br/seleneherculano
“A tragédia urbana brasileira não é produto das décadas perdidas, portanto. Tem suas raízes
muito firmes em cinco séculos de formação da sociedade brasileira, em especial a partir da
privatização da terra (1850) e da emergência do trabalho livre (1888).”
Contudo, Maricato trouxe novas análises, com base em dados de 1999 e de 2000, da
época em que escreveu e publicou este livro: nos anos 80 e 90 as cidades médias (entre 100
mil e 500 mil habitantes) cresceram mais do que as metrópoles (p. 25), recebendo novos
fluxos migratórios, como se deu nas cidades do centro-oeste e do norte do país e nas cidades
litorâneas. Um ponto ainda mais importante que ela sublinha é que a pobreza nacional emerge
nas periferias metropolitanas (os municípios periféricos cresceram 14,7% entre 1991 e 1996
enquanto que seus núcleos cresceram em média 3,1%). Insistimos: a pobreza brasileira
tornou-se metropolitana.
www.professores.uff.br/seleneherculano
Houve melhoras, mas a urbanização não as causou, Maricato afirma: houve diminuição
da taxa de natalidade, queda da mortalidade infantil e aumento da expectativa de vida, mas
isso se deveu a políticas públicas de saúde, não por causa do processo de urbanização (p.29).
Apesar do crescimento “notável” do PIB – produto interno bruto – no período de 1940 a 1980,
a desigualdade social não apenas se manteve, mas aumentou e a pobreza metropolitana foi
particularmente afetada pelo declínio econômico das décadas de 1980 e 1990.
Vivenciamos sem cessar uma “gigantesca construção de cidades, parte delas feita de
forma ilegal, sem a participação dos governos, sem recursos técnicos e financeiros
significativos [...] empreendimentos descapitalizados e arcaicos, fora do mercado formal” (p.
37). Nossa urbanização é uma “máquina de produzir favelas” e de agressão ao meio ambiente,
onde se admite a invasão, mas não o direito à cidade (p. 39).
Tudo isto posto, são aspectos bem sabidos, mas que merecem ser repetidos e nunca
suficientemente louvada e citada a verve incisiva e destemida da autora. Queremos nos referir
agora ao elenco de causas às quais ela se refere entre as páginas 40 e 45 para a continuidade
das favelas:
A esse elenco de causas ela soma outras no artigo seguinte do livro, intitulado
“Planejamento para a crise urbana no Brasil”, onde critica o planejamento brasileiro, feito
pelas classes dominantes, estando ausentes dele os princípios democráticos e igualitários (p.
48). Segue então sua melhor crítica, e mais contundente, pois tem a ver com as necessidades
de gestão:
O que fazer então? Planejar, sim, mas em outros moldes, criar uma máquina pública
que não seja “inchada, com apaniguados políticos, corrupta e ineficaz” (p. 55) e que responda
às seguintes questões (p.49):
Como fazer o controle do uso do solo (um dos setores mais corruptos das gestões municipais)
protegendo áreas ambientalmente frágeis e assegurando a ampliação de moradias sociais?
Quais seriam as soluções a curto e médio prazo para as enchentes, desmoronamentos,
incêndios e epidemias?
Como enfrentar o mercado imobiliário especulativo e excludente?
Como combinar a ocupação do solo urbano e o sistema viário com as unidades de gestão
baseadas em bacias e sub-bacias hidrográficas?
Como implementar a função social da propriedade?
Como convencer governos e sociedade das prioridades demandadas pelos problemas de
drenagem e saneamento?
O que fazer com o comércio informal que ocupa os espaços públicos?
Como garantir padrões mínimos de habitabilidade em favelas já urbanizadas?
Como fomentar o engajamento social para a resolução de problemas?
Este planejamento urbano que defende tampouco teria a ver com os planos
estratégicos privatistas e voltados para a “arquitetura-espetáculo” (p. 60) e para a construção
de “ilhas de primeiro mundo” (p. 65).
Quanto à relação entre o local e o nacional, Maricato cita Jeroen Klink1 e sua defesa do
Estado-Nação. No Brasil, diz ela, a descentralização se dá “de fato, por ausência”, de forma
“tutelada ou vinculada” e a presença nacional no plano local é mais praticada por políticas
compensatórias e programas sociais, faltando análises e gestão sobre os impactos das políticas
nacionais sobre as cidades (p. 63, 64). Não se trata de desconhecer a importância crescente
das cidades no mundo contemporâneo (tendência mundial que, no binômio global/local
coloca na penumbra a esfera nacional), mas de “relativizar a autonomia do poder local na
solução de problemas estruturais” (p. 66).
Criticando linhas de debate da Habitat II, Maricato defende a instância nacional contra
os elogios insistentes ao fortalecimento do poder local e à parceria público-privada e que
apontam para a desregulamentação das políticas nacionais, para a demissão do Estado em
relação aos serviços públicos, sua privatização e delegação da sua gestão (ps. 180 -182). O bom
observador deve desconfiar de tanto empenho neste fortalecimento do poder local (p. 180).
1
O novo regionalismo: o caso do ABC. Tese de doutorado: FAUUSP, 2000.
www.professores.uff.br/seleneherculano
O enorme “passivo urbano” (termo nosso e não da autora, que aqui tomamos de
empréstimo ao vocabulário da gestão ambiental empresarial e seu passivo ambiental) e seus
conflitos passaram a ter visibilidade hoje, o que Maricato já recomendava (p. 71). Das outras
medidas que propunha – reforma administrativa, presença do Estado nos bairros ilegais,
formação de quadros, aperfeiçoamento e democratização das informações – e que parecem já
terem se iniciado nestes últimos 10 anos – há duas muito importantes e que ainda não foram
suficientemente objetivadas:
O cerne da política urbana está, para ela, na questão da moradia social em áreas
centrais urbanas. É uma questão para a política nacional, pois o poder local é limitado para
resolvê-la, uma vez que a regulação financeira do mercado residencial está no campo da
macroeconomia e que a função social da propriedade é matéria federal (p. 128). A moradia “é
uma mercadoria especial, que demanda terra urbanizada” (com rede de água, de drenagem e
de esgotos, iluminação, coleta de lixo, transporte, equipamentos de educação e saúde), ou
seja, exige “um pedaço da cidade e não terra nua” (ps. 118, 119). O direito à cidade é o direito
à moradia, o direito ao mercado residencial legal e a estar sob a égide de sua legislação (código
de obras, leis de parcelamento do solo, de zoneamento etc.).