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13/07/2016 Os sapatinhos vermelhos (por Hans Christian Andersen)

1st November 2012 Os sapatinhos vermelhos (por Hans Christian Andersen)

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Era uma vez uma menina, bonitinha e delicada, que no verão tinha de andar sempre descalça, pois era pobre, e no
inverno tinha de usar grandes sapatos de madeira, que lhe deixavam o tornozelo vermelho e dolorido.
Na aldeia morava a velha sapateira. De velhas tiras vermelhas de vestidos, ela fez, como melhor pôde, um par de
sapatos. Eram estes, na realidade, bem grosseiros, mas feitos com a melhor das intenções, para serem presenteados
à menina, que se chamava Karen.
Precisamente  no  dia  em  que  sua  mãe  foi  enterrada,  Karen  recebeu  os  sapatos  vermelhos,  e  pela  primeira  vez  os
calçou. Não eram muito adequados para o luto, mas ela não tinha outros; e, com eles nos pés, sem meias, Karen
acompanhou o pobre e tosco caixão da sua mãe.
Naquele momento, passava uma grande e antiga carruagem, na qual ia uma nobre e velha senhora. Esta, vendo a
menina, teve pena dela, e pediu ao padre que lhe confiasse a órfã, prometendo que a trataria bem.
Karen pensou que tudo era por causa dos sapatos vermelhos. A velha senhora, porém, disse que eles eram horríveis,
e queimou­os. Karen passou a andar bem vestida, teve de aprender a ler e a costurar, e todos diziam que ela era
bonita. No entanto, o espelho ia além: “És mais que bonita; és formosa.”
Certa vez, a Rainha percorreu o país, levando em sua companhia a sua filhinha, que era princesa. O povo aglomerou­
se em frente ao palácio, e Karen também lá estava. A princesinha, num luxuoso vestido branco, assomou à janela,
deixando­se ser vista pelo povo. Não tinha ela vestido de cauda, nem coroa de ouro na cabeça; mas calçava lindos
sapatos vermelhos, de marroquim. Como eram diferentes daqueles que a velha sapateira da aldeia costurara para
Karen! Sim: nada neste mundo se podia comparar a uns sapatos vermelhos!
Karen atingiu a idade de ser crismada. Recebeu vestidos novos, e devia ganhar também sapatos novos. O melhor
sapateiro na cidade tomou a medida do pezinho dela. Na sapataria dele havia grandes armários com portas de vidro,
onde se exibiam graciosos sapatos e botinas muito polidas. Era tudo bonito ali, mas a velha senhora não enxergava
bem;  por  isso,  não  sentia  prazer  nenhum  diante  daquilo.  Entre  os  sapatos  enfileirados  havia  um  par  vermelho,
exatamente igual ao que a princesa usava. Que sapatos lindos! O sapateiro declarou que haviam sido feitos para a
filha de um conde, mas não tinham servido.
— Devem ser de verniz — disse a velha, olhando­os de perto. — São tão brilhantes!
— São muito brilhantes, sim — confirmou Karen.
Os  sapatos  lhe  serviram,  e  foram  comprados.  Mas  a  velha  senhora  não  sabia  que  eram  vermelhos,  embora  lhes
notasse  as  cintilações  do  verniz.  Do  contrário,  não  teria  permitido  que  Karen  fosse  ao  Crisma  com  sapatos
vermelhos. Mas foi exatamente o que fez a menina.
Toda a gente olhava para os pés dela. Quando ela atravessou a igreja, para ir ao coro, pareceu­lhe que até os velhos
retratos  coloridos  nas  sepulturas  —  retratos  de  sacerdotes  e  de  suas  esposas,  com  golas  e  trajes  pretos  —  não
despregavam os olhos dos seus sapatos vermelhos. E só nos sapatos ela pensava, quando o padre lhe pôs a mão na
cabeça e, falando do sagrado batismo, e da aliança com Deus, disse que, dali por diante, depois do crisma, ela seria
uma pessoa adulta. O órgão soava, solene, as vozes das crianças elevavam­se, no coro, juntamente com a do velho
cantor da igreja, mas Karen só pensava nos sapatos vermelhos.
À tarde, por ouvi­lo de todos, já a velha senhora sabia que os sapatos eram vermelhos. Censurou a menina, dizendo­
lhe que aquilo era feio, que não ficava bem, e que Karen, daquele dia em diante, quando fosse à igreja, deveria ir com
sapatos pretos, mesmo que fossem velhos.
No  domingo  seguinte,  havia  missa,  e  Karen,  olhando  alternadamente  para  os  sapatos  pretos  e  os  sapatos
vermelhos… acabou por calçar estes.
Era um belo dia ensolarado. Karen e a velha senhora iam pelo atalho, entre os trigais, onde havia muita poeira.
Junto  à  porta  da  igreja  estava  parado  um  velho  soldado,  de  muletas,  com  uma  estranha  barba  comprida,  mais

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13/07/2016 Os sapatinhos vermelhos (por Hans Christian Andersen)

vermelha  que  branca;  inclinando­se  até  o  chão,  ele  perguntou  à  velha  senhora  se  podia  limpar­lhe  os  sapatos.
Também Karen estendeu­lhe o seu pezinho.
— Que lindos sapatos de baile! — disse o soldado. — Que fiquem firmes no pé, quando dançarem! — acrescentou,
dando uma palmada na sola dos sapatos.
A velha senhora deu uma moedinha ao soldado e entrou com Karen na igreja.
Lá  dentro,  todo  mundo  olhou  para  os  sapatos  vermelhos  de  Karen,  e  até  mesmo  as  imagens  como  os  fitaram.
Quando Karen se ajoelhou ante o altar e levou o cálice de ouro aos lábios, pensou nos sapatos vermelhos: era como
se estes boiassem no cálice à sua frente. Ela se esqueceu, até, de cantar o salmo e de rezar o “Padre Nosso”.
Depois, todos os fiéis saíram da igreja, e a velha senhora entrou na sua carruagem. Karen ergueu o pé, para subir
logo atrás dela, e o velho soldado, que estava ali pertinho, repetiu sua observação anterior.
— Vejam só, que lindos sapatos de baile!
Ouvindo­o,  Karen  não  pôde  deixar  de  executar  alguns  passos  de  dança.  Mal  o  fez,  porém,  os  pés  continuaram
sempre a dançar: parecia que os sapatos os dominavam. Dançando sempre, ela contornou o ângulo da igreja, sem
querer; o cocheiro teve de correr atrás dela. Segurou­a e colocou­a no carro, mas os pés da menina continuaram a
dançar, dando pontapés na velha senhora. Finalmente, conseguiram tirar­lhe os sapatos, e só então os pés pararam.
Em casa, os sapatos foram postos num armário, mas Karen não podia deixar de fitá­los.
A  velha  senhora  adoeceu.  Dizia­se  que  não  sobreviveria.  Seu  estado  requeria  cuidados  e  tratamentos  especiais,  e
ninguém melhor que Karen para encarregar­se deles. Na cidade, porém, havia um grande baile, para o qual Karen
fora convidada. Ela olhou a velha senhora, que de qualquer modo não iria sobreviver, olhou os sapatos vermelhos, e
achou que não havia pecado em calçá­los. Calçou­os, e foi ao baile.
Começou a dançar, mas, quando queria ir para a direita, os sapatos a puxavam para a esquerda, e, quando quis subir
ao salão, os sapatos a levaram para fora, desceram a escada, atravessaram a rua e saíram pelo portal da cidade. Ela
dançava, não podia mais parar. E, dançando sempre, foi levada pelos sapatos até à sombria floresta.
Um  clarão  surgiu  entre  as  árvores.  Karen  julgou  que  fosse  a  lua,  mas  era  um  rosto,  o  rosto  do  velho  soldado  de
barba vermelha, que lhe disse: “Que lindos sapatos de baile!”
Apavorada, Karen quis arrancar os sapatos vermelhos, mas viu que eles estavam presos aos seus pés. Tirou as meias,
rasgando­as, mas os sapatos não saíam. Por menos que o quisesse, tinha ela de dançar, e saiu dançando por sobre
campos e prados, com sol e com chuva, dia e noite. À noite, porém, era mais horrível.
Dançando, sempre, Karen entrou no cemitério. Ali, os mortos não dançavam: tinham coisa melhor que fazer. Ela
quis  sentar­se  numa  sepultura  pobre,  onde  cresciam  samambaias  agrestes,  mas  para  ela  não  havia  repouso,  nem
sossego. Ao aproximar­se, dançando, da porta da igreja, que estava aberta, viu um anjo, de longa roupagem branca,
com asas, que lhe iam dos ombros até o chão. Seu rosto era grave e severo. E o anjo empunhava uma espada larga e
cintilante.
— Dançarás! — disse o anjo. — Dançarás com teus sapatos vermelhos, até estares pálida e fria, até tua pele enrugar­
se como a de um cadáver. Dançarás de porta em porta, e, onde morem crianças soberbas, vaidosas, baterás à porta,
para que te ouçam e tenham pavor de ti! Dançarás, dançarás sempre…
— Misericórdia! — implorou Karen.
Mas  não  ouviu  o  que  o  anjo  respondeu,  pois  os  sapatos  já  a  levavam,  através  do  portão,  aos  campos,  cruzando
caminhos e atalhos, fazendo­a dançar continuamente, sem interrupção.
Certa manhã, passou dançando, por uma porta que ela conhecia bem. Dentro da casa soavam salmos, e, no momento
em que ela passava, ia saindo um caixão enfeitado com flores. Karen soube, então, que a velha senhora falecera, e
sentiu­se abandonada por todos e amaldiçoada pelo anjo de Deus.
E  ela  dançava  sempre.  Sem  descanso,  sem  parar,  dançava  pela  noite  adentro.  Os  sapatos  a  levaram  por  sobre
espinheiros  e  tocos  de  árvores,  que  a  deixaram  coberta  de  sangue.  Dançando  através  de  um  tojal,  chegou  a  uma
casinha solitária. Lá, sabia, morava o carrasco. Bateu com o dedo na vidraça.
— Abre a porta! — disse ela. — Não posso entrar, pois estou dançando.
— Com certeza não sabes quem eu sou! — respondeu o carrasco. — Sou aquele que corta a cabeça dos maus, e sinto já
vibrar o meu machado!
— Não me cortes a cabeça! — pediu Karen. — Pois assim eu não poderia expiar o meu pecado! Corta meus pés, com
os sapatos vermelhos!
Confessou  todos  os  seus  pecados,  e  o  carrasco  cortou­lhe  os  pés  calçados  com  os  sapatos  vermelhos.  Os  sapatos
saíram dançando, com os pés cortados, pelo campo afora, e desapareceram na mata.
O homem esculpiu­lhe umas pernas de pau e umas muletas, ensinou­lhe um salmo cantado pelos pecadores, e ela,
depois de beijar a mão que vibrara o machado, saiu caminhando pelo campo.
— Sofri bastante pelos sapatos vermelhos — disse ela. — Agora, vou à igreja, para que todos me vejam.
Saiu andando tão depressa quanto podia, rumo à igreja, mas, ao chegar à porta, viu os sapatos vermelhos dançando
à sua frente. Retrocedeu, apavorada.
Passou a semana inteira entristecida. Chorou muito. Mas, quando chegou o domingo, disse de si para si: — “Já penei
e  sofri  muito.  Creio  que  sou,  agora,  tão  boa  como  muitos  dos  que  estão  sentados  lá  dentro  da  igreja”.  E  saiu,
resoluta. Não chegou, porém, a transpor a porta da igreja, pois lá estavam, de novo, os sapatos vermelhos, dançando
à sua frente. Aterrorizada, voltou, e arrependeu­se, do fundo do coração, do seu pecado.
Foi ao presbitério e pediu que a deixassem trabalhar ali, como criada, Prometeu ser diligente e fazer tudo quanto
pudesse; não fazia questão de ordenado, queria apenas ter um teto e estar entre gente boa. A mulher do pastor teve
pena dela e lhe deu serviço. Ela era paciente, trabalhava muito, e pensava mais ainda. Ficava muda, ouvindo, quando,
à noite, o padre lia em voz alta a Bíblia. Todas as crianças gostavam muito dela. Mas quando falavam de adornos e de
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13/07/2016 Os sapatinhos vermelhos (por Hans Christian Andersen)

vestidos bonitos, de como ser linda como uma rainha, ela meneava tristemente a cabeça.
No domingo seguinte, foram todos à igreja. Perguntaram­lhe se ela não queria ir também com eles. Karen, porém,
olhando, com lágrimas nos olhos, as suas muletas, teve de ficar. Enquanto os outros foram ouvir a palavra de Deus,
ela recolheu­se, sozinha, ao quarto. Este era tão pequeno que dava exatamente para caber uma cama e uma cadeira.
Karen sentou­se ali com o seu livro de salmos. E quando ela, com pensamentos piedosos, o lia, o vento trouxe até ela
os sons do órgão da igreja. Karen ergueu o rosto coberto de lágrimas e suplicou: “Ajudai­me, meu Deus!”
Num  clarão  de  luz  solar  apareceu­lhe  então  o  mesmo  anjo  de  roupagem  branca,  que  ela  vira  à  porta  da  igreja,
naquela noite horrível. Não empunhava mais a grande espada, mas um lindo ramo verde, cheio de rosas; tocou com
ele o teto, que se elevou em abóbada, onde brilhava uma estrela dourada. Tocou as paredes, que se distenderam, e
Karen viu o órgão tocando, viu os velhos retratos dos sacerdotes e de suas esposas: os fiéis estavam sentados nas
cadeiras enfeitadas, e cantavam salmos. A própria igreja viera até a pobre menina, no seu pequeno quarto. Ou seria
que  ela  se  achava,  de  repente,  na  igreja?  Viu­se  na  cadeira,  ao  lado  das  pessoas  da  família  do  pastor,  e.  quando
terminaram de cantar o salmo e ergueram os olhos, todos lhe fizeram um sinal de aprovação, dizendo: “Que bom
teres vindo, Karen!”
— Foi uma graça! — respondeu ela.
O órgão soava, e ternas eram as vozes das crianças no coro. A clara luz do sol entrava, cálida, pelas janelas da igreja.
Também o coração de Karen se encheu de sol, de paz e alegria. Sua alma voou para Deus, num raio de sol. E ninguém
mais perguntou pelos sapatos vermelhos.
Postado há 1st November 2012 por Arthur Buchsbaum

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