Universidade Lusófona
“Vigiar e Punir”
Michel Foucault
2005
Nota introdutória
Contactar com uma obra pela primeira vez, quando dela já se têm feed-backs
múltiplos, cria em nós expectativas por vezes goradas.
Não foi o caso da leitura de “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault. Aquilo que
ouvíramos de positivo, sobre a obra, ficava bastante aquém da primeira impressão que
nos causou. Aderimos imediatamente à temática, às suas múltiplas abordagens
(histórica, cronológica, social, antropológica, etnológica...), bem como aos seus
capítulos, individualmente considerados. De menos positivo assinalámos logo a
péssima tradução, que por vezes nos confundiu e dificultou o entendimento de alguns
conceitos e a explanação de algumas ideias.
Partimos para o trabalho cheias de entusiasmo. E foi aí que surgiu a decepção.
Ao tentarmos elaborar a recensão da obra, na sua íntegra, tivemos consciência que
tentáramos “um passo maior que a perna”. A sua vastidão, a sua densidade, a
proliferação de conceitos e análises; a forma como foi escrita, numa perspectiva
arqueológica, genealógica, cronológica, histórica, com obrigatórios e inevitáveis
avanços e recuos no tempo, em cada uma das partes e para cada um dos capítulos; as
repetições e as redundâncias que lhe conferem uma maior força, tornam-na uma obra de
leitura interessante e acessível, mas de apreciação crítica, escrita, muito difícil. E
também, inevitavelmente, muito longa.
Por isso, mesmo ajudadas por leituras adjacentes que fizemos, de Foucault e
sobre Foucault, não nos atrevemos a dizer que fizemos a recensão crítica da obra.
Tentámos, mas quando muito conseguimos um resumo apreciativo, ou um esboço de
resumo, ou um estudo acerca... (deixamos a escolha da qualificação ao critério de quem
vai ter a ingrata e cansativa missão de o ler e avaliar).
Não lamentamos, contudo, tê-lo feito, excepto pelo muito tempo gasto.
Para além do prazer intelectual, deu-nos uma visão histórica, bastamente documentada,
da maneira como evoluíram, ao longo dos séculos, os conceitos e as práticas relativos
aos desviados, aos diferentes, aos anormais, o que contribuiu bastante para termos uma
percepção mais abrangente de uma temática com que todos os dias nos defrontamos, no
nosso papel de professora de educação especial.
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1
Rússia – 1769; Prússia – 1780; Pensilvânia e Toscana – 1786; Áustria – 1788; França – 1791, 1808 e
1810. (p.13).
2
Usou-se o método autor-data para todas as citações, à excepção das que se referem à obra em análise.
4
O código francês de 1791, no seu artigo 3º, previa já que todo o condenado à
morte teria a cabeça decepada o que, nesses tempos revolucionários, tinha três
significados: 1 - os delitos do mesmo género seriam punidos pelo mesmo género de
pena, quaisquer que fossem a classe ou a condição do culpado; 2- uma só morte por
condenado, obtida de uma só vez e sem recurso a suplícios longos e cruéis; 3- O castigo
unicamente para o condenando (a decapitação, pena dos nobres, era a menos infamante
para a família dos criminosos)3.
A guilhotina, utilizada a partir de 1792, veio a revelar-se a máquina adequada a
tais princípios. A morte, a execução capital, passou a ser reduzida a um acontecimento
visível mas instantâneo. Ela aplicava a lei já não a um corpo real e susceptível de dor,
mas a um sujeito jurídico detentor, de entre outros direitos, do de existir. A guilhotina
devia, assim, ter a abstracção da própria lei e ser a máquina das mortes rápidas e
discretas, marcando uma nova ética da morte legal. No entanto, alguns excessos
revolucionários logo a revestiram de um grandioso rito teatral. Durante anos, deu
espectáculo. Depois, foi necessário restringir cada vez mais o seu uso, no espaço e no
tempo, escondê-la e reduzir o número de testemunhas, para que a execução deixasse de
ser um espectáculo e permanecesse um estranho segredo entre a justiça e o condenado.
O poder sobre o corpo continuou a existir até meados do séc. XIX. A pena já não
se centralizava no suplício como técnica de sofrimento, mas permanecia um fundo
supliciante nos modernos mecanismos de justiça criminal, embora se tenha registado
um evidente afrouxamento da severidade penal, afrouxamento esse que foi visto,
durante muito tempo, como um fenómeno quantitativo: menos crueldade - menos
sofrimento - mais suavidade - mais respeito - mais humanidade. “Que o castigo (…) fira
mais a alma do que o corpo” (p. 21), significa claramente uma mudança de objecto. De
facto, já não é ao corpo que se dirige a punição mas à alma. À expiação sobre o corpo
deve suceder um castigo que actue, fundamentalmente, sobre o coração, o intelecto, a
vontade, as disposições… E o aparato da justiça punitiva tem que se ater a uma nova
realidade, uma realidade incorpórea.
Mas porque considera restritiva, ou mesmo falsa, a ideia de que a evolução das
regras do direito ou dos processos penais tenha a ver com uma mudança na
sensibilidade colectiva, com um progresso do humanismo ou com o desenvolvimento
das ciências humanas, mas antes com novas tácticas de poder, M.F. pretende que o seu
estudo obedeça a quatro regras gerais: 1- que não se debruce apenas sobre os efeitos
repressivos dos mecanismos punitivos, mas antes tome a punição como uma função
social complexa; 2 - que analise os métodos punitivos como técnicas de outros
processos de poder, como táctica política; 3 - que verifique se não há uma matriz
comum entre direito penal e ciências humanas, ou seja, se não se deve colocar a
tecnologia do poder quer no princípio da humanização da pena quer no do
conhecimento do homem; 4 - que verifique se a inserção na prática judiciária de todo
um saber científico não é efeito de uma transformação na maneira como o próprio corpo
é investido pelas relações de poder.
Michel Foucault, não negando a história dos corpos feita até então por
historiadores, médicos, biólogos, geógrafos, vem introduzir alguns conceitos novos: a
economia política do corpo (o corpo está directamente mergulhado num campo político,
é investido como força de produção por relações de poder e de dominação e constitui-se
como força de trabalho); a tecnologia política do corpo (saber e controle do corpo, que
calcula e organiza tecnicamente a sua submissão por forma a torná-lo força útil e corpo
produtivo); a microfísica do poder (disposições, manobras, tácticas, técnicas, estratégias
de dominação).
Nada disto seria possível se o saber não estivesse directamente implicado com o
poder. “O poder produz saber (…); não há relação de poder sem a constituição
correlativa de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao
6
mesmo tempo relações de poder” (p. 30). Assim, a evolução das técnicas punitivas, a
anatomia política do corpo, levam ao aparecimento de novos conceitos e campos de
análise: o psiquismo, a subjectividade, a personalidade, a consciência, e edificam novas
técnicas e discursos científicos.
Para o autor, o suplício judiciário devia ser entendido sobretudo como um ritual
político, com uma função jurídico-política, fazendo parte integrante das cerimónias de
manifestação do poder. A cerimónia punitiva devia ser aterrorizante. O que devia estar
por detrás não era a economia do exemplo mas a política do medo, e o suplício não
restabelecia a justiça, apenas reactivava o poder. Assim, a execução pública era mais
uma manifestação de força do que um acto de justiça, uma afirmação da correlação de
forças que dava poder à lei.
Para MF, como para outros autores por ele citados (Rusche e Kircheimer), a
aceitação mais ou menos pacífica dos suplícios tinha uma dupla fundamentação. Por um
lado, o desprezo pelo corpo tinha a ver com uma atitude geral em relação à morte,
decorrente não só dos valores do cristianismo mas também de questões biológicas,
como a fome, as epidemias, a enorme mortalidade infantil, que levavam a que fosse
uma coisa familiar, aceitável, natural, até. Por outro, o corpo humano não tinha ainda,
para os regimes de produção existentes, o valor de mercado que lhe viria a ser conferido
pelas sociedades de tipo industrial.
Mas não se deve esquecer que o personagem principal, nas cerimónias do
suplício, era o povo, que por vezes assumia um papel ambíguo. Assistia-se,
frequentemente, a como que uma inversão de papéis: os poderes eram ridicularizados e
os criminosos transformados em heróis. O perigo maior desses rituais de suplício,
organizados para afirmação de um poder infalível e invencível era, então, um perigo
político, a solidariedade do povo para com os que sofriam a pena, sentindo-se
ameaçado, como eles, por uma violência legal sem proporção nem medida.
Esta agitação dos mais pobres, dos que não tinham possibilidade de ser ouvidos
na justiça, sobretudo quando se tratava de execuções injustas ou se registava uma
diferença de penas segundo as classes sociais, não podia deixar de preocupar a lei. Esses
movimentos, partindo de baixo, propagaram-se e chamaram a atenção dos reformadores
dos séculos XVIII e XIX, levando-os a perceber que as execuções, afinal, não
assustavam o povo, pelo que um dos seus primeiros actos foi exigir a sua suspensão.
Resumindo, na perspectiva de MF, não foi qualquer sentimento de humanidade para
com os condenados o factor de maior relevância no abandono da liturgia dos suplícios.
Houve, isso sim, da parte do poder, um medo político diante do efeito desses rituais
ambíguos.
comum: a partir de agora, há que fazer a verificação do crime e a prova de culpa para
que se possa criar um clima de certeza irrefutável; como uma verdade matemática, a
verdade do crime só pode ser admitida quando inteiramente comprovada, e, até chegar
esse momento de demonstração final, todo o acusado deve ser considerado inocente; 6 -
a regra de especificação ideal: é necessário um código, exaustivo e explícito, que defina
os crimes fixando as penas; (a codificação do sistema delitos-castigos e a modulação do
par criminoso-punição).
na escuridão dos cartórios sejam abertos a todos os cidadãos que se interessam pelo destino dos
condenados” (p. 88)
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Assim, na época clássica foram construídos alguns dos que viriam a ser
considerados grandes modelos do encarceramento punitivo. O objecto da pena não
eram já representações mas de novo o corpo e a alma do indivíduo. Os instrumentos
utilizados não eram mais os discursos, os sinais, mas formas de coerção, esquemas de
limitação, exercícios repetidos. A finalidade já não era reconstruir o sujeito de direito,
preso ao pacto social, mas de novo o sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos,
regras e ordens, e que interiorizaria uma autoridade exterior a si.
Tratando-se de formar indivíduos submissos, o encarceramento trazia consigo
um novo factor facilitador: o segredo. Porque a dimensão do espectáculo, ou da partilha
da pena por terceiros, era totalmente excluída, o poder era total, como o era a
autonomia de quem aplicava a punição. Este segredo e esta autonomia no exercício do
poder de punir vinham pôr em causa toda a teoria política da penalidade proposta pelos
reformadores: a sua clareza, a sua transparência, a negação do arbítrio…
Castigos secretos e não codificados pela legislação, um poder de punir que se
exerce na sombra, de acordo com critérios e instrumentos que escapam ao
controle – é toda a estratégia da reforma que corre o risco de ser
comprometida. Depois da sentença, é constituído um poder que lembra o que
era exercido no antigo sistema. O poder que se aplica às penas ameaça ser
tão arbitrário, tão despótico, quanto aquele que antigamente as decidia
(p.115).
A questão era: o que se pretende, afinal? Uma cidade punitiva, com um poder
penal repartido por todo o espaço social, legível como um livro aberto? Ou uma
instituição coerciva, com um funcionamento compacto do poder de punir, e um sistema
de autoridade e de saber que aposta na sua gestão autónoma e isolada, na correcção
individual, na sua separação do poder judicial propriamente dito? Como se conseguirá
melhorar a institucionalização do poder de punir, tal como ele era entendido no final do
séc. XVIII?
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A resposta a esta questão não é simples já que coexistem, nesta época, três
maneiras de organizar este poder. A primeira, como já vimos, é a do velho direito
monárquico, na qual a punição é um ritual de vingança e um cerimonial de soberania,
visando aterrorizar os espectadores. A segunda e a terceira, a dos reformadores e a
carcerária, respectivamente, correspondem a uma concepção preventiva, utilitária,
correctiva, de um direito de punir que pertenceria à sociedade inteira, mas não
divergente nos dispositivos utilizados, como antes vimos.
Para MF não se podem reduzir estes três dispositivos, que se defrontam na
segunda metade do séc. XVIII, a teorias de direito, nem se pode identificá-los com
aparelhos ou instituições que derivam de escolhas morais. São três modalidades, de
acordo com as quais se exerce o direito de punir. São três tecnologias de poder.
Porque é que a primeira, a prisão, se impôs? É o que tentará explicar no decurso
da sua obra.
A disciplina não nasceu, então, na era clássica, mas acelerou-se e mudou a sua
escala, criou todo um conjunto de técnicas, um corpo de processos e de saberes, de
descrições, de receitas e de dados. Só que, para que ela se exercesse eficazmente, a
condição primeira era a da distribuição eficiente dos indivíduos no espaço. E surgiram
várias técnicas: o encarceramento, numa cerca heterogénea, de vagabundos e
miseráveis; os colégios com internato, segundo o modelo do convento; os quartéis, que
fixam o exército, evitando deserções e conflitos com as populações e autoridades civis;
os hospitais, onde aliás todos estes mecanismos tiveram início, por necessidade do
controle e vigilância médica das doenças e perigo de contágios.
Não foi por acaso, ou por razões de mera funcionalidade, que esta distribuição
disciplinar do espaço passou a revestir-se de um carácter de utilidade. Isto aconteceu
12
6
Haverá em todas as salas de aula lugares determinados para todos os escolares de todas as classes, de
maneira que todos os da mesma classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo. Os escolares das
lições mais adiantadas serão colocados nos bancos mais próximos da parede e em seguida os outros
segundo a ordem das lições avançando para o meio da sala... Cada um dos alunos terá seu lugar marcado
e nenhum o deixará nem trocará sem a ordem e o consentimento do inspector das escolas. Será preciso
fazer com que aqueles cujos pais são negligentes e têm piolhos fiquem separados dos que são limpos e
não os têm; que um escolar leviano e distraído seja colocado entre dois bem comportados e ajuizados, que
o libertino ou fique sozinho ou entre dois piedosos.” (p. 135)
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útil, sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade. A exactidão, a aplicação e
a regularidade eram as virtudes fundamentais do tempo disciplinar. A elaboração
temporal do acto era, então, um aspecto muito importante da disciplina. Na segunda
metade do séc. XVIII começa a ser dada uma particular atenção ao grau de precisão dos
movimentos, à decomposição dos gestos, à maneira de ajustar o corpo a imperativos
temporais. A esta programação da elaboração do acto, imposta do exterior mas
controlada do interior, viria MF a chamar “esquema anátomo-cronológico do
comportamento” (p. 138). A melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo
era condição de eficácia e de rapidez: na escola, no desenho da caligrafia; nos quartéis,
no simples acto de marchar; na fábrica, na produção produzida. “Um corpo disciplinado
é a base de um gesto eficiente” (p. 139), e através de prescrições explícitas e coercivas,
o poder vai-se introduzindo e amarrando o corpo ao objecto. A disciplina corporal vem,
assim, criar uma nova economia do tempo. E o tempo disciplinar começa a impor-se na
prática pedagógica, na organização militar, nas oficinas. Tem início, assim, uma
pedagogia analítica, minuciosa, que decompõe as matérias de ensino e hierarquiza cada
fase da progressão, decorrente de uma outra organização e controle do tempo e de uma
disciplina corporal mais eficaz, que possibilita uma intervenção de diferenciação,
correcção, castigo ou eliminação, a cada momento.
A época clássica, em grande parte por razões de ordem económica, vem colocar
uma questão nova: a da relação entre o indivíduo e o colectivo, entre a parte e o todo.
Para que fosse mais rentável, mais eficiente, mais útil, mais produtivo, o todo teria de
ter um “efeito superior à soma das forças elementares” (p. 147) que o compunham, o
que implicava que houvesse combinação e até cooperação. Nasce assim a força do
trabalho social tal como, ainda hoje, é entendida no Ocidente, e com ela uma nova ideia
de disciplina e de corpo. A disciplina já “não é mais simplesmente uma arte de repartir
os corpos, de extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forças para obter um
aparelho eficiente (...). O corpo singular torna-se um elemento que se pode colocar,
mover, articular com outros (…), [constituindo-se] como peça de uma máquina
multissegmentar” (pp. 147-148). Esta combinação de forças, cuidadosamente medida,
exige um sistema preciso de comando, com ordens eficientes, breves e claras, uma
espécie de código cujos sinais sejam prontamente obedecidos.
É por tudo o que ficou dito que MF atribui à disciplina quatro características (é
celular, é orgânica, é genética e é combinatória) e outras tantas funções (constrói
quadros, prescreve manobras, impõe exercícios, organiza tácticas).
leproso era visto dentro de uma prática de rejeição, do exílio-cerca (…) uma massa que
não tinha muita importância diferenciar” (p. 175). Aí, tratava-se de uma força
disciplinar que existia “para destacar mais do que para combinar e compor, para repartir
massas mais que para recortar detalhes, para exilar mais que para esquadrinhar”
(Deleuze, p. 179).
O exílio do leproso e a prisão domiciliária da peste não trazem consigo,
portanto, o mesmo sonho político. O primeiro, representa o ideal de uma comunidade
pura. O segundo, o de uma sociedade disciplinada, exclusiva, segregadora. Esquemas
diferentes mas nem por isso incompatíveis. Lentamente eles vão-se aproximando, e o
séc. XIX acaba por aplicar ao espaço de exclusão de que o leproso era o habitante
simbólico a técnica de poder própria do quadriculamento disciplinar. O mesmo fez,
aliás, com os mendigos, os vagabundos, os loucos, os violentos, pelo que surge, no
início do século, “o asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correcção, o
estabelecimento de educação vigiada, os hospitais, a divisão binária de marcação louco
– não louco, perigoso – inofensivo, normal – anormal” (p. 176). Punir passa, então, a
ser uma função formalizada, como o são tratar, educar, disciplinar, fazer trabalhar, na
prisão, no hospital, na escola, na caserna, na oficina.
As mudanças da lei no decorrer do séc. XVIII têm como fundo uma nova
distribuição dos ilegalismos. As infracções, como vimos, tendem a mudar de natureza,
incidindo cada vez mais sobre a propriedade e já não tanto sobre as pessoas. Os poderes
disciplinares recortam e formalizam essas infracções de um outro modo, definindo uma
forma original designada por delinquência, que permite uma nova diferenciação, um
novo controlo dos ilegalismos. Por isso, o direito penal atravessa uma evolução que o
faz enunciar os crimes e os castigos em função da defesa da sociedade, já não da
vingança ou da reparação do soberano. São símbolos, signos, que são endereçados à
alma ou ao espírito, e estabelecem associações de ideias entre a infracção e a punição
(código).
Começa por se dizer que a prisão é menos recente do que se pensa, que não
decorre do nascimento dos códigos penais, que lhe pré-existe. Já antes funcionavam
modelos de detenção penal nos quais, sem se usar a denominação e a forma – prisão, os
indivíduos eram repartidos e fixados espacialmente, por forma a melhor se poderem
observar, controlar e treinar. Então que novidade representou o surgimento da prisão?
Supostamente, a do sentido de humanidade, de justiça social. A burguesia, classe
dominante na passagem dos dois séculos, pretendeu criar “uma justiça que se diz igual,
um aparelho judiciário que se diz autónomo (...) o nascimento da prisão, pena das
sociedades civilizadas” (p. 207).
Desde os primeiros anos do séc. XIX a prisão tornou-se, então, uma coisa tão
óbvia que se impôs sem alternativas e fez esquecer todas as outras punições imaginadas
pelos reformadores do séc. XVIII. Esta obviedade da prisão, Foucault situa-a a vários
níveis: era óbvio que se tratava de um castigo igualitário, que correspondia a uma
clareza jurídica; era óbvio que a privação da liberdade tinha uma função de reparação
económico-moral, já que permitia “quantificar exactamente a pena segundo a variável
do tempo” (p. 208); era óbvia a sua aceitação enquanto aparelho transformador dos
indivíduos, já que os mecanismos que impunha ao corpo social pré-existiam-lhe no
quartel, na escola, na oficina; era óbvia, finalmente, porque aparecia como a forma mais
imediata e mais civilizada de todas as penas. Mas em pouco mais de um século o clima
de obviedade tornou óbvios, também, todos os inconvenientes da prisão, que se poderia
tornar perigosa se fosse inútil. Para o evitar, havia que tomar medidas, nomeadamente
no que respeitava ao isolamento e ocupação dos detentos.
Surgem então, na América, dois modelos diferentes de prisão, consubstanciados
na forma diferente como eram entendidos o isolamento e a solidão. Um, era um modelo
monástico, que seguia a disciplina da oficina, e que visava requalificar o criminoso
como um indivíduo social e treiná-lo para uma actividade útil, devolvendo-lhe hábitos
de sociabilidade. Outro, o modelo de Filadélfia, com o seu isolamento absoluto, não
visava a requalificação do criminoso mas a relação do indivíduo com a sua própria
consciência, uma mudança de moralidade e não de atitude. Naturalmente, a religião
depressa se apoderou destes preceitos, e a oposição entre estes dois modelos acabou por
criar uma série de conflitos de ordem vária: religiosos, acerca da conversão; médicos,
sobre os eventuais efeitos do isolamento na sanidade mental dos detentos; económicos,
sobre qual dos dois modelos acarretava menores custos; arquitecturais e
administrativos, acerca da maior eficácia da vigilância.
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Foucault não se permite terminar este capítulo sem antes, de uma forma
consequente e coerente, denunciar a prisão como “o grande fracasso da justiça penal”
(p. 234), elencando uma série de críticas que lhe foram feitas logo na altura da sua
implantação, e “que se repetem hoje sem quase mudança nenhuma” (id.): as prisões não
diminuem a taxa de criminalidade, funcionando mesmo como quartéis do crime; a
detenção provoca a reincidência e, como tal, fabrica delinquentes; vigora uma
administração arbitrária, a corrupção, o medo e a incapacidade dos guardas; assiste-se à
exploração do trabalho penal, sem carácter educativo. A prisão é, assim, “um duplo erro
económico: directamente, pelo custo intrínseco da sua organização; indirectamente,
pelo custo da delinquência que ela não reprime (...). Palavra por palavra, de um século a
outro, as mesmas proposições fundamentais se repetem” (pp. 237-238).
transmissão a todo o corpo social. A título de exemplo refere as colónias para crianças
pobres, abandonadas e vadias, os refúgios, as caridades, as misericórdias, as colónias
penitenciárias, os orfanatos, as instituições para indigentes, os estabelecimentos para
aprendizes, as fábricas-conventos, que prolongavam a sua acção nas casas de correcção,
nas penitenciárias, na prisão, no batalhão, na oficina, na escola, no convento, no
hospital, na cidade operária, verificando-se também uma continuidade nos
regulamentos que hierarquizavam, diferenciavam, sancionavam, puniam: da sanção dos
desvios ao castigo dos crimes. O carcerário assegurava, assim, a comunicação
quantitativa e qualitativa das técnicas disciplinares, dos castigos, das normas.
O carcerário naturaliza o poder legal de punir, como legaliza o poder técnico de
disciplinar. Homogeneizando-os, faz circular de um para outro os mesmos
métodos calculados, mecânicos e discretos (…) permite a realização daquela
grande economia do poder, cuja fórmula o séc. XVIII procurou, quando veio
à tona o problema da acumulação e da gestão útil dos homens. (p. 265.)
Com esta nova economia do poder, o sistema carcerário mais não fez do que
acentuar a natureza e a legalidade da norma. A partir daí, assiste-se a um “desejo
furioso, da parte dos juízes, de medir, avaliar, diagnosticar, reconhecer o normal e o
anormal” (id.). Como se tivessem vergonha de condenar, reivindicam a cura ou a
readaptação.
Seu imenso apetite de medicina que se manifesta sem cessar – desde seu
apelo aos peritos psiquiatras, até à atenção que dão ao falatório da
criminologia – traduz o facto maior de que o poder que exercem foi
desnaturado; que a um certo nível ele é realmente regido pelas leis, mas que
a outro, e mais fundamental, funciona como poder normativo; é a economia
do poder que exercem, e não a dos seus escrúpulos ou humanismo, que os
faz formular veredictos terapêuticos e decidir por encarceramentos
readaptativos. (p. 266).
Referências Bibliográficas