[227] O campo das psicoterapias breves tende, na atualidade, a estender-se. Os que defendem
sua expansão utilizam, entre outros, argumentos de duas ordens. O primeiro é de ordem
sócio-econômica: o crescente aumento da demanda psiquiátrica tornaria desprezível todo
tratamento incompatível com as possibilidades financeiras da maioria dos clientes e
insuficiente diante da pressão numérica dos pedidos de consulta. O segundo é de ordem
teórico-técnica: constatada a nulidade dos métodos tradicionais, caberia organizar as
atividades terapêuticas que, tentando enfrentar o problema, proliferam desordenadamente em
consultório privados e serviços públicos. Estas iniciativas deveriam ser sistematizadas num
esquema conceitual onde teoria e prática se articulassem de modo coerente.
A psicoterapia breve responderia satisfatoriamente às duas exigências. Limitando tempo de
cura e focalizando a ação terapêutica, ela daria à conduta clínica a direção e o sentido
desejáveis.
Não temos a intenção de discutir os pressupostos sócio-econômicos e teóricos-técnicos que
justificam a necessidade e a validade das psicoterapias breves. A abordagem destes temas
escapa a nossos propósitos. Assinalaremos, contudo, que a dificuldade do atendimento de
massa, a nosso ver, não pode receber uma solução meramente psicoterápica. A questão
crucial deste atendimento não é a de saber com adaptar-se à tendência da demanda
psiquiátrica, mas a de entender por que, nos últimos tempos, esta demanda subiu
vertiginosamente. Como conseqüência, a necessidade de inventar técnicas adequadas ao
fenômeno perderia parte da urgência com que se apresenta.
De qualquer forma, o debate em torno destes pontos exigiria medidas de avaliação e
julgamento que não nos interessam, no momento, expor ou analisar. Este trabalho pretende,
apenas, interrogar as relações da psicoterapia breve com a psicanálise, sob o estrito ponto de
vista dos [228] objetivos terapêuticos. Em nossa opinião, as versões desta técnica que
recorrem a conceitos psicanalíticos com fundamento de sua prática estabelecem dois
princípios que merecem discussão: primeiro, o de que pode ou deve haver diferença de
objetivos terapêuticos entre cura psicanalítica e cura psicoterápica; segundo, o de que a teoria
freudiana cauciona esta distinção. Pretendemos demonstrar que tal ponto de vista, histórica
e teoricamente, contém equívocos e ambigüidades pouco esclarecidos na literatura sobre o
tema.
A retomada histórica das origens das psicoterapias psicanalíticas ajuda a situar melhor nossa
reflexão.
1[1] FIORINI, Héctor. Teoria y técnica de psicoterapias, Ediciones Nueva Visión, Buenos Ayres, 2a.
ed., 1975. (Teoria e técnica de psicoterapia, tradução de Carlos Sussekind, Francisco Alves, Rio de
Janeiro, 2a. ed., 1978). O livro de Héctor Fiorini resume o que de mais expressivo foi escrito sobre o
tema. Em nossa opinião, o trabalho deste autor é um dos mais sóbrios e sérios sobre o assunto.
Por esta razão e pelo inegável impacto que ele teve no meio psiquiátrico-psicológico, senão do
Brasil, seguramente no Rio de Janeiro, vamos tomá-lo como referência exclusiva para nosso
comentário. Gostaríamos de deixar claro que foi porque o estudo nos pareceu digno do maior
respeito e atenção que nos propusemos a criticar alguns de seus pontos controvertidos.
2[2] Ibid., p. 31-33.
3[3] Ibid., p. 44-45.
4[4] Ibid., p. 22.
5[5] Ibid., p. 44-45.
6[6] Ibid., p. 115-133.
7[7] Ibid., p. 22-28.
8[8] Ibid., p. 214.
coeficiente psicanalítico desta técnica, uma vez que o próprio autor nunca negou essa
influência. O que importa
é notar como, de entrada, a proposta teórica é aprisionada por ambigüidades conceituais
produzidas pela ambivalência de intenções. A psicoterapia breve quer depender da
psicanálise para justificar sua cientificidade, mas, ao mesmo tempo, desenvolver uma prática
diversa da prática psicanalítica. Só havia duas maneiras possíveis de conciliar estes
antagonismos: ou a terapia breve adaptava-se à psicanálise e renunciava à sua originalidade,
ou tentava propor mudanças a esta última, o que efetivamente foi feito: “Por alguns dos
pontos assinalados pode vislumbrar-se a direção em que as psicoterapias breves podem
colaborar para o desenvolvimento da teoria e da técnica da psicanálise. Esta probabilidade
varia em amplitude conforme se pretenda fazer da psicanálise uma ciência do inconsciente
ou se aspire incorporá-la progressivamente a ma ciência da conduta humana9[9].
Para que se possa avaliar que mudanças deslocariam a psicanálise de “ciência do
inconsciente” para “ciência da conduta humana”, é necessário assinalar alguns tipos de
intervenção terapêutica aconselhados por esta técnica. Entre outras salientam-se: a)
informação: “O terapeuta não é apenas um investigador da conduta mas também o veículo
de uma cultura humanística e psicológica. Sob este aspecto o terapeuta cumpre um papel
cultural: é docente, a partir de uma perspectiva mais profunda e abrangente de certos fatos
humanos... Em psicoterapia, é de grande pertinência esclarecer o paciente quanto a elementos
de higiene sexual, perspectivas [236] da cultura adolescente atual, a problemática social da
mulher”10[10]; b) confirmação e retificação dos enunciados do paciente: “Em pedagogia
estas intervenções se destacam com essenciais a um princípio geral da aprendizagem: o
reforço das aquisições positivas”11[11]; c) recapitulação: “Como os esclarecimentos, estas
intervenções estimulam o desenvolvimento de uma capacidade de síntese. Em nosso meio,
uma simples hipertrofia do trabalho ‘analítica’ conduz muitos terapeutas a descuidar do
momento ‘sintético’ tão essencial quanto aquele e complementar ao mesmo”12[12]; d)
sugestão: “Com estas intervenções, o terapeuta propõe ao paciente condutas alternativas,
orienta-o para ensaios originais”13[13]; e) intervenções diretivas: “Terapeuta – suspenda
toda decisão imediata sobre o problema de seu casamento. Você não está agora em condições
de enfrentar mais uma mudança”14[14].
A psicanálise como “ciência da conduta” seria aquela que abandonaria progressivamente a
realidade psíquica para intervir, de modo crescente, na realidade consciente e por vezes social
do paciente. Estas intervenções não deixam dúvidas quanto à sua natureza: sã todas, em maior
ou menor grau, pedagógicas e moralmente persuasivas.
É curioso observar como, desde os seus primórdios, a psicanálise foi convidada a invadir este
terreno. Não seria supérfluo evocar a maneira como Freud respondeu a estas solicitações.
Diante da insistência de Pfister, que procurava encontrar na teoria analítica os fundamentos
para a ética social e a educação moral, Freud sempre foi reticente ao taxativo em suas
negativas. Em carta de 25 de Julho de 1922, ele se dirigia a educação; ela deve mesmo ser
15[15] Correspondence de Sigmund Freud avec le pasteur Pfister (1909-1939), Ed. Gallimard, Paris,
1966, p. 135.
16[16] Ibid., p. 104.
17[17] Ibid., p. 186.
razão: a primeira dirige-se à consciência cultural, socializada, dos indivíduos; a segunda, ao
inconsciente privado, idiossincrásico do sujeito. Falar de pedagogia terapêutica ou
terapêutica pedagógica, em termos de clínica psicanalítica, é um contra-senso. O inconsciente
é ineducável.
A psicoterapia breve retoma em grande estilo essa velha ilusão psiquiátrico-pedagógica. Por
isso mesmo tem de recorrer a certo tipo de concepção psicanalítica, a única que, no registro
conceitual, poderia dar credibilidade teórica ás suas diretrizes técnicas. Fiorini distingue os
objetivos das psicoterapias e da psicanálise da seguinte forma: a) psicanálise: reestruturação
a mais ampla possível da personalidade; b) esclarecimento (psicoterapia): melhoria
sintomática; manejo mais discriminado de conflitos e aprendizagem da auto-conservação
(fortalecimento de defesas úteis; modificação parcial de atitudes); c) apoio (psicoterapia):
recuperação do equilíbrio homeostático, alívio da ansiedade, atenuação ou supressão dos
sintomas”18[18]. As psicoterapias breves incluiriam os objetivos das psicoterapias de apoio
e esclarecimento e excluiriam, do seu campo de intervenção, os objetivos da psicanálise.
Não pretendemos negar ao autor o direito de querer dar uma forma teórica precisa à divisão
do trabalho terapêutico que propõe. No entanto, quando observada mais atentamente, tal
divisão manifesta um caráter marcadamente especulativo e nominalista, no mau sentido do
termo. Psicanaliticamente falando, o que significa separar sintoma de estrutura, ou manejar
discriminadamente conflitos, ou ainda, fortalecer defesas úteis?
Com relação ao primeiro tópico, pode-se afirmar que existe uma antiga regra em psicologia
até o momento não contestada: a regra da unidade significativa. Segundo esta regra, o
psiquismo não se comporta com um aglomerado de elementos funcionando “partes extras
partes”. Cada parte de nossa organização psíquica exprime, necessária e indissociavelmente,
o todo. Um sintoma é a manifestação do visível e sensível de uma estrutura, e a estrutura ela-
mesma. Mais ainda, um sintoma sintetiza um conflito presente e uma história conflitual
passada, ele é um resumo, um instantâneo da vida do sujeito. Se nós não somos capazes de
deduzir do sintoma mais significados do que habitualmente conseguimos, não é pela
exigüidade intrínseca de seu espaço de significações, mas pelos limites próprios ao desenrolar
da cura e pela impossibilidade de virmos a conhecer, totalmente, o psiquismo do sujeito.
Quando Freud toma Dora em análise, o que ele visava era o sintoma, o que ele obteve foi o
conhecimento de uma estrutura psicopatológica plena, em que não foi possível deixar de
intervir. Aqui, como nas questões que se seguem, o que está em jogo não é um fato objetivo,
ou seja, o fato de que o sintoma pode realmente ser isolado e tratado independentemente da
estrutura que lhe deu origem. O que se manifesta nesta afirmação é o desejo do terapeuta. Ele
[239] quer que a intenção teórica coincida com a real existência das pessoas, porque a
necessidade de produtividade e rendimentos educativos assim o exige. Pouco importa que
este desejo de eficácia tenha origem na maior sensibilidade ou consciência social do
terapeuta. Não contestamos a justeza de propósitos dos que procuram encontrar uma solução
para assistência psicológico-psiquiátrica fora dos consultórios privados dos psicanalistas. O
que negamos é que essa solução possa ser dada às expensas do bom senso e da qualidade da
prática terapêutica.
O segundo tópico pode ser visto da mesma maneira. Um indivíduo só é capaz de manejar
discriminadamente seus conflitos quando dispõe de uma estrutura psíquica versátil, em
Notas:
22[22] FREUD, Sigmund. Inhibition, sumptôme et angoisse, PUF, Paris, 2ª ed., 1968, p. 48.