Resumo
Os debates sobre o objeto de estudo da Administração geralmente sugerem duas
possibilidades: a gestão ou a organização. Este artigo propõe, a partir de uma revisão
bibliográfica das principais obras do pensamento administrativo no século XX, uma análise
integrada das teorias de administração conduzida pela questão: Qual é o objeto de estudo da
administração? O debate epistemológico é dinamizado com algumas considerações sobre a
predominância da racionalidade instrumental nos modelos de gestão e no pensamento sobre as
organizações. Conclui-se que estes fatores foram determinantes para uma limitação do
entendimento da Administração, interferindo na compreensão de seu objeto.
1. Introdução
Se pensarmos em todo o conhecimento produzido pelo homem até hoje, nos deparamos logo
no início com uma impossibilidade. A quantidade de conhecimento acumulado pela
humanidade atingiu tal nível que não conseguimos sequer pensar neste todo. O homem
moderno, no entanto, encontrou meios de racionalizar esta produção, separando o todo em
partes, de forma a melhor compreender a realidade. A proposta cartesiana permitiu ao homem
dividir tudo em partes menores, o que resultou, no campo da construção do conhecimento, em
separar as ciências em campos distintos. Assim, se na Antiguidade, Aristóteles conseguiu
pensar e estudar Matemática e Filosofia de maneira integrada, na Modernidade isto pareceu
um desafio quase contraditório. Separamos as ciências exatas, das sociais, das biológicas, das
artísticas e construímos prédios separados para a produção do conhecimento em cada uma
delas. No campo das ciências sociais, a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia, a Política e a
Psicologia se estabeleceram como ciências com objetos de estudos distintos, e a
Administração, mais tardiamente foi se ajustando como ciência social aplicada.
Desde o seu surgimento, tal como conhecida hoje, entre o final do século XIX e início do
século XX, justamente o período em que o capitalismo se mostra em crise, a maior parte dos
interesses da Administração foi no sentido de profissionalizar cada vez mais a produção
dentro das organizações e garantir a continuidade da acumulação capitalista. Como a
disciplina nasce num sistema que valoriza a busca incessante do capital, nada mais provável,
que ela própria também se formalizar em torno do objetivo do capital. Por isso os teóricos da
Administração, desde esse período, preocuparam-se tanto em formular diferentes maneiras de
maximizar os lucros dos capitalistas através das empresas. Isto justifica também porque a
Administração tem sido estudada principalmente no âmbito das empresas e,
consequentemente, que os teóricos da área tenham considerado estas o seu objeto de estudo.
Chanlat (1999) lembra que “o triunfo ao mesmo tempo das idéias capitalistas como categorias
dominantes do pensamento econômico e do mercado como modo de regulação das trocas teve
como efeito imediato atribuir um espaço central à empresa” e que “esse culto à empresa, que
atingiu seu apogeu nos anos 80, teve duas consequências importantes: a difusão massiva dos
discursos e das práticas de gestão em setores mantidos até então fora da influência do ‘espírito
gestionário’ e o aumento considerável do número de estudantes em gestão em toda parte do
mundo” (p.16).
Os discursos sobre a gestão, no entanto, refletiram na maioria dos casos, a prática
administrativa das empresas, e se expandiram por outras esferas organizacionais como as
escolas, universidades, hospitais, administrações públicas, serviços sociais, museus, teatros,
associações musicais e até organizações sem fins lucrativos, como cita o próprio Chanlat.
Assim, cada vez mais, os modelos de gestão desenvolvidos dentro da lógica capitalista de
organização da produção foram permeando outras formas organizacionais e se definindo
como uma prescrição para o sucesso, tal como entendido pela empresa privada. Essa forma de
interpretar diversas realidades, a partir de um modelo dominante de gestão, baseada numa
racionalidade extremamente instrumental, demonstra que, embora a Administração tenha
aumentado o escopo de sua análise, incluindo organizações com dinâmicas diferentes das
empresas, não ampliou na mesma proporção seu arcabouço teórico para compreender os
diversos fenômenos organizacionais. Essa limitação se refletiu consequentemente no
entendimento do que seria o seu objeto de estudo, que passou inicialmente da empresa
privada, representada principalmente pelas indústrias, para outras formas de organização, com
os mais diversos fins.
Apesar de sua postura mais doutrinária, Fayol (1981) também garante a função prescritiva da
Administração, ao afirmar que “administrar é prever, organizar, comandar, coordenar e
controlar”.
É curioso observar, no entanto, que esta característica prescritiva das primeiras propostas não
avançou no campo das teorias da administração, ficando as fórmulas prescritas por estes
autores únicas até praticamente o final do século XX. Na sequência, somente Chester Barnard
ainda adotou uma postura prescritiva - embora já trazendo um caráter analítico das
organizações – e propôs uma Teoria da Organização Formal que segundo ele serviria como
“uma ferramenta no estudo ou na discussão dos problemas da organização concreta”.
As demais abordagens que compõem as teorias administrativas, da escola de Relações
Humanas até os Contingencialistas, analisam as organizações e o trabalho sob diferentes
aspectos, adotando uma postura analítico-explicativa do fenômeno organizacional e seus
componentes, a motivação para o trabalho, a estrutura das organizações, as relações de poder,
os conflitos, seus inter-relacionamentos, etc. No entanto, todos os autores, ao se referir ao
trabalho administrativo lhe destinaram uma função prescritiva, no sentido de desenvolver e
aplicar modelos de gestão para as organizações.
Algumas passagens de suas obras mais importantes serão resgatadas a seguir, a fim de
observar o desenvolvimento do pensamento sobre o que é e qual o papel da Administração na
sociedade, e compreender que objeto de estudo lhe foi destinado.
proliferação das máquinas na esfera produtiva, Mayo pensava que todos os esforços
empreendidos pelo homem no sentido de industrializar a produção trariam como inevitável
consequência o bem-estar econômico. Dedicou-se, desta forma, a pesquisar como a
colaboração espontânea entre os grupos, para ele uma característica inerente ao ser humano,
poderia ser mantida numa sociedade que incentivava o individualismo e enxergava, entre suas
premissas econômicas, a humanidade como uma horda de indivíduos, e não uma associação
de grupos. Mayo propôs então que a Administração deveria preocupar-se em possibilitar
relações sociais na esfera produtiva que satisfizessem as necessidades de agrupamento do ser
humano, o que traria de volta a satisfação de fazer parte de um grupo e contribuir para a sua
sobrevivência, como observado nas sociedades anteriores. “Minha opinião é que o antigo
desejo humano em persistir nas associações humanas complicará seriamente o
desenvolvimento de uma sociedade adaptativa se nós não pudermos desenvolver métodos
sistemáticos de facilitar a mudança de indivíduos de um grupo de associados para outro”.
Enquanto a sociedade industrial revelou o homem essencialmente egoísta e individualista, a
Escola de Relações Humanas tentava resgatar o homem colaborador, somente realizado
enquanto parte de um agrupamento social. Mayo (1957) procurava alertar para a necessidade
de se resgatar as habilidades sociais do homem, perdidas com a industrialização, como, por
exemplo, a comunicação, “a capacidade de o indivíduo comunicar seus sentimentos e ideias
para o outro, a capacidade dos grupos de se comunicar efetivamente e intimamente uns com
os outros” e entendia que essas habilidades deveriam ser ensinadas e conduzidas pelos
administradores.
“Agora é evidente que nossos melhores administradores têm aceitado a
responsabilidade de treinar trabalhadores em novas habilidades técnicas; é
igualmente evidente que ninguém tem aceitado a responsabilidade de treiná-los em
novas habilidades de adaptação social” (MAYO, 1957).
O fato é que os administradores não cumpriram sequer a sua primeira finalidade, o bem-estar
econômico, pois todo o progresso tecnológico não garantiu igualmente o progresso material
da sociedade. Tal modelo produtivo transformou a busca pela materialidade na maior
preocupação do homem, não restando tempo sequer para a associação em outros enclaves
sociais (Guerreiro Ramos, 1981). Assim não se pode acreditar que seja as organizações
econômicas o espaço em que as necessidades de agrupamento do homem serão plenamente
resolvidas, mas percebe-se em Mayo a necessidade de apontar novos caminhos para a
Administração, no sentido de priorizar funções não econômicas, mesmo na esfera produtiva.
Embora seus estudos tenham sido dirigidos às organizações econômicas, a atividade
administrativa ganhou contornos não econômicos, ao incorporar a função de garantir a
cooperação espontânea dentro das organizações.
teoria, já que não permite analisar práticas de organizações cujos valores não se baseiam
apenas no cálculo das vantagens adquiridas.
7. Considerações Finais
Todas as abordagens revisadas ao longo deste trabalho focaram seus estudos em organizações
econômicas, com destaque para Etzioni e os teóricos de sistemas que procuraram incluir,
ainda que de modo superficial, organizações não econômicas em suas pesquisas. Além disso,
todos os autores destinaram à Administração funções econômicas dentro das organizações, de
modo geral ligadas à responsabilidade pela sua sobrevivência. Somente Mayo e Selznick
atribuíram ainda outras funções à Administração, como a satisfação das necessidades
gregárias do ser humano, no primeiro, e a responsabilidade pelo desenvolvimento social, no
segundo.
Depois da Escola Clássica, as teorias administrativas, embora tenham se constituído num
conjunto de pensamentos sobre as organizações, não propuseram nenhum modelo de gestão
que pudesse ser aplicado no ambiente do trabalho. A análise de Mayo, sem dúvida, traz nova
luz ao trabalho administrativo, ao disseminar a existência das relações informais e sua relação
com a produtividade, mas nenhuma prescrição é feita neste sentido. As conquistas dos
trabalhadores se deram muito mais em decorrência do fortalecimento dos sindicatos do que de
uma proposta gerencial que levasse em consideração a priori as suas necessidades.
As análises sobre a burocracia de Weber merecem destaque neste contexto. Ao afirmar que as
organizações burocráticas são o tipo ideal da autoridade racional-legal e ao descrever de
maneira precisa as características destas organizações, deixa um legado para o campo dos
estudos organizacionais, principalmente para a administração pública. Ele adverte, no entanto,
para o perigo deste modelo de organização para a sociedade e para o desenvolvimento
humano.
As teorias dos estruturalistas, dado o seu caráter sociológico, giram em torno da análise do
fenômeno organizacional como fato social, propondo tipologias de organizações e revisitando
o trabalho de Weber. Gouldner (1954) delimita o teor do seu trabalho ao afirmar que “não é
papel do sociólogo recomendar políticas alternativas e insistir que algumas opções
administrativas são melhores que outras” (p.28).
A falta de prescrições nas teorias administrativas fica mais evidente no trabalho de Joan
Woodward, que em 1977 publica um estudo que tinha como objetivo descobrir se “os
princípios da empresa, estabelecidos por um corpo crescente de teorias de administração se
relacionavam com o êxito do negócio quando postos em prática”. E este corpo crescente de
teorias era justamente a teoria clássica de Taylor e seus seguidores.
A revisão da literatura estudada permitiu observar que, se todos os estudos que compõem as
Teorias Gerais de Administração destinaram à disciplina um caráter prescritivo, ligado à
manutenção da sobrevivência da organização, então somente as teorias clássicas foram
realmente teorias de Administração, pois só elas se propuseram a criar e explicar seus
métodos de gestão. Uma nova onda de prescrições administrativas começa a ganhar força
somente na década de 80, mais uma vez decorrente da necessidade de eficientização da
produção nas fábricas, com as prescrições japonesas de gestão, o 5S, a Gestão da Qualidade
Total e também com as receitas ocidentais de Reengenharia, Downsizing, dentre outras.
As análises do fenômeno organizacional, porém, são importantes para o desenvolvimento do
pensamento administrativo. Pensar em organizações implica em ampliar o leque de
possibilidades sobre as formas de associação humana, indo além do modelo moderno de
organização da produção, centrado na empresa e baseado numa racionalidade instrumental-
legal. Neste sentido, o fenômeno organizacional torna-se um objeto privilegiado de estudo
também para os administradores, que precisam compreender as características das
organizações que lhes demandam os modelos de gestão. Pensar na gestão como um objeto
descolado de sua realidade é um erro que não se pode cometer. Não existem modelos
perfeitos de gestão, aplicáveis a quaisquer situações e contextos e a globalização deixou isso
claro. Muitas empresas experimentaram as infelicidades da importação de modelos
estrangeiros de gestão que enfrentaram fortes resistências quando aplicados em realidades
distintas. A criação de modelos de gestão provém da realidade concreta dos seres humanos
envolvidos em situações de associação que requerem respostas sobre sua organização,
participação e mesmo sobre seus valores e objetivos.
Isto não implica que as prescrições da Escola Clássica estejam ultrapassadas. Pelo contrário,
nas montadoras de automóveis e nas fábricas em geral, o desafio da eficientização dos
processos e da maximização da produtividade é uma constante. Outros arranjos
organizacionais, no entanto, demandaram outros modelos de gestão, como as cooperativas e
as experiências de Economia Solidária.
O modelo clássico de gestão consiste em produzir mais com a menor quantidade de recursos
possível, eficientizando o processo e garantindo o maior retorno do capital. Atreladas a este
modelo, estão algumas ideias que marcaram a Modernidade: a divisão do trabalho, a
separação entre o planejamento e a execução, a valorização do trabalho intelectual e a
desvalorização do trabalho braçal, a propriedade privada e a exploração do trabalhador como
formas legais e legítimas de garantia da sobrevivência. Este modelo preconiza a possibilidade
de máxima prosperidade de patrões e empregados, os primeiros auferindo lucros cada vez
maiores e os segundos mantendo o emprego e, portanto, o acesso à renda.
Os críticos deste modelo têm em Marx e nos pensadores da Escola de Frankfurt suas
referências. As análises que mostram como a exploração da mais valia e a alienação do
trabalhador resultam num modelo de sociedade desigual, injusta, doente e cruel, insinuam a
possibilidade de novas formas de associação humana. Estudos antropológicos como o de
Mauss, ao evidenciarem formas tradicionais de associação humana, em que o econômico não
é fator preponderante das relações sociais, reforçam a possibilidade de novos caminhos.
Mais concretamente, os empreendimentos solidários têm se mostrado alternativas viáveis de
associação para a produção com uma lógica distinta daquela que assume a economia de
mercado e a empresa como a forma mais racional de associação humana.
É neste contexto de enormes possibilidades que se encontra a Administração atual. Um
contexto ao mesmo tempo estimulante e desafiador para os administradores, que podem se
10
debruçar sobre seus objetos de estudos, a gestão como prática administrativa ou a organização
como lócus privilegiado da e para uma ação administrativa personalizada. Neste mesmo
contexto, cabem e convivem, portanto, uma lógica de manutenção do conhecimento
acumulado e uma lógica de transformação do status quo, a partir do desenvolvimento de
novas formas de pensamento e ação, logo de organização e gestão.
Referências
BARNARD, Chester I. As Funções do Executivo, São Paulo: Atlas, 1979.
BENKO, Georges. Economia, Espaço e Globalização na Aurora do século XXI, São
Paulo: Hucitec, 1996.
CHANLAT, Jean-François. Ciências Sociais e Management, São Paulo: Atlas, 1999.
CLEGG, Stewart e HARDY, Cynthia. Organização e Estudos Organizacionais. In: Clegg, S.,
Hardy, C., Nord. W. (org.) Handbook de Estudos Organizacionais, V.I, São Paulo: Atlas,
1999.
ETZIONI, Amitai. Organizações Modernas, 3ªed., São Paulo: Livraria Pioneira Editora,
1973.
FAYOL, Henry. Administração Industrial e Geral, 9ª ed., São Paulo: Atlas, 1981.
FRANÇA FILHO, G. C. Para um olhar epistemológico da administração: problematizando o
seu objeto. In: Santos, Reginaldo S. (org.), A Administração Política como Campo do
Conhecimento, São Paulo-Salvador: Ed. Mandacaru, 2004.
GOULDNER, Alvin, W. Patterns of Industrial Bureaucracy, New York: American Book-
Stratford Press, 1954.
KATZ, Daniel e KAHN, Robert, L. Psicologia Social das Organizações, 2ª ed., São Paulo:
Atlas, 1978.
MARCH, J. G. e SIMON, H. A. Teoria das Organizações, 3ª ed., Rio de Janeiro: FGV,
1975.
MAYO, G. Elton. The Social Problems of an Industrial Civilization, 3ª ed., Londres:
Routledge & Kegan Paul Ltd., 1957.
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização, São Paulo: Atlas, 1996.
MOTTA, F.C.P. Teoria das Organizações: evolução e crítica, 2ª edição revista e ampliada,
São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001.
RAMOS, Alberto Guerreiro. A Nova Ciência das Organizações – Uma Reconceituação da
Riqueza das Nações, Rio de Janeiro: FGV, 1981.
REED, Michael. Teorização Organizacional: Um Campo Historicamente Contestado: In:
Clegg, S., Hardy, C., Nord. W. (org.) Handbook de Estudos Organizacionais, V.I, São
Paulo: Atlas, 1999.
SANTOS, Reginaldo Souza. Em Busca da Apreensão de um Conceito para a
Administração Política. In: RAP, Rio de Janeiro: Set/Out 2001.
SELZNICK, Philip. A Liderança na Administração, Rio de Janeiro: FGV, 1972.
SERVA, M. A Racionalidade Administrativa Demonstrada na Prática Administrativa,
In: RAE, São Paulo: FGV, V37, n.2, p.18-30, 1997.
_______. O Fato Organizacional como Fato Social Total, In: RAP, Rio de Janeiro: Mai/Jun
2001.
TAYLOR, Frederick W. Princípios de Administração Científica, 7ª ed., São Paulo: Atlas,
1980.
WOODWARD, Joan. Organização Industrial – Teoria e Prática, São Paulo: Atlas, 1977.
11