FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE
SALVADOR
2010
Mariana Luscher Albnati
SALVADOR
2010
ALBINATI, Mariana.
136f.
3
TERMO DE APROVAÇÃO
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Cultura e
Sociedade, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:
4
AGRADECIMENTOS
À minha família, pelo apoio fundamental e incondicional. Meu pai, Ricardo, pelo exemplo de
generosidade e interesse pelo ser humano, minha mãe, Fátima, pelo exemplo de mãe e amiga
e meus queridos irmãos, Gabriel e Catarina, pelo carinho, sempre.
Às melhores amigas do mundo, Thais, Giuliana e Glória, por serem criaturas tão admiráveis,
pelas leituras, comentários, conversas, ajudas, cuidados...
Ao meu amor, Rodrigo, pelo companheirismo à toda prova, por compartilhar dos meus
interesses e por dividir também os seus comigo.
Às queridas amigas cariocas (que, como quase todo carioca, vieram de outros lugares), Maria
Júlia, Juliana e Gisele, por estarem sempre por perto. À Sara, pelo acolhimento afetuoso,
conversas e cuidados, e à Amina, pela alegria da sua companhia.
A todos os entrevistados, pela generosa cessão das suas memórias, em especial ao querido
Metrô, pela ajuda com o acervo e pelas dicas sobre os caminhos a trilhar, à Fafá, pela atenção
e pelos apontamentos, a Reinaldo, pelo precioso material que me emprestou e a Tainã, pelo
entusiasmo contagiante. E a Lurdinha por, há dez anos, ter despertado minha atenção para o
movimento social de Alagados.
A Albino Rubim, por ter me apresentado à pesquisa e às políticas culturais e por continuar me
acompanhando. A Ângelo Serpa, pela participação na minha qualificação e por estar de volta
na banca da defesa.
Aos queridos da Fundação Cultural do Estado da Bahia e do Cine Mais Cultura, pela
compreensão das ausências, por vezes necessárias.
E ao espírito livre e inquieto dos meninos de Alagados que, sem saber que não podiam fazer
política, fizeram. E pronto.
5
RESUMO
6
LISTA DE FIGURAS
7
LISTA DE QUADROS
8
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO................................................................................................................ 10
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 126
ANEXOS............................................................................................................................. 131
I Cronologia...................................................................................................................... 131
II Relação de entrevistados............................................................................................... 135
9
APRESENTAÇÃO
Realizamos uma revisão sobre a bibliografia produzida a respeito do bairro de Alagados, que
nos forneceu importantes informações sobre seu processo de formação, especialmente no que
diz respeito às intervenções do Estado nas questões de urbanização e moradia (CARVALHO,
2002), à produção do espaço e a reprodução da vida em Alagados (SANTOS, 2004) e ao
movimento de luta pela moradia no bairro e a atuação de suas lideranças (SILVA, 2001).
Na pesquisa de campo realizada, foram colhidos memórias e documentos que narram, sob
diversos pontos de vista, a atividade política e cultural do e no bairro durante o período
estudado, que vai de 1980 – ano de implantação no bairro do primeiro projeto estritamente
cultural, pelo estado – a 2006 – ano que antecedeu a última mudança de governo na esfera
estadual. A opção por não abarcar as políticas culturais do governo atual nesta pesquisa,
10
considerou o fato de os projetos e ações desta gestão estarem ainda em curso ou em fase de
implantação, pelo que preferimos avaliá-los posteriormente, em outra oportunidade.
Vale notar que, dentre as ações analisadas da política cultural do Estado em Alagados, a única
que mereceu o cuidado de elaboração de um relato mais completo, feito pela Fundação
Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB, foi o Programa de Ações Sócio-Educativas e
Culturais para as Populações Carentes Urbanas – PRODASEC Urbano. Em relação ao Cine-
Teatro Alagados, a inexistência ou perda desses registros no órgão que poderia tê-los herdado,
a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia – CONDER, limitou nossa
pesquisa aos depoimentos dos entrevistados e aos relatos pontuais feitos por jornais da época.
As informações sobre as atividades no Espaço Cultural Alagados, apesar de estarem de
alguma forma documentadas, foram encontradas em péssimas condições de
acondicionamento e sem organização por tema, tipo ou data, que facilitasse o acesso aos
dados pesquisados.
11
constituem seus marcos; identificar as ações políticas e culturais elaboradas pela população do
bairro, seus agentes locais e suas articulações com organizações da sociedade civil; entender
os diferentes tipos e graus de relação que a população estabelece com as políticas culturais
elaboradas pelo Estado em seus diferentes momentos e instrumentos; entender de que forma
os dois espaços culturais do bairro representaram, historicamente, essas relações.
A análise proposta foi realizada, então, através do confronto das informações de campo com
as noções teóricas que orientam o estudo. Essas noções comparecem em duplas, que tratam,
por um lado, dos objetivos e dispositivos acionados pelo Estado na elaboração de políticas
culturais e por outro, das práticas e interesses do território com que essas políticas se
relacionam. As duplas de noções se contrapõem internamente, na medida em que as primeiras
noções evidenciam as questões da política cultural do estado e as segundas, as questões do
território.
Acesso e uso compõem a primeira das três duplas, evidenciando de um lado a promoção do
acesso à cultura pelo estado, com suas formas e conteúdos (de que “cultura” se trata, como se
dá este acesso, quais os seus limites?) e de outro os usos da cultura em Alagados, quaisquer
que sejam as formas e os lugares de seu exercício; do uso da cultura que se tem, que faz parte
dos hábitos e costumes locais;
12
A dissertação se divide em quatro capítulos. O primeiro é dedicado à introdução sobre
Políticas culturais e territórios populares e em seu primeiro subcapítulo, Porque considerar o
território? apresenta a noção de território, com destaque para o seu componente cultural,
demonstrando a indissociabilidade entre cultura e território e, portanto, a importância de se
considerar os territórios na elaboração das políticas de cultura. No segundo subcapítulo
tentamos responder à questão O que se entende por política cultural?, apresentando e
problematizando algumas conceituações em uso nos trabalhos e discursos sobre o tema. O
terceiro subcapítulo, Limites e possibilidades das políticas culturais na democracia, trata dos
modelos adotados pelas políticas culturais na democracia – democratização cultural,
democracia cultural e cidadania cultural – e da sua relação com o território.
13
movimento cultural e o Estado. Nesse sentido, apresentamos a Comissão Cultural de
Alagados e Federação Baiana de Teatro Amador, na primeira parte, e os embates e
negociações que se fizeram necessários na gestão compartilhada de Um Espaço entre o
Estado e o território.
A relação que construímos com a história das políticas culturais em Alagados e com seus
personagens, levou-nos a buscar contribuir para a conservação e disponibilização do acervo
atualmente existente no Espaço Cultural, juntando a ele documentos dispersos que foram
encontrados em acervos pessoais de muitos dos antigos membros do movimento cultural
local. Compilaremos ainda os demais trabalhos publicados a respeito do bairro e seu
movimento social e digitalizaremos o acervo de imagens produzidas sobre as atividades
culturais locais, com a colaboração da atual equipe do Espaço Cultural e de algumas das
lideranças que construíram o movimento cultural em Alagados.
14
1. POLÍTICAS CULTURAIS E TERRITÓRIOS POPULARES
Tomar como objeto de estudo as políticas culturais ou algum experimento efetivo de política
cultural, como fizemos neste trabalho, é se propor a contribuir para o delineamento de um
campo de estudos ainda em construção. Este “campo singular de estudos” resulta de uma
produção dispersa em diferentes áreas, com destaque para a Sociologia, a História e a
Comunicação, que contribuem principalmente com estudos de caso sobre experimentos
efetivos de política cultural (RUBIM, 2006).
A questão colocada pelo trabalho é, como a nossa, um questionamento sobre o resultado das
intervenções do Estado quando desvinculadas do território. “Quais os limites da ação
15
governamental ao evocar razões extra-locais para realizar ações que, querendo-se ou não, têm
de acontecer em um lugar determinado e afetam aos que moram ali?” (SANTOS, VOGEL,
1982, p.7-8).
Embora o trabalho desenvolvido pelo IBAM seja voltado para as políticas urbanas, enquanto
o nosso pretende trabalhar com as políticas culturais – áreas que por serem transversais se
cruzam –, também pretendemos com esta pesquisa afirmar o reconhecimento do território
como premissa para a atuação do Estado na elaboração de políticas públicas, sejam urbanas,
culturais ou de outra natureza.
Se, pelo que se observa na bibliografia recente sobre Políticas Culturais no Brasil 1, a questão
do território raramente comparece como aspecto a ser analisado, cabe explicar porque
consideramos pertinente que esta noção seja incorporada não apenas aos estudos, mas
também, e principalmente, à prática da elaboração das políticas culturais pelo Estado.
No caso deste trabalho, utilizamos a noção de território popular, que não remete apenas à
concentração de uma população de baixa renda, à precariedade da infra-estrutura urbana e dos
1
Em <http://www.cult.ufba.br/arquivos/bibliografias_politicasculturais_brasil_01maio06.pdf> está dispo-nível
uma extensa relação de publicações sobre Políticas Culturais no Brasil, organizada por Antonio Albino Rubim
em 2006, dentro do Centro de Estudos Multidisciplinares da Cultura - CULT.
16
serviços e equipamentos públicos, mas também aos hábitos e costumes que constituem um
modo de vida (uma cultura, em sentido antropológico) particular daqueles que SANTOS
(2008) denomina “homens lentos”.
A defesa que fazemos do recurso à noção de território nos estudos de políticas culturais e da
aproximação desses territórios na elaboração dessas políticas se deve à relação indissolúvel
entre os dois: não há cultura sem território e nem território sem cultura.
17
análise de políticas culturais, a noção de território acrescenta o aspecto do espaço, entendido
como base das relações sociais.
As instituições públicas que atuam em política cultural são, de modo geral, geridas por
cidadãos com alta escolaridade, renda média ou alta, residentes nas áreas mais nobres e/ou
centrais das cidades e que, portanto, têm certamente práticas cotidianas, inclusive culturais,
bastante distintas das encontradas nos bairros populares, que compõem a maior parte do
tecido urbano nas capitais brasileiras. Essa constatação evidencia a necessidade de um
empenho efetivo por parte desses agentes públicos envolvidos na elaboração e na execução
das políticas culturais, no sentido de conhecer o processo de formação dos territórios
populares das grandes cidades. Em especial, a expressão da territorialidade no âmbito do
18
bairro, “visto como linguagem e discurso (...), pois seus limites variam e são percebidos de
modo diferenciado pelos moradores, que „constróem seus bairros‟ como base para estratégias
cotidianas de ação individual e coletiva” (SERPA, 2007, p.28).
É preocupante, portanto, observar que as políticas de cultura, inclusive as que têm como
marca a criação de espaços culturais – ação que interage com um espaço geográfico
determinado, em que a questão do território aparece ainda mais fortemente – muitas vezes
ignoram ou propositadamente desconsideram os territórios em que se inserem.
Para além de enxergar, no mapa da cidade, as regiões que concentram os espaços culturais e
as que não dispõem deles, no sentido de atender a estas, uma política cultural séria precisaria
entender “Como é que se pode fazer um território num certo tipo de espaço?” (GUATARRI,
1985, p.110). Ou seja, como uma ação de política cultural pode estabelecer um sentido de
pertencimento em relação a uma população e, desta maneira, acolher os usos e subjetivações
interessantes àquela população?
A expressão espaço cultural, amplamente difundida no discurso atual das políticas culturais,
tem sido utilizada de maneira vaga o suficiente para aplicar-se a toda variedade de edifícios
destinados especificamente a práticas culturais. Entretanto, consideramos fundamental
evidenciar as relações entre espaço cultural e território, verificando suas implicações mútuas,
uma vez que a criação de um espaço cultural implica sempre uma desterritorialização das
19
práticas culturais, que originariamente eram exercidas em outros lugares e/ou em outras
condições. E, em um segundo momento, sua reterritorialização, a constituição de um território
novo a partir da conjunção dessas práticas em um determinado lugar. Segundo COELHO, a
construção de um edifício específico para práticas culturais ou o aproveitamento para esse fim
de um edifício cuja função original era outra, é uma operação de abstração da territorialidade
da cultura.
A indissociabilidade entre cultura e território, portanto, deve ser encarada como premissa para
a elaboração de políticas culturais, particularmente quando essas políticas se traduzem na
criação de espaços culturais. Mesmo não estando atentas ou preocupadas com os significados
de que o espaço é investido (seja o espaço de um país, um estado, uma região, uma cidade,
um bairro, um edifício ou uma rua) e com os poderes que nele atuam, as políticas culturais
interagem necessariamente com esses fatores, ou seja, se relacionam com os territórios na
escala em que atuam.
Se, como dissemos, a pretensão deste trabalho é introduzir o território entre os aspectos
fundamentais para a análise ou o planejamento de políticas culturais, é necessário apresentar o
que se entende hoje por política cultural e em que medida o aspecto territorial é considerado,
mesmo que não expressamente, nessas políticas.
Estudos contemporâneos têm formulado definições para o termo política cultural que
divergem em alguma medida, mas guardam geralmente o cuidado de não restringir o objeto
das políticas culturais à arte. A definição do Dicionário Crítico de Política Cultural, descreve
o termo como “ciência da organização das estruturas culturais”, afirmando que é possível
falar-se em política cultural como “um campo definido das ciências humanas, com objetos,
20
fins e procedimentos próprios” (COELHO, 1997, p.293). Esta noção, entretanto, é
questionável por vários aspectos: desde a forçosa afirmação das políticas culturais como
campo definido, quando sabemos que é um campo em construção, a partir da contribuição de
outros campos das ciências humanas, até a rigidez que implicam palavras como ciência,
organização, estruturas e procedimentos, frente à complexidade e à diversidade das práticas
culturais, objeto dessas políticas.
Esta definição, mais recente, traz duas importantes contribuições para a reflexão sobre as
políticas culturais. Em primeiro lugar, a afirmação de que outros agentes, além do Estado,
fazem políticas culturais. Em segundo, a constatação de que essas políticas orientam o
desenvolvimento simbólico, ou seja, são estratégicas no sentido da formação e transformação
de valores, crenças e hábitos. É importante acrescentar, no entanto, que uma política cultural
pode também simplesmente contribuir para a ampliação do universo simbólico de uma
população, sem determinar o sentido em que este universo deve se desenvolver. E também,
que as transformações sociais estimuladas por esta ampliação não se dão, necessariamente,
através do consenso.
21
O ex-ministro da cultura Gilberto Gil (2003 a 2008), em seu discurso de posse na pasta,
afirmava que “formular políticas públicas para a cultura é, também, produzir cultura” (GIL,
2003, p.11), alertando que não se trata de entender o Estado como produtor de cultura, em
sentido estrito, mas de entender o papel das políticas culturais elaboradas pelo poder público,
sua capacidade de fomentar, estimular, encobrir, distorcer e até mesmo minar práticas da
sociedade, ou seja, de interferir na formação dos universos simbólicos da população.
Entendida a amplitude das questões pertinentes em uma análise sobre políticas culturais, não
cabe nos determos nas definições de política cultural, em busca de um conceito acabado, pois
a insuficiente bibliografia a respeito, além da própria dinâmica da cultura na
contemporaneidade, fazem com que seja uma noção ainda em aberto, em construção.
É fundamental pontuar ainda, nessa introdução sobre a noção de política cultural, os agentes
que atuam na sua elaboração. Quando falamos em políticas culturais elaboradas pelo Estado,
não é por gosto pela redundância e sim por consideramos que a elaboração dessas políticas
não é exclusiva do âmbito governamental. A sociedade civil e suas organizações também
elaboram políticas culturais, tanto em negociação com o Estado como de forma independente,
quando desenvolvem ações culturais articuladas, na defesa de determinados interesses.
Ou seja, as empresas privadas, quando optam pelo marketing cultural e definem sua linha de
patrocínios favorecendo determinado tipo de projetos e preterindo outros, fazem política
cultural. Assim como fazem as organizações não governamentais, quando elaboram seu
programa educativo-cultural e definem os bairros ou grupos sociais aos quais este programa
será oferecido. E também os movimentos sociais, em escala nacional ou de bairro, quando se
institucionalizam em busca de espaços de diálogo com o Estado, pré-existentes ou não, e
quando realizam projetos próprios. Assim como fazem as grandes empresas da indústria
cultural, quando definem a que informações e a que universo simbólico seu público terá
acesso pela TV, pelo rádio ou nos cinemas.
A delimitação dos agentes de políticas culturais, portanto, não pode ser simplista se o seu
objeto – as práticas e as criações culturais – não é nada simples.
22
Cabe esclarecer ainda outro ponto em relação aos agentes dessas políticas: a diferença entre as
noções de política cultural e política pública de cultura. Se as políticas culturais podem ser
elaboradas por diversos agentes, em torno dos mais diversos interesses, uma política pública
de cultura deve partir do conjunto da sociedade (incluído aí o Estado) e deve se pautar pelo
interesse público, comum. Admitir a possibilidade de se estabelecerem políticas públicas de
cultura, portanto, é admitir a existência da esfera pública2.
2
Hannah Arendt define a esfera pública como o mundo comum, que reúne a todos homens ao mesmo tempo em
que os separa, constituindo-se, assim numa espécie de intermediário nas suas relações. Esse mundo comum, de
caráter público, deve possibilitar a percepção e a constante transformação da realidade, compreendida pela
aparência das coisas, onde tudo pode ser visto e ouvido por todos (2000).
23
1.3 Limites e possibilidades das políticas culturais na democracia
A relação que estabelecem com os territórios, em diferentes escalas, varia bastante entre os
modelos possíveis de políticas culturais. No Brasil, as políticas formuladas e implementadas
dentro do regime democrático são geralmente caracterizadas conforme três modelos que,
embora claramente distinguíveis conceitualmente, na prática muitas vezes se misturam e
também se distanciam da formulação original: democratização cultural, democracia cultural
e cidadania cultural.
Os dois primeiros modelos, que foram elaborados e tiveram seus primeiros experimentos na
França, serviram – e ainda servem, em muitos casos – de inspiração para políticas de cultura
em todo o mundo ocidental, inclusive no Brasil.
Por óbvio, tal opção gera alguma polêmica. Entretanto este caráter
tênue e frágil parece inerente à escolha de marcos históricos que
intentam substituir complexos processos, dispositivos dinâmicos,
movimentos muitas vezes sutis e subterrâneos, por fronteiras imóveis
e supostamente fixadas (2009, p.95).
Vale considerar, em se tratando de um modelo calcado no acesso, que este aspecto não se
resume à oferta ou à acessibilidade física aos bens culturais cuja fruição se deseja promover.
A fruição cultural é um ato do campo simbólico, e deve pressupor uma acessibilidade também
simbólica. Para ter acesso a determinados produtos culturais, um cidadão deve dominar os
códigos que permitem a sua fruição ou ter a liberdade para subvertê-los, apropriando-se deles
de acordo com os códigos que domina.
A distinção entre dois “tipos ideais” de território – território-zona e território-rede –, feita por
HAESBAERT (2006), é esclarecedora para se pensar os limites e possibilidades das políticas
culturais em relação ao aspecto territorial. O território-zona, afeito à idéia de uma identidade
fixa, é aquele que se estabelece em espaços contínuos, demarcados por fronteiras claras e é
25
facilmente identificável com a idéia de Estado-nação. No entanto, pode se manifestar em
zonas – áreas contínuas passíveis de controle e apropriação – das mais diferentes dimensões.
Já o território-rede, mais próximo à idéia dos fluxos (de informação, significação, dinheiro,
etc.), se estabelece através das trocas entre pontos descontínuos no espaço, podendo ser
identificado nas comunidades virtuais de jovens reunidos via internet por um gosto comum,
assim como, por exemplo, no tráfico de drogas que atua simultaneamente em diversos morros
do Rio de Janeiro, estabelecendo um grande território-rede a partir de territórios-zona ligados
por fluxos econômicos e simbólicos. Entretanto, segundo o autor, na prática os dois modelos
– território-rede e território-zona – nunca se manifestam de forma completamente distinta.
26
Dissonante em relação às transformações que avançam rapidamente no campo da cultura, o
modelo de democratização cultural francês foi fortemente atacado durante as manifestações
que culminaram em maio de 1968 e em contraposição a ele elaborou-se, também na França, o
modelo de “democracia cultural”. O alvo principal de críticas, no modelo de democratização
cultural, eram as Casas de Cultura (Maisons de la Culture), consideradas um projeto elitista e
demasiadamente caro. O novo modelo, entretanto, também era fundado em um tipo de espaço
cultural, os chamados centros de animação cultural, que além de custarem menos aos cofres
públicos tinham mais abertura às comunidades locais (RUBIM, 2009).
27
executadas (BOTELHO; FIORE, 2005). Para uma política de âmbito local, municipal, as
possibilidades de interação com o lugar, o espaço vivido e sua produção cultural, esvaziam o
modelo democratizante, que nesta escala é ainda mais inadequado.
Segundo este modelo, caberia ao Estado mais do que promover o acesso à fruição da cultura e
mais do que incentivar a descentralização da produção cultural. O campo privilegiado de
participação considerado pelo modelo de cidadania cultural é o campo político, ou seja, o
modelo compreende a abertura de canais de participação para a própria elaboração das
políticas culturais.
No modelo de cidadania cultural, tanto o aspecto cultural do território como seu aspecto
político – as “relações de domínio e apropriação, no/com/através do espaço”, conforme
HAESBAERT (2006, p.78) –, são considerados. Ao mesmo tempo se busca contemplar o
direito universal à criação cultural, o direito a reconhecer-se como sujeito cultural e também o
“direito à participação nas decisões públicas sobre a cultura, por meio de conselhos e fóruns
deliberativos” (CHAUÍ, 1995, p.82-83).
28
Na prática das instituições gestoras, os três modelos apresentados – democratização,
democracia e cidadania cultural – não são opções tão claramente separadas. Enquanto no
discurso se pode afirmar com veemência a opção por um ou outro modelo, cotidianamente, os
gestores públicos de cultura lidam com pressões diversas, da sociedade, da máquina estatal e
do mercado, que por vezes fazem conviver lado a lado, por exemplo, ações voltadas para a
difusão das artes clássicas e outras que pretendem estimular o empoderamento da sociedade
civil.
29
2. O TERRITÓRIO POPULAR DE ALAGADOS
Em que pese todo o investimento feito pelos moradores, não acreditamos que a morada nas
palafitas fosse encarada como solução definitiva e sim como situação provisória, pois mesmo
para aqueles moradores que conseguiram aterrar a maré sob suas casas e assim permaneceram
no local escolhido inicialmente, as ameaças de demolição das casas e de transferência para
outras áreas eram constantes.
As casas feitas com restos de madeira sobre palafitas, que caracterizavam a paisagem e o
modo de vida no bairro até a década de 70 – não que tenham deixado de existir, mas hoje já
não predominam –, foram a alternativa de habitação encontrada por essa população que não
3
GORDILHO SOUZA afirma que na metade dos anos 40, houve uma importante intensificação do fluxo de
imigrantes para Salvador – a população da cidade teve um aumento de 44% entre 1940 e 1950 –, o que aumentou
a procura por novas habitações, “elevando os preços dos aluguéis, bem como estimulando a abertura de
loteamentos. Entretanto, esses logo demonstraram ser inacessíveis para a população recém-chegada, ficando
ociosos durante muitos anos, concentrando-se, assim, uma forte pressão sobre áreas populares já existentes”
(2008, p.105).
30
podia mais arcar com os custos de moradia em Salvador. Esse tipo de construção permitia a
formação de um conjunto considerável de moradias em poucos dias, fortalecendo a ação
coletiva e a resistência à repressão policial.
Assim, o bairro de Alagados foi formado por sucessivos movimentos de ocupação irregular e
repressão policial, construção e derrubada de palafitas e pela constante ampliação da área
seca, através do aterro feito pelos próprios moradores e, mais tarde, também pelo Estado. O
mapa a seguir (figura 1) demonstra o avanço da formação do bairro, mas também a
diminuição da área da Enseada dos Tainheiros.
31
Figura 1 – Expansão da área consolidada (1946 – 2002)
Baía de
Todos os
Santos Enseada
do Cabrito
Enseada dos
Tainheiros
Segundo dados censitários do IBGE, em 1970 a população de Alagados era de mais de 78 mil
moradores e em 2000 já superava os 110 mil habitantes4, o que equivalia a 32 mil famílias
residentes.
4
Dados citados por CARVALHO (2002), que considera a delimitação do bairro proposta pelo Plano Urbanístico
de Alagados (1973-1984), compreendendo parte dos bairros de Massaranduba (incluindo os aglomerados da
Baixa do Petróleo e da Mangueira), Jardim Cruzeiro (incluindo a ocupação denominada Vila Rui Barbosa),
Itapagipe, Uruguai e Lobato.
32
Caminho de Areia, hoje Vila Rui Barbosa (MATTEDI, 1979). A autora conta da velocidade
em que crescia o futuro bairro de Alagados:
Apesar de a ocupação existir desde a década de 1940 e de ter sido destaque na pauta de
veículos nacionais e locais de comunicação, que divulgaram as condições precárias de
habitação e saneamento no bairro, o primeiro movimento do Estado no sentido de intervir na
situação de extrema precariedade de Alagados se deu somente na década de 1960.
Desde 1961 a Prefeitura, o Governo da Bahia e até mesmo o Governo Federal participaram de
Grupos de Trabalho intersetoriais e órgãos específicos para cuidar do caso de Alagados, além
de encomendar a escritórios de arquitetura estudos e projetos de urbanização da área. Essas
ações, no entanto, ou não foram implantadas ou tiveram pouco êxito (CARVALHO, 2002).
Muitas melhorias pontuais foram promovidas também pelo Estado atendendo ao pleito dos
moradores, organizados em sociedades de bairro.
Entretanto, até o início da década de 70 a maior parte das melhorias foi realizada pelos
próprios moradores, isoladamente ou em regime de mutirão, com recursos próprios ou
“garimpados” pela cidade – restos de construções e material de demolições, além de entulho e
lixo comum, que serviram para “criar” o solo sobre a maré, onde eram construídas as casas.
Até então, em termos de recursos investidos e de resultados alcançados, as ações de
urbanização empreendidas pelos próprios moradores de Alagados foram muito mais
representativas do que a soma das intervenções pontuais do Estado (SILVA, 2001).
33
A primeira intervenção efetiva do Estado em Alagados, portanto, teve início cerca de 30 anos
após a ocupação irregular da área onde se formou o bairro5. O Plano Urbanístico de Alagados
foi implementado entre 1973 e 1984 pelo Governo da Bahia, em convênio com a Prefeitura
Municipal de Salvador e o Governo Federal, com recursos do Banco Nacional de Habitação –
BNH.
Para realizar os estudos preliminares que dariam subsídios para a elaboração do Plano
Urbanístico e para conduzir este processo, foi formado o GEPAB – Grupo de Estudos para os
Alagados da Bahia, de caráter transitório e, após a conclusão de suas tarefas, criada a então
AMESA – Alagados Melhoramentos S/A, empresa de economia mista, vinculada à Secretaria
do Trabalho e Ação Social, responsável por gerenciar a execução do Programa de
Recuperação dos Alagados, de que o Plano fazia parte.
5
CARVALHO (2002) faz uma rica descrição da formação do bairro de Alagados e, em especial, dos projetos de
urbanização implementados pelo Estado nesse território, enfatizando o aspecto da apropriação informal do
espaço urbano para moradia.
6
A elaboração e execução do Plano ficaram a cargo de um consórcio de empresas, contratado mediante seleção
pública.
34
emergenciais e provisórias de urbanização, enquanto o Plano não fosse implantado
(CARVALHO, 2002).
A empresa, que foi constituída em 1974 como Alagados Melhoramentos S/A, passou em 1983
a se chamar HAMESA – Habitação e Melhoramentos S/A, tendo sua área de atuação bastante
ampliada. Conforme o texto da Lei que instituiu a alteração 7, à HAMESA caberia promover,
coordenar e executar o programa estadual de erradicação de habitações em áreas sub-normais
no Município de Salvador – e não mais apenas no bairro de Alagados.
A notícia da visita do Papa fez com que o Governo Estadual acelerasse a execução das obras
do Plano Urbanístico, o que parece ter sido bem recebido pela população, como afirma
Wanderlei Moreira (Metrô), liderança do movimento cultural do bairro:
Todo processo de urbanização das ruas como um todo, não só isso aqui, mas
todas as ruas da área toda, se deve muito a chegada do Papa. Porque foi a
primeira vez que o Papa veio ao Brasil, resolve vir a uma comunidade
carente – aqui era realmente carente. A maioria das ruas não era asfaltada
ainda. Com a vinda do Papa, a máquina do Estado se mobiliza para organizar
toda a área e é aí que isso tudo aqui é urbanizado, as ruas são asfaltadas, tudo
7
A AMESA foi criada pela pela Lei Estadual n 3.248, de 18 de abril de 1974 e a alteração se deu pela Lei
Delegada n 38, de 14 de março de 1983. Segundo a nova Lei, competia à HAMESA: I - executar a política de
erradicação de habitações em áreas sub-normais no Município de Salvador; II - executar programas de
investimento, visando a melhorar as condições habitacionais das áreas sub-normais, em termos de urbanização,
saneamento e promoção social; III - articular-se com os organismos da administração Estadual e Municipal na
execução dos planos de intervenção nas áreas sub-normais; IV - acompanhar a execução dos programas e
projetos específicos; V - contratar a prestação de serviços técnicos e administrativos, compreendidos em seu
orçamento; VI - executar, direta ou indiretamente, outras tarefas que lhe sejam cometidas pelo Governo do
Estado, ou em decorrência de convênios elaborados com outras instituições.
35
ou pelo menos boa parte das coisas acontece em função da vinda do Papa.
Tanto é que essa Igreja [a Paróquia Nossa Senhora dos Alagados] é erguida
em tempo recorde. 8
É interessante notar que o Plano Urbanístico de Alagados foi implementado entre 1973 e
1984, período em que se gestava nos bairros populares um forte movimento social,
sintonizado com o movimento de redemocratização do país, como veremos no subcapítulo
seguinte. Esse movimento se afastava, portanto, de uma relação assistencialista com o Estado,
caminhando para uma relação democrática, de cidadania, balizada pela construção e
reivindicação de direitos.
O escritório de arquitetura contratado propôs para o caso de Alagados, a partir de uma série de
pesquisas sócio-econômicas realizadas no bairro, soluções projetuais inovadoras 10, que, no
entanto, foram avaliadas como mal sucedidas, uma vez que seu uso posterior não
correspondia ao que a forma da intervenção sugeria (ou deveria sugerir, segundo o
8
Wanderlei Moreira, liderança do movimento cultural do bairro e coordenador do Espaço Cultural Alagados
entre 2007 e 2009. Entrevista cedida à autora em 03 de setembro de 2008, no Espaço Cultural Alagados.
9
Não que o autor o afirme, mas ao relatar longamente os embates de idéias entre os agentes governamentais e
privados envolvidos na execução do Plano, faz raras referências à atuação da sociedade civil neste processo, de
onde depreendemos que ou os moradores estiveram calados ou não foram escutados em relação aos projetos que
interferiram sobremaneira na sua vida cotidiana.
10
Como a “vila em clusters em substituição às quadras, lote-moradia, lote-de-transição, sobrado, comércio-
anexo-à-residência, alameda-de-pedestre, configuração recortada desses espaços, faseamento das habitações
pensadado em função do tamanho da família e da idade do casal, etc.” (CARVALHO, 2002, p.273).
36
entendimento de quem a concebeu). A população se apropriou dos espaços criados, de acordo
com seus desejos e necessidades. Nesse sentido, CARVALHO avalia que
A etapa final do Plano Urbanístico, que produziu o maior número de habitações, teve como
característica a construção dos barracos-padrão, casas de um cômodo, construídas com
compensado de madeira. Com este modelo de habitação, os moradores passaram a pagar
(através de financiamento feito pelo BNH) apenas pelo terreno e não mais pela casa, como
vinha sendo feito nas etapas iniciais do projeto, que previam imóveis em alvenaria, com
projetos adaptáveis, em alguma medida, às necessidades de cada família. Segundo
CARVALHO, “a política de barracos-padrão encontrou amplo apoio dos moradores” (2002,
p.207).
Em meio a este cenário formado pelas casas de madeirite, foi implantado o Cine-Teatro
Alagados, erguido com as técnicas construtivas mais usuais. O espaço tinha capacidade para
250 espectadores sentados, foyer, salas de ensaio e camarins.
Apesar de o Plano Urbanístico prever uma série de equipamentos de lazer, o Cine-Teatro não
havia sido previsto. Sua construção se deu em ritmo acelerado, para que a inauguração
ocorresse antes das eleições de 198212, como vinha sendo feito com outros equipamentos do
bairro, inaugurados às pressas pelo então governador Antonio Carlos Magalhães, com
discursos passionais como o que segue:
Aqui estou eu neste bairro que é de vocês e que é meu, porque eu trago no
meu coração o povo de Alagados. Não vim apenas inaugurar quatro creches,
junto com a Presidente das Voluntárias Sociais, Dona Arlete Magalhães, mas
também garantir a todos vocês que no meu governo o que pedirem será
atendido. Dentro de um mês vamos inaugurar o cinema gratuito que também
vai servir como clube de dança.13
11
Joselito Crispim, arte-educador e diretor do Grupo Cultural Bagunçaço. Entrevista cedida à autora em 08 de
maio de 2009, na sede do Grupo Cultural Bagunçaço.
12
As eleições de 1982 representaram a reconquista do voto direto para o Governo do Estado. Antonio Carlos
Magalhães, governador biônico desde 1979, conseguiu eleger seu sucessor neste pleito, apoiado nos votos do
interior, pois em Salvador o processo de redemocratização configurava um quadro bastante diferente: João
Durval venceu em 83,3% dos municípios baianos (335 à época), mas obteve em Salvador apenas 18,1% dos
votos (FERNANDES, 2004).
13
Jornal Correio da Bahia, 18 de novembro de 1981.
38
As eleições de 1985 para a Prefeitura de Salvador e de 1986 para o Governo do Estado 14
criaram uma grande instabilidade política que, somada a uma intensificação das invasões em
toda a cidade, pelo acelerado crescimento da sua população, possibilitou o retorno das
palafitas, construídas por novas famílias.
Esta nova invasão em Alagados já não correspondia aos critérios de parentesco e amizade que
existiam nos processos anteriores, quando os espaços eram ocupados por grupos mais ou
menos coesos, em que o conhecimento prévio reforçava o aspecto da solidariedade e garantia
alguma segurança.
O Estado voltou a intervir na área em 1996, com a criação do Programa Viver Melhor 15,
quando já estava consolidado o novo processo de invasão, que durou dez anos, a partir de
1986. Em 1998, o Governo do Estado, através da Companhia de Desenvolvimento urbano do
Estado da Bahia – CONDER16 cria o Programa Ribeira Azul, com o objetivo de “erradicar a
pobreza e promover a qualidade de vida” (SEDUR, 2010) nas enseadas dos Tainheiros e do
Cabrito. As intervenções urbanísticas e de assistência social em Alagados, a partir de 2000,
passam a receber recursos técnicos e financeiros internacionais, através de uma do Cities
Alliance for Cities Without Slums17 (CARVALHO, 2002).
14
Foram eleitos Mário Kertész para a Prefeitura (1986-1988) e Waldir Pires para o Governo do Estado (1987-
1990).
15
O Programa Viver Melhor é um programa estadual criado com o objetivo de intervir em assentamentos
humanos com baixos índices de habitabilidade em todo o Estado da Bahia (TEIXEIXA, 2002).
16
A CONDER, atual Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, absorveu em 1998 as
atribuições da URBIS – Habitação e Urbanização da Bahia (1965-1998), que já havia incorporado a HAMESA,
quando de sua extinção, em 1987.
17
A Aliança de Cidades (Cities Alliance) foi criada em 1999 como uma coalizão global entre autoridades locais,
governos nacionais e organizações multilaterais com o objetivo de ampliar e disseminar estratégias bem-
sucedidas de redução de pobreza urbana. Mais informações em <www.citiesalliance.org>.
39
É interessante observar que, face às cobranças de instituições
internacionais sobre a participação da população no processo se elaboração
e implementação de projetos desta envergadura, inclusive como condição
para a liberação de financiamento, a CONDER instalou-se e se distribuiu
localmente, sob a forma de sub-diretorias, buscando a “parceria” das
associações e centros comunitários. No entanto, os membros das
associações de todas as subáreas questionam a inflexibilidade e a rigidez
dos projetos, o que limita consideravelmente sua participação (2004, p.135).
O geógrafo Jânio Santos, em sua dissertação de mestrado, propõe uma delimitação a que
chama Núcleo dos Alagados, uma área composta por três distintas etapas (estas sim
compostas por bairros): Alagados, Novos Alagados e Outros Alagados. Conforme este autor,
corresponderiam à etapa de Alagados as áreas ocupadas até a década de 70, hoje conhecidas
como Uruguai, Massaranduba, Itapagipe, Vila Rui Barbosa e Bairro Machado (SANTOS,
2004). Um outro mapa, elaborado por uma empresa pública para o planejamento de uma
intervenção na área, considera a existência de seis poligonais, (Alagados I, II, III, IV, V e VI),
que juntas não correspondem a nenhuma das etapas consideradas por SANTOS
(PROGRAMA RIBEIRA AZUL, 2002, apud SANTOS, 2004). Já CARVALHO (2002),
diferentemente dos dois trabalhos anteriormente citados, considera a delimitação proposta no
40
Plano Urbanístico de Alagados (1973 a 1984), que interviu sobre um conglomerado urbano
(denominado Alagados) que compreende parte dos bairros de Massaranduba (incluindo os
aglomerados da Baixa do Petróleo e da Mangueira), Jardim Cruzeiro (incluindo a ocupação
denominada Vila Rui Barbosa), Itapagipe, Uruguai e Lobato. Em relação ao IBGE – Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, os dados referentes às nominações já citadas aparecem
em quatro diferentes Áreas de Ponderação: Água de Meninos/Calçada/Mares/Roma/Baixa do
Fiscal e Uruguai; Ribeira e Itapagipe; Bairro Machado/Massaranduba e Vila Rui Barbosa;
Novos Alagados e Baixa do Petróleo. Ainda em 1960, a Prefeitura Municipal de Salvador
“criou” os bairros do Uruguai, Itapagipe, Massaranduba e Jardim Cruzeiro, dentre outros 31
então definidos por lei18.
A lista dessas tentativas de delimitação seria muito mais extensa e, certamente, seu
denominador comum não corresponderia necessariamente ao “verdadeiro” bairro de
Alagados, pois os limites do bairro, enquanto lugar, são percebidos de maneiras distintas por
seus moradores e por quem quer que com ele se relacione.
Para caracterizar o bairro, no entanto, consideramos útil o recorte proposto pelo Atlas do
Desenvolvimento Humano da Região Metropolitana de Salvador, publicado pelo PNUD –
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que se atêm à UDH (unidade de
desenvolvimento humano) do Uruguai, pois este recorte espacial contém os principais pontos
referidos pelos entrevistados nesta pesquisa, inclusive o Cine-Teatro e o Espaço Cultural
Alagados (figuras 2 e 3).
18
Lei Municipal 1.038, de 15 de junho de 1960.
41
Figura 2 – Unidade de Desenvolvimento Humano Uruguai
42
Neste recorte, com área equivalente a 1,09Km2, reside uma população total de 39.357
pessoas, gerando uma densidade populacional de mais de 36 mil habitantes por quilômetro
quadrado, quatro vezes maior que a densidade média da cidade de Salvador, que em 2008
equivalia a 9 mil habitantes a cada quilômetro quadrado.19
A faixa etária predominante, de 15 a 64 anos, está dentro da faixa considerada como idade
ativa (acima dos 15 anos de idade, segundo o IBGE).
População Taxa de
Faixa etária
Econômicamente Desemprego
(anos)
Ativa (%)
15 a 17 733 58,8
18 a 24 4.949 39,9
25 a 59 13.224 22,0
60 e mais 315 4,7
15 e mais (total) 19.221 27,7
Fonte: PNUD, 2009.
19
Jornal A Tarde, 01 de setembro de 2008. Disponível em
<http://www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=951016>
43
No entanto, no ano 2000, a taxa de desemprego correspondia a 27,7% para os moradores
integrantes desta faixa. Neste período, dentre os moradores ocupados, 53,4% estavam em
trabalhos de caráter formal, sendo 42,1% com carteira assinada.
Em relação ao nível educacional dos jovens, em 1991, para a população entre 15 e 17 anos se
verificou uma taxa de analfabetismo de 4,9% que, em 2000, havia sido reduzida a 1,6%. Na
faixa de 18 a 24 anos a redução foi menor: de 4,5% em 1991 para 2,3% em 2000. A
população com menos de 8 anos de estudo também diminuiu nesse período, mas permaneceu
com índices bastante elevados, de 72%, para jovens entre 15 e 17 anos, e 42,5% para os que
tinham entre 18 e 24 anos de idade.
Mesmo com a melhora em relação aos indicadores citados que se observa na comparação
entre os índices obtidos em 1991 e em 2000, o bairro de Alagados constitui ainda um
território marcado pela precariedade, tanto em relação à vida privada dos moradores, com os
baixos rendimentos obtidos e o alto índice de desemprego, como na sua vida coletiva, sua
relação com o bairro, onde as relações de domínio e apropriação do território se dão.
Um dado notável em relação aos usos do território em Alagados é a relação que os moradores
estabelecem com suas casas, expressando identidades próprias a partir de um espaço-padrão,
44
projetado segundo uma suposta identidade comum, que atribuiria usos comuns ao espaço de
moradia.
Nas sucessivas tentativas de erradicação das palafitas em Alagados o Estado construiu uma
série conjuntos habitacionais, compostos por casas idênticas, para onde os moradores eram
transferidos. A importância que a conquista da casa tem para os moradores é revelada pelo
atual aspecto dos conjuntos habitacionais construídos. Ao adentrar qualquer um dos conjuntos
já não é perceptível a semelhança entre as casas, como o era originalmente. O que se verifica
é a diversidade de formatos, cores e materiais, uma vez que os moradores promoveram várias
reformas, de acordo com suas possibilidades econômicas, construindo novos cômodos,
aumentando os antigos, modificando revestimentos e esquadrias e até dando novos usos à
casa, além da moradia.
Seja nas áreas mais consolidadas ou nas palafitas, a casa não é só a casa –
residência, local da habitação. Ela é um mecanismo de produção de renda.
Essa perspicácia dos moradores na utilização de sua morada como forma de
conseguir uma renda adicional foi algo passado de geração em geração nos
Alagados. As primeiras habitações já eram erguidas com o intuito de
desenvolver esta estratégia (SANTOS, 2007, p.214-215).
Segundo SANTOS, as formas mais comuns desse uso rentável da casa são a instalação de
alguma atividade comercial ou o uso de parte do espaço para a realização de algum serviço
informal e ainda a construção de espaços anexos, para aluguel (2007).
A conquista da casa, em Alagados como em tantos outros bairros populares de Salvador, tem
na construção da laje (ao mesmo tempo garantia de um teto mais seguro e possibilidade de
ampliação da casa em mais um andar) um momento de grande importância simbólica, o que
SANTOS (2004) denominou “apogeu da autoconstrução”. Segundo o autor, em Alagados,
esse momento de “bater a laje”, como dizem os moradores,
45
A casa é a solução para uma necessidade básica, de moradia (e privacidade, salubridade,
proteção), mas também marca um momento em que, estando as necessidades básicas do
coletivo encaminhadas, com a urbanização, mesmo que precária, do bairro, se abre a
possibilidade de um investimento maior nos interesses individuais. O caráter coletivo do
“bater a laje”, praticado hoje, não deve ser confundido com os mutirões, comuns até a década
de 70, que constituíam numa reunião de esforços de moradores em prol de um benefício
comum e não na reunião de amigos em função da melhoria em um espaço privado de
moradia.
A atividade comercial em Alagados, muitas vezes realizada pelos moradores em suas próprias
casas, busca atender às necessidades da população imediata aos estabelecimentos, oferecendo
uma maior variedade de produtos à medida em que se avança para as áreas mais consolidadas.
Tipo de estabelecimento %
Bar e lanchonete 36,0
Doces gelados 20,3
Mercearia e mercadinho 16,4
Bomboniere 7,8
Produtos de beleza 5,1
Armarinho 5,2
Baiana de acarajé 2,9
Materiais de construção 1,7
Camelô 1,7
Banca de revistas 0,9
Outros 2,0
Total 100,0
Quanto aos serviços prestados no bairro, a ocupação mais comum entre as mulheres é o “lavar
roupa de ganho”, atividade que realizam em casa. A mariscagem, comum a homens e
mulheres, e a pesca, serviço predominantemente masculino, são hoje atividades residuais em
Alagados, devido à poluição da Enseada dos Tainheiros e mesmo à sua diminuição pelos
sucessivos aterros.
46
Quadro 6 – Prestação de serviços (2002)
Tipo de serviço %
Cabeleireiro e barbeiro 27,0
Serviços domésticos 24,0
Oficina mecânica 10,7
Consertos em geral 7,3
Escolinha 5,7
Casa de jogos 5,3
Mariscagem e pesca 3,3
Videolocadora 3,0
Fotografia e filmagem 2,0
Buffet 1,7
Outros 10,0
Total 100,0
Esse tipo de posicionamento – “entrando comigo ninguém te bole” – foi verificado entre os
líderes mais antigos entrevistados e revela, a nosso ver, dois aspectos das relações com o
20
Lurdes da Conceição Nascimento e Maricelma Bonfim, lideranças da Associação dos Moradores do Conjunto
Santa Luzia e coordenadoras da Escola Comunitária Luiza Mahin. Entrevista cedida à autora em 29 de dezembro
de 2009, na Escola Comunitária Luiza Mahin.
21
Mestre Pedro Pé-de-Ferro. Entrevista cedida à autora em 08 de maio de 2009, no Cine Teatro Alagados.
48
território. Em primeiro lugar, o morador antigo reconhece o poder e o controle do espaço
exercido pelos criminosos. Em segundo lugar, se conforma com o uso do espaço que lhe é
permitido (e haveria como não se conformar?) e exalta a relação que ainda mantém com
aquele espaço – sua territorialidade constituída em longos anos de lutas pelo bairro, que
resiste aos novos usos e limitações de usos impostos pelo aumento da criminalidade.
Nesta relação entre o morador antigo, liderança política que goza de prestígio entre os demais
moradores, e o grupo criminoso, há um reconhecimento mútuo dos poderes representados por
cada agente. O poder político dos líderes comunitários e o poder econômico e bélico dos
grupos criminosos.
Essa negociação, portanto, se dá entre duas esferas de poder local – lideranças comunitárias e
grupos criminosos. A todos os demais moradores, que não fazem parte desses grupos de
poder, apesar de compartilharem do sentido simbólico do território, resta um uso cotidiano
limitado pela violência.
O Final de Linha do Uruguai, onde estão situados os dois espaços culturais que são objeto
deste trabalho, constitui uma área fortemente estigmatizada como violenta, por sua
proximidade em relação ao processo de ocupação mais recente, como dissemos. No cenário
atual, segundo depoimento dos moradores entrevistados, a questão da violência e também o
estigma sobre este local específico dificultam a reapropriação do Espaço Cultural Alagados
pela população, como veremos mais adiante.
O estigma, sem ignorar o dado de realidade23 que também colabora na sua manutenção, é
reforçado – senão propriamente fundado – por determinados grupos, para garantir
22
Wanderlei Moreira, liderança do movimento cultural do bairro e coordenador do Espaço Cultural Alagados
entre 2007 e 2009. Entrevista cedida à autora em 03 de setembro de 2008, no Espaço Cultural Alagados.
23
De acordo com a pesquisa O Rastro da Violência em Salvador (2002), do Fórum Comunitário de Combate à
Violência, em 2001, a taxa de mortalidade por homicídios em Alagados foi 42,0 habitantes a cada 100.000 (o
que correspondeu a 21 mortes). No mesmo ano, o Itaigara, bairro de classe média alta em Salvador, registrou
49
determinada acessibilidade, em detrimento de outras. Neste caso, interessa, certamente, aos
traficantes e usuários de drogas, que praticam atos ilícitos em locais públicos e fisicamente
acessíveis, que a freqüência por pessoas interessadas em outras atividades seja inibida ou,
pelo menos, que se atenha a determinados espaços do bairro, reservando ao uso ilícito seu
espaço não compartilhável, para o bem dos negócios. A estigmatização reforça o caráter
desagregador da ação criminosa em si, provocando o esvaziamento do espaço público e
impedindo a sua apropriação enquanto território.
Alagados, como vimos, é um bairro recente, formado pelo mosaico de naturalidades e culturas
dos moradores que ocuparam a área, em busca da moradia que não conseguiram manter em
outras partes da cidade.
Em muitos dos bairros populares de Salvador, em especial os mais antigos, como Plataforma
e Curuzu, por exemplo, se observa hoje um esforço de “retradicionalização” das
manifestações culturais locais. Nesses bairros é possível constatar a presença de
manifestações “residuais” – que permanecem ao longo do tempo – e “excluídas” – que não
existem mais ou estão em vias de se extinguir – que vêm sendo reabilitadas e ganhando status
de manifestações emergentes (SERPA, 2007b).
uma taxa de 2,8 (1 morte). Os bairros com maior taxa de mortalidade por homicídio no período da pesquisa
(1998 a 2001), Beiru e Nordeste de Amaralina, tiveram em 2001, respectivamente, taxas de 153, 1 (44 mortes) e
de 108,9 (52 mortes).
Publicação disponível em <http://www.fccv.ufba.br/observatorio/docs/conteudo_rastro_II.pdf>.
50
sua inserção no movimento social, que consolidou ali uma série de práticas consonantes com
o que se produzia em outros bairros populares de Salvador.
Nos bairros populares das grandes cidades, como acontece em Alagados, a oferta de espaços
de lazer é precária, assim como a condição dos moradores de realizar o seu lazer fora do
bairro ou do perímetro que conseguem percorrer a pé. Desse modo, os espaços de lazer no
bairro definem centralidades, lugares de encontro e reconhecimento. Sendo projetados ou
convertidos para este uso, os espaços de lazer são fundamentais porque possibilitam a
apropriação – que, lembramos, não se confunde com propriedade – através do lúdico.
Nas áreas mais antigas dos Alagados os espaços públicos utilizados para o
lazer coletivo são diversos: ruas, campos de futebol, terrenos baldios. No
espaço onde se consolidaram os Alagados, poucas praças são utilizadas pela
coletividade, em função do estado de conservação precário (...). A rua,
independente do estado de conservação, é, em essência, o espaço mais usado
para o lazer coletivo na periferia. É onde os moradores, principalmente as
crianças, se encontram, brincam e se deleitam dando vitalidade e significado
a estes espaços. Faz-se de tudo: joga-se bola, pião, corre-corre, amarelinha,
anda-se de bicicleta, joga-se bola de gude, dentre outras atividades
(SANTOS, 2007, p.223).
Outra atividade de lazer bastante comum é a ida à praia que, no entanto, exige dos moradores
de Alagados boas caminhadas, uma vez que as praias balneáveis da Península de Itapagipe,
24
Wanderlei Moreira, liderança do movimento cultural do bairro e coordenador do Espaço Cultural Alagados
entre 2007 e 2009. Entrevista cedida à autora em 03 de setembro de 2008, no Espaço Cultural Alagados.
51
como as da Ribeira, Monte Serrat e Cantagalo, estão a pelo menos 20 minutos do bairro, se o
caminho for percorrido a pé.
Segundo SANTOS (2004), apesar das condições claramente insalubres das águas nas
palafitas, os moradores as utilizam para a prática do banho. Um fato que era muito comum e
que ainda não deixou de ser uma realidade.
(...) Você tinha o Itapagipe [Clube de Regatas Itapagipe], mas era para a elite
da época, e tinha as Sociedades de Bairro, em que você ia, tinha os
campeonatos de dominó... Se bem que na minha época eu preferia muito
mais as ruas. Você tinha espaço livre. As ruas eram de barro, você podia
jogar bola, gude, fura pé, enfim, uma série de coisas que hoje você já não vê
mais. Empinar arraia... Onde se empina mais arraia é aqui embaixo ainda
[próximo ao Espaço Cultural]. Aqui no Final de Linha, no período de arraia,
tem muitos meninos, mas nas outras ruas você vê pouco.26
25
Wanderlei Moreira, na entrevista citada anteriormente.
26
Wanderlei Moreira, na entrevista citada anteriormente.
52
3. DA MORADIA À CULTURA: MOVIMENTO SOCIAL EM ALAGADOS
O recorte temporal desta pesquisa tem início no ano de 1979, um ano chave para o processo
de retomada da democracia no país27. O contexto da retomada importa sobremaneira para o
entendimento do nosso objeto de estudo, tanto por seu rebatimento nas políticas culturais
elaboradas pelo Estado como por suas implicações na conformação do território no bairro de
Alagados. Durante o processo de redemocratização
27
O processo de redemocratização data do final da década de 70 até o ano de 1985 e teve como marcos a
reforma partidária, em 1979, que acabou com o bipartidarismo; a grande representatividade conquistada pela
esquerda nas eleições de 1982, que definiram os Governadores, Deputados e Senadores; a volta das eleições
diretas para Prefeito nas capitais, áreas de segurança nacional e estâncias hidrominerais em 1985 e, no mesmo
ano, a eleição para Presidente da República por um Colégio Eleitoral (as eleições diretas para presidente só
aconteceram em 1989); além da Constituição Federal de 1988, que correspondia a muitas das questões
elaboradas pelo movimento social fortalecido.
53
Algumas organizações da sociedade civil foram fundamentais para a nova dinâmica que se
estabeleceu no movimento social brasileiro entre as décadas de 70 e 80. FERNANDES (2004)
destaca a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e a Igreja Católica como as organizações
mais atuantes neste momento, em nível nacional, especialmente na luta pelos direitos
humanos desrespeitados pelo regime militar, tendo encampado movimentos pelo fim da
tortura aos presos políticos, pela extinção do AI-5 e pela anistia dos exilados. Segundo o
autor, a Associação Brasileira de Imprensa – ABI também teve uma atuação marcante,
apoiando as lutas dos movimentos sociais e trabalhando pelo retorno da liberdade de
imprensa.
Além das greves, os quebra-quebras de trens e ônibus, que ocorreram em grande número entre
o fim dos anos 70 e o início dos 80, demonstravam o descontentamento das classes populares
com a precarização de sua condição de vida e trabalho.
O movimento estudantil também retomava sua força, através da conquista dos Diretórios
Acadêmicos nas Universidades e da reabertura da UNE – União Nacional dos Estudantes, em
1979, fechada após ter-se tornado um dos principais alvos de perseguição pelos militares.
O Movimento Contra o Custo de Vida, mais tarde chamado Movimento Contra a Carestia,
surgiu em São Paulo e ganhou projeção nacional, integrando diversas organizações em torno
das reinvindicações de controle dos preços que mais interferiam no custo de vida da
população e de implementação de uma política de emprego e renda.
O movimento pelas eleições presidenciais diretas – Diretas Já, também foi representativo do
contexto de fortalecimento da sociedade civil, reunindo agentes diversos em prol da
aprovação de uma emenda constitucional que garantiria o retorno das eleições presidenciais
54
em 1985, pleito que não foi acatado no legislativo federal, submetendo a sociedade ao
resultado de uma eleição indireta, através de um Colégio Eleitoral.
Diante do movimento social fortalecido, apoiado por instituições com peso político
considerável, principalmente a Igreja Católica, o Estado buscava formas de controlar a
ebulição em curso. O Programa Nacional de Centros Sociais Urbanos – PNCSU (1975 a
1984) foi emblemático no sentido do tipo de relação que se tentou estabelecer com o
movimento social fortalecido nas décadas de 70 e 80, quando o cenário de redemocratização
já não permitia ao Estado a mesma ação repressiva empreendida no início da ditadura. Como
a questão da participação havia sido pautada pelos movimentos e não havia como tirá-la da
pauta naquele contexto, alguns projetos de governo incorporaram a participação em suas
diretrizes, deixando obscuras as definições acerca desta participação.
Nesse sentido,
55
onde se instalariam os Centros, opção formulada a partir de um diagnóstico que atribuía aos
“bolsões de pobreza” existentes nas grandes cidades “o agravamento da desagregação das
relações sociais primárias nessas áreas, aumentando seu potencial conflitivo” (BORBA,
1991). Por certo, o “potencial conflitivo” de que tratam os documentos elaborados pelo
PNCSU corresponde à forte mobilização protagonizada pela sociedade civil, possibilitando o
conflito com o Estado e não os conflitos internos, como tenta fazer entender o texto oficial.
Se em relação à sua meta estrutural o Programa teve um bom desempenho – foi prevista a
implantação de 600 CSUs, dos quais 501 foram concluídos –, em relação ao objetivo de
realizar uma política social redistributiva, ele fracassou 28. Entretanto, a atuação desses
Centros Sociais Urbanos passou a ser orientada por “uma metodologia de trabalho que
recomendava explicitamente atrair para o convívio e a cooperação com o Govemo toda a
organização popular porventura existente na área de abrangência de cada CSU” (PNCSU, s.d.,
apud BORBA, 1991, p.417). Assim, o Programa atuou no sentido de cooptar as lideranças do
movimento social, em consonância com a necessidade do regime militar frente ao avanço da
sociedade no sentido da redemocratização do país. O resultado desse esforço de cooptação, no
entanto, não parece ter sido muito significativo. Segundo ALMEIDA (2001), a avaliação dos
participantes do Trabalho Conjunto – grupo militante com importante atuação junto aos
bairros populares de Salvador no final da década de 70 – aponta para um pequeno impacto do
Programa dos CSUs em Salvador29, no seu intuito de diluir a mobilização das comunidades
pela reivindicação de melhores serviços públicos.
Não temos a pretensão de fazer aqui um levantamento mais preciso dos agentes que estiveram
à frente do processo de redemocratização, detalhando o papel específico de cada um e os
pesos que tiveram em cada conquista deste período30, nem tampouco dar conta das ações do
28
O trabalho de BORBA (1991) trata dos problemas enfrentados na implantação do Programa Nacional de
Centros Sociais Urbanos e dos seus resultados em relação aos objetivos afirmados, de promoção de uma política
social redistributiva.
29
Em Salvador, o PNCSUs implantou nove Centros Sociais Urbanos, nos bairros de Castelo Branco, Liberdade,
Cosme de Farias, Mussurunga, Narandiba, Nordeste de Amaralina, Pernambués, Valéria (João Paulo I) e Vasco
da Gama (Federação).
30
Para uma análise a respeito dos movimentos sociais no Brasil e sua relação com as políticas sociais,
recomendamos o trabalho de LEAL IVO (2008) e para uma descrição bastante detalhada do cenário político da
redemocratização (pelo viés do Estado e da sociedade civil), indicamos a leitura de FERNANDES (2004), que
lista uma série de outros autores que discutiram especificamente a atuação de cada organização atuante neste
contexto.
56
Estado na tentativa de manter o poder dos militares. Contudo, é importante citar a existência
dessas organizações e movimentos, que configuraram juntos uma dinâmica inédita na
sociedade brasileira, em que foi possível o fortalecimento dos movimentos sociais urbanos,
mesmo inseridos em distintas conjunturas locais.
Além do apoio político frente à ação repressora do Estado, essas instituições contribuíam com
a pauta dos movimentos populares, apresentando discussões e contribuindo para a sua
articulação em toda a cidade.
Dentre essas instituições, o IAB – Instituto dos Arquitetos da Bahia se destaca por ter
promovido, ainda em 1973, a Semana do Urbanismo, onde foi constituído o Convênio
Cultural de Profissionais Liberais, composto por mais de doze categorias profissionais
interessadas em apoiar a organização popular. Já em 1977, o Convênio Cultural deu origem à
Comissão Provisória do Trabalho Conjunto de Salvador, que reunia, além das entidades de
profissionais liberais, diretórios estudantis universitários, sindicatos, associações de
moradores e membros da Igreja. Segundo FERNANDES, “a atividade do Trabalho Conjunto
destaca-se na denúncia e na mobilização pela volta dos direitos humanos em Salvador, e
também nas manifestações que reivindicavam a não expulsão de moradores de invasões”
(2004, p.99).
Entre 1971 e 1986, o arcebispo de Salvador, Dom Avelar Brandão, reconhecido pelo Papa
como arcebispo primaz do Brasil, apesar de não se posicionar abertamente em favor das
Comunidades Eclesiais de Base, comparecia aos bairros em momentos de celebração e
também nos de embate, se colocando ao lado dos movimentos. Nesse período, de forte
repressão às ocupações, os movimentos recorriam ao arcebispo a fim de que mediasse
conflitos com o poder público e respaldasse o direito dos moradores a regularizar sua situação
de moradia.
58
Duas lideranças populares, dos bairros do Calabar e de Alagados, relembram a visita do
arcebispo. Fernando Conceição, no livro em que relata as experiências do movimento social
do bairro do Calabar entre o final da década de 70 e o início dos anos 80, conta que
Já Dom Timóteo Amoroso, abade do Mosteiro de São Bento, apoiador assumido dos
movimentos sociais, fazia do Mosteiro um território ecumênico e livre para as discussões em
pauta nas organizações que atuavam na cidade pela redemocratização (ALMEIDA, 2001).
Em 1979 foi fundada a Federação das Associações de Bairro de Salvador – FABS, que reunia
então oito associações. Em dois anos, a Federação congregava 25 entidades e no final da
década de 80 já contava com 200 participantes (FERNANDES, 2004; SERPA, 2002). A partir
de sua fundação e de um redirecionamento do Trabalho Conjunto, que era até então o espaço
para onde confluíam os movimentos de diversos bairros populares32, a FABS assumiu o papel
de interlocução com o poder público – em alguns momentos questionado por representantes
de alguns bairros (CONCEIÇÃO, 1986) –, sendo a primeira entidade formada por lideranças
de bairros populares.
A mudança gradativa deste quadro de dependência começou nas eleições de 1982, em que os
partidos de oposição ao regime, apesar de não terem obtido sucesso na eleição para
Governador (já que o candidato carlista João Durval venceu apoiado no eleitorado do interior
do estado), conseguiram uma grande representatividade tanto na Câmara Municipal como na
Assembléia Legislativa da Bahia. Nessas eleições, o PMDB ocupou 26 das 33 cadeiras da
Câmara, marcando uma relação de oposição frontal entre o governo municipal e o estadual.
32
O redirecionamento do Trabalho Conjunto se deveu, segundo CONCEIÇÃO (1986), à inserção de alguns
participantes, militantes vindos da classe média, na política partidária e nas campanhas para as eleições que
ocorreriam em 1982.
60
As eleições diretas para a Prefeitura Municipal, realizadas em 1985, representavam a
oportunidade de retomada da autonomia de Salvador. Mário Kertész, que havia sido prefeito
biônico em 1979, indicado pelo então governador Antonio Carlos Magalhães, rompeu com o
líder e filiou-se ao PMDB, partido pelo qual foi eleito, com 45,8% dos votos. A campanha
eleitoral de Kertész, construída a partir de temas como participação popular e autonomização
municipal, teve o apoio da ampla bancada de esquerda que havia assumido o legislativo
municipal e também de organizações dos movimentos sociais urbanos. Entretanto, do
discurso à prática política, a gestão Kertész se distanciou da esquerda que o havia elegido,
promovendo o desmonte das políticas que vinham sendo discutidas e planejadas desde o
regime militar e que ansiavam por se concretizar num governo eleito democraticamente
(DANTAS NETO, 2000).
Pode-se dizer que o movimento social em Alagados tem origem simultânea à ocupação do
bairro, na década de 40, mesmo que ainda de forma embrionária. Naquele período não se
tratava de um movimento politizado33, como mais tarde se configurou, mas sim de um esforço
coletivo no sentido de ocupar um espaço de moradia e resistir nele. A coletividade, neste caso,
era mesmo indispensável, pois tratava-se de uma ocupação ilegal, que poderia ser removida à
força pela polícia – procedimento comum na época. Ter um bom número de moradores
mobilizados em cada movimento de ocupação garantia condições de que rapidamente, “da
noite para o dia”, o espaço encontrado fosse tomado por casas e famílias. Quanto mais
consolidada parecesse uma ocupação (com maior número de moradias), mais difícil se
33
É importante observarmos que, diferentemente das informações colhidas a respeito do início do processo de
ocupação em Alagados, parte das ocupações ocorridas na mesma época em outras áreas da cidade se deu com
forte apoio de organizações políticas. Conforme FRANCO (1983), as ocupações ocorridas na década de 40, “se
caracterizaram pelo porte (centenas de famílias envolvidas) e pela dimensão política que assumiram, ao envolver
a participação de organizações e partidos políticos, numa estratégia que ia da resistência às tentativas de
expulsão à mobilização da opinião pública, mediante procissões de cunho religioso, manifestações públicas,
representação jurídica, etc” (p.188).
61
tornava a sua remoção, que poderia causar aos governantes, além de despesas financeiras,
altos custos políticos.
O movimento social existente no período inicial do bairro – fato que se repete no início de
cada nova etapa da ocupação, inclusive nas mais recentes – atuava sobre a esfera da
necessidade, concentrando-se na solução de problemas urgentes, que eram resolvidos pelos
34
Nilda Dias do Espírito Santo, diretora da Associação de Moradores Dom Avelar e da Escola Comunitária
Canto da Paz. Entrevista cedida à autora em 12 de maio de 2009, na Escola Canto da Paz.
62
próprios moradores, através de um esforço coletivo. Como notado por SANTOS (2004), é
comum na fala dos moradores uma espécie de nostalgia do início da ocupação (das sucessivas
etapas de ocupações que formaram o bairro), referido como um período de maior
solidariedade e união entre os moradores. Apesar de, no período inicial, todas as etapas de
ocupação apresentarem condições de vida extremamente precárias e risco de expulsão
permanente, essas mesmas dificuldades demandavam a existência de uma vida pública – de
que hoje se tem nostalgia –, que perdia importância à medida em que as ocupações se
consolidavam e a conquista da casa própria possibilitava o fortalecimento da vida privada de
cada família. Segundo SILVA,
A mudança de perfil tanto das lideranças comunitárias do bairro como das organizações de
que fazem parte é marcante se tomarmos para efeito de comparação o início do movimento
social em Alagados, com as primeiras ocupações, e a fase em que este movimento se
35
A falta de referências sobre a atuação dos partidos políticos junto aos movimentos sociais dos bairros
populares de Salvador e, em especial, nos movimentos de ocupação, como os que formaram o bairro de
Alagados, não nos permitiu aprofundar essa análise além do que apresentamos aqui. No entanto, consideramos
que seria de grande relevância a realização de estudos específicos sobre o tema, a fim de esclarecer o papel dos
partidos na construção dos movimentos sociais de bairro.
63
reestruturou. Uma pesquisa realizada no bairro, em que foram entrevistadas lideranças
locais36, revelou que os antigos líderes, mais atuantes até a primeira metade da década de 70,
eram majoritariamente do sexo masculino e atuavam através de sociedades de defesa e
proteção do bairro, que prestavam assistência aos moradores. Segundo a pesquisa, algumas
dessas lideranças acabaram estabelecendo relações clientelistas com os mais diversos grupos
políticos, fazendo o papel de “cabo eleitoral” dentro do bairro (SILVA, 2001).
Esse tipo de apoio de políticos ao bairro, de caráter clientelista, não gerou um compromisso
maior por parte do Estado com uma política social para a área ou mesmo um plano de
urbanização que vislumbrasse a solução dos problemas enfrentados pelos moradores (o
primeiro plano seria elaborado apenas na segunda metade dos anos 70). Segundo SILVA,
“tudo o que o poder público construiu na área, com base nessa relação, foi pouco em
comparação com tudo aquilo que os próprios moradores foram capazes de construir sozinhos”
(2001, p.101).
Muitas das organizações surgidas neste período acabaram se esvaziando, por serem
demasiadamente atreladas a um determinado grupo ou pessoa e, portanto, fechadas a uma
maior participação da população.
36
A pesquisa de SILVA tem por objeto as relações de gênero na luta pela moradia em Alagados. A autora
entrevistou um total de 44 “lideranças” do bairro, sendo 22 homens e 22 mulheres. A partir de uma primeira lista
de “lideranças” já conhecidas pela autora, foram indicadas outras, incluídos nesta categoria representantes e ex-
representantes de organizações diversas (como sociedades e associações, entidades religiosas e esportivas),
moradores antigos que contam a história do bairro, que realizam trabalhos voluntários, entre outros – pessoas
reconhecidas pelos próprios moradores.
64
Conforme os relatos dos moradores, a principal distinção entre a atuação do movimento até a
primeira metade dos anos 70 e da segunda metade em diante, é o entendimento sobre os
papéis da população e do Estado. No primeiro momento, que se forjou à sombra do regime
militar, o Estado era um ente inacessível, agente de repressão às ocupações e não de garantia
do direito à moradia. Nessa conjuntura, os moradores eram os principais agentes da
construção do bairro, notadamente através da realização de mutirões e da autoconstrução.
Outro dado importante do novo perfil do movimento social em Alagados foi a emergência das
mulheres, que passaram a ser maioria entre as lideranças do bairro e nos cargos de direção das
organizações, tomando a frente na relação com o Estado, que então começava a intervir mais
efetivamente na área (SILVA, 2001). Em seu relato sobre uma ocupação que teve início entre
1984 e 1985, na área hoje conhecida como Alagados III ou Invasão Dom Avelar, Nilda Dias37
afirma que a maioria dos participantes desta ação, assim como de outras etapas mais recentes
da ocupação do bairro, eram mulheres, entre 20 e 24 anos de idade, com filhos e separadas
dos maridos.
37
Nilda Dias do Espírito Santo, diretora da Associação de Moradores Dom Avelar e da Escola Comunitária
Canto da Paz Entrevista cedida à autora em 12 de maio de 2009, na Escola Canto da Paz.
65
Outro trecho da fala desta mesma liderança demonstra tanto a formação de um movimento
local com foco nas necessidades prementes dos moradores como a reconfiguração do diálogo
entre Estado e movimento social:
Neste mesmo período, quando as intervenções estatais já haviam sido capazes de criar ao
menos a expectativa de solução dos problemas de moradia (a implantação do Plano
Urbanístico de Alagados havia começado em 1973), que constituíram a pauta inicial e
prioritária do movimento social em Alagados, teve início o processo de confluência entre a
luta por moradia e o movimento cultural.
(...) a partir do final da década de 70, início de 80, o forte [em Alagados]
ficou sendo o movimento cultural. Isso também puxado um pouco pela
questão da moradia, mas aí a moradia já ficou um pouco mais pra segundo
plano, porque como o governo vinha com a promessa de botar casas, então
38
Nilda Dias do Espírito Santo, na entrevista citada anteriormente.
66
as coisas amainaram mais. E aí o movimento cultural surge e a partir daí é
que em um dado momento eles se cruzam.39
Nesse momento, “o movimento percebe que já não dá mais pra cada um funcionar lá no seu
40
canto [cultura e moradia], porque as lutas são comuns” . Segundo Maria de Lurdes da
41
Conceição Nascimento (Lurdinha) , a articulação entre as antigas lutas dos moradores e o
movimento cultural deu um novo ânimo às lideranças locais, pela possibilidade de atuarem
também através da “beleza”, da “festa” e da “alegria”, ampliando o sentido do seu trabalho
social.
A confluência entre a luta por moradia e o movimento cultural, no entanto, foi conduzida por
novas lideranças, que já ingressaram no movimento a partir de uma relação com a cultura.
Esse dado foi verificado por SILVA (2001), que em sua pesquisa entrevistou 44 lideranças,
das quais 25 (57%) declararam ter iniciado sua atuação no movimento social através do
exercício de “atividades sócio-culturais”. Trata-se, portanto, de uma nova geração de
lideranças, formada a partir de uma nova perspectiva, em que a cultura é considerada
ferramenta de mobilização social, direito dos cidadãos e também necessidade.
O Grupo tinha uma atuação bastante diversa: fazia mutirões para pequenas obras no bairro,
peças teatrais, recitais de poesia, produzia um informativo e chegou a realizar um censo, em
que todos os moradores foram entrevistados e, além das questões sobre seu perfil sócio-
39
Wanderlei Moreira, liderança do movimento cultural do bairro e coordenador do Espaço Cultural Alagados
entre 2007 e 2009. Entrevista cedida à autora em 03 de setembro de 2008, no Espaço Cultural Alagados.
40
Wanderlei Moreira, na mesma entrevista citada anteriormente.
41
Lurdes da Conceição Nascimento, coordenadora da Escola Comunitária Luiza Mahin e da Associação dos
Moradores do Conjunto Santa Luzia. Entrevista cedida à autora em 29 de dezembro de 2009, na Escola
Comunitária Luiza Mahin.
67
econômico, responderam a perguntas sobre seu entendimento acerca do contexto político da
época (o censo do JUC perguntava, por exemplo, quem era o prefeito de Salvador e o que
significavam as siglas ARENA e MDB).
Segundo o autor, que foi também uma liderança popular no bairro do Calabar,
foi exatamente pelo papel exercido pela Igreja nos tempos mais fechados do
regime de 64, que no ano de fundação do JUC [sigla que identifica o Grupo
Jovens Unidos do Calabar, fundado em 1977] já existiam centenas ou
milhares de grupos de jovens espalhados por Salvador, pela Bahia e pelo
Brasil inteiro (1986, p.36).
Em Alagados, as duas paróquias locais da Igreja Católica, a Paróquia de São Jorge (na área
hoje conhecida como Jardim Cruzeiro) e a Paróquia Nossa Senhora dos Alagados (próxima ao
Conjunto João Paulo II), tiveram certamente um papel fundamental na formação dessas novas
lideranças, com um trabalho paroquial fundamentado na teologia da libertação.
O teatro e o cinema são as duas artes mais presentes desde o início do movimento cultural no
bairro de Alagados, como veremos no próximo capítulo, o que se consolidou com o apoio do
Movimento Cineclubista, com a Federação Baiana de Cineclubes, filiada ao CNC – Conselho
Nacional de Cineclubes, e do Movimento de Teatro Amador, com a Federação Baiana de
Teatro Amador – FBTA, filiada à CONFENATA – Confederação Nacional de Teatro
Amador.
42
Sue Ribeiro, teatróloga e professora de teatro em Alagados durante a década de 80, pela Fundação Cultural do
Estado da Bahia. Entrevista cedida à autora em 12 de maio de 2009, na Secretaria de Cultura Estadual.
68
Essas organizações, fortemente presentes na vida cultural das grandes cidades brasileiras no
período da redemocratização, encontraram em Alagados um movimento cultural espontâneo
que, entretanto, poderia ser potencializado e também politizado com a sua atuação local. A
confluência entre cultura e política já era, então, uma realidade para os movimentos sociais
em nível nacional.
Uma característica interessante, que vale ser destacada no Movimento Cineclubista, é que ele
não surge a partir de uma organização dos realizadores de filmes, mas sim da organização do
público, interessado na difusão de filmes. Assim, um cineclube pode congregar pessoas com
os mais diversos interesses e atuações, desde que tenham em comum o desejo de assistir
filmes e discuti-los em seu grupo social. Por essa característica de sua formação, o cineclube
parece ser um modelo privilegiado para a articulação entre cultura, política e mobilização
social. Em Alagados, o Cineclube Aventura (atuante desde 1980, com oscilações, até os dias
atuais) teve um papel fundamental na manutenção da vida cultural dos moradores, assim
como no processo de sua politização.
43
A atuação em rede era característica comum ao Movimento Cineclubista, pois os filmes eram geralmente
exibidos em película de 16mm, uma mídia cara, que possibilitava a realização de poucas cópias. Sendo poucas,
as cópias deveriam circular entre os cineclubes e desta forma os filmes realizavam longos circuito pelo Brasil.
Em Salvador, o cineclubista Luis Orlando Silva foi um dos principais responsáveis pela circulação de filmes nos
bairros populares, atividade que exercia enquanto militante, mas também enquanto funcionário da Fundação
Cultural do Estado da Bahia, integrante do projeto PRODASEC, como relataremos no próximo capítulo.
69
reconhecia nas artes cênicas um grande potencial de transformação social, que foi levado a
cabo no bairro com o trabalho desenvolvido junto ao Espaço Cultural Alagados. Já a partir da
segunda metade dos anos 80, a FBTA, que tinha sede no Centro da cidade, praticamente se
mudou para Alagados, desenvolvendo uma série de atividades no Espaço Cultural do bairro.
Nada melhor que o teatro, que é a arte pra isso, esse elemento de
transformação, de liberdade. Então nós buscávamos a arte para nos
transformar. A gente nem pensava em ser artista! Aí é que tá o gancho, o nó
da história. Ninguém tava pensando em ser o artista, ser reconhecido, ganhar
cachê, ter DRT, registro profissional... A gente tinha consciência da
ferramenta teatral, da linguagem artística enquanto ferramenta, como
elemento de transformação. 44
Assim, o movimento cultural em Alagados foi forjado tendo, desde o princípio, a participação
como pressuposto e a transformação da realidade social como objetivo, de modo que a
confluência entre os movimento de moradia e de cultura se deu pela percepção dos interesses
comuns e das possibilidades de potencialização que um movimento representava para o outro.
44
Tainã Andrade, teatróloga, militante do Movimento de Teatro de Rua e ex-professora de teatro em Alagados,
pela Federação Baiana de Teatro Amador. Entrevista cedida à autora em 14 de maio de 2009, no Largo Dois de
Julho.
70
4. POLÍTICA E CULTURA NO TERRITÓRIO POPULAR DE ALAGADOS
Se, como dissemos, este trabalho defende um estreitamento das relações entre territórios e
políticas culturais, o bairro de Alagados apresenta um rico exemplo dos encontros e
desencontros possíveis nesta relação.
A melhor das possibilidades, no entanto, a nosso ver, é que a formulação e implementação das
políticas culturais esteja a cargo das pessoas que vivem o território, compondo uma aliança
com o Estado, no sentido de garantir que essas políticas sejam efetivamente públicas. Caberia
ao Estado, neste caso, apoiar as práticas culturais já legitimadas no território e também
possibilitar condições para a criação de novas práticas, pois a cultura é dinâmica, assim como
são os territórios.
Ao longo da história das políticas culturais em Alagados, essas quatro formas de apreensão
das relações territoriais tiveram lugar, às vezes de forma combinada, como veremos a seguir,
na análise dos principais marcos destas políticas no bairro.
71
4.1 Políticas culturais do Estado em Alagados
Para o campo da cultura, tanto no plano nacional como no local, a redemocratização trouxe
grandes expectativas. Em Salvador, a Prefeitura Municipal, que durante a ditadura funcionava
como “nada mais, nada menos que uma Secretaria a mais na estrutura do Governo Estadual”
(SANTOS, 1997, p.37), teve, com a eleição direta para prefeito em 1985, a oportunidade de
retomar sua autonomia, inclusive em relação às questões da cultura.
Em seus primeiros anos, a FGM foi presidida por Gilberto Gil (maio de 1986 a julho de
1988), que, em texto escrito com Antonio Risério, relatou o modelo de política cultural que se
pretendeu implantar em Salvador naquele período:
A FGM nasceu, antes de mais nada, recusando dois papeis amarelados pela
prática conservadora e elitista dos velhos mandarins da política cultural
brasileira. De uma parte, recusando-se a assumir o papel da agência cultural
tradicional, com sua ação restrita ao mecanismo de repasse de recursos
financeiros a uma clientela preferencial (...). De outra parte, recusando-se
igualmente a assumir o papel de réplica municipalista de órgãos estaduais e
federais. Se aceitássemos o papel de réplica (...) estaríamos simplesmente
fazendo transposição mecânica, para realidade do município, de um modelo
abstrato e alienado de repartição „cultural‟, estruturado segundo o padrão
europeu das formas e práticas de cultura, com seus departamentos de
cinema, teatro, dança, literatura, etc., supostamente aplicáveis a qualquer
realidade cultural (RISÉRIO; GIL, 1988).
O público alvo das ações pretendidas pela Fundação, segundo Risério, em entrevista cedida ao
Jornal da Bahia, eram os cidadãos e não apenas a comunidade artístico-intelectual: “a vida
cultural baiana é o que se produz no mestrado de física e no barraco da invasão”.45
45
Jornal da Bahia, 06 de janeiro de 1986.
72
Neste curto período (a gestão de Kertész durou apenas três anos), a FGM criou um amplo
menu de ações, que abrangiam desde a preservação do patrimônio histórico até a animação
cultural em bairros populares, passando por projetos de estímulo às artes. Em relação aos
bairros populares da cidade, no entanto, a única ação sistemática foi o projeto Boca de Brasa,
que tinha entre seus objetivos
Estima-se que até 1988 o Boca de Brasa tenha promovido mais de 600 mostras culturais, em
pelo menos 300 localidades diferentes da cidade. Apesar de Alagados figurar na lista dos
bairros visitados logo no primeiro ano do projeto47, não foi relatada por nenhum dos
entrevistados qualquer memória desta ação. Com seu caráter itinerante, o Boca de Brasa
provocava um momento de festa cultural nos locais por onde passava, mas não era
complementado por ações mais permanentes, que estimulassem a reflexão sobre a produção
local e também o seu incremento (ALBINATI, 2006).
46
Sinopse do Projeto Boca de Brasa, FGM/PMS, setembro de 1987. Acervo da Fundação Gregório de Mattos.
47
Relatório do projeto Boca de Brasa – 1986. Acervo da Fundação Gregório de Mattos.
73
bairros populares da cidade – foco das ações prioritárias desta gestão –, mas a interrupção dos
projetos com a saída do dirigente, determinada pela reestruturação do quadro partidário da
Prefeitura, não permitiu que esse diálogo se consolidasse como desejado.
No Governo Estadual, até 1974, quando foi criada a Fundação Cultural do Estado da Bahia –
FCEBA e depois FUNCEB48, a cultura era parte das atribuições do DESC – Departamento de
Ensino Superior e Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura. A criação de uma instituição
exclusivamente voltada à questão cultural trouxe novas perspectivas para o campo cultural da
cidade.
A partir de 1979, com a nomeação de Geraldo Machado para a direção geral da Fundação
(1979 a 1983), durante o segundo governo de Antonio Carlos Magalhães (mesmo período), a
instituição passou a ser reconhecida de fato como órgão gestor de políticas culturais. Segundo
a escritora Myriam Fraga, “naquela época da Revolução, a Fundação Cultural era uma espécie
de território de resistência, a gente sabia que podia ter ali um pouco mais de liberdade (...).
Certas pessoas que eram mal vistas pelo regime, ali tinham uma espécie de porto seguro”
(FONSECA et al, 2004, p.45). Mesmo dentro do regime militar e de uma gestão carlista, a
FUNCEB tinha relativa autonomia para formular políticas culturais, abrigando em seus
quadros importantes artistas e intelectuais, inclusive os de esquerda.
Ao passo em que tentava interiorizar suas ações, elaborando e captando recursos para o
projeto de construção de Centros de Cultura em cidades pólo no interior do estado, a
48
A Fundação já havia sido instituída desde o final de 1972, com a Lei 3.095, de 26 de dezembro, mas passou a
funcionar somente em 1974, com a publicação do Decreto 23.944, de 23 de janeiro.
74
Fundação desenvolvia uma série de projetos em Salvador, especialmente nos bairros
populares da cidade, com o viés sócio-cultural, a exemplo dos projetos História dos Bairros
de Salvador e Dinamização Cultural nos Bairros. Este último integrava o PRODASEC
Urbano – Programa de Ações Sócio-Educativas e Culturais para as Populações Carentes
Urbanas, do Ministério da Educação e Cultura, que teve uma importante atuação no bairro de
Alagados, como veremos em seguida.
Já em 1987, após a criação da Fundação Gregório de Mattos pela Prefeitura, o governo Waldir
Pires (1987 a 1989) constituiu a Secretaria Estadual de Cultura49, capitaneada por José Carlos
Capinam. Apesar deste ato, que demonstra o reconhecimento da importância da cultura entre
os objetos de políticas públicas, a nova Secretaria encontrou dificuldades para implantar uma
política nova. Para a Fundação Cultural, teve início um novo período de instabilidade, com a
passagem de quatro diretores entre 1987 e 1990. Em 1989, a instituição passou a se chamar
Fundação das Artes, alteração que redirecionava o rumo de sua atuação apenas para as
linguagens artísticas, mudando o foco que havia sido lançado sobre as ações sócio-culturais.
Com a nova mudança de governo, a Secretaria foi então extinta50 e a Fundação Cultural ficou
sob a gestão de José Augusto Burity, entre 1991 e 2003. O mais longevo diretor da
instituição, que a administrou durante 12 anos, teve uma atuação marcada pela realização de
eventos (FONSECA et al, 2004). Em 1995 foi criada a Secretaria de Cultura e Turismo –
SCT51, a que a FUNCEB passou a ser subordinada. A SCT fundia os dois temas em uma só
pasta, dentro de uma visão da cultura como recurso para a dinamização da atividade turística.
49
Lei 4.697, de 15 de julho de 1987.
50
Lei 6.074, de 22 de maio de 1991.
51
Lei 6.818, de 18 de janeiro de 1995.
75
Diante do novo cenário político e institucional, a FUNCEB conseguiu manter alguns poucos
projetos de caráter sócio-cultural, agora ampliados para o interior do estado, através dos
Centros de Cultura.
O que se observou em Alagados a partir de 1980, quando teve início a primeira ação de
política cultural implementada pelo Estado no bairro, foi o contrário do que defende
BOTELHO. Enquanto a esfera municipal não assumia a responsabilidade sobre a elaboração
das políticas culturais nos bairros, o governo estadual, através da Fundação Cultural do
Estado, resolveu atuar neste campo, sem articulação alguma com o Município.
O Governo do Estado tomava como referência, então, a experiência adquirida pelo Governo
Federal, que desde a década de 30 vinha formulando políticas culturais e vivia um período de
fortalecimento institucional da cultura dentro do MEC.
76
Já no final do regime militar, na segunda metade da década de 70, foram criados diversos
órgãos atuantes em políticas culturais: Fundação Nacional das Artes – FUNARTE e Centro
Nacional de Referência Cultural, em 75, com a Elaboração do primeiro Plano Nacional de
Cultura; Conselho Nacional de Cinema – CONCINE e RADIOBRÁS, em 76; Fundação Pró-
Memória e Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em
1979; INACEN – Instituto Nacional de Artes Cênicas, junto com a Secretaria de Cultura do
MEC, em substituição à antiga Secretaria de Assuntos Culturais, em 1981. O atual Ministério
da Cultura, só veio a ser constituído em 1985.
A preocupação do Governo Federal com políticas culturais atentas às realidades locais (ou à
questão territorial, como destacamos) gerou documentos importantes, que sintetizavam essas
reflexões e que poderiam orientar as políticas dos estados e municípios. Em 1981 foi
publicado o documento Diretrizes para a operacionalização da Política Cultural do MEC,
em que o Ministério apontava para a necessidade de atuação dos três entes federativos como
um sistema, em prol da produção cultural e da preservação do patrimônio histórico. No
mesmo ano, foram criadas no MEC as Secretarias de Patrimônio e de Cultura. Esta última,
sob o comando do secretário Aloísio Magalhães (1981 a 1982), criou uma linha programática
chamada Interação entre educação básica e os diferentes contextos culturais existentes no
país, que financiou com recurso do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação mais
de 200 projetos em todo o país. (BRUM, 2006).
A solidez do projeto federal emprestou suas diretrizes para o trabalho do Governo Estadual,
que ainda começava a se estruturar. O PRODASEC Urbano – Programa de Ações Sócio-
Educativas e Culturais para as Populações Carentes Urbanas financiou e definiu as linhas
gerais do que seria a atuação da Fundação Cultural da Bahia nos bairros de Salvador. Era,
portanto, uma ação de perfil eminentemente municipal, formulada pela esfera federal e
executada pela estadual, sem qualquer envolvimento do Município.
Dinamização Cultural nos Bairros foi o nome dado, na Fundação Cultural do Estado da
Bahia, à etapa local do PRODASEC Urbano – Programa de Ações Sócio-Educativas e
77
Culturais para as Populações Carentes Urbanas, projeto implantado pelo Ministério da
Educação e Cultura em março de 1980 e viabilizado em Salvador pela FUNCEB, entre
setembro de 1980 e dezembro de 1982. A Fundação se organizava então em Grupos de
Trabalho temáticos (Bairros, Interior, Memória e Educação) e este projeto ficou a cargo do
Grupo de Trabalho Bairros.
Segundo relato da assistente social Cristina Valle, colaboradora da Fundação Cultural que
coordenou a implantação local do projeto, a iniciativa visava o
Ao rechaçar o uso recorrente da idéia de identidade nos discursos sobre políticas culturais,
ALBUQUERQUE JR. defende a singularidade como premissa verdadeira:
Considerando que não existe a possibilidade de que as atividades culturais “se repitam no
tempo sem mudanças de sentido, de significado, sem deslocamentos nos próprios arranjos dos
rituais, dos objetos, dos motivos, dos temas, dos próprios agentes e de lugares onde se realiza”
(ALBUQUERQUE JR, 2007, p.15), revitalizá-las seria inseri-las em um universo onde já não
têm o mesmo ou nenhum sentido.
52
Relatório Projeto Dinamização Cultural nos Bairros: Síntese de uma Experiência. Salvador, 1983.
79
No entanto, o uso generalizado da idéia de identidade demanda mais atenção à análise das
práticas do que aos discursos, já que as mais diversas ações carregam a bandeira identitária,
muitas vezes sem maiores implicações em sua concretização.
Segundo o relatório citado anteriormente, a execução do projeto foi norteada pelas seguintes
idéias e procedimentos:
A linguagem escolhida para o trabalho em Alagados foi o teatro, porém o formato adotado no
bairro era diferente daquele estabelecido como padrão para o projeto. A primeira oficina de
teatro realizada no bairro foi ministrada por quatro professores – Guilherme Marback, Jair
Assumpção, Beto Roquenzel e Ilona Filet. O grupo de atores trouxe para Alagados sua
experiência com a Companhia Paulista de Teatro, de que eram integrantes e que havia
montado dois anos antes, em 1978, o espetáculo Macunaíma, com o reconhecido diretor
Antunes Filho.
Não se tem informação sobre o motivo da escolha de Alagados como sede de oficinas do
projeto, mas sabe-se que o bairro havia ganho projeção nacional, pela precariedade em que
viviam seus moradores, especialmente com a visita do Papa João Paulo II, que veio ao bairro
em 1980, ocasião em que inaugurou a Paróquia de Nossa Senhora dos Alagados.
53
Relatório Projeto Dinamização Cultural nos Bairros: Síntese de uma Experiência. Salvador, 1983.
80
Para a implantação das oficinas, o PRODASEC buscava sempre um parceiro local, que cedia
o espaço de realização das atividades e colaborava na divulgação e inscrição de participantes.
Em Alagados, a instituição parceira, que sediou as oficinas, foi a Escola Polivalente San
Diego, situada no Final de Linha do Uruguai.
Eu fui indicada por uma das minhas professoras pra fazer parte. Eu não
lembro por que. A gente tinha muita ligação com os professores e eles
tinham essa preocupação de a gente não ficar apenas com o que a escola
dava, mas que a gente participasse de outras coisas. Essa professora sempre
indicava alguns alunos que ela preferia investir, incentivar a procurar outras
coisas. Foi assim que eu fui incentivada pela minha professora de história,
chamada Marta, pra ir participar do grupo de teatro, pra gente se encontrar
com outros grupos de alunos que ela queria ver no futuro tomar conta do
grêmio.54
54
Jacira de Jesus Costa, membro do CAMA – Centro de Arte e Meio Ambiente e colaboradora da FUNCEB
lotada no Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 15 de maio de 2009, no Espaço Cultural
Alagados.
55
Jamira Muniz, educadora, atual coordenadora do Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 11
demaio de 2009, na Escola Comunitária Luiza Mahin.
56
Wanderlei Moreira, liderança do movimento cultural do bairro e coordenador do Espaço Cultural Alagados
entre 2007 e 2009. Entrevista cedida à autora em 03 de setembro de 2008, no Espaço Cultural Alagados.
81
por critério de idade e também de porte físico. Dentre todos os inscritos, apenas 30 alunos
optaram por abdicar de suas férias escolares para continuar na oficina. Cada turma deu origem
a um grupo de teatro: os meninos mais novos ou de menor porte formaram o grupo infantil
chamado Sapinho Colorido e os mais velhos ou de maior porte formaram o grupo Explosão e
Aventura.
Segundo depoimentos dos participantes, a oficina não tinha a princípio o objetivo de montar
um espetáculo, mas ao longo dos trabalhos, os próprios alunos criaram textos que depois
quiseram apresentar. Foram então montados dois espetáculos, Um Bairro Chamado Alagados,
pelo grupo Sapinho Colorido, e Alagados, pelo grupo Explosão e Aventura.
A repetição da temática nesses espetáculos nos pareceu, em princípio, uma busca pela tal
identidade de Alagados, que buscaria identificar os jovens e crianças às condições precárias
da vida no bairro. No entanto, nas realizações posteriores foram trabalhadas diversas
temáticas, com a produção de textos próprios, porém explorando outros universos simbólicos,
e também com textos de outros autores, inclusive estrangeiros.
A busca de referências diversas era, aliás, uma preocupação presente não apenas nas oficinas
de Alagados (ao longo de pouco mais de dois anos foram realizadas quatro oficinas no bairro,
dando continuidade ao trabalho com o grupo de alunos inicial), mas também no projeto como
um todo. A atividade de Comunicação Sócio-Cultural era a mais empenhada nesse objetivo.
57
Wanderlei Moreira, na mesma entrevista citada anteriormente.
58
Relatório Projeto Dinamização Cultural nos Bairros: Síntese de uma Experiência. Salvador, 1983.
82
Vale notar também a relevância do PRODASEC para a formação de um movimento
cineclubista ancorado nos bairros populares de Salvador. Entre 1980 e 1982, o setor de
Comunicação Sócio-cultural do PRODASEC envolveu 38 grupos de cinema e cineclubes em
atividades de exibição audiovisual. Os grupos e cineclubes foram formados através de
treinamentos e do empréstimo de filmes e equipamentos de projeção.
Voltando aos espetáculos montados a partir das Oficinas de Criação e Expressão Artística, as
primeiras apresentações foram realizadas na biblioteca do Colégio Polivalente, onde
aconteciam as aulas e ensaios. Dentro das ações de difusão da “produção
representativa/expressiva” dos bairros, o PRODASEC previa a realização de eventos
conjuntos, com mostras de resultados das oficinas implementadas. Em 1981 foram realizados
o I Circuito Cultural de Alagados, palco das primeiras apresentações dos grupos Sapinho
Colorido e Explosão e Aventura, o I Circuito de Lazer Cultural do Cabula e o Circuito de
Comemorações Natalinas.
A apresentação dos espetáculos produzidos em Alagados ganhou boa repercussão nos meios
de comunicação e gerou convites para a participação em outros eventos, como relata Isael
Barros, educador e primeiro coordenador do Espaço Cultural Alagados: “em 81 nós tínhamos
um espetáculo já montado. Fizemos uma apresentação na SBPC [encontro da Sociedade
83
Brasileira para o Progresso da Ciência], lá em Ondina, e foi o maior público que já tivemos,
foram cinco mil pessoas assistindo ao espetáculo”.59
Em sua coluna de crítica teatral no Jornal da Bahia, em 1981, o ator Bemvindo Sequeira
comentou os espetáculos:
Essa produção “que se fazia ouvir em toda cidade e que se tornou uma referência, no campo
dos trabalhos realizados com jovens e adolescentes de comunidades periféricas de Salvador”
(MOREIRA, 2007, s/p), possibilitou a inserção dos grupos de Alagados em um circuito local.
Sobre esse período, Isael Barros relata que “a gente conseguiu fazer alguns elos com a
Federação Baiana de Teatro Amador, conseguimos fazer alguns elos com o próprio teatro
Vila Velha, participando de oficinas, assistindo espetáculos, o pessoal vinha também ver
nosso espetáculo”.61
59
Isael Barros, educador e primeiro coordenador do Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 02
de setembro de 2008, na Associação dos Moradores do Conjunto Santa Luzia.
60
Jornal da Bahia, 31 de julho de 1981.
61
Isael Barros, na entrevista citada anteriormente.
84
abandonados que pertenciam à Prefeitura e ao Estado e fomos procurar saber
o que se podia fazer.62
Através de um dos professores dos grupos, Guilherme Marback, parente do então Secretário
da Educação do governo de Antonio Carlos Magalhães, Eraldo Tinoco, foi entregue ao
Secretário um abaixo-assinado reivindicando um espaço para os ensaios e apresentações dos
grupos locais. A reivindicação foi encaminhada ao governador que, em ano eleitoral, ordenou
a construção de um Cine-Teatro.
A gente queria um galpão com cadeiras, uma tela de projeção, um palco pra
apresentação e também um espaço pro povo da capoeira, uma coisa que a
gente pudesse administrar localmente. Aí a gente recebeu o golpe. ACM [o
então governador Antonio Carlos Magalhães] resolveu fazer uma coisa que
era tão maravilhosa e não ia deixar com a gente. A gente ganhou, mas não
levou.63
62
Jacira de Jesus Costa, membro do CAMA – Centro de Arte e Meio Ambiente e colaboradora da FUNCEB
lotada no Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 15 de maio de 2009, no Espaço Cultural
Alagados.
63
Jacira de Jesus Costa, na entrevista citada anteriormente.
64
Sue Ribeiro, teatróloga e professora de teatro em Alagados durante a década de 80, pela Fundação Cultural do
Estado da Bahia. Entrevista cedida à autora em 12 de maio de 2009, na Secretaria de Cultura Estadual.
85
queria um galpão de madeirite, só para ensaiar. Como veio esse monstrão, a
gente não atentou para a questão da administração.65
A arquitetura do Cine-Teatro (figura 4) não sugere que seja um espaço cultural; pela fachada
do edifício, poderia tratar-se também de um posto de saúde, delegacia ou qualquer outro
prédio público. Além da despreocupação com a qualidade estética do edifício do Cine-Teatro
e com sua inserção naquele ambiente, o projeto apresenta alguns aspectos que determinam,
em princípio, limitações ao uso. O modelo escolhido de palco, do tipo italiano, delimita de
65
Wanderlei Moreira, liderança do movimento cultural do bairro e coordenador do Espaço Cultural Alagados
entre 2007 e 2009. Entrevista cedida à autora em 03 de setembro de 2008, no Espaço Cultural Alagados.
66
Jornal Correio da Bahia, 28 de janeiro de 1982 (informe publicitário).
67
Wanderlei Moreira, na entrevista citada anteriormente.
86
forma estanque os lugares do artista e do público, dificultando a realização de espetáculos
com propostas mais ousadas, no sentido de possibilitar que os espectadores se sentissem
também sujeitos da cultura. O foyer, espécie de ante-sala que dá acesso à sala de espetáculos,
é diminuto, impedindo a concentração do público antes e depois dos espetáculos e
dificultando a realização plena da sociabilidade que envolve uma ida ao teatro ou ao cinema.
Independente de sua forma, o Cine-Teatro foi recebido por grande parte dos moradores como
um presente, como fazia supor o Governador Antonio Carlos Magalhães em seus freqüentes
discursos de inauguração de obras em Alagados. Para muitos dos moradores o Cine-Teatro
com acesso gratuito possibilitou seu primeiro contato com o cinema e outras artes.
Joselito Crispim, diretor do Grupo Cultural Bagunçaço, conta brincando que “houve uma
moda de inverno nos Alagados por conta do ar condicionado do Cine-Teatro”.
Nesse período que criaram o teatro, foi a primeira vez que eu fui ao cinema.
Eu lembro que tinha um tio meu que era meio andarilho, vivia sempre fora e
apareceu naquela época trazendo umas botas gaúchas, daquelas. Lembro que
eu botei aquela bota gaúcha, porque ir ao teatro, ao cinema, era a coisa mais
espetacular do mundo (...) e lá vou eu de calça e bota pro teatro, pra uma fila
que não tem mais tamanho, pra assistir Os Trapalhões.68
68
Joselito Crispim, Arte-educador e diretor do Grupo Cultural Bagunçaço. Entrevista cedida à autora em 08 de
maio de 2009, na sede do Grupo Cultural Bagunçaço.
87
Mestre Pedro Pé-de-Ferro, diretor da Academia de Capoeira Filhos do Sol Nascente, que hoje
ocupa as ruínas do Cine-Teatro, relata as suas impressões da época em que o espaço estava
em funcionamento.
No começo era tudo bom, né? A comunidade ficou muito contente com isso.
Todos participavam, vinham participar. (...) Eu sempre vinha, fazia show,
vinha representar com o grupo de teatro, com o grupo de capoeira... Eu
sempre era chamado, sempre bem visto como é até hoje. (...) Isso aqui ficava
cheio de gente, tinha a parte que o pessoal apresentava, o pessoal gostava
muito, sempre tinha gente aqui dentro. Até Michael Jackson [um capoeirista
do bairro fazia cover do artista] tinha aqui dentro, que apresentava e o
pessoal gostava muito.69
Ah, era porreta, era bacana! As atividades eram música, teatro, cinema...
Mas cinema principalmente. De terça a domingo tinha cinema, todos os dias,
as nossas folgas eram segunda-feira. (...) O pessoal amava, rapaz! Todas as
sessões eram cheias, casa cheia. (...) Lotava, lotava! Isso aí [apontando na
direção do Cine-Teatro] era uma farra! Isso aí ficava cheio! Quando era dia
de sábado e domingo a comunidade vinha toda. E de outros lugares, Lobato,
Massaranduba...70
Se é verdade que a forma condiciona os usos dos espaços, é a sua gestão que determina se
esses usos poderão ou não ser subvertidos, transformados em outros de acordo com os
interesses e necessidades dos públicos. Assim, a apropriação efetiva de um edifício público
depende em boa medida da sua gestão. Nesse aspecto, o Cine-Teatro teve uma atuação um
tanto controversa.
69
Mestre Pedro Pé-de-Ferro, diretor da Associação de Capoeira Filhos do Sol Nascente, que desde 1991 ocupa
as ruínas do antigo Cine-Teatro Alagados. Entrevista cedida à autora em 08 de maio de 2009, no Cine-Teatro
Alagados.
70
Ronaldo Bonfim, funcionário da CONDER e morador do bairro, foi bilheteiro do Cine-Teatro Alagados.
Entrevista cedida à autora em 25 de abril de 2009, no Espaço Cultural Alagados.
88
Dois depoimentos de ex-participantes do grupo Explosão e Aventura sobre a participação do
grupo na inauguração do Cine-Teatro demonstram como a história hoje é contada de forma
diferente por cada testemunha. Segundo Jacira Costa, “no primeiro momento foi muita
felicidade, a gente viu nosso sonho realizado. Veio todo mundo. Nós fomos apresentados
como os responsáveis”.71 Já Isael Barros relata que “no dia da inauguração, nós, inclusive, em
protesto não entramos”.72
Em seu primeiro ano de funcionamento, 1982, o Cine-Teatro teve dois gestores diferentes,
que ficaram no cargo por um curto período. Já em abril de 1983, o ator Leonel Nunes foi
convidado pelo então presidente da HAMESA (a empresa havia mudado de nome e objetivos
em março do mesmo ano), Luiz Gonzaga, para trabalhar em Alagados, coordenando não
apenas aquele Cine-Teatro, mas também outros espaços que o Governo acabara de implantar
71
Jacira de Jesus Costa, membro do CAMA – Centro de Arte e Meio Ambiente e colaboradora da FUNCEB
lotada no Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 15 de maio de 2009, no Espaço Cultural
Alagados.
72
Isael Barros, educador e primeiro coordenador do Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 02
de setembro de 2008, na Associação dos Moradores do Conjunto Santa Luzia.
89
em alguns bairros populares de Salvador – a saber, Beiru, Sieiro, Liberdade e Plataforma73 – e
na cidade de Lauro de Freitas.
Para alguns grupos e artistas que não estiveram ligados ao movimento em prol da construção
de um espaço cultural em Alagados, a possibilidade de se apresentarem eventualmente
naquele palco atendia às suas necessidades, mas para os membros dos grupos Sapinho
Colorido e Explosão e Aventura, formados a partir do PRODASEC, a impossibilidade de
participação na gestão do espaço frustrava suas expectativas.
Antes de inaugurado o espaço, o Jornal Correio da Bahia, cujo conteúdo equivalia ao de uma
publicação oficial do Governo, pois o veículo é de propriedade da família do então
governador, afirmava qual seria o papel do Cine-Teatro: “Ele dará condições para que haja
um maior desenvolvimento cultural em Alagados, onde já funcionam alguns grupos de teatro
e de dança”.75
73
O próprio Leonel Nunes quando entrevistado não conseguiu se lembrar de todos os bairros contemplados com
esses espaços.
74
Leonel Nunes, ator e coordenador do Cine-Teatro Alagados entre 1983 e 1986. Entrevista cedida à autora por
e-mail, no dia 27 de abril de 2009.
75
Jornal Correio da Bahia, 15 de janeiro de 1982.
90
A intenção de abrir o espaço para os grupos locais era sempre reiterada no discurso oficial,
conforme outra matéria, publicada com dois meses de funcionamento do Cine-Teatro, que
apresentava o relatório do andamento das intervenções do Governo Estadual em Alagados:
“[o Cine-Teatro] dentro em breve não exibirá somente filmes: será também o palco para a
apresentação dos 32 grupos de teatro, de música e de dança que existem no bairro e que até
hoje ensaiam e se apresentam nas igrejas, escolas e ruas”.76
Após cinco meses de atividades no Cine-Teatro, uma nova matéria relatava o excelente
resultado de público obtido no período:
76
Jornal Correio da Bahia, 25 de março de 1982.
77
Jornal não identificado, sem data de publicação. Recorte encontrado nos arquivos do Espaço Cultural
Alagados. Na matéria há referência à data de sua publicação, cinco meses após a inauguração do Cine-Teatro
(provavelmente, no mês de junho).
78
Jornal não identificado, sem data de publicação. Mesma matéria citada anteriormente.
91
Durante dois anos, 1982 e 1983, o Cine-Teatro exibiu sessões diárias de cinema, além de
trazer para o bairro espetáculos destacados da cidade e de abrir espaço para a apresentação de
alguns grupos locais79. A programação era elaborada pela então AMESA, que contava com
uma pequena equipe responsável pela rede de espaços culturais. Além dos filmes referidos na
matéria citada acima, nas entrevistas foram frequentemente citados os filmes d‟Os Trapalhões
e também filmes da Xuxa, além dos títulos internacionais, de super-heróis, como Superman e
Conan. Jacira Costa, que integrou o grupo Explosão e Aventura, faz uma ressalva quanto à
críticas dos grupos locais às atividades do Cine-Teatro:
Mesmo a gente não tendo acesso, é bom dizer que as atividades culturais
eram quase diárias. E tinha público, era interessante. Eles traziam muita
coisa do circuito comercial, principalmente cinema. No final ficou mais
projeção de cinema. Isso agradava a população local. Nos dois anos que eles
ficaram, fizeram muitas coisas.80
Tinha uma relação [com Leonel e a AMESA], mas era complicada, (...) a
gente até tentou e eles também, só que não conseguiram, porque era acima
79
A matéria de jornal anteriormente citada relata que, ao menos até seu quinto mês de funcionamento, o Cine-
Teatro oferecia apenas sessões de cinema, no entanto, alguns dos entrevistados se referiram à realização de
shows e espetáculos de teatro, dança e capoeira no espaço.
80
Jacira de Jesus Costa, membro do CAMA – Centro de Arte e Meio Ambiente e colaboradora da FUNCEB
lotada no Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 15 de maio de 2009, no Espaço Cultural
Alagados.
92
deles, o poder era mais diretamente do Governo na época, o Governo na
época era de ACM. Não se tinha diálogo, era contra o diálogo. Então, Leonel
até tentava, mas a gente via que não dava pra ter diálogo, porque era um
diálogo fechado, de comando... (...) A gente podia discutir a programação.
Só a programação. Depois de discutida com a gente passava por outro
processo lá, que era “isso aqui não pode, isso aqui não pode” e quando via já
vinha de novo remontada.81
Para os grupos locais, formados a partir da experiência com o PRODASEC, o erro já havia
sido cometido desde o princípio da construção do espaço, quando se determinou que caberia à
HAMESA, além de construir, administrar o Cine-Teatro. O histórico elaborado por Wanderlei
Moreira (Metrô), que integrou o grupo Sapinho Colorido, revela esse posicionamento:
A partir de 1984, a HAMESA teve dificuldades em manter a programação, que deixou de ser
regular e acabou por ser suspensa. As obras da empresa em Alagados estavam sendo
concluídas e o escritório de campo também se esvaziava. A coordenação se retirou do espaço,
deixando apenas dois funcionários que abriam e fechavam o Cine-Teatro. Apenas três dos
funcionários lotados no espaço eram moradores do bairro: o bilheteiro Ronaldo, o servente
Francisco e o operador Eurico. A guarda do Cine-Teatro ficou a cargo dos dois primeiros,
que, diante da ausência do Estado e da população local, que nunca conseguiu se apropriar
daquele espaço, realizavam festas privadas, com finalidade comercial.
O Cine-Teatro só não tinha fechado porque nós ficamos um bom tempo com
ele. Eu fiquei com ele até 86. Eu tomava conta com outros colegas. A gente
usava o espaço pra final de semana fazer shows, fazer danceteria. Era isso
que a gente ganhava. Não perdemos o emprego, continuávamos recebendo,
porque a gente era funcionário da HAMESA (...). A gente vinha
eventualmente, não trabalhava. A gente ficou usando até 86. Usava como
morador, não como funcionário.82
81
Jamira Muniz, educadora, atual coordenadora do Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 11
de maio de 2009, na Escola Comunitária Luiza Mahin.
82
Ronaldo Bonfim, funcionário da CONDER e morador do bairro, foi bilheteiro do Cine-Teatro Alagados.
Entrevista cedida à autora em 25 de abril de 2009, no Espaço Cultural Alagados.
93
As festas, com som mecânico, aconteceram seguidamente nos finais de semana, quando os
funcionários tiravam as cadeiras do Cine-Teatro, transformando a sala de espetáculos em pista
de dança. Ao fim de cada festa, os funcionários repartiam a arrecadação.
Outro relato de uso privado – e ilegal – foi feito pelo Jornal Tribuna da Bahia, em matéria de
1987, sobre o estado de degradação do Cine-Teatro.
Depois que o Leonel saiu [em 1985] ficou esse vácuo. E a gente também não
entendeu na época essa saída dele. A gente começou a tentar negociar. Ele
até deu um incentivo à gente pra gente fazer um colegiado aqui, mas tudo o
que ele tentava, na verdade, era cortado. Ele era de diálogo, mas só que não
conseguia fazer esse diálogo, porque o que a gente propunha, cada proposta,
eles recusavam lá.84
83
Jornal Tribuna da Bahia, 28 de maio de 1987.
84
Jamira Muniz, na entrevista citada anteriormente.
85
Pelos depoimentos dos entrevistados, documentos disponíveis no Espaço Cultural Alagados e matérias em
jornais, não foi possível precisar a data da depredação. A maior probabilidade é que tenha ocorrido no segundo
semestre de 1987 ou nos primeiros meses de 1988.
94
moradores invadiu o Cine-Teatro e, numa ação que durou dois dias, retiraram todo o
mobiliário restante, louças sanitárias, equipamentos de palco e todo material que pudesse ser
aproveitado na construção dos barracos ou então vendido.
Em quase todas as entrevistas realizadas para esta pesquisa, era perguntado aos entrevistados
a que atribuem o fato de o Cine-Teatro ter sido depredado.
Essa devastação tão pontual e tão rápida, o Estado não conseguiu barrar.
Lembro como se fosse hoje: a gente parava as viaturas na rua pedindo
socorro para que alguém refreasse aquilo e os policiais diziam que não
podiam fazer nada. Foi uma ação extremamente rápida, de dois dias. E
quando o Estado resolve vir até a comunidade para colocar tapumes, para
trazer um vigilante, enfim, já era tarde, já não se tinha mais nada. E nós no
gabinete batendo “acorda, secretário”, “V’ambora, secretário”. Então a
omissão do Estado foi assim, de um absurdo incomparável.86
Porque fez uma coisa bonita, mas não foi adiante. Porque foi abandonado.
Quer dizer, o espaço tava perfeito e foi fechado.88
Foi a revolta da comunidade contra o Estado. (...) O pegar uma cadeira, uma
cadeira azul, é também uma forma de dizer “vocês não me deixaram sentar
nessas cadeiras lá, então eu vou sentar aqui, dentro da minha casa”.89
Um fato sobre a depredação, contado hoje como anedota, revela a fragilidade – ou mesmo
inexistência – dos laços entre os moradores de Alagados e o Cine-Teatro, um espaço que
havia sido intensamente freqüentado por eles: “Houve um período em que você entrava aí
[apontando a direção do Conjunto João Paulo II] e tinha nas portas aqueles conjuntos de
86
Isael Barros, educador e primeiro coordenador do Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 02
de setembro de 2008, na Associação dos Moradores do Conjunto Santa Luzia.
87
Leonel Nunes, ator e coordenador do Cine-Teatro Alagados entre 1983 e 1986. Entrevista cedida à autora por
e-mail, no dia 27 de abril de 2009.
88
Mestre Pedro Pé-de-Ferro, diretor da Associação de Capoeira Filhos do Sol Nascente, que desde 1991 ocupa
as ruínas do antigo Cine-Teatro Alagados. Entrevista cedida à autora em 08 de maio de 2009, no Cine-Teatro
Alagados.
89
Reinaldo Nunes, teatrólogo e ex-gerente dos espaços culturais da FUNCEB na capital, na década de 90.
Entrevista cedida à autora em 27 de abril de 2009, na residência do entrevistado, no bairro da Saúde.
95
cadeiras, uma presa na outra, que eram as cadeiras azuis do Cine-Teatro”.90 A impossibilidade
de apropriação daquele espaço, de estabelecimento de uma relação de identidade com as suas
atividades, tornou-o apenas um edifício, destituído de significados. Mesmo considerando o
perfil das ocupações que aconteceram neste período, quando os novos moradores já não
tinham necessariamente qualquer relação (de parentesco, amizade ou conhecimento prévio)
com moradores antigos e com o bairro, a mobilização popular para impedir a depredação foi
insignificante – porque reduzida a um pequeno grupo –, se imaginarmos a quantidade de
moradores que freqüentavam as sessões do Cine-Teatro (40 mil apenas nos primeiros 5
meses) e que poderiam ter em relação ao espaço um sentimento de pertencimento.
Diante dessa não apropriação do Cine-Teatro pelos seus antigos freqüentadores, do fato de os
novos moradores não terem qualquer relação anterior com aquele espaço e da necessidade
premente de construção das casas durante a ocupação, os ocupantes deram novo uso àquele
edifício, então visto como um amontoado de materiais construtivos.
90
Wanderlei Moreira, liderança do movimento cultural do bairro e coordenador do Espaço Cultural Alagados
entre 2007 e 2009. Entrevista cedida à autora em 03 de setembro de 2008, no Espaço Cultural Alagados.
96
Após a completa depredação do espaço, entre 1987 e 1988, com perda de todo o mobiliário,
equipamentos e mesmo dos acabamentos do edifício, a negociação que vinha se estabelecendo
entre o movimento de cultura organizado de Alagados e a recém criada Secretaria se daria em
um novo patamar: agora, seria necessária uma completa reforma e reequipamento para que o
Cine-Teatro fosse colocado à disposição dos grupos.
97
Figura 5 – Vista aérea do Fim de Linha do Uruguai
Na sala cedida, que havia sido um laboratório da escola Polivalente, criou-se o Espaço
Cultural Alagados (figura 5), que entrou em funcionamento em 18 de janeiro de 89, sob a
administração da Fundação Cultural do Estado, autarquia vinculada à Secretaria de Cultura. A
gestão do Espaço, no entanto, estava a cargo de um membro do grupo Explosão e Aventura,
um dos protagonistas da história das políticas culturais em Alagados, Isael Barros, que tinha
então pouco mais de 20 anos de idade.
Enquanto o Cine-Teatro Alagados tinha 577m2 de área construída, a única sala do Espaço
Cultural Alagados (figuras 6, 7 e 8) não passava dos 180m2. No entanto, como declara Sue
Ribeiro, “ali, naquele lugar pequeno, eles fizeram um movimento enorme”.91
91
Sue Ribeiro, teatróloga e professora de teatro em Alagados durante a década de 80, pela Fundação Cultural do
Estado da Bahia. Entrevista cedida à autora em 12 de maio de 2009, na Secretaria de Cultura Estadual.
98
Figura 6 – Atividade no Espaço
Cultural. Público acomodado
em arquibancadas de madeira e
no chão
Figura 8 – Dançarinas se
preparando para espetáculo. Os
panos de palco foram
confeccionados com o apoio do
Centro Técnico do Teatro
Castro Alves
99
4.2.1 Comissão Cultural de Alagados e Federação Baiana de Teatro Amador
A gestão partilhada entre Estado e movimento social se deu através da nomeação de Isael
Barros para o cargo de coordenador do Espaço Cultural, mas para que se estabelecesse a
relação entre o Espaço e o território popular de Alagados, outras duas organizações foram
fundamentais: a Comissão Cultural Alagados e a Federação Baiana de Teatro Amador, que,
mesmo com algumas oscilações, atuaram no Espaço durante toda essa gestão, entre 1989 e
2000.
Essa atuação política da Comissão foi fundamental, por exemplo, para a conservação do
projeto de recuperação do Cine-Teatro, que ao longo dos anos foi diversas vezes cogitado
para a implantação de escolas de ensino fundamental, escola de música, academia de boxe,
quartel militar, posto de saúde, e sede de alguns grupos culturais do bairro, como o
Bagunçaço e a Academia de Capoeira Filhos do Sol Nascente. A atuação da Comissão junto
ao Estado vem conseguindo impedir que seja autorizada e formalizada a cessão do Cine-
Teatro para um uso diferente daquele para que o movimento cultural o solicitou.
92
Wanderlei Moreira, liderança do movimento cultural do bairro e coordenador do Espaço Cultural Alagados
entre 2007 e 2009. Entrevista cedida à autora em 03 de setembro de 2008, no Espaço Cultural Alagados.
100
Entre 1989 e 2000, a gestão do Espaço Cultural contou com a participação do movimento
local, mantendo-se Isael Barros como coordenador durante todo o período, trabalhando ao
lado da Comissão Cultural.
(...) nós tínhamos eu como coordenador, mas não coordenava sozinho, tinha
uma Comissão Cultural que planejava e resolvia. E as pessoas que eram
empregadas no Espaço, mesmo pela Fundação, eram pessoas da
comunidade, era uma exigência nossa. Um pouco bairrista sim, mas
necessária.93
Em uma espécie de relatório interno, é revelado que, em 1990, dois anos após a abertura do
Espaço, a Comissão estava completamente desarticulada. Segundo o documento, “verificou-
se que o número excessivo de vinte e sete pessoas na coordenação era um entrave para reunir-
se e que a forma de trabalho e relação com o equipamento [cultural] era de subordinação”. A
queixa relatada se referia à prestação gratuita de serviços por membros do movimento local
para o bom funcionamento do Espaço, que ia “desde limpeza a datilografia”94, não onerando o
Estado, que deveria custear a manutenção dessas atividades.
No intuito de reorganizar a Comissão, foi eleita em 1991 a nova diretoria, que deveria ser
composta por no máximo 10 pessoas, representantes de segmentos diversos. A reformulação
da entidade propunha um alargamento do seu papel inicial, para que tivesse participação
direta não apenas no Espaço Cultural, mas em todas as atividades culturais detectadas no
bairro e adjacências. Outro papel, subjacente a todas as ações da Comissão, era a formação
política das lideranças locais.
Eu chegava ali, menino dos Alagados, saindo pela rua aqui, e eu achava
muito estranha essa disciplina [da Comissão Cultural de Alagados], e eu não
sabia também se isso era coisa de partido de esquerda, nem de direita, eu só
achava que eram pessoas experientes, que se comportavam de uma forma
diferente e eu só tava ali curioso, olhando aquilo e aprendendo.95
93
Isael Barros, educador e primeiro coordenador do Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 02
de setembro de 2008, na Associação dos Moradores do Conjunto Santa Luzia.
94
Relatório de atividades 1991. Acervo do Espaço Cultural Alagados.
95
Joselito Crispim, Arte-educador e diretor do Grupo Cultural Bagunçaço. Entrevista cedida à autora em 08 de
maio de 2009, na sede do Grupo Cultural Bagunçaço.
101
Contra a possibilidade de retrocesso por parte do Estado na relação de parceria que se
estabeleceu com o movimento local, a estratégia da Comissão era instituir uma organização
impecável, com reuniões semanais e assembléias mensais, abertas à população, elaboração de
relatórios mensais (ou, no máximo, trimestrais) para a FUNCEB, em que eram avaliadas todas
as atividades realizadas no período, as dificuldades encontradas, as facilidades proporcionadas
pelo contexto local e também colocadas as demandas para um melhor funcionamento nos
meses seguintes.
As ações a serem implementadas a cada ano e seus objetivos eram previstos nos Planos de
Trabalho, elaborados a cada ano. No período em que a Comissão estava esvaziada, os Planos
e relatórios eram elaborados pelo coordenador do Espaço, Isael Barros, e pela técnica da
FUNCEB, Fafá Sobrinho. No entanto, com a retomada da Comissão, todos os documentos
que referenciavam a gestão eram elaborados e assinados conjuntamente pela diretoria da
Comissão.
Esta forma de organização serviu também para que a própria Comissão fizesse uma avaliação
permanente da sua atuação e também da atuação da Fundação Cultural. Destacamos abaixo
trecho do relatório anual de 1991, em que a desarticulação entre as oficinas implementadas
pela FUNCEB é criticada pela Comissão.
Além de contribuir para a consecução dos seus objetivos, gerando registros de todas as ações
elaboradas e implementadas, a capacidade de organização da Comissão constituiu uma rica
documentação da memória do movimento cultural local, disponível hoje no Espaço Cultural
Alagados, ainda de forma improvisada.
96
Relatório de atividades 1991. Acervo do Espaço Cultural Alagados.
102
A gestão era feita abertamente, Isael prestava conta para a comunidade.
Prestar conta que eu digo, não é prestar conta financeira, todo mês tinha
assembléia, isso aqui ficava cheio, cem pessoas aqui na assembléia. Isso aqui
tinha vida, tinha atividade de manhã, de tarde e de noite, de tudo que era
jeito.97
97
Fátima Sobrinho (Fafá), em entrevista citada anteriormente.
98
Fátima Sobrinho (Fafá), em entrevista citada anteriormente.
99
Ofício de 23 de janeiro de 1995, enviado pelo Espaço Cultural ao DECAR. Acervo do Espaço Cultural
Alagados.
103
Conceição Nascimento (Lurdinha) e Maricelma Bonfim (Celma)100, coordenadoras da Escola
Comunitária Luiza Mahin, o Espaço Cultural foi fundamental para a consolidação de uma
militância mais plural no bairro, pois abrigava as reuniões dos moradores e das diferentes
associações para discussão das diversas pautas relacionadas à moradia e à melhoria das
condições de vida no bairro: ocupações, projetos de urbanização, segurança, transporte e
equipamentos públicos.
Uma carta enviada em 1996 ao então Governador Paulo Souto, demonstra o amplo leque de
temas que interessava à Comissão Cultural. Na carta, assinada pela coordenadora da
Comissão e pelo coordenador do Espaço Cultural, os moradores reivindicavam a solução das
principais “necessidades sócio-culturais da comunidade de Alagados”:
A FBTA, como entidade popular, tem seus altos e baixos, já tendo prestado
relevante contribuição à cultura baiana. Em 1977, quando começaram a
surgir em Salvador os grupos de criação coletiva, a entidade foi reforçada
por grupos dos bairros que tiveram, na época, uma ação fundamental em
suas comunidades, seja através das Feiras de Arte ou de montagens teatrais.
Até meados da década de 80 a entidade promoveu projetos de interesse do
movimento federativo, e conquistou espaços significativos, com os editais
específicos para o Teatro Amador na Fundação Cultural, no Teatro Castro
100
Lurdes da Conceição Nascimento e Maricelma Bonfim, coordenadoras da Escola Comunitária Luiza Mahin e
da Associação dos Moradores do Conjunto Santa Luzia. Entrevista cedida à autora em 29 de dezembro de 2009,
na Escola Comunitária Luiza Mahin.
101
Ofício de 9 de setembro de 1996, enviado pela Comissão Cultural ao Governador Paulo Souto.
104
Alves e na Sala do Coro/TCA e uma ativa participação no movimento
nacional.102
Apesar de ter sede oficial no Teatro Miguel Santana, no Pelourinho, a partir da conquista do
Espaço Cultural Alagados, a Federação passou a ter ali o principal ponto de convergência de
suas ações. O momento de maior convergência eram os FITABs – Festivais Independentes de
Teatro Amador da Bahia. Foram realizadas quatro edições do Festival no Espaço Cultural na
década de 90, trazendo grupos de diversos bairros da capital e também de cidades do interior.
A gente fez em 90, 92, 94 e 96 o evento [FITAB]. Era uma festa! Podia
chover... Sem brincadeira nenhuma: os espetáculos infantis a gente fazia de
manhã e às 5 horas da manha tinha gente aí na fila pra pegar os ingressos.
(...) Pra mim era fundamental ver como isso aqui [o Espaço Cultural] se
transformava durante os Festivais. Não tinha Federação, não tinha
equipamento do Estado, não tinha um grupo de teatro, tinha várias pessoas
trabalhando para acontecer uma coisa legal para todo mundo (..) A gente
conseguia colocar 300 pessoas aqui dentro. Era uma coisa incrível. Não sei
como se conseguia! Aí vinham grupos de toda a cidade, isso aqui virava uma
festa.103
Nos Festivais a gente não tinha mais onde colocar colchonete da APLB
[associação de professores] nas salas de aula [da Escola Polivalente] para
hospedar as pessoas. Hoje em dia isso não rola mais. Nem as pessoas vão
querer vir dos seus interiores para ficar numa sala de aula, em colchonete. E
depois, tem que pagar. Algumas coisas, que também eram costume,
acabaram.104
102
Projeto Técnico Operacional da FBTA, julho de 1993. Acervo do Espaço Cultural Alagados.
103
Fátima Sobrinho (Fafá), em entrevista citada anteriormente.
104
Fátima Sobrinho (Fafá), em entrevista citada anteriormente.
105
A Fundação estava realocando as pessoas, aí estavam na briga pra resolver
quem é que vinha para cá [para o Espaço Cultural Alagados]. Porque quem
fazia a gestão era uma pessoa da comunidade, precisava ter um técnico da
Fundação e ninguém queria vir. “Ah, aquele lugar perigoso!”. Eu lembro que
uma colega falou “Eu só vou se tiver insalubridade”. Aí me apresentei, eles
disseram “você quer ir para lá?”, eu disse “vou”, com uma cara de quem tava
fazendo aquele sacrifício. Aí liguei para os meninos “olha, eu vou trabalhar
aí!”. Aí pronto, eu fiquei e quando foi em 92 resolvi mudar para cá. Eu
coordenava o projeto Casa de Memória e na época ficou acordado que só
teria assento quem fosse morador do bairro, o que era uma coisa legítima.105
Segundo Tainã Andrade, militante do Movimento de Teatro de Rua, que ministrou diversas
oficinas no Espaço Cultural, o Espaço era o “QG” da Federação, que ali realizava oficinas,
congressos, mostras e festivais. Essa proximidade de artistas de vários bairros em relação a
Alagados reforçava o movimento local, inclusive politicamente.
Eu não cheguei literalmente a morar [em Alagados], ter uma casa de morar,
mas eu tinha a casa de Fafá como extensão. E foi lá nessa casa de Fafá, lá
junto a esse Espaço Cultural, onde me foi oferecida a oportunidade de ler
vários livros, onde me foram apresentados autores fundamentais pra essa
minha formação, a exemplo do Gramsci, dessa formação de educação como
arma de transformação, trabalhando muito com a metodologia de Boal [o
diretor teatral Augusto Boal], o Teatro do Oprimido.106
Pontuada a importância das duas instituições da sociedade civil que ancoravam a gestão
compartilhada do Espaço, Comissão Cultural de Alagados e Federação Baiana de Teatro
Amador, cabe lembrar que a sua atuação ao longo do período também teve oscilações.
Um relatório das atividades da Comissão de Alagados entre 1995 e 1997 destaca entre as
ações realizadas no período dois bingos, que tiveram o objetivo de arrecadar fundos em prol
do projeto Casa de Memória e apenas uma oficina (de teatro, para iniciantes). O longo período
a que se refere e o pequeno volume de informações prestadas neste documento já demonstram
a mudança no modo de operação da Comissão, que chegou a ter uma rotina de relatórios
mensais bastante detalhados. Dentre os “aspectos dificultadores” do trabalho o documento
105
Fátima Sobrinho (Fafá), assistente social e atriz, ex-diretora da Federação Baiana de Teatro Amador (84 a 86
e 94 a 96). Entrevista cedida à autora em setembro de 2008, no Espaço Cultural Alagados.
106
Tainã Andrade, teatróloga, militante do Movimento de Teatro de Rua e ex-professora de teatro em Alagados,
pela Federação Baiana de Teatro Amador. Entrevista cedida à autora em 14 de maio de 2009, no Largo Dois de
Julho.
106
cita “o afastamento de três membros da coordenação da Comissão Cultural; a falta de
experiência política e artística da maioria dos componentes da coordenação, a falta de
recursos financeiros; a falta de apoio e incentivo por uma grande parte dos grupos artísticos
filiados”.107
A presença dessas duas organizações e das lideranças que congregavam sustentou o projeto de
gestão compartilhada do Espaço Cultural de Alagados por 11 anos. Esta parceria entre o
Estado e o movimento social ultrapassou diferentes administrações do Governo Estadual, sob
o comando de partidos e grupos políticos divergentes. Dessa forma, a história do Espaço
Cultural Alagados não poderia estar isenta dos embates e negociações que são próprios da
construção de políticas públicas.
107
Relatório de Atividades Desenvolvidas pela Comissão Cultural de Alagados – Setembro de 1995 a 29 de
agosto de 1997. Acervo do Espaço Cultural Alagados.
108
Documento do acervo do Espaço Cultural Alagados.
107
Estado e território, através da participação das pessoas que vivem e significam o território
popular de Alagados.
Entre 1989 e 2000, período em que Isael Barros coordenou o Espaço Cultural, administrado
pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, o Governo Estadual passou por diferentes
gestões: Waldir Pires e Nilo Coelho (1987 a 1990), Antonio Carlos Magalhães (1991 a 1995),
Paulo Souto (1995 a 1998) e César Borges (1998 a 2002). Pela diretoria da Fundação também
passaram vários gestores: Florisvaldo Mattos (1987 a 1989), Ordep Serra (1989 a 1990),
Walfrido Moraes (1990 a 1991) e José Augusto Burity (1991 a 2002).
A gestão de Isael, portanto, permaneceu ao longo de nove anos (1991 a 2000) de governos de
direita, do PFL (Partido da Frente Liberal), liderado por Antonio Carlos Magalhães, tendo à
frente da FUNCEB José Augusto Burity.
O período final da gestão de Waldir Pires foi bastante conturbado, com a saída do governador
(em virtude da sua candidatura a vice-presidente) e sua substituição pelo vice Nilo Coelho. No
entanto, foi nessa gestão, como o apoio da Secretaria de Cultura (criada em 1987 e extinta
com o fim do governo) que o movimento cultural de Alagados conseguiu ocupar o Espaço
Cultural e dar início ao seu projeto de política de cultura. Ao cabo dos dois anos de governo
restantes, o modelo de gestão compartilhada do Espaço Cultural deveria estar suficientemente
consolidado, pois, com as eleições de 1990, a manutenção do projeto poderia enfrentar certa
resistência.
108
- Os resultados efetivos do trabalho realizado, demonstrados nos relatórios numéricos
compilados pela Fundação.
FONTE: Seleção de dados a partir de FONSECA, Valter dos Santos. Relatório de atividades desenvolvidas
durante o período 1991/1994. Salvador: FUNCEB, 1995 (não publicado).
O bom desempenho do Espaço Cultural Alagados também pode ser observado na comparação
com todos os demais espaços administrados pela FUNCEB no período, em que apenas o
Centro de Cultura de Juazeiro – espaço dotado de uma sala de espetáculos para mais de 300
pessoas, 3 salas para ensaios e anfiteatro na área externa – supera os resultados de Alagados:
109
Quadro 8 – Resultados de público / Espaços Culturais administrados pela FUNCEB
(1991 - 1994)
Espaços Público
Centro de Cultura de Juazeiro 131.713
Espaço Cultural Alagados (Salvador) 76.841
Centro de Cultura de Vitória da
57.693
Conquista
Centro de Cultura de Valença 47.835
Teatro do ICEIA (Salvador) * 38.784
Centro de Cultura de Feira de Santana 31.779
Centro de Cultura de Itabuna 28.513
Centro de Cultura de Alagoinhas 27.655
Centro de Cultura de Porto Seguro 20.514
Cine-Teatro Solar Boa Vista 19.836
Cine-Teatro Lauro de Freitas 9.849
Cine-Teatro Cajazeiras (Salvador)** 8.931
Teatro Miguel Santana (Salvador) 8.376
Total 508.319
O Espaço Cultural foi também o único espaço administrado pela Fundação que manteve
atividades em todos os meses dos 4 anos a que se refere esse relatório.
A linguagem a que se refere cada pedido de pauta realizado também foi computada e os
resultados demonstram a relevância do teatro dentre as atividades desenvolvidas.
110
Quadro 9 – Linguagem predominante nos eventos realizados no Espaço Cultural Alagados
(1991 - 1994)
Linguagem Pautas
Teatro 65
Educação 50
Cinema 48
Outros 35
Musica 30
Dança 21
Artes plásticas 10
Literatura 3
Religioso 0
Total 262
Mas, de modo geral, pudemos verificar que a programação era composta por eventos, como
temporadas e apresentações de espetáculos teatrais (inclusive de outras cidades, com o apoio
da FBTA) e de dança; shows musicais; encontros de capoeira; reuniões, como as da Comissão
Cultural, do GAPA – Grupo de Apoio e prevenção à AIDS e de diversas organizações locais;
projetos permanentes de maior duração, como o Cineclube Aventura e os projetos Quinta da
Arte (debates sobre arte) e Domingo da Música (shows no pátio externo do Espaço); eventos
de maior porte, reunindo diversos grupos e artistas, como o Festival de Teatro Amador da
Bahia (que teve 4 edições no Espaço) e a Feira de Arte Popular de Alagados (pelo menos 3
edições); ensaios regulares dos grupos de teatro, dança e capoeira; oficinas culturais
promovidas pela FUNCEB (dentro do projeto Viver com Arte, que atuou no Espaço de 1992 a
2006), Comissão Cultural, FBTA, grupos e artistas independentes, a exemplo das de iniciação
ao teatro, carpintaria do teatro (técnica), dança afro, dança moderna, contação de histórias e
teatro de bonecos; oficinas profissionalizantes promovidas pela Comissão Cultural, a exemplo
das de artesanato em couro e confecção de vassouras.
111
Além da continuidade do trabalho dos grupos Explosão e Aventura e Sapinho Colorido, o
Espaço Cultural possibilitou o surgimento de novos grupos, a exemplo dos teatrais
Salamandra, Mini-Arte, Palafitas, Nachon e Sede D‟arte.
Você pode acreditar, você pode acreditar! Porque aqui [no Cine-Teatro] não
tinha aquele tipo de incentivo como ele [Isael Barros] tinha não. Mas depois
que ele saiu mudou tudo, foi chegando gente diferente e mudou, porque o
pessoal da comunidade quer é liderança, é conhecimento, é mostrar o
trabalho. O pessoal quer ver cursos, quer ver apresentações, porque aqui no
bairro não tem nada. O que é dito aqui pelo pessoal é isso.109
Com a longa duração da gestão, a mudança dos objetivos e interesses pessoais das lideranças
que estiveram à frente da sua conquista – muitos deles, antigos membros dos grupos Sapinho
Colorido e Explosão e Aventura – era natural. Alguns dos entusiastas do projeto de gestão,
que no início deste processo eram adolescentes, acabaram se afastando, alguns temporária e
outros definitivamente, por força das necessidades da vida adulta.
As organizações que davam suporte às atividades também passaram por uma desmobilização
e, já na segunda metade da década de 90, o Espaço contava com uma freqüência de público
muito menor do que a observada nos primeiros anos de atividade, conforme o quadro abaixo:
109
Mestre Pedro Pé-de-Ferro, diretor da Associação de Capoeira Filhos do Sol Nascente, que desde 1991 ocupa
as ruínas do antigo Cine-Teatro Alagados. Entrevista cedida à autora em 08 de maio de 2009, no Cine-Teatro
Alagados.
112
Quadro 10 – Números de público do Espaço Cultural Alagados (1991 – 1998)
Ano Público
1991 20.280
1992 28.338
1993 14.540
1994 13.683
1995 n.d
1996 1.020
1997 3.830
1998 7.854
Total 89.545
Nesse período, a diminuição das atividades culturais deu lugar a um aumento considerável na
freqüência do uso do Espaço para a realização de festas privadas, registradas como
“confraternizações entre amigos”. A cessão dessas pautas era feita com o consentimento da
Fundação Cultural, uma vez que o processo normal de pedido e cessão de pauta era fielmente
cumprido: o solicitante enviava um ofício à coordenação do Espaço informando qual seria a
comemoração e a data solicitada, o coordenador preenchia um formulário de Pedido de Pauta,
opinando sobre o atendimento da solicitação e este documento era enviado à Fundação, junto
com o Termo de Responsabilidade sobre o uso do Espaço, que era então assinado pelo gerente
dos Espaços Culturais.
O registro dessas atividades nos livros de pauta do Espaço e também nos relatórios da
FUNCEB demonstra que eram feitas com a ciência da instituição, mas a cobrança por essas
não aparecia em nenhum dos registros. Entretanto, segundo Ruy Mendes, que atua como
técnico no Espaço Cultural desde 1996, era realizada a cobrança de uma taxa, que se convertia
na manutenção do Espaço.
Muitas vezes eu tive que ser insubordinado, tive que fazer à revelia pra dar
certo, fiz muitas rebeldias para que coisas dessem certo. Eu dizia “não, você
não vai estar lá no final de semana, quem vai estar sou eu...” e corria esse
risco muito conscientemente. Porque eu tinha o respaldo dessa Comissão
Cultural também, né? Então a gente tinha o respaldo da comunidade: “os
caras tão lá, não tão nem aí, vamos fazer sim”. E depois a gente mandava os
relatórios, que era outra briga, porque tinha feito sem eles saberem. Mas era
uma briga boa.111
Como a comunidade não tem área de lazer, não tem clube, não tem nada,
você tinha que também atender as demandas sociais (...). Imagine você, em
Alagados, a sociedade de exclusão vai entender que também se fazem quinze
anos nas comunidades periféricas e também as famílias querem festejar,
ainda querem festejar os batizados de seus filhos? Como essa sociedade de
exclusão não entende, esse espaço também servia para esse atendimento.
Então, às vezes, tinha uns 15 anos e as famílias não tinham condições de
botar em suas casas, então tinha aquele espaço onde as pessoas colocavam
mesas, tocavam valsas, então era muito legal, muito bom. Porque era um
espaço extremamente, eu diria, eclético na sua funcionalidade. (...) A gente
atendia, a gente fazia. Óbvio que não dava pra você fazer qualquer coisinha.
Por exemplo, nós tivemos um evento fantástico, um aniversário de 50 anos
de um casal aqui da comunidade. 50 anos de casados. Então isso mexeu com
o bairro, com a região aqui. Então porque não esse Espaço ser aberto
também?112
Nos primeiros anos de atividades do Espaço, entretanto, não havia sequer pautas disponíveis
para a realização de festas, já que os eventos abertos, de cunho cultural, ocupavam toda a
programação. A inexistência desses eventos, geradores de arrecadação para o Espaço,
110
Ruy Mendes, técnico do Espaço Cultural desde 1996. Entrevista cedida à autora no Espaço Cultural
Alagados, em 08 de maio de 2009.
111
Isael Barros, educador e primeiro coordenador do Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 02
de setembro de 2008, na Associação dos Moradores do Conjunto Santa Luzia.
112
Isael Barros, na entrevista citada anteriormente.
114
reforçava a necessidade de captação de recursos, o que era feito pela Comissão Cultural de
Alagados.
A gente teve uma discussão, de que achava que Isael poderia ceder o espaço
pra outra pessoa, mas a gente tinha a impressão de que ia ser natural, de que
iam [a FUNCEB] chamar a gente pra negociar, mas não chamaram a gente.
Já veio de lá. Quando a gente acordou, Seu Hélio já estava na porta. Então
agora não, a gente ficou de olho. Seu Hélio já estava com o nome de Metrô
[que assumiu a coordenação em 2007] e se Metrô sair já vai estar com outro
nome pra indicar. A gente já está se armando mesmo, pra não deixar vaga
nos espaços pra que o outro não justifique que veio porque não tinha
ninguém interessado.113
Reinaldo Nunes, que à época era Gerente dos Espaços Culturais da FUNCEB, relata a
intempestividade com que foi feita a mudança de gestão:
Segundo o então coordenador, sua substituição foi anunciada pela nova gerente dos Espaços
Culturais da Fundação, que o orientou a buscar sustentação para o seu pedido de permanência
através do apoio de políticos. Como o reforço político não foi suficiente, em um mês Isael foi
demitido: “Mas ela não demitiu a mim, a pessoa Isael, na realidade ela retirou uma
representação comunitária. (...) E aí coloca-se essa pessoa com o papel exatamente de
desconstruir todo o processo”115.
113
Jamira Muniz, educadora, atual coordenadora do Espaço Cultural Alagados. Entrevista cedida à autora em 11
demaio de 2009, na Escola Comunitária Luiza Mahin.
114
Reinaldo Nunes, teatrólogo e ex-gerente dos espaços culturais da FUNCEB na capital, na década de 90.
Entrevista cedida à autora em 27 de abril de 2009, na residência do entrevistado, no bairro da Saúde.
115
Isael Barros, na entrevista citada anteriormente.
115
O primeiro ato do novo gestor, Hélio Paulo, que não tinha nenhuma vivência anterior na área
cultural, foi pintar de branco as paredes internas do espaço, que formavam a caixa cênica onde
eram apresentados os espetáculos, por entender que as paredes pintadas de preto davam ao
Espaço um ar sombrio. Esse ato ilustra o total desconhecimento do gestor sobre o campo em
que veio a atuar, mas também o isolamento em que correu essa gestão, em relação ao
movimento cultural local. O próprio Hélio Paulo declara seu desconhecimento.
O que se viu daí em diante foi o fechamento parcial do Espaço e o acirramento dos embates
entre Estado e território.
Com o fechamento desse equipamento, que é uma salinha, que quem entra
não dá a mínima para ela, com o fechamento dela para a comunidade, o
poder do tráfico aumentou muito aqui nesse pedaço. Porque jamais esses
meninos, essas meninas, viriam aqui quebrar esse Espaço. Porque eles
tinham uma relação de pertencimento. Tanto que hoje querem assaltar a
gente aqui dentro, de revólver e tudo.117
Com a desmobilização do movimento cultural local, a gestão de Hélio Paulo durou sete anos,
tempo suficiente para que se desarticulasse todo o trabalho realizado durante o período de
gestão compartilhada.
Em 2007, com a eleição do governador Jaques Wagner, por uma coligação de esquerda, a
CAMMPI – Comissão de Articulação e Mobilização dos Moradores de Itapagipe,
encaminhou à Fundação Cultural o nome de Wanderlei Moreira (Metrô), que foi acatado.
Metrô, ex-integrante do grupo Sapinho Colorido, coordenou o Espaço entre 2007 e 2009, mas
como nem o movimento local nem o Estado tinham um projeto para o Espaço ou estavam
suficientemente mobilizados para construí-lo e implementá-lo, a gestão não conseguiu
grandes avanços. Em 2009, o movimento local e o próprio coordenador optaram por sua
116
Hélio Paulo, ex-coordenador do Espaço Cultural Alagados entre 2000 e 2007. Entrevista cedida à autora em
11 de maio de 2009, na residência do entrevistado, no bairro do Politeama.
117
Fátima Sobrinho (Fafá), assistente social e atriz, ex-diretora da Federação Baiana de Teatro Amador (84 a 86
e 94 a 96). Entrevista cedida à autora em setembro de 2008, no Espaço Cultural Alagados.
116
substituição. Um grupo de jovens moradores, reunidos na REPROTAI – Rede de
Protagonistas em Ação de Itapagipe (rede constituída a partir da CAMMPI, para tratar das
questões de juventude), indicou então para o cargo Jamira Muniz, ex-integrante do grupo
Explosão e Aventura, atual coordenadora do Espaço Cultural Alagados.
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS: CONQUISTAS, PERDAS, PERMANÊNCIAS, E PERSPECTIVAS
A conquista do Espaço Cultural Alagados, visto então como um espaço provisório, que
abrigaria as atividades culturais do bairro enquanto se realizava a recuperação do Cine-Teatro
que havia sido depredado, foi o marco de uma inversão fundamental para as políticas culturais
em Alagados. A trajetória do movimento cultural do bairro na relação com as políticas
culturais já tinha então dois momentos bem marcados: o PRODASEC, que atuou nas esferas
da produção cultural e do acesso aos bens culturais e o Cine-Teatro Alagados, limitado à
esfera do acesso, da fruição dos bens culturais.
Figura 9 – Esferas de atuação dos principais marcos das políticas culturais em Alagados
É importante frisar que o movimento cultural de Alagados, mesmo tendo se formado dentro
do regime militar, é devedor do contexto político de sua época, da pujança existente nas
décadas de 70 e 80 em todo o movimento social, que se fortaleceu nesse período de
redemocratização do país. O regime, que nessa conjuntura amainava seu caráter repressor,
por vezes abria brechas, das quais os movimentos tentavam se apropriar, como aconteceu no
caso do PRODASEC. Outras vezes, o mesmo regime mostrava seu caráter autoritário de
forma inconteste, como se deu na implantação e fechamento do Cine-Teatro Alagados, que
representou o boicote do Estado à atuação do movimento cultural local, que só conseguiu
realizar seu projeto de política cultural sete anos mais tarde, já dentro de uma nova conjuntura
política.
Adiada pelo Estado, a experiência de política pública que teve lugar no Espaço Cultural
Alagados só pôde se concretizar na virada para os anos 90, momento em que já estava em
ascensão o modelo político-econômico neoliberal, que foi determinante no arrefecimento dos
movimentos sociais fortalecidos nas décadas de 70 e 80.
118
O então governador eleito já havia sido nomeado anteriormente para o cargo de Prefeito, em 1967, e depois
indicado por colégio eleitoral por duas vezes para o Governado da Bahia, em 1971 e 1979.
119
A gestão compartilhada do Espaço durou onze anos (de 1989 a 2000), sendo nove dentro de
governos carlistas (a partir de 1991). No entanto, o arrefecimento do movimento que
sustentava essa possibilidade de compartilhamento do poder foi determinante para a abrupta
interrupção da gestão e para que não tenha sido encampada pelo movimento local uma ação
com força política suficiente para resistir a esse desmando.
A ausência do Estado nas políticas sociais e culturais, há que se destacar, deu lugar ao
surgimento de inúmeras ONGs com atuação nesses segmentos, inclusive nos bairros
populares. A filósofa Marilena Chauí destaca, no entanto, que, se por um lado as ONGs
incrementaram a atenção a grupos sociais pouco representados pelas antigas formas de
119
Tainã Andrade, teatróloga, militante do Movimento de Teatro de Rua e ex-professora de teatro em Alagados,
pela Federação Baiana de Teatro Amador. Entrevista cedida à autora em 14 de maio de 2009, no Largo Dois de
Julho.
120
organização civil (sindicatos e associações), como as crianças e adolescentes, por exemplo,
por outro lado, a substituição daquelas formas por esta nova tende a priorizar “as carências
sobre os direitos” (CHAUÍ, 2005, p.30).
Já as políticas culturais do Brasil, a partir da gestão de José Sarney (1985 a 1990), foram
reduzidas a um mecanismo de financiamento: as leis de incentivo à cultura. Esta redução,
condizente com o modelo neoliberal do Estado Mínimo, tem como fundamento o repasse de
responsabilidade sobre o financiamento à cultura do Governo para o Mercado. As leis de
incentivo pressupõem o investimento privado subsidiado pelo Estado (através da dispensa da
cobrança de parte dos impostos devidos), em produtos culturais que gerem retorno de imagem
para seus patrocinadores. Assim sendo, este mecanismo contempla uma gama restrita da
produção cultural, aquela que se enquadra nos interesses do marketing empresarial.
O desmantelamento das políticas culturais e sua redução às leis de incentivo, que se observou
no âmbito nacional durante toda a década de 1990, reduziram as possibilidades de
financiamento para as atividades sócio-culturais e ofuscou por muitos anos um debate mais
121
amplo e necessário no regime democrático sobre políticas culturais que dessem conta da
diversidade da produção e das necessidades culturais dos brasileiros.
Apesar das perdas acarretadas por essa nova configuração da sociedade, diante da ascensão do
modelo neoliberal – inclusive da cultura neoliberal, de valorização do indivíduo e de
competitividade – e da globalização, a existência de um movimento cultural pujante e a
experiência comunitária de conquista de um espaço de exercício de políticas públicas no
campo da cultura deixaram frutos, em Alagados, para além daquele momento.
A CAMMPI, entidade que abrange não apenas os Alagados, mas toda a Península da
Itapagipe (composta por cerca de 14 bairros), foi constituída em 1999 e reúne hoje
aproximadamente 50 organizações locais. Segundo depoimentos colhidos nesta pesquisa, a
Comissão Cultural de Alagados foi a semente da CAMMPI e acabou por se dissolver quando
da sua criação. No entanto, a cultura já não é nem o principal foco nem a principal ferramenta
das lutas dessa nova entidade, que se divide em sete subcomissões, dentre elas a Subcomissão
de Cultura. Tampouco a sua criação se deu através de uma reorganização espontânea do
movimento social. A entidade foi formada a partir da implantação, em 1997, do Programa de
Apoio ao Desenvolvimento Econômico Local de Itapagipe, promovido pelo PNUD –
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Banco do Nordeste e a Secretaria de
Trabalho e Ação Social – SETRAS, do Governo do Estado.
122
existência anterior de vários grupos, em especial os de teatro, cuja atuação mereceu destaque
nos anos 80 e 90.
Assim, nos parece que a transformação estimulada pelas práticas culturais, no caso de
Alagados, teve maior continuidade no movimento social subseqüente do que propriamente no
movimento cultural.
Com a criação do Espaço Cultural Alagados, o movimento cultural local pretendia ter um
abrigo provisório para a produção que acontecia no bairro na década de 80 e, nesse abrigo,
desenvolver um experimento de política cultural participativa, que seria colocado em prática
nas condições ideais com a recuperação do Cine-Teatro Alagados.
Como estratégia para garantir esse modelo de gestão, a partir da reforma do Cine-Teatro, em
2007 foi criada uma ONG, o Centro de Cultura de Alagados – CENCA, que terá um papel
semelhante ao que teve a Comissão Cultural de Alagados em relação ao Espaço Cultural,
representando a sociedade civil na parceria que se dará com o poder público estadual. No
entanto, os caminhos para a concretização deste projeto nos parecem ainda sombrios, já às
vésperas de uma nova eleição para o Governo do Estado da Bahia (no final de 2010).
Em relação à juventude atual, as perspectivas de militância são bastante distintas das que
marcaram a geração de lideranças que estiveram à frente do movimento ligado ao Espaço
Cultural Alagados. Quando questionados sobre as diferenças e semelhanças entre a sua
geração e a que esteve à frente do Espaço, as atuais lideranças jovens apontam para a
reconfiguração da noção de militância no contexto atual.
123
Hoje tá muito mais individualizado. Hoje eu acredito que a juventude como
um todo pensa na coletividade, mas desde quando tenha sua parte individual.
O que eu não condeno, mas eu acho que atrapalha muito o processo. Eu acho
que a gente tem que estar bem, lógico, tem que ter o nosso também, mas esse
individualismo não pode superar a luta pelo coletivo. Eu acho que isso vem
retardando um pouquinho o processo. Antes, a geração anterior, realmente
pensava no coletivo e tinha uma unidade. Hoje eu não vejo essa unidade na
relação entre a juventude nessa militância na comunidade.120
Eu acho que a gente tem uma coisa que facilita, que é que essa geração mais
velha já trilhou um caminho pra abrir muitos espaços. Hoje todo mundo sabe
o que é o movimento popular, o que é a cultura popular, o que são as escolas
comunitárias, que foi a luta dessa geração. Mas por outro lado, a nossa
geração precisa muito de se manter, de trabalhar, e pra estar no movimento
precisa de uma dedicação que eu acho que mesmo quem quer, quem tem
essa vontade, muitas vezes é arrastado pra um trabalho formal, pra trabalhar
num espaço em que não tem como fazer essa cultura e manter essa luta.121
A partir da análise aqui realizada, propomos com esta dissertação que haja uma maior
atenção por parte do Estado, na elaboração das políticas culturais, aos territórios em que atua.
Esse reconhecimento do território, no entanto, deve ter o cuidado de não buscar a mera
constatação de impressões preconcebidas ou o simples levantamento das práticas já
legitimadas, para que estas sejam reforçadas. Deve a elas aliar condições e possibilidades de
elaboração de políticas culturais que estimulem a reflexão sobre a cultura existente, bem
como a criação de novas práticas.
Por fim, afirmamos que a melhor maneira de se fazer políticas de cultura com essa
perspectiva é construí-las em diálogo permanente com as pessoas e organizações que vivem e
120
Cristiane Andrade, assistente social, freqüentadora do Espaço Cultural Alagados na década de 90, diretora da
Associação Duque Aiz. Entrevista cedida à autora em 11 de maio de 2009, na ABEAC – Associação Beneficente
de Educação Arte e Cidadania, no bairro da Ribeira.
121
Sônia Dias, pedagoga, professora da Escola Comunitária Luiza Mahin. Entrevista cedida à autora no dia 13 de
maio de 2009, na Associação de Moradores 28 de Agosto.
124
conhecem o território, inclusive porque, ao gestor público, seria impossível entender e lidar de
fato com a multiplicidade dos territórios onde o estado intervém.
A abertura de canais de participação pelo Estado, no entanto, não implica em uma automática
adesão da população e na sua mobilização em torno das políticas públicas. A própria idéia de
participar politicamente através dos canais em que esta participação é “permitida” traz o
paradoxo de uma participação limitada, que mantém a hierarquia entre Estado e território na
elaboração das políticas. Assim, permanece a questão sobre como é possível, na conjuntura
atual, que a população, além de se manifestar nos canais em que sua participação é
convocada, permitida e – em menor proporção – ouvida, extrapole esses canais, subvertendo a
proposta do Estado e apropriando-se da política cultural.
125
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2001.
FONTES DE PESQUISA
130
ANEXOS
I. Cronologia
OCUPAÇÃO,
PANORAMA POLÍTICO POLÍTICAS PARA A URBANIZAÇÃO E
PERÍODO
GERAL CULTURA POLÍTICAS CULTURAIS
EM ALAGADOS
Nomeação de Antonio Carlos
Magalhães ao Governo do
Estado (pelo colégio eleitoral)
1971
Nomeação de Clériston
Andrade à Prefeitura (pelo
Governador)
Instituição, pelo BNH, do
GEPAB - Grupo de Estudo para
1972 os Alagados da Bahia (para
formulação do Plano
Urbanístico de Alagados)
Início da Implantação do Plano
1973 Urbanístico de Alagados pelo
Governo Estadual (até 1984)
Ernesto Geisel assume a Criação da Fundação Cultural Criação da AMESA - Alagados
Presidência do Estado da Bahia – FUNCEB Melhoramentos S/A
e nomeação de Ramakrishna
1974 Bagavan e, em seguida, Luiz
DÉCADA DE 70
131
Histórico e Artístico Nacional -
IPHAN
Abertura partidária Nomeação de Geraldo
Machado como Diretor da
Reabertura da UNE
FUNCEB e implantação do
PRODASEC.
Nomeação de Antonio Carlos
Magalhães ao Governo do
Estado (pelo colégio eleitoral)
Nomeação de Mário Kertész à
Prefeitura (pelo Governador)
133
Reeleição de Fernando Criação da CAMMPI –
Henrique Cardoso à Comissão de Articulação e
Presidência (voto popular) Mobilização dos Moradores da
Península de Itapagipe
1999 Eleição de César Borges – PFL
ao Governo do Estado (voto
popular)
popular)
2003
Eleição de Paulo Souto – PFL
ao Governo do Estado (voto
popular)
Eleição de João Henrique Nomeação de Paulo Costa
Carneiro - PDT à Prefeitura Lima como presidente da
2005 (voto popular) Fundação Gregório de Matos –
FGM
Reeleição de Luis Inácio Lula Criação da Secretaria de Nomeação de Wanderlei
da Silva à Presidência (voto Cultura do Estado da Bahia – Moreira (Metrô) como
popular) SECULT. Nomeação do coordenador do Espaço
2007 secretário Márcio Meireles Cultural Alagados
Eleição de Jaques Wagner –
PT ao Governo do Estado (voto Nomeação de Gisele Criação da ONG CENCA –
popular) Nussbaumer como Diretora da Centro de Cultura de Alagados
FUNCEB
Reeleição de João Henrique
Carneiro – PDT à Prefeitura
2009 (voto popular)
134
II Relação de entrevistados
Ruy Mendes, técnico do Espaço Cultural desde 1996. 08 de maio de 2009, no Espaço
Cultural Alagados.
135
Sue Ribeiro, teatróloga e professora de teatro em Alagados durante a década de 80,
pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. 12 de maio de 2009, na Secretaria de
Cultura Estadual.
136
Raimundo, ex-integrante do CAMA – Centro de Arte e Meio Ambiente. Entrevista
cedida à autora em 12 de maio de 2009, na Escola Canto da Paz.
137