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C.G.

UNG

Seminários
sobre

sonhos de
crianças
Sobre o método da interpretação
. dos sonhos
Interpretação psicológica de
sonhos de crianças

tli EDITORA
Y VOZES
1

Sobre o Método da Interpretação


1
dos Sonhos

Prof. Jung: Neste seminário nos dedicaremos principalmente aos sonhos de cri-
:ças. Além disso, alguns livros, cujo tema é o significado dos sonhos, devem ser
utidos. Muitos dos sonhos a serem trabalhados foram fornecidos pelos partici-
tes dos seminários. Foram recordados, em sua grande maioria, por adultos e não
q>erimentados diretamente pela criança. Há aqui uma dificuldade, pois no caso
sonhos recordados não podemos mais interrogar diretamente a criança, e sim
recisamos lançar mão de outros meios para ampliar o material onírico e compreen-
r o sonho. Porém, nos encontramos igualmente em uma situação difícil quando
sumimos os sonhos diretamente das crianças, pois precisamos contar com a possi-
ilidade de a criança não nos fornecer informação alguma ou que, devido ao medo,
- faça qualquer associação. Além disso, a falta de associações se deve à natureza
s sonhos infantis: trata-se da manifestação de uma parte do inconsciente que se
ncontra fora do tempo. Esses primeiros sonhos são particularmente significativos,
is emanam das profundezas da personalidade e não raro apresentam uma anteci-
~ão do destino. Os sonhos infantis mais tardios se tornam gradativamente menos
portantes, a não ser que se trate de um destino especial do sonhador. Durante a
herdade, até os vinte anos, os sonhos voltam a ser mais significativos para, em se-
ida, perder a importância, recobrando a mesma a partir do trigésimo quinto ano
le vida. Isso não acontece com todas as pessoas, porém, na maior parte dos casos.
Por isso peço aos senhores que investiguem suas próprias recordações, se são capa-
zes de lembrar do primeiro sonho de sua vida. Muitos chegam a se lembrar dos so-
nhos de seu quarto ano de vida, outros chegam a se lembrar de sonhos que provêm
do terceiro ano de vida. Quem sabe, os senhores podem igualmente perguntar aos
seus conhecidos e amigos se eles se lembram de seus primeiros sonhos. Mas os se-
nhores também precisam considerar aquilo que sabem da vida posterior dos sonha-

l. Sessão 25/10/1938.

15
dores e a respeito da família destes - caso a.conheçam - e se por acaso notaram algu-
ma peculiaridade em relação a esta.
Antes de iniciarmos a discussão de cada um dos sonhos, gostaria de fazer mais
algumas considerações a respeito do método da interpretação dos sonhos. O sonho
é, conforme sabem, um fenômeno natural. Não é fruto de uma intenção. Não pode-
mos explicá-lo a partir de uma psicologia que provém da consciência. Trata-se de
um modo específico de funcionamento que não depende da vontade e do desejo, da
inte nção ou do objetivo do Eu humano. É um acontecimento não inte ncional, assim
como todos os acontecimentos da natureza. Não podemos deduzir que o céu se co-
bre com nuvens para nos irritar, e sim, a coisa simplesmente acontece dessa forma.
A dificuldade, entretanto, é como assimilamos esse acontecimento natural.
O melhor a fazer é permitir que as coisas nos atinjam, mantendo-nos o mais im-
parcial possível. Não obstante, tudo que dizemos sobre elas permanece nossa inter-
pretação. Encontramo-nos na mesma situação que qualquer cientista natural que
se dedica a fenôme nos que não nos revelam seu sentido, nem suas leis. Todo senti-
do atribuído ao acontecimento provém de nós. Encontramo-nos perante a difícil ta-
refa de traduzir os acontecimentos naturais para a linguagem psíquica. Para tal, lan-
çamos mão de expressões que nos auxiliam e disfarçam nosso embaraço, fom1amos
hipóteses ... Contudo, sempre permanece a dúvida se somos capazes de reproduzir
o acontecido. Podemos naturalmente argumentar que nada disso faz sentido. Se
tudo for subjetivo, podemos igualmente dizer que não existem leis na natureza, que
tudo é um caos. Apesar de ser uma questão de temperamento se aceitamos o senti-
do, mesmo se ainda não o compreendemos ou se preferimos dizer: "Nada disso faz
sentido". Porém, podemos defender a opinião de que toda forma de atribuir senti-
do, seja lá qual for, é sempre uma suposição humana acerca daquilo que acontece e
tentar, mesmo assim, alcançar o real estado das coisas. Todavia, jamais temos certe-
za se realmente iremos alcançar tal objetivo. Essa insegurança, porém, pode ser
parcialmente sanada na medida em que aplicamos esse sentido a outras equações,
\·erificando em seguida se estas apresentam uma solução coerente. Desse modo po-
demos criar uma suposição a respeito do sentido de um sonho, averiguando em se-
guida se este significado explica igualmente outro sonho, isto é, tem-se um signifi-
cado mais geral. Podemos igualmente lançar mão de testes-controle no caso de séries
oníricas. Gostaria de trabalhar os sonhos das crianças a partir de séries oníricas,
pois quando examinamos os sonhos a paiiir de séries, obtemos um controle um tan-
to valioso, na medida em que encontramos, nos sonhos subsequentes, confirmações
e correções das suposições criadas anteriormente. Nas séries oníiicas os sonhos en-
contram-se interligados de modo coerente. É como se procurassem expressar a par-
tir de perspectivas sempre diversas um conteúdo central. Quando tocamos nesse
núcleo significativo, encontramos a chave para explicar os sonhos individualmente.

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nem sempre é fácil delimitar uma série onhica. Trata-se de um tipo de monó-
que se realiza por baixo do limiar da consciência. Esse monólogo é, por assim
, ouvido durante o sonho; no estado desperto, é como se perdesse a força. Mas
'-·erdade o monólogo jamais termina. Provavelmente sonhamos constantemente;
a consciência, porém, produz tantos ruídos que não somos capazes de omi r o sonho
no estado despeito. Caso conseguíssemos elaborar um registro completo [dos pro-
cessos inconscientes] seríamos capazes de perceber que tudo segue uma detemü-
..ada linha. É um trabalho muito difícil quando realizado de modo minucioso.
A fonna como explicamos os sonhos é primeiramente causal. Tendemos a apre-
ntar a natureza de modo causal. Nesse caso, porém, a explicação se depara com
nnensas dificuldades, pois aquela do tipo estritamente causal é possível somente
1 :iando a relação necessária enh·e causa e efeito pode ser provada. Essa relação uní-

"'Ca pode ser constatada principalmente na natureza, por assim dizer, inanimada.

empre quando é possível isolar fenômenos, quando esses podem ser submetidos
experimento, em outras palavras, quando condições similares podem ser estabe-
.-cidas, é possível realizar uma classificação mais eshita de causa e efeito. ~o caso
fenômenos biológicos, por sua vez, somos quase incapazes de perceber uma
· posição que conduz necessariamente a deteiminados efeitos, visto que aqui lida-
com um material de tamanha complexidade, com tamanha multiplicidade e in-
calculável variedade desordenada de condições, o que torna impossh·el afimiarmos
lações causais unívocas. Por conta disso, o teimo condicional é bem mais adequado.
é, determinadas condições podem resultar em determinadas consequências.
:-rata-se de uma tentativa de dissolver a causalidade rígida a partir do entrelaça-
nte de condições, de ampliar a relação unívoca de causa e efeito por meio dos di-
rsos significados que essa relação possa ter . A causalidade por si só não é abolida,
illn, apenas adaptada à natureza multifacetada de tudo que é vivo. É preciso con-
lclerar que a psique em si possui, assim como todos os fenômenos biológicos, uma
e.dureza finalista, olientada para um fim. Isso não se opõe de foima alguma ao pon-
de vista me ncionado anteliormentc de que o sonho consiste em um aconteci-
nto não intencional, pois lá enfatizamos o fato de os fenômenos naturais ocorre-
rem de modo inconsciente, independentemente da consciência, fato este que não
eiclui a possibilidade de as foimas em desenvolvimento da psique seguirem uma fi-
r:.olidade inconsciente. Não podemos evitar a suposição de que a essência funda-
mental existe desde sempre, de que tudo que existe é somente um desdobramento
cle natureza finalista dessa disposição original. Mesmo aquilo que parece não pos-
~ nenhuma finalidade psíquica ou até biológica pode ainda ser investigado em
relação à sua possível finalidade. A medicina antiga, por exemplo, acreditava que a
- bre era um sintoma patológico em qualquer circunstância e que deveria ser com-
tido. A medicina moderna, porém, sabe que se trata de um fenômeno de defesa
complexo que tem uma finalidade própria ao invés de considerá-lo a noxa que causa

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a doença. -o caso do trabalho com os sonhQs, também não devemos perder de vista
o aspecto da finalidade interna do acontecimento. Nesse sentido, podemos falar da
finalidade inconsciente do acontecimento onírico, ressaltando, portanto, que não se
trata de objetivos conscientes, de intenções que se assemelham àquelas da cons-
ciência, e sim, de automatismos finalistas que assim como as reações celulares não
podem ser nada além de finalistas.
O sonho não é um fenômeno unívoco. Existem diversas fom1as de significar os
sonhos. Vou lhes dar quatro definições com as quais me deparei, que formam algo
como o extrato das diversas possibilidades de significar um sonho.
1) O sonho representa a reação inconsciente frente uma situação consciente.
Uma determinada situação consciente é seguida por uma reação do inconsciente na
forma de um sonho, trazendo conteúdos que- de modo complementar ou compen-
satório - apontam claramente para a impressão que se obteve durante o dia. É evi-
dente que o sonho jamais teria se formado na ausência de uma determinada impres-
são obtida no dia anterior.
2) O sonho representa uma situação que é fruto do conflito entre consciência e
inconsciente. Nesse caso, não existe uma situação consciente que pode, em maior
ou menor grau, ser responsabilizada pelo mesmo, e sim, lidamos aqui com certa es-
pontaneidade do inconsciente. O inconsciente acrescenta a uma detem1Ínada situa-
ção consciente uma outra situação, a qual difere de tal modo da situação consciente
que se forma um conflito entre ambas.
3) O sonho representa a tendência do inconsciente cujo objetivo é uma modifi-
cação da atitude consciente. Nesse caso, a posição oposta assumida pelo inconscien-
te é mais forte do que a posição consciente: o sonho representa um declive que se ori-
gina no inconsciente e vai em direção à consciência. Trata-se de sonhos especial-
mente significativos . Podem transformar alguém que assume uma determinada ati-
tude por inteiro.
4) O sonho representa processos inconscientes que não evidenciam uma rela-
ção com a situação consciente. Sonhos dessa espécie são muito peculiares e, devido
ao seu caráter estranho, não podem ser interpretados facilmente. O sonhador se ad-
mira um tanto por sonhar algo assim, pois nem mesmo uma relação condicional
pode ser estabelecida. Trata-se de um produto espontâneo do inconsciente que
porta toda atividade e é altamente significativo. São sonhos imponentes. Sonhos
que os primitivos designam de "sonhos grandes". São de natureza oracular, "som-
nia a deo missa"2• São experimentados como iluminação.

2. Do latim: "sonhos enviados por Deus" (ed.).


Sonhos dessa espécie manifestam-se igualmente antes da eclosão de uma '
ça mental ou de neuroses graves nas quais irrompe subitamente um conteúdt. ,.
impressiona o sonhador profundamente, mesmo quando não o compreende.
cordo-me de um caso destes que ocorreu antes da guerra mundial:

Fui visitado por um velho homem que era professor de Direito Canônico em uma universidade
católica. Ele inspirava respeito, assim como o Yelho Mommsen 3. Precisava resoh-er algo de ordem
formal comigo. Assim que resolveu a quest ão, disse-me: "Soube que o senhor também se interessa
por sonhos". Respondi: "Faz parte do meu trabalho". Percebi que ele estava ansioso para me contar
um sonho, o que fez logo em seguida. Era um sonho que teYe muitos anos atrás e com o qual se ocu
pava sempre de novo.

Ele está em uma passagem estreita entre as montanhas, à margem de um abismo. Embaixo tem
um barranco. A passagem é delimitada por um muro. O muro é feit o de mármore d e Paros, que
possui aquela tonalidade amarelada antiga conforme reconhece imediatamente. Neste momen-
to vê uma figura estranha descendo o muro dançando, uma mulher nua que possui as pernas de
uma cabra-montês, uma "Fauna". Ela pula no abismo e desaparece. - Em seguida ele acorda.

E ste sonho o preocupou muito. Já o havia contado a várias pessoas.

Outro sonho é o de um homem de trinta anos que me consultou em função de uma neurastenia
que havia começado de modo relativamente súbito, pois ele era tutor de príncipes e teve um colap-
so nervoso durante esse serviço árduo. Fiquei admirado com o fa to de esta neurastenia, que nestes
casos normalmente já exist e há um t empo, piorando meramente com o passar do tempo, ter apa-
rentemente começado de forma t ão súbita. Perguntei a ele o que aconteceu na época quando come-
çou a ter os ataques de tontura e dores. Primeiro disse que nada de especial havia acontecido. Per
guntei por sonhos ocorridos na época. Então veio à tona que teYe um sonho estranho e logo em se-
guida a doença eclodiu.

Ele caminha por uma duna e de repente encontra cacos negros no chão. Ele os pega. São cacos
pré-históricos. Vai para casa, busca uma cavadeira, começa a abrir o chão e encontra todo um
assentamento pré-histórico, armas e instrumentos, machados de pedra etc. Fica muito fasci-
nado e acorda suando de tanta excitação.

O sonho se repetiu e em seguida o paciente t eve um colapso. Era um jovem suíço.

Durante o tratamento psicoterapêutico, determinados conteúdos já podem


aparecer semanas, meses ou anos antes. São conteúdos que ainda não possuem
qualquer ligação com a consciência; são produções diretas do inconsciente.

3. T. Mommsen, historiador e jurista, 1817-1903, autor da Romischen Geschichte [História romana]


(ed.).

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Conforme os senhores podem ver, diferencio os processos oníricos de acordo
com o tipo de relação existente entre as reações do inconsciente e a situação cons-
ciente. É possível verificar as mais variadas transições que se estendem desde uma
reação do inconsciente vinculada diretamente aos conteúdos da consciência até
uma manifestação espontânea do inconsciente. I este último caso, o inconsciente
se manifesta através de sua atividade criativa, na medida em que faz com que conteú-
dos ainda não presentes na consciência penetrem nesta.
Geralmente se supõe que o conteúdo onírico possui uma relação com a cons-
ciência, suge1indo, por exemplo, que os conteúdos psíquicos conscientes encon-
tram-se vinculados aos conteúdos inconscientes de modo associativo. Foi a partir
disso que se criou a teoria de que o sonho deveria ser compreendido exclusivamen-
te a partir da consciência, quer dizer, o inconsciente por si só seria um derivado da
consciência. Isso porém não procede, observamos justamente o contrário: O in-
consciente é mais antigo do que a consciência. O homem primitivo vive prioritaria-
mente na inconsciência, aliás, também nós passamos um terço de nossa vida no es-
tado inconsciente, quando dormimos ou nos encontramos em um estado crepuscu-
lar. O inconsciente é aquilo que é dado originalmente, a partir do qual a consciência
acaba sempre emergindo de novo. Estar consciente é um esforço que nos esgota.
Por isso podemos nos manter concentrados por um período de tempo relativamen-
te curto para, logo em seguida, sucumbir novamente a um estado inconsciente, sub-
mergindo em sonhos ou associações não intencionais. É tal como Fausto diz: "For-
mação, transformação, entretêm eternamente seu eterno pensar"4 • Sendo assim,
existem sonhos cujos conteúdos não deixam transparecer relação alguma com a
consciência, cuja atividade plena se encontra no inconsciente. Tudo- o tema do so-
nho e a atividade do sonho - origina-se no inconsciente e não pode ser derivado da
consciência. Quando se "força" um sonho desta espécie para transformá-lo em um
derivado da consciência, simplesmente violentamos o sentido do sonho e aquilo
que se cria é uma total falta de sentido.
Os processos oníricos estão relacionados a diversas razões e condições. Exis-
tem cerca de cinco possibilidades diferentes para sua origem Uung menciona expli-
citamente quatro dessas possibilidades e depois uma sexta (N .T.)].
1) Podem provir de fontes somáticas: percepções corporais, estados patológicos
ou indisposições físicas. Pode tratar-se de manifestações corporais que, por sua vez,
são ocasionadas por processo psíquicos totalmente inconscientes. Os antigos inter-
pretadores de sonhos faziam um grande alarde em relação à fonte somática de estí-

4. J.\V. Goethe. Fausto II 1° ato. Tradução Flávio M. Quintiliano. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]
(ed .).
mulos, explicação esta que até hoje encontramos com frequência. A psicologia ex-
perimental ainda defende o ponto de vista de que os sonhos precisam ser remetidos
sempre a algo somático. Trata-se daquela concepção antiga do sonho que afirma
que talvez comemos em excesso "à noite", deitando-nos em seguida de bruços ou
de barriga para cima e em consequência disso teríamos tido o sonho específico.

2) Outros eventos físicos - que não ocorrem no próprio corpo, e sim, no meio
ambiente - podem influenciar o sonho: ruídos, estímulos luminosos, frio e calor.

Gost aria de trazer um exemplo da literatura francesa: Alguém sonha que «está na Revolução
Francesa. É perseguido e p or fim guilhotinado. Acorda na hora que o mach ado cai" - foi na hora que
;.::n pedaço da parte superior da cama - trata-se de uma cama com sobrecéu - cai bem em seu pes-
uço. Quer dizer, ele deve ter tido o sonho bem na hora que o pedaço da cama caiu.

Exemplos desse tipo muitas vezes levam à opinião de que um sonho assim, no qual
lEmos uma sensação nítida do tempo, oc01Te em um espaço de tempo muito curto.

Lembro-me, por exemplo, de um sonho desse tipo que ocorreu em minha juventude: Quando
r:s..l!dante, tinha que acordar às cinco e meia da manhã, pois o seminário de botânica começava ás
<.e..e, algo que me aborrecia muito. Precisava sempre pedir que me acordassem, a empregada do-
tica tinha que dar murros na porta para que enfim despertasse. Foi aí que tive um sonho reple-
- d.e detalhes.
Estava lendo o jornal. Este dizia que havia ocorrido certa tensão entre a Suíça e o exterior.
Então vieram muitas p essoas e discutiram a situação politica; em seguida veio um novo jornal
com novos telegramas e artigos. Muitas pessoas estavam aborrecidas. Novas discussões e ce-
nas ocorreram na rua, por fim toda uma mobilização: soldados, artilharia. Atiravam com ca-
nhões - agora a guerra estourou - mas... eram os murros na porta. Tive a nítida sensação do so-
nho ter demorado muito tempo, chegando ao ponto máximo na hora dos murros.

Para provar a concepção de que os sonhos na verdade não possuem qualquer


dimensão temporal, e sim, que ocorrem somente no momento do estímulo auditivo,
~coerente mencionar as percepções altamente complexas que ocorrem na hora de
mna queda.

O conhecido geólogo suíço Heim 5 viu passar sua vi.da inteira diante de seus olhos durante os
~·es segundos de sua queda. A lüstória de um almirante francês relata algo semelhante. Ele caiu
o água e quase se afogou. Nest e breve momento, as imagens de sua vida inteira passaram por ele.

5 . .\ . Heim, 1849-1937. Zurique (ed.).

21
Nesses casos, porém, o fato de esses momentos estarem carregados de uma
enorme intensidade deve ser considerado. Podemos ter uma visão geral que não é
nada sucessiva. No sono não existe essa intensidade. É essa a questão. Por isso, es-
ses casos não explicam a ausência da dimensão temporal dos sonhos.
Para ser franco, penso sempre em outra possibilidade, um tanto extravagante:
No caso do inconsciente há algo diferente no que tange à noção de tempo; no in-
consciente o tempo sai um pouco do eixo, quer dizer, o inconsciente permanece
sempre à parte do decurso do tempo percebendo fatos que nem existem ainda. No
inconsciente tudo existe desde o início. Sonhamos, por exemplo, com frequência,
com um motivo que terá importância somente no próximo dia ou quem sabe até mais
adiante6• O inconsciente pouco se importa com nosso tempo ou com a relação causal
que estabelecemos entre as coisas. Podemos observar o mesmo no tocante às séries
oníricas. A série não cria uma sequência cronológica no sentido da sequência temporal
que nos é familiar. Por isso é tão dificil estabelecer o que veio antes e o que depois.
Quando desejamos caracterizar a natureza dos sonhos, podemos dizer que estes
não formam uma série cronológica no sentido de: a--t b --t c--t d, onde b resultaria
de a e c de b. Pelo contrário, devemos considerar a ideia de um centro incognoscí-
vel, o qual irradia os sonhos. Podemos ilustrar tal ideia da seguinte maneira:

Devido ao fato de os sonhos alcançarem um atrás do outro a consciência, os


concebemos por meio da categoria temporal e estabelecemos relações casuais entre
os mesmos. Porém, nesse caso não podemos excluir a possibilidade de que a real se-
quência do primeiro sonho alcance o inconsciente somente muito mais tarde. Quer
dizer, a série aparentemente cronológica não é a série real. Quando concebemos as
coisas dessa maneira, fazemos uma concessão no que tange à nossa ideia de tempo.
Existem processos oníricos que, de repente, são permeados por um novo tema que,
em seguida, é deixado novamente de lado para ceder espaço para o tema anterior. A
verdadeira disposição do sonho é radial: os sonhos são irradiados de um centro e so-
mente depois sofrem a influência do nosso tempo. Em última instância, encon-
tram-se orde nados em tomo de um centro de significado.

6. Cf. J.W. Dunne: An Experiment with Time.

22
.\"o inconsciente, precisamos contar com categorias diferentes daquelas da
iência; ocorre aqui algo semelhante do que na física, onde os fatos são modifi-
s a partir da atividade da observação como, por exemplo, no caso da observação
núcleo atômico. Parece que no mundo microfísica do átomo as leis que regem
- outras das do mundo macrofísico. Existe, nesse sentido, certo paralelismo entre
:.'l.consciente e o mundo microfísica. O inconsciente poderia ser comparado ao
· eo atômico .
.\"a vida cotidiana os senhores podem igualmente observar como o inconsciente
liecipa certas coisas. Trata-se muitas vezes de coisas bastante inofensivas que não
em significado algum mais amplo, como, por exemplo, os seguintes fenôme-
: Os senhores se encontram na rua e acreditam ver um conhecido. Não é ele,
:.JS logo em seguida ele aparece. Esse tipo de "percepções inespecíficas" estranhas

- muito frequentes. São tão pouco significativas e nos dizem tão pouco que nor-
malmente as ignoramos e pensamos: "Quanta coincidência!" :Mas existem exem-
que são simplesmente fabulosos.

Um exemplo deles ocorreu com um amigo meu da universidade. Era um cientista natural. Seu
Pal lhe promet eu uma viagem para a Espanha caso realizasse seu exame final com êxito. Imediata-
te antes d o exame teve um sonho que me cont ou de imediato.
8e se encontra em uma cidade espanhola. Passando por uma rua, chega em uma praça, na qual
desembocam diversas ruas e que se encontra fechada por uma catedral Passeia pela praça e, de-
vido ao fato de desejar ver a catedral primeiramente de lado, ele vai para a direita. Na hora que
emboca naquela rua, chega uma charrete com dois cavalos de cor isabel. Em seguida acorda.
Ele me contou que o sonho lhe impressionou muito por a imagem ter sido de t amanho brilho e
~a.

Três semanas depois, após seu exame, viajou para a Espanha. De lá recebi a noticia de que o so-
::ho havia se realizado. Deparou-se com uma praça assim em uma cidade espanhola. Recordou-se
miediatamente do sonho e disse a si mesmo: UE se essa questão dos cavalos na rua ao lado também
a ,·erdade?'' Foi até a rua ao lado [...] e os cavalos estavam lá! - Era um homem totalmente confiá-
rei, hoje em dia t em um cargo público e jamais chamou atenção em função de coisas dessa espécie,
pelo contrário, era conhecido pelo seu modo de ser seco e sua sobriedade proverbial. Nunca mais
soube de nada parecido a respeito dele.

Este caso também não é nenhuma exceção. Existem inúmeras experiências,


desse tipo. Quando tratamos de muitos pacientes neuróticos é possível ter diversas
percepções dessa espécie. Com tempo reconhecemos o caráter típico dessas per-
cepções e podemos de antemão chamar a atenção dessas pessoas em relação a algo
futuro. Nesses casos costumo dizer: "Agora você precisa tomar cuidado, algo vai
2Contecer!" Apresento o seguinte sonho como exemplo:

23
Trata-se de uma paciente de meia-idade. Durante um tempo seus sonhos falavam de um pro-
blema especifico. De repente surge um sonho que não parece ter nenhuma relação com nada:
Ela estava sozinha em uma casa. Estava anoitecendo. Ela andou pela casa pata fechar todas as
janelas. Lembrou-se então da porta dos fundos que também deveria fechar. Foi até a porta e
percebeu que não tinha uma fechadura. Questionou-se o que d everia fazer e começou a procu-
rar por móveis ou caixas para colocá-las em frente à porta. Enquant o isso, ia escurecendo cada
vez mais, a atmosfera ficou cada vez mais estranha. De repente a tal porta se abriu, uma bala
preta passou pela mesma e a atingiu no meio do ventre. Ela acordou gritando7•

Era a casa de uma tia que mora\'a nos Estados Unidos. Ela haYia estado lá vinte anos atrás. A
família encontrava se toda estilhaçada em função de uma briga e justamente com est a tia ela estaYa
especialmente estremecida. Não a via há vinte anos e não manteve nenhum vínculo com ela. Não
sabia se esta tia ainda morava nesta casa e se ainda estava viva. Informei-me com a irmã da paciente
sobre a veracidade deste relato e ela confirmou que sim. Pedi a paciente que anotasse o sonho jun
tamente com a data. Três semanas depois veio uma carta dos Estados Unidos, dizendo que a tia
morreu. E ela morreu no dia que a paciente teve o sonho. Este é um sonho típico.

Efeitos semelhantes a estes, seja lá de que espécie, muitas vezes têm o caráter
de um tiro. Recordo os senhores do famoso "Hexenschuss" [Original: Hexenschuss,
tradução literal: Tiro de bruxa. Expressão coloquial para lumbago ( · .T.)]. Encon-
tramos a mesma ideia entre os índios norte-americanos. O curandeiro pode "atirar"
em alguém com algo, por exemplo, com a assim chamada estalactite de gelo, no in-
tuito de adoecer o outro. Um livro inglês sobre a mística Anna Kingsford apresenta
noções semelhantes8 . Ela acreditava possuir essas mesmas capacidades de provo-
car efeitos desse tipo. Parece que no Tibete os Iogues são capazes de exercer in-
fluências maléficas sohre os outros9 . Aquilo que irradiam possui um formato alonga-
do. O que, exatamente, ocorre nesse caso escapa ao nosso conhecimento. O consen-
sus gentiurn, porém, reforça o mesmo. Os tibetanos nada sabem sobre a literatura
inglesa e minha paciente nada sabe sobre o Tibete . .Mas deve existir uma fonte em
comum para essa suposição que deve se encontrar associada a uma realidade psí-
quica peculiar que não podemos explicar de primeira. Nesse caso, sou totalmente
adverso a assumirmos soberbamente o trono do ceticismo afirmando tratar-se de fa-
lácia. O que me interessa é o fato desse tipo de coisa ser assegurado em todos os lu-
gares. É uma ideia tão difundida quanto aquela que diz que aqueles que faleceram
não sabem que estão mortos e que precisam ser instruídos nesse sentido para que
possam descansar em paz. Entre os espiritistas, primitivos e nos textos tibetanos -
no Bardo Thõdol "os senhores encontram instruções sobre como fazer o morto sa-

7. Jung apresentou esse sonho iguamcnte na discussão da obra de .Macróbio, cf. Apêndice p. 604 (ed.).
8. E. ~1aitland. Anna Kin{!,sjord. Her Life, Letters, Diary anel Work.
9. Paralelo tibetano para as estalactites. ln: A. Avalon. Shri-Chakra-Sambhâra Tantra.

24
ber que ele está realmente morto-, essas ideias 10 aparecem independenternerrfr
uma das outras. Aqui a seguinte questão toma-se interessante: Como explicar td
fato? Que fatores primordiais se fazem presentes no caso dessas ideias ?

3) Os sonhos não são causados somente por fatores fisicos, e sim, também, por
fatores psíquicos. Por vezes ocone de determinados acontecimentos psíquicos no
meio ambiente serem percebidos pelo inconscie nte.

Entre os sonhos que colecionei, há um caso onde uma criança de três a quatro anos sonha com
a vinda de dois anjos que levantam algo do chão e o transportam para o céu. - Na mesma noite um
irmãozinho dessa criança morre.

Outra criança sonha que a mãe deseja suicidar-se. Entra gritando no quarto da mãe que já está
acordada, prestes a cometer suicídio.

Desse modo acontecimentos psíquicos importantes no meio ambiente podem


ser percebidos. Certas atmosferas, certos segredos também podem ser plenamente
farejados de maneira inconsciente. Nesses casos não sabemos como o inconsciente
consegue absorver algo assim. O que há de peculiar é que nem sempre se trata de
algo tão impressionante como no caso do sonho com o suicídio da mãe, e sim, por
vezes, de coisas um tanto insignificantes. Como, porém, podemos farejar coisas to-
talmente insignificantes, é ainda mais incompreensível. Quero igualmente dar um
exemplo para tal:

Trata-se de um homem de negócios, mas que se interessava por fenômenos telepáticos. Deseja-
va muito vivenciar algo nesse sentido. Um dia estava em seu escritório - eram três horas da tarde - e
adormeceu. Viu o carteiro tocar a campainha de sua casa - ele morava no subúrbio e seu escritório
era na cidade -, viu sua empregada abrir a porta recebendo do carteiro um pacote com jornais e car-
tas. Em cima do pacote havia uma carta amarela. Ele viu nitidamente qual era seu tamanho e seu as-
pecto. Voltou a si com a sensação de ter dormido um pouco. Então, de repente, pensou: "Foi urna
visão!" As quatro horas da tarde ele voltou para casa e p erguntou pelas cartas. Lá fora no corredor
estava o pacote da forma corno o tinha visto, porém sem nenhuma carta amarela. Pensou ter fracas-
sado. Quinze dias após, a empregada trouxe a carta amarela que tinha caído atrás da cômoda. Ele
abriu a carta achando que se tratava de algo muito importante. Mas era um simples folheto comer-
cial, algo totalmente irrelevante!

Minha experiência inclui diversos casos desse tipo; as coisas mais banais podem
fazer parte dos sonhos e serem previstas e a identidade não pode ser negada de forma

10. O livro tibetano dos mortos. Introdução e comentário psicológico ao Bardo Thõdol de e.e.
Jung. ef. Tb. e.e. Jung. Psicologia e religião ocidental e oriental, oe 11 , par. 83lss. (ed.).

25
alguma. Essas coisas ocorrem com tanta frequência que é impossível ignorá-las. Exis-
tem sem dúvida fontes "ilegítimas" dos sonhos. Existem coisas que não poderíamos
ou deveríamos saber, mas que sabemos mesmo assim, como se tivéssemos um faro
tão apurado que atravessa as paredes. É algo que nos penetra através da atmosfera.

TiYe um colega que era um pouco estranho, mas tinha ideias interessantes. Vivia em uma casa
de campo com sua mulher, dois filhos e uma criada. Anotava todos os sonhos que eram sonhados
em sua casa, também dos pacientes que havia recebido em sua casa. Era simplesmente de se espan
tar o quanto os problemas dos pacientes acabavam aparecendo nos sonhos da criada, dos filhos e
da mulher.

Fenômenos desta espécie são experimentados não somente nos sonhos, e sim,
também, na sociedade: por exemplo, alguém entra em um determinado espaço e de
repente todos sentem frio. Esta pessoa irradiou algo, o que - não se sabe.

4) Até agora mencionamos as fontes somáticas, os acontecimentos físicos e psí-


quicos do meio circundante como causas dos processos oní1icos. Acontecimentos
passados, porém, podem igualmente entrar nos sonhos. Caso os senhores se depa-
rem com algo assim, deverão levá-lo a sério. Quando um nome histórico que pode
ter algum significado maior surge nos sonhos, costumo pesquisar o real significado
do nome. Pesquiso que tipo de pessoa foi designado por este nome, em que contex-
to vivia, pois desse modo podemos explicar o sonho.

Por alguma coincidência estranha tive, logo hoje, um caso assim. Uma senhora que se acomo
dou demasiadamente nos andares superiores da casa, quer dizer, que vive excessivamente na cabe-
ça e que tem uma relação ruim com o mundo de baixo, contou me o seguinte sonho:
Havia um círculo formado por leões que parecia perigoso. No centro havia um fosso que conti-
nha algo quente. Ela sabia que teria que descer até o fosso e mergulhar no mesmo. Sendo as-
sim, entrou no fosso e foi de algum modo queimada por este fogo. Somente um ombro dela
ainda estava do lado de fora. Eu a pressionei para baixo e disse: "Não saia, atravessei"

O sonho lança claramente uma luz sobre o problema do qual ela sempre se esquivou.
Juntamente com o sonho ela mencionou um fragmento que dizia que Santo Eustáquio era seu santo
padroeiro. A lenda de Santo Eustáquio encaixa-se muito bem: Eustáquio e sua familia tomaram-se
cristãos. Ele e sua familia morreram como mártires em torno de 118 d.C. Lançaram-nos aos leões. Os
leões, porém, não queriam devorar a familia sagrada. Sendo assim, aqueceram um Touro de Bronze
até que estava em brasas e os queimaram dentro do mesmo. Era algo que a paciente não sabia.

A ocorrência de eventos passados desta espécie nos sonhos é especialmente di-


fícil de ser explicada. É como se a paciente tivesse farejado o calendário dos santos
em minha biblioteca. Porém, é igualmente possível tratar-se de um caso de crip-

26
tomnésial1, que a paciente tenha realmente lido a lenda e se esqueceu da me rr:._
Existem casos famosos de criptomnésia. Ainda falaremos a respeito deles. Aqui in-
teressam-nos apenas os casos nos quais é possível provar que nada foi lido, pois ja-
mais estivemos próximos destas coisas. Casos assim existem e vale sempre a pena
pesquisar nos livros no intuito de se orientar naquilo que o caso oferece em termos
objetivos. Um caso especialmente impressionante, comprovado por mim, é o de um
doente mental que reproduziu o contexto simbólico, antes de um texto, em que um
papiro grego fora decodificado 12.
Isso soa um tanto miraculoso, mas teremos que nos acostumar com a ideia de
que esse tipo de coisas existe, de que conteúdos inconscientes, que se encontram
estranhamente em conformidade com fatos históricos, podem ser reproduzidos. A
e>..'J)licação encontra-se vinculada ao fato de se tratar de conteúdos arquetípicos. O
arquétipo se caracteriza pelo fato de ele ser capaz de reproduzir de modo idêntico
exatamente as mesmas imagens. É algo muitas vezes negado, frequentemente, po-
rém, por pessoas que desconhecem fatos dessa espécie e são incapazes de fornecer
qualquer tipo de explicação. Conforme os senhores podem ver segundo os dois
exemplos que seguem, a ignorância facilita negar esse tipo de fatos.

Dizem que quando um agente de Edison apresentou pela primeira vez seu fonógrafo na Aca-
demia de Paris, um professor de Fisica pulou em seu pescoço e o chamou de uventriloquisteM [ven-
tríloquo].

Também Galileu desafiou seus opositores a olharem através de seu telescópio para se conven-
cerem de que as luas de Júpiter existem. Eles, entretanto, não queriam fazê-lo de modo algum!

Durante urna sessão posterior [08/11/1938):


Prof. Jung: Da última vez paramos na discussão sobre as diversas causas dos
processos oníricos. Outro grupo de causas, os senhores podem encontrar entre os
sonhos que originalmente tinham uma relação com a consciência, porém, a perde-
ram há muito tempo, de modo que aparentemente tal relação jamais existiu.

11. A recordação inconsciente de um fato que, por exemplo, lemos um dia, porém já esquecemos
há muito tempo. Cf. tb. o ensaio de Jung. "Criptomnésia". ln: Estudos Psiquiátricos, OC I, par.
166ss. (ed.)
12. Cf. C.G. Jung. Símbolos da transfomwção, OC 5, par. 151; e A dinâmica do inconsciente, OC 8,
par. 317 e 318 (ed.)

27
Voltemo-nos então para esses conteúdos que perderam a relação com a cons-
ciência. Por isso os conteúdos desses sonhos não podem ser reproduzidos. Podem
surgir pessoas, rostos, situações, construções, partes de construções, a decoração de
uma casa, que já estiveram conscientes durante a infância, mas que caíram no total
esquecimento ao longo das décadas.

Recordo me de um sonho dest a espécie que tive anos atrás. Vi o rost o de um homem. Após uma
longa reflexão, recobrei aquela memória que pertencia aos primeiros anos de minha juventude - eu
tinha em torno de dez anos. Era o nosso vizinho, um pequeno camponês que já morreu h á muito
t empo. Eu havia esquecido totalmente do seu rosto. Durante o sonho, este reemergiu com seu fres-
cor original. Eu não teria sido capaz de reproduzi -lo no est ado consciente. E quando dois dias após
relatei o sonho, eu já não era mais capaz de reproduzir o rosto. Ele tornou a desaparecer. A imagem
recordada er a demasiadamente fraca.

Isto significa que durante os sonhos podem igualmente surgir criptomnésias,


isto é, impressões, conteúdos, pensamento, um determinado saber que um dia já foi
nosso e que, em seguida, desapareceu por completo, que não é mais passível de re-
produção, até que, em um momento específico, tomou a voltar a partir de sua forma
original.

Encontrei em Nietzsche uma criptomnésia desse tipon A p assagem do Zaratustra, na descida


para o mundo subterrâneo onde o capitão vai para a terra firme para caçar coelhos, chamou minha
14
atenção .
Perguntei à senhora Fõrst er-Nietzsche, a única pessoa que podia dar informações sobre a in-
fância de seu irmão, se Nietzsche assumiu este motivo dos Blattcrn von Prevorst de Justinus Kerner 15,
livro no qual podemos encontrar o mesmo. Ela me informou que ele certamente leu o livro com ela
antes dos seu s onze anos na b iblioteca de seu avô.
Théodore Flournoy, o conhecido p sicólogo e filósofo de Genebra, provou casos semelhantes em
sua obra Dês Indes à la planete Mars [Da Índia ao planeta Marte]. O título soa extravagante; trata-se, no
entanto, de um livro científico. Flournoy fala de Hélêne Smith que, em função de seu sonambulismo,
chamou atenção em Genebra. Trata-se de uma perfeita história de amor do Animus. A glossolalia
presente nest e caso - Hélêne Smith falava diversas línguas desconhecidas - baseia-se igualmente na
criptomnésia. Ela frequentava uma associação que possuía um pequeno dicionário de sânscrito. Não
se sabe se ela realmente fez uso do mesmo, mas não há muita dúvida a respeito disso.

13. E ste exemplo é descrito de modo completo in C.G. Jung. Estudos psiquiátricos, OC 1, par. 108ss.
•A vida simbólica, OC 18, par. 454ss. (ed.)
14. F . ·ie tzsche. Assimfawu Zaratustra. Paite II: "Dos grandes acontecimentos". Tradução Ciro Mio-
ranza. São Paulo: Escala Educacional, 2006.
15. Blüttern w n Prevorst Uustinus Kerner] (ed.).

28
6) Um último grupo de causas, os senhores encontram entre os sonhos que
tecipam conteúdos psíquicos futuros da personalidade que não são reconhecido::.
enquanto tais no momento presente. Trata-se desse modo de acontecimentos futu-
ros ainda não passíveis de serem reconhecidos no momento presente.
Estes conteúdos apontam para ações ou situações futuras do sonhador que não
se baseiam em absoluto na psicologia atual do paciente. Principalmente nos sonhos
de crianças, acontecimentos futuros são antecipados de modo surpreendente. São
duvidosos os casos em que, por exemplo, alguém sonha que irá morrer numa catás-
trofe ferroviária e acaba realmente morrendo dessa forma. Poderia tratar-se de uma
antecipação telepática miraculosa.
Por vezes, futuras formações da personalidade são antecipadas durante os pro-
cessos de desenvolvimento, formações estas que parecem ser totalmente estranhas
quando analisadas na situação presente e que não podem ser explicadas a partir
desta. Esses sonhos, quando causam alguma impressão, não são apagados da me-
mória - por vezes por uma vida inteira.

Uma mulher madura entre 4 S e 50 anos me contou um sonho de sua infância que teve aos qua-
tro anos:
Ela é perseguida por uma velha bêbada que usa um corpete de um vermelho intenso.

Isso não havia acontecido de verdade no contexto da senhora em questão. A mulher provinha
de uma familia distinta onde algo assim est ava fora de questão. Ela também não vivia em Londres,
onde algo desse tipo poderia ser visto no teatro, e sim, no campo, em um ambiente muito protegi-
do. - C om sete anos ela teve o segundo sonho impressionante:
Ela precisa lavar roupa branca em uma b acia cheia de sangue.

Novamente a cor vermelha. - A part ir dos sete anos passou a ter um sonho de angústia que se
rep etia de modo estereotipado:
Ela se encontra num tipo d e hall de uma casa p articular. Existe uma p equena porta na lateral,
deve-se passar rapidamente por ela. A p orta deve ser evitada. Ela, porém, sabe que deveria crz-
trar por esta porta e descer por uma escada até um porão escuro.
Isso acaba realmente acontecendo em um sonho, "ela se encontra na escada e quer descer.
Então étomada pelo medo. Percebe vagamente um fantasma e acorda com um grito angustiado".

Ela era uma pessoa que levava uma existência espiritual; também jamais se casou. Somente
aos 45 anos tomou con sciência do fato de possuir algo que se chama sexualidade. Antes isso não
existia, ela não tinha a menor consciência do mesmo. Tornou consciência somente quando p reci-
sou ser tratada, pois foi acometida por uma neurose em alto grau.

Um sonho de perseguição sempre significa: algo quer vir até mim. Quando
você sonha que um touro enfurecido ou um leão ou um lobo lhe persegue, o sigp.ifi-

29
cado é: isso quer estar com você. Você deseja dissociá-lo, concebe-o como algo es-
tranho - mas, desse modo, a coisa toma-se cada vez mais perigosa. A ânsia daquilo
que foi dissociado de se unir com você se toma maior ainda. A melhor atih1de seria:
"Por favor, venha e devora-me!" A elaboração de um sonho desse tipo no âmbito da
análise significa familiarizar a pessoa com a ideia de não resistir, em hipótese algu-
ma, no momento em que esse elemento dela se aproxima. O outro em nós toma-se
um urso ou um leão, pois nós o transformamos nisso. Por isso Fausto diz: "Eras tu
que, no cão, inspiravas-me holTor?" [J.W. Goethe. Fausto I. Tradução Sílvio Meira.
São Paulo: Círculo do Livro, s.d. (N .T.)].
É o seu diabo, é Ylefisto. Até então Fausto encontrava-se dissociado, inconscien-
te do mesmo. Quando a situação se toma insustentável, ele é levado ao suicídio. Ele
precisa descer para encontrar sua sombra. Precisa virar-se para ver seu outro lado.
Desse modo, a tarefa da paciente mencionada anteriormente também era a de
tomar consciência de que ela se encontrava dissociada do mundo subterrâneo. Pre-
cisava reconhecer a existência do sangue, pois o sangue é um líquido muitíssimo
peculiar. É a substância do instinto, aquilo que há de mais vivo no homem. Expres-
sa o fogo e a paixão. O sonho de angústia apontava claramente para tal; era como
uma advertência: "Desça logo por esta escada e veja o que tem lá embaixo!" Caso
ela tivesse dado ouvidos ao mesmo, teria encontrado o outro lado. Té1ia que ter dito
para o fantasma: "Aqui está você! Venha e mostre quem é você!" E assim ela teria
tido a oportunidade de se aproximar de sua totalidade.
Porém, consideramos pouco provável uma criança de quatro anos já estar fami-
liarizada com um problema dessa espécie. Não pode ser. Não podemos julgar uma
criança capaz de ter a psicologia de um adulto. Mas, por alguma razão estranha, in-
conscientemente a criança já possui a psicologia de um adulto. O indivíduo é desde
o nascimento, poderíamos até dizer antes mesmo do nascimento, aquilo que será. O
esquema básico é delineado desde muito cedo. Esses primeiros sonhos provêm da
totalidade da personalidade e revelam diversos aspectos seus que não encontramos
mais adiante, quando a vida nos força a fazer diferenciações unilaterais. Desse
modo, porém, nos perdemos de nós mesmos e necessitamos primeiro aprender a
nos reencontrar. Quando estamos inteiros, nos redescobrimos, conhecendo assim
aquele que sempre fomos. Gostaria de lhes contar ainda outro sonho de crianças:

Trata-se de um sonho de uma menina entre três e quatro anos, que nessa época se repetiu três
vezes. Em seguida p ermaneceu em sua memória tal como se tivesse sido impresso na mesma.
Um longo rabo de cometa passa pela Terra; a terra se incendeia e as pessoas se afogam neste
fogo; em seguida a criança ouve os gritos terríveis das pessoas e por isso acorda.

30
Este é um daqueles sonhos que são chamados de sonhos cósmicos de c1ianças.
São manifestações pouco familiares para nós que, em um primeiro momento, nos dei-
xam perplexos. De onde a criança tirou a ideia do fim da humanidade por meio do
fogo? É uma imagem totalmente arcaica: o fogo final do mundo que destrói o mundo.
O que significa o fato de esta pequena criança produzir uma imagem assim? É impos-
sível interpretá-lo. Um interpretador de sonhos antigo diria: "Essa criança tem um
destino especial, um dia seu vínculo com o cosmo se realizará". Quando pessoas adul-
tas tinham sonhos dessa espécie na Antiguidade, em Atenas informavam o Areopagita
e em Roma o Senado. Entre os primitivos, os homens também se uniam para ouvir
tais sonhos, pois sentiam que estes possuíam um s1gnificado geral.
Nós também devemos tentar compreender um sonho dessa espécie primeira-
mente em relação ao seu significado geral. É como se o sonhador precisasse ser pre-
parado para um papel coletivo. Essas pessoas encontram seu destino na coletivida-
de. Um papel tão coletivo assim naturalmente se opõe a uma vida feliz em família.
Somos dilacerados por nosso destino coletivo.
Esses seis pontos mencionados seriam as causas e condições mais essenciais
dos processos oníricos.
O sonho jamais se resume a uma repetição de vivências anteriores. Existe so-
mente uma exceção específica: os sonhos de "choque ou de granada'', que às vezes
consistem em uma repetição idêntica da realidade. É praticamente uma prova do
efeito traumático. O choque já não pode mais ser psiquificado. Podemos observar
semelhante fato especialmente no caso dos processos de cura, nos quais a psique
tenta traduzir o choque para uma situação psíquica de angústia. Por exemplo:

Alguém sonha que é noite. Está em seu quarto e percebe que alguma coisa est á acont ecendo lá
fora. Não sabe o quê. Mas parece que têm animais selvagens por pert o. Ele olha pela janela e vê
que realmente t êm leões do lado fora. Fecha t odas as portas e janelas. Os leões, entretant o,
acabam entrando na casa e arrombam a porta com um estrondo. - Mas é justamente quando as
granadas explodem novament e!

A tentativa do inconsciente de integrar esse choque de modo psíquico falhou, o


choque original acaba irrompendo novamente. Pessoas que sofrem por causa de
um choque de granada acabam reagindo desse modo, um simples rnído ou algo que
lembra um tiro ou uma explosão basta para provocar ataques nervosos. A tentativa
de transfo1mar o choque em uma situação psíquica, passível de ser superada gradu-
almente, porém, pode ter êxito até o fim de um tratamento, conforme observei no
caso da série onírica de um oficial inglês. Nos sonhos desse homem, a explosão da
granada transformou-se em leões e outros perigos com os quais agora podia con-
frontar-se. De algum modo o choque pôde ser amortecido. Sendo assim, o sonha!lor

31
Este é um daqueles sonhos que são chamados de sonhos cósmicos de c1ianças.
São manifestações pouco familiares para nós que, em um primeiro momento, nos dei-
xam perplexos. De onde a criança tirou a ideia do fim da humanidade por meio do
fogo? É uma imagem totalmente arcaica: o fogo final do mundo que destrói o mundo.
O que significa o fato de esta pequena criança produzir uma imagem assim? É impos-
sível interpretá-lo. Um interpretador de sonhos antigo diria: "Essa criança tem um
destino especial, um dia seu vínculo com o cosmo se realizará". Quando pessoas adul-
tas tinham sonhos dessa espécie na Antiguidade, em Atenas informavam o Areopagita
e em Roma o Senado. Entre os primitivos, os homens também se uniam para ouvir
tais sonhos, pois sentiam que estes possuíam um s1gnificado geral.
Nós também devemos tentar compreender um sonho dessa espécie primeira-
mente em relação ao seu significado geral. É como se o sonhador precisasse ser pre-
parado para um papel coletivo. Essas pessoas encontram seu destino na coletivida-
de. Um papel tão coletivo assim naturalmente se opõe a uma vida feliz em família.
Somos dilacerados por nosso destino coletivo.
Esses seis pontos mencionados seriam as causas e condições mais essenciais
dos processos oníricos.
O sonho jamais se resume a uma repetição de vivências anteriores. Existe so-
mente uma exceção específica: os sonhos de "choque ou de granada'', que às vezes
consistem em uma repetição idêntica da realidade. É praticamente uma prova do
efeito traumático. O choque já não pode mais ser psiquificado. Podemos observar
semelhante fato especialmente no caso dos processos de cura, nos quais a psique
tenta traduzir o choque para uma situação psíquica de angústia. Por exemplo:

Alguém sonha que é noite. Está em seu quarto e percebe que alguma coisa est á acont ecendo lá
fora. Não sabe o quê. Mas parece que têm animais selvagens por pert o. Ele olha pela janela e vê
que realmente t êm leões do lado fora. Fecha t odas as portas e janelas. Os leões, entretant o,
acabam entrando na casa e arrombam a porta com um estrondo. - Mas é justamente quando as
granadas explodem novament e!

A tentativa do inconsciente de integrar esse choque de modo psíquico falhou, o


choque original acaba irrompendo novamente. Pessoas que sofrem por causa de
um choque de granada acabam reagindo desse modo, um simples rnído ou algo que
lembra um tiro ou uma explosão basta para provocar ataques nervosos. A tentativa
de transfo1mar o choque em uma situação psíquica, passível de ser superada gradu-
almente, porém, pode ter êxito até o fim de um tratamento, conforme observei no
caso da série onírica de um oficial inglês. Nos sonhos desse homem, a explosão da
granada transformou-se em leões e outros perigos com os quais agora podia con-
frontar-se. De algum modo o choque pôde ser amortecido. Sendo assim, o sonha!lor

31
pôde superar o efeito do choque na forma de um acontecimento psíquico. Sempre
quando somos atingidos por um choque que ainda se encontra em seu "estado bru-
to'', quer dizer, ainda não recebeu uma forma psíquica, nossos meios psíquicos não
bastam para que seja superado. Quer dizer, não podemos dar [diretamente) conta
de algum ferimento físico ou alguma infecção a partir de meios psíquicos. Podemos
influenciar psiquicamente somente aquilo que é de natureza psíquica. O choque de
granada parece ser especialmente difícil de ser curado, pois muitas vezes se encon-
tra atrelado a graves abalos físicos, por meio dos quais provavelmente são provoca-
dos distúrbios bem pequenos no sistema nervoso que não são de origem psíquica.
Todos os outros sonhos jamais consistem em uma repetição exata de um acon-
tecimento do dia anterior. Existem, sim, sonhos que repetem algum evento do dia
anterior de modo idêntico; mas quando examinamos o sonho de forma mais cuida-
dosa, comparando-o à realidade, percebemos que há diferenças.

Tive uma cliente que sempre negava o significado psíquico dos sonhos. Afirmava tratar-se
apenas de cópias dos eventos do dia anterior. Um dia me contou triunfante que sonhou com uma
experiência do dia anterior exat amente da forma como esta havia acontecido: nesse dia ela tinha
ido ao dentist a. Este lhe introduziu um espelho na boca fazendo um comentário que não quero re-
petir. Essa situação teria se repetido de modo exato no sonho. Quando questionada de forma mais
direta, revelou que subiu - assim como na realidade - a escada que conduz ao consultório do den-
tista, mas que a placa deste se encontrava em um outro lugar. Continuei perguntando: "Mas como
era a porta?" Ela respondeu: "Como a sua".

Devo mencionar que naquela época eu morava no Burghõlzli! 16 Continuei da mesma forma até
que veio à tona o detalhe de que o dentista no sonho est ava usando um pijama! Bem - os senhores
podem imaginar como o sonho continuou!

Ela teve esse sonho, pois o comentário do dentista foi muito ambíguo, apesar de nem ela nem o
dentista o terem percebido. Seu inconsciente, entret anto, percebeu o fato e no sonho o associou a
mim através da transferência erótica. O sonho quis lhe jogar essa transferência na cara.

A meu ver, esse exemplo é o que mais se aproxima da experiência, repetida ver-
balmente, do dia anterior. Jamais vi um sonho que realmente tenha repetido a ex-
periência do dia anterior. Existem apenas repetições aproximadas. Para tal, outro
exemplo:

Um paciente estava presente no momento do atropelamento de uma criança. À noite sonhou


com esse acontecimento. Também aqui o sonho não era totalmente idêntico: a criança est ava dei-

16. C.G. Jung trabalhou de 1900 a 1909 como assistente, médico e médico-chefe com E. Bleuler no
"Burghõlzli'', clínica psiquiátrica da Universidade de Zurique (ed.).

32
~da do outro lado, usava roupas diferentes, pessoas diferentes estavam presentes. O papel doso--
nhador também era outro.

>reste caso, o sonho também utilizou o acontecimento do dia anterior para expressar uma situa
çio importante da vi.da do paciente: este está passando por cima de sua própria criança. Não quer en
xergar onde está sendo infantil. Agora o sonho lhe diz: "Veja só, é assim que a criança é atropelada~.

Os senhores se lembram que no início eu disse que iríamos considerar os so-


nhos segundo o ponto de vista causal. Não sabemos, entretanto, se a causalidade
existe. Porém, se desejarmos trabalhar de modo científico, é indicado partirmos da
hipótese de que os processos da natureza não consistem em um decurso acidental
de eventos isolados, e sim, que existem ligações casuais entre eles. Além disso, par-
timos do pressuposto de que a psique é de natureza finalista, orientada para um fim
de modo inconsciente. Essa hipótese se revelou igualmente importante. No que
tange ao trabalho com o processo onírico, ela resulta no pressuposto segundo o qual
concebemos os sonhos com conexões causais portadoras de sentido e orientados
para um fim. Trata-se de algo essencial para a compreensão dos sonhos.
Freud foi o primeiro a abordar os sonhos com a convicção de que os conteúdos
destes representavam conexões causais que faziam sentido. Rompeu com a supers-
tição científica de que o sonho consiste em uma série acidental de absurdos e, nesse
sentido, impossível de ser explicado. Porém, como sempre acontece, a cada vez que
urna hipótese é aplicada com sucesso, surge imediatamente a necessidade de criar
urna teoria. Freud se deixou seduzir por esse viés, pois transformou um ponto de
"ista, que de fato pode ser aplicado aos sonhos, imediatamente em teoria.
Freud considerava os sonhos prioritariamente uma realização de desejo. Os ca-
sos mais transparentes são os seguintes: Jejuamos, estamos com fome e sonhamos
com uma grande e fabulosa refeição; ou então, estamos com sede e sonhamos com
uma água maravilhosa ou um copo de cerveja. Trata-se de sonhos cujas fontes são
somáticas e que podem ser perfeitamente explicados como realização de desejo.
Freud, no entanto, logo deparou-se com sonhos que não podiam simplesmente ser
explicados como realização de desejo. Então supôs tratar-se de realizações veladas
de desejos, isto é, por alguma razão a realização de desejo não pode acontecer. Des-
se modo, porém, precisa existir um censor. Quem é esse censor? É impossível que
seja a própria consciência! Freud diz: É o resto da consciência que exerce a censu-
ra. Quer dizer, elaboramos um jogo onde apresentamos um desejo a nós mesmos,
encobrindo-o, porém, de modo que não o reconhecemos mais. Contamos uma his-
tória mentirosa para nós mesmos para encobrir aquilo que realmente desejamos.
Dessa maneira, julgamos o inconsciente capaz de grandes feitos, pois aquilo que o
sonho cria teria que ser fruto de muita destreza. Primeiro ele conhece o desejo que

33
não admito para mim mesmo; além disso, é capaz de representá-lo diretamente
caso assim quisesse; mas deseja ocultá-lo de mim e por isso o distorce. Sendo assim,
precisaria tratar-se de um pequeno duende, um espírito malvado, que diz: "Sei exa-
tamente o que você tem em me nte, mas não digo o que é, vou distorcê-lo um pouco
para que você não seja capaz de reconhecê-lo". Mas por que o sonho encobre o de-
sejo? Freud diz que é para não atrapalhar o sono. Pois os desejos são tão incompatí-
veis com nossa consciência que nos fariam despertar e por isso o censor os encobre
de forma benévola. E sta suposição, entretanto, opõe-se à experiência de que nada
ah·apalha mais o sono do que os sonhos - por exemplo, os sonhos de angústia que
interrompem o sono, impossibilitando-o por vezes durante horas. Os senhores po-
dem ver quantas dificuldades enfrentamos quando explicamos tudo exclusivamen-
te a partir da consciência. Freud supõe tratar-se de um desejo do qual não temos
consciência. Sendo assim, não podemos evitar a pergunta: Quem possui esse dese-
jo? D evemos supor que seja o inconsciente. Mas se fore m desejos do inconsciente,
onde é que eles estão?
Foram essas as dificuldades que me fizeram desconsiderar por um momento
toda e qualquer teoria e me aproximar dos sonhos sem nenhum pré-conceito, para
ver como eles realmente funcionam. Para tal apliquei primeiramente a técnica de
Freud, a livre associação. Tive a seguinte experiência: Quando encan-egamos uma
pessoa de associar livremente, descobrimos seus complexos, mas não sabemos se es-
ses complexos estavam igualmente presentes no ponto de partida, no sonho. Por
exemplo, sonhamos com um leão e tecemos associações em relação a ele. Vem à tona
que o leão é um animal ávido. Nos lembramos que também somos ávidos e desejosos -
e imediatamente estamos no meio do complexo. Desse modo Freud conclui que o
complexo já deveiia estar presente no sonho. Para ele, os sonhos são uma expressão
inadequada do complexo, de alguma fantasia desejosa, do poder ou da sexualidade.
Na lógica, essa explicação redutiva é designada de "reductio in primamfiguram "17•
Mas, imaginem que estão viajando em um trem russo ou indiano, os senhores
se de param com le treiros que não conseguem le r. Quando então começam a asso-
ciar livremente, acabam chegando aos seus complexos. Pois eles são altamente atra-
entes. O que ocon-e é o seguinte: durante a associação livre, a sequência da associa-
ção conduz a algum complexo. Isso acontece de forma totalmente natural e sem
qualque r inibição, simplesmente caímos no complexo. Quando então descobrimos
algum complexo a partir da associação livre, isto não significa necessariame nte que
este também se encontra presente em sua imagem onírica. D essa forma cheguei à
conclusão de que este método não era passível de aplicação, pois nos conduz invaiia-

17. Do latim: redução à imagem, ao esquema original (ed.).

34
elmente aos complexos das pessoas, o que, no entanto, não significa que este-.
complexos estejam realmente presentes no sonho. Também poderia ser o caso de o
:nconsciente precisar se livrar justamente desses complexos para poder lidar com
les! Talvez o êxito do inconsciente seja exatamente este! Pois os complexos são os
reais baderneiros e é perfeitamente possível que o inconsciente enfatize justamen-
te o funcionamento natural tentando nos conduzir para fora desta ratoeira dos com-
plexos, visto que o complexo é uma ratoeira. Por exemplo, conversamos de modo
•otalmente sensato com uma pessoa. Assim que tocamos em seu complexo - já era!
A pessoa se toma prisioneira de ideias "estúpidas" e começa a andar em círculos. Os
romplexos inibem, esterilizam e tornam a pessoa monomauíaca. F az sentido supor-
=nos que a própria natureza tenta libertar a pessoa desse ciclo vicioso.
Para obter o real sentido do sonho, procuro dissolver o sonho; concentro-me na
:magem inicial, colhendo associações em relação à mesma - de todos os lados. Sen-
Jo assim, procedo de modo concêntrico em contraposição à associação livre que se
.Jàsta da imagem onírica através de linhas, por assim dizer, ziguezague e, no final,
~ermina não sei onde. Por isso a pergunta que deve ser feita ao sonhador é a seguin-
•e: "O que lhe vem à mente em relação a X, o que pensa sobre isso? E o que mais lhe
em à mente em relação a X?" A pergunta da associação livre, porém, é: "O que lhe
em à mente em relação a X? E depois? E depois?" Nesse sentido, as associações se
e ncontram relacionadas a outras associações e não a X. Opondo-me a esta técnica,
pe1maneço com a imagem inicial de X. Em contraposição à "reductio in primam fi-
;wram", designo este método de amplificatio, isto é, amplificação. Baseio-me nesse
caso no simples princípio de que não entendo o sonho, não sei o que significa, e que
não faço ideia de que modo a imagem onírica encontra-se acomodada na mente de
cada pessoa. Amplifico uma imagem existente até que ela se tome visível.
D evido ao fato de o sonho consistir em uma série de elementos, a amplificação
precisa ser realizada com todos os elementos. Supomos que o primeiro elemento
.'.>nírico seja um "leão". Começo anotando as ideias que surgem em relação a este e
em seguida coloco a expressão encontrada no lugar do elemento onírico. Quando,
por exemplo, o "leão" leva à "sede de poder" do sonhador ou de outra pessoa, coloco
- poder", no lugar de "leão", entre parentes. Procedo da mesma forma em relação
aos outros elementos. No final vemos o significado da frase toda:

Sonho

~~
L (mar) M (mar) N O
(poder) (inconsciente)
Dessa maneira compreendemos o real sentido do fenômeno. Quer dizer, pode-
mos reconhecer o sonho a partir das perguntas que fazemos, por meio da amplifica-
ção pessoal. Necessitamos do contexto de uma imagem para compreender o que a
imagem onírica representa. Só assim entenderemos o âmbito significativo da ima-
gem onírica por inteiro. Somente após passar por várias experiências podemos,
quem sabe, estabelecer igualmente uma teoria sobre a formação e o significado hm-
damental dos sonhos.
Quando aplicamos esta técnica da amplificação pessoal, podemos primeira-
mente verificar o significado subjetivo de um sonho. Tivemos, entretanto, a expe-
riência de que muitas das imagens oníricas não são de natureza individual, e sim,
coletiva 18 .
Não precisamos ir muito longe para encontrar estas imagens universais. En-
contramo-las na linguagem, sem falar daquelas que possivelmente repousam no
fundo de nossa alma. Quando, por exemplo, uma mulher chama a outra de cobra,
todos nós sabemos do que se trata; ou quando dizemos que um homem é uma rapo-
sa esperta, a ideia está igualmente clara. Por isso podemos, quem sabe, interpretar o
"leão" também segundo o uso comum da linguagem: o "leão" é o rei dos animais, ele
é o "poder" e não nos enganamos quando supomos tratar-se deste sentido quando
alguém sonha com um leão, mesmo quando o sonho envolve questões pessoais. Por
essa razão podemos, eventualmente, traduzir o sonho igualmente na ausência de
associações, pois nossas figuras de linguagem já envolvem um arsenal de símbolos.
Também podemos sonhar diretamente com figuras de linguagem, por exemplo, al-
guém está escalando as suas costas [Literalmente: "Suba nas minhas costas!" No
original: Sie konnen mir auf den Buckel steigen! Expressão idiomática que equivale
a "vá se danar!" (N.T. )].
Devido ao fato de nossa linguagem já conter imagens tão gerais, existe a possi-
bilidade de compreendermos os sonhos, pelo menos no que tange ao seu sentido
mais geral, igualmente na ausência de associações.
Isso é fundamental no caso de sonhos que não são pessoais, sonhos nos quais as
imagens coletivas encontram-se em primeiro plano, imagens para as quais temos
poucas ou quaisquer associações. Conforme mencionei de início, os sonhos de cri-
anças pertencem a este grupo, pois dificilmente obtemos associações em relação a
eles. Também os adultos frequentemente têm sonhos para os quais não há associa-
ções, de modo que não podemos saber qual o contexto da imagem onírica. Parecem
tão exóticos que nos custam muito esforço para desvendarmos seu sentido. Sonhos

18. C.G. Jung desenvolveu a noção do inconsciente coletivo em sua obra Transformações e Símbolos
da libi.do; vide igualmente OC 5, prefácio da 2ª e 4ª edições.

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desse tipo contêm sempre uma parte mitológica que não pode ser interpretada
partir de perguntas e amplificações pessoais. Também não basta nos limitarmos às
imagens gerais da língua. A compreensão exige um saber positivo, precisamos co-
nhecer os símbolos e os motivos mitológicos. Precisamos saber o que existe na "des-
pensa" da mente humana, precisamos conhecer os documentos dos povos. Neste
seminário somos forçados a aplicar o método etnopsicológico, pois lidamos com so-
nhos infantis em relação aos quais em muitos casos nos falta o material das associa-
ções pessoais. Precisamos ver até onde podemos ir dessa forma. Nem sempre obte-
remos uma solução satisfatória. A finalidade deste seminário é nos exercitarmos a
partir do material. Não se trata de especular por meio de associações brilhantes.
Precisamos nos contentar em reconhecer os símbolos dentro de seus contextos psi-
cológicos mais amplos, para assim penetrar na psicologia dos sonhos. Quero lhes
dar um breve exemplo:

O sonhador encontra-se em uma casa simples com uma camponesa. Conta para a mulher so-
bre uma longa viagem para Leipzig. No horizonte aparece um caranguejo enorme que é ao
mesmo tempo um sáurio e que pega o sonhador com suas pinças. Por alguma razão incrível, o
sonhador segura uma pequena vara com a qual toca a cabeça do monstro. Este cai morto.

O que existe de típico nesta situação? Há uma camponesa, quer dizer - algo
primitivo 19. De qualquer forma, o fato de o homem em questão precisar sonhar com
uma camponesa tem algum sentido. Era uma camponesa mais velha - talvez sua
mãe? Vamos pôr um ponto de interrogação aqui! É para esta mulher que o sonha-
dor conta seu plano de viajar para Leipzig. Precisa existir uma relação causal entre
estes dois elementos dos sonhos. O encontro entre o sonhador e a camponesa traz à
tona o plano. Onde existe uma relação entre uma suposta mãe, uma mãe muito sim-
ples, e um grande plano? Na literatura existem exemplos para tal.

Ouvinte: "Peer Gynt".


Prof. Jung: Sim, e quem mais? O poeta morreu há pouco.
Ouvinte: Barlach.
Prof. Jung: Sim, Barlach em seu livro Der tote Tag [O dia morto]. Neste livro, o
pai cego relata ao filho as lindas visões que teve durante a noite. E o filho diz: ''Todas
elas precisam se realizar!" Mas sua mãe retruca: "Alguém assim precisa primeiro en-
terrar a sua mãe". E mata o cavalo com o qual seu filho queria partir para o mundo.

19. Jung certamente faz uso da palavra primitivo no sentido de "original, arcaico". Cf. tb. C.G. Jung.
Tipos psicol,ógicos, OC VI, par. 764 (par. 754 na edição em língua alemã) (ed.).

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Temos aqui a relação entre a mãe e os planos do filho: A mãe não quer libertar o
filho. O menino tem grandes planos que pode realizar somente se a mãe o liberar
para tal. Quanto mais se encontra vinculado à mãe, maior os seus planos. As visões
devem de fato ser muito fascinantes para seduzir o menino a se separar da mãe, pois
permanecer com a mãe significa ficar em um estado irresponsável e inconsciente;
por isso - jamais se afaste da mãe! Abandonar os pais significa um "movimento des-
sacralizante para trás" (Nietzsche); é um sacrilégio separar-se da mãe. Podemos
concluir então que os grandes planos do filho encontram-se associados ao vínculo
com a mãe.
Os dois símbolos, a "mulher" e o "plano", são seguidos por um terceiro, o
"monstro". Tão logo o sonhador contou seu plano, aparece um enorme animal com
pinças, um caranguejo-lagarto, uma artrópode, um monstro que o toma com suas
pinças. Isto também é a mãe, p orém a outra, a mãe que traz a morte. A mãe tem dois
aspectos: por um lado dá a vida ao filho, cuida dele e o cria; mas logo que este deseja
partir, ela o impede, pois caso contrário seu coração irá se partir. Por isso, a mãe em
Barlach diz: "Alguém assim precisa primeiro enterrar a sua mãe". O filho, porém,
não é capaz d e tanto, não consegue assassinar sua mãe e assim ela o devora. A mãe
também é um sarcófago ("devoradora de carnes"). É como a mãe terra, da qual sur-
gimos e para a qual retornamos; é a vida, mas também a morte; ela é a mulhe r ances-
tral no Ocidente, conforme é chamada em um mito polinésio20 • Por isso, os etruscos
ente rravam as cinzas no interior da estátua da deusa Matuta, o que significa: no
ventre da de usa21 . Dessa forma os mortos retornavam ao ventre da mãe. -No sonho
em questão, a mãe devoradora aparece como monsh·o. Isso nos faz concluir que o
sonhador não contou com o seguinte: não será capaz de superar a mãe. De primeira,
consegue prosseguir em função de uma vara, isto é, de um procedimento mágico,
algo que não o salva realmente. - Podemos explicar este sonho de modo satisfatório,
mesmo sem qualquer material pessoal. Trata-se de um drama eterno que aqui se re-
pete a partir de um caso particular: este homem tinha planos demasiadamente
grandes, queria ir longe demais; na realidade, ainda não era capaz de desvenci-
lhar-se de seu anseio nostálgico de voltar ao passado e por isso sucumbiu. Realmen-
te foi um drama. No auge de sua vida, o inconsciente o empurrou para uma neurose.
Começou a sentir medo de altura, sofrer de vertigem. Quis livrar-se de seu sofri-
mento por meio da magia, forçar a realização do plano e deste modo sucumbiu.
Este exemplo demonstra que podemos explicar os sonhos razoavelmente a par-
tir de um método exclusivamente objetivo, sem associações pessoais.

20. A mulher ancestral no Ocidente chama-se Hine-nui-te-po. ln: Südseemiirchen; ed. por P. Manbruch.
21. Deusa ~atuta. Cf. C.G. Jung. Símbolos da transformação. OC 5, par. 536 e ng. 100 (ed.).

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Gostaria ainda de ilustrar outra questão a paitir deste exemplo. No caso de ~
nhos complicados, aconselho desmembrar o sonho em várias partes. Desejo ofere-
ce-lhes um esquema geral.
1) Local: Lugar, espaço de tempo, "Dramatis Personae"
2) Exposição: Apresentação do problema
3) Peripécia: Apresentação da transfom1ação que, entretanto, pode igualmente
abrir espaço para uma catástrofe
4) Lysis: Resultado do sonho. Desfecho que faz sentido. Apresentação da natu-
reza compensatória do enredo do sonho.

Vamos analisar cada elemento do sonho anterior:


1) Local: Lugar: casa simples. - "Dramatis Personae": Camponesa, sonhador.
2) Exposição: Os planos ambiciosos para o futuro do sonhador, sua ascensão.
3) Peripécia: O caranguejo que captura o sonhador com suas pinças.
4) Lysis: o monstro que cai morto.
Esta é a estrutura típica do sonho. Procurem considerar os sonhos sob este as-
pecto! A maioria dos sonhos evidencia essa estrutura dramática. A tendência dra-
mática do inconsciente revela-se igualmente no caso do homem primitivo: aqui,
provavelmente, tudo é apresentado de modo dramático. Encontra-se aqui a base
para o desenvolvimento da estrutura dramática dos mistérios. Toda a complexidade
dos rituais das religiões posteriores remonta a essas origens.

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