PEÇA EM 3 ATOS
30/OUTUBRO/1971
VALE DO AMANHECER
TIA N E I V A
PERSONAGENS:
1º A T O
PAI JOÃO
ZEFA
Tô com muita dó do Nho Dico. Vai sofrê muito, longe da Silvina. Ocê
sabe que ela vai acompanhá Mariazinha. Já pensô nisso, João? Coitadinho
do Nhô Dico! Sofre calado, sonhando com a Silvina... (melancolia): Preto
num tem direito de amá. Tem só que oiá de longe. Num sei que vai sê dele
não... (vira-se para Silvina): Vá se arrumá, menina. Daqui a pôco ocê tem
que prepará a Sinhazinha. (Silvina sai da sala. Zefa continua em tom
confidencial): Sabe, João? Nhô Dico vai oiá Silvino prepará a Sinhazinha. Ele
tá arriscando o côro. Mais, também, coitado, farta pôco tempo pra ele num vê
a Silvina mais.. Tô pensando como o coitadinho vai sofrê!... (Silvina entra
atabalhoada e tropeça num vaso. Senta-se, olhando para Zefa, que continua
falando): Coitadinha da Mariazinha! Vai se casá a contragôsto. Tão boa, tem
tanto amô no coração!... Ela fala com nóis como se a gente fosse branco. O
home é rico, mais ela num tem amô no coração... Num adianta, né, João?
É... branco também sofre! (continua em tom de revolta): E, no entanto – cruiz
credo! Tenho até medo de falá... A Dorotéia qui divia tá sofrendo...
PAI JOÃO
PAI JOÃO
NHÔ DICO
É pruquê agora só Deus pode fazê nóis encontrá de novo. Quero ficá
mais perto dela enquanto ela num vai simbora. Eu acridito muito na bondade
de Sinhá Maria.
ZEFA
PAI JOÃO
Pesa tuas palavras, Zefa, pra dispois tu dizê... O branco custuma dizê
qui nêgo num tem alma i qui num é fio di Deus. No entanto, só dipois da
morte é qui voismicê vai sabê pruquê. Deus tingiu nosso côro pra modi nóis
sirvi os brancos...O chicote... Nada, num importa! Ah, Zefa, si tu subesse qui
nêgo já foi branco... Si subesse as istripulias que nêgo já fez... Si tu subesse
qui muitas vêis Sinhá Dorotéia já foi preta como tu, ocê fazia as coisa direito i
num ficava aí provocando, escunjurando... Reza por ela. Só Deus jula as
criaturas, mesmo a Sinhazinha Dorotéia cum sua mardade...
ZEFA (assustada)
SILVINA (resmungando)
NHÔ DICO
Num é nada não, Silvina. Já sinto a dor da sodade! Deus vai apartá ocê
de mim... (soluça) i eu num vô dá conta de vivê longe d’ocê... (olham-se
mutuamente por longo tempo)
Veja, João, pruquê tô revortada. Nêgo só tem é qui sofrê, mais nada!
PAI JOÃO
PAI JOÃO
ZEFA
Cruiz credo! I tomara que ocê tenha dado muita chicotada boa. E tenha
inté matado... Cruiz credo! Aquela amardiçuada da Sinhazinha Dorotéia...
PAI JOÃO
ZEFA (gritando)
PAI JOÃO
Tu sabe muito bem qui tâmo aqui pintado di preto. Foi Deus qui pintô
pra nossa salvação, pra nóis pagá o qui fizemo. Já ti disse qui todos nóis
fomo branco.
PAI JOÃO
Já ti disse qui só a Deus cabe o julgamento. E tu continua teimando.
Zefa, teu fio é um esprito de lúis. Num vê qui ele ama, cum tôda pureza, Nha
Silvina, qui também é uma enviada de Deus no meio dessa negrada suja qui
tá por aí?
Verdade, Pai João? Cruiz credo! Qui nos valha Nosso Sinhô Jisuis
Cristo! (beija uma cruz pendurada em seu pescoço). Ocê tá mi fazendo
alembrá qui Silvina foi escolhida pela Sinhazinha e vai imbora. I o qui vai sê
do meu pobre fio?... (já demonstrando alarme)
PAI JOÃO
Num ti preocupa, Zefa. Nhô Dico tá longe du alcance de tuas mão. Ele
é responsável pelo teu esprito. Ocê é a única conta qui ele tem pra pagar
neste chão.
ZEFA
Mas, si a Silvina fô embora, meu fio se mata! Tenho certeza disso. Ele
num resisti a dor. (Ruídos de pessoas chegando. Dois crioulos passam)
PAI JOÃO
Vai, vai, num tenha medo qui seu fio num se suicida. As mãos de Deus
tão sobre ele neste instanti. (Pai João e Zefa saem. Zefa está preocupada.
Entram as duas sinhazinhas. Dorotéia gesticula, esbaforida)
DOROTÉIA
Não ligue para isto, papai. Ele não fez por mal. Por favor, não faça mal
a ele! (o pai, raivoso, arrasta Dico para fora. Mariazinha grita, pedindo
piedade. Os três ficam na sala, parados. Ouve-se apenas o barulho das
chibatadas. Dorotéia vai até a janela e volta gargalhando)
DOROTÉIA
AMÂNCIO
SILVINA
MARIAZINHA
Vou te matar! Vou te matar! Vou fazer correr o teu sangue para
satisfazer nosso pai! Será para sua satisfação, meu pai!...
AMÂNCIO
Pelo amor de Deus, minha filha, largue sua irmã e esse punhal!...
( enquanto o pai grita e Mariazinha está cheia de fúria, ouve-se a voz
de Pai João, que se encaminha para ela e fala com suavidade:)
PAI JOÃO
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DOROTÉIA
MARIAZINHA (gritando)
AMÂNCIO
Viu, Nhô João? Não compreenderam mesmo o teu gesto. Eles gostam
é de sangue! Só tu és como eu. Eles gostam, mesmo, é de sangue... Por que
não me deixou matar Dorotéia? (virando-se para Amâncio e Dorotéia:) Saiam
daqui! Agora, só obedecerei ao Pai João.
PAI JOÃO
Não, fia, não pode fazê isso! João vai pra senzala, descansá com os
seus. Voismicê deve di ir cum teu pai e cum sinhazinha tua irmã, pra tua
casa.
DOROTÉIA (gritando)
Oh, meu pai! Deixa, deixa, pai. Dê ordens para João levar Mariazinha
para a senzala. Ela gosta mais deles do que dos brancos.
PAI JOÃO
Vai, minha fia! Vai, sinhazinha, vai cum teu pai e tua irmã, e num te
preocupe voismicê cum nada. Num deve preocupá cum nêgo véio. Obedece
teu pai e tem compaixão da sinhazinha Dorotéia. (enquanto Pai João fala,
Mariazinha vai se recuperando) Siga teu pai, sinhazinha. Onde tá a caridade
do teu coração, sempre tão bom, que sempre foi manso? Segue teu pai e,
dispôs, volta qui vô isclaricê pra voismicê a passage de Nosso Sinhô Jisuis
Cristo, que nos vale aqui na Terra. Vai, minha sinhazinha!...
(Sem nada dizer, Mariazinha se aproxima do pai, que lhe pega nas
pontas dos dedos, e vão para casa)
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FECHA O PANO
(FIM DO 1º ATO)
2º A T O
PAI JOÃO ESTÁ NA SALA, ESTUPEFATO COM TUDO QUE
ACONTECEU, QUANDO UMA LUZ RÓSEA – A LUZ DE YARA –
ILUMINA O CENÁRIO NITIDAMENTE. OUVE-SE A VOZ DE
MÃE YARA E PAI JOÃO, QUE É MÉDIUM AUDITIVO, APENAS,
FAZ GESTO DE QUEM PROCURA A ORIGEM DA VOZ.
YARA
João, meu pobre João, chegou o teu dia. Tens, como missão, essa tua
jovem sinhazinha e o desventurado Nhô Dico.
JOÃO
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SALVE DEUS!