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Danielle Perin Rocha Pitta
INICIAÇÃO À TEORIA
DO IMAGINÁRIO
DE
GILBERT DURAND
2a Edição
EDITORA CRV
Curitiba - Brasil
2017
Copyright O da Editora CRV Ltda.
Editor-chcfc: Railson Moura
Diagramaçào e Capa: Editora CRV
Imagem da capa: O Jardim das Delícias Terrenas - Hieronymus BOSCH
(1504) - Museu do Prado - Madrid
Revisão: A Autora
PnSI
Bibliografia
ISBN 978-85-444-1481-1
CDD 128.3
Índice para catálogo sistemático
1 Antropologia 128.3
^ WSPONlVELNO jí 0 Baixar na
W Google Play V AppStore
2017
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
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Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Olivcr Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)
PREFÁCIO ........... 11
Alberto Filipe Araújo
REFERÊNCIAS 95
O dever de imaginar
Você já teve a oportunidade de ver, ou já ouviu falar nas
diferenças existentes entre os esqueletos humanos nas diversas
culturas? No Musée cie 1'Homme, em Paris, por exemplo, pode-se
ver crânios achatados, outros alongados, outros ainda afundados no
meio para formar uma divisão; existem também pés com as falan
ges dos dedos torcidas; e várias outras deformações do esqueleto.
Depois do esqueleto, muitas culturas modificam também a
pele através de cortes ou deformações: esticam-se os lábios, o
pescoço ou as orelhas, fazem-se perfurações, tatuagens e escarifi-
cações. Chegando-se, então, à modificação mais superficial deste
corpo através da roupa, do tratamento do cabelo e da maquilagem.
Mas o que leva o ser humano a tanto modificar o que foi
feito pela natureza? Certamente seria difícil dar uma explicação
baseada na utilidade dessas modificações. Na verdade, por estas
ações, o homem está exercendo uma faculdade que lhe é própria,
que é a de dar sentido ao mundo, ao universo.
Para criar sentido, entretanto, ele põe em atividade uma
função da mente que é a imaginação.
A razão, outra função da mente, permite sem dúvida analisar
os fatos, compreender a relação existente entre eles, mas não
cria significado. Para que a criação ocorra é necessário imaginar.
E o que fazem, na sociedade ocidental, os filósofos, os cientistas
sociais, os estudiosos das religiões, os políticos, os arquitetos,
os físicos, os matemáticos... e o homem da rua no seu cotidiano.
Todas as culturas criam filosofias, teorias, religiões, obras de
arte... Recriam, a cada instante, o universo.
A ciência, como conhecimento, pode ser obtida seguindo-se
os mais variados caminhos. Nas ciências humanas, durante mui
tos anos, optou-se por um caminho calcado naquele das ciências
naturais e que se acreditava ser racional e objetivo.
Atualmente, as diversas críticas às diversas teorias, a auto
crítica do próprio Ocidente diante dos fatos históricos (guerras,
conflitos, miséria, etc.) e as modificações do pensamento sobre o
18
5 Ortografia aqui proposta, considerando que a tradução de schème por esquema está
equivocada.
INICIAÇÃO Á TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND - 2a Edição 23
Os símbolos convergem
As imagens vêm se organizar em torno de um “núcleo”
e formam constelações, convergindo a um só tempo em torno
de imagens de gestos, de schemes, e em torno de objetos pri
vilegiados pela sensibilidade.
O objetivo inicial da tese de G. Durand era o de estabelecer
uma relação de imagens colhidas em culturas diversas. Para tanto,
o autor fez um levantamento de imagens em grande número de
culturas, nas mitologias, nas artes, seja na literatura ou nas artes
plásticas: é para organizar o material obtido que o autor parte
da ideia da existência do “trajeto antropológico”, ou seja, uma
maneira própria para cada cultura de estabelecer a relação exis
tente entre a sua sensibilidade (pulsões subjetivas) e o meio em
que vive (tanto o meio físico como histórico e social).
O trajeto antropológico pode partir tanto do culturalmente
construído como do natural psicológico, o essencial da represen
tação c do símbolo estando contido entre estas duas dimensões.
Uma vez levantadas as imagens, na tentativa de classifica
das, o autor percebe que estas se dividem em dois grupos que
se distinguem pelo seu significado fundamental. Seguindo a
distinção efetuada anteriormente por outros filósofos, G. Durand
reagrupa as imagens em dois “regimes”: o diurno e o noturno.
Esta classificação leva em conta a existência de uma maneira de
organizar, de um dinamismo, próprios a cada cultura, dinamismo
esse que se encontra na base das organizações (convergências)
dos símbolos que formam as constelações de imagens.
Seguindo uma lógica própria, os símbolos se reagrupam em
torno de núcleos organizadores. As constelações de imagens são
estruturadas por isomorfismo dos símbolos convergentes. Por
exemplo: a imagem do movimento de ondulação faz com que as
ondas da água vão remeter às ondas dos cabelos, cabelos longos,
femininos, que por sua vez se ligam à dimensão de feminidade da
água, imagens todas convergindo também em tomo da passagem
do tempo, passagem das águas do rio, que vão e nunca voltam.
Finalmente, antes de se dar início ao detalhe da teoria,
deve-se levar em conta a hipótese segundo a qual “existe uma
estreita concomitância entre os gestos do corpo, os centros
nervosos e as representações simbólicas”.
26
Os semblantes do tempo
Para falar da dimensão simbólica é necessário ter em mente
que o símbolo se caracteriza pela sua ambiguidade e pelo sem fim
de seus significados. De maneira que, a seguir, serão vistos somente
os aspectos angustiantes dos elementos citados, os aspectos positi
vos dos mesmos fazendo parte de outras constelações de imagens.
Ligados por uma lógica própria, os símbolos expressando
a angústia se dividem em três grandes temas:
1
A estrutura mística do imaginário
A palavra mística não deve ser entendida aqui com um
sentido religioso, mas no seu sentido mais comum que significa
“construção de uma harmonia*1, na qual “se conjugam uma von
tade de união e um certo gosto pela secreta intimidade”. Aqui não
se trata mais de polêmica, mas de quietude e gozo. Para atingir
tal objetivo, o procedimento vai ser o da eufemização e inversão
dos significados simbólicos.
* Símbolos de inversão:
— expressão do eufemismo: trata-se de desdramatizar o
conteúdo angustiante de uma expressão simbólica, invertendo o
seu significado: o abismo não é mais o buraco sem fundo onde
se perde a vida, mas o receptáculo (aquilo que contem), a taça.
A linguagem do eufemismo é obrigatoriamente ambígua, já que
ela procede por inversões. O isomorfismo dos símbolos do eu
femismo leva das figuras femininas para a profundeza aquática,
para o alimento, o plural, a riqueza, a fecundidade;
Se, para o regime diurno, o “puro“ significava ruptura e
separação, para o regime noturno ele vai significar ingenuidade,
origem. O corpo, com sua interioridade morna e obscura, passa
INICIAÇÃO À TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND - 2a Edição 33
* Símbolos da intimidade
- o túmulo e o repouso: com a sua capacidade de eufemi-
zação, a estrutura mística vai transformar o túmulo em local de
repouso desejado, justa recompensa de uma vida agitada. Assim a
morte não é mais destruição definitiva do ser, mas um retorno ao
berço, local de calma e felicidade. A morte se torna um retorno
ao lar. “Em numerosas culturas, na Escandinávia, por exemplo,
o doente ou o moribundo é revigorado pelo sepultamento ou pela
simples passagem por uma fenda rochosa. Enfim, vários povos
sepultam seus mortos em posição do aconchego fetal, marcando
r
34
* Símbolos cíclicos:
O tempo cíclico não tem começo nem fim, já que são as
fases (uma ascendente e outra que descendente) do círculo que
o formam. Deste modo a morte não é mais fim, mas recomeço,
renascimento. Os símbolos se reagrupam de forma a dominar
o tempo: o recomeço dos períodos temporais, a regeneração,
a repetição do ato criador presente em todas as mitologias (no
Ocidente, apesar da predominância de um tempo linear, várias
festas correspondem a rituais de regeneração: por exemplo o
Ano Novo, as festas juninas e o carnaval); é neste contexto que
se equilibram os contrários.
Grande número de culturas expressa nos seus mitos a pre
ocupação em equilibrar os contrários: para os índios Fulni-ô
(Estado de Pernambuco), por exemplo, o mundo foi criado por
36
i
INICIAÇÃO À TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND - 2a Edição 39
Métodos do Imaginário
Uma das grandes qualidades desta teoria é, sem dúvida,
a de ter desembocado em vários instrumentos metodológicos
adaptáveis aos mais diversos objetos de estudo:
Yves Durand criou o AT-9, arquétipo teste de 9 elementos, a
partir das “estruturas antropológicas do imaginário”. Permitindo
ao indivíduo transformar arquétipos universais em símbolos
situados numa vivência individual e coletiva específica, ele se
torna uma preciosa fonte de dados para a análise comparada de
culturas. Permite, igualmente, o estudo de um elemento em par
ticular (por exemplo, o significado do fogo), nas suas dimensões
de representação, função e simbolismo; ou de uma dinâmica
social, no caso da análise actancial que pode ser feita, mostrando
a maneira de lidar com a angústia existencial de um grupo dado.
A mitocrítica, análise de uma obra ou de um texto (inclusive
de história de vida) a partir das redundâncias que remetem aos
mitos diretores em ação.
A mitanálise, que vai situar os resultados da mitocrítica em
um contexto sociocultural definido.
Estes métodos têm sido empregados, no Brasil, em Antropo
logia e Comunicação (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre
o Imaginário - UFPE, o Imaginalis - Grupo de Estudos sobre
Comunicação e Imaginário, UFRGS), em Educação (CICE da USP
e o LIRES da UGF do Rio de Janeiro), em Linguística (NELIM
- Núcleo de Estudos de Eco-linguística e Imaginário - UFG), em
História (Videlicet - UFPB), em Sociologia (UFPB - UNIR), em
Artes (várias universidades), nas organizações (Grupo de Pesquisas
Imaginário, Gestão e Cultura - UEC), entre muitos outros6.
Ao término desta exposição, três aspectos da teoria podem
ser destacados. Um diz respeito à formação do trajeto antropo
lógico: deve-se ter em mente que é o contexto sociológico que
modela os arquétipos e os símbolos. Os schemes, na base da
dimensão cultural, orientam a ação, mas as imagens concretas
presentes nas artes, nas mitologias, nos relatos diversos (orais
ou escritos), adquirem contornos específicos em relação ao
contexto (meio ambiente) social.
7 Os textos que seguem são uma tradução de parte do livro de Joél Thomas (dir.):
Introduction aux méthodologies de l’imaginaire. Paris: Ellipses, 1998.
42
Método
As obras consagradas às imagens, a partir de 1938, não
deixam, portanto, de desconcertar. Cada uma delas, fortemente
marcada por uma evolução flexível do vocabulário e das refe
rências. apresenta-se como um entrelaçamento - sedutor ou
irritante, dependendo do leitor - de comentários de documentos,
de proposições teóricas, de notas de dicionário de símbolos, de
antologias de textos literários exemplares, senão de lembranças
autobiográficas. Esse pensamento poli fônico prejudica sem dúvida
o rigor e a sistematizaçào da pesquisa, mas ilustra também a pre
ocupação metodológica de uma aproximação global das imagens.
Quanto mais as produções conceituais, que são as fragmentações
do real, deixam-se analisar abstratamente (em ciências ou em
filosofia), mais as imagens, que são as representações totalizan-
tes, resistentes à separação do sujeito e do objeto, exigem um
método de aproximação adequado e sutil para não desnaturá-las.
As imagens devem, de fato, ser estudadas por outras imagens, o
que implica igualmente uma escrita, um estilo poético adaptado,
tão típico de suas obras. No lugar de se contentar em sintetizar
uma vasta cultura erudita tirada de leituras (sobre as mitologias
religiosas, os casos patológicos etc.), Bachelard quer experi
mentar por ele mesmo, senão sobre ele mesmo, as imagens, seja
dentro dos devaneios espontâneos, seja na leitura atenta, para
reencontrar fenomenologicamente os processos da imaginação
criadora. Pois o filósofo e, sobretudo o crítico literário que quer
compreender as imagens dos textos poéticos, deve começar por
sonhar ele mesmo e se engajar em uma exploração subjetiva
que permitirá revelar as propriedades objetivas dos devaneios.
Isso porque, depois de ter aprendido muito com elas, Bachelard
testemunha uma desconfiança orgânica em relação aos métodos
frios, sempre contaminados demais pelos conceitos, em particular
aqueles da psicanálise. Pois os psicanalistas se colocam quase
i
INICIAÇÃO À TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND - 2a Edição 43
Fisionomia da imagem
Bachelard adquiriu muito cedo a convicção de que as ima
gens formam a instância imediata e universal do psiquismo; o
conceito sendo sempre segundo, pois construído a partir de uma
oposição às imagens. Mas não há imagens sem imaginação, sem
um processo que as inicie, as anime, as deforme, criando sempre
imagens novas . A imaginação é “a capacidade de deformar as
imagens fornecidas pela percepção, ela é, sobretudo, a faculdade
de nos libertar das imagens primeiras, de mudar as imagens” (AS
5; e também 140, 216; ER 25), ou seja, de produzir um imagi
nário. O psiquismo é, pois, fundamentalmente ativo, criador,
sempre em busca de novidade, de passagem do limite em direção
a uma imagem maior, mais intensa, uma vez que o próprio da
imaginação é fazer as imagens mudarem de escala, em direção ao
pequeno (Liliput, TRR 12 ss.) e, sobretudo em direção ao grande
(Gulliverização, TRV 387). A potência da imaginação se mede
precisamente por essa ampliação à dimensão do cosmos de seu
mundo interior “existe a atividade da imaginação quando há uma
tendência a passar para o nível cósmico“ (AS 295, e também ER
75, TRV 82, 157), que dá conta da tendência poética em exagerar
a expressão imagética.
Tal força criadora de imagens é ela mesma subtendida,
como em Schopenhauer, por uma vontade de viver, um querer-
-viver primitivo, princípio da vida espiritual. Pois a imaginação
está antes a serviço de uma energia vital que lhe confere uma
causalidade criadora e que a coloca a serviço de seus ritmos
próprios de avanço e de relaxamento (TRR 87). E porque ela
8 As referências entre parênteses foram tiradas das cinco obras consagradas aos ele
mentos, nas seguintes edições: La psychanalyse du feu (PF), Paris: Gallimard, Folio,
Essais, 1997; L'Air et les songes (AS), Paris : Le livre de poche, Biblio, Essais, 1992;
L'Eau et les rèves (ER), Paris: Le livre de Poche, Biblio, Essais, 1993; La terre et
les réveries de Ia volonté (TRV), Paris: Corti. 1980; La terre et les rêveries du repos
(TRR), Paris : Corti, 1997.
44
i
a interesses primordiais do sujeito vivo, bem distante de toda
avaliação utilitária (ER 88) que confere às ações e aos objetos
valores passionais (TRV 130, 229, 384; TRR 41), destinados a
satisfazer os desejos psíquicos (de beleza, por exemplo, AS 340)
e mesmo físicos do eu (ER 16, 135). A valorização imaginária
constitui então o meio pelo qual o mundo se anima, é tirado de
sua indiferença. “A imaginação não designa seus objetos. Ela os
elogia ou os deprecia” (TRV 314). A imaginação opõe então à
natureza das coisas o real, que a ciência procura conhecer, um
mundo estritamente irreal, surreal. mas que tem a mesma con
sistência, a mesma realidade que o real objetivo (TRR 82). Pois
a imaginação envolve suas imagens de cargas afetivas, atraentes
ou repulsivas, que fazem do mundo sonhado um mundo de alta
densidade emocional. É por isso que a imaginação vai sempre em
direção aos devaneios felizes, porque ela é, afinal de contas, a res
posta do querer-vi ver à dificuldade de viver na realidade exterior.
t
INICIAÇÃO A TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND - 2a Edição 47
A imaginação criadora
Como dar conta então do poder criador da imaginação, como
ela chega a enriquecer e a transformar as imagens? A atividade
onírica se apoia dc fato em duas fontes, o inconsciente pessoal
e as profundezas do eu, por um lado, e as formas, as forças e as
matérias da natureza, por outro, que se correspondem, trocam seus
conteúdos, confundem-se como um modelo e seu duplo em espe
lho, cada polo podendo ser, altemadamente, o modelo ou a cópia.
Bachelard, desconfiado quanto às racionalizações próprias
às explicações dos psicanalistas, retém entretanto a maior parte
da bagagem geral dc Freud e principalmentc da psicologia das
profundezas de Jung. O inconsciente constitui o fundo original
das imagens (TRV 395, TRR 167), mesmo se os determinismos
pulsionais nunca são suficientes para dar conta da significação
das imagens do devaneio, e se a atividade do Sobre-Eu (Sur-
-Moi) - que marca a influência da sociedade sobre o inconsciente
- é normalmente julgada inútil para dar conta do “inconsciente
natural44 (TRV 297, e também ER 154). A criação de imagens
poéticas supõe, entretanto, sempre uma operação de “sublimação44,
termo recorrente mas pouco precisado por Bachelard (AS 12).
No entanto, para se transformar em imagem consistente, apta a
captar e a atualizar um arquétipo, a imagem precisa ser adicionada
a objetos exteriores, naturais e fabricados, que virem ocasiões para
fixar, para projetar imagens e então atualizar interesses e valores
(TRV 290 e TRR 267). O imaginário desses objetos, sua capacidade
de ocasionar devaneios, deriva de três características: “formal,
material e dinâmica” (TRV 392 e também ER 181). Se Bachelard
minimiza claramenle a importância do imaginário das formas dos
objetos, muito racionalizáveis (AS 31, 78, 107; ER 101, 149, 155;
TRV 94, 101; TRR 211), ele se prende longamente à imaginação
material, e, cada vez mais, à imaginação dinâmica, que se casa
mais intimamente com a atividade do psiquismo.
i
INICIAÇÃO À TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND - 2a Edição 53
Fontes e influências
A obra de Bachelard, largamente engajada em uma psico
logia do conhecimento considerada como um processo contínuo
de desconstrução e de reconstrução, em uma linha que leva
assintaticamente à coisa em si, continua sendo uma filosofia da
qual retoma as grandes problemáticas e as grandes filiações. Sua
concepção do imaginário faz bastante eco com a cosmologia dos
pré-socráticos, com as relações da razão e da imaginação nos
pensadores do Renascimento, com as instituições e as operações
de alquimia, enquanto conjugava materialismo e espiritualismo
(TRV 240 ss.; TRR 44 ss.), com as teorias do idealismo alemão
(Fichte, Hegel, Schelling) e, enfim, com as idéias de Schope-
nhauer, de Nietzsche e de Freud. Se Bachelard utilizou de uma
história da razão das Luzes (Lumières) para clarear a ideia de uma
progressão contínua da razão nas ciências, enquanto isso tomou
o partido de um certo romantismo para penetrar nos arcanos da
imaginação criadora, designada para criar um mundo surreal,
que seria o pendente do inundo real reconstruído pelo conceito.
54
9 Cf. M. -L. Colonna, “Sur le versanl psychologique du nombre", Prisma, VIII, 2, Poitiers,
Juillet-décembre 1992.
INICIAÇÃO À TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND - 2a Edição 55
11 Assinalemos que, para Eliade, dizer isso não é querer provar um a priori espiritualista,
mas levar em conta as experiências observadas, em todo lugar e sempre, na história
das culturas e das civilizações.
12 Cf. Images et symboles, p. 24.
13 G. Durand, Les structures de Fimaginaire, p. 64.
14 Cf. Ia parte, cap. III, Enjeux et prospectives. Eimaginaire et les autres concepts explo-
ratoires: systématique et complexité, p. 161 ss.
1
58
O mito heroico
Dentre os mitos, o mito heroico tem um estatuto particu
lar, privilegiado na obra de Eliade. E que ele aparece como a
metaforizaçào do dinamismo organizador que liga o profano ao
sagrado, o fiel à comemoração do illud tenipus. Nisto, o relato
heroico é, fundamentalmente, iniciação, passagem (do latim
mire, "‘entrar em”). O herói mítico está investido de funções que
reencontramos em todas as culturas:
- Ele é aquele que. por sua andança, sua ascese, suas pro
vas. qualifica-se em uma “cavalaria”, ao mesmo tempo que ele
faz existir o mundo à sua volta, e normalmente ele o faz existir
nomeando-o, em sua função epônima. Ele exprime assim, sim
bolicamente. que o interior e o exterior formam somente um, e
que a conquista do espaço interior é indissociável daquele do
espaço geográfico. Dessa maneira, o herói, o cavaleiro, passam
seu tempo entre o centro (o eixo arquetipal) e uma periferia (a
“carne” do mundo encarnado; a floresta misteriosa), sem nunca
se situar em um ou no outro. O sentido está no movimento, na
relação, enquanto que o rei, que garante as proezas do herói
ou do cavaleiro, quase não se mexe.
- Ele é aquele que, no decorrer de sua andança, opera uma
reviravolta, um movimento de ascese, contra a corrente e a in
clinação natural das coisas, quando nós nos deixamos levar por
elas. Enéas sobe o Tibre contra a corrente, antes de chegar no
sítio axial, fundador de Roma; e são as pegadas de um cavalo
com a ferradura de traz para frente que indicam a Perceval o
caminho para o Castelo do Graal. Eliade fala da familiaridade
dessa característica do herói com a yoga (que ele conhece bas
tante^): a yoga também se opõe ao instinto. Os asana não são
poses naturais. A concentração do yogui se orienta para uma
O esquema iniciático:
B - Vida, apogeu / C - Morte / A - (Re) nascimento, res
surreição se superpõe ao esquema biológico:
A - Nascimento / B - Vida, apogeu / C - Morte,
sem que eles sejam fundamentalmente diferentes: são os
mesmos, com um ponto de deca/agem (B toma o lugar de A). São
então duas descrições da complexidade do vivo em duas leituras,
todas duas verdadeiras, uma profunda, a outra superficial; o relato
mítico está aí para descobrirmos o esquema iniciático “profundo”.
A coincidentia oppositorum
Eliade conclui:
Não existe solução de continuidade entre as polaridades e
as oposições registradas ao nível da matéria, da vida, da psique
profunda, da linguagem ou da organização social - e o nível das
criações mitológicas e religiosas20.
Existe um continuam de energia do ser vivo, e o imaginário,
longe de ser do domínio do não existente, é uma presença real,
tão “verdadeira” quanto a matéria, e mesmo mais, pois ela é
transfigurativa e ativa.
O tempo
O tempo do mito é como o mito: complexo. Ele entrelaça
várias formas de tempo, como tantas descrições de u m a realidade
imperceptível (o arquétipo) que estará sempre além do olhar que
os homens podem ter sobre ela. Assim, o mito se apresenta por
meio de no mínimo três tempo: um tempo linear, o da história;
um tempo cíclico, o da repetição, e do retomo indefinido; e um
Bibliografia seletiva
Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fon
tes, 2002.
Le mythe de 1'éternel retour. Paris: Gallimard. 1989 [1949].
Le chamanisme et les techniques archaíques de 1'extase.
Paris : Payot, 1992 [1951].
Images et symboles. Paris: Gallimard, 1979 [1952].
Le yoga, immortalité et liberté. Paris : Payot, 1991 [1954].
Forgerons et alchimistes. Paris: Flammarion, 1977 [1956].
Mythes, rêves et mystères. Paris: Gallimard, 1989 [1957].
Aspects du mythe. Paris: Gallimard, 1988 [1963].
Le sacré el le profane. Paris: Gallimard, 1988 [1965].
Histoire des croyances et des idées religieuses. Paris: Payot.
1989 [1976-1983], 3 V.
Sobre Mircea Eliade
CJ-H. Rocquet. Mircea Eliade. L’Épreuve du labyrinthe
(Entretiens avec M. Eliade). Paris: Belfont, 1978.
Cahier de l'Herne. Mircea Eliade. Ouvr. Collec., Ed. de
FHeme, 1978.
A. Marino. L'Herméneutique de M. Eliade. Paris: Galli
mard, 1981.
D. Allen. Mircea Eliade et le phénomène religieux. Paris:
Payot, 1982.
Referências
Obras de Edgar Morin:
Paradigma perdido: a natureza humana. Portugal: Europa
América, 1973,
t. I (“Points Essais”, 1979).
INICIAÇÃO A TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND - 2a Edição 79
Gilbert Durand
H. Godinho
27 G. Durand, “A saída do século XX", A liberdade do espírito, n. 12, junho 1986, p. 72.
28 Ibid, p. 73.
INICIAÇÃO À TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND - 2a Edição 81
1
Durand considerava dois regimes, o diurno e o noturno. O regime
diurno corresponde às imagens provocadas a partir da dominante
postural e de seus schemes, e o regime noturno às imagens provo
cadas pela dominante da nutrição e seus schemes, também como
pela dominante copulativa e seu scheme cíclico. As estruturas do
regime diurno são de tipo esquizomorfo (separação, geometriza-
ção etc.) e as estruturas do regime noturno são de dois tipos: as
estruturas “místicas”, que recolhem as imagens da intimidade,
e as estruturas sintéticas, que reúnem as imagens do ciclo em
vários níveis. E esta a classificação que Gilbert Durand dá nessa
primeira e fundamental obra (As estruturas antropológicas do
imaginário); mais tarde, ele individualizará também as estruturas
sintéticas como um regime autônomo, e se questionará sobre a
pertinência da denominação de “sintéticos”, além de ficar em
dúvida entre “disseminatórios”, “diacrônicos” ou “dramáticos”.
Gilbert Durand sempre foi muito atento às ciências humanas
como também às ciências “exatas”, e mesmo às relações entre
os dois tipos de ciências. Ele se preocupará, por exemplo, com
os fundamentos fisiológicos do cérebro e de suas consequências
na criação de imagens, mas ele sempre insistirá sobre a noção
fundamental de “trajeto antropológico” como “lugar” de criação
das imagens. Uma das manifestações desse trajeto antropológico
já constituía sua hipótese de trabalho em livro primordial:
INICIAÇÃO Â TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND - 2a Edição 85
33 p. 133-56.
34 p. 229-42.
35 Paris, Corti: 1963.
INICIAÇÃO À TEORIA DO IMAGINÁRIO DE GILBERT DURAND - 2a Edição 87
Pois,
I
90
í
individual ou coletiva. Heróis e deuses se erigem então
como paradigmas verdadeiramente “compreensivos” do
objeto humano particular estudado39.
Bibliografia
Obras principais de Gilbert Durand
96
1
MAFFESOLI. M. (dir). La Galaxie de Plmaginaire. Berg
International. 1980.
PERIÓDICOS
Cahiers Internationaux de Symbolisme (Ed. Engelson - Genéve)
DICIONÁRIO
Dicionário de Símbolos - Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.
José Olympio Editora, 1988.
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