this has been granted it seems proper to ask if man alone has come into this world entirely
outside some Jurisdiction, with no law proper to him, without plan, without law, without a
rule for his life” (Horwitz, 1990, p. 95 a 97).

E é nos Concernings que finalmente se encontra a lógica da rejeição do modelo


intuicionista e a apologia fundamentada do externalismo radical e heterônomo de
Locke. Desde o princípio que se adivinha sob a capa de uma promoção de uma
racionalidade puramente instrumental e atávica uma suspeita relativamente à razão
teorética. A promoção do sensismo já exprimia isso inequivocamente, Mas Locke é
eloquente e o seu argumento esclarecedor.
“This law of nature can, therefore, be so described [as a law] because it is the command of
the divine will, knowable by the light of nature, indicating what is and what is not consonant
with a rational nature, and by that very fact commanding or prohibiting. Less accurately, it
seems to me, some say (Grotius) it is a dictate of reason, for reason does not so much lay down
and decree this law of nature as it discovers and investigates a law which is ordained by a
higher power and has been implanted in our hearts. Nor is reason the maker of this law, but
its Interpreter – unless we are willing to diminish the dignity of the supreme lawgiver and
attribute to reason that received the law which it only investigates. Nor can reason, since it is
only a faculty of the mind and a part of us, give us laws” (Horwitz, 1990, p. 95 a 97).

O motivo pelo qual a razão não pode dar-nos leis é porque ela é apenas uma
faculdade do espírito. Ela é apenas uma parte de nós. O carácter apodíctico deste
argumento mostra o externalismo congénito de Locke. O ente não pode dar-se leis a si
mesmo. O esquema pressupõe sempre duas entidades, uma que dá e outra que recebe.
A ideia de autonormatividade é incompreensível para Locke. Esta proposição deveria

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ser suficiente para não alimentar ambiguidades acerca do autonomismo lockeano, ou
melhor, da falta dele. Para ele, a lei não pode ser produzida pelo homem internamente
pelo que lhe basta dizer que a razão é uma faculdade do nosso espírito para se descartar
sumariamente da possibilidade de o dador da norma (lei) ser a razão, que é o mesmo
que dizer, o homem.
Mas também não é menos óbvio que a rejeição da razão não é meramente
intelectual e que, embora numa linguagem moderada e contida, se pressente um certo
rancor relativamente não propriamente à razão mas à presunção humanista de que a
razão pudesse ter os poderes que pelo humanismo lhe são adjudicados. E isso é fruto
das raízes calvinistas da formação religiosa de Locke, que deixa transparecer o incômodo
que a razão representa quando diz “unless we are willing to diminish the dignity of the
supreme lawgiver” (p. 101).
É isso o que desde sempre impregnou o sensismo, a certeza de que não existe
no horizonte das faculdades humanas nada que possa desempenhar um papel alternativo
à omnipotência e à omnisciência divina. O que é odioso no humanismo intelectual
racionalista é o desproporcionado papel conferido à razão, já que, por um lado, ele
confere autonomia e capacidade de autogoverno e, por outro lado, insinua a capacidade
de construir artificialmente uma Mathesis Universalis alternativa à gnoseologia e à ontologia
teológico-religiosa.
E o modelo por excelência da lei é a lei divina, que em caso de não acesso à
revelação se oferece ao homem através da luz natural. E sobre essa lei diz o autor que:
“without the law of nature there would be no virtue or vice, no praise for probity or
punishment for wickedness; where there is no law [there would] no wrong, no guilt”
(p. 117). O credo de fé no externalismo positivista e a rejeição categórica do modelo
intuicionista regressam ao ponto de partida.
E se Locke diz, mais à frente, que o conhecimento por natureza significa “nothing
but the kind of true whose knowledge man can, by the right use of those faculties with
which he is provided by nature”, logo acrescenta que esse conhecimento se realiza a
partir de noções primeiras, as quais “are not known by reason, for either they are
impressed on our minds by inscription, or we receive them through tradition, or they
enter through the senses. For reason, that great faculty of argumentation, does nothing
unless something has been established and agreed to beforehand” (p. 111).
Até que finalmente é a apoteose da vontade. Em dois andamentos:
a. O reconhecimento de um legislador que detém o poder de submeter e que o
faz através da lei.
b. Importante e decisivo: “We must also know that there is some will of that superior
power as regards the things we must do; that is, that that legislator, whoever
he may prove to be, wills us to do this, or to refrain from that, and demands
of us that the conduct of our life be in agreement with his will” (p. 159).

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Isso em ordem a mostrar quais os limites da razão e dos sentidos no seu trabalho
coordenado de condução do conhecimento da lei natural. Bem. Os limites são quase
totais. Quer dizer, os sentidos e a razão podem trabalhar em conjunto no conhecimento
da lei natural desde que saibam que antes já existe uma lei que nos condiciona
absolutamente, que essa lei pressupõe um legislador que nos submete à sua vontade,
através de um inelutable power, e que – não está aqui mas está noutros pontos da obra –
nos pode forçar à obediência através de rewards and punishments. E por fim que esse
legislador já determinou o modo como se deve agir e não agir. E que devemos conduzir
a nossa vida de acordo com a sua vontade. Enfim a margem de autonomia é mínima.
Aquilo que estava anunciado e esboçado no cap. XXI do Ensaio sobre o
entendimento humano desenvolve-se no mesmo livro, mais à frente, no cap. XXVIII.
E não deixa de ser sintomático que o autor para passar definitivamente à explanação do
seu voluntarismo teológico, jurídico e moral, tenha necessidade de voltar a reintroduzir
a sua propedêutica sensista e hedonista. Assim começa por definir o bem e o mal moral
a partir do prazer e da dor:
“Good and evil, as hath been shown (book II, cha. XX, sect. 2, and chap. XXI, sect. 42),
are nothing but pleasure or pain, or that which occasions or procures pleasure or pain to us.
Moral good and evil, then, is only the conformity or disagreement of our voluntary actions
to some law, whereby goof and evil is drawn on us from the will and power of the lawmaker;
which good and evil, pleasure or pain, attending our observance or breach of the law, by
the decree of the law-maker, is that we call «reward» and «punishment»” (Locke, 1995, p.
279 [1690]).

Para Locke o fato de que os agentes dispõem de uma racionalidade prática e uma
liberdade para agir no quadro do seu interesse próprio, que é a procura da felicidade,
não é suficiente. Afinal a ação livre dos homens é sempre acompanhada de regras que
no fim de contas a superintendem e as regras não fariam sentido se não fossem
acompanhadas de imposições axiológicas e normativas. Por outro lado, tanto as regras,
como a normatividade que encerram, seriam vãs e fúteis se não contivessem explícita
ou implicitamente recompensas e castigos. “It would be in vain for one intelligent being
to set a rule to the actions of another, if he had it not in his power to reward the compliance
with, and punish deviation from, his rule by some good and evil that is not the natural
product and consequence of the action itself” (p. 279 e 280).
Aquilo que eu pretendo estabelecer como nexo de causalidade recíproca está
todo aqui. Não é tanto o carácter repressivo e autoritário da consciência moral lockeana,
fruto evidente do hiperaugustinianismo da sua formação calvinista. Não é tanto a
antropologia pessimista e sombria em que se fundamenta, mas essencialmente o nexo
causal entre essa antropologia, o sensismo e o hedonismo larvar. É tudo muito ilusório.
A enfatização do prazer e da dor no sensismo e no empirismo lockeano não são afinal
nem epicuristas nem cirenaicos. É na percepção da sua originalidade que reside a

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capacidade de compreensão do carácter não autonomista e não humanista deste tipo de
posição. A propedêutica do prazer e da dor naturalmente sofrido só existe para que se
desenvolva no final numa lógica do prazer e da dor infligido artificialmente, isto é, por
uma entidade externa, exterior. A sua utilização é portanto totalmente pragmática. É a
lógica anti-humanista do pecado global e da necessidade do castigo associada à convicção
de uma profunda falibilidade das faculdades humanas que alimenta as suas posições.
E isso também reforça o anti-humanismo e a heteronomia, que concebe o dispositivo
das remunerações e das penas. Se por acaso o prazer e a dor não desempenhassem o
papel que desempenham na propedêutica moral, como é que o autor poderia desenvolver
uma lógica dos enforcements? O que é que seria suficientemente forte para obrigar? Uma
vez que falham as capacidades propriamente humanas fica a repressão. A obrigação em
Locke é duplamente anti-humanista. É anti-humanista porque é externa e é anti-humanista
porque pressupõe a falência da razão e da vontade. Na situação pós-lapsária as faculdades
humanas encontram-se praticamente destruídas (A razão prática não, pelo menos em
Locke). Através delas o homem não será capaz de encontrar o seu rumo. O homem é
mau tal como em Hobbes etc. A única forma de conceber uma orientação global para
o bem implica leis, quer dizer regras, ditadas por uma entidade transcendente, essa sim
sábia e boa. Para a imposição da sua vontade soberana precisa esse ser de um dispositivo
repressivo que condicione e obrigue à obediência. Para que o prazer e a dor possam
ser esse dispositivo é necessário que previamente se tenha mostrado a importância radical
da dor e do prazer tanto no plano sensível quanto no plano moral. Já tinha acontecido
com Hobbes, no fim de contas a dor é o medo da morte violenta.
Há três tipos de leis: as divinas, as civis e as leis de opinião ou reputação. As
primeiras estão sob a alçada divina direta e portanto à la longue subordinadas à lógica
dos rewards and punishments. Elas foram promulgadas pela revelação e(ou) pela luz
natural, pelo que as leis da natureza se subsumem segundo Locke nas leis divinas. Quer
isto dizer o que já referi atrás: “That God has given a rule whereby men should govern
themselves, I think there is nobody so brutish as to deny” (p. 280). E veja-se mais uma
vez o fundamento último dessas leis, da sua positividade e da sua força coerciva. “He
has a right to do it; we are His creatures (...) He has power to enforce it by rewards and
punishments, of infinite weight and duration, in another life (...) This is the only true
touchstone of moral rectitude” (p. 280).
As segundas, as leis civis, são concebidas à imagem e semelhança das primeiras.
A homologia é perfeita. As terceiras possuem uma importância muito relativa. Elas são
muito desvalorizadas pelo autor, dada a sua relatividade, por um lado, mas sobretudo
pela inexistência de mecanismos repressivos de coação. Até que finalmente as reconduz
às leis divinas. Só através de uma vontade autoritária e legisladora as regras ganham
eficácia, mas também consistência lógica.

Revista
Revistada
da Faculdade de Direito
Faculdade de Direito- -UFPR,
UFPR,Curitiba,
Curitiba, n.47,
n.51, p.29-64,2010.
p.147-171, 2008.
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Recebido: dezembro 2010


Aprovado: abril 2011

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p.147-171, 2008.
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LA PRUEBA EN VIOLENCIA SEXUAL Y EN VIOLENCIA DE GÉNERO:
ESPECIAL REFERENCIA A LA PRUEBA DE ADN

A prova em violência sexual e a violencia contra a mulher:


referência especial a prova de DNA

The evidence in sexual violence and violence against


women: Special reference to DNA testing

Inés C. Iglesias Canle*

RESUMEN: Los agresores se procuran, y más aún en este ámbito de delitos contra la vida y la libertad
sexual en las relaciones de pareja, de unos hechos en lo que respecta al lugar de comisión del delito,
en las que resulta muy difícil disponer de pruebas más allá de la declaración de la víctima. La prueba
de ADN puede tener una gran virtualidad a la hora de acreditar determinadas circunstancias que
tengan relación con la comisión del hecho punible. De ello se ocupa este estudio, incidiendo en la
regulación existente en el ordenamiento jurídico español en materia de obtención de prueba biológica
y valoración de la prueba genética, que considera los distintos pasos desde la recogida de las fuentes
de prueba hasta su apreciación judicial.

PALABRAS-CLAVES: prueba de ADN. violencia sexual. mujer.

RESUMO: Os agressores são procurados, principalmente neste âmbito dos delitos contra a vida e a
liberdade sexual nos relacionamentos, por fatos relativos ao lugar de cometimento dos delitos, o que
torna muito difícil dispor de provas além da declaração das vítimas. A prova de DNA pode ter uma
grande virtude no momento de atribuir determinadas circunstâncias que tenham relação com o
cometimento do fato punível. Disso se ocupa este trabalho, incidindo na regulação existente no
ordenamento jurídico espanhol em matéria de obtenção de prova biológica e valoração da prova
genética que considera os distintos passos desde a recolhimento das fontes de prova até a sua
apreciação judicial.

PALAVRAS-CHAVE: prova de DNA. violência sexual. mulher.

ABSTRACT: The attackers were seeking, and even more in this area of crimes against life and sexual
freedom in relationships, in facts as regards the place of commission of the crime, which very difficult
to have evidence beyond the testimony of the victim. DNA testing can have great potentiality when
demonstrating certain circumstances that pertain to the commission of the crime. It occupies this study,
focusing on the existing regulation in the Spanish legal system to obtain evidence of biological and
genetic evaluation of evidence, that consider the various steps from the collection of the sources of
evidence to its judicial appreciation.

KEYWORDS: DNA evidence. sexual violence. woman.

* Universidad de Vigo. Profesora Titular de Derecho Procesal.

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p.173-208, 2008.
173
I. INTRODUCCIÓN

Cuando nos referimos a la prueba en violencia sexual estamos pensando en cómo


se pueden acreditar en el acto del juicio, a través de los medios de prueba previstos
legalmente, determinadas circunstancias y elementos que forman parte del supuesto de
hecho del tipo penal, que contempla la supuesta actuación delictiva. Los agresores se
procuran, con carácter general, y más aún en este ámbito de delitos contra la vida y la
libertad sexual en las relaciones de pareja, de unas circunstancias en lo que respecta al
lugar de comisión del hecho punible, en las que resulta muy difícil encontrarnos con
pruebas más allá de la declaración de la víctima, de los parientes más cercanos o de la
prueba pericial practicada con el consentimiento de la víctima.
En este contexto, es fácil entender que las pruebas en violencia sexual,
particularmente en el ámbito de la violencia intrafamiliar y de género, se circunscriben
normalmente a la declaración de la víctima y de los parientes que convivan con ella y,
finalmente, aunque no por ello en último lugar, la prueba de ADN.
En relación a la declaración de la víctima o de parientes del procesado en línea
directa ascendente y descendente, sus hermanos consanguíneos o uterinos y los colaterales
consanguíneos hasta el segundo grado civil, así como los parientes naturales a que se
refiere el art. 261.3º LECrim. (hijos naturales respecto de la madre en todo caso, y
respecto del padre cuando estuvieren reconocidos, así como la madre y el padre en
iguales casos) debemos recordar la dicción literal del art. 416 LECrim. que dispensa a
estas personas de la obligación de declarar. El juez instructor advertirá al testigo que se
halle comprendido en el párrafo anterior, que no tiene obligación de declarar en contra
del procesado; pero que puede hacer las manifestaciones que considere oportunas,
consignándose la contestación que diere a esta advertencia.1
Por tanto, en nuestra opinión, la prueba de ADN puede tener una gran
virtualidad a la hora de acreditar determinadas circunstancias que tengan relación con

1
Para un estudio de la problemática suscitada por el art. 416 LECrim. v. ALAÑÓN OLMEDO F. (Algunos
apuntes sobre el contenido del artículo 416 de la Ley de Enjuiciamiento Criminal), “Violencia de género: perspectiva
jurídica y psicosocial”, Tirant lo Blanch, Valencia, 2009, págs. 63 y ss.).
Entendemos con este autor que “la persecución de los delitos englobados dentro de la categoría “violencia
de género” está mediatizada por el ámbito en el que se producen. Relaciones que fueron de afecto, íntimas, aparecen
en la génesis de estos tipos y justifican su propia existencia, tal y como nos enseña la exposición de motivos de la Ley
de medidas de protección integral contra la violencia de género 1/2004 de 28 de diciembre. Esta situación provoca la
colisión de intereses, los del Estado en la persecución de los delitos y los de la propia víctima para quien su derecho a
la intimidad personal y familiar se encuentra en juego.
Este contexto justifica el contenido del art. 416 LECRim., precepto cuya aplicación puede dificultar la
posibilidad de plasmar en los hechos probados de una sentencia la realidad acaecida. El análisis del precepto ofrece
una rica problemática y es dentro de la misma donde se debe concluir en la dificultad que presenta su elusión desde
la opción efectuada por la víctima, lo que a la postre deriva en situaciones nada deseables de impunidad. Habrá de
ser el legislador el que acometa una reforma del texto que acomode los intereses en conflicto y, desde luego, permita
una persecución del delito acorde con la lacra que representa la violencia de género en nuestra sociedad”.

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la comisión del hecho punible, más allá de la declaración de la víctima y del testimonio
de terceras personas.
Además, este medio de prueba goza de reconocimiento y aceptación internacional,
sin que su admisión en un proceso afecte al derecho de defensa y a la presunción de
inocencia del imputado, ya que se trata de que se someta a una mínima intervención
corporal previa (extracción de una mínima muestra de cabellos, sangre o saliva), de resultado
incierto y que tanto puede resultar favorable tanto a la defensa como a la acusación. Este
difícil equilibrio, entre los derechos del imputado, de un lado, y el derecho de reparación
de la víctima y al ejercicio del ius puniendi del Estado de otro, ha sido objeto de estudio
por parte de la doctrina de nuestro Tribunal Constitucional y, hoy día, no presenta dudas
su posible adopción en el marco de una investigación criminal en curso, siempre que se
cumplan los presupuestos para su válida adopción, como veremos, básicamente,
proporcionalidad y legalidad de la medida de intervención corporal que debe adoptarse
previamente, acordada en el curso de un proceso penal mediante resolución judicial
motivada, en la que se plasme el juicio de proporcionalidad en relación a los derechos
fundamentales en conflicto, y con respeto absoluto a la legalidad vigente, que debe prever
con carácter previo la medida de intervención corporal de que se trate2.
La prueba de ADN en nuestros tribunales es una realidad, que debe valorarse
positivamente, siempre que se interpreten adecuadamente los análisis genéticos
introducidos como elemento de prueba en el proceso penal, particularmente, a través
de la prueba pericial, con el debido respeto a los derechos fundamentales en conflicto,
tanto de la víctima, como del supuesto agresor.
De todo ello daremos debida cuenta, concentrando nuestro esfuerzo en ofrecer
claridad en un terreno no siempre debidamente tratado por el legislador y que está
necesitado de una reflexión más detenida.
Es necesario que la nueva Ley de Enjuiciamiento Criminal realice una regulación
acabada de las denominadas intervenciones corporales, diligencias que hay que practicar,
tanto sobre la víctima, con su consentimiento, como sobre el agresor, con su consentimiento
o previa la correspondiente autorización judicial de la medida, para obtener las muestras
dubitadas de material biológico hallado tras la agresión sexual, en el primer caso, e
indubitadas en cuanto se practiquen sobre el supuesto agresor, a efectos de su posterior
análisis genético. Asimismo, la introducción de los resultados obtenidos y su valoración
por el órgano jurisdiccional a partir de la definición y configuración que se haga de la
prueba pericial en la futura Ley de Enjuiciamiento Criminal, son temas urgentes que
también debiera abordar el legislador.

2
V. en cuanto al concepto, naturaleza jurídica, constitucionalidad y presupuestos para la adopción de
las medidas de intervención corporal mi trabajo sobre “Investigación penal sobre el cuerpo humano y prueba científica”,
Madrid, 2004, págs. 14 y ss.

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No obstante, a todas estas cuestiones concernidas en el tema que nos ocupa,
trataremos de darle respuesta con la regulación vigente, sin renunciar a realizar esta llamada
al legislador, que consideramos urgente dada la importancia y trascendencia de estas
nuevas técnicas de investigación criminal, que tienen difícil encaje, como veremos, en el
actual marco legal procurado por la vigente Ley de Enjuiciamiento Criminal, la cual no
pudo en su día prever estos avances en materia de investigación criminal.

II. LAS INTERVENCIONES CORPORALES Y SU REGULACIÓN LEGAL


EN EL ORDENAMIENTO JURÍDICO ESPAÑOL

Por intervenciones corporales entendemos las medidas de investigación que se


realizan sobre el cuerpo de las personas vivas con el fin de descubrir circunstancias
fácticas que sean de interés para el proceso, en relación con las condiciones o el estado
físico o psíquico del sujeto, o con el fin de descubrir objetos escondidos en él3.
Dentro de las diligencias practicables en el curso del proceso penal, como actos
de investigación o de prueba recayentes sobre el cuerpo del imputado o de terceros,
cabe distinguir entre inspecciones y registros corporales, de un lado, e intervenciones
corporales, de otro, en los términos que propugna nuestro Tribunal Constitucional en
su STC 207/1996. Por tanto, una de las notas más características de estas diligencias
es su heterogeneidad y, en segundo lugar, su naturaleza pericial, dado que tanto para
su obtención como para su posterior análisis se requieren conocimientos especializados
provenientes fundamentalmente del ámbito de la Medicina Forense.
La introducción de estas diligencias en el ordenamiento jurídico español viene de
la mano de la doctrina científica y de la jurisprudencia constitucional, particularmente, de
la ya mencionada STC 207/1996, de 16 de diciembre. Más tarde, en respuesta a tal
doctrina constitucional, la disposición final primera en su apartado 1 c) de la Ley Orgánica
15/2003, de 25 de diciembre, de modificación del Código Penal, dotó en su día de nueva
redacción al art. 363 LECrim. Concretamente, introdujo un nuevo apartado del siguiente
tenor: «Siempre que concurran acreditadas razones que lo justifiquen, el Juez de Instrucción
podrá acordar, en resolución motivada, la obtención de muestras biológicas del sospechoso
que resulten imprescindibles para la determinación de su perfil de ADN. A tal fin, podrá
decidir la práctica de aquellos actos de inspección, reconocimiento o intervención corporal
que resulten adecuados a los principios de proporcionalidad y razonabilidad».
Con ello, el legislador pretendía dotar de cobertura legal a la práctica de las
diligencias de intervención corporal consistentes en la extracción de muestras biológicas

3
Partimos a estos efectos de la definición que proporciona GONZÁLEZ-CUÉLLAR SERRANO
(Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal, Madrid, 1990, pág. 290), pero sin entender la
coerción física como un rasgo definidor, dada la actual regulación del ordenamiento jurídico, español en los términos
que precisamos a continuación.

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176
del sospechoso con la finalidad de practicar sobre ellas las pruebas genéticas que resulten
necesarias con fines de investigación criminal. La situación legal previa justificaba esta
norma, al tiempo que permitió declararla insuficiente y cuasi inconstitucional.
En efecto, antes de que el legislador emprendiera la reforma legal tendente a
procurar la regulación legal de la denominada prueba genética, reinaba una absoluta
anomia en el ámbito de las intervenciones corporales. Tanto es así que el Tribunal
Constitucional, tras un primer pronunciamiento (STC 37/1989, de 15 de febrero) en el
que con un muy discutible criterio convalidaba la práctica de intervenciones corporales
leves que no afectasen al «derecho al pudor o recato corporal», optaba por entender
que, en tanto no se regulasen expresamente, en la medida en que afectan a una pluralidad
de derechos fundamentales, básicamente, el derecho a la integridad física, las diligencias
de intervención corporal debían considerarse diligencias prohibidas porque su práctica
resultaría contraria a los principios y postulados constitucionales.
Se trataba simplemente de asegurar el marco constitucional que procura una
convivencia pacífica y garantiza el orden público tutelado por la ley, y por ello resultaban
prohibidas injerencias en los derechos fundamentales, realizadas con fines de investigación
criminal, que no estuviesen amparadas en una ley procesal previa. El Tribunal
Constitucional en su sentencia 207/1996, de 16 de diciembre, resultaba tajante al
respecto al afirmar que «mediante el reconocimiento del derecho fundamental a la
integridad física y moral (art. 15 CE) se protege la inviolabilidad de la persona, no sólo
contra ataques dirigidos a lesionar su cuerpo o espíritu, sino también contra toda clase de
intervención en esos bienes que carezca de consentimiento de su titular».
Consiguientemente, la limitación del derecho fundamental a la integridad física
debía realizarse mediante una ley orgánica y con observancia de los requisitos de
razonabilidad y proporcionalidad, a que, por otra parte, debe sujetarse toda medida
restrictiva de derechos fundamentales de la persona.
Posteriormente, el legislador español en la Ley Orgánica 10/2007, de 8 de
octubre, lleva a cabo una reforma en la que trata de adecuar el marco del actual proceso
penal a las exigencias derivadas de la introducción en el mismo de modernas técnicas
de investigación criminal.
En efecto, en la investigación de los delitos se ha permitido la introducción de la
información obtenida a partir del ADN para identificar al culpable de un delito, tanto
en España como en otros países de nuestro entorno jurídico, si bien, como reconoce el
legislador en la exposición de motivos de esta norma, no con pocos problemas en lo que
se refiere a la obtención y registro de los datos genéticos de cara a su ulterior utilización
en el curso de investigaciones criminales surgidas con posterioridad.
La posible introducción del ADN como técnica de investigación criminal surge
en el contexto de la Unión Europea a partir de la Recomendación (92) 1, de 10 de
febrero de 1992, de su Comité de Ministros, y se sigue insistiendo en su virtualidad y

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eficacia práctica en las Resoluciones del Consejo de Europa relativas al intercambio de
resultados de análisis de ADN, de 9 de junio de 1997 y de 25 de julio de 2001 y,
últimamente, en las normas recogidas en el Reglamento de Eurojust relativas al
tratamiento y a la protección de datos personales, aprobado por el Consejo de Europa
el 24 de febrero de 2005 y, más recientemente, en el Convenio de Prüm4, que ha influido
directamente, como veremos, en la elaboración y aprobación de la Ley española objeto
de análisis5, y en la Decisión-Marco 2008/615/JAI del Consejo, de 23 de junio de 2008,
sobre la profundización de la cooperación transfronteriza, en particular en materia de
lucha contra el terrorismo y la delincuencia transfronteriza6.
Los problemas de inserción en el actual marco constitucional han sido objeto de
estudio y resolución adecuada en la jurisprudencia constitucional, sobre todo, a partir
del pronunciamiento de la STC 207/1996, de 16 de diciembre, al que ya hemos hecho
referencia anteriormente7. Posteriormente, se ha llevado a cabo el cumplimiento de la
exigencia constitucional sobre la legalidad y proporcionalidad de las medidas de
intervención corporal, como paso previo a la obtención de la muestra indubitada para
su posterior análisis de ADN, tal y como se deriva de la doctrina constitucional antes
referida, en la disposición final primera de la Ley Orgánica 15/2003, de 25 de noviembre,
de modificación del Código Penal, en los términos antes referidos.
Así, como hemos adelantado, la modificación consistió fundamentalmente, a los
efectos que ahora nos interesan, en la nueva redacción del art. 363 LECrim., de manera
que se pueda obtener ADN a partir de muestras biológicas del sospechoso para su posterior
contraste con perfiles genéticos provenientes de pruebas halladas en el lugar del delito, lo
que evidencia, a nuestro juicio, la falta de cobertura constitucional para la práctica de otras
diligencias de investigación corporal no contempladas por esta norma8.

4
Ratificado por nuestro país por INSTRUMENTO de ratificación de España del Convenio relativo a la
profundización de la cooperación transfronteriza, en particular en materia de lucha contra el terrorismo, la
delincuencia transfronteriza y la migración ilegal, hecho en Prüm el 27 de mayo de 2005.
5
Sobre estos aspectos, cfr. SANZ HERMIDA, A.M., «La protección de datos personales en la transferencia
automatizada de perfiles de ADN entre Estados miembros de la UE», en este mismo número de Iustel.
6
Esta Decisión establece las disposiciones de protección de datos que rigen la transferencia automatizada
de perfiles de ADN, datos dactiloscópicos y datos de registros nacionales de matriculación de vehículos. La Decisión
marco 2008/977/JAI, de 27 de noviembre de 2008, relativa a la protección de datos personales tratados en el marco
de la cooperación policial y judicial no se aplica en este ámbito, como se señala en el párrafo preliminar (39).
7
V. en este sentido el estudio llevado a cabo en mi obra Investigación penal sobre el cuerpo humano…,
op. cit., págs. 15 y ss.
8
De las consecuencias derivadas de esta reforma legal nos ocupamos en la obra colectiva “ Investigación
y prueba y proceso penal”, v. IGLESIAS CANLE, I. C, La nueva regulación de las medidas de intervención corporal
en el art. 363.2 LECrim.: la quiebra del principio de legalidad, págs. 175 y ss.
V. también PÉREZ MARÍN, M. A., Inspecciones, registros e intervenciones corporales. Las pruebas de ADN
y otros métodos de investigación en el proceso penal, Valencia, 2.008.

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Pero la reforma no contempló la posibilidad de crear una base de datos en la
que, de manera centralizada, se almacenase el conjunto de los perfiles genéticos, a fin
de que pudiesen ser utilizadas, posteriormente, en investigaciones distintas futuras,
incluso sin el consentimiento expreso del titular de los datos.
Este es el objetivo fundamental de la norma que analizamos, la Ley Orgánica
10/2007, de 8 de octubre, reguladora de la base de datos policial sobre identificadores
obtenidos a partir del ADN, si bien, como veremos, la coerción jurídica por la que apuesta,
está supeditada a la existencia de un perfil genético indubitado que, a su vez, requiere una
previa intervención corporal voluntaria, lo que, a todas luces, resulta un obstáculo de difícil
justificación en el contexto de una investigación criminal por delitos graves.
No olvidemos, que el ámbito de actuación de estas técnicas de investigación criminal
se refiere fundamentalmente a los delitos violentos contra la vida y la libertad sexual de
las personas, en los que la proporcionalidad de la injerencia en los derechos fundamentales
a la integridad física y a la intimidad se cumple escrupulosamente, razón por la cual no
entendemos la redacción dada a la disposición adicional tercera de esta norma.
El legislador en la Ley Orgánica 10/2007 establece que “para la investigación
de los delitos enumerados en la letra a) del apartado 1 del artículo 3, la policía judicial
procederá a la toma de muestras y fluidos del sospechoso, detenido o imputado, así como
del lugar del delito. La toma de muestras que requieran inspecciones, reconocimiento o
intervenciones corporales, sin consentimiento del afectado, requerirá en todo caso,
autorización judicial mediante auto motivado, de acuerdo con lo establecido en la Ley de
Enjuiciamiento Criminal”.
Los delitos a que se refiere el artículo 3.1 a) son “delitos graves y, en todo caso,
los que afecten a la vida, la libertad, la indemnidad o la libertad sexual, la integridad de
las personas, el patrimonio siempre que fuesen realizados con fuerza en las cosas, o violencia
o intimidación en las personas, así como en los casos de la delincuencia organizada,
debiendo entenderse incluida, en todo caso, en el término delincuencia organizada la
recogida en el art. 282 bis, apartado 4, de la Ley de Enjuiciamiento Criminal en relación
con los delitos enumerados”.
Es evidente que el legislador se está refiriendo a un ámbito muy determinado en
el que estaría plenamente justificada la vis o coerción física para la obtención del perfil
genético del sospechoso, tal y como sucede en el Derecho Comparado9, atendiendo
fundamentalmente al dato de la gravedad delictiva y a la idoneidad y necesidad de la
medida, así como a la proporcionalidad en sentido estricto, que debe argumentarse
suficientemente en el auto judicial que, a falta de consentimiento del sujeto pasivo, debe
dictar el órgano judicial competente.

9
Un estudio pormenorizado de la regulación de las medidas de intervención corporal en el Derecho
Comparado se recoge en mi obra ya citada IGLESIAS CANLE, I. C., Investigación penal…, op. cit.

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Pero el no haber abordado tal posibilidad en forma explícita lleva a considerar
la negativa como un indicio en contra del sospechoso o incluso, en algunos casos, como
un delito de desobediencia grave a la autoridad judicial, sin que tal consecuencia jurídica
sea útil al efecto de perseguir adecuadamente determinadas conductas delictivas graves
como las que estamos analizando.
Es evidente que se ha perdido una nueva oportunidad de solucionar las muchas
incógnitas que la parca regulación de las medidas de intervención corporal planteaban,
incluso, en lo que se refiere a las que permiten la introducción de la prueba genética en
nuestro proceso penal. La apuesta por la coerción jurídica, que analizamos seguidamente,
parte pues de un punto de origen viciado por la defectuosa e insuficiente previsión legal,
al requerir para la obtención de la muestra objeto de análisis genético, consentimiento
o autorización judicial no coactiva, tal y como están entendiendo nuestros tribunales10.
El artículo 1 de esta ley crea la base de datos policial de identificadores obtenidos
a partir del ADN, que integrará los ficheros de esta naturaleza de titularidad de las
Fuerzas y Cuerpos de Seguridad del Estado tanto para la investigación y averiguación
de los delitos, como para los procedimientos de identificación de restos cadavéricos o
de averiguación de personas desaparecidas.
Se inscribirán en esa base de datos policial los identificadores obtenidos a partir
del ADN que se refieran a los siguientes datos:

a) Los datos identificativos extraídos a partir del ADN de muestras o fluidos que,
en el marco de una investigación criminal, hubieran sido hallados u obtenidos
a partir del análisis de las muestras biológicas del sospechoso, detenido o
imputado cuando se trate de delitos graves y, en todo caso, los que afecten a la
vida, la libertad, la indemnidad o la libertad sexual, la integridad de las personas,
el patrimonio siempre que fuesen realizados con fuerza en las cosas, o violencia
o intimidación en las personas, así como en los casos de la delincuencia
organizada, debiendo entenderse incluida, en todo caso, en el término
delincuencia organizada la recogida en el art. 282 bis del apartado 4 de la Ley
de Enjuiciamiento Criminal en relación con los delitos enumerados.

b) Los patrones identificativos obtenidos en los procedimientos de identificación


de restos cadavéricos o de averiguación de personas desaparecidas.

10
V. en este sentido resoluciones, como la del Juzgado número 2 de O Carballiño de 16 de marzo de
2.006, en la que en el auto que acuerda la medida, se le advierte al destinatario de la misma de que se le notifique
para que acceda voluntariamente a someterse a la realización de lo acordado (extracción de saliva recogida en
hisopos o extracción de sangre a los efectos de obtener muestras para la determinación de su ADN), con apercibimiento
expreso de posible delito de desobediencia a la autoridad judicial en caso contrario, con advertencia de la valoración
que de su negativa quepa hacerse en relación con los indicios ya existentes.

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La inscripción en la base de datos policial de los identificadores obtenidos a partir
del ADN a que se refiere este apartado, no precisará el consentimiento del afectado,
el cual será informado por escrito de todos los derechos que le asisten respecto
a la inclusión en dicha base, quedando constancia de ello en el procedimiento.
A continuación el mismo art. 3 de esta ley precisa que “igualmente, podrán
inscribirse los datos identificativos obtenidos a partir del ADN cuando el afectado hubiere
prestado expresamente su consentimiento”, por lo que en estos casos no será posible
imponer la inscripción del perfil genético coactivamente, esto es, sin su consentimiento,
con lo que tampoco surtirá efectos la coerción jurídica a la que nos estamos refiriendo,
salvo que se obtenga tal información de la transferencia proveniente de un tercer Estado
Miembro, en los términos que contempla la Decisión Marco 2008/615 JAI, a la que
acto seguido haremos referencia.
De la lectura del art. 7.3 de esta norma se deriva la coerción jurídica, a partir
de la previa inscripción del perfil genético, y la circunscribe a determinados supuestos
cuando dispone que “podrán cederse los datos contenidos en la base de datos:
a) A las autoridades Judiciales, Fiscales o Policiales de terceros países de acuerdo con lo previsto
en los Convenios Internacionales ratificados por España y que estén vigentes.
b) A las Policías Autonómicas con competencia estatutaria para la protección de las personas
y bienes para el mantenimiento de la seguridad pública, que únicamente podrá utilizar los
datos para la investigación de los delitos enumerados en la letra a) del apartado 1 del artículo
3 de esta ley o, en su caso, para la identificación de cadáveres o averiguación de personas
desaparecidas.
c) Al Centro Nacional de Inteligencia, que podrá utilizar los datos para el cumplimiento de sus
funciones relativas a la prevención de tales delitos, en la forma prevista en la Ley 11/2002,
de 6 de mayo, reguladora del Centro Nacional de Inteligencia”.

Tal previsión debe completarse con lo dispuesto en el art. 9 de la misma norma


que establece el tiempo para la cancelación, rectificación y acceso a los datos en los
términos siguientes:
1. La conservación de los identificadores obtenidos a partir del ADN en la base de datos objeto
de esta ley no superará:
El tiempo señalado en esta ley para la cancelación de los antecedentes penales cuando se hubiese
dictado sentencia condenatoria firme o absolutoria por la concurrencia de causas eximentes por
falta de imputabilidad o culpabilidad, salvo resolución judicial en contrario.
En todo caso se procederá a su cancelación cuando se hubiese dictado auto de sobreseimiento
libre o sentencia absolutoria por causas distintas de las mencionadas en el epígrafe anterior, una
vez que sean firmes dichas resoluciones. En el caso de sospechosos no imputados, la cancelación
de los identificadores inscritos se producirá transcurrido el tiempo señalado en la ley para la
prescripción del delito.
En los supuestos en que la base de datos existiesen diversas inscripciones de una misma persona,
correspondientes a distintos delitos, los datos y patrones identificativos inscritos se mantendrán
hasta que finalice el plazo de cancelación más amplio.

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1. Los datos pertenecientes a personas fallecidas se cancelarán una vez el encargado de la base
de datos tenga conocimiento del fallecimiento. En los supuestos contemplados en el art. 3.1
b)11, los datos inscritos no se cancelarán mientras sean necesarios para la finalización de
los correspondientes procedimientos.
2. EL ejercicio de los derechos de acceso, rectificación y cancelación en relación con la base
de datos policial de identificadores obtenidos a partir del ADN se podrá efectuar en los
términos establecidos en la Ley Orgánica 15/1999, de 13 de diciembre, y en su normativa
de desarrollo.
3. Los identificadores obtenidos a partir del ADN respecto de los que se desconozca la
identidad de la persona a la que corresponden, permanecerán inscritos en tanto se mantenga
dicho anonimato. Una vez identificados, se aplicará lo dispuesto en este artículo a efectos
de su cancelación.12

Este régimen jurídico debe completarse con lo dispuesto por la Decisión-Marco


2008/615/JAI del Consejo, de 23 de junio de 2008, sobre la profundización de la
cooperación transfronteriza, en particular en materia de lucha contra el terrorismo y
la delincuencia transfronteriza, aplicable a la transmisión transfronteriza de datos en
este ámbito.
La Decisión-Marco 2008/615 JAI tiene por objeto intensificar la cooperación
transfronteriza, en particular, la que se refiere al intercambio de información entre las
autoridades responsables de la prevención y persecución de delitos. Para ello, tiene
normas que se refieren, en relación al tema que nos ocupa, a disposiciones sobre las
condiciones y procedimientos de transferencia automatizada de perfiles de ADN.
En efecto, en el art. 2 se contempla expresamente la creación de ficheros
nacionales de análisis de ADN y dice expresamente que “Los Estados miembros crearán
y mantendrán ficheros nacionales de análisis de ADN para los fines de la persecución de
delitos. El tratamiento de los datos almacenados en esos ficheros en virtud de la presente
Decisión se llevará a cabo de conformidad con la presente Decisión y con arreglo al Derecho
interno aplicable al tratamiento”. A continuación, se hace expresa mención a la exigencia
de que el perfil genético que conste en la base de datos nacional debe estar referenciado.
Los índices de referencia contendrán exclusivamente perfiles de ADN obtenidos a partir

11
Art. 3.1 b) de la L. O. 10/2007: “Se inscribirán en la base de datos policial de identificadores obtenidos
a partir del ADN lo siguientes datos: …Los patrones identificativos obtenidos en los procedimientos de identificación
de restos cadavéricos o de averiguación de personas desaparecidas”.
12
En relación a este tema resulta capital la Sentencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos de
4 de diciembre de 2008 en la que se condena a Reino Unido por considerar que es el único Estado Miembro
que autoriza expresamente la conservación sistemática y por un plazo ilimitado perfiles de ADN y muestras
celulares de personas que se hayan beneficiado de una absolución o una renuncia de acciones. Al tiempo sienta,
con carácter general, las bases y los principios que deben regir en esta materia para salvaguardar los restantes
derechos en conflicto.
V., un estudio detenido sobre esta Sentencia y la doctrina que sienta en SANZ HERMIDA, A., Notas de
Derecho Procesal Angloamericano, Revista General del Derecho, 18, 2009.

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de la parte no codificante del ADN y no contendrán datos que permitan identificar
directamente al interesado.
En el art. 3 se permite expresamente, de conformidad con lo dispuesto en el Derecho
interno del Estado miembro requirente, y para los fines de persecución de delitos, la
consulta automatizada de los perfiles de ADN. Si en el curso de una consulta automatizada
se comprueba la concordancia entre un perfil de ADN transmitido y perfiles de ADN
almacenados en el fichero consultado del Estado miembro receptor, el punto de contacto
nacional del Estado miembro que efectúa la consulta recibirá de forma automatizada el
índice de referencia con el que se haya producido la concordancia. Si no se encuentra
concordancia alguna, este hecho se comunicará de forma automatizada.
Otras consideraciones dignas de interés se contienen en los arts. 4, 5, 6 y 7 de
la Decisión-Marco 2008/615, referidos, respectivamente, a la transmisión de otros datos
de carácter personal y de otras informaciones, al punto de contacto nacional y medidas
de ejecución y, finalmente, a la obtención de material genético y transmisión de perfiles
de ADN.
Concretamente, en lo que respecta al tema de la coerción jurídica y enlazando
con lo dicho anteriormente en relación a la previsión de tal posibilidad prevista en la
Ley Orgánica 10/2007, de 8 de octubre, el art. 4 contempla la posibilidad de comparación
automatizada de perfiles de ADN y establece al efecto que los Estados miembros llevarán
a cabo, de mutuo acuerdo y a través de punto de contacto nacionales, comparaciones
de los perfiles de ADN no identificados con los perfiles de ADN contenidos en los perfiles
de referencia de los demás ficheros nacionales de análisis de ADN, para los fines de
persecución de delitos, lo que tendrá lugar únicamente en los casos en los que se prevea
dicha transmisión en el Derecho interno del Estado miembro requirente.
En nuestro Derecho, el Instrumento de ratificación del Convenio relativo a la
profundización de la cooperación transfronteriza, en particular, en materia de terrorismo,
delincuencia tranfronteriza y migración ilegal, hecho en Prüm el 27 de mayo de 2005,
otorga plena validez a tal previsión.
A la vista de la regulación sumariamente expuesta, quisiéramos concluir
manifestando que la parca e insuficiente regulación habida en España en materia de
intervenciones corporales hasta el momento, debida fundamentalmente al miedo del
legislador español a la hora de enfrentarse a las consecuencias de disponer de información
sensible de los sujetos pasivos de las mismas. Tales recelos deben superarse y abordar
de una manera clara y concisa los términos de la misma, puesto que la regulación a nivel
europeo y la posibilidad de obtener los perfiles genéticos mediante comunicación
transnacional de datos entre los Estados miembros, nos obliga a ello.
En efecto, en el art. 7 de la Decisión-Marco 2008/615 JAI se dice expresamente
que en el caso de que en el curso de una investigación o proceso penal no se disponga
del perfil de ADN de una persona determinada que se encuentre en el territorio de un

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183
Estado miembro requerido, este último deberá prestar asistencia judicial mediante la
obtención y el análisis del material genético de dicha persona y la transmisión del perfil
de ADN resultante, siempre que:
a) el Estado miembro requirente comunique el fin para el que se requiere;
b) el Estado miembro requirente presente una orden o declaración de investigación
de la autoridad competente, exigible con arreglo a su Derecho interno, de la
que se desprenda que se cumplirían los requisitos para la obtención y análisis
de material genético si esa persona concreta se encontrara en el territorio del
Estado miembro requirente, y,
c) se cumplan los requisitos para la obtención y análisis de material genético y
para la transmisión del perfil de ADN obtenido con arreglo al Derecho del
Estado miembro requerido.

Es evidente que las dudas que suscita la regulación actual del art. 363 LECrim.
en lo que respecta al recurso a la coerción física ante la ausencia del consentimiento del
sujeto pasivo de la medida, deben despejarse para adaptar nuestra regulación a las
exigencias de claridad que la normativa europea demanda.

III. LA PRUEBA DE ADN: EFICACIA Y VALORACIÓN PROBATORIA

1. EFICACIA

La parca regulación en la materia no es óbice para que en la práctica diaria se


admitan pruebas de identificación genética en el proceso penal, si bien, su admisión
debe condicionarse, como hemos visto, al sometimiento voluntario a la previa
intervención corporal13.
Asimismo, como ya se ha comentado, la actitud renuente al sometimiento
voluntario a tales pruebas se considera por algunos tribunales como un indicio en su
contra, incapaz por sí solo de desvirtuar la presunción de inocencia, pero que, junto a
otros, sí podría enervar su eficacia, o bien un posible delito de desobediencia grave a
la autoridad judicial
En este sentido, me manifiesto claramente partidaria del recurso a la coerción
física, con respeto en todo caso al principio de proporcionalidad y legalidad, de forma
que sólo en atención a la tutela de determinados bienes jurídicos como la vida o la
libertad sexual, supuesto que nos ocupa al referirnos en este trabajo particularmente a
la prueba en violencia sexual, el legislador debería de permitir de forma expresa la

13
Baste como referencia las SSTS de 11 de mayo de 1993 (RA 3878), de 13 de mayo de 1998 (RA
8278) y de 23 de junio de 1999 (RA 5847).

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imposición coactiva de una intervención corporal leve, en consonancia con la doctrina
constitucional de la STC 207/1996, necesaria para la obtención de la muestra biológica
indubitada con la que comparar el material genético dubitado hallado en la víctima o
en el lugar de los hechos y, posteriormente, practicar la prueba genética. Los resultados
que arroja este análisis y su interpretación avalan esta tesis, ya que, como pasamos
seguidamente a exponer, su interpretación probabilística e indiciaria no vulnera el
derecho a la defensa o a la presunción de inocencia del acusado14.
El principio de libertad probatoria es el que da entrada a estos medios de prueba
en el proceso penal español, porque no se encuentran limitados los medios de prueba
en el Ley de Enjuiciamiento Criminal, en definitiva, no se trata de una relación de
numerus clausus, de manera que los órganos jurisdiccionales admitirán todos aquellos
medios de prueba que sean lícitos, en la medida en que, en su obtención, no se hayan
vulnerado derechos fundamentales de la persona porque, en tal supuesto, devendrían
nulos de pleno derecho, por aplicación de lo dispuesto en el art. 238 LOPJ y,
fundamentalmente, en el art. 11.1 de la misma norma15.
Teniendo claras estas premisas, debe considerarse no obstante la desventaja que
supone la ambigüedad en la regulación sobre la materia porque, ante la falta de
obligatoriedad para ordenar estas diligencias, su admisión debe condicionarse a día de
hoy, tal y como hemos visto en la práctica, al libre sometimiento por parte del interesado,
con lo que gran parte del potencial de estas diligencias se pierde.
En la situación actual deben considerarse las vías a través de las cuales estas
diligencias y sus resultados pueden acceder al proceso penal. En tal sentido, debe partirse
de la naturaleza pericial de estas diligencias para permitir su incorporación al proceso,
tal y como viene siendo práctica habitual de los órganos jurisdiccionales.
Otras dudas que deben resolverse se refieren a la contradicción de la prueba que
resulte de estas diligencias, contradicción que debe tener lugar en el juicio oral, siendo
precisa la presencia del perito que realizó el análisis pericial en fase de instrucción, a

14
Valga como ejemplo la STS de 11 de mayo de 1993 (RA 3878) en la que se apunta tal posibilidad, si
bien, en esa ocasión, ante el sometimiento voluntario a tres previas extracciones sanguíneas, la negativa a la cuarta
no fue tenida en cuenta al valorar la prueba de cargo. V. también, en este sentido, el auto del Juzgado número 2
de O Carballiño de 16 de marzo de 2.006, al que hemos hecho anteriormente referencia, en el que se acuerda la
medida y se le advierte al destinatario de la misma de que se le notifique para que acceda voluntariamente a
someterse a la realización de lo acordado (extracción de saliva recogida en hisopos o extracción de sangre a los
efectos de obtener muestras para la determinación de su ADN), con apercibimiento expreso de posible delito de
desobediencia a la autoridad judicial en caso contrario, con advertencia de la valoración que de su negativa quepa
hacerse en relación con los indicios ya existentes.
Sobre esta cuestión v. mi obra Investigación penal…, op. cit., págs. 102-126.
15
El art. 287 de la LEC consagra nuevamente esta regla, considerando al efecto que “cuando alguna de
las partes entendiera que en la obtención u origen de alguna prueba admitida se han vulnerado derechos fundamentales
habrá de alegarlo de inmediato con traslado, en su caso, a las demás partes...”.

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185
efectos de considerar su posible validez probatoria, y, al fin y a la postre, su adecuada
interpretación por parte del órgano jurisdiccional decisor.
Los temas relacionados, de los que se trata seguidamente, son temas clave de la
disciplina y que, obviamente, se traen a colación en relación a las medidas de intervención
corporal sin ánimo de exhaustividad, sino simplemente, en la medida en que se necesitan
para procurar decisiones y ofrecer soluciones a los problemas que la incorporación al
proceso del resultado de tales diligencias suscita.

1.1. Recogida de Fuentes de Prueba y Actividad Probatoria

Las actividades encaminadas a la práctica de intervenciones corporales tienen como


finalidad, normalmente, la obtención de muestras biológicas del sospechoso que sometidas
al pertinente análisis pericial serán incorporadas al proceso penal, como término de
comparación de las muestras dubitadas obtenidas del lugar de los hechos por parte de la
policía o de la exploración efectuada a la víctima de una agresión sexual16.
Tales actuaciones tienen lugar en una primera fase proceso penal, si bien, en
ocasiones ni siquiera se habrá iniciado un proceso, supuesto en el cual, resulta
fundamental su apertura, para que, posteriormente, se proceda en el sentido de autorizar
esta medida de intervención corporal, dentro ya de la fase de instrucción, siempre que
concurran indicios serios en contra del sujeto pasivo de estas diligencias y se respete la
regla de la proporcionalidad de los sacrificios en su ejecución17.
Todo lo dicho apunta en el sentido de considerar que se trata de diligencias en
las que el juez instructor, o incluso la policía judicial actuando a prevención obtienen y

16
Sobre la recogida de muestras y vestigios del lugar de los hechos v. art. 326 LECrim. según el cual
“cuando el delito que se persiga haya dejado vestigios o pruebas materiales de su perpetración, el Juez instructor o el
que haga sus veces los recogerá y conservará para el juicio oral si fuere posible, procediendo al efecto a la inspección
ocular y a la descripción de todo aquello que pueda tener relación con la existencia y naturaleza del hecho.
A este fin habrá de consignar en los autos la descripción del lugar del delito, el sitio y estado en que se hallen
los objetos que en él se encuentren, los accidentes del terreno o situación de las habitaciones, y todos los demás detalles
que puedan utilizarse, tanto para la acusación como para la defensa.
Cuando se pusiera de manifiesto la existencia de huellas o vestigios cuyo análisis biológico pudiera contribuir
al esclarecimiento del hecho investigado, el Juez de instrucción adoptará u ordenará a la Policía Judicial o al médico
forense que adopte las medidas necesarias para que la recogida, custodia y examen de aquellas muestras se verifique
en condiciones que garanticen su autenticidad, sin perjuicio de lo establecido en el art. 282 LECrim.”.
Este último precepto por su parte establece que “la Policía Judicial tiene por objeto, y será obligación
de todos los que la componen, averiguar los delitos públicos que se cometieren en su territorio o demarcación;
practicar, según sus atribuciones, las diligencias necesarias para comprobarlos y descubrir a los delincuentes, y
recoger todos los efectos, instrumentos o pruebas del delito de cuya desaparición hubiera peligro, poniéndolos a
disposición de la autoridad judicial…”.
17
Si se quiere profundizar más en esta cuestión sobre la naturaleza de las diligencias llevadas a cabo en
la fase de instrucción y su validez como medios de prueba anticipada o preconstituida, v. mi trabajo sobre Investigación
penal…, op. cit.

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186
aseguran fuentes de prueba, a partir de las cuales tendrá lugar, en su caso, la pertinente
actividad probatoria18.
Pero dada la especificidad de la materia que estamos tratando, nuestra atención
se centrará más bien en la eficacia y valoración que debe referirse a la prueba realizada
a partir de los vestigios o muestras biológicas obtenidas del sujeto pasivo de la intervención
corporal, contrastadas con las muestras dubitadas recogidas del lugar de los hechos por
parte de la policía científica o de la propia víctima.

1.2. Requisitos Técnicos

Al margen de las anteriores consideraciones, relativas más bien al modo en el que


debe procurarse la introducción en el juicio del resultado de la intervención corporal, para
dotar de fiabilidad a estas diligencias, deben tenerse en cuenta una serie de garantías que
se refieren fundamentalmente a la observancia de la denominada “cadena de custodia”.
En este sentido la labor del Secretario Judicial resulta esencial, de modo que
en su función de ejercer la fe pública debe proceder a dejar constancia de que la
muestra recogida, enviada y analizada es la que debía ser. Esta cadena debe quedar
reflejada a través de diligencias de remisión y de copias de oficios en la documentación
del sumario.

Los pasos que deben seguirse son los siguientes:


1. Recogida de muestras siguiendo las reglas de la lex artis19, identificándolas
correctamente, y con citación de las partes personadas si existen y ello no
perjudica a la investigación, levantándose acta por el Secretario Judicial. Esta
acta debe estar firmada por el juez y las demás personas presentes20.
Por lo tanto, la recogida de muestras de personas vivas ha de hacerse con
respeto absoluto a las reglas de la lex artis. Por ejemplo, para la recogida de
una muestra de sangre hay dos sistemas: la venoclisis o punción venosa y la

18
La diferencia de las diligencias de prueba con los actos instructorios radica esencialmente en su finalidad
y virtualidad ya que sólo las primeras resultan aptas para desvirtuar la presunción de inocencia, de manera que el
órgano de enjuiciamiento pueda fundamentar una sentencia condenatoria en contra del acusado en tales diligencias
de naturaleza probatoria.
19
En este sentido deben tenerse en cuenta las prevenciones para una adecuada recogida de muestras,
evitando la posible contaminación química o biológica que desvirtuaría los resultados, hasta convertirlos en inútiles.
20
Recordemos que debe tenerse muy presente en esta materia el sentimiento de pudor de la persona
afectada, salvaguardando convenientemente su derecho a la intimidad personal, con la presencia, en su caso, de
una persona de su confianza y, por aplicación del principio de proporcionalidad, restringiendo en la medida de lo
posible los efectos lesivos para la intimidad de la persona, limitando al mínimo el número de personas intervinientes
o que presencien la intervención corporal.

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187
punción dactilar. El primero permite obtener un mínimo de 10 a 20 ml. de
sangre y debe realizarse en jeringas o tubos que contengan EDTA como
anticoagulante y este método es idóneo cuando se necesite “mucho” ADN
para realizar análisis en el laboratorio. El segundo sistema es menos invasivo
y menos doloroso para el sujeto pasivo y consiste en que se pinche el dedo
en la cara anterior y se deja que salgan algunas gotas de sangre que pueden
depositarse o dejarse secar en una gasa, algodón, papel secante...
En todo caso, no se trata de relacionar a continuación las técnicas para realizar
las intervenciones corporales porque por su heterogeneidad resultaría un
trabajo ingente y que además se escapa de la materia objeto de estudio. Pero
es indudable que la presencia de un perito a instancia de la parte y la constancia
escrita de todas estas circunstancias resultarán esenciales a la hora de valorar
los resultados obtenidos, razón por la cual se pone especial énfasis en esta
primera condición para dotar de validez a estas pruebas.
2. Una vez obtenidas las muestras debe procederse a su remisión por un medio
seguro, debiendo acompañarse la muestra de un oficio que refleje toda la
muestra enviada que debe ser comprobada antes de firmar el acuse de recibo,
de manera que haya identidad entre la muestra enviada y la que se recibe.
3. Recibidas las muestras en el Laboratorio, se debe realizar el Informe, y en él
se deben hacer constar las muestras recibidas y que se someten a examen,
con vistas a que quede constancia documental de todas estas cuestiones21.
4. Elaboración del correspondiente dictamen, posterior al reconocimiento y
análisis de las muestras, el cual será el punto de referencia esencial a la
hora de proceder a la valoración de los resultados obtenidos y que en él
se plasman22.

Si se observan estas garantías en la ejecución de la intervención corporal y posterior


remisión al órgano encargado de su análisis, difícilmente se pueden plantear situaciones
en las que resulte conveniente realizar una segunda prueba a efectos de contraste.
De todos modos, si la defensa lo solicita no debiera haber ningún obstáculo, antes
al contrario, para que sea posible su realización, si bien, con la posibilidad, de proceder
a su contradicción en la fase sumarial y, posteriormente, en la fase de juicio oral. Por ello,

21
El que sean laboratorios especialmente acreditados y que utilicen técnicas homologadas o el mismo
protocolo en torno a la metodología y a los patrones a utilizar, son cuestiones de las que ya nos hemos ocupado en
el capítulo primero de este trabajo. A ello nos remitimos.
22
FABREGA RUIZ, C. F., Aspectos jurídicos de las nuevas técnicas de investigación criminal, con especial
referencia a la “huella genética” y su valoración judicial, “La Ley”, núm. 4721, págs. 3-4.

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188
rara vez tendrá virtualidad práctica un segundo análisis, razón por la cual resulta más
conveniente favorecer la contradicción, permitiendo que el juez adquiera su convencimiento
sobre la base de un interrogatorio cruzado entre las partes y los peritos23.
Se trata de una solución residual pensada para supuestos en que el dictamen
pericial necesite ser contrastado porque los resultados que arroja, por la razón que sea,
resultan cuestionables, lo que, si la pericia se desarrolla correctamente y según el método
adecuado, observando en todo momento la cadena de custodia, en principio, no tiene
por qué suceder24. Por ello, resulta más conveniente que el reconocimiento e informe
se realice por el perito de la acusación, normalmente en la fase de instrucción, respetando
las reglas de la lex artis, y, siendo sometido a contradicción en ese momento, y
posteriormente, en el debate a que dé lugar el juicio oral, lo que permitará, en su caso,
sustentar la tesis de la defensa.

1.3. Requisitos Legales: La Prueba Prohibida

Las intervenciones corporales deben reunir en su práctica una serie de requisitos


y presupuestos, de los que ya se ha tratado, cuya ausencia determinará la nulidad de
lo actual y la ausencia de efectos probatorios de esas diligencias. Esto es así por
aplicación de lo dispuesto en el art. 11.1 LOPJ que establece que «no surtirán efecto
las pruebas obtenidas, directa o indirectamente, violentando los derechos o libertades
fundamentales».
Puede decirse que este es el precepto fundamental y de referencia en tema de
prueba ilícita y el que, en su comentario, le ha llevado a la jurisprudencia a establecer una
doctrina consolidada de lo que debe entenderse por prueba ilícita o prueba prohibida25.

23
Tendrá sentido, por ejemplo, en aquellas situaciones en que ha habido contaminación biológica o
química, o en aquellas situaciones en que la muestra de ADN estaba muy deteriorada y los resultados puedan ser
relativos, pero, con carácter general, el resultado no planteará duda y los términos del debate deben más bien
referirse a su valoración y eficacia en relación con los hechos y con las restantes pruebas.
24
Así lo reconoce LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA (El ADN y la identificación en la investigación
criminal y en la paternidad biológica, Granada, 1995, págs. 195 y ss.) que concluye que el “recurso sistemático al
contraperitaje es poco aconsejable en los análisis con ADN ya que, salvo error grosero por parte del Laboratorio, las
características de las técnicas empleadas permiten pocas dudas: si a una persona se le excluye, normalmente no queda
ninguna duda; si por el contrario, existe una inclusión (se concluye que un indicio “X” proviene de una persona “X”),
han de buscarse siempre los resultados estadísticos, para ver la probabilidad de inclusión que se consigue. Existen pocos
supuestos en los que la poca cantidad de la muestra o la mala calidad de la misma (ADN muy degradado) no permite
al laboratorio obtener probabilidades de inclusión muy altas (al menos mayores al 99%, o uno de cada cien), por lo
que en estos supuesto puede quedar una duda razonable”.
25
Tal y como pone de relieve MIRANDA ESTRAMPES (El concepto de prueba ilícita y su tratamiento en
el proceso penal, Barcelona, 1999, págs. 15 y ss.) aunque el concepto de prueba ilícita no es uniforme en la doctrina
ni en la jurisprudencia, parece conveniente conceptuarla como “no sólo aquella en cuya obtención o práctica se
han violentado derechos fundamentales, sino también aquella que ha sido obtenida con infracción de la legalidad
procesal ordinaria”.

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En tal sentido, el punto de partida no es otro que la necesaria observancia en la
obtención de cualquier fuente de la prueba de una serie de garantías que, en definitiva,
no son más que un medio de respetar los derechos y libertades de los sujetos que se
ven afectados por tales actuaciones.
De lo que se trata es de evitar que el ejercicio del ius puniendi del Estado se
realice a cualquier precio, lo que se traduce en la ineficacia de los medios de investigación
y de prueba lesivos de derechos fundamentales de la persona, tanto si tal lesión ha dado
lugar a un medio de prueba directo como indirecto.
Estrictamente para que se pueda hablar de ilicitud probatoria es necesario que
además de menoscabar un derecho fundamental con motivo de esa actividad probatoria,
exista un nexo de causalidad entre ambos, de manera que la obtención de la fuente de
prueba sea el resultado de lesionar el derecho fundamental. Y es precisamente en la
fase de investigación en la que tienen normalmente lugar esas actuaciones porque, esas
lesiones de derechos fundamentales se producen con motivo de actos extraprocesales,
lo que no impide que esta violación ocurra también con posterioridad a lo largo del
desarrollo del juicio, aunque no sea lo más usual.
Pero siguiendo a DÍAZ CABIALE y a MARTÍN MORALES, debe distinguirse la
prueba ilícita de la violación de principios que rigen la actividad probatoria, supuestos
en los que no hay propiamente una prueba ilícitamente obtenida. Ante tales situaciones,
como reconoció la STC 64/1986, el ordenamiento jurídico no puede permanecer
indiferente, pero para denunciar estas situaciones debe acudirse a las causas de nulidad
previstas en los art. 238 a 243 LOPJ y el 225.3 de la nueva Ley de Enjuiciamiento
Civil, de manera que en estos supuestos no se hablaría de prueba ilícita, sino de privación
de eficacia en los términos que contempla el art. 238 LOPJ y el art. 225 de la nueva
LEC. En conclusión, “es imprescindible dejar fuera del concepto de ilicitud probatoria
cualquier infracción del ordenamiento jurídico en materia probatoria que no provoque
la obtención de la fuente o medio de prueba”, doctrina que resulta de la aplicación de
lo dispuesto en la STC 64/1986, de 21 de mayo.
En la materia objeto de comentario, se trata, dicho sucintamente, que tal medida
se haya previsto por una ley, con una autorización judicial expresa, y con una restricción
proporcionada de los derechos y libertades en juego, sin lesionar, en ningún caso, la
vida o la salud del sujeto objeto de tal intervención o registro corporal realizada para la
obtención de una mínima muestra de su material biológico.
La sanción que establece la ley no es otra que decretar la nulidad de lo actuado,
de manera que no será posible utilizar esa prueba o cualquier otra que tenga su origen
en ella, como medio de enervar la presunción de inocencia del acusado en ese proceso,
porque, en definitiva, es un medio de preservar la presunción de inocencia.
No obstante, la última jurisprudencia tiende a matizar este criterio, en el sentido
de explicar la ineficacia de las pruebas obtenidas ilícitamente en la lesión del derecho
al proceso con todas las garantías del art. 24.2 CE y al principio de igualdad de armas,
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190
de manera que la valoración de un medio de prueba obtenido ilícitamente lesionaría,
en primer término, el derecho al proceso debido y, si además tales pruebas son las
únicas que fundamentan una sentencia condenatoria en su contra, la presunción de
inocencia; cosa que no sucedería si tal condena se basase en otros medios de prueba
válidos e independientes26.
La teoría de la “fuente independiente” se introdujo por primera vez en nuestro
Derecho por medio del art. 11.1 LOPJ y, posteriormente, obtuvo reconocimiento
jurisprudencial, sobre todo a raíz de la STC 86/1995, de 6 de junio, si bien, el Tribunal
Supremo ya había hecho uso de ella con anterioridad27. Esta línea argumental es la que
discurre a lo largo de la STC 81/1998 que completa la doctrina sentada por el Tribunal
Constitucional sobre la prueba ilícita hasta el momento28.
Añade a su anterior doctrina que la invalidez de las pruebas reflejas sobreviene
como consecuencia de la existencia de una “conexión de antijuridicidad”, es decir, de
una relación entre ambos medios de prueba lo suficientemente fuerte para estimar que
la ilicitud originaria de las primeras trasciende a las segundas, hasta el punto de provocar
la sanción invalidante29.

26
DÍAZ CABIALE, J. A., MARTÍN MORALES, R., La garantía constitucional de la inadmisión de la
prueba ilícitamente obtenida, Madrid, 2001, págs. 22-33.
El origen de esta doctrina se encuentra en la STC 81/1998, refrendada por las SSTC 49/1999, 94/1999,
139/1999, 161/1999, 166/199, 171/1999, 238/1999, 239/1999, 8/2000, 50/2000, 126/2000, 127/2000
y 299/2000.
27
En esta sentencia se le dio validez a la declaración del acusado emitida en el momento del juicio oral,
considerando que se estaba en presencia de una fuente independiente de prueba que puede ser admitida y valorada,
ya que, desde que se produjo la actuación ilícita había transcurrido un cierto tiempo y, desde entonces, el acusado
había recibido asesoramiento legal, había podido evaluar sus posibilidades de defensa y, si se había producido su
valoración lo había sido tras haber sido advertido de que no tenía obligación de hacerlo, es decir, siendo plenamente
consciente de que sus manifestaciones podrían ser utilizadas en su contra.
28
Comentarios a esta resolución se pueden v. en JUANES PECES, A., La prueba prohibida. Análisis de
la sentencia 81/1998 del Tribunal Constitucional. Un nuevo enfoque de la presunción de inocencia, AJA, 30 de julio
de 1998, núm. 353, págs. 1-5; LÓPEZ ORTEGA, J. J., Prueba y proceso penal. El alcance derivado de la prueba
ilícita en la jurisprudencia constitucional (A propósito de la STC 81/1998), “Derecho y Proceso penal”, 1999, núm.
1, págs. 123 y ss.; MARTÍ SÁNCHEZ, N., La llamada “prueba ilícita” y sus consecuencias procesales, AP, 19998,
t. I., núm. 7, págs. 141-162.
29
En el supuesto concreto al que se refiere este pronunciamiento, “para determinar si esa conexión de
antijuridicidad existe o no hemos de analizar, en primer término, la índole y características de la vulneración del
derecho al secreto de las comunicaciones materializadas en la prueba originaria, así como su resultado, con el fin
de determinar si, desde el punto de vista interno, su inconstitucionalidad se transmite o no a la prueba obtenida
por derivación de aquella... Desde el punto de vista de la índole y características de la vulneración que aquí se trata
ha de considerarse, en primer término, cuál de las garantías de la injerencia en el derecho al secreto de las
comunicaciones telefónicas ha sido efectivamente menoscabada y en qué forma...Esto sentado, procede analizar el
resultado inmediato de la infracción, esto es, el conocimiento obtenido a través de la injerencia practicada
inconstitucionalmente. La sentencia impugnada subraya que, en virtud de la intervención telefónica, sólo se obtuvo
un dato neutro... A partir de ese hecho, el Tribunal Supremo entiende que dadas las circunstancias del caso y,
especialmente, la observación y seguimiento de que el recurrente era objeto, las sospechas que recaían contra él y

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El Tribunal Constitucional lo que pretende con su pronunciamiento es reducir el
contenido de la garantía de la exclusión de la prueba ilícita y para ello construye la teoría
de la conexión de antijuridicidad. Pero sin llegar al extremo de negar esta garantía, por
lo que debe determinar los supuestos en que las pruebas indirectas, por ser independientes
jurídicamente, pueden ser admitidas.
Se aprecia la recepción en nuestro Derecho de una serie de teorías norteamericanas
que han supuesto excepciones a la aplicación de la doctrina de “the fruit of the poisonous
tree doctrine”.
En tal sentido, según la teoría de la fuente independiente de lo que se trata es de
que la prueba que se presenta no sea consecuencia de la lesión de un derecho fundamental,
siendo ésta la única vía que la dicción literal del art. 11.1 LOPJ permite, ya que, al prohibir
absolutamente la valoración de las pruebas ilícitas, sin excepción alguna, es preciso para
dar validez a alguna de estas pruebas, que exista una desconexión causal entre la prueba
indirecta y la lesión del derecho fundamental, o si se prefiere, será válida siempre que los
hechos pueden alcanzarse a través de una fuente independiente.
La tesis del nexo causal atenuado supone que la prueba no se habría obtenido
de no producirse la lesión del derecho fundamental, pero existe una cierta diferenciación
entre la lesión del derecho y la obtención de la prueba derivada, razón por la cual se
rompe la conexión entre la prueba ilícita inicial y el acto independiente posterior. La
crítica a la aceptación de esta teoría es fácil, la dicción literal del art. 11.1 LOPJ
impide cualquier posible valoración de la prueba obtenida violentando, “directa o
indirectamente”, derechos fundamentales de la persona. No obstante, el Tribunal
Constitucional la admite considerando que se trata de una prueba que no guarda
relación con la lesión del derecho fundamental.
Por último, la STC 81/1998 supuso la importación definitiva de la teoría del
descubrimiento inevitable, y que ha desembocado en el reconocimiento de la teoría de
la “conexión de antijuridicidad”. Se trata de distinguir entre la prueba obtenida violando
derechos fundamentales y la prueba que se habría obtenido, hipotéticamente, sin
esa vulneración (DÍAZ CABIALE, MARTÍN MORALES, p. 88 y ss. y 110).
Lo que es evidente es que en nuestro sistema, al igual que sucede en el modelo
norteamericano, se busca la disuasión policial al negarle validez a las pruebas obtenidas

la irrelevancia de los datos obtenidos a través de la intervención telefónica, el conocimiento derivado de la injerencia
en el derecho fundamental contraria a la Constitución no fue indispensable ni determinante por sí solo de la ocupación
de la droga o, lo que es lo mismo, que esa ocupación se hubiera obtenido, también, razonablemente, sin la vulneración
del derecho. Esta afirmación que, desde la perspectiva jurídica que ahora estamos considerando rompe, según la
apreciación del Tribunal Supremo, el nexo entre la prueba originaria y la derivada, no es, en sí misma un hecho,
sino un juicio de experiencia acerca del grado de conexión que determina la pertinencia o impertinencia de la
prueba cuestionada. Por consiguiente, no se haya exento de nuestro control, pero, dado que, en principio, corresponde
a los jueces y tribunales ordinarios, el examen de este Tribunal ha de ceñirse a la comprobación de la razonabilidad
del mismo”. LÓPEZ ORTEGA, J. J., Prueba y proceso penal.., op. cit., págs. 123 y ss.

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violentando derechos fundamentales de la persona. Pero, además, en nuestro Derecho
la perspectiva debe ser también constitucional. Es decir, se trata de defender el modelo
constitucional del proceso, al tiempo que con ello se evitan actuaciones policiales abusivas
para los ciudadanos.
A modo de ejemplo, si resulta afectado el derecho a la intimidad personal y
corporal en los términos que refleja el art. 18 CE o el derecho a la integridad física del
art. 15 del mismo texto legal, sin mediar consentimiento del sujeto pasivo de la medida
de intervención corporal, nuevamente se trataría, a falta de regulación precisa que
autorice la intervención corporal coactiva, de una diligencia de intervención corporal
nula por resultar ilícita y atentatoria contra tales derechos fundamentales.
El resultado derivado de la práctica y obtención de un medio de prueba ilícito
no es otro que la absoluta nulidad e ineficacia de lo practicado. Para hacer valer tal
ilicitud en el proceso penal, nuevamente nos encontramos, prácticamente, huérfanos
de regulación.
Una vez más debe partirse del art. 11.1 LOPJ, que simplemente dice que tales
pruebas «no surtirán efecto». La práctica forense difiere el examen de la licitud o ilicitud
de la prueba al momento de dictar sentencia, si bien, como afirma MIRANDA ESTRAMPES,
no debe haber inconveniente, sino que, por el contrario, parece conveniente que el órgano
judicial rechace las pruebas obtenidas ilícitamente con anterioridad, por ejemplo, en el
trámite de admisión de la prueba, con la finalidad de evitar de este modo la influencia
psicológica de la prueba prohibida en el juzgador30.
Sin embargo, la solución más deseable sería la consagrada en el art. 287.1 de la
nueva Ley de Enjuiciamiento Civil, en el que se dice expresamente que “cuando alguna
de las partes entendiera que en la obtención u origen de alguna prueba admitida se han
vulnerado derechos fundamentales habrá de alegarlo de inmediato, con traslado, en su
caso, a las demás partes. Sobre esta cuestión, que también podrá ser suscitada de oficio
por el tribunal, se resolverá en el acto del juicio o, si se tratare de juicios verbales, al
comienzo de la vista, antes de que dé comienzo la práctica de la prueba. A tal efecto,
se oirá a las partes y, en su caso, se practicarán las pruebas pertinentes y útiles que se
propongan en el acto sobre el concreto extremo de la referida ilicitud”.
De esta manera se estaría posibilitando la contradicción al inicio de las sesiones del
juicio oral sobre una cuestión de extrema importancia en la que resulta esencial, no sólo

30
En apoyo de esta tesis MIRANDA ESTRAMPES (El concepto de prueba ilícita y su tratamiento en el
proceso penal, Barcelona, 1999, págs. 995 y ss.) cita la jurisprudencia del Tribunal Constitucional que, con referencia
a la interpretación de la expresión y concepto de pertinencia de la prueba (arts. 659 y 792.1 LECrim.) dice que
“el concepto de “medios de prueba pertinentes” que aparece en el art. 24.2 de la Constitución pasa, así, a
incorporarse, sobre su contenido esencialmente técnico-procesal, un alcance también sustantivo, en mérito del cual
nunca podrá considerarse “pertinente” un instrumento probatorio así obtenido” (STC 114/1984, de 29 de
noviembre). Con todo, este autor entiende que esta solución debe ser provisional, en tanto no se contemple
expresamente la inadmisión de las pruebas ilícitamente obtenidas, ya que, en pura técnica procesal, el concepto
de pertinencia poco o nada tiene que ver con la licitud o ilicitud de la prueba.

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la posibilidad de hacer alegaciones sobre la cuestión, sino también de practicar prueba,
resolviéndose en este momento inicial, sin necesidad de esperar al momento de dictar
sentencia. No obstante, el órgano que debe conocer y resolver sobre la posible ilicitud
probatoria es el mismo que debe decidir sobre el fondo del asunto, por lo que no se evita
con ello la posible influencia psicológica de estas pruebas ilícitas en el juzgador31.
Además, esta solución por arriesgada debe ser considerada por el momento como
una mera hipótesis, al fin y al cabo, trasladar soluciones del proceso civil cuando hay
un régimen jurídico específico en el proceso penal resulta, cuando menos, cuestionable.
Deben pues considerarse primero las opciones que permite actualmente la Ley de
Enjuiciamiento Criminal.
En primer lugar, debe considerarse el control de la ilicitud probatoria como una
cuestión que no debe quedar únicamente en poder de las partes del proceso, de manera
que el órgano jurisdiccional también, no sólo pueda, sino que deba controlar de oficio
esta cuestión.
En contra de esta posibilidad, se alegaba el tenor literal del art. 793.2 LECrim.
(hoy, 786.2 LECrim., en términos idénticos, salvedad hecha de la expresa denegación
de recurso frente a tal decisión, sin perjuicio de la pertinente protesta y de que la
cuestión pueda ser reproducida, en su caso, en el recurso frente a la sentencia), que
regulaba la audiencia saneadora del proceso abreviado, en los siguientes términos «El
juicio oral comenzará con la lectura de los escritos de acusación y de defensa.
Seguidamente, a instancia de parte, el juez o tribunal abrirá un turno de intervenciones
para que puedan las partes exponer lo que estimen oportuno acerca de la competencia
del órgano judicial, vulneración de algún derecho fundamental, existencia de artículos
de previo pronunciamiento, causas de suspensión del juicio oral, así como sobre el
contenido y finalidad de las pruebas propuestas o que se propongan para practicarse
en el acto. El juez o tribunal resolverá en el mismo acto lo procedente sobre las
cuestiones planteadas»32.

31
En este sentido parecía pronunciarse, si bien, sin referirse a la entonces futura Ley de Enjuiciamiento
Civil, MIRANDA ESTRAMPES (El concepto de prueba ilícita..., op. cit., págs. 97-98), valorando muy positivamente
esta hipotética solución.
Con la Ley de Enjuiciamiento Civil la solución ya no resulta tan hipotética partiendo de la vocación universalidad
con la que nace y reconoce expresamente la Exposición de motivos cuando dice que “en coincidencia con anteriores
iniciativas la nueva Ley de Enjuiciamiento Civil aspira también a ser Ley procesal común, para lo que, a la vez, se
pretende que la vigente Ley Orgánica del Poder Judicial, de 1.985, circunscriba su contenido a lo que indica su
denominación y se ajuste, por otra parte, a lo que señala el apartado primero del art. 122 de la Constitución. La
referencia en este precepto “al funcionamiento” de los Juzgados y Tribunales no puede entenderse, y nunca se ha
entendido, ni por el legislador postconstitucional ni por la jurisprudencia y la doctrina, como referencia a las normas
procesales que, en cambio, se mencionan en otros preceptos constitucionales....”. A mayor abundamiento, el art. 287
de la nueva LEC pertenece al capítulo V referido a las “disposiciones generales sobre la prueba”.
32
Redacción dada por la Ley de 13 de noviembre de 2009 de reforma de la legislación procesal para la
implantación de la nueva oficina judicial.

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Sin embargo, debe entenderse que, como afirmaba MIRANDA ESTRAMPES,
la dicción literal de este precepto no era obstáculo para que el juez pudiese apreciar de
oficio la ilicitud probatoria. No es lo mismo condicionar la apertura de la audiencia
saneadora a la existencia de una petición de parte interesada, a que el control de la
licitud de la prueba sea necesariamente siempre a instancia de parte (MIRANDA
ESTRAMPES, 1999, p. 123-124).
Resuelta esta primera duda, queda pendiente el tema del momento procesal
oportuno para denunciar la ilicitud. En tal sentido, debe partirse nuevamente de la
opción manifestada ya en torno a la conveniencia de evitar la influencia psicológica del
juzgador por parte de la prueba obtenida con violación de derechos fundamentales de
la persona.
En primer lugar, nada impide que en la fase de instrucción se pueda hacer valer
tal ilicitud. Es en el momento en que se está llevando a cabo una actividad investigadora
y aseguratoria de las fuentes de prueba, cuando el órgano jurisdiccional debe observar
escrupulosamente el procedimiento y considerar que los restantes órganos o personas
intervinientes en el mismo así lo han hecho. En caso contrario, deberá ser consecuente
declarando la ilicitud de la prueba así obtenida. Sino fuera así, ello podría dar lugar a
la apertura del juicio oral basada en datos nulos carentes de fuerza incriminatoria,
siguiéndose innecesariamente un proceso contra una persona que deberá soportarlo
injustamente. De otro lado, será mejor depurar la ilicitud probatoria cuanto antes, sino
queremos correr el riesgo de la “contaminación” a la que de otro modo estarían sometidas
otras pruebas derivadas, directa o indirectamente, de esa actuación ilícita.
Esta posibilidad es particularmente interesante en relación al tema de las medidas
de intervención corporal que, como hemos visto, se configuran normalmente como medios
de prueba anticipada o preconstituida, según los casos, que tienen lugar y se adoptan,
normalmente, en la fase de instrucción.
Sin embargo, el problema principal estriba en el hecho de que será el propio órgano
instructor que acordó la diligencia el que deba declarar su ilicitud. Su imparcialidad y
neutralidad, fuera de toda duda, permitirán, al menos tal dualidad, pero, no deja de ser
comprometido para el órgano jurisdiccional controlar de oficio su propia actuación, por lo
que para corregir las posibles deficiencias que esta situación pueda generar, resulta esencial
que el Ministerio Fiscal asuma un papel activo, controlando la posible ilicitud de las
diligencias que se lleven a cabo. Ello es particularmente interesante en aquellas situaciones
en que se haya decretado el secreto de sumario, debiendo combatir, sobre todo por la vía
de los recursos, aquellas resoluciones limitativas de derechos fundamentales, de las que
pueda derivarse una prueba, en las que, directa o indirectamente, en su obtención, se
haya vulnerado alguno de estos derechos esenciales (p. 126-129).

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Ya terminada la instrucción, en el ámbito del proceso abreviado debe considerarse
la audiencia saneadora regulada en los términos vistos en el art. 786.2 LECrim.33 Es
en esta audiencia preliminar, que tiene lugar al inicio de las sesiones del juicio oral,
donde deben concentrarse las peticiones de nulidad suscitadas, en lo que ahora nos
concierne, por la violación de derechos fundamentales en el momento de obtención de
una fuente de prueba en la fase de instrucción34. Y lo que debe estar fuera de toda duda
es que, pese a la postura vacilante de nuestro Tribunal Supremo en este sentido (v. por
ejemplo, SSTS de 6 de marzo y de 6 de octubre de 1995), esta cuestión debe resolverse
inmediatamente, no quedando diferida al momento de dictar sentencia, porque entonces
se podrá practicar la prueba en el momento del juicio oral, lo que no es deseable a
efectos de evitar que la convicción del tribunal se forme sobre la base de la prueba
obtenida ilícitamente.
Simplemente, concluir con el convencimiento de que la posibilidad que brinda
este precepto no es exclusiva ni excluyente, de manera que debe considerarse también
la posible denuncia y control de la prueba ilícita en la fase de instrucción, o, incluso,
con posterioridad a esta audiencia preliminar, de oficio o a instancia de parte, porque
la vulneración de derechos fundamentales exige tal flexibilidad.
De todos modos, lo que es evidente es que la situación actual es insatisfactoria,
y parece inaplazable una reforma de la Ley de Enjuiciamiento Criminal en el sentido
de arbitrar mecanismos que permitan el control, a instancia de las partes personadas en
el procedimiento, de los supuestos de ilicitud probatoria, con el establecimiento de una
audiencia preliminar en la que, con carácter previo, se debata sobre esta cuestión. No
obstante, como hemos visto, esta solución tiene el inconveniente de que se está controlando
la posible ilicitud por el órgano de enjuiciamiento, con lo que el influjo psicológico opera
igualmente y que evidencia la conveniencia de que, si la ilicitud tiene lugar en la fase
de instrucción, el órgano judicial que la dirija debe constatar tal ilicitud y apartar del
conocimiento del órgano de enjuiciamiento tales pruebas (MIRANDA ESTRAMPES,
p. 131-136).
Sino, lo que sucederá, tal y como viene siendo habitual, tanto en el proceso
abreviado, en el que según hemos visto la decisión sobre la ilicitud se difiere al momento

33
En la nueva redacción del proceso abreviado, reformado por la Ley 38/2002, de 24 de octubre, el
artículo citado se corresponde con el art. 786.2 LECrim. que mantiene la regulación anterior en términos
prácticamente idénticos. Simplemente se añade que «frente a la decisión adoptada no cabrá recurso alguno, sin
perjuicio de la pertinente protesta y de que la cuestión pueda ser reproducida, en su caso, en el recurso frente a
la sentencia».
34
Quizá por ello la jurisprudencia (v. STS de 24 de junio de 1993) se muestra reacia a permitir el control
de la ilicitud probatoria en el momento de la instrucción, salvo si se trata de situaciones de “extrema gravedad”,
como por ejemplo, una declaración prestada bajo tortura, nunca en otro caso.

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de dictar sentencia, pese a su planteamiento como cuestión previa ex art. 786.2 LECrim.,
como en el ordinario, a falta de mecanismos que permitan tal control previo, será al
dictar sentencia el tribunal el que deba apreciar tal ilicitud, con la carga que ello comporta
a la hora de fundamentar el fallo exclusivamente en pruebas lícitas, sin que sea tenida
en cuenta, en ningún momento, la prueba ilícita o las derivadas de ella, de forma
manifiesta o encubierta, en el proceso de génesis y formación de la resolución judicial
que pone fin a la causa penal35.

2. LA APRECIACIÓN DE LA PRUEBA DE ADN

El tema de las intervenciones corporales y de los análisis genéticos conduce


inexorablemente a tratar la valoración de la prueba que de ellas resulten. Hemos visto
que la naturaleza pericial de estas diligencias está presente a lo largo de todo el proceso,
desde el momento de su obtención, pasando por su análisis, y, finalmente, hasta el
momento en el que tiene lugar la comparación y contraste con las muestras dubitadas.
Hemos analizado, en primer lugar, las garantías de deben observarse a la hora
de realizar la oportuna intervención corporal, y las que deben presidir el proceso de
análisis de las muestras indubitadas obtenidas del sujeto pasivo de estas diligencias, si
bien, en relación a esta última cuestión nos remitimos más bien a las reglas de la lex
artis, que son, en definitiva, las que aseguran la corrección de estas pruebas.
Resta, pues, por examinar el proceso de valoración del resultado de estas
diligencias. Su naturaleza pericial exige que tengamos, principalmente, en cuenta las
reglas de valoración de este medio de prueba. Ello determina que normalmente el
juez, a la hora de valorar los análisis practicados, se encontrará huérfano de los
conocimientos necesarios para valorar adecuadamente los resultados que estos arrojen.
Esta situación es particularmente grave en relación a la interpretación de los resultados
que proporcionen los análisis genéticos, en los que la especialidad de la materia
dificulta enormemente su tarea.
No es posible, por otro lado, exigirles a los jueces este grado de especialización.
De hecho, estamos a favor de que esta especialización se refiera a los peritos actuantes
ante los órganos jurisdiccionales, y, recordemos, además, nuestra firme apuesta porque
su intervención tenga lugar en el acto del juicio oral, aportando la debida claridad en
una materia no exenta de dificultades.
Aún así, es evidente que la última palabra la tiene el juez. Lo normal será que
se fíe del dictamen presentado, que si, al menos, está debidamente contrastado y aclarado

35
Un estudio más detenido sobre este tema, particularmente sobre la denuncia de la ilicitud probatoria
en la Ley Orgánica del Tribunal del Jurado, v. en mi trabajo Investigación penal…, op. cit., págs. 145 y ss.

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en el momento de práctica de la prueba, será un elemento muy a tener en cuenta a la
hora de emitir su fallo36. Pero, si ni siquiera presenta esta nota, el juez, falto de
conocimientos específicos sobre la materia, prácticamente reproducirá el informe tal y
como ha sido emitido, o peor aún, tal y como ha sido presentado por la acusación y/o
la defensa.
Advertimos de los peligros que las nuevas tecnologías comportan, pero no negamos
con ello su virtualidad e importancia. Al contrario, simplemente, tratamos de constatar
una realidad que la ley actual permite y que hay que corregir.
En ese proceso de interpretación y valoración de la prueba pericial resulta esencial
y en él no se le puede exigir al juez que se convierta en un hombre de ciencia, pero sí que
pueda controlar la validez de las pruebas científicas. El juez, al igual que los abogados y
fiscales, debe controlar la competencia de los peritos y la corrección de la aplicación de
la técnica pericial al caso concreto, la adecuada recogida de las muestras, los resultados
presentados en términos de probabilidad... Y si una primera solución sería la de llamar a
un perito que informase sobre estas cuestiones, ello puede tener sentido en situaciones de
extrema complejidad, pero no así con carácter general. Generalmente los criterios que
permiten valorar esta actuación son otros: la valoración de la autoridad científica, la
incorporación al patrimonio científico comúnmente aceptado de los métodos de investigación
por él seguidos y, finalmente, la coherencia lógica de su argumentación. Sobre estos tres
pilares debe sentarse la valoración del juez, que, resultará después de la debida
contradicción de los informes periciales presentados por acusación y defensa.
La libre valoración de la prueba que preconiza el art. 741 LECrim. no debe
esgrimirse en esta materia como un medio de eludir una valoración razonada y
fundamentada de los medios de prueba. De hecho, la utilización de máximas de
experiencia provenientes de saberes especializados le aporta mayor rigidez al proceso
de valoración que si se tratase de reglas de la sana crítica provenientes de la experiencia
cotidiana. Y su vulneración podría llegar a fundamentar incluso un recurso de casación
por realizar la sentencia una interpretación irracional o arbitraria, carente de motivación
y que, por tanto, conculcaría la presunción de inocencia.
Sin llegar a estos extremos que nos sitúan ya en el tema del control de la motivación
de la decisión judicial, debemos prestar atención al proceso anterior de formación o
génesis de esa voluntad, en la que tendrán especial interés los dictámenes periciales que
se presenten.

36
Debe recordarse que la conveniencia de un contraanálisis se reduce a los supuestos en que la dificultad
de la materia o la complejidad es tal que el resultado debe contrastarse con un segundo informe. En los demás
casos, la propia dinámica del sistema, fundamentalmente, el hecho de que sea realizado por un equipo técnico y
su alto precio, desaconsejan este tipo de contrapericias, teniendo en cuenta, en todo caso, la posibilidad de que la
defensa la costee.

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198
Y, como hemos adelantado, si todas estas consideraciones son ciertas con carácter
general para la prueba pericial, al referirlas específicamente a la prueba genética cobran
más fuerza.

2.1. Naturaleza Indiciaria

Los análisis genéticos arrojan resultados que simplemente dan lugar al reconocimiento
de un indicio y no una prueba directa sobre el delito, ni de la autoría o participación en
él del acusado. Ello es de trascendental importancia teniendo en cuenta que la prueba
indiciaria debe reunir unos requisitos para desvirtuar la presunción de inocencia.
Así, según reiterada jurisprudencia del Tribunal Constitucional y del Tribunal
Supremo, “el derecho a la presunción de inocencia no se opone a que la convicción
judicial en un proceso penal pueda formarse sobre la base de una prueba indiciaria, si
bien esta actividad probatoria debe reunir una serie de exigencias para ser considerada
como prueba de cargo suficiente para desvirtuar la presunción constitucional. Se coincide
en resaltar como requisitos que debe satisfacer la prueba indiciaria los siguientes: que
los indicios, que han de ser plurales y de naturaleza inequívocamente acusatoria, estén
absolutamente acreditados, que de ellos fluya de manera natural, conforme a la lógica
de las reglas de la experiencia humana, las consecuencias de la participación del
recurrente en el hecho delictivo del que fue acusado y que el órgano judicial ha de
explicitar el razonamiento en virtud del cual, partiendo de esos indicios probados, ha
llegado a la convicción judicial de que el acusado realizó la conducta tipificada como
delito” (STS de 28 de noviembre de 1997, RA 8561).
Los indicios, por tanto, deben ser plurales y deben, además, estar probados,
debiendo el órgano judicial explicitar el razonamiento seguido para, partiendo de esos
indicios probados, haber llegado a la conclusión de que el procesado realizó la conducta
tipificada como delito (STC 94/1990, de 23 de mayo).
Así, la prueba genética dará lugar en el proceso penal, mediante las conclusiones
presentadas por los peritos, a un indicio probatorio que el juzgador habrá de valorar,
“razonando expresamente en la sentencia tanto los motivos que le llevan a considerar
probado, en su caso, el indicio –esto es, la valoración del propio informe pericial- como
el hecho que considera probado con base en tal indicio –, y, en este último caso,
haciendo mención de las razones de su convicción y, así, su valoración en conjunción
con otros indicios.
La importancia de la prueba genética también se relativiza por el hecho de que
los indicios tendrán más o menos relevancia en función de otras circunstancias. Valga
como ejemplo el que utiliza el Profesor FRAGOSO-ÁLVAREZ que se refiere al análisis
de un pelo obtenido en el lugar en el que se cometió el asesinato. El resultado del

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reconocimiento pericial concluye con la coincidencia entre los marcadores genéticos
del pelo y de la muestra del acusado. El hecho puede significar mucho o no significar
nada según las circunstancias, y así según otra serie de indicios, que se presenten en
el caso. Si el acusado no tiene motivo alguno que explique la aparición del cabello en
el lugar de los hechos, la coincidencia producirá un indicio de gran valor. Por el
contrario, si el acusado visita con asiduidad ese lugar, el indicio perderá toda su
virtualidad probatoria. Mayor convicción cabrá adquirir de este indicio si, además, se
produce el denominado “doble vínculo”, a saber: junto al pelo obtenido del lugar del
crimen se obtiene una mancha de sangre del pantalón que fue recuperado del domicilio
del acusado, la cual, una vez analizada, da como resultado la coincidencia entre los
marcadores genéticos de dicha mancha y la sangre de la víctima (LÓPEZ-FRAGOSO
ÁLVAREZ, 1999, p. 212 y ss).
Del ejemplo expuesto se deduce claramente el valor indiciario del análisis genético,
porque, en definitiva, la presencia del ADN de una persona en el lugar de los hechos
no es concluyente. Simplemente demostrará su presencia y ello si no pensamos en que
lo que se ha producido es una contaminación biológica anterior, posterior o previa, de
manera que, en realidad, lo que puede haber sucedido es que esa persona ha estado
con la persona asesinada antes de la comisión del crimen, o que se encontraba
casualmente en el lugar de los hechos, o, bien, que posteriormente, antes del hallazgo
del cadáver, pasó por allí37.
Su relatividad aumenta al considerar su naturaleza probabilística, de la que
pasamos a ocuparnos a continuación y que supone, dicho en pocas palabras, que los
resultados que arrojan estas pruebas deben medirse en términos de probabilidad respecto
a la población de una región determinada.
Estas consideraciones no hacen sino matizar la importancia que la prueba genética
debe tener en el proceso, un indicio que, en conjunción con otros, puede destruir la
presunción de inocencia. En definitiva, lo que no puede aceptarse desde esta perspectiva
es que si esto es así, la negativa a la práctica de estas diligencias sea considerada a su
vez como un indicio, esto es, como si la prueba se hubiera practicado y, además, hubiera
arrojado un resultado positivo, que, recordemos, se manifiesta en términos relativos o
de probabilidad, no en términos absolutos.

37
Por citar alguna posibilidad porque, como dice LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA (El ADN y
la identificación..., op. cit., pág. 141), “...si en un caso determinado aparece una pequeña mancha de sangre
(evidencia) en el pomo de una puerta, en un fragmento de baldosa o en un cenicero, en el momento de recogerla
es inevitable que el investigador pueda arrastrar ADN de otras personas que, siendo ajenas al hecho criminal dejaron
el mismo depositado al abrir la puerta, al pisar la baldosa o al manejar el cenicero. Este tipo de contaminación
puede ser múltiple (en una baldosa que hay en el suelo pueden pasar muchas personas que arrastran en la suela
de sus zapatos materiales biológicos de un origen muy variado, amén de que se pueden acumular pelos, restos de
saliva, etc..., dificultan aún más la interpretación de los resultados)”.

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200
2.2. Naturaleza Probabilística

Analizaremos a continuación esta última cuestión, incidiendo en el papel que


debe corresponder al juez, al abogado defensor y al Ministerio Fiscal, si bien, su
naturaleza pericial, obliga a que sean los peritos actuantes ante los órganos jurisdiccionales
a que actúen con el debido rigor y, en definitiva, explicando convenientemente en sede
de práctica de la prueba, sus informes, con independencia de se hayan presentado
previamente en la fase de instrucción.
En este sentido el Profesor CARRACEDO ÁLVAREZ afirma que “aunque
coincidan los polimorfismos de ADN en la mancha y en el presunto culpable, el perito
solo puede dar un valor probabilístico a esta coincidencia y nunca otorgarle la certeza
absoluta, aunque, en muchos casos, la probabilidad de que esa mancha provenga del
acusado sea científicamente elevada”. Porque de lo que se trata es de que el perito le
haga comprender al juez el significado de esos conceptos probabilísticos a fin de que el
juez pueda evaluar la prueba científica de la forma más justa, incorporándola a otras
pruebas de distinta naturaleza38.
En este proceso es esencial que el juez comprenda primero el concepto de
probabilidad. Con independencia de la evolución que haya experimentado este concepto,
la probabilidad podemos definirla, siguiendo nuevamente al Profesor CARRACEDO
ÁLVAREZ, como “la medida de la verosimilitud que superpone un sistema de coordenadas
numéricas a juicios comparativos del sentido común faltos, en parte, de estructuración.
En definitiva, la incertidumbre se mide con un estándar que es la probabilidad”.
Con esta definición no hacemos más que iniciarnos en el camino de la valoración
de la prueba genética. El paso siguiente viene constituido por la exclusión en la
interpretación de la prueba biológica de lo que este autor denomina “la falacia de la
acusación y la falacia de la defensa”.
Para comprender el significado de estos términos debemos considerar primero
cómo deben interpretarse los resultados que arroja una prueba de ADN. Si el resultado
es negativo, es decir, de no coincidencia de uno o más marcadores genéticos, el margen
de error es despreciable, de manera que podemos decir que la mancha analizada no
corresponde a esa persona, con un margen de error mínimo y que depende únicamente
de la seguridad analítica del laboratorio. Ello quiere decir que, en esencia, la exclusión
de una persona se consigue cuando en los indicios dubitados se encuentran fragmentos

38
CARRACEDO ÁLVAREZ, A., La valoración de la prueba en Criminalística, CGPJ, 1996, pág. 340.
Concluye diciendo este autor que “la realidad es que todos los avances técnicos realizados con la introducción del
polimorfismo del ADN tendrán poco valor si no se acompañan con una presentación más correcta por el perito de los
resultados de la prueba, y por un conocimiento suficientes por los jueces del significado de probabilidad y de cómo ésta
se aplica para valorar este tipo de pericias”.

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de ADN que no posee la persona acusada. Entonces, si se confirma la exclusión será
total sin que sea necesario realizar cálculos estadísticos39.
El problema aparece cuando el resultado es positivo, o de coincidencia de uno
o varios marcadores genéticos en la mancha analizada y en el material biológico obtenido
del sujeto pasivo de la intervención corporal. En ese caso la pregunta que formula el
juez es la siguiente, “¿cuál es la probabilidad de que esa mancha de sangre o ese pelo
o ese esperma provengan de ese individuo?”. Es decir, entonces los resultados deben
presentarse teniendo en cuenta los datos estadísticos poblacionales40.
La primera respuesta a esta pregunta puede parecer sorprendente porque aunque
coincidan varios marcadores genéticos, afirma este experto en la materia, “siempre
existirá una incertidumbre sobre si pertenece la mancha al individuo, que, repetimos,
puede ser mínima, pero siempre es evaluable y no puede hablarse en ningún caso de
incriminación o seguridad absoluta”. Debe pues procederse a la valoración en términos
de probabilidad de la coincidencia de grupos.
Y es entonces cuando se corre el peligro de presentar los resultados de manera
equivocada o exagerada, cayendo en lo que hemos llamado “falacia de la acusación y
de la defensa”. Valga como ejemplo el siguiente, que relata el Prof. CARRACEDO en
su trabajo: “Si se analiza un grupo de ADN y que la mancha y el acusado poseen el
fenotipo 19-29, que lo posee una persona de cada cien... la prueba se puede presentar
ante el juez, como ahora veremos, de forma muy diferente: El fiscal puede presentar el
caso así: “El análisis del Laboratorio Forense tiene en este caso una enorme importancia.
El grupo encontrado lo posee sólo el uno por cien de la población, de modo que sólo
hay un uno por ciento de probabilidades de que la sangre provenga de otro que no sea
el acusado. Es decir, solo hay el uno por ciento de probabilidades de que algún otro
haya cometido el crimen, de modo que el acusado tiene un 99% de probabilidades de
ser culpable”. La defensa puede al contrario decir: “La prueba del laboratorio forense
tiene una importancia muy escasa. Sólo el uno por ciento de la población posee ese
grupo de ADN, pero en una ciudad como ésta... (supongamos que el crimen se cometió
en Madrid) con unas 500.000 personas en edad de cometer el crimen, ese grupo será

39
De ahí la importancia, que ya hemos recalcado en varias ocasiones, de que los laboratorios que realicen
estos análisis sigan las recomendaciones de la ISFH (International Society for Forensic Haemogenetics), estando
en tal sentido, debidamente acreditados.
En este sentido, LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA (El ADN y la identificación..., op. cit., págs.
183 y ss) advierten de que ese criterio es esencial para dotar de validez a los informes presentados, pero, además,
los informes deberán incluir los tipos de técnicas empleadas y el fenotipo de los marcadores analizados, la probabilidad
de coincidencia y discriminación y, en su caso, la tasa de error a priori.
40
Debemos excluir los supuestos en que, como consecuencia de una contaminación genética, aparecen
en el resultado analítico una serie de alelos que corresponden a más de un individuo y entre los que se encuentra
el genotipo del sospechoso. En estos casos, la conclusión analítica debe ser que “el individuo no puede ser excluido”,
lo que no debe ser interpretado ni como una exclusión, ni como una inclusión con una probabilidad determinada.
(V. LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA, El ADN y la identificación..., op. cit, pág.185).

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encontrado en 5.000. El ADN muestra pues que el acusado es una de las 5000 personas
de la ciudad que pudo haber cometido el crimen. Una posibilidad en 5.000 tiene una
importancia escasísima para que se considere a esa persona culpable”.
Pero es que ninguno de estos dos argumentos es correcto y se han denominado
la falacia del fiscal y de la defensa.
Para hacer una correcta valoración de los resultados obtenidos tras el análisis
genético debemos acudir al análisis Bayesiano. El teorema de Bayes “es una consecuencia
inmediata de la ley de la multiplicación que sirve para conocer las probabilidades finales
de un suceso a partir de las probabilidades inciales, dada cierta información o
informaciones adicionales obtenidas”.
Este es el teorema que debe aplicar el juez para valorar objetivamente la prueba
científica. Así, el juez no tendrá más que multiplicar su grado de creencia previo sobre
la culpabilidad del acusado, expresado en forma de apuesta, por un factor que el perito
debería proporcionar siempre al juez y que se denomina “likelihood ratio” o razón de
verosimilitud y que es el resultado de contemplar la probabilidad de encontrar el hallazgo
científico dada la culpabilidad, y la probabilidad de encontrar el hallazgo científico dada
la inocencia. De esta manera el perito evita caer en la falacia de la defensa o de la
acusación y contempla ambas posibilidades.
En un ejemplo el perito debería razonar de la siguiente manera: la probabilidad
de que una mancha de sangre provenga de ese individuo si es culpable es 1 (100%).
Pero, bajo la hipótesis de la no culpabilidad o inocencia, la probabilidad del hallazgo
es la misma que la de que un hombre al azar de la población posea el mismo fenotipo
19-29. Es decir, 0.01 (1%). Si aplicamos la fórmula de la razón de la verosimilitud (LR),
resulta que ésta es 100 (1/0.01). Esto significa que la probabilidad de la culpabilidad
de ese individuo en forma de apuesta se habrá multiplicado por 100.
Es entonces cuando debe tenerse en cuenta el criterio que tenía el juez a favor o
en contra de la culpabilidad antes de conocer el resultado de la prueba científica. En un
ejemplo, si el juez con las otras pruebas considera que es inocente con muchas posibilidades
(1000 a 1 a favor de la inocencia) después de la prueba de ADN, con una razón de
verosimilitud igual a 100, sigue teniendo muchas posibilidades de ser inocente (10 a 1 a
favor de su inocencia, ya que este es el resultado de 0.001 x 100=0.1). Si por el contrario
el juez estima que tiene tantas posibilidades de ser inocente como de ser culpable, podrá
apostar de forma objetiva 100 contra 1 a favor de su culpabilidad.
El ejemplo expuesto es bastante significativo y refleja la complejidad de la valoración
de la prueba científica. El análisis bayesiano no resulta fácil de comprender para los
hombres de leyes, pero es el único sistema justo para valorar la prueba científica.
Profundizando un poco más sobre la cuestión, para determinar la probabilidad
de culpabilidad dada la prueba científica, debemos considerar la probabilidad a priori,
y esto es competencia exclusiva del juez y no del perito. Ello ha llevado a cometer
importantes errores ya que, a veces, el perito ocupa el lugar del juez y asigna

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automáticamente un valor de 0.5 a la probabilidad a priori, es decir, tantas probabilidades
de ser culpable como inocente. Si expresamos la probabilidad de que el individuo sea
culpable (P (C)) como el resultado de aplicar la siguiente fórmula, resulta evidente que
se van a falsear los resultados.
En un ejemplo se ve claro. En el caso Collins de 1968, una mujer mayor fue
arrojada al suelo y robada en Los Ángeles, y un testigo vio corriendo a una mujer blanca
con pelo rubio y cola de caballo que entró en un coche amarillo, conducido por un
hombre negro con barba y bigote. La policía arrestó a una pareja que presentaba
características similares, pero no había más pruebas que los acusaran. El perito aplicó
la regla de la independencia y consideró que:
Características:
Automóvil amarillo 1/10
Hombre con bigote 1/4
Mujer con cola de caballo 1/10
Mujer con pelo rubio 1/3
Hombre negro con barba 1/10
Pareja interracial en coche 1/1000
De estos datos el Ministerio Fiscal concluyó que había una posibilidad en doce
millones de que una pareja seleccionada al azar encajase en estas características. El
jurado los condenó. Posteriormente, el Tribunal Supremo de California revocó la
sentencia, al considerar que el testimonio del perito era erróneo ya que no se ajustaba
a la teoría de las probabilidades. En definitiva, si la probabilidad a priori era muy baja
(no había más pruebas que el testimonio de una mujer), la probabilidad a posteriori
también lo sería. Porque lo cierto es que si se busca una pareja con estas características,
probablemente se encuentre, y ello no quiere decir que sea culpable.
De lo dicho se desprende, de un lado la importancia de que el dato de la probabilidad
a priori de la culpabilidad la proporcione el juez, sino se falsearán los resultados y, de otro,
el hecho de que el resultado que se obtiene incluso en los supuestos en que la pericia de ADN
da como resultado la inclusión, puede ser relativo. Para evaluarlo hay que acudir a las
probabilidades, contempladas desde dos perspectivas o hipótesis alternativas, y expresada como
una proporción entre ambas. Si no se caería en la falacia de la acusación o de la defensa
(CARRACEDO ÁLVAREZ, 1999, p. 301-308; 1996, p. 339-358).
Lo dicho corrobora aún más el valor indiciario de la prueba genética, que debe ser
tenida en consideración conjuntamente con otros medios de prueba incriminatorios para el
acusado. En este proceso resulta particularmente interesante el modo en que se presenten
los resultados porque, KOEHLER demostró en un amplio estudio que, si se presentan en
términos matemáticos (0.1, 0.01, 0.001..), los jurados tienden a considerar culpable a un
acusado con mayor facilidad que si se presentan en términos de frecuencia ( 1 entre 1000,

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1 entre 10.000, 1 entre 100.000) porque, significando exactamente lo mismo, se ha dado
entrada a la posibilidad de que otras personas distintas posean los mismos marcadores
genéticos. Si se presentan en ambos modos, entonces no se aprecian diferencias, los jurados
tienden a considerar culpable o inocente a un acusado sin que influya el modo de informar
de los peritos.
Ello demuestra la necesidad de que los órganos jurisdiccionales conozcan mínimamente
la técnica pericial de ADN y de los problemas que puede ocasionar su uso inadecuado o
incorrecto. Resulta, por ejemplo, conveniente que los peritos informen en términos de
probabilidad y de frecuencia, por ejemplo, como hace el Tribunal Supremo en la STS de
13 de mayo de 1998 (RA 8278, 1998), en la que se dice expresamente que “el Instituto
Nacional de Toxicología certifica que mediante técnica de identificación de ADN se ha
comprobado que las características de las células epiteliales recuperadas en el dispositivo
intrarectal...coinciden con las correspondientes a M.A. B..Y., y que la frecuencia de estas
características genéticas en la población es de 0.29 por cien, es decir, de veintinueve de
cada diez mil individuos...”41.
Todo ello nos lleva de nuevo a reclamar la presencia de los peritos en la fase de juicio
oral, dando oportunas explicaciones sobre el modo en que se han obtenido los resultados
derivados de la prueba genética y, también, informando convenientemente en relación a los
resultados obtenidos en relación al caso concreto y a la determinada población o subpoblación
a que pertenezca el acusado o las muestras biológicas analizadas42.
Su presencia es necesaria sobre todo desde el prisma de reclamar una adecuada
interpretación y valoración de las pruebas, para, en definitiva, trasladar su razonamiento
o informe a la motivación de la decisión judicial.

3. A MODO DE CONCLUSIÓN

La conclusión obtenida confirma la posición inicial según la cual la imposición


coactiva, en las condiciones y con los presupuestos vistos, de una leve y mínima
intervención corporal (extracción sanguínea, corte de cabellos...), siempre que el sujeto
pasivo de la misma fuese el imputado, acusado o procesado, supone desde el punto de
vista del derecho de defensa de la parte mayores garantías que el considerar la negativa
al sometimiento como un indicio de la comisión de los hechos, con la previa salvaguarda

41
Cosa distinta es que para la obtención de este resultado se haya seguido correctamente en análisis
bayesiano, circunstancia que desconocemos.
42
Este dato es esencial, así, como ponen de relieve LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA (El ADN
y la identificación..., op. cit., págs. 193-194), “si unos genotipos son frecuentes en una población, podríamos
obtener que dicho perfil genético se da en uno de cada diez mil individuos de la población, mientras que si en la
subpoblación existente dentro del grupo poblacional anterior son poco frecuentes, se daría en un individuo de cada
cien mil. Lógicamente, no es igual un caso que otro”.

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205
de sus derechos fundamentales conforme a la previa autorización legal de la intervención
corporal, adecuada a las exigencias de la proporcionalidad y razonabilidad de la medida
(art. 363.2 LECrim.).
La impunidad que se procura el agresor de la víctima de violencia sexual, con
las dificultades que nos encontramos en sede probatoria al no existir prácticamente otro
medio de prueba, determinan la viabilidad de las mismas, según el juicio de
proporcionalidad que debe plasmar el juez en la autorización de la medida, al resultar
tal intervención corporal no sólo necesaria e idónea, sino también proporcional en sentido
estricto, al suponer una restricción a los derechos del imputado plenamente justificada
al no poder adoptarse otra medida menos lesiva para el imputado que resulte eficaz para
la realización de los fines del proceso penal43.
No obstante, por el contrario, la práctica de estas diligencias de intervención
corporal en relación a la víctima de delitos violentos, particularmente en el ámbito de
los delitos contra la libertad sexual, donde su reconocimiento por parte del personal
médico resulta fundamental para la búsqueda y recogida de vestigios biológicos
provenientes del autor de los hechos (semen, saliva, pelos…) y resultan esenciales para
la identificación del delincuente, debe respetar en todo caso la intimidad de la víctima,
sin que sea sometida a trato inhumano o degradante alguno, con la previa prestación de
su consentimiento informado. Si la víctima no autorizase la intervención corporal,
únicamente, siguiendo el modelo del Derecho Alemán, debiera permitirse la práctica
de aquellas diligencias que consistan en la búsqueda de las huellas del delito “sobre el
cuerpo” o “entre las ropas”, no “en el cuerpo” de la víctima, por mucho que en el
Derecho Alemán el recurso a la coerción física se admita sin reservas para la práctica
de diligencias de intervención corporal sobre el imputado44.
La valoración indiciaria y probabilística de los informes genéticos confirman esta
tesis inicial, debiendo, no obstante, rodear a la práctica de la prueba pericial,
particularmente de la prueba de ADN, de todos los requisitos examinados y que deben
observarse para lograr su eficacia y adecuada valoración e interpretación por el juez al
dictar sentencia45.

43
Sobre el principio de proporcionalidad v. GONZÁLEZ-CUÉLLAR SERRANO. N., Proporcionalidad…,
op. cit., Madrid, 1990.
44
En relación a quienes pueden ser sujeto pasivo de las intervenciones corporales y en qué condiciones
y presupuestos y con qué límites v. mi trabajo sobre Investigación penal…, op. cit., págs. 81 y ss.
45
Debe recordarse que, residualmente, sobre todo en relación con los registros e inspecciones corporales,
incluso sobre el imputado, no debe considerarse la posibilidad de su imposición coactiva porque ello sería
desproporcionado y lesivo para el derecho de defensa de la parte, de modo que, en tales situaciones resulta preferible
optar por la consideración de la negativa como un indicio en su contra.

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206
REFERÊNCIAS

ALAÑÓN OLMEDO F. (Algunos apuntes sobre el contenido del artículo 416 de la Ley de
Enjuiciamiento Criminal), “Violencia de género: perspectiva jurídica y psicosocial”, Tirant lo
Blanch, Valencia, 2009, págs. 63 y ss.).

ARRACEDO ÁLVAREZ, A., Valoración de la prueba del ADN, “La prueba de ADN”, Medicina
Forense, 1999, Barcelona, págs. 301-308; Idem, La valoración de la prueba de ADN .., op. cit.,
págs. 339-358.

CARRACEDO ÁLVAREZ, A., La valoración de la prueba en Criminalística, CGPJ, 1996, pág. 340.

DÍAZ CABIALE J. A., MARTÍN MORALES, R., La garantía constitucional..., op. cit., págs. 88
y ss. y 110.

DÍAZ CABIALE, J. A., MARTÍN MORALES, R., La garantía constitucional de la inadmisión de la


prueba ilícitamente obtenida, Madrid, 2001, págs. 22-33.

En este sentido, LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA (El ADN y la identificación..., op. cit.,
págs. 183 y ss)

FABREGA RUIZ, C. F., Aspectos jurídicos de las nuevas técnicas de investigación criminal, con
especial referencia a la “huella genética” y su valoración judicial, “La Ley”, núm. 4721, págs. 3-4.

GONZÁLEZ-CUÉLLAR SERRANO (Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal,


Madrid, 199.

IGLESIAS CANLE, I. C, C.“Investigación penal sobre el cuerpo humano y prueba científica”, Madrid,
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IGLESIAS CANLE, I. C, La nueva regulación de las medidas de intervención corporal en el art.


363.2 LECrim.: la quiebra del principio de legalidad , págs. 175 y ss.

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ilícita en la jurisprudencia constitucional (A propósito de la STC 81/1998), “Derecho y Proceso
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consecuencias procesales, AP, 19998, t. I., núm. 7, págs. 141-162.

LÓPEZ ORTEGA, J. J., Prueba y proceso penal.., op. cit., págs. 123 y ss.

LÓPEZ-FRAGOSO ÁLVAREZ, T., El análisis de ADN en el proceso penal, La Laguna, 1999, pág.
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LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA (El ADN y la identificación en la investigación criminal y


en la paternidad biológica, Granada, 1995, págs. 195 y ss.)

LORENTE ACOSTA/LORENTE ACOSTA, El ADN y la identificación..., op. cit, pág.185).

MIRANDA ESTRAMPES (El concepto de prueba ilícita y su tratamiento en el proceso penal,


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207
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SANZ HERMIDA, A., Notas de Derecho Procesal Angloamericano, Revista General del Derecho, 18, 2009.

Recebido: julho 2010


Aprovado: abril 2011

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208
O PAPEL DOS MUNICÍPIOS
PARA A MELHORIA DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO

THE ROLE OF MUNICIPALITIES


TO IMPROVE THE ENVIRONMENT OF WORK

Cirlene Luiza Zimmermann*

RESUMO: O trabalho é inerente à própria existência do ser humano, sendo que a sua evolução,
associada ao uso da máquina no processo produtivo, gerou o fenômeno da industrialização, que é o
principal fator de crescimento das cidades e, por consequência, da sua desordem. Estabelecida essa
conexão, visa-se com o presente estudo aproximar o recente Estatuto da Cidade, especialmente por
meio de suas diretrizes, ao meio ambiente do trabalho. A qualidade de vida da população de uma
cidade está diretamente vinculada ao equilíbrio do ambiente laboral, motivo pelo qual os instrumentos
de política urbana podem e devem ser usados pelos Municípios em prol da melhoria desse importante
aspecto da vida diária dos trabalhadores.

PALAVRAS-CHAVE: Municípios. Estatuto da Cidade. Plano Diretor. Meio ambiente do trabalho.

ABSTRACT: The work is inherent in the very existence of mankind, with its development, associated
with the use of machinery in the production process, created the phenomenon of industrialization,
which is the main factor of growth of cities and, consequently, their disorder. Established this connection,
the present study aims to bring the recent Status of the City, especially through its guidelines, the
environment of work. The quality of life of a city is directly linked to the balance of the work environment,
for which the instruments of urban policy can and should be used by municipalities for the improvement
of this important aspect of daily life of workers.

KEYWORDS: municipalities. city statute. master plan. work environment.

* Graduada em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS, Mestranda em Direito pela Universidade
de Caxias do Sul – UCS e Procuradora Federal.

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209
1. INTRODUÇÃO

Com o presente estudo visa-se estabelecer o papel dos Municípios na busca de


melhorias no meio ambiente do trabalho. Sendo o ambiente laboral o local em que
grande parte da população se encontra durante boa parte de sua vida, nada mais coerente
que as cidades, na expectativa de propiciar uma melhor qualidade de vida aos seus
habitantes, interfiram de forma a obter um meio ambiente do trabalho equilibrado,
seguro e saudável.
O trabalho sempre fez parte da vida do homem, sendo que a Revolução Industrial,
que transformou de modo significativo essa relação, levou as atividades laborais a se
concentrarem nas cidades, gerando um enorme caos, em razão da falta de planejamento
do Poder Público para receber e acomodar o crescente número de pessoas que se
aproximava dos grandes centros (onde se instalavam as indústrias), para neles também
se estabelecer, com a expectativa de melhorar de vida.
Assim, não há dúvida de que existe relevante contato entre a questão ambiental
(em todas as suas perspectivas) com a urbanística. A Constituição da República de 1988
incumbiu aos Municípios a execução da política de desenvolvimento urbano, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. O Estatuto da Cidade
(Lei n.º 10.257/2001) é a lei que estabelece essas diretrizes gerais a que se refere nossa
Carta Magna.
Tais diretrizes trazem importantes princípios para a ordenação das cidades, sendo
que a sua regulamentação pelo Poder Público municipal é fundamental para o atingimento
das metas constitucionais relacionadas com a qualidade de vida da população. Em razão
disso, e pelos impactos negativos que os degradantes ambientes de trabalho têm gerado
na classe trabalhadora (o que confronta o objetivo do bem-estar dos habitantes), busca-
se aproximar as diretrizes do Estatuto da Cidade das questões da ambiência laboral.
Os Municípios dispõem de uma série de instrumentos para concretizar as diretrizes
estabelecidas em seu projeto de cidade, sendo que várias delas podem e devem ser
utilizadas em prol da melhoria do meio ambiente de trabalho. Assim, também se
apresentam neste estudo algumas dessas ferramentas e os benefícios que podem gerar
para a massa trabalhadora.

2. O TRABALHO COMO FATOR DE CRESCIMENTO DAS CIDADES E O


MEIO AMBIENTE DO TRABALHO

O crescimento das cidades foi influenciado de forma importante pelo fenômeno


da industrialização, desde as primeiras cidades atingidas por ele, na Inglaterra, até as
demais cidades do mundo que foram recepcionando-o com o passar dos anos. A instalação

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de grandes indústrias era um acontecimento que chamava as pessoas para os centros
urbanos, fazendo-as saírem do campo em busca de oportunidades e melhor qualidade
de vida. No entanto, essas cidades não haviam sido planejadas para receber esse
incremento de população, sendo que não existia infraestrutura suficiente para abrigá-la.
Com isso, os trabalhadores migrantes foram se apropriando dos piores espaços, passando
a morar em ambientes sujos, motivo pelo qual, além dos riscos a que se submetiam nas
indústrias, também em suas residências estavam sujeitos a doenças em razão desses
ambientes habitacionais inadequados. Nessa época, a pobreza rondava os operários,
enquanto a riqueza crescente dos industriais empregadores fazia surgir enorme
disparidade social entre as duas classes.
Na obra “Manifesto do Partido Comunista”, Marx e Engels ilustram o início do
processo de expansão desordenada das cidades e, ao mesmo tempo, da busca de
ocupação urbana:
A burguesia submeteu o campo ao domínio da cidade. Criou cidades enormes, aumentou
extraordinariamente a população urbana em relação à dos campos e, deste modo, arrancou
uma parte significativa da população da idiotia da vida rural. E do mesmo modo que subordinou
o campo à cidade, tornou dependentes os povos bárbaros e semibárbaros dos civilizados, os
povos camponeses dos povos burgueses, o Oriente do Ocidente (1998, p. 10).

Pereira (2003, p. 11) assevera que as pessoas que migravam do campo para a
cidade imaginavam que o simples movimento de migração era suficiente para obter
oportunidades de vida, de trabalho e consequentes ganhos financeiros. Porém, o que a
migração realmente gerou em volta das cidades cosmopolitas atuais foi um cinturão de
pobreza e miséria, criando a periferia das grandes cidades, que são lugares sem as
mínimas condições de habitabilidade, com as pessoas vivendo em condições subumanas,
sem qualquer dignidade.
Segundo Rocha (1999, p. 6-8), a urbanização designa o processo pelo qual a
população urbana cresce em proporção superior à população rural, sendo que esse
processo suscita grande preocupação nas autoridades políticas e científicas internacionais,
na medida em que o crescimento populacional desordenado traz implicações de variadas
ordens, principalmente no que tange à qualidade de vida das pessoas, saúde, educação,
violência urbana e impactos ao meio ambiente. Além disso, destaca o autor, o desemprego
é outro ingrediente explosivo na crise urbana.
Torres (1995, p. 173-174) ensina que a rapidez do processo de urbanização no
Brasil teve características inéditas em termos mundiais, tendo o país, desde 1970, se
transformado numa nação urbana. Algumas raízes desse crescimento urbano,
contraditoriamente, se encontram nas áreas rurais, já que a “modernização da agricultura”
contribuiu substancialmente para a “expulsão” da população rural. Argumenta o autor:

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Independentemente da ocorrência mais intensa de poluição, oriunda diretamente do processo
de industrialização, a urbanização, dentro desses parâmetros de escassez de recursos para
políticas sociais, contribuiu crescentemente para a degradação do ambiente. O espaço foi
ocupado de maneira desordenada, a coleta de lixo, o calçamento das ruas, as redes de água,
luz e esgoto nunca puderam acompanhar o ritmo de crescimento das cidades.

Jacobi (1996, p. 178) explica que a crise econômica que persiste desde a década
de 1980 faz com que um número crescente de famílias não tenha outra opção senão
ocupar solo urbano localizado em áreas de proteção de mananciais, provocando uma
degradação de fontes de água potável e do seu entorno.
Antunes (2008, p. 184) esclarece que os principais problemas ambientais globais
têm sua origem na urbanização e na industrialização e confessa: “na verdade, hoje nós
sabemos perfeitamente que atrás da fábrica vêm os operários, atrás das cidades vem o
crescimento das populações etc”.
Moraes (2002, p. 39) observa que, com o crescimento industrial, a população
tem-se concentrado ao redor das indústrias, das cidades e das periferias, provocando
crescimento desordenado, sem estrutura mínima para atender às necessidades vitais dos
obreiros, como, por exemplo, saneamento básico. E conclui, atribuindo à busca pelo
trabalho, como o fator responsável pela concentração desordenada, resultando na
inobservância da qualidade de vida, direito inerente à dignidade da pessoa humana,
fundamento maior da nossa Constituição.
No entanto, para Rech (2007, p. 144-145), a cidade grande não é a causa do
caos. Para o autor, a causa está no desvio de sua finalidade antropológica; na deterioração
da convivência fraterna que deveria proporcionar; na insegurança, que agora adentrou
o perímetro urbano; na falta de ordenamento das funções básicas, como emprego,
economia, divisão do trabalho; na exclusão social praticada; na indefinição de estruturas
básicas e, fundamentalmente, na falta de formação para a cidadania, papel que as escolas
modernas têm ignorado.
Diante desses registros, resta evidente que o trabalho na era industrial gerou o
desejo do homem pela cidade, acreditando que encontraria nela tudo o que precisava
para ter uma vida melhor, com mais qualidade. Contudo, como bem demonstrado pelos
autores citados, essa ocupação desenfreada dos espaços urbanos, sem qualquer
planejamento, acabou gerando um grande caos na maioria das cidades, o que prejudicou
e continua prejudicando a população operária, que acaba laborando em ambientes
inadequados e degradantes, já que para sua instalação não há normas que busquem
preservar o interesse local; assim como toda a comunidade, que, por ser o “núcleo
sensitivo dos problemas urbanos” (SANT’ANNA, 2007, p. 163), sente os reflexos em sua
vida cotidiana, em todos os fundamentos de uma vida digna: moradia ruim, trânsito
impossível, saneamento básico deficiente quando não inexistente, acesso difícil aos
serviços de saúde, insegurança, educação precária, ausência de opções de lazer, entre
outros tantos aspectos.
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212
3. O ESTATUTO DA CIDADE E A CONEXÃO ENTRE O DIREITO
URBANÍSTICO E O DIREITO AMBIENTAL

O conceito de cidade (SILVA, José Afonso da apud CAMMAROSANO, 2006,


p. 23-24), do ponto de vista urbanístico, tem como elementos o conjunto de edificações
onde os membros da coletividade moram ou desenvolvem suas atividades produtivas,
comerciais, industriais, intelectuais, e também os denominados equipamentos públicos,
destinados à satisfação das necessidades de que os habitantes não podem prover-se
diretamente e por sua própria conta (estradas, ruas, praças, parques, jardins, canalização
subterrânea, escolas, igrejas, hospitais, mercados, praças de esportes etc.).
O Estatuto da Cidade (Lei Federal n.º 10.257/2001) surgiu para disciplinar a
política de desenvolvimento urbano a ser executada pelo Poder Público municipal, nos
termos do artigo 182, da Constituição Federal. Ainda, segundo o mesmo dispositivo
constitucional, a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
Assim, o Estatuto da Cidade estabelece normas de ordem pública e interesse social que
regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-
estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental, nos termos do disposto no
parágrafo único do artigo 1°.
O planejamento do desenvolvimento da cidade objetivado pelo Estatuto da Cidade
evitaria a formação de aglomerados urbanos, a verticalização desenfreada da cidade, o
excesso de demanda de equipamentos públicos, enfim, trataria de uma forma sustentável
o crescimento. Aliás, sustenta Pereira (2003, p. 54), o planejamento do desenvolvimento
das cidades é pré-requisito de sua sustentabilidade, motivo pelo qual, com o Estatuto
da Cidade, o planejamento passa a ser exigência do cotidiano de todos os administradores
públicos, não sendo mais o diferencial dos bons administradores (Idem, p. 14).
Para Hely Lopes Meirelles, citado por Domingues (2007, p. 91), urbanismo é o
conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a
propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade, entendendo-se por
espaços habitáveis todas as áreas em que o homem exerce coletivamente qualquer das
quatro funções sociais: habitação, trabalho, circulação e recreação.
Tais funções sociais da cidade (habitação, condições adequadas de trabalho,
recreação e de circulação humana), segundo Rocha (1999, p. 36), são inspiradas na
Carta de Atenas de 1933, sendo que “o pleno desenvolvimento dessas funções deve ser
compreendido como o direito à cidade”.
Já o Direito Urbanístico é o conjunto de normas jurídicas reguladoras da atividade
do Poder Público destinado a ordenar os espaços habitáveis (atividade urbanística)
(SILVA apud DOMINGUES, 2007, p. 92).
As normas urbanísticas são, portanto, diante dessas definições, normas jurídicas
capazes de alterar a realidade, porquanto impingem comportamentos positivos à

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sociedade, que deve orientar-se de acordo com elas, redirecionando as cidades em
prol de uma sadia qualidade de vida, traduzida pelas funções sociais (DOMINGUES,
2007, p. 93).
Já o Direito Ambiental é o conjunto de normas jurídicas que visam garantir a todos
o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, nos termos do artigo 225, da Constituição Federal.
A cidade, portanto, tem importante função ambiental, segundo Sant’anna (2007,
p. 153 e 155), que vem a ser o conjunto de atividades que objetivam garantir a todos o
direito constitucional de desfrutar um meio ambiente equilibrado e sustentável, na busca
da sadia e satisfatória qualidade de vida, para a presente e futuras gerações.
Para garantir a função ambiental da cidade, cabe ao Poder Público e à coletividade
a tarefa de defesa e preservação do meio ambiente em todas as suas formas. Para Rocha
(1999, p. 37), significa que, para a cidade cumprir sua função ambiental, a existência
de um meio ambiente urbano ecologicamente equilibrado é imprescindível, assim como
a proteção aos ambientes culturais, aos ambientes naturais e aos ambientes de trabalho.
Contudo, tal função ambiental e social da cidade não vem sendo cumprida, já
que é fácil perceber que grande parte da população brasileira está privada de boa
qualidade de habitação, trabalho, transporte e lazer.
O Estatuto da Cidade vem para ajudar as cidades a cumprirem esse papel, visando
a que as ocupações e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, tanto no campo como
na cidade, ocorram de forma planejada. Para tal, a Lei aponta diretrizes, sintetizadas
por Mukai (2004, p. 29), como profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua
finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem
danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas,
permitindo o desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares
e os da coletividade.
Segundo Mukai (2008, p. 3), as diretrizes e normas do Estatuto da Cidade não
se destinam apenas ao direito urbanístico, mas também ao direito ambiental.
Para Rocha (1999, p. 20), “a correlação entre o microssitema ambiental e o
urbanístico efetiva-se em decorrência de seus objetivos mediatos e comuns: a proteção
e defesa da qualidade de vida e do bem-estar dos habitantes da cidade”.
Rocha (1999, p. 29) ainda leciona que no tocante à proteção urbanístico-ambiental,
a ação dos Municípios limita-se espacialmente ao seu território, mas materialmente
estende-se a tudo quanto possa afetar os seus habitantes. Para tanto, sua atuação nesse
campo deve promover a proteção nos seus aspectos fundamentais: controle da poluição
em todos os níveis, preservação dos recursos naturais, restauração dos elementos
destruídos, planejamento, ordenação e ocupação do solo urbano e proteção do patrimônio
histórico e cultural. A função urbanística e ambiental, portanto, em sua atuação mais
concreta, segundo o autor, é exercida no nível municipal.

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Para Nelson Saule Júnior, citado por Rocha (1999, p. 30), “o direito à cidade
deve ser compreendido como o direito de ter condições dignas de vida, de exercitar
plenamente a cidadania, de ampliar os direitos fundamentais, de participar da gestão
da cidade, de viver em um meio ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável”.
O artigo 225 da Constituição Federal delega ao Poder Público como um todo o
dever de defender e preservar o meio ambiente, nele incluído o do trabalho (artigo 200,
VIII, da CF/88). Assim, nas três esferas de competência, é possível existirem normas
sobre controle de atividades potencialmente poluidoras e que comportem risco para a
qualidade de vida humana, cabendo ao particular, segundo Mukai (2008, p. 95), atender
às estipulações legais dos três níveis de governo, exceto em caso de conflito, em que
prevalecerá o disposto na norma hierarquicamente superior.
O zoneamento, típico instrumento de política urbana, é utilizado no Direito
Ambiental como instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, salientando Antunes
(2008, p. 184-185) que, como instrumento jurídico, ingressou em nosso direito positivo
como uma ferramenta de proteção à saúde humana.
Fiorillo (2004, p. 60-61) ensina que o meio ambiente artificial tem proteção
constitucional apontada em decorrência do que determinam mediatamente o artigo 225
e imediatamente os artigos 182 e 183 da Carta Maior, sendo verdadeiro afirmar que os
brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil possuem o direito constitucional ao bem-
estar relacionado às cidades em que vivem, em decorrência da existência de um direito
material metaindividual que tutela aludido bem ambiental. A garantia do direito a cidades
sustentáveis, evidenciada no artigo 182 da Carta Magna, visa reafirmar não só o direito
à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao
transporte, aos serviços públicos, ao trabalho, ao lazer, mas principalmente, ao piso vital
mínimo previsto no artigo 6° da Constituição Federal. Assim, o direito ambiental
constitucional, no que se vincula ao meio ambiente artificial, estabelece a tutela jurídica
não só das cidades no Brasil, estruturadas fundamentalmente em face da Lei n.º
10.257/2001, como de outros direitos fundamentais para a dignidade da pessoa humana,
que deverão estabelecer relações jurídicas equilibradas em face das necessidades do
cidadão no que se refere a temas como segurança, transporte, resíduos, trabalho (inserção
nossa) etc.
Nessa senda, conclui Fiorillo (2004, p. 72-73), que a lesão ao meio ambiente
artificial, considerado fundamentalmente a partir das cidades no Brasil, e a efetiva
garantia destinada aos brasileiros e estrangeiros residentes no País de acesso a terra
urbana, moradia, saneamento ambiental, infraestrutura urbana, transporte, serviços
públicos, trabalho e lazer (direito a cidades sustentáveis) comporta indenização em face
de dano material, dano moral ou dano à imagem, observando-se a tutela dos direitos
constitucionais coletivos vinculados à proteção da função social da cidade indicada no

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artigo 182 da Carta da República e tomando-se como parâmetro a garantia de bem-estar
de seus habitantes.
Pelo estudado até aqui, percebe-se que pensar em proteção do meio ambiente
passa, necessariamente, pela preocupação com a qualidade de vida da população, o
que leva, invariavelmente, a refletir sobre as cidades, isto é, sobre os ambientes em
que a pessoa vive e onde busca se desenvolver com dignidade, sendo o Estatuto da
Cidade importante ferramenta para a concretização desse objetivo que é, sobretudo,
um direito fundamental.

4. O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO E AS DIRETRIZES DO ESTATUTO


DA CIDADE

O meio ambiente do trabalho está inserido no meio ambiente em geral (assim


como o ambiente urbano, como já foi possível concluir) por força do disposto no artigo
200, VIII, da Constituição Federal de 1988, de modo que é impossível alcançar qualidade
de vida, sem ter condições de trabalho dignas, seguras e saudáveis, nem se pode atingir
meio ambiente equilibrado e sustentável ignorando o meio ambiente do trabalho, que
é, essencialmente, espaço de convivência social. Dentro desse espírito, a Constituição
estabeleceu, expressamente, que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social e observado o princípio da defesa do meio ambiente, entre outros (artigo 170,
caput e inciso VI).
Moraes (2002, p. 25 e 27) explica que “meio ambiente do trabalho é o local onde
o homem realiza a prestação objeto da relação jurídico-trabalhista, desenvolvendo
atividade profissional em favor de uma atividade econômica”. Mas, segundo a autora,
também se denomina meio ambiente do trabalho o conjunto do espaço físico (local da
prestação de trabalho ou onde quer que se encontre o empregado, em função da atividade
e à disposição do empregador) e as condições existentes no local de trabalho (ferramentas
de trabalho, máquinas, equipamentos de proteção individual, temperatura, elementos
químicos etc. – meios de produção). Em outra definição, a autora amplia o conceito de
meio ambiente do trabalho, expondo que se trata da interação do local de trabalho, ou
onde quer que o empregado esteja em função da atividade e(ou) à disposição do
empregador, com os elementos físicos, químicos e biológicos nele presentes, incluindo
toda sua infraestrutura (instrumentos de trabalho), bem como o complexo de relações
humanas na empresa e todo o processo produtivo que caracteriza a atividade econômica
de fins lucrativos.
O meio ambiente do trabalho, segundo Oliveira (1998, p. 83), são todos os fatores
que interferem no bem-estar do trabalhador, a começar pelo ambiente físico do posto
de trabalho e todo o complexo de relações humanas na empresa e na forma de organização

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do trabalho (duração, ritmos, turnos, critérios de remuneração, possibilidades de
progresso, satisfação pessoal etc). Contudo, não só o ambiente da empresa, mas também
o ambiente externo em que vive o trabalhador é que pode ser considerado no conceito
de meio ambiente do trabalho. Desse modo, reflete o autor:
O operário que ganha mal, inevitavelmente, alimenta-se mal e mora mal, sem descanso
satisfatório. Como ganha pouco, é obrigado a estabelecer residência nas regiões periféricas,
distantes dos locais de trabalho, o que adiciona, ainda, o desgaste do longo período diário em
deslocamento incômodo, subtraindo o tempo que poderia ser aproveitado no repouso e lazer.
Consequentemente, esse operário terá desgaste acelerado (por não repor as calorias que
despende no trabalho), baixa produtividade, menos resistência, mais doenças e mais ausências
no trabalho, continuando, por tudo isso, a ganhar mal, sem perspectivas de promoção, tendo
de se conformar com as tarefas mais pesadas e desqualificadas, quando não perde o emprego,
prosseguindo assim, o ciclo vicioso e tormentoso da pobreza.

Assim, o meio ambiente do trabalho é qualquer local em que o homem exerce


uma atividade laboral, motivo pelo qual, até mesmo a residência do trabalhador, que
foi transformada em lugar de trabalho em razão de algumas atividades trabalhistas
modernas, envolvendo as inovações tecnológicas (teletrabalho), ou mesmo outras tarefas,
tidas por inferiores (como os serviços terceirizados de costura de sapatos), pode e deve
ser considerada no estudo do meio ambiente do trabalho.
Para Rocha (2002, p. 127 e 129), “o meio ambiente do trabalho representa todos
os elementos, inter-relações e condições que influenciam o trabalhador em sua saúde
física e mental, comportamento e valores reunidos no locus do trabalho”. Contudo,
adverte o autor que a noção de meio ambiente do trabalho não pode ser imutável, em
razão das frequentes mudanças por que tem passado o mundo do trabalho e suas relações,
devendo o conceito adequar-se a fim de refletir as evoluções sociais e técnicas que
constantemente se aprimoram.
O artigo 6° da Constituição da República prevê que são direitos sociais a educação,
a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, entre outros. Ao trabalhador urbano
e rural e à sua família, a Carta Magna garante o direito à moradia, alimentação, educação,
saúde, ao lazer, ao vestuário, à higiene, ao transporte (artigo 7°, inciso IV, da CF/88),
além da redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene
e segurança (artigo 7°, inciso XXII, da CF/88). Onde, que não na cidade, no território
do município em que reside, o operário irá encontrar esses direitos sociais? Pelo
conceituado sobre o meio ambiente do trabalho, não há dúvida de que uma política
urbana adequada é que viabilizará o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade, que englobam a satisfação desses direitos sociais, em especial o da vida digna
mediante o exercício de um trabalho em condições salubres e seguras.
O artigo 2° do Estatuto da Cidade prevê que a política urbana tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana,

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arrolando diversas diretrizes que terão de ser observadas pelos Municípios para a
consecução desses objetivos. Tais diretrizes são de observância obrigatória na elaboração
do plano diretor municipal, sob pena de ilegalidade e nulidade, segundo lição de Mukai
(2008, p. 41). Dentre essas diretrizes, a maioria tem grande relevância para a melhoria
da qualidade do meio ambiente do trabalho. Vejamos:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações: nessa diretriz, encontra-
se o fundamento da busca de um meio ambiente de trabalho saudável, isto é, a própria garantia
ao trabalho;

II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas


dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos,
programas e projetos de desenvolvimento urbano: a população trabalhadora e os sindicatos
poderão atuar na defesa de um meio ambiente de trabalho saudável e seguro em qualquer
atividade que esteja de alguma forma vinculada à questão do desenvolvimento urbano;

III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no


processo de urbanização, em atendimento ao interesse social: urbanização sim, mas com uma
industrialização que preserve os interesses da classe trabalhadora (indiretamente, toda a
sociedade, já que não vive sem trabalho), especialmente, que garanta a sua saúde;

IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e


das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a
evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio
ambiente: a melhoria do meio ambiente do trabalho está intrínseca nessa diretriz, não
requerendo maiores digressões;

V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados


aos interesses e necessidades da população e às características locais: serviços públicos
adequados garantam melhores condições de vida à população e aos próprios prestadores desses
serviços (trabalhadores);

VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a utilização inadequada dos imóveis
urbanos; a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; o parcelamento do solo, a
edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana; a instalação
de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego,
sem a previsão da infra-estrutura correspondente; a retenção especulativa de imóvel urbano,
que resulte na sua subutilização ou não utilização; a deterioração das áreas urbanizadas; a
poluição e a degradação ambiental: todos esses aspectos tendem a garantir melhores condições
de trabalho;

VII – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o


desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência: a
proteção dos trabalhadores da área rural merece tanta atenção quanto a dos da área urbana,
devendo o Poder Público municipal zelar pela saúde de todos;

VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana


compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e

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do território sob sua área de influência: a produção sustentável só pode ocorrer em ambientes
de trabalho sustentáveis;

IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização: os


trabalhadores não poderão arcar sozinhos com as consequências negativas do processo de
urbanização, decorrente da industrialização, devendo a municipalidade garantir a melhoria
das condições de trabalho assim como do meio ambiente em geral, de forma equilibrada;

X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos


públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos
geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais: bem-estar
geral pressupõe garantir a qualidade de vida dos operários no meio ambiente do trabalho, já
que nele estão por, no mínimo, um terço do dia;

XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização


de imóveis urbanos: se o Município de alguma forma investir para a melhoria dos ambientes
de trabalho e as empresas agregarem capital em razão disso, poderá o Poder Público cobrar
do proprietário dos meios de produção (no caso, do imóvel);

XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio


cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico: todos esses aspectos tendem a melhorar
as condições do meio ambiente do trabalho;

XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de


implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o
meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população: aqui se aplica
a mesma observação do inciso II;

XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda
mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e
edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais:
melhores condições de moradia tendem a refletir em qualidade de saúde dos trabalhadores,
especialmente, para aqueles que usam a moradia como local de trabalho;

XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas


edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades
habitacionais: aqui se aplica a observação do inciso anterior;

XVI – isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de


empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social:
mais uma vez, a nota do inciso XIV é aplicável.

Atualmente, a falta de atendimento dessas diretrizes básicas gera problemas,


muito bem narrados por Hogan (1995, p. 158):
Concentração espacial e padrões de migração pendular concentram o ônus ambiental nos
pobres. As consequências da deterioração ambiental são mais graves na periferia menos
industrializada que no núcleo central, industrializado e densamente ocupado. Mais graves que
a poluição industrial são as condições associadas com pobreza: saneamento e moradia precários
e nutrição inadequada. A síndrome de valor da terra/custo habitacional e uma rede de transporte
que permite a migração pendular intermunicipal produziram uma situação onde os pobres

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foram distribuídos à periferia mas trabalham no centro. Essa migração pendular é uma elemento
essencial do sistema de distribuição populacional porque permite à indústria funcionar sem
providenciar moradia para os pobres. É o uso residencial pelos pobres que é empurrado à
periferia (com sua infra-estrutura inadequada) e não a indústria. A migração pendular emerge
como um mecanismo, dentro de uma economia de concentração de renda, que coloca um ônus
adicional nos pobres: não são só as horas de viagem diária que provocam violência política
atomizada (Moisés e Martinez-Alier, 1977), mas também as consequências para a saúde devidas
às condições ambientais da periferia.

Para corroborar a importância das diretrizes apontadas pelo Estatuto da Cidade,


refere Rech (2007, p. 199):
As diretrizes do Plano Diretor são caminhos obrigatórios a serem percorridos, a curto, médio e
longo prazos, para se atingirem os objetivos propostos ou para ter a cidade que se pretende.
Todas as demais normas do projeto de lei devem ser elaboradas após definidas as diretrizes e
devem, fundamentalmente, detalhar a forma como elas serão obrigatoriamente perseguidas.

O meio ambiente do trabalho está inserido no meio ambiente urbano sob todos
os aspectos, sendo sua proteção e melhoria decorrências lógicas do cumprimento das
diretrizes do Estatuto da Cidade, motivo pelo qual devem os trabalhadores e suas
entidades de classe atuar para exigir dos administradores públicos municipais a
implementação do projeto de cidade.

5. OS REFLEXOS DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO NA QUALIDADE


DE VIDA DA POPULAÇÃO DAS CIDADES E A COMPETÊNCIA
MUNICIPAL

A qualidade de vida pode ser utilizada como um conceito unificador que permite
relacionar as necessidades humanas, os ambientes individuais e societais e o
desenvolvimento humano (BARBOSA, 1995, p. 206).
Segundo Oliveira (1998, p. 79), a preocupação de melhorar a ecologia do ambiente
laboral é de suma importância, porque
o homem passa a maior parte da sua vida útil no trabalho, exatamente no período da plenitude
de suas forças físicas e mentais, daí por que o trabalho, normalmente, determina o estilo de vida,
interfere na aparência e apresentação pessoal e até determina, muitas vezes, a forma da morte.

Para Rech (2007, p. 150), a redução do horário de trabalho reclamado pelas


classes trabalhadoras em nada melhora a qualidade de vida, se não for investido na
organização das cidades, que deve passar obrigatoriamente por um projeto de cidade e
deve ter como suporte o próprio ordenamento jurídico do município.
Barbosa (1995, p. 196-197) apresenta o resultado de algumas pesquisas acerca
das alterações hematológicas induzidas pela poluição industrial nos moradores e
industriários de Cubatão/SP, que concluíram que as alterações são causadas por poluentes

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tóxico-oxidantes e que as consequências físico-patológicas no sangue dessas pessoas
estão relacionadas com o tempo de exposição e com a proximidade aos focos de poluição.
Além disso, concluíram que os riscos aos quais esses trabalhadores estão submetidos
referem-se à questão poluição (processo de trabalho), a aspectos relacionados à própria
organização do trabalho (por exemplo, as pessoas que trabalham em turno) e às próprias
condições de vida (moradia, alimentação e estresse).
Conforme já referido, o meio ambiente do trabalho é a ambiência na qual se
desenvolvem as atividades do trabalho humano, que não se limita ao empregado, sendo
que todo trabalhador que cede a sua mão de obra exerce sua atividade em um ambiente
de trabalho. E, diante das modificações por que passa o trabalho, o meio ambiente
laboral não se restringe ao espaço interno da fábrica ou da empresa, mas se estende ao
próprio local de moradia ou ao ambiente urbano. Nesse ponto, Rocha (1997, p. 30)
lembra que “muitos trabalhadores exercem suas atividades percorrendo ruas e avenidas
das grandes cidades, como, por exemplo, os condutores de transportes urbanos”.
É preciso maior exemplo da influência do planejamento (ou não) da cidade na vida de
um trabalhador?
A Constituição Federal estabelece que é atribuição comum da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição
em qualquer de suas formas (artigo 23, VI), assim como cuidar da saúde (artigo 23, II).
Rocha (2002, p. 195), partindo da premissa de que o meio ambiente compreende o meio
ambiente do trabalho (artigo 200, VIII, da CF/88) e de que a saúde inclui a saúde dos
trabalhadores, conclui que o Poder Público, sem exceção, deve proteger o meio ambiente
do trabalho e cuidar da saúde dos trabalhadores.
No artigo 22, inciso I, a Constituição da República atribui à União a competência
privativa para legislar sobre direito do trabalho. Mas tal disposição deve ser interpretada
em conformidade com o texto constitucional. O direito do trabalho, aqui, refere-se às
questões obrigacionais entre empregadores e empregados, não se estendendo às
matérias relativas ao meio ambiente do trabalho e à saúde dos trabalhadores, que se
enquadram muito mais nas hipóteses de competência comum do artigo 23, expostas
anteriormente.
A falta de unidade na atuação do Estado para solucionar os problemas
relacionados com a saúde do trabalhador é criticada por Oliveira, que apresenta tal
dispersão como um dos principais problemas atuais nessa área. Segundo o autor
(1998, p. 130), “as responsabilidades estão distribuídas entre vários órgãos distintos,
praticamente sem comunicação entre si, acarretando visões parciais do problema, com
esforços desarticulados”.
A repartição das competências entre os entes federados é regida na Constituição
da República pelo princípio da predominância do interesse. Diante dele, aos Municípios
restou a competência legislativa, administrativa e tributária de interesse local.

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Segundo Moraes (2003, p. 300), a atividade legislativa municipal submete-se aos
princípios da Constituição Federal com estrita obediência à Lei Orgânica dos Municípios,
a qual cabe o importante papel de definir as matérias de competência legislativa da
Câmara de Vereadores, uma vez que a Constituição Federal não a exaure, já que usa a
expressão “interesse local” como catalisador dos assuntos de competência municipal.
Ainda segundo o eminente constitucionalista (Idem, p. 301), a competência
genérica em virtude da predominância do interesse local, prevista no artigo 30, inciso
I, da Constituição Federal, refere-se àqueles interesses que disserem respeito mais
diretamente às necessidades imediatas do Município, mesmo que acabem gerando
reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União). Entre tais competências, o autor
cita como exemplo a disciplina a respeito da exploração da atividade de estabelecimento
comercial, expedindo alvarás ou licenças para regular funcionamento. Motta e Barchet
(2007, p. 478) complementam a exemplificação de matérias em que já é tradicional a
atuação dos Municípios: serviços de coleta de lixo, fiscalização das condições de higiene
e de salubridade dos bares, lanchonetes, restaurantes e assemelhados, política de
edificações, entre outras. Contudo, explicam os autores, é a jurisprudência que fixará,
caso a caso, quais as matérias que se enquadram no conceito do artigo 30, inciso I, da
Constituição da República. Como exemplos de assuntos de interesse predominantemente
local, segundo entendimento já assentado na jurisprudência, citam: a regulação dos
horários de funcionamento do comércio local (STF, Súmula n.º 645), os serviços funerários
(STF, RE n.º 387.990/SP), a imposição às instituições financeiras da obrigação de
instalarem portas eletrônicas, munidas com detector de metais, travamento e retorno
automático e vidros à prova de balas (STF, RE n.º 240A06/RS) etc.
Da maioria dos exemplos citados, extrai-se vinculação direta com o meio ambiente
de trabalho, em sua concepção mais ampla, conforme já analisado anteriormente.
O artigo 30, inciso II, da Constituição Federal, prevê a competência suplementar
dos Municípios, segundo a qual, cabe a esses entes suplementar a legislação federal e
estadual, podendo suprir as omissões e lacunas, mas sem contraditá-las, inclusive nas
matérias previstas no artigo 24, da Constituição Federal (MORAES, 2003, p. 303).
A decisão da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial
29.299-6/RS, relatado pelo Ministro Demócrito Reinaldo, julgado em 1994, foi
justamente nesse sentido, ou seja, de que a legislação municipal deve restringir-se a
atender às características próprias do território em que as questões, por suas
particularidades, não contem com o disciplinamento consignado na lei federal ou estadual,
não podendo tornar ineficazes os efeitos da lei que pretende suplementar. Portanto, a
suplementação visa à regulamentação pelos municípios das normas legislativas federais
ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais.
Antunes (2008, p. 87), ao analisar a competência municipal em matéria ambiental,
expõe que não há dúvidas de que o meio ambiente está incluído no conjunto de atribuições
legislativas e administrativas municipais. Afirma o autor:
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A importância dos Municípios é evidente por si mesma, pois as populações e as autoridades
locais reúnem amplas condições de bem conhecer os problemas e mazelas ambientais de cada
localidade, sendo certo que são as primeiras a localizar e identificar o problema. É através dos
Municípios que se pode implementar o princípio ecológico de agir localmente, pensar globalmente
[grifo do autor].

Rocha (1999, p. 33) defende que o Município pode exercer seu poder fiscalizatório
na defesa e proteção ambiental, inclusive, em relação ao Estado e à União, suas
autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, para observância da
legislação federal e estadual, tendo em vista os interesses dos munícipes por um meio
ambiente urbano ecologicamente equilibrado; pode a entidade municipal, inclusive,
utilizar de instrumentos processuais coletivos, como a ação civil pública (Lei n.º 7.347/85)
na tutela dos interesses difusos e coletivos, incluído o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado e à vida com dignidade nos espaços urbanos.
O artigo 23, da Constituição Federal dispõe sobre a competência material comum
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na proteção do meio
ambiente, especialmente quando prevê, no inciso VI, a proteção do meio ambiente e o
combate à poluição em qualquer de suas formas. Para Antunes (2008, p. 89), a
compatibilização constitucional dos Municípios para darem combate à poluição e proteger
o meio ambiente com o princípio da legalidade somente ocorre com a existência de uma
legislação municipal própria sobre o assunto e, principalmente, com a sua aplicação aos
casos concretos.
Para a concretização da competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer
de suas formas, prevista no artigo 23, VI, da Constituição Federal, Mukai (2008, p. 97)
sugere a aplicação do princípio da subsidiariedade, pelo qual se entende que os entes de
maior grau devem abster-se de se imiscuir e atuar na solução de problemas que o ente
menor, por suas próprias forças, tenha condições de resolver. Assim, a lei complementar,
prevista no parágrafo único do mesmo dispositivo constitucional, deveria estabelecer
que em todos os casos de proteção ambiental (licenciamento, fiscalização, controle e
aplicação de sanções), em primeiro lugar, compareceria o Município para solucionar a
questão; se suas forças, recursos técnicos e financeiros, entre outros, não fossem
suficientes, comunicaria tal fato ao Estado, que passaria a atuar sobre o caso; somente
se o Estado não solucionasse a questão, passaria a intervir a União. Só assim teríamos,
segundo o autor, a pretensa cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios, com vistas ao equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito
nacional. A inexistência de tal regra, para Antunes (2008, p. 92), só confirma que vivemos
muito mais em um federalismo competitivo do que um federalismo cooperativo.
Mukai (2004, p. 28) observa que, não obstante a competência concorrente (artigo
24 da Constituição Federal) da matéria urbanística, a grande massa de normas

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urbanísticas pertence mesmo à competência municipal, em razão do disposto no artigo
182 da Carta Magna, podendo o Município editar seus planos de desenvolvimento
urbano, seu zoneamento, distribuindo as atividades exercitáveis, disciplinando o
parcelamento do solo, entre outras definições.
Assim, por meio de normas que concretizam o Plano Diretor, como é o caso do
Código de Posturas, o Código de Obras e o Código Tributário, é possível o Município
garantir melhor qualidade ao meio ambiente do trabalho, pois tais regras terão o condão
de exigir construções e instalações que levem em conta o bem-estar da população
(especialmente a operária, que viverá em contato direto com aquele ambiente), assim
como observem a proteção do meio ambiente como um todo.
Rocha (1999, p. 24) relembra que na matéria urbanística e ambiental, a
competência municipal não é meramente suplementar às normas gerais federais ou
estaduais, mas deriva do interesse local. Afinal, sustenta o autor, “as pessoas moram e
se relacionam, na grande maioria das vezes, no espaço urbano”. E segue: “os processos
de construção das condições materiais de vida, tanto quanto os modos de viver, expressos
em valores, hábitos, comportamentos, atitudes, crenças, quer o viver, trabalhar e lutar,
ocorrem na cidade”.
E para reforçar a competência dos Municípios, Rech (2007, p. 42) refere que o
Estado Federal terá tantas preocupações no futuro com questões globais que, cada vez
menos, sobrará tempo para cuidar das questões locais, que dizem respeito à garantia
de direitos, ao bem-estar e ao exercício da cidadania exigidos pelo cidadão.
A execução da política urbana, prevista no artigo 182, da Constituição Federal,
é a mais especial das competências legislativas dos municípios. Contudo, a solução das
questões das cidades, não é responsabilidade isolada da municipalidade. Afinal, segundo
Vichi (2007, p. 123 e 125), executar política urbana não é sinônimo de custear (sozinho)
a execução. Logo, segue o autor, “é forçoso reconhecer-se que a atribuição de competência
material exclusiva para execução de política urbana outorgada aos Municípios não pode
ir além do manuseio dos instrumentos urbanísticos previstos na legislação aplicável”.
Para Rech (2007, p. 91), não há dúvidas de que o fortalecimento dos Municípios
é a forma de o Estado chegar até a população e assegurar direitos, mas o poder local
precisa também utilizar de forma efetiva as atribuições e as competências previstas na
Constituição Federal, organizando e criando condições ideais, mediante um ordenamento
jurídico local e de um projeto de cidade e de município não excludente, mas que assegure
direitos fundamentais a todos os cidadãos.
A competência dos Municípios para legislar em matéria urbanística e ambiental,
com vistas ao pleno desenvolvimento da política urbana, em prol do bem coletivo, da
segurança e do bem-estar dos cidadãos, ou seja, incluídos os trabalhadores, está mais
do que demonstrada, só restando ao Poder Público municipal efetivamente assumi-la,
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inclusive buscando o apoio das outras esferas da federação para a consecução da tarefa
de concretizar o direito da população de viver em um ambiente, também compreendido
o laboral, ecologicamente equilibrado, saudável e seguro.

6. OS INSTRUMENTOS DE POLÍTICA URBANA EM PROL DO MEIO


AMBIENTE DO TRABALHO

Com a finalidade de concretizar a política urbana, os entes públicos têm uma


série de instrumentos à disposição, previstos nos artigo 4° do Estatuto da Cidade, dentre
os quais, atentar-se-á para alguns que poderão ser usados pelos Municípios em prol da
melhoria do meio ambiente do trabalho.
Contudo, conforme bem destacado por Dallari (2006, p. 75), a aplicação dos
instrumentos de política urbana especificados no Estatuto da Cidade aos casos concretos
vai depender do que estiver disposto na legislação local, especificamente editada em
cada Município, e das disposições da legislação estadual ou federal naqueles assuntos
de sua competência, como é o caso, por exemplo, das desapropriações.

6.1 O PLANO DIRETOR

Dentre os instrumentos da política urbana, o artigo 4°, inciso III, da Lei n.º
10.257/2001, prevê o planejamento municipal. Tal planejamento pode ser executado
por meio de diversas ferramentas, sendo o plano diretor (alínea a) a principal.
A Constituição da República, em seu artigo 182, § 1º, dispõe que o plano diretor,
aprovado pela Câmara Municipal, é obrigatório para cidades com mais de vinte mil
habitantes, sendo o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão
urbana. Além disso, disciplina no § 2º, que a propriedade urbana cumpre sua função
social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no
plano diretor. Logo, a existência do plano diretor é imprescindível, justamente porque
é por meio dele que o administrador público poderá atestar o cumprimento da função
social do imóvel pelo proprietário, ou seja, o uso do bem em prol da coletividade.
O plano diretor, segundo consta do artigo 40, do Estatuto da Cidade, repetindo a
Constituição, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana,
devendo englobar o território do Município como um todo (§ 2° do mesmo dispositivo).
Acerca da importância da consideração da totalidade do Município nessa atividade
de planejamento em busca da qualidade de vida de todos os cidadãos, Moraes (2002,
p. 37) faz importante comentário no tocante aos trabalhadores rurais e sobre a interação
do meio ambiente geral com o do trabalho, quando aponta que a contaminação do meio
ambiente do trabalho rurícola influencia, consideravelmente, no ambiente de vida do
trabalhador rural, “pois, na maioria dos casos, o meio agrícola é, ao mesmo tempo, o

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lugar de moradia do obreiro e de onde retira seu sustento e de sua família”. Assim, a
proteção do local de trabalho do rurícola está em relação direta com a sua própria
qualidade de vida, uma vez que trabalha na terra e dela extrai os alimentos.
Para Rech (2007, p. 161), independentemente do tamanho da cidade, a adoção
do Plano Diretor é indispensável e necessária para qualquer uma que queira iniciar um
processo de crescimento ordenado, bem como garantir direitos em nível local, no presente
e especialmente para o futuro.
O Estatuto da Cidade, em seu artigo 41, traz outras situações, além do número
de habitantes, que obrigam o Município a adotar o plano diretor, entre as quais, destaca-
se o inciso V, que dispõe sobre a indispensabilidade de a cidade inserida na área de
influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de
âmbito regional ou nacional ter um plano diretor, o que se mostra em perfeita consonância
com as diretrizes da política urbana.
O planejamento urbano deve estar vinculado ao planejamento econômico e social.
Assim, pelo fato de os Municípios não terem competência em parâmetros suficientes
para que sua atuação ocorra de forma eficaz, acabam sequer utilizando a competência
que sempre foi sua, a de implantar o plano diretor. Nesse sentido, assevera Rech (2007,
p. 101), “o legalismo na aplicação do Direito, somado à cultura centralizadora, tem
inibido os municípios para criarem mecanismos de proteção do cidadão e garantir-lhes
os direitos fundamentais”.
O plano diretor é a norma geral de planejamento da cidade, devendo ser
complementada para sua efetiva concretização por outras leis, como a do zoneamento
ambiental, do parcelamento do solo, o Código de Obras, o Código de Posturas, a lei de
proteção ambiental e da paisagem urbana, e também por outros planos, como os de
renovação urbana, de distritos industriais, de áreas e locais de interesse turístico, entre
outros (MUKAI, 2004, p. 37-38).
Apenas para reforçar a importância do plano diretor no planejamento municipal,
importa referir que o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual
deverão incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas, conforme disposto no §
1°, do artigo 40, do Estatuto da Cidade.
Para Rech (2007, p. 99), “um projeto de cidade sustentável implica regulamentar
a convivência local, não criando novas normas de Direito Civil e Penal, mas condições
para que essas normas privativas da União sejam concretizadas na convivência equilibrada
na cidade”.
O papel do plano diretor, justamente por ser o instrumento básico da política de
desenvolvimento e expansão urbana, é exatamente esse: criar condições para concretizar
os direitos sociais no ambiente em que vivem as pessoas, em especial, as funções sociais
da cidade (habitação, trabalho, circulação e recreação).
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6.2 O ZONEAMENTO AMBIENTAL

Conforme já exposto anteriormente, o Estatuto da Cidade prevê diversos


instrumentos para a materialização da política urbana, dentre os quais encontra-se o
zoneamento ambiental (artigo 4°, inciso III, alínea c). O zoneamento ambiental não tem
vida própria, sendo instrumento de concretização do plano diretor.
Segundo Antunes (2008, p. 181), o zoneamento é uma medida de ordem pública,
cujo objetivo é arbitrar e definir os usos possíveis, estabelecendo regras aptas a definir
como e quando serão admitidas determinadas intervenções sobre o espaço. Na visão
do ambientalista, “não seria exagerado afirmar que, conjuntamente com o licenciamento
ambiental, o zoneamento é um dos mais importantes instrumentos institucionais de
prevenção aos danos ambientais e de controle das atividades potencialmente poluidoras”.
Para Antunes (2008, p. 182-183), “existe zoneamento quando são estabelecidos
critérios legais e regulamentares para que em determinados espaços geográficos sejam
fixados usos permitidos, segundo critérios preestabelecidos”. E segue o autor, dizendo que
uma vez que o zoneamento tenha sido estabelecido, toda e qualquer atividade a ser exercida
na região fica submetida a ele, ou seja, passa a ser vinculada, não podendo ser admitidas
pela Administração Pública atividades que contrariem as normas nele estabelecidas.
O zoneamento, inicialmente, fundou-se na intervenção estatal sobre a ocupação
do solo e das formas de sua utilização, visando diminuir ou manter “sob controle” os
efeitos negativos que, inevitavelmente, são gerados pelo processo de crescimento industrial
e urbano; após, dirigiu-se para regulamentar praticamente todos os espaços geográficos,
não se limitando mais apenas ao solo (ANTUNES, 2008, p. 184).
Mukai (2008, p. 41) observa que a lei não prevê, como tradicionalmente se falava,
o zoneamento urbano, de cunho puramente territorial e de usos segregados, mas o
zoneamento ambiental, o que decorre do fato de nos tempos atuais a questão ambiental
ter ganhado muito mais importância e relevo no Brasil do que a questão urbanística.
Isso justifica o que Diogo de Figueiredo Moreira Neto, citado por Mukai, há muito tempo
já afirmava: “o direito urbanístico é um esgalho do direito ambiental”.
Antunes (2008, p. 187) refere que os Municípios são os entes políticos aos quais
estão reservadas as mais importantes tarefas em matéria de zoneamento, visto que a
utilização do solo, como regra, é um interesse essencialmente local. E enfatiza que até
mesmo no setor agrário, a atividade municipal no que se refere ao zoneamento é
importante, pois os planos diretores é que irão fixar as regiões voltadas para a atividade
agrícola, delimitando a utilização do solo municipal, sendo o estabelecimento de zonas
urbanas e de zonas rurais, tarefa da maior importância para a proteção ambiental.
A indústria é um indutor de população, atraindo grande quantidade de pessoas
para o seu entorno e gerando aglomerações urbanas. Esse crescimento, segundo Antunes
(2008, p. 189), cria condições de vida extremamente difíceis e prejudiciais à saúde dos

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trabalhadores, bem como, frequentemente, causa danos profundos ao meio ambiente,
dando causa ao que chama de “convivência difícil”, que é, quase sempre, danosa para
ambas as partes, ou seja, comunidade e indústria.
Contudo, é preciso ter claro que, na atualidade, tal caos somente é gerado se
as normas de zoneamento, embasadas nas linhas gerais do plano diretor, não forem
respeitadas. Para Antunes (2008, p. 191), opor-se o pretenso direito de poluir ao
direito humano fundamental à boa saúde e ao meio ambiente sadio é antijurídico,
além de cruel, tendo o Poder Público Municipal parcela muito relevante, senão a maior,
de culpa, quando não impede a construção de habitações em locais de risco, como no
entorno de fábricas.
Mas o zoneamento também é importante ferramenta diante de eventual necessidade
de orientação do direito de pré-ocupação ou de relocalização da empresa, esta muitas vezes
preferida pela própria indústria, como refere Antunes (2008, p. 190), especialmente diante
dos riscos que a fábrica tem de assumir ao permanecer cercada pela comunidade.
Rech (2007, p. 153) explica que o zoneamento dos espaços urbanos, com a
descentralização e a criação de novos centros, é uma forma eficiente de organizar
comunidades bem planejadas, com o incremento de atividades econômicas específicas,
que evitem o congestionamento do trânsito e dos transportes, bem como garantam maior
qualidade de vida às populações locais.
O zoneamento ambiental urbano dá-se mediante a criação de zonas, tais como a
industrial, a estritamente industrial, a predominantemente industrial, a de uso
diversificado, a residencial, a residencial popular, a comercial, as institucionais e de
lazer, as de atividades noturnas, entre outras.
O adequado zoneamento da cidade e o respeito às regras estabelecidas tende
a gerar melhores condições de vida aos trabalhadores e um meio ambiente de trabalho
equilibrado.

6.3 OS INSTITUTOS TRIBUTÁRIOS E FINANCEIROS

Os institutos tributários e financeiros previstos no Estatuto da Cidade para a


concretização da política urbana são o imposto sobre a propriedade predial e territorial
urbana – IPTU, a contribuição de melhoria e os incentivos e benefícios fiscais e financeiros
(inciso IV do artigo 4°).
Segundo Pereira (2003, p. 212), o Estatuto da Cidade é uma fonte geradora de
receita, a qual se reveste de extrafiscalidade.
Na tributação extrafiscal, exercida mediante a exigência de impostos, o princípio
da capacidade contributiva, orientador dessas espécies tributárias, cede ante a presença
de interesse público de natureza social ou econômica que possa ser alcançado mais
facilmente se se prescindir de sua graduação consoante a capacidade econômica do

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sujeito. Em outras palavras, segundo Costa (2006, p. 104), em razão da extrafiscalidade
está autorizada a utilização de expedientes para o atingimento de outros objetivos que
não a mera obtenção de recursos, homenageados pela ordem constitucional, como, por
exemplo, a função social da propriedade, a proteção ao meio ambiente etc.
A melhoria do ambiente de trabalho, que reflete diretamente na saúde da massa
trabalhadora, e indiretamente na de toda a população, indubitavelmente, enquadra-se
no conceito de interesse social tutelado pelos institutos tributários e financeiros em
questão, pois visa à melhoria das condições de vida de todos os habitantes da cidade.
O artigo 47 do Estatuto da Cidade prevê que os tributos sobre imóveis urbanos,
assim como as tarifas relativas a serviços públicos urbanos, serão diferenciados em
função do interesse social. Assim, seria possível, por exemplo, o Código Tributário
Municipal, em complemento ao Plano Diretor, prever descontos ou acréscimos no Imposto
Territorial e Predial Urbano dos imóveis destinados ao desenvolvimento de atividades
laborais que impliquem maiores riscos para os trabalhadores e para a população em
geral, de acordo com os investimentos realizados para a melhoria do meio ambiente do
trabalho e do meio ambiente em geral.

6.4 OS INSTITUTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS

O Estatuto da Cidade elenca um rol exemplificativo de institutos jurídicos e


políticos (artigo 4°, inciso V) que podem servir, de acordo com a legislação própria que
lhes rege ou de acordo com o disposto na referida Lei, para pôr em prática a política
de desenvolvimento urbano do Município. Os institutos previstos são: a) desapropriação;
b) servidão administrativa; c) limitações administrativas; d) tombamento de imóveis ou
de mobiliário urbano; e) instituição de unidades de conservação; f) instituição de zonas
especiais de interesse social; g) concessão de direito real de uso; h) concessão de uso
especial para fins de moradia; i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; j)
usucapião especial de imóvel urbano; l) direito de superfície; m) direito de preempção;
n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; o) transferência do
direito de construir; p) operações urbanas consorciadas; q) regularização fundiária; r)
assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos
favorecidos; s) referendo popular e plebiscito; t) demarcação urbanística para fins de
regularização fundiária; e u) legitimação de posse.
Tais institutos, segundo Dallari (2006, p. 84) , visam não apenas vedar
comportamentos dos proprietários deletérios aos interesses da coletividade, mas, mais
do que isso, visam obter comportamentos positivos, ações, atuações, necessárias à
realização da função social da propriedade.
Entre os instrumentos jurídicos e políticos que poderiam ser utilizados em prol
da melhoria do meio ambiente do trabalho, citam-se dois: as limitações administrativas
e as operações urbanas consorciadas.

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As limitações administrativas são formas de restrições do Estado sobre a
propriedade privada, impostas pelo interesse público. Segundo Di Pietro (2007, p. 117-
118), elas decorrem de normas gerais e abstratas, que se dirigem a propriedades
indeterminadas, com o fim de satisfazer interesses coletivos abstratamente considerados.
O interesse público a que atende a limitação pode referir-se à segurança, à salubridade,
à tranquilidade pública, à estética, à defesa nacional ou qualquer outro fim em que o
interesse da coletividade se sobreponha ao dos particulares. A limitação administrativa
pode constituir-se em uma obrigação de não fazer ou deixar de fazer (negativa), que é
a mais comum, mas também de fazer (prestação positiva).
A operação urbana consorciada, disciplina pelos artigos 32 a 34 do Estatuto da
Cidade, é o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público
municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e
investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área (a) transformações
urbanísticas estruturais, (b) melhorias sociais e (c) a valorização ambiental. Segundo
Lomar (2006, p. 251), os três objetivos devem se concretizar cumulativamente por meio
da operação urbana consorciada, pois é justamente essa exigência que a diferencia de
outras possíveis intervenções urbanísticas.
As operações urbanas consorciadas visam preservar, recuperar ou transformar
áreas urbanas. Assim, tal instrumento pode, por exemplo, prever a regularização de
construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação, conforme
disposto no inciso II, do § 2°, da Lei n.º 10.257/2001. Contudo, importa reforçar que
o objetivo da operação urbana consorciada deverá estar previsto em lei própria e
devidamente amparada nas diretrizes do plano diretor.
A participação de toda a sociedade é possível nas operações urbanas consorciadas,
em razão do próprio princípio da participação popular ou da gestão democrática da
cidade que se extrai do contexto do Estatuto da Cidade. Todavia, referindo-se ao meio
ambiente do trabalho, imprescindível destacar a participação dos trabalhadores, que
podem ser os usuários permanentes de imóveis incluídos na operação.
O inciso VI, do artigo 33, do Estatuto da Cidade, estabelece a necessidade da
lei que aprovar a operação urbana consorciada prever a contrapartida a ser exigida dos
proprietários, usuários permanentes e investidores privados em função da utilização dos
benefícios previstos nos incisos I e II do § 2o do artigo 32 da mesma Lei. Assim, todos
que, de alguma forma, se beneficiarem com os resultados da operação, deverão contribuir,
sob pena de, se não o fizerem no início, estarem se locupletando ilicitamente em
detrimento dos demais investidores, conforme entendimento de Mukai (2008, p. 29).
O disciplinamento desses dois instrumentos jurídicos e políticos no plano diretor
é de fundamental importância para o desenvolvimento da cidade voltado à busca da
dignidade humana de seus habitantes, em especial, da classe trabalhadora, que pode
almejar desempenhar suas atividades laborais em ambientes mais agradáveis, salubres
e seguros a partir do efetivo uso dessas ferramentas pelo Poder Público municipal.

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6.5 OS INSTRUMENTOS AMBIENTAIS

Dentre os instrumentos da política urbana, o artigo 4°, inciso VI, da Lei n.º
10.257/2001, apresenta o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e o Estudo Prévio
de Impacto de Vizinhança (EIV).
O EIV, assim como o EIA, é um aperfeiçoamento das análises de custo/benefício
de um determinado empreendimento. Segundo Antunes (2008, p. 315), ambos são
espécies de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA), previsto na Constituição para todas
as atividades efetiva ou potencialmente poluidoras.
O Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança, conforme disposto no artigo 37 do
Estatuto da Cidade, será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos
do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na
área e suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes questões:
adensamento populacional; equipamentos urbanos e comunitários; uso e ocupação do
solo; valorização imobiliária; geração de tráfego e demanda por transporte público;
ventilação e iluminação; e paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.
Antunes (2008, p. 316-317) apresenta em sua obra “Direito Ambiental”, o Estudo
de Impacto de Vizinhança do Município de São Paulo. O Relatório de Impacto de
Vizinhança previsto na Lei Municipal paulista n.º 11.426/93, deve ser instruído por
diversos documentos, entre os quais, alguns necessários para a análise das condições
ambientais específicas do local e seu entorno, como dados sobre produção e nível de
ruído e sobre produção e volume de partículas em suspensão e de fumaça. Tais
indicadores são de extrema relevância para a garantia da qualidade do meio ambiente
do trabalho.
O Estudo de Impacto de Vizinhança, segundo Soares (2006, p. 311-312), é uma
exigência que não visa diminuir a liberdade do proprietário como na restrição ou na
limitação administrativa, mas apenas adequar o empreendimento ao meio do qual fará
parte. Nesse sentido, a autora reforça que, se o impacto puder ser sentido em função
de obras realizadas fora do perímetro urbano, nada mais prudente que a realização do
respectivo EIV, para que o Poder Público evite a ocorrência de distúrbios da mesma
forma que tenta amenizá-los naqueles empreendimentos realizados dentro do próprio
perímetro urbano.
O Relatório de Impacto de Vizinhança (RIVI) destina-se a permitir que os órgãos
competentes da Prefeitura examinem a adequação do empreendimento no respectivo
local e entorno, com relação aos aspectos do sistema viário e de transportes, produção
de ruídos e resíduos sólidos, capacidade de infraestrutura instalada etc. Mukai (2008,
p. 36) entende que as restrições que eventualmente forem feitas pelo Poder Público
municipal em decorrência do RIVI não são de natureza civil, mas sim, limitações
administrativas, mais propriamente de caráter ambiental urbanístico.

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231
O artigo 38 do Estatuto da Cidade dispõe que a elaboração do EIV não substitui
a elaboração e a aprovação de EIA, requeridas nos termos da legislação ambiental. No
entanto, destaca Mukai (2008, p. 36), enquanto o EIA é exigível somente nos casos em
que haja potencialmente, significativa degradação do meio ambiente, o EIV é exigível
em qualquer caso, independentemente da ocorrência ou não de significativo impacto de
vizinhança. Contudo, o plano diretor é que terá o papel de definir os empreendimentos
e atividades privados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de
estudo prévio de impacto de vizinhança para obter as licenças ou autorizações de
construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal, segundo
consta do artigo 36 da Lei n.º 10.257/2001.
A Lei n.º 6.938/81, em seu artigo 10, deu competência exclusiva para os Estados-
membros licenciarem a construção, instalação, ampliação e funcionamento de
estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva
ou potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar
degradação ambiental. Mukai (2008, p. 58) critica tal dispositivo, inclusive declarando-o
inconstitucional, pois atividades potencialmente poluidoras em âmbito puramente local
não teriam por que ser licenciadas pelo órgão estadual, já que o interesse é local. Destaca
o autor:
Com o plano diretor em vigor não será mais possível contrariar a competência exclusiva do
Município em exercer suas atividades de licenciamento e sancionatórias em relação ao meio
ambiente, pois competir-lhe-á mais do que aos Estados-membros, dar cumprimento à função
ambiental da propriedade.

Com esse espírito, o Estado do Rio Grande do Sul, com a aprovação do Código
Estadual de Meio Ambiente (Lei Estadual n° 11.520/2000), que estabelece em seu artigo
69, que “caberá aos municípios o licenciamento ambiental dos empreendimentos e
atividades consideradas como de impacto local, bem como aquelas que lhe forem
delegadas pelo Estado por instrumento legal ou Convênio”, vem desenvolvendo, por
meio da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA), o incremento do processo de
descentralização do licenciamento ambiental municipal para aquelas atividades cujo
impacto é estritamente local, e que estão descritas no Anexo I da Resolução 102/2005
do Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA), nos seus Anexos II e III, referentes
a manejo florestal (adicionados pela Resolução 110/2005), nas atividades adicionadas
pela Resolução 111/2005, bem como nas adições relativas ao licenciamento de atividades
de mineração descritas pela Resolução 168/2007.
Assim, também o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e o Estudo Prévio
de Impacto de Vizinhança (EIV), se previstos e usados de maneira adequada, poderão
ser importantes instrumentos na melhoria do meio ambiente do trabalho.

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232
7. CONCLUSÃO

A preocupação do homem com o meio ambiente do trabalho, assim como ocorre


com o meio ambiente natural e artificial, decorre, fundamentalmente, da sua concepção
antropocentrista, da sua preocupação com a sua própria existência. Em razão da
essencialidade da questão, o Poder Público e a coletividade estão incumbidos de proteger
o meio ambiente, nele incluído o do trabalho. Diante do dever constitucional, não resta
dúvida de que inclusive os Municípios precisam se envolver com a temática, sendo que
possuem competência para tal, como largamente demonstrado no presente estudo,
especialmente porque dessa participação depende o bem-estar da sua população.
Da análise da relação do homem com o trabalho, da influência do meio ambiente
laboral sobre a vida e a saúde dos trabalhadores, das diretrizes do Estatuto da Cidade
e dos instrumentos da política de desenvolvimento urbano, conclui-se que há muito
espaço para a atuação dos Municípios, sendo que as pessoas esperam que esse ente
federativo efetivamente assuma o seu papel, até porque, como afirma Rocha (1999,
p. 28), a importância do ambiente local, como referência necessária e fundamental da
pós-modernidade retoma-se com toda força em decorrência do fenômeno da globalização
econômica, da internacionalização da economia e da intensificação das redes de
informação, por contraditório que possa parecer.
A assunção pelos Municípios dessa importante responsabilidade também tende
a reagregar a população e, consequentemente, reacender o espírito cidadão de cada
indivíduo, condição primordial para o bem-estar de toda a cidade, pois, já ensinava
Tocqueville (apud BAUMAN, 2001, p. 4), que libertar as pessoas pode torná-las
indiferentes, sendo o indivíduo o pior inimigo do cidadão, já que cidadão é uma pessoa
que tende a buscar seu próprio bem-estar por meio do bem-estar da cidade, enquanto
o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à “causa comum”, ao
“bem comum”, à “boa sociedade” ou à “justa sociedade”.
O Direito Urbanístico está profundamente ligado ao Direito Ambiental, sendo que
os Municípios devem se aproveitar desse contato para implementarem seus planos
diretores e, consequentemente, os demais instrumentos da política nacional de
desenvolvimento urbano, concretizando as diretrizes do Estatuto da Cidade em prol do
bem-estar de todos os seus habitantes, inclusive da classe trabalhadora.

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Recebido: julho de 2010


Aprovado: abril de 2011

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CHANTAL MOUFFE – ENTREVISTA

Entrevista realizada nas dependências da Universidade Federal do Paraná, em 06


de maio de 2010, conduzida por Bruno M. Lorenzetto1, Fernanda B. Gonçalves2,
José Arthur C. de Macedo3 e Miguel Gualano de Godoy4, sob a mediação da Prof.ª Dr.ª
Katya Kozicki. Tradução e degravação realizadas por Bruno M. Lorenzetto, Fernanda
B. Gonçalves e José Arthur C. de Macedo.

1- A democracia pode definir a própria democracia? Podemos definir


democraticamente o que é democracia? Quais seriam os critérios para verificar se
uma sociedade é efetivamente democrática?
O que seria definir democraticamente a democracia? Seria então a maioria que
define o que é a democracia? O problema é como se define a própria maioria. Quem
define quais pessoas devem participar desta discussão, seja ela entendida como agonística
ou deliberativa. Parece-me que encontramos um dos paradoxos da democracia, porque,
para que possa haver democracia se necessita definir quem são as pessoas que possuem
direito a participar desta decisão. Mas isso nunca pode ser feito democraticamente, pois
levaria a um regresso ao infinito. Logo, eu diria que não é possível definir democraticamente
o que é a democracia. Eu não creio que se possa definir, democraticamente ou não, o
que é “A Democracia”, pois não há só uma definição do que seja a democracia.
Etimologicamente, demos – kratos, é o poder do povo, mas esta ideia democrática se
inscreve de maneira distinta em vários contextos culturais e históricos específicos. Por
exemplo, o argumento que realizei no meu livro La Paradoja Democratica é que se deve
observar aquilo que nós chamamos de “A Democracia” é, na verdade, uma forma muito
específica de inscrição da democracia. É já uma articulação entre a tradição democrática
e a tradição liberal. É uma articulação que é contingente, não é necessária. Realizada
mediante uma luta, por exemplo, como foi mostrado por C. B. Macpherson em seu livro
The Life and Times of Liberal Democracy que explica como, durante o século XIX, ocorreu

1
Doutorando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR.
2
Mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR.
3
Mestrando em Direito do Estado pela UFPR.
4
Mestrando em Direito do Estado pela UFPR.

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Revistada
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Faculdade de Direito- -UFPR,
UFPR,Curitiba,
Curitiba, n.47,
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a junção de duas tradições que vão por lados distintos, pois por muito tempo a democracia
era uma coisa que os liberais entendiam como muito negativa. A união ocorreu, na
verdade, em sua oposição comum ao absolutismo. Carl Schmitt faz uma reflexão similar
quando diz em seu livro The Crisis of Parliamentary Democracy que essa união – que é
contra a natureza – pode ter funcionado em algum momento quando possuíam um
inimigo comum, mas agora, ele diz, está claro que são duas tradições que não caminham
juntas pois, para ele, o liberalismo nega a democracia enquanto a democracia nega o
liberalismo. O argumento de Macpherson é distinto, ele busca mostrar como o liberalismo
foi democratizado enquanto a democracia foi liberalizada. Mas os dois, de alguma
maneira, reconhecem que não há nenhuma união necessária entre o liberalismo e a
democracia. Contrariamente a Habermas, que fala da co-originalidade dos princípios
de liberdade e igualdade, eles ocorrem necessariamente juntos, enquanto tanto
Macpherson quanto Schmitt têm razão de mostrar a articulação histórica por trás deste
processo – que não há uma vinculação necessária. Logo, resta claro que, para nós, no
âmbito ocidental, quando falamos de democracia falamos da maneira como o ideal
democrático foi inscrito em uma tradição particular. O que também foi reconhecido por
muitos historiadores, ou seja, de que a tradição judaico-cristã possui uma importância
muito grande na maneira como nós, no ocidente, definimos a democracia. Trata-se de
uma concepção do que é a democracia, mas me parece que uma vez que isto é
reconhecido, realmente, pensar que este modelo é um modelo universalmente válido,
que deva ser o único que, por exemplo, os chineses, os árabes e os africanos têm
necessariamente que aceitar essa formulação democrática como a sua forma, não me
parece que haja nenhuma razão para acreditar nisso. Contrariamente – a Habermas e
outros autores – uma das coisas que eu critico na filosofia política atual é que eles, em
sua maioria, refletem sobre a democracia e procuram justificar, demonstrar que essa
ideia democrática como nós a entendemos possui um privilégio racional. Esta é a maneira
com a qual, por exemplo, se todas as pessoas pudessem estar em uma situação na qual
pudessem discutir racionalmente, teriam que aceitar esta forma racional, a qual tem um
valor universal porque é a fórmula democrática que as pessoas racionalmente escolheriam
se não estivessem influenciadas por alguns interesses particulares. As maneiras de
argumentar são distintas, no caso de Rawls, se estivermos sob um véu de ignorância, ao
contrário para Habermas, se for seguido um procedimento de argumentação, cada um
possui sua estratégia específica, mas basicamente o que todos querem é provar,
demonstrar o caráter de racionalidade superior do modelo liberal democrático. E isso
é justamente o que quero questionar e dizer, à maneira de Wittgenstein, que se trata de
um jogo de linguagem político particular, e sobre esta base eu não quero rechaçá-lo. Na
medida em que, uma ideia de democracia que corresponde a uma tradição e a todo um
tipo de cultura é uma coisa que é perfeitamente válida porque, no que diz respeito ao
mundo ocidental, minha estratégia é a de que precisamos radicalizar esta ideia de

Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.51, p.237-254, 2010.


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democracia, mas não temos que abandoná-la para buscar outra coisa completamente
distinta. Mas, creio que se deva aceitar que no mundo islâmico, os que queiram pensar
a democracia, podem pensar como para eles é possível colocar em um acordo a ideia
de poder popular, de soberania popular com sua tradição, com a tradição islâmica. O
que suscita questões da relação entre a democracia e sua compatibilidade com a Xariá.
Existe, na realidade, uma série de reflexões que se fazem precisamente para ver como
se pode colocar estes pontos. Na tradição chinesa vai ser diferente, com o confucionismo
ou o taoismo. Parece-me que existem formulações contra a ideia de uma democracia
apenas, a ideia democrática consiste em dizer o poder do povo. Isto sempre se inscreve,
não é algo que pode institucionalizar-se. Deve, antes, estar institucionalizado em situações
concretas, as quais serão influenciadas pela religião, pela maneira como vai se articular
com a religião e com contradições. A democracia tem que se inscrever em uma cultura
específica, porque a ideia democrática não pode ser realizada de maneira pura, sempre
se articula com algo, como em nosso caso, em que foi relacionada com a tradição liberal,
mas em outros contextos vai ser articulada com outras tradições. Logo, deve-se aceitar
que existem inscrições diferentes da ideia democrática. Há uma pluralidade de formas
democráticas que devem ser consideradas como legítimas. Os critérios para verificar se
uma sociedade é efetivamente democrática, seriam de ver se realmente se trata de uma
forma na qual se institucionaliza o poder do povo. O critério é democrático ou não, se
existem as formas nas quais o poder do povo pode ser manifestado – ainda que seja
uma ideia muito abstrata. Também se pode pensar nas formas de participação popular,
qual é o nível de participação, como ela ocorre, como são realizadas as decisões, se são
tomadas de uma forma autoritária. Finalmente, o que está em jogo é se o poder vem de
cima ou de baixo. Pois podem existir múltiplas formas na qual se estabelece o poder de
baixo, e me parece que estas múltiplas formas devem ser reconhecidas. Pode-se
finalmente decidir se são decisões vindas de cima que são impostas ou se estas vêm de
baixo. Mas não se pode pensar, de nenhuma maneira, que existe um critério único que
corresponda a nossa concepção de democracia.

2- Pensando nesta definição de democracia radical que a senhora propõe,


e, tendo em vista o procedimento de decisão de algumas propostas de democracia
deliberativa, como propõe Carlos Santiago Nino, que comportam o conflito, que
não buscam um consenso idealizado, que será contingente, parcial etc., é possível
pensar a democracia deliberativa de modo que comporte o conflito?
Bom, eu não conheço muito a escola de Nino. Por isso preciso que você me diga
no que consiste a proposta de Nino, o que ele tem de específico, o que ele acrescenta
em relação a Habermas. Existem muitas formas de democracia deliberativa. Li muitos
artigos que afirmam que finalmente não há muita diferença entre nossa proposta
(democracia radical) e a proposta de Habermas e que é perfeitamente compatível o

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modelo deliberativo e modelo agonístico. Eu posso imaginar que alguns autores
apresentam seu modelo deliberativo de tal maneira, que a diferença com o modelo
agonístico seja somente o nome. Mas para poder julgar especificamente precisava saber
o que da proposta de Nino que se aproxima ao que estou dizendo (a democracia radical).
Pode haver um modelo de democracia deliberativa que comporte o conflito, mas é preciso
saber quais são os mecanismos, as instituições (que propõe). É certo que eu não estou
contra a deliberação, evidentemente, o modelo agonístico tem uma grande parte de
deliberação. Eu diria que as diferenças consistem em que, por exemplo, no modelo
agonístico se parte do fato de que o político sempre apresenta um caráter partisan, não
haverá, nunca, a possibilidade de uma reconciliação final, enquanto a proposta de
Habermas vem em sentido contrário. Ele reconhece que é uma idéia regulativa, que não
será possível empiricamente, mas que é necessário tentar chegar o mais próximo possível,
é um ideal que nunca se poderá alcançar. Eu parto da premissa que toda comunicação
em política é distorcida, já que as pessoas participam (“there´s partisanship”), e que não
se pode ter como idéia regulativa algo que é conceitualmente impossível. Na realidade,
eu diria que as diferenças entre as concepções agonísticas e deliberativas são
fundamentalmente de tipo ontológico, pois partem de duas concepções ontológicas
completamente irreconciliáveis. Acredito que em alguns casos não haja diferenças entre
as duas propostas, porque, por exemplo, em certos casos, tanto Habermas quanto eu
proporíamos a mesma coisa. Mas, de todas as maneiras, há uma grande diferença, pois
quem parte de uma problemática agonística não irá buscar as instituições que vão permitir
chegar a um acordo, mas as instituições que permitirão o dissenso. Desde o princípio,
trata-se de pensar como se pode multiplicar as posições e não de encontrar como elas
poderão permitir a reconciliação. Mas dentro disto haverá uma série de instituições que
serão comuns evidentemente. Uma vez discuti com James Bohman, que, para haver a
verdadeira deliberação, é necessário que haja possibilidade de escolhas entre alternativas
reais, bem diferenciadas, senão não é uma deliberação. Esta é minha crítica fundamental
à posição que se chama “pós-política” da terceira via, porque, evidentemente, há muita
deliberação, mas deliberação sobre algo que não oferece nenhuma alternativa. Portanto,
se uma pessoa não pode escolher entre duas alternativas bem diferenciadas, eu não
chamo isso de deliberação. A deliberação, para mim, pressupõe a possibilidade de
decisão entre duas posições realmente diferentes. E, é por isso que eu insisto que a
distinção entre direita e esquerda é fundamental. Isso não significa que devem se manter
os sentidos tradicionais de esquerda e direita. Eles podem ser reformulados, alguém
poderia chamar de modo diferente e não de “direita e esquerda”, mas como foi
organizando assim o panorama político, então acho que vale a pena manter esta distinção.
Mas o que está em jogo aqui é o reconhecimento da divisão sócia, e é uma divisão que
nunca poderá ser realmente superada. Para mim, a categoria de esquerda e direita
indica isso. Que sempre haverá uma forma de conflito na sociedade que é irreconciliável,

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é isso que eu chamo de antagonismo, ou, o político. E que fundamentalmente uma das
tarefas da democracia é ver como se pode dar expressão para esse conflito de uma
maneira que ele não destrua a sociedade. A partir disso, faço minha reflexão com Schmitt,
porque para mim ele tem razão ao dizer que o político (“Das Politische”) tem a ver com
a distinção amigo-inimigo, aquilo que chamo de antagonismo. Mas Schmitt conclui disto
que uma democracia pluralista é inviável, porque levaria à guerra civil. Na verdade, ele
tem razão; porque se alguém pensa uma sociedade pluralista na qual o conflito é legítimo,
e este conflito necessariamente se dará sobre a base amigo-inimigo. Não se pode pensar
uma sociedade democrática que se mantenha sobre esta base, porque se todo mundo
vai se enfrentar aos moldes amigo-inimigo, isso levará à guerra civil. Schmitt, de maneira
muito lógica, diz: “há que se impor a ordem de maneira autoritária”. Então, para mim,
um pouco do desafio (“challenge”) de Schmitt era que eu estava de acordo com seu
ponto de partida, de que existe esta dimensão do político, do antagonismo; mas, por
outro lado, eu também quero defender a ideia de uma democracia pluralista. Então,
como se pode partir de premissas schmittianas para defender a democracia pluralista?
Evidentemente, para Schmitt, isto é impossível. Então, a minha proposta se deu,
justamente, a partir do que Schmitt não vê. O que ele pode unicamente imaginar é a
luta em termos de amigo-inimigo, que o antagonismo só pode se expressar por essa
fórmula. Mas se pode ver que este antagonismo é um conflito que não possui uma última
possibilidade de resolução racional. Aliás, está é também uma das diferenças com a
democracia deliberativa. Porque nem Habermas nem nenhum dos outros teóricos da
democracia deliberativa aceita esta premissa do antagonismo, não sei no caso de Nino,
mas se Nino reconhece o antagonismo ele é um teórico do agonismo, até pode-se chamar
de deliberativo, mas é um teórico agonístico. Eu diria que o critério que eu proporia
para alguém que quer defender uma concepção deliberativa seria: “você reconhece que
existem na sociedade alguns conflitos, todos os conflitos são antagonísticos, certos conflitos
que não podem ser decididos nunca de maneira racional, ou, de maneira na qual todo
mundo esteja de acordo”. Então, se ele disse que sim, então, neste caso, não teremos
problema, estamos de acordo, isso para mim é um critério. Mas, uma vez que ocorre
esse reconhecimento, se não se quer ter um governo autoritário e se quer ter uma
democracia pluralista, então a questão é: como se pode dar expressão ao conflito que
não vá levar a guerra civil. É aí que faço a minha proposta agonística. Na verdade, esse
antagonismo pode se dar na forma amigo-inimigo, quando o oponente é alguém que se
quer destruir, erradicar. Não reconheço aqui nenhuma legitimidade, evidentemente isso
é incompatível com a democracia. Mas, também esse conflito pode se dar na forma do
agonismo. Sabe-se que esses grupos que estão se enfrentando nunca irão se reconciliar,
que é uma luta entre dois projetos hegemônicos que não vão se reconciliar. Evidentemente,
cada grupo vai lutar pelo seu projeto hegemônico, contudo irá lutar reconhecendo a
legitimidade do oponente. O oponente não é um inimigo, é um adversário. Na medida

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em que o conflito agonístico, que não deixa de ser um antagonismo, toma a forma
domesticada – as feministas não gostam desta palavra, pois o “doméstico” possui
conotações que não as agrada –, e essa imagem do animal selvagem que foi domesticado
é boa porque isso mostra que essa domesticação nunca será total. Um antagonismo é
sempre precário e está sempre mantido dentro de certos limites que sempre são precários.
Se alguém tenta domesticá-lo de forma que não exista, haverá a eliminação do
antagonismo. Penso que o antagonismo não pode ser eliminado, pode apenas ser
pacificado temporariamente. Esta é, para mim, uma das tarefas da democracia: encontrar
as instituições que permitem ao conflito expressar-se, de forma que não coloque em
questão a própria existência da comunidade política e não leve à guerra civil. Meu modelo
poderia se chamar modelo de deliberação agonística. Evidentemente, não elimino o
elemento de deliberação, não existem só as paixões, mas há que se reconhecer que o
antagonismo é ineliminável; que sempre haverá dois projetos hegemônicos que não
podem se conciliar; que haverá sempre um caráter partisan na política. Existem muitas
propostas agonísticas, que se denominam assim, mas que eu chamo agonismo sem
antagonismo; por exemplo eu critiquei recentemente a posição de Hannah Arendt,
sobretudo as pessoas que usam Arendt como Bonnie Honig. É um agonismo sem
antagonismo, enquanto o agonismo como eu proponho é um agonismo que sempre é
uma domesticação do antagonismo. O critério seria esse, se se reconhece o antagonismo
como deliberável. Eu diria que, na realidade, outra diferença que eu vejo entre a
perspectiva deliberativa e a agonística consiste em uma maneira distinta de entender o
pluralismo. Porque temos duas maneiras de entender o pluralismo: pluralismo com
antagonismo e pluralismo sem antagonismo. Pois a maneira liberal, em um sentido muito
amplo, em Habermas, por exemplo, é aceitar o pluralismo, o que se encontra em Rawls
e em Habermas, mas concebê-lo da seguinte maneira, de que no nosso mundo moderno
há uma pluralidade de valores, já não há uma visão única do bem comum (eudaimonia),
e isto é justamente o que há de específico no mundo moderno. E, evidentemente, não
seremos capazes de ocupar sempre todas essas posições, ou, como se diz em inglês:
“put into the shoes of everybody else” (colocar-se no lugar dos outros). Mas o que se
necessita, é o que chama Arendt, retomando a expressão de Kant, de um pensamento
ampliado (“enlarged thought”), precisa ter a mente aberta às perspectivas dos outros, é
preciso reconhecer a pluralidade. Contudo, este tipo de pluralismo não aceita que este
necessariamente implique a existência de um conflito antagônico, porque pensa que
finalmente nós vamos nos colocar nos sapatos dos outros, por algumas limitações do tipo
empírico. Evidentemente, não se pode ocupar este lugar, mas se o vemos de um ponto
de vista desde cima, colocados juntos, todos estes valores podem constituir um todo
harmonioso. Isso é que chamo de um pluralismo sem antagonismo. Há outra concepção
de pluralismo, que se encontra em Max Weber e em Nitzsche, em que os dois reconhecem
que o pluralismo implica o antagonismo. Por exemplo, Nietzsche fala da guerra entre

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os deuses, Weber fala do politeísmo dos valores, mas os dois reconhecem que esta
pluralidade não é harmoniosa, porque existem valores cuja definição implica a negação
de outros. O reconhecimento do pluralismo para eles é reconhecer a presença do
antagonismo. Minha concepção de pluralismo é uma concepção que segue esta noção
de Weber e Nietzsche. Então, de novo, diria eu, um dos critérios para distinguir entre
uma concepção deliberativa à Habermas, e uma concepção agonística, seria: que tipo
de pluralismo? Como vê o pluralismo? À maneira dos liberais, como um todo harmonioso,
ou à maneira de Weber? Por isso não é tanto a existência ou não de deliberação, pois
evidentemente há deliberação no meu modelo também. O ponto-chave é a existência ou
não do antagonismo.

3- Qual seria o papel do Direito e do Poder Judiciário no modelo da democracia


radical? O que fazer quando as respostas sobre diversos conflitos sociais vêm de fora
da política democrática (por exemplo, quando o Poder Judiciário oferece respostas
para questões omitidas ou não enfrentadas pela política democrática)?
R.: Em um texto anterior – The moral, the political and the juridical – eu apresento
essa crítica. Eu acho que a despolitização de nossas sociedades, que é característica do
que denomino visão “pós-política” (“post political view”), acarreta o fato de que mais e
mais decisões sejam entregues às Cortes Judiciais, aos juízes, e cada vez menos sejam
tomadas decisões no âmbito político. Um exemplo muito típico disso ocorre nos Estados
Unidos, pelo papel da Suprema Corte, que vem tomando várias decisões políticas quando
não deveria fazê-lo, porque o modelo agonístico requer que as decisões políticas mais
importantes sejam tomadas de um modo agonístico, por meio do processo político. Uma
visão agonista necessariamente desafia o fato de as decisões políticas importantes serem
tomadas pelo Judiciário, porque dessa forma elas, supostamente – supostamente, porque
esse não é nunca o caso – deveriam ser tomadas de um modo imparcial. É uma negação
da ideia de antagonismo, uma negação do caráter partisan do político. Uma vez que
estas decisões sobre a vida política devem ser tomadas de um ponto de vista imparcial,
pensa-se que, logo, é melhor deixá-las para o Judiciário, porque os juízes decidirão
imparcialmente. Claro que isso nunca acontece. Por exemplo, as decisões da Suprema
Corte nos Estados Unidos são muito políticas, mas eles carregam a pretensão de
imparcialidade, porque essas decisões são tomadas pelo Judiciário. A visão agonística
é definitivamente contra essa tendência de dar tanta proeminência ao Judiciário, até
porque ele não é muito mais imparcial que as demais instituições. Minha questão é que,
no campo do Político, sempre nos defrontamos com decisões políticas, e penso que,
hoje, um dos problemas é que essas decisões são vistas como decisões técnicas, não se
reconhece que elas, de fato, sempre concernem a decisões a serem tomadas entre
alternativas conflitantes. Para mim, é característico dessa visão pós-política que decisões
políticas são pensadas como decisões técnicas, as quais, de fato, são melhor tomadas

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por experts, ou por juízes, porque são muito complicadas para serem feitas de um modo
democrático. Esse é um ponto que Norberto Bobbio mostra, o papel dos QUANGOs
(quasi-autonomus non-governmental organisation), pensando na democracia parlamentar,
quando mais e mais decisões importantes são retiradas dos parlamentos e levadas para
comitês, experts, cientistas, que irão decidir, ou para o Judiciário, então, é um movimento
que retira muitas decisões importantes do campo onde elas poderiam ser tomadas
mediante a participação, ainda que uma participação parlamentar limitada, mas, ao
revés, elas são levadas para um campo onde podem ser feitas num modo imparcial. Essa
é uma característica da despolitização de nossas sociedades. Mas, por outro lado, eu
também acredito que o sistema legal é muito importante, de forma que estou em completo
desacordo com Agamben e outros, quando acreditam que uma sociedade democrática
deveria estar além do Direito, além do Estado, não havendo mais Estado, não havendo
mais Leis. Mas o que está por trás dessa ideia? Mesmo porque Agamben nunca apresenta
uma proposição concreta disso, é encantador precisarmos de uma nova Política, mas
ele nunca diz nada sobre como ela seria, como seria uma comunidade à qual não
pertencemos, uma sociedade sem Direito e sem Estado, sem nada. O fantasma por trás
disso é a possibilidade de uma sociedade completamente reconciliada, uma sociedade
na qual sequer precisaríamos de instituições. Uma vez que se reconhece que a sociedade
é necessariamente dividida, precisamos de instituições para lidar com isso, precisamos
do Direito, precisamos dos Estados. A ideia dessa sociedade além do Direito e do Estado
é completamente ilusória e perigosa. Eu ainda vejo uma similaridade com a ideia de
democracia absoluta da “Multidão” (“absolute democracy of the ‘Multitude’”) de Hart e
Negri, para além da hegemonia, além da política, além do Direito, além dos Estados,
viveríamos em algum tipo de reconciliação feliz, isso para mim é uma visão de política
que acho completamente errada. Mas, novamente, aqui estamos nós, enfrentando o que
eu vejo como duas formas rivais e diferentes de compreensão do Político, elas são, por
um lado, o que eu chamaria de visão associativa do político e visão dissociativa do político.
A visão associativa, que encontramos em muitos diferentes pensadores, como Agamben
e outros, mas também em Hannah Arendt, por exemplo, essa ideia de que a política é
agir em conjunto, e isso, para algumas pessoas, não requer nenhum Direito, instituições.
Uma vez que se supere o capitalismo, essa é a ideia proposta pelo comunismo, quando
se atinge o consenso, não haverá mais conflito que necessite de instituições para lidar
com ele. Algumas pessoas não vão tão longe, no sentido de não mais precisarmos de
instituições, mas ainda tem a idéia de que política é uma atuação conjunta, é também,
basicamente, a concepção de Rousseau, de que os homens são bons e que quando nos
livrarmos de todas as instituições que criam conflitos, obteremos essa harmonia. Há uma
outra concepção do Político, que é aquela à qual eu pertenço, que é a concepção
dissociativa de política, se a dimensão do político é a de que nas sociedades há hostilidade,
há conflito, e ela não é contrária a Marx, ao que ele disse, à sociedade de classes, porque

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acho que o avanço do marxismo em respeito à visão liberal, por exemplo, é precisamente
o reconhecimento do fato do antagonismo, porque no liberalismo não existe esse
antagonismo. Marx reconhece sua existência, reconhece que há conflito, mas localizado
apenas no âmbito das classes, e ele pensa que, quando se conseguir superar o capitalismo
para o comunismo, com o fim das classes, então será possível atingir essa sociedade
reconciliada, sem Estado. Daí que esse avanço de Marx no que se refere ao antagonismo
não seja suficiente. O que acho interessante em Schmitt é que sua concepção vai mais
longe que a de Marx, porque Schmitt aceita a ideia de antagonismo, mas reconhece que
esse antagonismo não está localizado apenas em um ponto, nas classes, mas emerge nas
mais diferentes relações, e nós não podemos nunca nos livrar dele, porque o antagonismo
pode desaparecer aqui, mas aparecer em outra parte. Isso é o que eu chamo de visão
dissociativa do Político, porque inerentemente às sociedades encontraremos um elemento
de hostilidade, de conflito, e isso é que é chamado de Político. Sonhar com uma sociedade
onde o conflito tenha desaparecido é sonhar com uma sociedade sem política. Penso
que é importante reconhecer essa dimensão do conflito que não pode ser resolvido. Em
respeito ao Direito e à Constituição, eu sou crítica à despolitização, que dão àquelas
instituições um papel muito grande, mas também não concordo com uma forma de crítica
da esquerda que quer se livrar do Direito, porque uma vez que se reconhece que existe
essa dimensão do conflito na sociedade, você precisa daquelas instituições, mas claro,
a velha questão é usá-las, transformá-las. Não estou dizendo que devemos mantê-las
como são, obviamente, porque instituições podem ser utilizadas de várias maneiras,
podem ser usadas para manter as tradições existentes, ou para a transformação, e acho
que é um erro conceber as instituições de um modo essencialista, porque hoje elas são
usadas para proteger a propriedade privada, por exemplo, elas só poderiam ser utilizadas
para isso. De fato, acho que estamos num momento interessante desse ponto de vista.
Estou pensando de um ponto de vista muito europeu, provavelmente as coisas são
diferentes na América Latina. Mas o que acho interessante na reflexão da esquerda na
Europa é que, por exemplo, quando escrevi Hegemony and Socialist Strategy, em 1985,
era um momento no qual todas as esquerdas eram muito críticas às instituições do
“Welfare State”, porque achávamos que elas não eram suficientemente democráticas,
daí o projeto de radicalizá-las, mas claro que jamais imaginaríamos que aquelas
instituições, que de todo modo representavam uma conquista das lutas trabalhistas,
podiam ser retiradas, e o que veríamos nos anos seguintes seria a hegemonia do
neoliberalismo, retirando aos poucos direito sociais e, mais recentemente, com a guerra
contra o terrorismo, direitos civis seriam retirados. Então, agora na Europa, nós de
esquerda precisamos defender aquelas instituições das quais éramos críticos anteriormente,
porque não eram suficientemente democráticas. Claro, acredito que devemos criticar a
burocracia, é importante democratizar essas instituições, radicalizá-las, mas agora penso
que não estávamos atentos a que elas eram uma proteção importante, de que o Estado

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pode ter um papel protetivo muito importante. Estamos reconsiderando aquelas
instituições e começando a perceber que o fato de elas terem sido retiradas pelo
neoliberalismo não significa progresso democrático, mas, pelo contrário, é algo muito
importante que nós perdemos. Essa posição não representa toda a esquerda, Hart, Negri,
Agamben não reconhecem isso, mas parte da esquerda também está revisitando o papel
das instituições e reconhecendo sua importância.

4- Como identificar se ainda possuímos uma democracia liberal, no sentido


de observância dos princípios da liberdade e igualdade, ainda que seu conteúdo
esteja em constante discussão? Um regime democrático ainda pode se definir
nesses termos, tendo por base a realidade das democracias de esquerda da
América Latina?
R.: Eu já disse anteriormente que, com respeito à liberdade e igualdade, penso
que se entendermos liberdade como proveniente do liberalismo, e igualdade provinda
da democracia – esse é o principal argumento em The democratic paradox, a democracia
liberal como articulação de duas tradições, liberalismo e democracia –, a ideia de
liberdade e pluralismo vindo da tradição liberal, e a ideia de igualdade e soberania
popular vindo da tradição democrática, então, como eu já disse também, ao contrário
do que Habermas acredita, de que liberdade e igualdade são co-originárias, que
necessariamente caminham juntas, eu afirmo que elas não necessariamente estão
vinculadas. Liberdade e igualdade foram historicamente articuladas, elas são, obviamente,
elementos constitutivos de uma democracia liberal, mas isso é uma criação histórica.
Schmitt fala que existe uma contradição necessária entre liberdade e igualdade, então,
temos num extremo Habermas, que afirma que elas são co-originárias, e no outro extremo
temos Schmitt, que diz que elas não podem caminhar juntas, elas se destroem, liberdade
destrói igualdade, e vice-versa. Eu estou no meio disso, porque acho que Schmitt está
certo ao dizer que há uma impossibilidade de reconciliação final, não se pode ter um
mundo com completa liberdade, com completa igualdade, porque elas estão em
competição, mas meu argumento é que nós não podemos ver isso como uma contradição,
mas como uma tensão, e esse é o argumento de um dos artigos de The democratic paradox,
em que trato particularmente de Schmitt. De fato, o que eu vejo de positivo na democracia
liberal, mas quando falo em liberalismo eu não falo no liberalismo econômico e o deixo
completamente de lado, democracia é um modelo político. Eu não sou contrária à
democracia liberal, entendida como um regime que afirma liberdade e igualdade para
todos, meu problema com as democracias liberais existentes é que elas não colocam
essa ideia em prática, é por isso que eu proponho radicalizar essas ideias. Minha proposta
é radicalizar a democracia, não significa que iremos abandonar a democracia liberal
para criar algo completamente novo, que seria a democracia radical. Esta, como eu a
defino, é a radicalização, é colocar em prática os princípios de liberdade e igualdade,

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não é a destruição da situação presente para criar algo completamente novo. Desse ponto
de vista, eu sou uma defensora de Rawls. Quando eu digo que eu não acho que esse
modelo deve ser universalizado, eu não estou dizendo que não seja algo que para nós,
considerando nossa história, seja algo que não importa. Meu argumento é contextualista,
considerar o contexto. Entendo que é um regime valioso em nossa aliança para nós,
trazido por essa tradição, e não quero impor esse regime para o resto do mundo, mas
não estou dizendo que não seja algo com o qual estou comprometida, mas quero radicalizá-
lo. Então, quero radicalizá-lo porque acho que, precisamente porque a articulação entre
liberdade e igualdade, que Schmitt vê como contraditórios, para mim, é parte do que é
importante nesse regime. Eu não poderia defender um puro regime liberal, no qual a
liberdade não é articulada à igualdade, como um modelo para nós hoje. E é por isso
que vejo problemas no neoliberalismo, a predominância da liberdade se torna tão grande
que a igualdade está quase desaparecendo, você não pode realmente falar hoje na
Europa – e eu chego à América Latina num momento – na idéia de igualdade, porque
igualdade, desde o colapso do regime soviético, se tornou muito desacreditada. Quando
se fala em igualdade, pressupõe-se que você quer um regime como o comunismo. Então
eles falam agora em equidade (“fairness”), no discurso de Tony Blair nunca se ouve falar
em igualdade, mas em escolhas (“choose”), esta é a melhor palavra para ele. Mas igualdade
nunca é mencionada. Então, em um regime liberal puro faltaria algo, mas um regime
democrático puro, no qual a igualdade não teria vínculo com o pluralismo, também seria
problemático, porque uma forma majoritária pura de democracia não garante o respeito
às minorias. Novamente, estamos indo para um tipo de sociedade unificada, porque se
é aceito que a sociedade é necessariamente dividida, e acho que esse é o ponto principal,
se a democracia é o poder do povo, e se o povo estiver dividido? Como iremos imaginar
democracia? Se o povo está dividido, uma democracia majoritária pura significa que
uma parte do povo irá realmente decidir, e talvez oprimir as minorias, então acho que
desse ponto de vista, Stuart Mill foi um dos primeiros a introduzir a necessidade de se
respeitar os direitos das minorias, mas foi o liberalismo que introduziu essa ideia na
democracia, e a ideia de pluralismo, que é o que eu sempre defendi, vem da tradição
liberal, ele não vem da tradição democrática. A democracia se priva da ideia de respeito
aos direitos das minorias, e é por isso que penso que, é claro que existe uma tensão
entre liberdade e igualdade, mas é precisamente porque, para mim, a articulação da
ideia democrática com a ideia liberal faz com que democracia seja necessariamente uma
lógica de exclusão-inclusão, porque, para exercer democracia, você precisa definir o
povo (“demos”) e, para definir esse povo você tem que dizer o que está dentro e o que
está fora, quem são os cidadãos e quem não o é. Você não pode evitar isso, não se pode
imaginar uma sociedade na qual se dirá, no momento da eleição, que todos que estão
no Brasil ou na Inglaterra terão o direito de votar. Deve-se dizer quem tem o direito de
votar, quais serão as pessoas, o corpo de cidadãos que poderá votar. A fim de que se

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possa fazer isso, precisamos dizer quem não vai poder fazê-lo; é isso que eu chamo de
inclusão-exclusão, pois para definir a democracia deve-se estabelecer os seus limites, e
esses limites significam que será preciso dizer quem estará fora do povo. Isto é inevitável,
não se tem democracia sem a inclusão e a exclusão. Mas é claro, essa inclusão-exclusão
é sempre contestável. Quem nós vamos incluir? Imigrantes? Quais imigrantes? Quais
critérios? Há uma luta constante sobre os limites da democracia. Eu penso que sob este
ponto de vista, a ideia liberal do pluralismo e do universalismo é importante porque este
aspecto desafia constantemente os limites impostos pela tradição democrática, então,
por um lado, um regime puramente liberal não irá aceitar os limites para definir o povo,
não vai autorizar o exercício da cidadania democrática. Porque ter-se-ão direitos, e essa
é uma das minhas críticas ao cosmopolitismo, nós teremos direitos mas não teremos a
democracia para exercê-los. Penso que, deste ponto de vista, esta lógica liberal de direitos
universais, que não nos possibilita exercer a democracia, não será nada. Por outro lado,
caso se tenha somente a lógica democrática, sem esse constante desafio do universalismo
liberal, estes limites não poderão ser alterados, não poderão se tornar mais inclusivos.
É claro que não se tornará completamente inclusivo, é preciso ter sempre alguém excluído
para que possa defini-lo. Mas, também, é preciso enxergá-los como uma tensão, pelo
fato da articulação entre liberdade e igualdade, como tensão produtiva, isso é o que eu
valorizo na democracia liberal. Mas precisamos reconhecer também que há uma luta
constante pela hegemonia entre estes dois princípios, haverá um momento de domínio
do princípio liberal, em outros momentos haverá o predomínio do princípio igualitário,
ou democrático se se prefere. Na história de Europa, particularmente, é possível ver
momentos de democracia liberal e outros liberal-democráticos. Até nas teorias liberais
consegue-se ver, por exemplo, Rawls é definitivamente um liberal-democrático, já
Habermas é um democrata liberal. Porém, hoje, precisamente como consequência pela
quase completa hegemonia do neoliberalismo, o aspecto democrático tornou-se bem
subordinado, é por isso que pessoas como Jacques Rancière e Colin Crouch falam em
pós-democracia. Nós vivemos, de fato, hoje, em sociedades que se dizem democráticas,
porém nas quais os elementos democráticos foram reduzidos ao mínimo, por conta desta
hegemonia do liberalismo. E os critérios para se definir uma sociedade como democrática
são o Estado de Direito (“Rule of Law”), eleições regulares, e algumas declarações
dizendo que vão respeitar os direitos humanos. Isto é suficiente para chamá-la de
democracia, mas ela é só é democrática no nome. O que está acontecendo na América
Latina é contrário desta situação, até porque vocês sofreram muito mais as consequências
do neoliberalismo do que nós tivemos até o momento. Eu acho que está havendo uma
grande reação ao neoliberalismo; e, na verdade, o que eu vejo nos presentes governos
democráticos de esquerda na América Latina é um retorno ao acesso da dimensão
democrática-liberal. Então, aqui (na América Latina) o aspecto liberal tornou-se
subordinado ao aspecto democrático. Estou aqui falando, sempre, do ponto de vista

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político, não econômico. Parece-me que está havendo uma reavaliação, em diferentes
graus, da ideia democrática. No caso de Chávez, para mim, é uma forma de democracia
liberal, já que ele não colocou em questão a estrutura liberal-democrata, mas está
promovendo um reequilíbrio com elementos democráticos. Eu acredito que haverá
diferentes formas (de democracia) de acordo com os diferentes países. Pois a situação
é diferente na Argentina, no Peru, na Bolívia e na Venezuela. Eles têm uma democracia
liberal, mas o aspecto democrático está predominando sobre o aspecto liberal. Esses
governos de esquerda não estão colocando em questão o modelo democrático ocidental,
porém o estão reformulando, de uma forma diferente.

5- Desde sua perspectiva do conceito de cosmopolitismo e cidadania,


observadas a impossibilidade de inclusão de todos e a impossibilidade de uma
república mundial, quais são as alternativas para possibilitar outras formas de
solidariedade e controle no cenário internacional?
Minha crítica ao cosmopolitismo é basicamente a de que o cosmopolitismo é um
projeto político. Eu não sou contra o cosmopolitismo como um ethos ou uma atitude de
abertura ao outro. O problema é que cosmopolitismo foi entendido de formas tão
diferentes em diferentes tempos. De fato, usado até de maneiras diretamente opostas ao
seu significado. Cidadão cosmopolita do mundo é uma ideia, mas eu realizo uma crítica
radical da proposta feita por Daniele Archiburgi. Pelo modo como as relações
internacionais podem organizar o mundo, pois é um extremo pensar em transformar as
Nações Unidas em um fórum democrático em que todos, independentemente de sua
nação poderiam participar com sua decisão. Como estas decisões seriam implementadas?
Eu acredito que este é um projeto completamente irrealista. Também, nos termos da
teoria básica, todos os cosmopolitas dizem o que querem sobre um mundo para além
da hegemonia, para além da soberania, mas isto é impossível, pois não pode haver um
mundo para além da hegemonia. Esta é, claro, a minha perspectiva teórica, na qual toda
ordem formal é uma ordem hegemônica, pois é sempre a expressão de algo que poderia
ter se dado de outra maneira. Qualquer ordem formal exclui outras possibilidades, nunca
se tem uma única ordem possível. Uma ordem é sempre o resultado da prática política
hegemônica que implica a escolha entre alternativas, por isso sempre existirão alternativas
que serão excluídas ou deixadas de fora. Logo, não existe a possibilidade de um mundo
para além da hegemonia. Um mundo para além da hegemonia seria também um mundo
para além da soberania, o que eu entendo como inimaginável. Do começo, acredito que
é um projeto inconsistente em sua teoria, pois demandaria um mundo para além da
política. Esse é o motivo pelo qual eu entendo que, como um projeto político, o
cosmopolitismo é inimaginável. Por outro lado, no plano político, eu compartilho a
questão que alguns cosmpolitanistas propõem, pois eles consideram que a ordem presente
é inaceitável e traz consequências negativas, e eu também acredito nisso. Além de pensar

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particularmente que um mundo unipolar, o qual vivemos desde o colapso do comunismo,
é muito problemático. Na verdade, apesar de todos os outros problemas, o mundo bipolar
era mais equilibrado. Eu tenho certeza de que em um mundo bipolar a Guerra do Iraque
não teria sido possível, pois haveria outro poder contrastante que limitaria a ambição
dos Estados Unidos. O poder em uma ordem em que se tem apenas uma potência,
hegemônica, sem oposição é muito perigoso. Por isso, as novas formas de terrorismo,
como o Al-Qaeda, são consequências do fato de que não há canais legítimos para o povo
expressar suas resistências e, quando estes canais são ausentes, a expressão ocorre de
forma violenta. Se houvesse a possibilidade para críticas legítimas, as coisas seriam
diferentes. Pois, para George W. Bush, como pode ser lembrado, se estava “conosco”
ou “contra nós”, o povo era tratado como antagonista, além da oposição entre “civilizados”
e “bárbaros”, para aqueles que não estavam do lado do “modelo americano”. E é claro
que existem pessoas bem-intencionadas, como Daniele Archibugi, que propõe algo a
mais, como um mundo para além da hegemonia, e minha perspectiva é a de que não é
possível. Claro, um mundo unipolar é muito perigoso, mas qual é a solução, então? A
minha solução é a de que precisamos pluralizar as hegemonias. Ao invés de ter um
mundo hegemônico, temos uma pluralidade de hegemonias, uma pluralidade de blocos
regionais, os quais nunca estarão no mesmo nível, mas que terão uma espécie de equilíbrio
instável entre si. Assim, os americanos não poderão impor sua vontade. Desde esta
perspectiva, o que está acontecendo na América Latina é muito interessante, como a
reforma da UNASUL. É muito bom que a América Latina busque se organizar como
um bloco de poder regional. Eu também espero que a União Europeia se torne uma
“Europa política”, para que possa ter um verdadeiro papel político. Além do que pode
ser observado na China e na Índia. Eu acredito que já estamos nos direcionando para
um mundo multipolar. É muito interessante que quando eu comecei a falar sobre um
mundo multipolar, há anos atrás, as pessoas perguntavam sobre o que se travava. Hoje,
ao ler os jornais, a ideia de um mundo multipolar se tornou parte do vocabulário. Se
vamos pensar que outra palavra seria melhor para organizar o conceito de cosmopolitismo,
deve-se lembrar que ele é um modelo político e eu entendo que a alternativa é o mundo
multipolar. Por outro lado, se por cosmopolitismo se compreende a importância de estar
aberto ao outro, vejo isso como a expressão de uma solidariedade transnacional. Mas
entendo que se deva realizar uma distinção entre os termos para evitar confusões, este
é o motivo, por exemplo, que eu acho muito problemático o fato de o cosmopolitismo
ter se tornado um termo “da moda”. Todos querem se tornar cosmopolitas, cada um
com suas especificidades, como as 15 maneiras diferentes de cosmopolitismo. Mas qual
o sentido em se buscar redefinir este termo, para significar, basicamente que eles são
contra o universalismo? Quero dizer, o cosmopolitismo está vinculado ao universalismo,
o cosmopolitismo está ligado a uma forma do mundo democrático. Mas buscam reconhecer
diferenças, mantendo o mesmo termo, porém com um significado completamente

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diferente, o que é para mim, muito confuso. Entendo que devemos encontrar outro termo
para expressar aquilo que se coloca no nível de um ethos, de uma atitude de abertura
para o outro. Isso se coloca no plano de uma atitude, não em um projeto político pelo
qual se irá organizar o mundo. Na verdade, um mundo multipolar, não significa que
cada polo vai ficar fechado em si mesmo. Uma vez organizado esta mundo multipolar,
se faz possível estabelecer formas cruzadas de solidariedade. Apenas a partir da base
de um mundo multipolar que se pode realmente vislumbrar uma forma efetiva de
solidariedade, pois assim as diferenças serão reconhecidas. E uma vez que as diferenças
são reconhecidas, se pode respeitar e compreender as demandas específicas dos outros,
então se faz possível estabelecer aquilo que foi dito no livro Hegemony and Socialist
Strategy como “compartilhamento de equivalências” entre diferentes atores. Um exemplo
desta solidariedade transnacional é o movimento Via Campesina, que reúne diferentes
movimentos de pequenos agricultores em todo o mundo, eu não sei se o Movimento Sem
Terra faz parte, provavelmente, mas também José Bové na França, e que também está
na África. Eu entendo que estes diferentes movimentos de campesinos que lutam contra
o Agrobusiness são muito importantes. Para mim é muito surpreendente que, exceto por
uma parte do movimento antiglobalização, a maior parte da esquerda tradicional não
seja crítica do comércio livre. Para mim, uma das coisas que as organizações de esquerda
deveriam colocar em questão é a ideia em si de que o comércio livre é algo bom. Esta
ideia se tornou tão comum que ninguém mais pode criticar o comércio livre, sob pena
de ser acusado de protecionista. Se examinarmos efetivamente as consequências do
comércio livre, eu entendo que a União Europeia deveria ser criticada, mas também o
Brasil deveria ser criticado desde esta perspectiva, pois, uma vez que se torna parte dos
grandes busca-se tirar vantagens do comércio livre. E basicamente a parte do mundo
que está incrivelmente destruído pelo comércio livre é a África, pois a África está em
uma situação de dependência que eles não são capazes de competir e lá se cria um
círculo vicioso completo. Pois, de um lado se tem mais indústrias da agricultura que
foram destruídas pela importação barata. Como no Senegal, em que eles possuíam uma
indústria de cebolas muito competitiva, que foi destruída pois eles passaram a importar
cebolas congeladas da Holanda. Na Jamaica, toda a indústria do leite está sendo destruída
pois eles importam leite em pó dos E.U.A.. Todos esses mercados industriais estão sendo
destruídos, por causa do livre comércio, que nunca permite haver uma verdadeira
competição e na verdade eles nem poderiam, pois suas produções estão sendo destruídas.
Desse modo eles colocam seus jovens camponeses em uma situação em que eles não
podem sobreviver, pois eles não possuem emprego. Então eles procuram emigrar para
a Europa – na verdade a maioria da emigração ilegal está vindo da África subsaariana
– pois nós estamos destruindo os empregos deles. Mas quando eles querem emigrar, os
europeus não querem eles lá. Assim, entendo que as pessoas devem perceber que são
elas que estão criando as condições deste círculo vicioso, com a destruição da indústria

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deles, eles buscam, para sobreviver, emigrar, e eles são impedidos. Eu acredito que
neste plano há realmente a necessidade de uma solidariedade transnacional, mas, para
isso, seria necessário estabelecer alguma forma de protecionismo, e não devemos entender
o protecionismo de uma forma negativa. Há um antropologista francês chamado
Emmanuel Todd que está defendendo uma forma de protecionismo europeu e eu
concordo com isso, pois eu penso que a Europa deveria começar a produzir produtos
basicamente para a própria Europa e não, basicamente para a exportação. A produção
voltada para a exportação implica duas coisas, primeiro significa, como explica Emmanuel
Todd, que as consequências disso para a Europa serão negativas, pois leva as grandes
corporações transnacionais a ocupar a Europa. Nas fases anteriores do capitalismo a
produção era voltada para o mercado nacional, então os preços se relacionavam com os
trabalhadores, pois eles deveriam estar em condições de comprar os produtos. Agora,
eles procuram realizar a exportação e não se responsabilizam mais pela situação
doméstica, existe, claro, a deslocalização, o que traz consequências negativas para o país
de origem e ainda piores para o país onde o produto está sendo exportado. Assim, os
blocos regionais procuram, basicamente, primeiro produzir aquilo que é necessário para
eles, de maneira a evitar a exportação e a destruição de indústrias em outro lugar. Uma
área que considero particularmente importante é a da Soberania Alimentar (ou Produção
Autossuficiente), é uma área crucial, pois, é um absurdo quando se têm países em que
a população não possui o suficiente para comer pelo fato de que tudo que é produzido
é feito para exportação. Entendo que isso deveria ser impedido, e o seria de uma maneira
muito melhor em um mundo multipolar. Em que não haveria um protecionismo doméstico,
que é inimaginável nos dias de hoje, e o problema está em que o termo protecionismo
é subestimado, devemos pensar em algo diferente. Como no caso em que nos
responsabilizamos, não apenas por algo que é necessário para nós, mas também dos
efeitos disto em outro país, com a paralisação dessa produção voltada para a exportação,
que é destrutiva. Essa seria uma forma de solidariedade transnacional, em que seria
importante organizar movimentos como a Via Campesina, conscientizando as pessoas
sobre as condições dos outros países. É possível chamar isso de cosmopolitismo, mas
eu entendo que é confuso, pois o cosmopolitismo não possui um significado tão forte.

6- Como a senhora analisa o governo Barack Obama, em termos de


continuidades e rupturas com o modelo de resolução de conflitos do governo
Bush?
R.: Claro, foi algo muito bom para os Estados Unidos, porque qualquer coisa é
melhor que Bush, e, certamente, tendo em conta que a alternativa era (Sarah) Palin e
(John) McCain, isso seria horrível. O fato de ele ser negro é também muito importante,
simbolicamente. E quando falo em simbólico, não quero dizer num sentido negativo,
porque acho que o lado simbólico é importante. Por outro lado, eu estava um pouco

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preocupada, porque eu sentia que as pessoas estavam investindo tanto em Obama, e
isso realmente poderia resultar numa grande decepção. E Obama nunca se apresentou
como um radical, como um agonista, é um político que segue uma linha consensual.
Mas a questão é que, para se ter consenso, é preciso que o outro lado também o queira.
Contudo, quando se tem um consenso sobre as políticas de Obama, o outro lado trata
essas pessoas como inimigos. É realmente inacreditável o modo como os republicanos
estão lidando, é realmente antagonístico, são inimigos, não adversários, havia um tipo
de situação difícil ali. Num sentido, isso é bom porque pressionou Obama na direção
da esquerda, ele queria trabalhar com os republicanos, mas os republicanos não queriam
trabalhar com ele, então isso o obrigou a mudar um pouco suas táticas. Eu realmente
não sei qual vai ser meu “termômetro”, eu vou todos os anos para Nova Iorque para dar
um curso, eu estava lá um pouco antes da eleição de Obama, e vários de meus amigos
estavam muito entusiasmados. Mas eu dizia que ele não era muito agonista, e eles me
diziam que ele não podia ser assim, precisava vencer uma eleição na América. Eu era
um pouco cautelosa quanto a ele. Então, eu voltei um ano depois, e todos estavam tão
anti-Obama que eu não podia acreditar, chamavam-no de traidor, e eu falava, “avisei
vocês, ele nunca prometeu nada disso realmente, vocês é que queriam tantas mudanças
que as projetaram nele, mas ele, pobre rapaz, ele nunca prometeu isso de fato”. São tão
críticos do modo como ele socorreu os bancos, falam que ele não teria feito nada bom,
são absolutamente críticos. Mas isso foi em fevereiro. Desde então ele conseguiu, por
exemplo, a reforma da saúde, que é melhor que nada, mas é muito reduzida, os projetos
de Hilary Clinton e John Edwards eram mais radicais de que os de Obama, das reformas
da saúde o dele era o menos radical, mas ele merece crédito, porque os norte-americanos
terão mais opções de serviço público. E claro, reabriu relações com a Rússia. Mas estou
curiosa para ver como as coisas estarão, quando eu for para os EUA no próximo ano,
como estarão os ânimos, porque eles são muito mutáveis. Tenho uma grande amiga,
Frances Fox Piver, ela é muito conhecida, tem muito livros importantes, sobre os
movimentos populares (“the poor people movement”) e, particularmente, sobre o
movimento político no New Deal. Ela, de fato, era um daqueles que eram menos críticos
a Obama, porque ela dizia que devíamos esperar. Mas no primeiro ano após o governo
Obama, eu perguntei a Frances como ela via a situação, e ela disse, “olha” – porque
ela concorda comigo que Obama não era muito radical – “tudo vai depender dos
movimentos sociais”, e eu dizia, “Frances, que movimento social?”, e ela dizia, “isso é
um problema, ele não existe, mas há de chegar”. Ela estava dizendo, baseada na
experiência do New Deal, que FDR (“Franklin D. Roosevelt”) foi forçado a agir em
decorrência dos movimentos populares, porque naquele tempo, como agora, muitas
pessoas eram afetadas pela crise, perderam suas casas, seus empregos, então, elas
realmente atuaram, de maneira forte; ela diz, FDR também não era radical, mas foi
pressionado pelos movimentos sociais, e ela espera que algo assim aconteça novamente

Revista
Revistada
da Faculdade de Direito
Faculdade de Direito- -UFPR,
UFPR,Curitiba,
Curitiba, n.47,
n.51, p.29-64,2010.
p.237-254, 2008.
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na América, porque o que eles chamam de “foreclosure”, quando as pessoas estão
deixando suas casas, estão perdendo seus empregos, mas essa reação ainda não
aconteceu. Quando vi Frances tempos depois, questionei sobre o movimento, e ela disse
“não, isso leva tempo”, ela está otimista, nos anos trinta levou algum tempo, então ela
ainda está aberta à possibilidade de que aconteça. Mas é verdade, eu realmente não
acho que Obama irá governar de uma forma radical, mas ele é definitivamente melhor.
Outra coisa que acho interessante apontar é que nada substitui os movimentos sociais
reais, porque muitas pessoas afirmam que haverá uma incrível mobilização social pela
internet, é verdade que isso é importante, mobilizar as pessoas para votarem, mas depois
essa mobilização desaparece, e não se pode substituir a mobilização real das pessoas
pela internet, porque é muito fácil enviar um e-mail, no conforto da sua casa, mas é
completamente diferente de comparecer a uma manifestação. Houve muita celebração
dessa nova forma de manifestação, mas é algo muito vazio, não estou dizendo que a
internet não desempenhe um certo papel, mas não é suficiente para sustentar um
movimento, não pode substituí-lo. Nessas manifestações, essas pessoas pensam que irão
fazer uma revolução, mas não, não é suficiente, é importante pensar que nada substitui
a mobilização real. Voltando a Obama, muitas pessoas estão falando que talvez se corra
o risco de se ter um presidente de um ano, como Carter, por outro lado, as pessoas mais
críticas dizem, não, é precisamente porque ele é tão ineficiente que não representa uma
ameaça se for reeleito, eu não sei, vamos ver, mas eu não penso que ele deva ser visto
como um grande ponto de mudança, definitivamente não.

Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.51, p.237-254, 2010.


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NORMAS PARA O ENVIO E PUBLICAÇÃO DE ARTIGOS NA REVISTA DA FACULDADE DE
DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ (UFPR)

OBJETIVOS
A Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná é uma publicação semestral de trabalhos
inéditos relacionados à dogmática e à critica jurídica, nacional ou estrangeira, bem como aos direitos humanos.
A Revista tem interesse na publicação de artigos, comentários jurisprudenciais e resenhas críticas.

NORMAS EDITORIAIS
1. Os trabalhos encaminhados para avaliação e posterior publicação deverão ser inéditos e não devem ter sido
submetidos para avaliação em outro periódico
2. Os originais serão submetidos à avaliação de especialistas nos temas apresentados. Os trabalhos serão enviados
para avaliação sem identificação da autoria.
3. O processo de seleção dos originais envolve avaliação de especialista ad hoc e do Comitê Editorial, que poderão
devolvê-los aos autores para providenciarem as alterações indicadas.
4. No caso de autorias múltiplas, os originais deverão ser encaminhados com a sequência de apresentação dos
autores, bem como a autorização de todos, por escrito, para a publicação.
5. Após aceitos, os artigos passarão por revisão quanto à forma, tais como correções ortográficas, gramaticais e
adequação ao formato da Revista, mas não em relação ao seu conteúdo.
6. Os autores não serão remunerados pela publicação dos artigos, recebendo 2 (dois) exemplares da Revista em
que seu trabalho for publicado.
7. Os trabalhos publicados passam a ser propriedade da Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal
do Paraná, sendo sua reimpressão, total ou parcial, condicionada à autorização expressa do Comitê Editorial,
que poderá autorizar, ainda, a versão eletrônica, no Sistema Eletrônico de Revistas – SER, da UFPR.
8. Os originais não serão devolvidos aos autores.
9. As opiniões e os conceitos emitidos pelos autores nos artigos são de sua inteira responsabilidade.

APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS E COMENTÁRIOS JURISPRUDENCIAIS


Como parte do processo de submissão, os autores devem verificar a conformidade da submissão com todos os
itens listados a seguir. Serão devolvidos aos autores os trabalhos que não estiverem de acordo com as normas.
1. Os originais devem ser enviados para o email e-mail do editor, por me vkchueiri@uol.com.br
2. Os originais devem conter no mínimo 15 (quinze) laudas e no máximo 30 (trinta) laudas.
3. O documento deve ser elaborado em tamanho de folha A4 com margens: superior e esquerda 3 cm, inferior
e direita 2 cm.
4. Na primeira lauda, antes do início do artigo, devem constar:
a) o título e subtítulo (se houver), expressando o conteúdo principal do artigo de forma breve e clara, com formação:
caixa alta, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, negrito;
b) o título e subtítulo (se houver) em inglês, expressando o conteúdo principal do artigo de forma breve e clara,
com formação: caixa alta, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, negrito;
c) nome completo do autor (caixa baixa, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, negrito), titulação acadêmica
e vínculo institucional;
d) resumo na língua do texto, constituído de uma sequência de frases concisas e objetivas e não uma simples
enumeração de tópicos (não ultrapassando 250 palavras). A palavra RESUMO deve anteceder o texto, na
mesma linha da primeira frase seguida de dois pontos, com a seguinte formatação: caixa alta, fonte “Times
New Roman”, tamanho 12, estilo normal. O corpo do texto do resumo deve ser com fonte “Times New Roman”,
tamanho 12, estilo normal, espaçamento simples e sem recuo de parágrafo.
e) abstract: é uma versão em inglês do resumo em português. A palavra ABSTRACT deve anteceder o texto, na
mesma linha da primeira frase seguida de dois pontos, com a seguinte formatação: caixa alta, fonte “Times
New Roman”, tamanho 12, estilo normal. O corpo do texto do abstract deve ser com fonte “Times New Roman”,
tamanho 12, estilo normal, espaçamento simples e sem recuo de parágrafo;
f) no mínimo 3 (três) e no máximo 5 (cinco) palavras-chave na língua do texto (conjunto de palavras que representam
o conteúdo do trabalho). Devem figurar logo após o resumo, antecedidas da expressão PALAVRAS-CHAVE (caixa
alta, fonte “Times New Roman, tamanho 12), com a seguinte formação: caixa baixa, fonte “Times New Roman”,
tamanho 12, estilo normal. As palavras devem ser separadas entre si por ponto e finalizadas também por ponto;
g) keywords: é a versão em inglês das palavras-chave. Devem figurar logo após o resumo, antecedidas da expressão
KEYWORDS (caixa alta, fonte “Times New Roman, tamanho 12), com a seguinte formação: caixa baixa, fonte

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Revistada
da Faculdade de Direito
Faculdade de Direito- -UFPR,
UFPR,Curitiba,
Curitiba, n.47,
n.51, p.29-64,2010.
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“Times New Roman”, tamanho 12, estilo normal. As palavras devem ser separadas entre si por ponto e
finalizadas também por ponto.
5. Para a formatação dos títulos das seções deve ser seguida a seguinte configuração:
a) Seção Primária: caixa alta, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, negrito;
b) Seção Secundária: caixa alta, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, estilo normal;
c) Seção Terciária: somente a primeira letra em maiúsculo, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, negrito;
d) O título de cada seção deve ser precedido pela numeração correspondente;
e) Não se utilizam ponto, hífen, travessão ou qualquer sinal após o indicativo de numeração de seção ou de
seu título.
6. Para a formatação do corpo do texto devem ser seguidas as seguintes configurações:
a) Fonte “Times New Roman”, tamanho 12, estilo normal.
b) Espaçamento 1,5 cm entre as linhas e alinhamento justificado.
c) Parágrafos iniciados a 1,25 cm da margem esquerda.
7. Para a normalização das citações deve ser seguida a seguinte configuração, com base na norma da ABNT
NBR 10520:
a) O sistema adotado para as citações deve ser o autor-data, conforme NBR 10520;
b) Citações diretas (Transcrição textual de parte da obra do autor consultado) até 3 (três) linhas devem estar no
corpo do texto entre aspas;
c) Citações diretas (Transcrição textual de parte da obra do autor consultado) com mais de 3 (três) linhas devem
iniciar em novo parágrafo, com recuo de 1,25 cm, fonte “Times New Roman”, tamanho 10 e com espaçamento
entre linhas simples. As aspas devem ser suprimidas. Deixar uma linha em branco antes e depois da citação;
d) Citações indiretas (texto baseado na obra do autor consultado) devem constar no corpo do texto seguindo a
mesma formatação.
8. Notas explicativas: devem ser reduzidas ao mínimo necessário e apresentadas em nota de rodapé na página
onde forem indicadas, com a numeração sequencial em algarismos arábicos.
9. As referências devem ser precedidas pelo título REFERÊNCIAS com formatação: caixa alta, fonte “Times
New Roman”, tamanho 12, negrito. Para a elaboração das mesmas, deve-se consultar a norma vigente da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), NBR6023.
10. Após as Referências devem constar:
a) o título e subtítulo (se houver) em língua estrangeira (alemão, espanhol, francês ou inglês), com formação: caixa
alta, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, negrito;
b) resumo em língua estrangeira: versão do resumo na língua do texto, para idioma de divulgação internacional,
com a mesma formatação do resumo na língua do texto (em inglês Abstract, em espanhol Resumen, em francês
Resumé, por exemplo);
c) palavras-chave em língua estrangeira (em inglês keywords, em espanhol Palavras clave, em francês Mots-clés,
por exemplo).

APRESENTAÇÃO DE RESENHAS CRÍTICAS


A resenha crítica é uma descrição minuciosa que compreende a apresentação e o exercício de compreensão e
crítica de uma obra. Deve ser apresentada em duas laudas, contendo a seguinte estrutura:
1. Os originais devem ser submetidos por meio eletrônico pelo endereço http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/
direito/about/submissions#onlineSubmissions
2. Os originais devem conter no máximo 2 (duas) laudas.
3. O documento deve ser elaborado em tamanho de folha A4 com margens: superior e esquerda 3 cm, inferior
e direita 2 cm.
4. Apresentar a referência conforme NBR6023 da ABNT.
5. Devem constar as informações gerais sobre o autor.
6. Conhecimento
Resumo detalhado das ideias principais. Possui alguma característica especial? Como foi abordado o assunto?
Exige conhecimentos prévios para entendê-lo?
7. Conclusões do Autor
O autor faz conclusões? (ou não?) Onde foram colocadas? (final do livro ou dos capítulos?) Quais foram?
8. Quadro de Referências do Autor
Modelo teórico utilizado pelo autor. Método de pesquisa utilizado.
9. Apreciação da obra
Como o autor se situa em relação às escolas ou correntes científicas, jurídicas, filosóficas e culturais. Qual a contribuição
da obra? Avaliação do estilo e forma do autor. Indicações sobre o público a quem a obra se destina.

Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.51, p.255-256, 2010.


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