e aplicabilidade judicial
Resumo: Este trabalho perscruta técnicas de decisão judicial direcionadas a dotar a Constituição de
eficácia, utilizando, para tanto, o método hipotético-dedutivo. Através de exame documental, faz-se
diagnóstico da aplicação do princípio da seletividade pelos tribunais superiores. A partir da pesquisa
bibliográfica, são discutidas analiticamente as formulações teóricas que fundamentam as posições desses
órgãos jurisdicionais. Por fim, constrói-se hipótese consistente na proposição de uma linha de decisão
que confere aplicabilidade à seletividade em sede de controle de constitucionalidade sem que o Judiciário
tenha de ingerir em campos afetos ao sistema político.
Palavras-chave: Princípio da seletividade. Eficácia constitucional. Aplicabilidade judicial. Igualdade
tributária. Direitos fundamentais.
1 Introdução
A máxima eficácia da Constituição é pretensão das mais ambiciosas e legíti-
mas da sociedade, que faz desse texto o seu projeto de vida. Nessa conjuntura, o
Judiciário tem sido enormemente demandado na tarefa de assegurar integridade e
consistência ao sistema jurídico.
O princípio da seletividade, destinado pelo constituinte para reger os impostos
incidentes sobre o consumo como aspecto parcial de justiça, é preceito que o Poder
Judiciário ainda não conseguiu operar adequadamente sua aplicação jurisdicional e
satisfazer ao reclamo de efetividade que emana das normas constitucionais. Por
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esse princípio, as alíquotas desses tributos devem ser graduadas na razão inversa
da essencialidade dos produtos transmitidos sobre o qual incidem, onerando menos
as pessoas que despendem a maior parte da sua renda para prover a subsistência.
A categoria das normas programáticas, na qual a seletividade tem sido encaixa-
da (STF, AI nº 714.362/SP), embora já tenha reconhecida alguma eficácia técnica na
jurisprudência atual, é ponto de forte controvérsia relativa às fórmulas de decisão que
o Judiciário pode utilizar para afirmar o cumprimento da Constituição sem diminuir a
liberdade criativa do legislador democrático.
A separação funcional dos poderes outorga ao Legislativo a tarefa de perpetrar
a distributividade e fazer a justiça para todos, dada a ampla extensão subjetiva das
normas que edita. Percebe-se que, na atual ótica do Supremo Tribunal Federal e do
Superior Tribunal de Justiça, por ser atribuição legislativa realizá-lo, o princípio da se-
letividade apresentaria força deôntica frágil, vez que o Judiciário não possa substituir
o legislador.
Nessa perspectiva, o desafio é visualizar soluções (regras de decisão) que com-
batam a desvalorização da Constituição escrita, atenuando sua força meramente
simbólica para dar lugar ao reconhecimento da sua normatividade, mesmo naquelas
questões que demandam construção política para se tornarem efetivas.
O trabalho trilha essencialmente a dogmática jurídica através do método hipoté-
tico-dedutivo e se vale de pesquisas bibliográfica e documental focadas nas jurispru-
dências do STF e do STJ. Tem-se como escopo principal propor a adoção de técnicas
de decisões judiciais, em sede de controle de constitucionalidade, para a garantia
de eficácia ao texto constitucional sem, todavia, imiscuir o Judiciário em esquemas
estranhos ao Direito.
2 Princípio da seletividade
Os princípios constitucionais, ao figurarem como razões de decidir, usualmente
propiciam a prática da heterorreferência na cadeia argumentativa e apontam para
algo que existe fora do sistema jurídico, como os valores, que são selecionados no
processo de positivação do Direito com o objetivo de tornar a complexidade desestru-
turada do ambiente complexidade estruturável (NEVES, 2013, p. 119-232).
A seletividade é princípio setorial tributário estampado na Constituição, que in-
tegra a disciplina de instituição dos impostos incidentes sobre o consumo (arts. 153,
§3º, I; e 155, §2º, III).1 Na qualidade de subprincípio da capacidade contributiva
1
A literalidade da Constituição de 1988 poderia fazer crer que o princípio da seletividade seria aplicável,
obrigatoriamente, ao IPI e, facultativamente, ao ICMS. Entretanto, não tem sido essa a interpretação
dominante: “Não há dúvida de que o legislador estadual não pode simplesmente desconsiderar a norma
prevista no art. 155, §2º, III, da CF, por conta da potestatividade inerente à expressão ‘poderá ser seletivo’.
No entanto, há que reconhecer que é determinação que dá ao legislador margem mais ampla de decisão que
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a expressão ‘deverá ser seletivo’, reservada apenas ao IPI”. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AgRg no RE
nº 597.304/SP, Segunda Turma. Min. Relatora Cármen Lúcia. In: DJe de 05.05.2014).
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às Cortes portuguesas, fazendo analogia a Deus, que, de acordo com a Bíblia, criou
Eva extraindo uma costela de Adão enquanto este dormia: “Com tanta suavidade
como isto, se há-de tirar aos homens o que é necessário para sua conservação”.
Sob a ótica da justiça tributária, não parece haver incorreção, a priori, na tri-
butação que afeta a relação entre os custos relativos às opções de poupar ou de
consumir. No entanto, a distribuição arbitrária da tributação entre um produto e outro
levanta suspeitas se haveria alguma espécie de favoritismo (MURPHY; NAGEL, 2002,
p. 109).
A correção da regressividade na técnica da tributação indireta aponta para a
edificação de um sistema que harmonize o eterno dilema entre eficiência e equidade,
permitindo “[...] ao governo alcançar objetivos redistributivos e arrecadar o suficiente
para financiar os seus gastos com o menor custo possível em termos de eficiência”
(BARBOSA; SIQUEIRA, 2000, p. 1).
A seletividade, no sistema da Constituição de 1988, parece ter sido positivada
sob a forma de princípio por implicar uma relação mais flexível/elástica entre o ante-
cedente e o consequente. O princípio é uma categoria dogmático-normativa, caracte-
rizado por ser mais adequado a enfrentar a diversidade de expectativas normativas
que circulam a sociedade (NEVES, 2013, p. 118-121).
Como a seletividade deriva da igualdade, ela apresenta, em sua estrutura, a
essencialidade como medida de comparação. A finalidade do critério é “[...] exonerar
os bens fundamentais para a subsistência e gravar de modo mais acentuado os
supérfluos e nocivos” (VELLOSO, 2010, p. 209), tendo por base, dada a repercussão
do gravame, a capacidade econômica do adquirente final.
A norma, do ponto de vista sociológico, é uma expectativa contrafática
(LUHMANN, 2005, p. 74). Então, a seletividade enquanto norma jurídica parece proi-
bir, ao menos prima facie, a instituição de alíquotas elevadas a mercadorias de cará-
ter essencial. Essenciais, sem fazer qualquer esforço interpretativo, seriam aqueles
produtos inseparáveis da promoção da dignidade humana (art. 1º, III, CF/88) e da
proteção do mínimo existencial (AgRg no RE nº 634.457/RJ).
Entretanto, essa expectativa não se tem traduzido em realidade no Brasil. Por
exemplo, no Estado do Rio de Janeiro, já se apontou a quebra da seletividade, na Lei
Estadual nº 2.657/96, ao se tributar a transmissão da energia elétrica (25%) em pa-
tamar superior ao da cerveja (20%). No Paraná, consta da Lei Estadual nº 11.580/96
(art. 14) a alíquota de 29% para as operações com energia elétrica; enquanto que,
para armas, munições, perfumes e cosméticos, a alíquota é de 25%.
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com a finalidade de limitar e dividir a soberania (MAUS, 2010, p. 20). É notório que
houve modificações na metodologia da jurisdição desde Montesquieu, com a am-
pliação dos fundamentos da vigência do Direito, incluídos na Constituição, e com a
delegação aos juízes das funções de aplicação e interpretação das leis, culminando
na sua vinculação à lei e tornando esta o objeto da interpretação (LUHMANN, 1990,
p. 152).
Dessa maneira, a separação dos poderes, em sua versão clássica, tem sido
reputada como princípio decadente da técnica do constitucionalismo por deixar de
reconhecer que a proteção de direitos não fosse realizada contra o Estado, mas no
interior deste (BONAVIDES, 2004, p. 86-87). Destarte, não parece ser adequado
pensar que existem direitos que excluem o Estado, pois as pessoas só gozam efetiva-
mente de direitos se os males que elas vierem a sofrer são, por meio de mecanismos
e procedimentos, corrigidos pelo Estado (HOLMES; SUNSTEIN, 2000, p. 43).
A qualificação de “poder” atribuída ao Judiciário acarreta sua capacidade de
criar, modificar e suprimir regras. Diferentemente da mera autoridade, que apenas
cumpre as regras que não edita (MILNER, 2002, p. 9), “poder” pode ser definido
como meio de comunicação simbolicamente generalizado, que apresenta referência
sistêmica na sociedade e que está baseado na reconhecida competência para pres-
crição de comportamentos (LUHMANN, 1985, p. 120).
A distinção entre legislação (sistema político) e jurisdição logra êxito enquanto
o sistema jurídico possa diferenciar-se do seu mundo circundante, funcionar operati-
vamente fechado e reproduzir suas próprias operações através da rede de operações
próprias (LUHMANN, 1990, p. 153).
A separação de poderes não está somente na distribuição de tarefas entre os
órgãos do Estado, mas, sobretudo, na diferença entre os códigos binários de cada
subsistema social, tendo, cada um, seus respectivos limites de atuação expressos
nas possibilidades de operação com eles (LUHMANN, 2005, p. 74-76).
Permanece posta a constatação, deduzida da lógica dos conceitos, da natural
proximidade do Legislativo com a justiça distributiva (CAMPILONGO, 2011, p. 104).
Essa aproximação deriva da necessária capacidade cognitiva ampla para operar a
igualdade proporcional no tratamento de uma pluralidade de pessoas desiguais; no
caso da seletividade, mercadorias diferentes.
Porém, mostra-se incorreto inferir que haveria impossibilidade de atuação ju-
dicial quando se percebe a necessidade de construção política para a realização
de determinado direito. Exemplo claro da inexistência de impedimento judicial é o
mandado de injunção, que, a partir da adoção da teoria concretista, o STF tem modifi-
cado suas decisões ao deparar-se com a inconstitucionalidade de moras legislativas
injustificadas. Nesses casos, modificou-se a jurisprudência para viabilizar direitos
constitucionais e combater o fenômeno da “síndrome da inefetividade das normas
constitucionais” (RE nº 565.089/SP).
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Como Niklas Luhmann (1990, p. 160) percebera, os tribunais, por lhes serem
defeso absterem-se de julgar, queiram ou não, devem construir novas regras de de-
cisão e testá-las quanto à consistência perante o Direito vigente. Na medida em que
nenhuma jurisprudência nunca foi mecânica, a jurisdição, ao longo do tempo, tem-se
transformado diante do alargamento das esferas de ações públicas, que impõe o
crescimento das instituições de controle do poder (CAMPILONGO, 2011, p. 133-136).
Esse movimento vem ocorrendo. Em 2014, por exemplo, nova regra de decisão foi
concebida no voto do Ministro Luís Roberto Barroso (RE nº 661.256/SC), que, a
despeito da lacuna legislativa em relação à desaposentação, desenhou solução que
articulava justiça comutativa e equilíbrio atuarial da Previdência.
Ao órgão cúpula do Judiciário, foi dada a missão da guarda da Constituição
(art. 102, CF/88). Tal incumbência deve-se à noção de que a Constituição é, ao mes-
mo tempo: (a) acoplamento estrutural dos sistemas políticos e jurídico, ou seja, es-
trutura pertencente aos dois campos que funciona como mecanismo de racionalidade
transversal entre política e Direito (NEVES, 2009, p. 33); (b) documento que esboça
o projeto de vida da sociedade (LORENZETTI, 1998, p. 253) e ordem geral objetiva
do complexo de relações da vida, revelando as ideias morais, políticas e sociais de
cunho fundamental para a sociedade numa relação de espaço e tempo, e procurando
construir o futuro com base na natureza singular do presente (HESSE, 1991, p. 5-12);
(c) dispositivo reflexivo mais abrangente do sistema jurídico, por ser ponto central
do constitucionalismo a pretensão de autofundamentação constitucional do Direito
(NEVES, 2013, p. 118).
O tribunal constitucional é peça inventada pelo constitucionalismo norte-ameri-
cano e reelaborada por Kelsen na década de 1920. O constitucionalismo tem como
ponto de partida a concepção da Constituição como norma jurídica, como lex superior,
que assenta todos os valores supremos de um ordenamento, que detém supremacia
bastante para reclamar efetividade e que funciona como parâmetro de validade de
todas as outras normas jurídicas do sistema (ENTERRÍA, 2006, p. 123).
Assim, constrói-se o documento chamado Constituição não por capricho, mas
porque se tem presente uma vontade baseada: (a) na compreensão de que a ordem
constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos e que precisa estar em
constante processo de legitimação; (b) na consciência de que essa ordem somente
é eficaz com o concurso da vontade humana; e (c) na percepção da necessidade
de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado e o homem contra o
arbítrio (HESSE, 1991, p. 13-20).
Sabe-se que, na via judicial, a injustiça ou a imoralidade do Estado em matéria
tributária é considerada se houver lesão a direitos fundamentais. A Constituição, até
por sua história e definição, “não confere ao legislador nenhuma procuração em bran-
co para leis de conteúdo arbitrário” (TIPKE, 2012, p. 34, 89, 114-118). A capacidade
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contributiva, no STF, já foi referida como introdução expressa pelo constituinte origi-
nário do princípio da igualdade material tributária (RE nº 562.045/RS). A igualdade,
do ponto de vista jurídico, é objetivo fundamental (art. 3º, CF/88), direito fundamental
(art. 5º, CF/88) e limitação ao poder de tributar (art. 150, II, CF/88). Logo, pode-se
deduzir que a seletividade, como derivação da capacidade contributiva, deveria apre-
sentar alguma força obrigacional perante o sistema jurídico quanto ao cumprimento
do dever fundamental de pagar impostos, até porque um direito só existe se ele for
aplicado (HOLMES; SUNSTEIN, 2000, p. 43).
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e da seletividade, haja vista que teria estipulado alíquotas menores para produtos
supérfluos. O STF entendeu que, nessa situação, somente a partir da interpretação
dessa legislação que poderia atingir conclusão diversa da daquele tribunal estadual,
o que inviabilizou analisar concretamente a aplicação do princípio da seletividade.
Para o STF (RE nº 429.306/PR), a partir da seletividade, não se pode deduzir
imunidade, ainda que as operações ou os bens sejam essenciais ao ser humano,
prevalecendo o postulado da solidariedade no custeio das atividades estatais.
As razões de política extrafiscal, como a diminuição das desigualdades regio-
nais, na visão do STF, possibilitam a quebra da uniformidade e da graduação das
alíquotas do IPI conforme a essencialidade dos produtos transmitidos (AI nº 515168
AgR-ED/MG). No caso concreto, a alíquota do IPI sobre o açúcar poderia chegar a até
18%, superando a tributação, por exemplo, sobre biscoitos caninos e papel de pare-
de. Contudo, entendeu o STF que a alíquota máxima de 18% era um grau que atendia
razoavelmente ao postulado da seletividade.
Tem-se a perspectiva de que o tema será debatido, em relação ao ICMS,
mais uma vez, pois o STF, em junho de 2014, reconheceu repercussão geral do RE
nº 714.139/SC, no qual se questiona a validade de norma estadual que prevê alí-
quota de 25% de ICMS incidente no fornecimento de energia elétrica e nos serviços
de telecomunicação, em nível superior ao estabelecido para as operações em geral
(17%). Quanto ao IPI, está previsto julgamento (RE nº 606.314/PE) em que se discute
a possibilidade de o Judiciário estabelecer alíquota inferior àquela correspondente à
classificação do produto que a autoridade fiscal entende como correta. Neste último
caso, já foi protocolizado o parecer da Procuradoria Geral da República relembrando
a vasta jurisprudência do tribunal, que entende ser inconcebível ao Judiciário atuar
como legislador positivo. Na visão da PGR, caso houvesse violação do princípio da
seletividade, dever-se-ia extirpar do ordenamento a norma contestada em juízo, o que
acarretará desoneração tributária do produto por faltar-lhe aspecto quantitativo.
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de fatos que não tinham sido considerados no momento de formulação das normas.
O pragmatismo postulava que toda interpretação prática do Direito deveria levar em
conta como as diferentes construções do Direito afetavam os resultados jurídicos,
devendo ocupar-se não só do impacto sobre as futuras decisões no marco do sistema
jurídico, mas também de controlar as consequências fáticas no seio da realidade
social.
O Direito, por ser subsistema inserido no interior da sociedade, vem-se trans-
formando à medida que ocorrem alterações nos contextos sociais. Assim, por ser
temporal, o sistema jurídico está sempre voltado a dar soluções para os problemas
que surgem na sua época. Como demonstrou Kuhn (2006, p. 210 e 137), as comu-
nidades científicas são instrumentos para resolver os problemas do seu tempo, com
vistas ao progresso mediante a sucessão de paradigmas. Para Robert Alexy (2010, p.
53-55), a justiça, como pretensão de correção, passa necessariamente pela procedi-
mentalização, colocando em pé de igualdade os interlocutores do discurso e deixando
a cargo deles, dentro das suas tradições e autocompreensões, as noções que são
constatáveis pelos participantes conforme a realidade que vivenciam.
O Direito “não é política, não é economia, não é religião, nem educação. Não
produz obras de arte, não cura doenças, nem distribui notícias” (LUHMANN, 2005,
p. 72). O Direito trabalha com normas para cumprir sua tarefa específica de resolver
o problema da defraudação de expectativas e de servir à reprodução autopoiética do
sistema.
Karl Loewenstein (1970, p. 222) atinava para o problema da desvalorização
funcional da Constituição escrita e, em consequência disso, a frustração de expec-
tativas. A doutrina jurídica, como formulação da autorreferência do Direito, ajuda a
reforçar a consciência da codificação apoiada na diferenciação do sistema jurídico,
posto que esta dota o sistema de sua própria forma de contingência, a qual está in-
ternamente constituída (LUHMANN, 2005, p. 72-74). Dito isso, percebe-se que, como
decorrência da autonomia e da autorreferência do Direito, é natural a sua reinvenção,
independentemente de inércia ou atitude legislativa, com a elaboração de perspecti-
vas novas ou diferentes das previamente concebidas.
A teoria das sentenças aditivas é exemplo modelar da mutabilidade do Direito
a partir do próprio sistema jurídico (autopoiese). Proveniente da dissociação do dueto
inconstitucionalidade/nulidade, a confecção de pronúncias interpretativas, que recor-
tam as possibilidades de atribuição de sentido ao texto normativo (PAGÉS, 2014),
tem servido à correção de omissões parciais do legislador.
A dotação de eficácia técnica às normas programáticas parece ser outra ques-
tão que demanda reprodução autopoiética do sistema para resolver o problema da
defraudação, pelo legislador, das expectativas exaladas pela Constituição. E é bom
notar que a doutrina e a jurisprudência contemporâneas superaram a visão de que a
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democracia moderna encontra raízes nas lutas por igualdade de participação no veio
político para a instituição de tributos.
Além disso, “atribuir função política à decisão judicial – em termos operativos
– está distante de ser a fórmula de garantir a democracia e reforçar o Estado de
Direito”, até porque o sistema jurídico nem foi preparado para isso (CAMPILONGO,
2011, p. 177).
Propõe-se, dadas essas circunstâncias, adotar solução semelhante à que foi
tomada no julgamento da ADI nº 3.243/MT, em que se manteve a lei inconstitucional
provisoriamente em vigor, a fim de evitar lacuna ameaçadora, combinada com a fixa-
ção de prazo ad hoc terminativo após o qual o ato perderia vigência.
No caso, a inconstitucionalidade da LC nº 62/1989 referia-se à fixação dos
critérios para a repartição do Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal
– FPE, que não atendiam ao objetivo constitucional de promoção do equilíbrio socio-
econômico. Ponderaram-se duas questões: (a) os prejuízos decorrentes da ausência
de lei; e (b) a indisponibilidade das leis de atenderem à Constituição. Nessa perspec-
tiva, prescreve-se que, ao legislador, ainda que ostente riquíssimas possibilidades
para criar leis, não é permitido atuar contra o que impõe a Constituição, nem mesmo
quando o Judiciário não puder corrigir, com seu próprio código binário, a produção
legislativa.
A hipótese levantada não propõe a inversão da finalidade dos fundamentos
constitucionais. A segurança jurídica é um direito fundamental do contribuinte (art. 5º
da CF/88). Humberto Ávila (2011, p. 535-577), com rigor e razão, defende a impos-
sibilidade de se proferir decisões manipuladoras de efeitos temporais em favor da
Fazenda Pública porque, ao se chancelar a cobrança e a arrecadação pretéritas de
tributo inválido, permite-se a tributação sem lei. A teleologia da presente proposta
não subverte a consistência do sistema jurídico porque a modulação cronológica não
seria operada para beneficiar o fisco (calibrando a inacessível boa-fé do aparelho
estatal de captação de recursos que cumpre as regras que edita), mas para impedir
que a reserva do possível (questão da pragmática) seja um dado desconsiderado,
sobretudo para os entes federativos com menor potencial de arrecadação.
O motivo, portanto, de estipular prazo ad hoc ao legislador seria a necessidade
de dar previsibilidade ao administrador público a respeito do impacto orçamentário da
correção da incompatibilidade para que ele contrabalanceie os efeitos arrecadatórios
daí decorrentes.
Esse tipo de decisão caracteriza-se pela provisoriedade (circuito decisório entre
os poderes até chegar a uma decisão aparentemente final) do pronunciamento da
instância judiciária, o que não infirma o papel das Cortes (MENDES, 2008, fls. 13 e
183), nem o compromisso delas com o constitucionalismo.
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7 Conclusões
O princípio da seletividade como programa da justiça distributiva demanda de-
liberação política para se operar tratamento tributário proporcional a mercadorias
distintas em sua essencialidade ao ser humano. Por outro lado, o Judiciário, como
guardião da ordem constitucional, tem o papel de fiscalizar a atuação dos poderes
constituídos e condicionar o exercício da competência tributária à efetivação de pro-
gramas constitucionais que lhes confiram legitimidade.
A igualdade é direito fundamental do contribuinte; não é demagogia, é norma
(determinação contrafactual) contida no documento que estrutura os sistemas jurídi-
co e político, e que lança o peso da argumentação contra quem queira restringi-la.
Nessa linha, a graduação das alíquotas dos impostos indiretos, que introduzem na
tributação lógicas de distribuição do encargo público não correspondentes ou até
conflitantes com a igualdade segundo a capacidade contributiva (como na questão da
extrafiscalidade), necessita ser exaustivamente justificada.
Em termos procedimentais, propõe-se que, quando a concretização constitu-
cional demande construção política, o Judiciário possa, através de ferramentas de
condicionamento cronológico da incompatibilidade, prescrever que a norma injusta,
até então vigente, perca vigência se o Legislativo, uma vez ciente da consequência da
sua incorreção, não produzir regramento válido em prazo ad hoc terminativo.
Enfim, a proposta apoia-se na perspectiva de que a instalação de um circuito
decisório, em que há provisoriedade, decorre de assunção da temporalidade das nor-
mas e, na trilha de desestimular a inibição do Judiciário para atribuir força deôntica à
justiça tributária, busca garantir previsibilidade e contenção de efeitos potencialmen-
te danosos ao orçamento público.
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