Desde sua gênese mais arcaica, essa inserção sociocultural envolve sem-
pre uma significação valorativa, ainda que o mais das vezes implícita nos pa-
drões comportamentais do grupo e inconsciente para os indivíduos envolvidos,
pois se trata de um compartilhamento subjetivamente vivenciado de sentidos e
valores. A cultura, como conjunto de signos objetivados, só é apropriada medi-
ante um intenso processo de subjetivação.
O existir histórico dos homens realiza-se objetivamente nas circunstân-
cias dadas pelo mundo material (a natureza física) e pelo mundo social (a soci-
edade e a cultura) como referências externas de sua vida. No entanto, essa con-
dição objetiva de seu existir concreto está intimamente articulada à vivência
subjetiva, esfera constituída de diferentes e complexas expressões de seus senti-
mentos, sensibilidades, consciência, memória, imaginação. Esses processos põem
em cena a intervenção subjetiva dos homens no fluxo de suas práticas reais,
marcando-as intensamente. Mas, ao mesmo tempo, as referências objetivas
condicionantes da existência atuam fortemente na gestação, na formação e na
configuração dessa vivência. Daí falar-se do processo de subjetivação, modo
pelo qual as pessoas constituem e vivenciam sua própria subjetividade. A per-
cepção dos valores integra esse processo tanto quanto a intelecção lógica dos
conceitos. Esse processo de subjetivação é que permite aos homens atribuir
significações aos dados e situações de sua experiência do real, o que eles fazem
sempre de forma plurivalente, pois essa atribuição de significações não leva a
sentidos unívocos, porém, o mais das vezes, plurais e mesmo equívocos.
A discussão dos fundamentos ético-políticos da educação, objeto desta
reflexão, envolve necessariamente a esfera da subjetivação, uma vez que implica
referência a valores. Para conduzir essa discussão, o presente ensaio, elaborado
de uma perspectiva filosófico-educacional, foi desenvolvido em três movimen-
tos, cada um deles se desdobrando em dois percursos. O primeiro movimento,
de caráter antropológico, procura, no primeiro percurso, situar a educação como
prática humana, mediada e mediadora do agir histórico dos homens; e, no
segundo, fundamentar teoricamente a necessária intencionalidade ético-política
dessa prática, explicitando a sua relação com o processo de subjetivação. No
segundo movimento, de cunho histórico, busca-se no primeiro momento mos-
trar como a experiência socioeducacional brasileira marcou-se por diversas
subjetivações ideológicas, enquanto no segundo são destacados, por sua rele-
vância, os desafios e dilemas da educação brasileira atual no contexto da socia-
bilidade neoliberal. No terceiro movimento, que tem uma perspectiva político-
Fundamentos Ético-Políticos da Educação 291
forme ocorre nas esferas da manipulação do mundo natural, como, por exem-
plo, naquelas da engenharia e da medicina.
No seu relacionamento com o universo simbólico da existência humana,
a prática educativa revela-se, em sua essencialidade, como modalidade técnica e
política de expressão desse universo, e como investimento formativo em todas
as outras modalidades de práticas. Como modalidade de trabalho, atividade
técnica, essa prática é estritamente cultural, uma vez que se realiza mediante o
uso de ferramentas simbólicas. Desse modo, é como prática cultural que a edu-
cação se faz mediadora da prática produtiva e da prática política, ao mesmo
tempo que responde também pela produção cultural. É servindo-se de seus
elementos de subjetividade que a prática educativa prepara para o mundo do
trabalho e para a vida social (Severino, 2001). Os recursos simbólicos de que se
serve, em sua condição de prática cultural, são aqueles constituídos pelo pró-
prio exercício da subjetividade, em seu sentido mais abrangente, sob duas mo-
dalidades mais destacadas: a produção de conceitos e a vivência de valores.
Conceitos e valores são as referências básicas para a intencionalização do agir
humano, em toda a sua abrangência. O conhecimento é a ferramenta funda-
mental de que o homem dispõe para dar referências à condução de sua existên-
cia histórica. Tais referências se fazem necessárias para a prática produtiva, para
a política e mesmo para a prática cultural.
Ser eminentemente prático, o homem tem sua existência definida como
um contínuo devir histórico, ao longo do qual vai construindo seu modo de ser,
mediante sua prática. Essa prática coloca-o em relação com a natureza, median-
te as atividades do trabalho; em relação com seus semelhantes, mediante os
processos de sociabilidade; em relação com sua própria subjetividade, median-
te sua vivência da cultura simbólica. Mas a prática dos homens não é uma
prática mecânica, transitiva, como o é a dos demais seres naturais; ela é uma
prática intencionalizada, marcada que é por um sentido, vinculado a objetivos e
fins, historicamente apresentados.
Além disso, a intencionalização de suas práticas também se faz pela sen-
sibilidade valorativa da subjetividade. O agir humano implica, além de sua refe-
rência cognoscitiva, uma referência valorativa. Com efeito, a intencionalização
da prática histórica dos homens depende de um processo de significação simul-
taneamente epistêmico e axiológico. Daí a imprescindibilidade das referências
éticas do agir e da explicitação do relacionamento entre ética e educação.
Fundamentos Ético-Políticos da Educação 293
vel por elas; mas ocorre que, apesar de toda a gama de condicionamentos que
o cercam e o determinam, há margem para a intervenção de uma avaliação de
sua parte e para uma determinada tomada de posição e de decisão. Goza, por
isso, de um determinado campo de liberdade, de vontade livre, de autonomia,
não podendo alegar total determinação por fatores externos à sua decisão.
Hoje, os conhecimentos objetivos da realidade humana, proporcionados
pelas ciências humanas, de modo especial a psicologia, a sociologia, a economia,
a etologia, a psicanálise, a antropologia e a história, permitem identificar com
bastante precisão aquelas atitudes que são tomadas por imposição de forças
superiores à vontade pessoal. Mas permitem ver igualmente mais claro o alcan-
ce da vontade e o nível de arbítrio de que se dispõe quando se tem de escolher
entre várias alternativas, assim como a possibilidade de saber qual a ‘melhor’
opção cabe em cada caso. Pode-se falar então da consciência moral, fonte de
sensibilidade aos valores que norteiam o agir humano, análoga à consciência
epistêmica, que permite ao homem o acesso à representação dos objetos de sua
experiência geral, mediante a formação de conceitos. Assim, como tem uma cons-
ciência sensível aos conceitos, tem igualmente uma consciência sensível aos valores.
Do mesmo modo que a filosofia sempre se preocupou em discutir e
buscar compreender como se formam os conceitos, como se pode acessá-los,
o que os funda, ela procura igualmente compreender como se justifica essa
sensibilidade aos valores. Desenvolveu então uma área específica de seu campo
de investigação, no âmbito da axiologia, para conduzir essa discussão: a ética.
Cabe aqui um breve esclarecimento semântico. Moral e ética não são
propriamente dois termos sinônimos, apesar da etimologia análoga, em latim e
em grego, respectivamente. É certo que, na linguagem comum do dia-a-dia, já
não se distingue um conceito do outro. Mas, a rigor, moral refere-se à relação
das ações com os valores que a fundam, tais como consolidados num determi-
nado grupo social, não exigindo uma justificativa desses valores que vá além da
consagração coletiva em função dos interesses imediatos desse grupo. No caso
da ética, refere-se a essa relação, mas sempre precedida de um investimento
elucidativo dos fundamentos, das justificativas desses valores, independente-
mente de sua aprovação ou não por qualquer grupo. Por isso, fala-se de ética
em dois sentidos correlatos: de um lado, frisa-se a sensibilidade aos valores
justificados mediante uma busca reflexiva por parte dos sujeitos; de outro,
convencionou-se chamar igualmente de ética a disciplina filosófica que busca
elucidar esses fundamentos.
Fundamentos Ético-Políticos da Educação 295
uma percepção enviesada dessas condições pela consciência, que instaura então
uma alienação subjetiva. Coube ao ideário católico exercer esse papel, funcio-
nando então como ideologia adequada ao momento histórico.
Pode-se afirmar que o cristianismo, a par de seus princípios teológicos,
apresentava igualmente uma ética individual, da qual decorreram as referências
também para o convívio social, dada a suprema prioridade da pessoa sobre a
sociedade. É a qualidade moral dos indivíduos que devia garantir a qualidade
moral da sociedade. Mas o caráter idealizado dessas referências comprometia
sua eficácia histórica, pois esta dependeria da causalidade da vontade, insuficien-
te para mover a realidade social. Daí transformar-se numa ideologia, atuando
apenas como ideologia. É o que explica sua incapacidade de impedir a prática
da escravidão, apesar de, no plano teórico, tratar-se de prática incompatível
com os valores apregoados.
Mas a ideologia católica dos primeiros séculos de formação da socieda-
de brasileira foi perdendo aos poucos sua hegemonia em decorrência da mu-
dança socioeconômica pela qual o país igualmente sofreu em decorrência da
lenta, extensa e intensa expansão do capitalismo. Embora a imersão do Brasil
no capitalismo não tivesse ocorrido com características idênticas ao que havia
acontecido na Europa e na América do Norte, não se podendo nem mesmo
falar de uma revolução burguesa que o implantasse em nossas paragens, o país
não podia escapar à influência dessa expansão comandada inicialmente pelos
ingleses e, posteriormente, pelos americanos. Assim, a sociedade brasileira, em-
bora conservando muitos elementos de sua fase escravista, incorporou as for-
ças produtivas do modo de produção capitalista e as conseqüentes configura-
ções no plano político e cultural. Da mesma forma, novos valores passaram a
marcar a subjetividade das pessoas, dando nova fisionomia à vida da sociedade.
Com o capitalismo, a oligarquia rural e o campesinato perderam poder social,
emergindo uma burguesia urbano-industrial, as camadas médias e o proletaria-
do, que se tornaram os novos sujeitos a conduzir a vida nacional, impondo
alterações significativas no perfil da vida político-social do país. Em que pesem
suas reconhecidas limitações, o processo republicano espelhou essa nova reali-
dade, ligando-se a novas referências ideológicas, decorrentes de outros
paradigmas filosóficos, como o iluminismo, o liberalismo, o laicismo, o
positivismo (Severino, 1986).
A nova ideologia que se configurou entrou em conflito com a ideologia
conservadora do catolicismo, embora se trate de conflito que não chegou a
298 FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR DO BRASIL CONTEMPORÂNEO
Valores proclamados, seja pela ideologia católica, seja pela ideologia libe-
ral, são reenquadrados nas coordenadas da ideologia tecnocrática, que passa a
ser o critério de sua validade e sobrevivência no novo contexto social. Suas
contribuições só são aproveitadas quando não se contrapõem aos novos inte-
resses, não provocando interferências e questionamentos nos negócios de Esta-
do da nova ordem político-social. Ao mesmo tempo, o governo militar apoia-
va, incentivava e induzia iniciativas, em todos os campos da vida social, que
concretizassem os valores de sua nova política plenamente em sintonia com o
capitalismo. Assim, no campo educacional e cultural, favoreceu e incentivou a
privatização, uma vez que a educação deve ser entendida e praticada como um
serviço, no seio de um mercado livre. A demanda por educação, tão cara às
camadas médias da população, deverá ser atendida pela oferta do mercado dos
serviços educacionais. Trata-se de uma política de expansão pela privatização.
Ademais, o Estado pós-64 tem uma visão instrumentalista da educação, organi-
zada em função do crescimento econômico (Martins, 1981). O conteúdo do
ensino deve ser técnico, sem conotação política de cunho crítico. Visa-se à maior
produtividade possível, a baixo custo, mediante o preparo de uma mão-de-
obra numerosa, com qualificação puramente técnica, disciplinada e dócil, ade-
quada ao atendimento das necessidades do sistema econômico. A ideologia
tecnocrática do período pratica um autoritarismo disciplinar intrínseco ao pro-
cesso de engenharia social que deve comandar todos os aspectos da vida da
sociedade. Alicerçada epistemologicamente no mesmo cientificismo positivista,
que se julga legitimado pela sua eficácia tecnológica, opera a modernização da
sociedade pelo uso da sofisticação técnico-informacional, ao mesmo tempo
que, investindo pesado nos meios de comunicação, desenvolve um intenso pro-
grama de indústria cultural destinado à formação da opinião pública, banalizan-
do ainda mais os conteúdos do conhecimento disponibilizado para as massas.
Após 25 anos de autoritarismo exacerbado, o regime, no início da déca-
da de 1980, começa a dar sinais de exaustão. Devorando seus próprios filhos,
não mais satisfazia aos interesses capitalistas que pretendiam se universalizar mundo
afora. Considerou-se superada essa fase da imposição tecnocrática, entenden-
do-se que os 25 anos foram suficientes para aplainar o terreno para uma nova
etapa, agora não mais baseada na repressão violenta pela força, mas pela im-
pregnação sutil da subjetivação ideológica por si mesma. Nos últimos trinta
anos, o país vivencia então uma nova fase marcada pela implementação da
agenda neoliberal, nova proposta do capitalismo internacional.
302 FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR DO BRASIL CONTEMPORÂNEO
valores que são proclamados, mas não realizados. Uma retórica, que não deixa
de encontrar apoios estratégicos em formulações teóricas do pensamento pós-
moderno, se torna insistentemente presente em todas as frentes do debate so-
cial, fazendo sua cerrada defesa. Ao mesmo tempo, por meio da legislação e
das medidas programáticas, o governo passa a aplicar políticas públicas que vão
efetivando as diretrizes neoliberais, mais uma vez adiando e talvez inviabilizando
uma educação que possa ser mediação da libertação, da emancipação e da
construção da cidadania. Não sem razão, o ceticismo e a desesperança consti-
tuem a conclusão de estudiosos da questão educacional brasileira. Ao falar da
escola brasileira, em conclusão a seus estudos históricos sobre a educação esco-
lar, conclui Xavier (2005:291):
Ela parece ser uma instituição, se não dispensável, secundária para o
funcionamento da sociedade brasileira, tal como se encontra estrutura-
da. Entretanto, é fundamental, para o controle das insatisfações popula-
res e a neutralização dos movimentos sociais contestatórios e reivindica-
tórios, alimentar a crença no caráter redentor da educação escolarizada.
Daí a ênfase no discurso pedagógico, nos debates e na elaboração de
projetos educacionais e a falta de pressa em realizá-los.
Para essa autora, ocorre uma mitificação da escola, mitificação que atua
como um dos pilares da doutrina liberal produzida na transição capitalista e que
penetrou cedo em nossa sociedade como parte da ideologia do colonialismo. E
quanto mais o capitalismo avançou no país, mais se solidificou essa crença. O
poder se concentrava, a riqueza crescia e supostamente não se distribuía porque
a expansão da escola não acompanhava o crescimento populacional, ou sua
qualidade não atendia às demandas sociais. “A escola não revoluciona ou trans-
forma a sociedade que a produz e à qual serve; ela apenas consolida e maximiza
as transformações em curso quando a aparelhamos para tanto” (Xavier,
2005:284).
Essa forma atual de expressão histórica do capitalismo, sob predomínio
do capital financeiro, conduzido de acordo com as regras de um neoliberalismo
desenfreado, num momento histórico marcado por um irreversível processo
de globalização econômica e cultural, produz um cenário existencial em que as
referências ético-políticas perdem sua força na orientação do comportamento
das pessoas, trazendo descrédito e desqualificação para a educação. Ao mesmo
tempo que, pelas regras da condução da vida econômica e social, instaura um
quadro de grande injustiça social, sonegando para a maioria das pessoas as
304 FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR DO BRASIL CONTEMPORÂNEO
objetivos com interesses. Tal situação aumenta e agrava o desafio que a educa-
ção enfrenta em sua dialética tarefa de, simultânea e contraditoriamente, inserir
os sujeitos educandos nas malhas culturais de sua sociedade e de levá-los a
criticar e a superar essa inserção; assim como de fazer um investimento na
conformação das pessoas a sua cultura ao mesmo tempo que precisa levá-las a
se tornarem agentes da transformação dessa cultura.
Como a educação tem papel fundamental no processo de subjetivação,
embora não seja ela o único vetor desse processo, já que essa subjetivação se dá
também por outras vias, seja no âmbito da vivência familiar, seja pelos meios de
comunicação de massa, seja ainda por interações informais das pessoas no seio
da sociedade civil, ela sofre o impacto dessas forças geradas no bojo da dinâmi-
ca da vida social e cultural do capitalismo contemporâneo.
vigilância diante dos riscos da ideologização de sua atividade, seja ela desenvol-
vida na sala de aula, seja em qualquer outra instância do plano macrossocial do
sistema de educação da sociedade.
O procedimento da consciência, no seu desempenho subjetivo, não tem
a inflexibilidade mecânica e linear dos instintos. Ao representar e ao avaliar os
diversos aspectos da realidade, a consciência facilmente os falseia. A representa-
ção simbólica da realidade, que lhe cabia fazer, perde então seu caráter objetivo
e se impregna de significações que não mais correspondem à realidade, e a visão
elaborada pelo sujeito fica falseada. Na sua atividade subjetiva, a consciência
deveria visar e dirigir-se à realidade objetiva, atendo-se a ela. No entanto, quanto
mais autônoma e livre em relação à transitividade dos instintos, mais frágil se
torna em relação à objetividade e mais suscetível de sofrer interferências
perturbadoras. À consciência subjetiva pode ocorrer de se projetar numa obje-
tividade não-real, apenas projetada, imaginada, ideada. É como se estivesse
imaginando um mundo inventado, invertido. E assim a consciência, alienando-
se em relação à realidade objetiva, constrói conteúdos representativos com os
quais pretende explicar e avaliar os vários aspectos da realidade e que apresenta
como sendo verdadeiros e válidos, aptos não só a explicá-los mas também a
legitimá-los. Porém, alienada, a consciência não se dá conta de que tais conteú-
dos nem sempre estão se referindo adequadamente ao objeto. Na verdade, tais
conteúdos – idéias, representações, conceitos, valores – são ideológicos, ou seja,
têm obviamente um sentido, um significado, mas descolado do real objetivo,
pois referem-se de fato a um outro aspecto da realidade que, no entanto, fica
oculto e camuflado. Ocorre um falseamento da própria apreensão pela consci-
ência, um desvirtuamento de seu proceder, decorrente sobretudo da pressão de
interesses sociais que, intervindo na valoração da própria subjetividade, altera a
relação de significação das representações.
Esses interesses/valores que intervêm e interferem na atividade cognoscitiva
e valorativa da consciência nascem das relações sociais de poder, das relações
políticas, que tecem a trama da sociedade. É para legitimar determinadas rela-
ções de poder que a consciência apresenta como objetivas, universais e necessá-
rias, portanto supostamente verdadeiras, algumas representações que, na reali-
dade social, referem-se de fato a interesses de grupos particulares, em geral
grupos dominantes, detentores do poder no interior da sociedade.
A força do processo de ideologização é, sem dúvida, um dos maiores
percalços da prática educativa, porque ela atua no seu âmago. Mas a possibilida-
314 FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR DO BRASIL CONTEMPORÂNEO
propriação e pela alienação dos seres humanos. Muitas vezes, investir na cons-
trução de um projeto educacional é pura prática de resistência.
No entanto, mesmo nesse caso, a escola se torna ainda mais necessária,
impondo-se um investimento sistemático com vistas a sua sustentação e ao
desenvolvimento de um projeto educacional eminentemente contra-ideológico,
ou seja, desmascarando, denunciando, criticando esse projeto político, não se
conformando com ele, não o aceitando passivamente. Com as armas fornecidas
pelo conhecimento, devendo realizar seu trabalho educacional no contexto de
uma sociedade opressiva, os educadores precisam pautar-se num público de
educação, concebido e articulado em instituições que gerem um espaço público
aberto à totalidade social, sem qualquer tipo de restrição.
Após duas décadas sob a tutela de um Estado autoritário e autocrático,
no qual a dimensão pública se reduzira à expressão meramente tecnoburocrática
do estatal, mergulhada na voracidade consumista do momento neoliberal, o
sentido do público acaba deslizando para uma mera identificação do civil ao
mercadológico, ou seja, a sociedade civil não é mais a comunidade dos cida-
dãos, mas a comunidade dos produtores e dos consumidores em relação de
mercado. Toda a vida social passa a ser medida e marcada pelo compasso das
transações comerciais, do que não escapa nenhum setor da cultura, nem mesmo
a educação. O dilema que vivemos hoje se expressa exatamente por essa ambi-
güidade, pela qual a dimensão pública se esvazia, impondo a minimização do
Estado na condução das políticas sociais, que ficam dependentes apenas das leis
do mercado, tido como dinâmica própria da esfera do privado. Daí o ímpeto
privatizante que varre a sociedade e a cultura do Brasil nas últimas três décadas,
sob o sopro incessante e denso dos ventos ideológicos do neoliberalismo. A
oferta de educação, assim como dos demais chamados serviços públicos, é um
dentre outros empreendimentos econômico-financeiros a serem conduzidos
nos termos das implacáveis leis do mercado.
Em todas as situações de ambigüidade que as atravessam, as categorias
de público e de privado padecem de uma limitação congênita que compromete
sua validade político-educacional, impondo aos atuais teóricos e práticos da
educação uma inconclusa tarefa de redimensioná-los com vistas a assegurar-lhe
eficácia e legitimidade. Para tanto, é preciso ter presente a historicidade da cons-
trução dessas categorias. Assim, é necessário reconhecer a procedência da uni-
versalidade do bem comum, mas que deve ser entendida como uma possibili-
dade histórica a ser realizada no fluxo do tempo. Impõe-se ainda reconhecer a
Fundamentos Ético-Políticos da Educação 317
tendo exatamente aquilo que não pretende conceder. Por isso mesmo, na medi-
da em que grupos com interesses diferentes e opostos podem lutar por eles,
acabam travando uma luta ideológica, ou seja, buscam servir-se da legislação
como um instrumento da garantia desses direitos. Nessa luta sem tréguas, o
caráter público da educação vai sendo, cada vez mais, comprometido.
É por isso mesmo que, de acordo com o atual modelo, o processo
fundamental da história humana deve ser conduzido pelas forças da própria
sociedade civil, e não mais pela administração via aparelho do Estado. Entende-
se que o motor da vida social é o mercado, e não a administração política. As
leis gerais são aquelas da economia do mercado, e não as da economia política.
E o mercado se regula por forças concorrenciais, nascidas dos interesses dos
indivíduos e grupos, que se ‘vetorizam’ no interior da própria sociedade civil –
donde a proposta do Estado mínimo e os elogios à fecundidade da livre-
iniciativa, à privatização generalizada etc.
Dessa situação decorrem igualmente os profundos equívocos que vêm
atravessando a política educacional brasileira das últimas décadas, ao estender a
privatização exacerbada e sem critérios também aos assim chamados ‘serviços
educacionais’, atendendo apenas às diretrizes da agenda econômica neoliberal.
Trata-se de prática duplamente perversa. De um lado, desconhece a incapacida-
de econômica da maioria da população brasileira de se integrar no processo
produtivo de uma economia de mercado, que pressupõe um patamar mínimo
de condições objetivas para que os agentes possam dela participar. Abaixo des-
se nível, essa participação se situará necessariamente numa esfera de marginalidade
econômico-social. De outro lado, a perversidade do sistema se manifesta igual-
mente no fato da precária qualidade de educação que sobra para a população
que dela mais precisa, tanto nas escolas/empresas quanto nas escolas públicas
ainda mantidas pelo Estado, ou seja, tal educação ofertada não habilitará essa
população a ponto de lhe viabilizar a ruptura do círculo de ferro de sua opres-
são. Apenas uma elite vinculada aos segmentos dominantes dispõe de uma edu-
cação qualificada, sem dúvida alguma capaz de habilitá-a para continuar no
exercício da dominação.
O sentido do público é aquele abrangido pelo sentido do bem comum
efetivamente universal, ou seja, que garanta ao universo dos sujeitos o direito de
usufruir dos bens culturais da educação, sem nenhuma restrição. A questão bá-
sica não é a da referência jurídica de manutenção dos subsistemas de ensino,
mas a do seu efetivo envolvimento com o objetivo da educação universalizada.
Fundamentos Ético-Políticos da Educação 319
C ONSIDERAÇÕES F INAIS
De todas essas considerações, impõe-se concluir que, na atual situação
histórico-social brasileira, só mesmo um sistema universalizado de ensino es-
tará em condições de enfrentar o desafio da construção da cidadania –
universalização esta absolutamente imprescindível para tanto. Se é verdade
que possam existir, hipoteticamente, variadas modalidades de mediações da
educação, historicamente é também verdadeiro que a escola se revela como
sua mediação potencialmente mais eficaz para a universalização da educação.
Isso implica, sem nenhuma dúvida, a constituição de um grande e qualificado
sistema público de ensino.
A identidade específica da prática educativa, a ser implementada por
todos aqueles que têm um projeto civilizatório para o enfrentamento dos desa-
fios históricos lançados na atualidade, se encontra no tripé formado pelo domí-
nio do saber teórico, pela apropriação da habilitação técnica e pela sensibilidade
ao caráter político das relações sociais. Mas essas três dimensões só se consoli-
dam se soldadas, se articuladas pela dimensão ética. O envolvimento pessoal e a
sensibilidade ética dos educadores estão radicalmente vinculados a um com-
promisso com o destino dos homens. É à humanidade que cada um tem que
prestar contas. Por isso mesmo é que o maior compromisso ético é ter com-
promisso com as responsabilidades técnicas e com o engajamento político. Tra-
ta-se, pois, para todos os homens, de vincular sua responsabilidade ética à res-
ponsabilidade referencial de construção de uma sociedade mais justa, mais eqüi-
tativa – vale dizer, uma sociedade democrática, constituída de cidadãos partici-
pantes em condições que garantam a todos os bens naturais, os bens sociais e os
bens simbólicos, disponíveis para a sociedade concreta em que vivem, e a que
todos têm direito, em decorrência da dignidade humana de cada um.
O respeito e a sensibilidade ao eminente valor representado pela dignida-
de da pessoa humana não tornam essa postura ética abstrata, idealizada e aliena-
320 FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR DO BRASIL CONTEMPORÂNEO
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Fundamentos Ético-Políticos da Educação 321
322 FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR DO BRASIL CONTEMPORÂNEO
Fundamentos Ético-Políticos da Educação 323
Formato: 16 x 23 cm
Tipologia: Garamond e Engravers
Papel: Pólen Bold 90g/m2(miolo)
Cartão supremo 250g/m2 (capa)
Fotolito: Graftipo Gráfica e Editora Ltda.(capa)
Fotolitos: Laser vegetal (miolo)
Reimpressão e acabamento: Flama Ramos acabamento e manuseio Ltda - EPP.
Rio de Janeiro, março de 2007.