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30/03/2019 contracampo :: revista de cinema

 PARALELAS E TRANSVERSAIS
 
Diários de Motocicleta, de Walter Salles
O Pântano, de Lucrecia Martel  
   
Motorcycle diaries,
EUA/Inglaterra/Alemanha/Argentina, 2004 
La ciénega, Argentina, 2003  

 
Dois cinemas na América Latina
   
A concentração financeira e a configuração mercadológica da
indústria cultural em geral, e do cinema mundial em
específico, talvez nos ajudem a entender a necessidade de
se agrupar alguns filmes sob rótulos vinculados às suas
origens. É uma forma de se criar identidades nacionais ou
continentais em meio a um processo de estandartização de
estilos e de uma quebra de identificação dos povos com suas
produções menos contaminadas pelos elementos externos ­
conceito esse bastante relativo (ainda mais no caso do
Brasil, país mediado por referências externas), mas muito
em voga nos anos 60, em textos de Glauber Rocha e Julio
Garcia Espinosa, por exemplo. Busca­se ainda um discurso
destinado a afirmar o pertencimento de um conjunto de
criações em uma determinada tradição e projeto, histórico
e/ou estético, para assim responder e resistir a um
estilhaçamento identitário gerado pela influência dos traços
culturais exportados em escala mundial pelo país
economicamente hegemônico (os EUA). No entanto, nessa
tentativa de tornar homogêneo filmes distintos para
enquadrá­los como produtos de seu tempo e de suas
sociedades, surgem distorções ­ como quase sempre
acontece quando a obra de um indivíduo é deixada de ser
vista primeiramente em si, por suas singularidades
artísticas, para ser tratada por questões mais políticas que
propriamente estéticas, como obra de um país ou de
continentes. 
   
Não se está querendo aqui retomar o ideal romântico de um
"eu artístico", desconectado de seu contexto (ambiente
social e tempo histórico), mas repor os filmes no cinema
para discursos não ofuscarem evidências. Porque certos
agrupamentos ocasionalmente geram leituras centradas
demais na aproximação grosseiramente sociológica com as
imagens e pouco concentradas no específico das articulações
audio­visuais. O cinema deixa de ser visto, nesses casos,
sobretudo como linguagem e, embora isso não deixe de ser
interessante em outro tipo de abordagem, passa a ser
encarado como sintoma. Tentemos relativizar essa idéia
uniformizante de cinema­origem. Abbas Kiarostami tem
pouco a ver com Majid Majid, Bruno Dumont não tem
sintonia com Cedric Klapisch, Tsai Ming­Liang nada dialoga
com Zhang Yimou, Walter Salles faz um cinema muito
distinto de Lucrécia Martel. Interessa­nos as transversais
contidas nessa última paralela, motivada pelas estréias
simultâneas de Diários de Motocicleta, de Salles, e La
Ciénega (O Pântano), de Lucrécia Martel. Sabemos do
esforço político e intelectual de Walter Salles, com a
publicidade conseqüente ou motivadora desse esforço, para
aumentar a visibilidade dos filmes da América Latina
(brasileiros, argentinos e mexicanos basicamente). O
cineasta brasileiro tornou­se, nos últimos anos, o porta­voz
e diplomata desse segmento ­ algo positivo na guerra por
lugares na vitrine audiovisual. 

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Essa postura ocasionou o lançamento no Brasil do filme de
Lucrécia Martel, La Ciénega, comprado pela produtora de
Salles para compensar o descaso das distribuidoras. Tal
conexão, na tela, desconecta­se. Se para o diretor o termo
chave da expressão "cinema latino­americano" tende a ser
"latino­americano", para Lucrécia, na prática e em
entrevistas, essa palavra chave é "cinema" ­ pois sua
construção é de um universo autoral, não de um projeto
para além de sua arte pessoal, na qual evidentemente está
embutida sua identidade nacional, mas sempre a partir de
sua identidade artística. O cinema no Brasil, Argentina e
México, se tomado em sua totalidade e não apenas pelos
filmes exibidos em festivais, é muito diversificado e difícil de
ser condensado, tendo em vista nosso limitado
conhecimento no Brasil (via Mostra de São Paulo e do Rio,
Cinesul, lançamentos no circuito e em DVD). Se já é
impossível termos uma visão unificadora dessa abstração
mítica (a América Latina), cujos países só podem ser
agrupados pelo processo histórico­econômico (mais ou
menos em comum, de colonização e exploração), não por
suas características culturais, mais rarefeito ainda seria falar
em um cinema latino­americano uno. Apaixonados tem nada
a ver com El Bonaerense (ambos argentinos). Japon não fala
a mesma língua de Sexo, Pudor e Lágrimas (ambos
mexicanos), e por aí vai. Também não é o caso de se
considerar a transitoriedade estética da filmografia de Walter
Salles um sinal esquizofrênico de uma ausência de marca
nacional­continental bem delineada. Não há menos
brasilidade ou latinidade em Terra Estrangeira e A Grande
Arte do que em Central do Brasil e Diários de Motocicleta.
Cada um deles são respostas a um contexto de cinema e de
mundo, mediados por preocupações pessoais e projetos
profissionais, uns buscando inserção em tradições locais,
outros projetando­se para além delas, todos inevitavelmente
brasileiros e latino­americanos
   
A identidade latino­americana
   
 
Unidade estética continental? Isso pode ser sugerido pelas
sucessivas alusões à "Nueva Onda", marketing tão válido
quanto frágil, ao menos em sua nomenclatura, pois
reivindica uma "onda", fenômeno efêmero, e não projetos
autorais duráveis. Essa Onda é conectada? Pode ser aqui e
ali, em um título e outro, mas, se as características desses
filmes forem colocadas em plano mundial, é possível novas
conexões. Situações limites, câmera na mão, cortes
abruptos, grão na imagem e personagens agonizantes, em
crise ou em estado de transgressão (geral), convenhamos,
não é exclusivo de latino­americanos ­ embora, por sua
aceitação crítica, possa ser uma identidade cultural e de
mercado buscada, sobretudo por ser artisticamente
legitimada no exterior. Mas mesmo com essa legitimação é
difícil encontrar um cinema continental. Daí o interesse por
tomar dois filmes que, por serem dirigidos por dois dos
maiores expoentes dessa onda (Walter Salles e Lucrécia
Martel) são exemplares de como, na prática de dois
profissionais de um mesmo continente, com projeção e
poder de articulação internacional, as opções podem ser tão
díspares ­ e não porque ele é brasileiro e ela argentina, mas
porque cada um pensa e faz o cinema à sua maneira. 
   
A começar pela relação com a própria "latinoamericanidade"
de cada um deles. Em La Ciénega, esse é um dado da
imagem, não do tema. Em Diários de Motocicleta, essa é a
grande questão. O diretor segue o percurso de sua dupla de
personagens para, por meio da descoberta por parte deles
de um continente que só conheciam pelos livros, fazer um
sintético inventário das mazelas contidas entre a Argentina e

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o Peru, assim como para propor uma intervenção solidária.
Nos momentos finais, Ernesto Guevara, já consciente de sua
condição latino­americana, imanado com outros povos (com
os pobres e com os missionários de outros povos), fala de
uma única raça mestiça para a qual não deveriam haver
fronteiras. Pode­se ver o filme, em uma de suas chaves,
como um movimento rumo a essa identificação e
pertencimento, como a construção, em última instância, de
identidade coletiva ­ um neo­bolivarismo, atualizado para o
novo fluxo de dinheiro e de cultura. E um dos mais fortes
componentes dessa identidade, não apenas "continental"
como cinematográfica, é a resistência e a persistência diante
das adversidades. Ernesto é asmático, mas faz esportes; a
moto quebra e eles continuam; o dinheiro acaba e eles
prosseguem. Não há como comer e onde dormir, mas eles
inventam soluções de improviso. Estaríamos, por meio da
significação desse trajeto da dupla, em diálogo com a
estética da fome glauberiana ­ não por conta seu teor
estético­agressivo, mas por sua retórica de superação da
falta de condições materiais com criatividade e convicção.
Diários de Motocicleta reafirma a América Latina, e o cinema
latino­americano, nesse escaninho da reação contra os
limites da ação. 
   
Qualquer busca da identidade é gerada exatamente pela
dificuldade de se ver como parte de algo. É o caso de
Ernesto e, sendo ele o porta­voz da narrativa (mais que
narrador), supõe­se que o filme adere à busca. Vemos a
tentativa de se entrar para o time, mas para ser o capitão
dele, pois há mais a dar que a receber. Isso reverbera no
filme. Guevara e o filme olham o povo e o cenário que
encontram sempre com proximidade distante, com um olhar
de fora, de observador, da racionalização da experiência (ou
da experiência vivida para ser racionalizada), como
expressam as recorrentes cenas nas quais escreve em um
caderno. Olhar etnográfico (na definição de Lenoi Gourham,
"descrição de sociedades distantes de seus autores") e
onisciente em sua voz subjetiva, de quem vê e entende.
Esse distanciamento não é brechtiano, no sentido de nos
colocar em frente à cena com uma câmera longe das ações,
mas o de um observador que, apesar de interagir com o
"outro", está sempre interagindo como observador, não
como interlocutor.
   
Teologia da derrota e o voluntarismo
   
Há uma certa teologia distópica na caridade missionária do
futuro Che. Por sabermos qual é o seu futuro como
revolucionário ele é visto como a semente de um
messianismo, estagiário de salvador dos oprimidos, mas,
como também sabemos da interrupção de seu projeto, ou
pelo menos do desgaste dele, não há como apagar o traço
de fracasso desse programa guevarista. É algo visualizado
no olhar pesado de Granado vendo a partida de Ernesto
(partida do passado para o futuro e do futuro que virou
passado, imagem de utopia em projeto arquivado em nossos
dias). Também se faz notar na cena em que, empregando a
voz do herói em off, o filme assina embaixo de seu lamento,
movido pelo rumo do Peru, dos incas aos espanhóis, de
Machu Pichu a Lima, em postura saudosista e impotente,
sem a reatividade necessária ao devir histórico. O elogio do
futuro utópico, portanto, carrega consigo a distopia. Ernesto
entra com voz over, supomos pela articulação da narrativa,
quando a jornada encerrou. Narra de um futuro em relação
àquela viagem, finalizada com uma frase de alcance
atemporal ("Quanta injustiça"), pois se refere a aquele
tempo e também ecoa pelo nosso tempo (diálogo do filme
com o mundo hoje). Já para a instância narradora do filme,
instância muda, esse futuro já se tornou passado (como é
evidenciado no letreiro final, quando informa­se sobre o

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destino de Guevara, inclusive a data de sua morte). 
   
O filme existe por conta do quem se tornou Guevara, não
pela viagem. A instância narradora sabe o fim da história
desde o começo e, assim, inscreve­se na definição de Píer
Paolo Pasolini, a do narrador­morto que extrai sentido do
passado pois narra recapitulando e tirando lições das
situações. Resulta desse olhar consciente do caminho
histórico uma oscilação entre ingenuidade e demagogia com
seu momento. Paradoxalmente, porém, se tomarmos apenas
a construção do herói na tela, há sintonia histórica, pensada
ou intuída, entre filme e mundo atual. Um filme sobre o Che
dos anos 60, revolucionário, adepto das armas em favor da
liberdade, estaria fora de pauta das questões emergenciais ­
luta armada, hoje, é fora de moda. Politicamente incorreto e
moralmente condenável. Mas o jovem Che, com seu ímpeto
de voluntarismo social, de missionário disposto a ser útil
para atenuar a dor do terceiro mundo, de herói burguês
entediado com sua vidinha programada e previsível, em
busca de aventura e de imprevistos, é tema contemporâneo:
Ernesto é o herói da era das ONGs. Não vive rupturas ou
enfrentamentos, mas uma ação paliativa, cuja função é, pela
sua frase a uma jovem no leprosário, sobretudo de conforto
de sua consciência (sentir­se útil). A aproximação com os
sofridos e com os pobres, segundo suas palavras, serve para
torná­lo mais humano ("mais próximo da natureza
humana"). 
 
O clímax dessa abertura de olho para se fazer contato com o
"outro" é a metafórica travessia do rio. Confirma­se ali a
transformação, iniciada no atendimento a uma doente no
Chile, desenvolvida no aperto de mão ao senhor com
hanseníase. Ernesto é PhD em fazer a coisa certa: corre para
salvar o cão depois de quase quebrar o pescoço em uma
queda de moto, não gasta os dólares dados pela namorada
para satisfazer um capricho até encontrar quem necessite
deles, é franco com um senhor doente, também com um
médico sem vocação para sua ambição literária. As boas
ações do herói têm como consequência a sedução do
espectador para essa mesma sensação: sentir­se bem por
estar do lado da causa certa, por se comover com a pobreza
e com a injustiça, com a impotência de gente tão explorada
(comoção essa cultivada por meio de música sensível, de
palavras bonitas das cartas para a mãe, de fotos em preto­
branco ­ inspiradas nos registros do peruano Martin
Chambe, mas com ecos de Sebastião Salgado ­ a cor por
convenção da miséria cult). 
   
Temos nesse procedimento uma pedagogia dos sentimentos
corretos, uma reciclagem açucarada do projeto do CPC, uma
modernização ficcionalizada das posturas documentais de
John Grierson e uma variação bem aparada do programa de
Fernando Birri ("o cinema não serve para inventar a
realidade, mas para reinventá­la, para interpretá­la e
transformá­la"), com a provocação do sentimento no lugar
da conscientização e do confronto político. Nos anos 60 e 70,
como escreveu Antonio Candido em Literatura e
Subdesenvolvimento, a constatação do subdesenvolvimento,
na literatura e no cinema, era combustível transformador.
Agora, assim como em Diários de Motocicleta, também há
ação, mas atenuante. A escolha do material a ser convertido
em discurso cinematográfico é apropriada e sem dúvida
sintomática. Somos convidados menos a nos sentir latinos
com necessidade de virar a mesa e mais a termos pena da
condição dos latinos e assim fazermos algo para diminuir o
sofrimento e nos sentirmos moralmente saudáveis por
estender a mão. 
   
Identidade do cinema
   

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A latinidade é uma questão superada, ou nem é uma
questão, no filme de Lucrécia Martel. A identidade latino­
americana está em suas imagens sem precisar ser
tematizada, como está na imagem de qualquer filme da
América Latina, inclusive naqueles rompidos com a herança
dos cânones da região (Glauber Rocha, Nelson Pereira dos
Santos, Tomas Gutierrez Alea, Fernando Birri, Jorge
Sanjinés, Garcia Epinosa, Fernando Solanas). Lucrécia não
reverencia esses referenciais mas está em sintonia com eles,
pois parte de algo já dado, de sua inserção no mundo das
imagens como produto histórico­cultural, no entanto dispõe­
se acima de tudo em propor um olhar e um estilo singular na
relação com essa produção de sua obra pela conjuntura da
qual faz parte. "Descontinuidade é talvez a marca principal
da atividade cinematográfica da América Latina", escreve
José Carlos Avellar em "A Ponte Clandestina", onde vê a
fragmentação como fruto do enfrentamento inconcluso da
realidade, do conflito entre razão e sentimento, do duelo
entre um discurso organizado e outro mais próximo de uma
fala automática, ainda sem sistematização. Walter Salles
está mais vinculado a esse primeiro discurso, organizado,
enquanto Lucrécia Martel herda essa segunda característica,
automática, que se fragmenta no enfrentamento da
realidade. Nessa organização quase didática, esquemática,
Salles tromba com Ken Loach (em seus filmes de maior
carga emocional, sempre já sabendo o que vai encontrar ao
fim do processo); Lucrécia encontra com Abbas Kiarostami
(o cineasta por excelência do processo e da busca). A
cineasta argentina e cidadã do cinema herda, com ou sem
consciência, a herança glauberiana, enquanto conceito pelo
menos (em texto de 1958, publicado em A Revolução do
Cinema), de fundir dois pólos dicotômicos até os anos 60, o
cinema de montagem e manipulação de Serguei Eisenstein e
o cinema de contato direto com a vida de Césare Zavattini,
combinação essa praticada então por Luis Buñuel, conforme
Glauber. 
   
Seu mundo, porém, é micro (e enorme em abrangência). Ela
está mais interessada nos climas íntimos e dicotômicos de
relações familiares específicas, cheias de pulsão de vida e de
sinais de decripitude ­ que pode até ser vista como reflexo
de classe (a média) e da situação de um país (a Argentina),
mas não propõe essa relação direta pela qual sua linguagem
naturalista pediria uma leitura alegórica. Seu filme
concentra­se em uma casa, e ela se faz notar, por extensão,
mesmo nas cenas exteriores. Um mundo cabe entre quatro
paredes e isso o vacina contra generalizações, ao contrário
das visões panorâmicas por superfícies sociais. La Ciénega/O
Pântano, ao contrário de Diários de Motocicleta, não busca
diagnósticos, menos ainda soluções. Os sentidos propostos
são rarefeitos e nebulosos, pantonosos até, e concentram­se
apenas nas próprias situações, na matéria (corpos,
paisagens), "em uma verdade só possível de ser encontrada
nas coisas" (segundo o poeta conceitual William Carlos
Williams). Sem, porém, partir delas para se chegar a algo
para além delas; vendo­as tanto como parte do contexto
como renovadas por associações elípticas com ele, de acordo
com as arbitrárias exigências da subjetividade, não pelo
suposto "objetivismo" da sociológica relação de causa e
efeito. A significação está na própria imagem e não na
leitura da imagem, significações variadas dentro da polifonia
de vozes e situações, na qual cada um tem sua verdade e
sua razão, sem se extrair disso uma conclusão sintética. 
 
É uma de suas maiores diferenças, em termos estéticos, do
projeto pedagógico de Diários. Em La Ciénega, a imagem é;
em Diários, a imagem diz. Mas diz com as palavras, com a
voz do narrador, mesmo quando já havia "sido". Dois
momentos são exemplares. 1) A cena na qual o herói atende
uma mulher doente e expressa no silêncio a impotência dele

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e dela. Grande momento de Gael Garcia Bernal e de Walter
Salles. Mas logo entra uma narração explicativa e mata esse
momento de cinema. 2) A sequência em que, perguntado
por um casal de retirantes andinos se viaja com o amigo em
busca de trabalho, Ernesto diz que não: viaja por viajar.
Segue­se uma expressão constrangida diante da situação ­
cena resolvida. Mas logo segue uma explicação em off. O
contraponto é o momento em que, após receber uma carta,
Ernesto reage agressivamente. Nenhuma palavra. Sabemos
do que se trata. Há cineasta nessa passagem.
   
Também ao contrário de Diários, que olha seu herói no
mundo (a América Latina), La Ciénega olha olhares dos
personagens para o mundo (uns para os outros). Isso coloca
a câmera como parte de seu ambiente, não como
observador descritivo e conclusivo dele. A câmera tem
estatuto de personagem e, em função da polifonia, corta de
um olhar para outro, a acompanhar o balé das visões.
Temos uma intimidade sem distanciamento e, por conta
dessa excessiva proximidade da câmera com os corpos
(também próximos entre si, sempre roçando uns nos
outros), não há como vê­los com legendas explicativas. Nem
tudo, porém, é diferença. Diários de Motocicleta fala a
mesma língua de La Ciénega, parcialmente pelo menos, ao
detectar a alegria em um meio degradante (e degradado).
Isso é mais visível em trechos no leprosário (no jogo de
futebol e no batuque com os doentes). Na despedida de
Ernesto, contudo, a alegria dá lugar à impotência (presente
no olhar do herói e não no dos pacientes). 
   
Imagem­tempo, imagem­espaço, imagem­ação
   
Pier Pasolini escreveu que uma narrativa, na assepção
clássica do termo, começa quando o narrador está morto,
quando os fatos já estão distantes e têm um sentido de
conjunto, quando a vida não atrapalha a compreensão.
Walter Salles faz essa operação com seu material. Cada ação
será colocada dentro de um chave de entendimento mais
ampla, que serve para mais tarde dar significação ao
específico, sempre a partir de uma significação geral na qual
o filme irá desembocar. O cinema de prosa, segundo
Pasolini, e o cinema clássico, de forma geral, perseguem
essa organização. Gilles Deleuze analisa essa
compartimentação do tempo e do espaço na disposição de
eventos em Imagem­Ação. Em Imagem­Tempo, debruça­se
sobre o cinema moderno, no qual, acima de tudo, o tempo
torna­se forma, quando não tema. Diários de Motocicleta
inscreve­se em Imagem­Ação. Em trechos da viagem,
poucos minutos dão conta de muitos quilômetros
percorridos, pois havia poucos acontecimentos a mostrar.
Em outros trechos, poucos quilômetros são mostrados em
muitos minutos, em geral nas paradas, pois são ricos em
eventos. Como em Caminho das Nuvens, de Vicente
Amorim, o deslocamento é secundário. Não importa o tempo
empregado nas ações, mas a capacidade dessas ações de
revelar os personagens, assim como as motivações de suas
transformações. Não importa o processo, mas a lição
aprendida com ele, ou seja, o resultado alcançado. Viaja­se
já sabendo o percurso e o destino final.
   
É outro o percurso em La Ciénega. Assim começa: imagens
de pimenta, som de grilo, trilha extra­diegética agenciadora
de tensão e sensação de risco, uma menina que chora, som
de trovão, um quadro com a imagem da neve em um
quarto, corpos suados na piscina e deitados na cama, corpos
que se arrastam, que caem, que se machucam, que agem
como zumbis. Somos situados em poucos planos no espaço
e colocados entre os seres: vemos crise, degradação.
Veremos adiante corpos que se tocam, que desejam, que se
lançam à aventuras, que produzem ações, mas sem ter a

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30/03/2019 contracampo :: revista de cinema
consciência dos sentidos dessas ações. Nos primeiros
momentos, o absurdo se instala, logo se naturaliza. Uma
mulher cai bêbada, corta­se, sangra, mas seu marido a
ignora: enche o copo e sai de cena. Reaparece secando o
cabelo no banheiro enquanto a esposa é encaminhada a um
pronto­socorro. Vemos o início de uma construção de seres
e de um ambiente decrépito ("aquela casa é um desastre",
diz alguém), com ocasionais quedas de luzes e de corpos,
com a revelação de preconceitos étnicos, com acidentes que
deixam cicatrizes (sinal de sobrevivência e resistência aos
percalços), com sangramentos freqüentes (outro sinal de
vida, e também de fluxo rumo à morte, ambivalência que
rege o filme) ­ no entanto a contrapartida será exibida na
seqüência, com cenas de harmonia e momentos de
felicidade, com a relação cheia de imaginação de crianças
com o mundo (imaginação fatal em um caso), com situações
pelas quais vemos uma família problemática, sim, mas o
tempo todo integrada em sua rede de afetos e desejos
dissimulados. Uma adolescente lança olhares libidinosos
para o irmão, o irmão vive estendido de cueca na cama da
mãe, irmãos e irmãs dançam e cantam no quarto da mãe,
uma outra adolescente assume sua paixão, embora com
conotações de posse social, por uma criada de feições
indígenas. Vemos vitalidade e degradação, vemos prazer e
dor. Lucrécia filma em espaços apertados, às vezes cola a
câmera nos corpos, deseja­os, corpos colam em outros
corpos. Sua câmera integra­se nesses micro­espaços,
mesmo com os cortes abruptos de um plano para outro.
Suas cenas têm a incumbência de, em poucos gestos e
segundos, insinuar um estado de coisas, sem criar legendas
para elas. 
   
Tomemos a cena do rapaz mestiço incumbido de
experimentar a camisa pelas patroas da namorada. Toda
uma relação de poder está resolvida nessas imagens. Mas
nada é preto no branco. Essas patroazinhas também terão
seu momento de integração com os mestiços quando vão
brincar em um dique. Recusa­se não apenas a constatação
reducionista de certas passagens como também a
funcionalidade da encenação e do encadeamento dos planos,
de modo a permitir que o mistério sobreviva às significações
(e elas estão lá, só não berram, como em Diários). Sempre
fica algo não dito e não mostrado; toca­se na vida sem
explicá­la. Esbarra­se no sublime, o da arte (aquele
impossível de encontrar tradução em palavras), sem
persegui­lo (como nos clichês do cinema empenhado em ser
cinema de arte). Ao final, uma das adolescentes, de volta de
sua tentativa de ver a Virgem (sinal de esperança e de
explicação para o mundo), diz que não viu nada. Não há
como ver, apenas como viver. Não há como lançar­se para o
futuro (como na teologia cristã). É preciso resistir no
presente sem falsas esperanças, mas com a potência de
quem está vivo. Isso não é latino­americano. É pessoal,
filosófico, político.
   
 Cléber Eduardo

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