1st November 2012 Os sapatinhos vermelhos (por Hans Christian Andersen)
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Era uma vez uma menina, bonitinha e delicada, que no verão tinha de andar sempre descalça, pois era pobre, e no
inverno tinha de usar grandes sapatos de madeira, que lhe deixavam o tornozelo vermelho e dolorido.
Na aldeia morava a velha sapateira. De velhas tiras vermelhas de vestidos, ela fez, como melhor pôde, um par de
sapatos. Eram estes, na realidade, bem grosseiros, mas feitos com a melhor das intenções, para serem presenteados
à menina, que se chamava Karen.
Precisamente no dia em que sua mãe foi enterrada, Karen recebeu os sapatos vermelhos, e pela primeira vez os
calçou. Não eram muito adequados para o luto, mas ela não tinha outros; e, com eles nos pés, sem meias, Karen
acompanhou o pobre e tosco caixão da sua mãe.
Naquele momento, passava uma grande e antiga carruagem, na qual ia uma nobre e velha senhora. Esta, vendo a
menina, teve pena dela, e pediu ao padre que lhe confiasse a órfã, prometendo que a trataria bem.
Karen pensou que tudo era por causa dos sapatos vermelhos. A velha senhora, porém, disse que eles eram horríveis,
e queimouos. Karen passou a andar bem vestida, teve de aprender a ler e a costurar, e todos diziam que ela era
bonita. No entanto, o espelho ia além: “És mais que bonita; és formosa.”
Certa vez, a Rainha percorreu o país, levando em sua companhia a sua filhinha, que era princesa. O povo aglomerou
se em frente ao palácio, e Karen também lá estava. A princesinha, num luxuoso vestido branco, assomou à janela,
deixandose ser vista pelo povo. Não tinha ela vestido de cauda, nem coroa de ouro na cabeça; mas calçava lindos
sapatos vermelhos, de marroquim. Como eram diferentes daqueles que a velha sapateira da aldeia costurara para
Karen! Sim: nada neste mundo se podia comparar a uns sapatos vermelhos!
Karen atingiu a idade de ser crismada. Recebeu vestidos novos, e devia ganhar também sapatos novos. O melhor
sapateiro na cidade tomou a medida do pezinho dela. Na sapataria dele havia grandes armários com portas de vidro,
onde se exibiam graciosos sapatos e botinas muito polidas. Era tudo bonito ali, mas a velha senhora não enxergava
bem; por isso, não sentia prazer nenhum diante daquilo. Entre os sapatos enfileirados havia um par vermelho,
exatamente igual ao que a princesa usava. Que sapatos lindos! O sapateiro declarou que haviam sido feitos para a
filha de um conde, mas não tinham servido.
— Devem ser de verniz — disse a velha, olhandoos de perto. — São tão brilhantes!
— São muito brilhantes, sim — confirmou Karen.
Os sapatos lhe serviram, e foram comprados. Mas a velha senhora não sabia que eram vermelhos, embora lhes
notasse as cintilações do verniz. Do contrário, não teria permitido que Karen fosse ao Crisma com sapatos
vermelhos. Mas foi exatamente o que fez a menina.
Toda a gente olhava para os pés dela. Quando ela atravessou a igreja, para ir ao coro, pareceulhe que até os velhos
retratos coloridos nas sepulturas — retratos de sacerdotes e de suas esposas, com golas e trajes pretos — não
despregavam os olhos dos seus sapatos vermelhos. E só nos sapatos ela pensava, quando o padre lhe pôs a mão na
cabeça e, falando do sagrado batismo, e da aliança com Deus, disse que, dali por diante, depois do crisma, ela seria
uma pessoa adulta. O órgão soava, solene, as vozes das crianças elevavamse, no coro, juntamente com a do velho
cantor da igreja, mas Karen só pensava nos sapatos vermelhos.
À tarde, por ouvilo de todos, já a velha senhora sabia que os sapatos eram vermelhos. Censurou a menina, dizendo
lhe que aquilo era feio, que não ficava bem, e que Karen, daquele dia em diante, quando fosse à igreja, deveria ir com
sapatos pretos, mesmo que fossem velhos.
No domingo seguinte, havia missa, e Karen, olhando alternadamente para os sapatos pretos e os sapatos
vermelhos… acabou por calçar estes.
Era um belo dia ensolarado. Karen e a velha senhora iam pelo atalho, entre os trigais, onde havia muita poeira.
Junto à porta da igreja estava parado um velho soldado, de muletas, com uma estranha barba comprida, mais
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vermelha que branca; inclinandose até o chão, ele perguntou à velha senhora se podia limparlhe os sapatos.
Também Karen estendeulhe o seu pezinho.
— Que lindos sapatos de baile! — disse o soldado. — Que fiquem firmes no pé, quando dançarem! — acrescentou,
dando uma palmada na sola dos sapatos.
A velha senhora deu uma moedinha ao soldado e entrou com Karen na igreja.
Lá dentro, todo mundo olhou para os sapatos vermelhos de Karen, e até mesmo as imagens como os fitaram.
Quando Karen se ajoelhou ante o altar e levou o cálice de ouro aos lábios, pensou nos sapatos vermelhos: era como
se estes boiassem no cálice à sua frente. Ela se esqueceu, até, de cantar o salmo e de rezar o “Padre Nosso”.
Depois, todos os fiéis saíram da igreja, e a velha senhora entrou na sua carruagem. Karen ergueu o pé, para subir
logo atrás dela, e o velho soldado, que estava ali pertinho, repetiu sua observação anterior.
— Vejam só, que lindos sapatos de baile!
Ouvindoo, Karen não pôde deixar de executar alguns passos de dança. Mal o fez, porém, os pés continuaram
sempre a dançar: parecia que os sapatos os dominavam. Dançando sempre, ela contornou o ângulo da igreja, sem
querer; o cocheiro teve de correr atrás dela. Seguroua e colocoua no carro, mas os pés da menina continuaram a
dançar, dando pontapés na velha senhora. Finalmente, conseguiram tirarlhe os sapatos, e só então os pés pararam.
Em casa, os sapatos foram postos num armário, mas Karen não podia deixar de fitálos.
A velha senhora adoeceu. Diziase que não sobreviveria. Seu estado requeria cuidados e tratamentos especiais, e
ninguém melhor que Karen para encarregarse deles. Na cidade, porém, havia um grande baile, para o qual Karen
fora convidada. Ela olhou a velha senhora, que de qualquer modo não iria sobreviver, olhou os sapatos vermelhos, e
achou que não havia pecado em calçálos. Calçouos, e foi ao baile.
Começou a dançar, mas, quando queria ir para a direita, os sapatos a puxavam para a esquerda, e, quando quis subir
ao salão, os sapatos a levaram para fora, desceram a escada, atravessaram a rua e saíram pelo portal da cidade. Ela
dançava, não podia mais parar. E, dançando sempre, foi levada pelos sapatos até à sombria floresta.
Um clarão surgiu entre as árvores. Karen julgou que fosse a lua, mas era um rosto, o rosto do velho soldado de
barba vermelha, que lhe disse: “Que lindos sapatos de baile!”
Apavorada, Karen quis arrancar os sapatos vermelhos, mas viu que eles estavam presos aos seus pés. Tirou as meias,
rasgandoas, mas os sapatos não saíam. Por menos que o quisesse, tinha ela de dançar, e saiu dançando por sobre
campos e prados, com sol e com chuva, dia e noite. À noite, porém, era mais horrível.
Dançando, sempre, Karen entrou no cemitério. Ali, os mortos não dançavam: tinham coisa melhor que fazer. Ela
quis sentarse numa sepultura pobre, onde cresciam samambaias agrestes, mas para ela não havia repouso, nem
sossego. Ao aproximarse, dançando, da porta da igreja, que estava aberta, viu um anjo, de longa roupagem branca,
com asas, que lhe iam dos ombros até o chão. Seu rosto era grave e severo. E o anjo empunhava uma espada larga e
cintilante.
— Dançarás! — disse o anjo. — Dançarás com teus sapatos vermelhos, até estares pálida e fria, até tua pele enrugar
se como a de um cadáver. Dançarás de porta em porta, e, onde morem crianças soberbas, vaidosas, baterás à porta,
para que te ouçam e tenham pavor de ti! Dançarás, dançarás sempre…
— Misericórdia! — implorou Karen.
Mas não ouviu o que o anjo respondeu, pois os sapatos já a levavam, através do portão, aos campos, cruzando
caminhos e atalhos, fazendoa dançar continuamente, sem interrupção.
Certa manhã, passou dançando, por uma porta que ela conhecia bem. Dentro da casa soavam salmos, e, no momento
em que ela passava, ia saindo um caixão enfeitado com flores. Karen soube, então, que a velha senhora falecera, e
sentiuse abandonada por todos e amaldiçoada pelo anjo de Deus.
E ela dançava sempre. Sem descanso, sem parar, dançava pela noite adentro. Os sapatos a levaram por sobre
espinheiros e tocos de árvores, que a deixaram coberta de sangue. Dançando através de um tojal, chegou a uma
casinha solitária. Lá, sabia, morava o carrasco. Bateu com o dedo na vidraça.
— Abre a porta! — disse ela. — Não posso entrar, pois estou dançando.
— Com certeza não sabes quem eu sou! — respondeu o carrasco. — Sou aquele que corta a cabeça dos maus, e sinto já
vibrar o meu machado!
— Não me cortes a cabeça! — pediu Karen. — Pois assim eu não poderia expiar o meu pecado! Corta meus pés, com
os sapatos vermelhos!
Confessou todos os seus pecados, e o carrasco cortoulhe os pés calçados com os sapatos vermelhos. Os sapatos
saíram dançando, com os pés cortados, pelo campo afora, e desapareceram na mata.
O homem esculpiulhe umas pernas de pau e umas muletas, ensinoulhe um salmo cantado pelos pecadores, e ela,
depois de beijar a mão que vibrara o machado, saiu caminhando pelo campo.
— Sofri bastante pelos sapatos vermelhos — disse ela. — Agora, vou à igreja, para que todos me vejam.
Saiu andando tão depressa quanto podia, rumo à igreja, mas, ao chegar à porta, viu os sapatos vermelhos dançando
à sua frente. Retrocedeu, apavorada.
Passou a semana inteira entristecida. Chorou muito. Mas, quando chegou o domingo, disse de si para si: — “Já penei
e sofri muito. Creio que sou, agora, tão boa como muitos dos que estão sentados lá dentro da igreja”. E saiu,
resoluta. Não chegou, porém, a transpor a porta da igreja, pois lá estavam, de novo, os sapatos vermelhos, dançando
à sua frente. Aterrorizada, voltou, e arrependeuse, do fundo do coração, do seu pecado.
Foi ao presbitério e pediu que a deixassem trabalhar ali, como criada, Prometeu ser diligente e fazer tudo quanto
pudesse; não fazia questão de ordenado, queria apenas ter um teto e estar entre gente boa. A mulher do pastor teve
pena dela e lhe deu serviço. Ela era paciente, trabalhava muito, e pensava mais ainda. Ficava muda, ouvindo, quando,
à noite, o padre lia em voz alta a Bíblia. Todas as crianças gostavam muito dela. Mas quando falavam de adornos e de
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vestidos bonitos, de como ser linda como uma rainha, ela meneava tristemente a cabeça.
No domingo seguinte, foram todos à igreja. Perguntaramlhe se ela não queria ir também com eles. Karen, porém,
olhando, com lágrimas nos olhos, as suas muletas, teve de ficar. Enquanto os outros foram ouvir a palavra de Deus,
ela recolheuse, sozinha, ao quarto. Este era tão pequeno que dava exatamente para caber uma cama e uma cadeira.
Karen sentouse ali com o seu livro de salmos. E quando ela, com pensamentos piedosos, o lia, o vento trouxe até ela
os sons do órgão da igreja. Karen ergueu o rosto coberto de lágrimas e suplicou: “Ajudaime, meu Deus!”
Num clarão de luz solar apareceulhe então o mesmo anjo de roupagem branca, que ela vira à porta da igreja,
naquela noite horrível. Não empunhava mais a grande espada, mas um lindo ramo verde, cheio de rosas; tocou com
ele o teto, que se elevou em abóbada, onde brilhava uma estrela dourada. Tocou as paredes, que se distenderam, e
Karen viu o órgão tocando, viu os velhos retratos dos sacerdotes e de suas esposas: os fiéis estavam sentados nas
cadeiras enfeitadas, e cantavam salmos. A própria igreja viera até a pobre menina, no seu pequeno quarto. Ou seria
que ela se achava, de repente, na igreja? Viuse na cadeira, ao lado das pessoas da família do pastor, e. quando
terminaram de cantar o salmo e ergueram os olhos, todos lhe fizeram um sinal de aprovação, dizendo: “Que bom
teres vindo, Karen!”
— Foi uma graça! — respondeu ela.
O órgão soava, e ternas eram as vozes das crianças no coro. A clara luz do sol entrava, cálida, pelas janelas da igreja.
Também o coração de Karen se encheu de sol, de paz e alegria. Sua alma voou para Deus, num raio de sol. E ninguém
mais perguntou pelos sapatos vermelhos.
Postado há 1st November 2012 por Arthur Buchsbaum
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