Resumo
A Termodinâmica Clássica ou Termodinâmica do Equilíbrio é uma das áreas da Física mais bem
consolidadas. É sintetizada por uma estrutura de conhecimento bem definida e autocoerente. A
essência da estrutura teórica da Termodinâmica Clássica está num um conjunto de leis naturais que
governam o comportamento de sistemas físicos macroscópicos. Essas leis foram formuladas a partir de
generalizações de observações e são, em grande parte, independentes de quaisquer hipóteses relativas
à natureza microscópica da matéria. Em geral, as aproximações estabelecidas para a Termodinâmica
Clássica seguem uma das duas alternativas: a aproximação histórica que faz uma descrição cronológica
da evolução das idéias, conceitos e fatos e, a aproximação postulatória, na qual são formulados
postulados não demonstrados “a priori”, mas que podem ter suas veracidades confirmadas “a posteriori”.
Neste trabalho, elaboramos uma breve revisão da evolução conceitual da aproximação histórica pré-
clássica que vai desde o início do século XVII até meados do século XIX. Para isso, abordamos de
forma evolucionária e fenomenológica os seguintes temas: natureza do calor, termometria, calorimetria,
máquina térmica de Carnot, equivalente mecânico do calor e, a primeira e a segunda lei. A lei zero, que
foi formulada posteriormente, está incluída na discussão.
Palavras-chave: Leis da Termodinâmica. Temperatura. Equilíbrio térmico. Calor. Calórico. Máquina
térmica. Ciclo de Carnot. Energia interna. Trabalho mecânico. Equivalente mecânico do calor. Entropia.
Abstract
The Classical or Equilibrium Thermodynamics is one of the most consolidated fields of Physics. It
is synthesized by a well-known and self coherent knowledge structure. The essence of the Classical
Thermodynamics theoretical structure consists of a set of natural laws that rule the macroscopic
physical systems behavior. These laws were formulated based on observations generalizations and are
mostly independent of any hypotheses concerning the microscopic nature of the matter. In general, the
approaches established for the Classical Thermodynamics follow one of the following alternatives: the
historical approach that describes chronologically the evolution of ideas, concepts and facts, and the
postulational approach in which postulates are formulated but are not demonstrated a priori but can be
confirmed a posteriori. In this work, a brief review of the pre-classical historical approach conceptual
evolution is elaborated, from the beginning of the seventeenth century to the middle of the nineteenth
century. As for this, the following themes are dealt with in an evolutionary and phenomenological way:
1
Doutor em Física, Professor Associado C, Departamento de Física, Centro de Ciências Exatas, Universidade Estadual de
Londrina. E-mail: padua@uel.br.
2
Mestre em Física, Professor Adjunto D, Departamento de Física, Centro de Ciências Exatas, Universidade Estadual de Londrina,
Londrina, PR
3
Alunos de Graduação em Física, Departamento de Física, Centro de Ciências Exatas, Universidade Estadual de Londrina,
Londrina, PR.
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heat nature, thermometry, calorimetry, Carnot’s heat engine, heat mechanical equivalent and the first
and second laws. The Zeroth law that was formulated afterwards is included in the discussion.
Key words: Thermodynamics laws. Temperature. Thermal equilibrium. Heat. Caloric. Heat engine.
Carnot’s Cycle. Internal energy. Mechanical work. Heat mechanical equivalent. Entropy.
O livro de Model e Reid (MODELL; REID, mudavam com tempo, mas no início dos anos de
1974) traz uma interessante síntese acerca dessa 1600 não havia nenhuma razão para assumir que
aproximação. Com algumas pequenas modificações elas não deveriam variar de tal uma maneira.
que julgamos necessárias, transcrevemo-la Não havia até 1643, quando um estudante de
integralmente da seguinte forma: Galileu, Torricelli, desenvolveu o barômetro,
que com este se concluiu que o dispositivo de
Galileu era mais um “barotermoscópio” do
“A evolução cronológica da Termodinâmica que um termômetro. Com o desenvolvimento
é um exemplo fascinante de aplicação da da tecnologia de soprar vidro na época e, como
metodologia científica. A experimentação em conseqüência, uma melhora na capacidade de
termometria conduziu ao desenvolvimento de fabricação de vasos capilares estreitos, ocorreu
hipóteses e conceitos como, por exemplo, escalas uma grande evolução dos termômetros a líquidos
termométricas, pontos fixos de referência, nos anos de 1630. Como era de se esperar, a
dilatação térmica, temperatura, etc; que por água foi o primeiro líquido a ser usado. Com as
sua vez, sugeriram outras experiências (no caso dificuldades experimentadas, que seriam óbvias
em calorimetria), as quais levaram a novos aos estudantes de hoje, 10 anos se passaram
conceitos como, paredes adiabáticas, teoria do antes que o termômetro a álcool hermeticamente
calórico, calor latente, etc. Os eventos históricos fechado ganhasse aceitação. Os termômetros a
também ilustram algumas armadilhas na análise gás não apareceram até os anos de 1700, quando
científica, tais como a supervalorização de as propriedades dos gases foram melhores
imagens intuitivas, principalmente a respeito compreendidas.
da natureza de calor, que muito se distanciavam
Quando qualquer instrumento experimental
das observações e fatos existentes. Enfatizamos
novo é desenvolvido, há invariavelmente o
que o período de pré – clássico foi marcado por
desejo de quantificar os resultados obtidos por
muitas controvérsias e conflitos.
meio dele, para que investigadores diferentes
O início do período de pré – clássico é possam compará-los. A quantificação da
normalmente associado às tentativas de Galileu termometria exigiu a introdução de pelo menos
para quantificar a termometria, o que ocorreu por dois pontos de referência ou fixos. Paremos por
volta de 1600. É interessante notar que o cientista um momento e reflitamos: se estivéssemos em
do século XVII era motivado principalmente por 1640 que pontos fixos escolheríamos? O ponto de
um desejo de entender os fenômenos que eram ebulição de água? Variava a cada dia. O ponto
percebidos pelos seus sentidos. Em contraste, congelamento da água? Era difícil de achar
os cientistas de hoje demandam de instrumentos gelo durante a maior parte do ano. Além disso,
muito mais sensíveis e elaborados para que não havia nenhuma razão para se acreditar que
possam detectar fenômenos que estão muito materiais como água tivessem propriedades
distantes do alcance direto de seus sentidos. excepcionais que poderiam ser reproduzíveis.
Um dos objetivos principais de Galileu era Assim, é compreensível que nossos antecessores
quantificar as experiências subjetivas do quente buscassem referências fenomenológicas, tais
e do frio. A expansão do ar ao aquecer foi como: a “água mais quente que a mão poderia
observada na era Helenística, mas nunca foi resistir” ou o “frio do inverno mais severo” ou
aplicada. Galileu usou esse fenômeno no seu a “temperatura do corpo humano”. Mais tarde,
dispositivo constituído de um bulbo e uma haste, referências como, o ponto de derretimento da
com a haste submersa na água. As medidas manteiga ou o ponto de congelamento do óleo
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Termodinâmica clássica ou termodinâmica do equilíbrio: aspectos conceituais básicos
entanto, obter uma aproximação da situação deixássemos o calor escoar em sentido inverso,
ideal controlando a compressão e a dilatação do exterior para o interior, jamais se tornaria
da matéria ativa de modo a produzir apenas um motor capaz de fornecer um trabalho ou
diferenças muito pequenas de temperatura. energia elétrica.
Contudo, as transferências de calor permanecem
Suponhamos agora que, ao contrário do que
demasiado lentas para que esse motor possa
dissemos, existe um motor térmico de rendimento
ter uma utilidade concreta, de modo que tal
superior ao do motor de Carnot. Podemos então,
dispositivo só apresenta um interesse de estudo
em princípio, imaginar o seguinte processo:
em laboratório.
dadas uma fonte quente e uma fonte fria, fazemos
Suponhamos, no entanto, que dispomos de um funcionar entre elas um refrigerador de Carnot,
motor ideal de Carnot. Como tal motor não que leva certa quantidade de calórico da fonte
envolve nenhuma transferência espontânea de fria para a fonte quente, absorvendo certa
calor entre corpos de temperaturas diferentes, ou quantidade de trabalho. Como o refrigerador
seja, nenhum processo irreversível pode inverter de Carnot nada mais é que um motor de Carnot
o sentido de seu funcionamento, isto é, inverter a invertido, essa quantidade de trabalho — que
ordem dos processos que nele se desenrolam. Esse vamos chamar W — é idêntica ao trabalho
motor de Carnot invertido extrai calor de uma que seria fornecido se deixássemos o calórico
fonte fria, recebe um trabalho mecânico e depois retornar à fonte fria por intermédio de um motor
cede calor a uma fonte quente. Um dispositivo de Carnot. Mas como, por hipótese, possuímos
semelhante que transfere calor de uma fonte fria um motor de rendimento superior ao do motor
para uma fonte quente absorvendo um trabalho, de Carnot, o trabalho que extrairíamos desse
é chamado refrigerador. Entre os exemplos retorno de calórico — chamemo-lo W’ — seria
de motor invertido, citemos o refrigerador superior a W. Poderíamos, portanto, efetuar
doméstico — no qual a fonte fria é o interior do esse retorno de calórico com a ajuda de nosso
refrigerador, a fonte quente é o ar ambiente e motor hipotético, utilizar uma fração de W
o trabalho fornecido provém de um compressor para fazer funcionar o refrigerador de Carnot e
alimentado eletricamente — ou ainda um utilizar como quiséssemos a diferença W’ – W.
condicionador de ar — que retira calor da peça O calórico efetuaria assim idas e vindas entre a
que se quer refrescar e o lança para o exterior, fonte fria e a fonte quente, permitindo-nos extrair,
o trabalho sendo também neste caso fornecido quando de sua passagem, um benefício líquido
por um compressor. Lamentavelmente, a matéria de trabalho. Em outras palavras, teríamos
ativa utilizada atualmente nos refrigeradores e criado trabalho a partir de nada e construído
condicionadores de ar domésticos é um gás aquilo que tantas pessoas se empenharam em
chamado fréon — um “CFC” (clorofluorcarbono) inventar: um ‘perpetuam mobile’, uma máquina
— que provoca danos consideráveis na camada de movimento perpétuo, que funcionaria
de ozônio que nos protege da irradiação solar — eternamente sem provisão de energia.
mas isso é uma outra história.
Carnot conhecia tão bem como nós a
Tal como o motor de Carnot em relação aos impossibilidade do moto-perpétuo. Assim,
motores reais, o refrigerador de Carnot difere dos afirmou a inexistência de um motor de rendimento
refrigeradores reais: trata-se de um dispositivo superior ao de seu motor ideal, enunciando o
ideal, irrealizável concretamente. De fato, o seguinte princípio: existe um limite superior
refrigerador de Carnot é reversível em motor, de rendimento que nenhum motor térmico pode
ao passo que um refrigerador doméstico em que superar. Esse limite é dado pelo motor ideal de
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Carnot, isto é, por um motor em que todos os Estes desenvolvimentos aconteceram numa
processos são reversíveis. Em outras palavras, sucessão relativamente rápida que começou em
o rendimento de um motor reversível constitui o torno de 1850 com Clausius e prosseguiram com
limite de rendimento para todo motor.” as contribuições importantes de Kelvin, Maxwell,
Boltzmann, terminando com os brilhantes Gibbs
e Planck no final do século. Nos próximos quatro
Nós poderíamos perguntar em que base Carnot itens vamos expor em pormenores alguns desses
se apoiou para descartar a possibilidade do que nós desenvolvimentos. No entanto, antes disso, com o
hoje chamamos “máquina de movimento perpétuo intuito meramente didático, apresentamos uma breve
de primeira espécie”. A resposta a isto não foi cronologia das principais idéias e fatos ocorridos
possível até 1847, quando Helmholtz avançou a ao longo do desenvolvimento da aproximação
hipótese sobre a conservação de energia. Com histórica da Termodinâmica (PÁDUA; PÁDUA;
algumas exceções, parecia haver um consenso SILVA, 2008):
geral entre os cientistas da época, de que os poderes
básicos de natureza não eram criáveis e nem
indestrutíveis. Assim, por um período de muitos 100 (ad) – Héron – Inventou o eolípila, um
anos, nós percebemos a aceitação gradual do que aparelho para medir a força do vapor. Este pode ser
hoje nos referimos como um postulado básico. considerado como o precursor da turbina a vapor.
A máquina de Carnot reconciliou os fenômenos 1592 – Galileu construiu um termoscópio rudimentar
da conversão e da conservação – pelo menos no a ar.
limite reversível. Mas, como isso é consistente com
1620 – Bacon propôs as primeiras tentativas de
a conservação no processo de mistura altamente
diferenciar calor e temperatura. “Especulou”
irreversível da calorimetria ou com a conversão no
também, que o calor não era um fluido indestrutível
processo igualmente irreversível da geração de calor
(o qual posteriormente ficou conhecido como
por meio da fricção? Carnot estava ciente destas
calórico) que podia entrar ou sair de um corpo, mas
dificuldades e clamou por mais experiências e,
que era alguma forma de movimento de partículas.
também, por uma nova avaliação dos fundamentos
da teoria. 1665 – Hooke escreveu “o calor é uma propriedade
de um corpo proveniente do movimento ou agitação
O período de pré-clássico encerrou-se com
de suas partes; e, portanto, sempre que o corpo for
o trabalho quantitativo de Joule que estabeleceu
tocado necessariamente deve receber alguma parte
a equivalência da energia mecânica, elétrica e
deste movimento e, a partir daí suas partes seriam
química com o calor. Podemos ver que, naquele
agitadas”. Esta idéia é semelhante à que mais tarde
momento, ainda havia vários conceitos a serem
se tornou a base da Teoria Cinética dos Gases.
esclarecidos. O calórico teve que ser dividido em
quantidade de calor, energia e entropia. Tinha que 1687 – Papin, a partir do princípio descoberto
ser mostrado que: o calor e o trabalho eram formas em 1681, projetou a primeira máquina a vapor.
de transferência de energia, a inter conversibilidade Ele sugeriu um dispositivo com um cilindro e um
entre eles é assimétrica, a energia que é conservada pistão.
no calorímetro deve ser também, no Ciclo de Carnot 1701 – Newton sugeriu uma escala termométrica
e nos processos de atrito e, a entropia é conservada com dois pontos de referência. No primeiro associou
apenas no limite dos processos reversíveis. o zero para indicar o ponto de congelamento da
água e, no segundo, escolheu o número 12 para
representar a temperatura do corpo humano.
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Termodinâmica clássica ou termodinâmica do equilíbrio: aspectos conceituais básicos
1704 – Newton fez a seguinte observação sobre o deveria provir da energia mecânica gasta neste
calor: “O calor consiste num minúsculo movimento processo”.
de vibração das partículas dos corpos”.
1799 – Davy concluiu, a partir de suas experiências,
1712 – Newcomen reconstruiu sua máquina a vapor que o calor era cinético por natureza, ou seja, uma
de uma forma mais aperfeiçoada. Foi o primeiro a forma de movimento.
utilizar um sistema com um pistão e um êmbolo.
1803 – Dalton formulou sua teoria atômica.
1724 – Fahrenheit construiu um termômetro a
1819 – Dulong e Petit verificaram experimentalmente
mercúrio, tomando-se como pontos fixos, o ponto
que o calor específico dos sólidos multiplicado pelo
de ebulição da água (212oF) e ponto de fusão do gelo
peso atômico tem um valor constante em relação à
(32oF). Dividiu o intervalo em 180 partes iguais.
variação da temperatura.
1738 – Bernoulli publicou o livro “Hydrodynamica”,
1824 – Carnot publicou o seu famoso trabalho
um tratado acerca de fluidos que deu origem à Teoria
“Reflexões sobre a Potência Motriz do Fogo”.
Cinética dos Gases.
A primeira tentativa de uma abordagem racional
1742 – Celsius construiu uma escala termométrica da relação entre calor e trabalho foi feita neste
que se tornou bastante popular. Originalmente foi trabalho.
chamada de escala centígrada. Tomou como pontos
1834 – Clapeyron publicou o trabalho “Memórias
fixos o ponto de ebulição da água (100oC) e ponto
sobre a Potência Motriz do Calor”. Deu um
de fusão do gelo (0oC). Dividiu o intervalo em 100
tratamento analítico e uma representação gráfica
partes iguais.
aos resultados de Carnot.
1747 – Richmann observou que quantidades
1842 a 1843 – Mayer propôs que: “o calor era uma
distintas de uma mesma substância, num mesmo
manifestação da energia, assim como o trabalho e,
estado de agregação, necessitam quantidades
que existe uma relação entre eles”.
de calor diferentes para a mesma elevação de
temperatura. Isto era um indício de que o calor era 1845 – Joule propôs um aparato, por meio do
diferente da temperatura. qual determinou experimentalmente o valor do
equivalente mecânico do calor. Neste trabalho, ele
1760 – Black propôs a teoria do calórico.
conclui que 1cal = 4,154J. O valor atual é: 1 cal =
1765 – Watt desenvolveu finalmente uma máquina 4,186 J
a vapor mais eficiente e econômica. Adaptou na
1847 – Helmholtz estabeleceu definitivamente
máquina de Newcomen um condensador externo,
a idéia do calor como uma forma de energia, sob
assim, caldeira era o reservatório quente, e, o
o formato de um Princípio da Conservação da
condensador, o reservatório frio.
Energia, que atualmente denominamos de Primeira
1770 – Black mostrou experimentalmente que a Lei da Termodinâmica.
temperatura é uma característica do corpo.
1846 a 1848 – Lord Kelvin, ao trabalhar no
1783 – Lavoisier e Laplace determinaram laboratório do químico francês Henri Victor
experimentalmente o calor específico para vários Régnault (1810 – 1878) e estudar as obras de Carnot
materiais e construíram o calorímetro de gelo. e de Clapeyron, propôs a adoção de uma escala
1798 – Conde de Rumford depois de vários absoluta de temperatura.
experimentos quantitativos sugeriu: “o calor 1850 – Clausius modificou o tratamento
desenvolvido em uma operação com um canhão desenvolvido por Carnot, com o objetivo de descrever
a irreversibilidade dos processos naturais.
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Termodinâmica clássica ou termodinâmica do equilíbrio: aspectos conceituais básicos
ou estado de quente; quentura: o calor do Sol; o tem que continuar fornecendo calor, para que a
calor da febre. vaporização continue. Eis aqui um primeiro ponto
que diferencia temperatura de calor. A temperatura
Coloquemos uma panela com água sobre o fogo.
parece ser uma característica da água em cada
A água vai aquecendo progressivamente e, após um
instante, enquanto o calor, não. A temperatura parece
certo tempo, se a deixarmos ainda no fogo, ela entra
ser uma função de estado da água. Ela caracteriza o
em ebulição e se transforma em vapor. Parece que
estado térmico da água em cada instante do processo
o fogo transmite ‘algo’ à água que a faz aquecer
de aquecimento.
e depois transformar em vapor. Este ‘algo’ cuja
natureza exata, mesmo hoje, ainda não conhecemos A partir desses dois últimos parágrafos, podemos
foi denominada de ‘calor’. A seguir, vamos relatar concluir que: a temperatura parece caracterizar o
brevemente alguns pontos de sua evolução histórica. estado de um corpo em um dado instante, enquanto
Por enquanto, exploremos mais um pouco esta linha que o calor é uma entidade física que se transmite
de raciocínio. de um corpo para outro. Quando um corpo recebe
calor se esquenta e aumenta sua temperatura, mas,
No caso do aquecimento da água, inspirando- nos
quando, se esfria, e diminui sua temperatura. Ocorre
ainda em Aristóteles, dizemos que o calor passou do
também que o corpo, ao receber calor, não esquenta,
fogo para a água e não que a ‘frieza’ passou da água
e não varia sua temperatura, mas muda de seu estado
para o fogo. Neste raciocínio, podemos perceber
de agregação ou de fase.
que há uma assimetria essencial entre o quente e o
frio. Torna-se bastante difícil de responder o que é o
fenômeno denominado calor. Uma idéia inicial e
Voltemos agora à questão da temperatura.
até hoje mais imediata ao homem comum, poderia
Se desejarmos medir o grau de ‘quentura’,
ser pensada da seguinte forma: quando aquecemos
vamos lançar mão de uma grandeza física que
um corpo, sua temperatura aumenta. Parece que isto
denominaremos de temperatura. No exemplo da
ocorre porque no aquecimento transferimos ‘algo’ a
água sobre o fogo, podemos observar e desenvolver
este corpo. Se isso for correto, como explicaríamos
o seguinte raciocínio corroborado empiricamente.
os seguintes casos: a) um projétil, quando disparado,
Quando levamos a panela com água ao fogo, este
aquece o cano da arma, b) quando um peso cai e gira
vai transmitindo ‘calor’ à água e ela vai ser tornando
uma hélice dentro de um recipiente hermeticamente
cada vez mais quente. Se pensarmos em termos
fechado com água, aquece esta água e c) freqüentes
da temperatura, podemos concluir que, em cada
marteladas num pedaço de ferro, aquecem este
instante sua temperatura vai aumentando.
material (BEN-DOV, 1995).
Neste ponto, ainda não distinguimos temperatura
Como já citamos, no século XVII havia duas
de calor. Sinteticamente, podemos dizer: muito calor
hipóteses acerca da natureza do calor. A primeira,
parece associa-se a alta temperatura. A esta altura,
denominada teoria do calórico, dizia que o calor
pensamos da seguinte forma: quando um corpo
era uma substância denominada calórico. Galileu
recebe calor sua temperatura aumenta e, quando um
foi um dos adeptos desta hipótese (1613). A
corpo se esfria, não é que ele recebe frieza, pois isto
segunda, conhecida como teoria mecânica do calor,
não pode ocorrer. Ele na verdade perde calor.
foi proposta inicialmente por Bacon em 1620,
No exemplo da água, quando ao ser aquecida corroborada por Hooke em 1665 e por Newton em
pelo fogo, chega no ponto de ebulição, durante este 1704 e, reconhecida por Bernoulli em 1738. No
processo de aquecimento seu grau de ‘quentura’, entanto, ela só foi realmente aceita em meados do
ou seja, sua temperatura, se estabiliza, mas o fogo século XIX (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA,
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Termodinâmica clássica ou termodinâmica do equilíbrio: aspectos conceituais básicos
A idéia do calor como resultado do movimento condições ideais, a uma certa quantidade de calor
molecular foi levantada por Rumford, Davy, fornecido à caldeira corresponde um trabalho
Lavoisier e Laplace. Estes não encontraram, recolhido, independentemente dos agentes postos
todavia, métodos suficientemente eficientes para em ação para realizá-lo. Esse trabalho é fixado
explorá-la com maior profundidade. unicamente pelas quantidades de calor trocadas
entre o motor térmico e o ambiente”.
Entendendo o calor como uma forma de
energia, uma energia que se transfere dos Deixando de lado o problema técnico da
modos microscópicos ocultos de movimentos construção de máquinas a vapor, Carnot procurou
dos constituintes do sistema, podemos fazer a uma regra que permitisse relacionar entre si a
seguinte síntese das noções acerca de temperatura energia mecânica por elas produzida e o calor
(ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 1979): fornecido. Intuiu, dessa forma, o primeiro princípio
da Termodinâmica, que é apenas uma reafirmação
do princípio da conservação de energia.
Se o corpo é sólido, o movimento de seus átomos
Carnot, depois de realizar uma análise cuidadosa
é de vibração em torno de uma posição de
do funcionamento do motor térmico, idealizou uma
equilíbrio: quanto maior a temperatura, mais
máquina que, trabalhando com um gás aquecido e
intensas são estas vibrações e,
resfriado (podia ser até o vapor d’água), servia para
Se é um gás ou um líquido, seus átomos (ou medir a quantidade de energia mecânica produzida
moléculas) se deslocam com velocidades tanto e permitia também, calcular a porcentagem de
maiores, quanto maior for a temperatura. energia térmica transformada em mecânica. O
funcionamento dessa máquina é constituído por
quatro fases ou processos, formando um ciclo
O Ciclo de Carnot
fechado que hoje é chamado de Ciclo de Carnot. Um
Carnot demonstrou que, para o funcionamento sistema submetido a este ciclo, passa pelas seguintes
de uma máquina térmica, deve existir uma transformações: a partir de um estado inicial, o
fonte quente e uma fonte fria e que, quando uma sistema expande-se isotermicamente (absorvendo
quantidade de calor é transportada da primeira para calor do ambiente) até atingir um segundo
a segunda, por meio de uma substância qualquer, estado; a partir deste, a expansão é adiabática e,
um trabalho mecânico é realizado. Ele fez uma conseqüentemente, a temperatura diminui; daí em
analogia da máquina térmica ou motor térmico ou diante, o volume do sistema começa a reduzir-se
ainda ‘máquina a fogo’, como ficou popularmente isotermicamente até alcançar um último estado;
conhecida, com um moinho movido por uma roda uma compressão adiabática conduz o sistema ao seu
d’água. Da mesma forma que precisa de uma queda ponto de partida, fechando-se, assim, o ciclo.
d’água para acionar um motor hidráulico, também
Uma das características do Ciclo de Carnot é o
é necessária uma ‘queda’ de temperatura para se
fato de que as transformações que ocorrem ao longo
impulsionar um motor térmico. A analogia mecânica
do mesmo são totalmente reversíveis, isto é, podem
que guiou a pesquisa de Carnot, deixou imprecisa a
ser realizadas em sentido inverso, percorrendo as
natureza do calor, pois ele sugeriu uma interpretação
mesmas etapas intermediárias. Esse ciclo pode ser
com base na teoria do fluido calórico. Todavia, foi
aplicado a qualquer máquina térmica.
a partir dessas considerações que Carnot postulou o
seguinte princípio fundamental (ENCYCLOPAEDIA Carnot mostrou que qualquer máquina térmica
BRITANNICA, 1979; PÁDUA; PÁDUA; SILVA, que opera segundo o seu ciclo tem um rendimento
2008): “Em uma máquina térmica funcionando em máximo (ideal) e que este independe da substância
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de trabalho. O rendimento é função apenas das duas Num processo adiabático para um gás ideal,
temperaturas entre as quais a máquina opera. temos que:
Para mostrarmos analiticamente este teorema
de Carnot, consideremos um gás ideal qualquer PV g = cte. (3)
como substância de trabalho (PÁDUA; PÁDUA,
2006; SOMMERFELD, 1964; SONNTAG; Assim, pelo gráfico da figura 2, que ilustra um
BORGNAKKE; VAN WYLEN, 1998; TIPLER, processo adiabático entre aos estados de equilíbrio
2000). A Equação de Estado para um gás ideal, b e c, podemos escrever:
como sabemos, é dada pela seguinte expressão:
a
A figura 4 ilustra um processo isotérmico no diagrama P – V entre os estados de equilíbrio aVebb. Vc V
P
Figura 2. Processo adiabático no diagrama PV.
b
isotérmica ( T = cte)
a Nas figuras 3 e 4, ilustramos o Ciclo de Carnot no
Va Vb V plano P – V. Na figura 3, mostramos uma máquina
ura 4. Processo isotérmico no diagrama PV. térmica de Carnot. Nesta, o ciclo é percorrido no
b sentido horário e o trabalho feito por ela é positivo.
Num processo adiabático para um gás ideal, temos que:
isotérmica ( T = cte) Na figura 4, mostramos um refrigerador de Carnot.
Nesta, o ciclo é percorrido no sentido anti-horário
PV J
Va
cte .
Vb V e o trabalho feito por ela é negativo. [Em ambas
(3)
Figuraisotérmico
Figura 4. Processo 1. Processo isotérmico
no diagrama PV. no diagrama PV. figuras, a letra Q indica a fonte quente, F a fonte fria
e W o trabalho mecânico realizado pela máquina]
Num processo adiabático para um gás ideal, temos que:
70 PV J cte . (3)
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Termodinâmica clássica ou termodinâmica do equilíbrio: aspectos conceituais básicos
P ob aob
Processo: aProcesso:
Isotérmicas (TQ > TF) § Vb · §V ·
WQ QQWQnRTQ ln¨¨ nRT¸ Q ln¨ b ¸
QQ ¸ ¨V ¸
© Va ¹ © a¹
a Adiabáticas (Q = 0) §V · §V ·
ln¨ b ¸ ln¨¨ b ¸¸
Pa QQ TQ QQ¨© VaT¸¹Q (6) V
© a¹ (6)
QF TF Q F § VcT·F § Vc ·
QQ ln¨¨ ¸ ln¨
¸ ¨V ¸
¸
© Vd ¹ © d¹
od cod
Processo: cProcesso:
TQ
§ Vc · §V ·
Pb b WF Q F WFnRTQ F ¨¨ nRT
F ln ¸ F ln¨ c ¸
V ¸ ¨V ¸
© d¹ © d¹
Pd +W
d oc boc
Processo: bProcesso:
TQ VbJ 1 TQ
FVVcbJJ11 TF VcJ 1
Pc c
VbJ 1 V JV1J 1
V JV1 V V Vc
QF TF cJ 1bJ 1 cJ b1 c b (7)
VaJ 1 VdVa VdVa Vd Va Vd
0 Va Vd Vb Vc oa do
VProcesso: dProcesso: a (7)
TQ VaJ 1 TQ
FVVdaJJ11 TFVdJ 1
Figura 3. Representação do ciclo percorrido por uma
Máquina Térmica de Carnot. Substituindo-se
Substituindo-se
(7) em (6)(7)
obtemos,
em (6) para
obtemos,
uma máquina
para umatérmica
máquinaideal
térmica
(ou refrigerador
ideal (ou refrigerador
ideal), ou ide
seja, de Carnot,
seja, de
Substituindo-se (7) em (6) obtemos, para uma
a seguinte
Carnot, relação
a seguinte
fundamental:
relação fundamental:
máquina térmica ideal (ou refrigerador ideal), ou
P seja, de Carnot, a seguinte relação fundamental:
QQ TQ QQ TQ
Isotérmicas (TF < TQ) . . (8)
QF TF Q F TF
a Adiabáticas (Q = 0) QQ TQ
Pa = . (8)
QF TF
Observações:
Observações:
a) Lembrara)que TQ eque
Lembrar TF Tsão TF são em
Q eexpressas expressas
kelvin.em
Nakelvin.
verdade,
Nafoi
verdade,
Kelvin foi
quem
Kelvin
mostrou
quem m
QQ
matematicamente
matematicamente
a relação (8).
a relação
b) O trabalho
(8). b) Odetrabalho
Carnot de
de Carnot
1824 não
de se
1824
primou
não se
porprimou
demonstrações
por demonstrações
feitas
TQ através de através Observações:
cálculosdematemáticos,
cálculos matemáticos,a)masanálises
mas sim por Lembrar
sim por que
expressas
análises em
expressas e umaFlinguagem
umaQlinguagem
em T sãoe cuidadosa.
precisa T
precisa e cuidado
As
Pb b demonstrações expressas
demonstrações
formais foram em
formais
feitas kelvin.
foram
por Na
Clapeyron
feitas por emverdade,
Clapeyron
1834 e em
1843 foi
1834 e Kelvin
e, por1843
Clausius quem
e, porem
Clausius
1850. Num
em 1850.
trabalho
Num tr
Pd -W mostrou
posterior abordaremos
posterior matematicamente
abordaremos
esta questão.
esta questão. a relação (8). b) O trabalho
d de Carnot de 1824 não se primou por demonstrações
Com o resultado
Com o da
resultado
equaçãoda(8),
equação
o rendimento
(8), o rendimento
de uma máquina
de umatérmica
máquina(e)térmica
e o coeficiente
(e) e o coeficie
de
performance
performance
de um refrigerador
de um refrigerador
(K), que são
(K),
definidos
que são em
definidos
termos em
de Q
termos
Q e QFde QQ e Qser
, podem F, podem
expressos
ser apenas
expressos
feitas através de cálculos matemáticos, mas sim por
Pc c em funçãoem TQ e TFde
de função . As
TQexpressões
e TF. As expressões
do rendimento
do rendimento
e do coeficiente
e do coeficiente
de performance
de performance
K podem então,
K podemser ent
QF TF análises
escritos deescritos
forma bastante expressas
de formacompleta
bastante ecompletaeme ilustrativa
ilustrativa umasegue
como linguagem
como
(PÁDUA; precisa
segue (PÁDUA;
PÁDUA, e SMITH;
2006;
PÁDUA, 2006;VAN
SMITH
NESS;cuidadosa.
NESS; ABBOTT, ABBOTT,
2000; SONNTAG;As
2000; demonstrações
SONNTAG;
BORGBNAKKE; VAN formais
BORGBNAKKE; WYLEN, foram
VAN 1998;
WYLEN, feitas
TIPLER,
1998;
2000):
TIPLER, 2000):
0 Va Vd Vb Vc V
por Clapeyron em 1834 e 1843 e, por Clausius em
Figura 4. Representação do ciclo percorrido Rendimento
por umRendimento
: 1850. : Num trabalho posterior abordaremos esta
Refrigerador de Carnot.
questão.
Com o resultado da equação (8), o rendimento
Os resultados (2) e (5), juntamente com as de uma máquina térmica (e) e o coeficiente de
figuras 3 e 4, servirão de base para desenvolvermos performance de um refrigerador (K), que são
os cálculos a seguir. Como vamos trabalhar definidos em termos de QQ e QF, podem ser expressos
com módulos de Q e de W, a demonstração vale apenas em função de TQ e TF. As expressões do
para máquinas térmicas e refrigeradores ideais. rendimento e do coeficiente de performance K
Vejamos! podem então, ser escritos de forma bastante completa
e ilustrativa como segue (PÁDUA; PÁDUA, 2006;
SMITH; VAN NESS; ABBOTT, 2000; SONNTAG;
BORGNAKKE; VAN WYLEN, 1998; TIPLER,
2000):
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Pádua, A. B. de et al.
definição Carnot
“Se energia cinética e potencial são equivalentes
ao calor, é natural que calor seja equivalente às
energias cinética e potencial”, ou seja, o calor é
Equivalente mecânico do calor
uma forma de energia. A partir daí ele formulou
O desenvolvimento da máquina a vapor por um problema crucial: “Qual é a quantidade de
James Watt e as experiências de Rumford acerca calor que corresponde a uma dada quantidade
do aquecimento produzido pelo atrito em rotações de energia cinética ou potencial?” (Em síntese,
rápidas, levantaram a questão da correspondência qual o valor do equivalente mecânico do calor?)
entre calor e trabalho mecânico. Os efeitos observados
por Rumford eram totalmente incompatíveis com as
teses simplistas dos defensores do calórico. Na época Mayer, deduziu um valor do equivalente
mecânico do calor com um erro da ordem de 10%.
A máquina a vapor desenvolvida na segunda
metade do século XVIII foi uma demonstração prática Joule em 1845, por meio de sua famosa terceira
da capacidade de produzir trabalho por intermédio do experiência, que lhe trouxe fama e tornou-se
calor. No entanto, como já mencionamos, somente clássica pela sua engenhosidade, mediu como já
no século seguinte uma conexão mais precisa entre informamos, o equivalente mecânico do calor com
eles foi estabelecida. Mais exatamente em torno da uma excelente precisão para os padrões da época.
metade do século XIX. Um fato interessante que ocorreu em 1847, quando
Joule aos 29 anos, apresentou numa reunião em
A idéia de que a energia se apresenta em diversas
Oxford um de seus resultados mais confiáveis, foi
formas não surgiu espontaneamente. Até o início do
que um jovem da platéia manifestou um grande
século XIX, por energia entendia-se apenas energia
interesse pelo assunto. Este jovem, com então 23
mecânica, ou seja, cinética e potencial. A verificação
anos, era William Thomson, o futuro Lorde Kelvin.
de que a energia cinética pode ser transformada
No entanto, os melhores resultados de Joule foram
em calor foi quem abriu caminho para essa nova
obtidos somente em 1868.
concepção.
Em seu experimento, Joule não empregou mais
A nosso ver, o resultado encontrado por Rumford
que um recipiente cheio de água, um termômetro,
contribuiu decisivamente para derrubar a teoria do
dois corpos pesados e uma haste metálica dotada
calórico, pois mostrou que o trabalho mecânico
de algumas pás. Numa das extremidades da haste,
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Termodinâmica clássica ou termodinâmica do equilíbrio: aspectos conceituais básicos
havia uma carretilha. A haste era imersa na água, maneira as pás giravam rapidamente no interior da
de modo que as pás pudessem girar livremente no água. Como conseqüência, a temperatura da água se
interior do líquido. Da carretilha, que permanecia elevava. Este aumento da temperatura era registrado
fora do recipiente, saíam dois fios em direções pelo termômetro. Conhecendo-se a massa e altura
opostas, cada um dos quais passando por roldanas de queda dos corpos, Joule pôde calcular a
com eixos dispostos horizontalmente. Na ponta energia fornecida ao sistema (água) na forma de
dos fios, amarravam-se os corpos pesados. O bulbo energia mecânica ( U = W = mgh ) e, pela medida
do termômetro, imerso na água, permitia medir a da variação de temperatura e pelos dados da água
temperatura. ( n , c água ), ele calculou a quantidade líquida de
calor que lhe era fornecida (Q = ncáguaDT). Com
A experiência consistia tão somente em
estes dois dados, ele determinou o equivalente
suspender os dois corpos pesados, por meio da
mecânico do calor ( J = W/Q ). A figura 5 a seguir,
carretilha e, depois liberá-la. Os corpos, atraídos
mostra uma representação do equipamento utilizado
pela Terra, caíam, fazendo a carretilha girar; esse
por Joule (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA,
movimento se transmitia à haste metálica, e dessa
1979; PÁDUA; PÁDUA; SILVA, 2008).
Figura 5. Ilustração do equipamento utilizado por Joule para medir o equivalente mecânico do calor (J).
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Termodinâmica clássica ou termodinâmica do equilíbrio: aspectos conceituais básicos
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Termodinâmica clássica ou termodinâmica do equilíbrio: aspectos conceituais básicos
estabelecia a equivalência entre o trabalho e o ligações entre as moléculas, não poderia. Além
calor. disso, a temperatura de um gás se elevava
quando ele era comprimido porque parte do seu
Na época, a teoria do calórico tinha duas
calor latente das ligações, aparentemente era
suposições centrais: (I) o calor presente num sistema
transformado em calor livre.
físico (um corpo ou substância qualquer) era uma
função de estado deste sistema e (II) o calor total do Clausius não somente negou as considerações
universo era conservado. fundamentais da teoria do calórico, como também
construiu uma nova explicação mecânica para
O estado macroscópico de um sistema
os tradicionais conceitos de calor latente e calor
termodinâmico simples fechado pode ser definido
livre.
pelas variáveis T, P e V. A cada duas destas variáveis
geram uma função de estado deste sistema. Por A recusa foi baseada naquilo que se tornou
exemplo, Poisson, estabeleceu uma relação a primeira lei da Termodinâmica: toda vez
entre P e V numa expansão adiabática de gases e que trabalho é produzido por meio de calor, é
Clapeyron determinou a variação de P e T durante consumida uma quantidade de calor equivalente
uma expansão isocórica. Do mesmo modo, outras à quantidade de trabalho produzida. Uma
propriedades do sistema podiam ser determinadas premissa que Clausius acreditava ter sido
definindo-se funções de estado passíveis de serem firmemente estabelecida por meio dos
tratadas matematicamente. Assim, para Clausius, experimentos de Joule.
a suposição (I) de que o calor presente em uma
O total de calor no universo, então não poderia
substância era uma função de estado daquela
ser conservado; e o conceito usual de calor em
substância, transformava a teoria do calórico de uma
uma substância, representando o total de calor
vaga suposição sobre um fluido imponderável, em
adicionado para aquela substância, não poderia
um sofisticado sistema matemático onde relações
ser considerado mais como uma função de
permanentemente válidas, poderiam ser obtidas.
estado.
Clausius fez uma análise cuidadosa sobre a
Em sua re-interpretação, a única forma de calor
natureza do calor, colaborando de forma efetiva
que poderia haver em qualquer condição real em
para o estabelecimento formal da primeira lei da
uma substância era o calor livre; e o calor livre
Termodinâmica e, conseqüentemente, descartando
era entendido como a vis viva (energia cinética)
a suposição (II) da teoria do calórico de que o calor
das partículas fundamentais da matéria e
do universo era conservado. O texto reproduzido a
determinada pela temperatura. O calor latente,
seguir traz uma excelente exposição delineando as
em contraste, era o calor que não mais existia,
principais idéias de Clausius sobre a natureza do
tendo sido destruído pela conversão em trabalho
calor (apresentado em PÁDUA; PÁDUA; SILVA,
interno contra forças inter moleculares e
2008).
trabalho externo contra a pressão da vizinhança.
Clausius fez uma importante distinção entre as
duas formas de trabalho. O trabalho interno
“... A teoria do calórico também provia de uma
que é determinado pela configuração molecular,
idéia conceitual para explicar o comportamento
é uma função de estado, sujeita somente às
dos gases e do vapor em termos de uma distinção
condições iniciais e finais da mudança e o
entre os estados livre e latente do calor. Calor
trabalho externo, que depende das condições
livre podia ser sentido e medido através de
sob as quais a mudança ocorre.
termômetros, enquanto o calor latente, devido
ao fator de estar intimamente ligado com as Em 1850, Clausius não deu as expressões
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Pádua, A. B. de et al.
matemáticas para essas idéias interpretativas Por exemplo, quando Kelvin desenvolveu sua
do calor de um corpo e trabalho interno, mas teoria dinâmica do calor em 1851, ele não
simplesmente ilustrou-os com uma explanação explicou a função U em termos dos estados de
sobre a vaporização da água; eles formaram, energia molecular. Ele simplesmente argumentou
entretanto, as idéias conceituais de sua teoria que se Q e W devem ser iguais toda vez que
do calor. Mesmo no final da edição de um uma substância percorrer um ciclo completo
trabalho que apareceu em 1887, ele ainda de mudanças, uma conseqüência do teorema
apresentou a primeira lei da Termodinâmica da equivalência do trabalho e calor, e se cada
como dQ = dH + dJ + dW, onde o incremento função, que é característica de uma substância,
de calor dQ adicionado a um corpo é igual à não mostra nenhuma mudança resultante em
soma de mudanças de calor do corpo dH, o um ciclo, Q-W deve representar alguma função
trabalho interno dJ e o trabalho externo dW. da substância. Então, ele adotou a questão
Somente depois de confessar sua ignorância puramente em um nível macroscópico e deu o
sobre a expressão do trabalho interno dJ, nome de “energia intrínseca” para U.
Clausius apresentou a expressão clássica
Clausius tinha descoberto a função U um ano
da Termodinâmica dQ = dU + dW, onde
antes de Kelvin, mas ele nunca tinha dado um
U era simplesmente energia no corpo, sem
nome para ela. A razão é clara: o calor em um
qualquer tentativa de diferenciar a energia em
corpo H e o trabalho interno J eram seus conceitos
formas moleculares. A função U representou
fundamentais. Por exemplo, a fim de simplificar
uma importante contribuição na nova teoria
a função U para gases e obter a equação de
mecânica do calor, e foi Clausius que apresentou
Poisson para o comportamento adiabático
esta nova propriedade de estado no pensamento
dos gases, ele argumentou que as forças inter-
termodinâmico. Esta foi uma outra importante
moleculares são desprezíveis em gases por
contribuição de sua publicação de 1850.
causa de sua relativa uniformidade de suas
A maneira de Clausius estabelecer a função relações de pressão, volume e temperatura. Ele
U como uma propriedade de estado de uma estava apto para reduzir a função U para o calor
substância revela outra característica distinta absorvido em volume constante e demonstrou
de seu pensamento. Em sua abordagem da que esse calor podia depender somente da
teoria do calor, conceitos gerais não deveriam temperatura. Uma simplificação da função U
ser dependentes de modelos particulares, normalmente requer o uso da segunda lei da
porque aqueles muitos conceitos formam a Termodinâmica, mas Clausius originalmente
estrutura onde os modelos deveriam funcionar. propôs a idéia somente baseada na primeira lei
Embora Clausius pudesse apresentar a função e em seu modelo molecular para calor e trabalho
U simplesmente como soma de H e J (como ele interno. Aquele modelo para o calor talvez tenha
fez posteriormente no desenvolvimento de sua também possibilitado o raciocínio para sua
teoria), ele preferiu ter certeza de uma completa brilhante revisão do tradicional argumento de
generalidade de suas idéias iniciais de 1850, Carnot em Termodinâmica. Uma revisão que
empregando uma análise extremamente tediosa possibilitou incorporar a maioria dos resultados
de um Ciclo de Carnot infinitesimal. Era como significativos da teoria do calórico com a nova
se fosse uma abordagem, independentemente estrutura teórica. ...”
das considerações moleculares, que se tornou
normativa no pensamento termodinâmico.
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dQ rev
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T
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