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Kafka e Meyrink:

o fantástico em transformação
K afka and Meyrink: the ever-changing fantastic
ever-changing

André Luiz Martins Lopez de Scoville

Resumo
Este ensaio pretende analisar o modo como o romance O castelo, de Franz Kafka, se relaciona com
temas recorrentes da literatura fantástica, pressupondo que esse gênero passou por transformações impor-
tantes desde o fim do século XIX e ao longo do século XX. Para abordar essas transformações, estabelece-
se uma análise comparativa com o romance O Golem, de Gustav Meyrink.
Palavras-chave: Literatura Fantástica, Kafka, Meyrink.

Abstract
This essay intends to analyze the way the novel The castle, written by Franz Kafka, is related with
recurrent themes of fantastic literature, believing that this genre has undergone important transformations
since the end of 19th century as well as along the 20th century. Focusing on these changes, a comparative
study is established with the novel The golem, written by Gustav Meyrink.
Key words: Fantastic Literature, Kafka, Meyrink.

1 INTRODUÇÃO: ria das vezes) por pessoas que nunca abriram


SER KAFKIANO, SER um livro de Kafka. A primeira impressão que se
FANTÁSTICO tem quando se pensa nesse fenômeno é que essa
expansão de uso seria de certo modo indiscri-
minada, configurando-se numa deturpação da
Kafkiano é um adjetivo usualmente em- obra de Kafka. É certo que isso ocorre na maio-
pregado quando nos deparamos com alguma ria das vezes; no entanto, o adjetivo kafkiano é
situação absurda. Esse termo vem se dissemi- freqüentemente aplicado a um tipo específico
nando há um bom tempo, de modo que, pode- de situação absurda, ou seja, quando o absurdo
se dizer, já se tornou de uso corrente1 , sendo é visto como parte integrante de um sistema,
utilizado até mesmo (provavelmente na maio-
quando, por exemplo, um indivíduo percebe
em determinado momento que tem de se sujei-
1
Não apenas no Brasil, conforme se evidencia, por exemplo, pela afirmação tar a uma norma que diz respeito à coletivida-
de Ítalo Calvino (1993, p. 11-12): “Lendo Kafka, não posso deixar de compro- de, emanada de uma estrutura ou organização
var ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano, que costumamos
ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro e fora de contexto.” com incontestáveis poderes regulamentadores,

André Luiz Martins Lopez de Scoville é Doutorando do Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná. (Orientador: Prof. Dr. Paulo
Astor Soethe). Mestre em Letras, Estudos Literários, pela Universidade Federal do Paraná. Publicações recentes: “A apreensão espacial, o fragmentário e o
jogo.” (Revista Letras – UFPR, n. 61, especial, 2003.); “O desejado e o rejeitado: o sebastianismo que Charles Expilly encontrou por aqui.” (Revista Letras – UFPR,
n. 68, 2006).
Endereço para correspondência: Rua Desembargador Aurélio Feijó, 296 – Bairro Boa Vista – Curitiba – Paraná – CEP 82.510-200. E-mail: almscov@yahoo.com.br

Canoas n. 13 jan./jun. 2006 p.33-40


legítimos ou não, norma essa que se lhe apre- Kafka que passou a ser entendida como parte
senta sem nenhuma fundamentação lógica. da literatura fantástica, mas que o próprio fan-
O emprego do adjetivo em situações des- tástico é que passou a ser kafkiano, seja consi-
sa natureza reflete (consciente ou inconscien- derando as transformações do gênero, seja quan-
temente) uma noção da obra de Kafka que não é to ao emprego do adjetivo diante de certo acon-
totalmente desprovida de coerência. Dela fa- tecimento. Harold Bloom (1995, p. 428) deixa
zem parte dois pares opositivos que subsidiam entrever essa perspectiva: “Sem dúvida, a ex-
uma possibilidade de leitura, a qual, ao mesmo pressão ´kafkiano` assumiu um sentido fantás-
tempo em que representa um certo senso co- tico para muitos de nós; talvez tenha se torna-
mum, aponta também para um caráter essenci- do um termo universal para o que Freud cha-
al presente nas obras de Kafka: as oposições entre mou de ´o fantástico`, uma coisa ao mesmo
interesses do indivíduo e da coletividade e en- tempo conhecida e também estranha para nós.”
tre lógica e absurdo. Agora, voltando a atenção para algumas
Enquanto o confronto entre interesses características dadas como essenciais da litera-
individuais e coletivos parece situar-se no cam- tura fantástica, ou seja, a irrupção do absurdo
po de uma discussão ética, o confronto entre no “mundo real” (de Caillois) e a ambigüidade
lógica e absurdo parece remeter, de modo mais entre a explicação lógica e o absurdo, que leva à
imediato, a algumas questões intrínsecas da hesitação do leitor (de Todorov), é fácil perce-
própria literatura (como conceitos de mimesis, ber uma possível relação com a obra de Kafka.
representação e verossimilhança, por exemplo).
Mais especificamente, essa oposição entre lógi-
ca e absurdo parece marcar um tipo de literatu-
ra (em conformidade com as definições que a 2 SENDO F ANTÁSTICO
FANTÁSTICO
cercam) que se convencionou denominar lite-
ratura fantástica.
Não existe consenso quanto à filiação de Tendo como ancestral mais direto o ro-
Kafka à literatura fantástica, no entanto, não são mance gótico (ou romance negro) do século
poucos que o fazem.2 Sendo criterioso, essa fili- XVIII, a literatura fantástica foi ganhando no-
ação somente pode ser entendida ao se tomar a vos contornos ao longo do século XIX. Nesse
literatura fantástica em seu conceito mais abran- período, ainda prevaleceram os temas tipica-
gente,3 sem restringi-la às obras escritas até o mente sobrenaturais, cujas abordagens varia-
final do século XIX e aceitando que o gênero vam desde a busca pelo efeito do terror trans-
passou por importantes transformações também mitido ao leitor (como objetivo principal da
ao longo do século XX. Essa premissa é o que narrativa, sempre vinculado a algum evento
sustenta o fato de Kafka aparecer vinculado ao extraordinário sem paralelo imediato com o
heterogêneo grupo de autores que se costuma mundo real; como nas histórias de fantasmas,
relacionar com o fantástico. monstros,... ou seja, na literatura de terror) até a
Por outro lado, tomando-se por base a li- inquietação provocada pela dúvida instaurada
teratura fantástica escrita pós-Kafka, muitas ve- quanto à possibilidade de se obter uma explica-
zes tem-se a impressão que não foi a obra de ção para determinado acontecimento narrado.
Quanto a esse último caso, ainda parece
2
Vale lembrar as diversas antologias de contos fantásticos que incluem al- predominar no fantástico do século XIX a tenta-
gum conto de Kafka, como por exemplo a seleção organizada por Ernesto tiva de se permitir ao leitor chegar a alguma con-
Sábato (1987), Viagens aos mundos imaginários, da qual fazem parte também
contos de Edgar Allan Poe, Alphonse Daudet, Anton Checov, entre outros clusão que encontrasse similaridade com uma
autores. lógica baseada em relações de causa e efeito. É o
3
O conceito de literatura fantástica (como quase todos os conceitos) é dado
a inúmeras controvérsias. Dois dos mais conhecidos posicionamentos te- que acontece, por exemplo, no conto “O homem
óricos a respeito são o de Roger Caillois (1966, p. 8-9), que entendia que “o
fantástico (...) manifesta um escândalo, uma ruptura, uma irrupção insólita
da areia”, de E. T. A. Hoffmann, publicado em
quase insuportável no mundo real” (tradução pessoal); e o de Tzvetan Todorov 1817. Nesse conto, está presente claramente o
(1992), para o qual, o fantástico é um gênero evanescente, que surge da
hesitação do leitor entre a explicação natural e a sobrenatural dos fatos nar- embate de concepções de mundo antagônicas.
rados na obra. Ao se optar por uma ou outra explicação, o fantástico deixa De um lado, tem-se o personagem Natanael, que
de existir e a obra passa a situar-se no gênero estranho (no caso da explicação
natural) ou no gênero maravilhoso (no caso do sobrenatural aceito). acredita presenciar/participar de eventos sobre-

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naturais, e do outro está Clara, que defende a vida) e inspirado na lenda do golem (com refe-
existência de uma explicação lógica ao analisar a rência mais direta à versão de Praga4 ), a qual se
subjetividade das interpretações que Natanael originou das interpretações da mística judaica
fornece aos acontecimentos. A princípio, o lei- a partir da passagem bíblica da criação do pri-
tor pode aderir a qualquer das concepções, no meiro homem.5
entanto, sua liberdade é relativizada à medida No entanto, Meyrink não reconta a lenda
que o narrador, como um mediador do debate, judaica. O romance não trata diretamente da
vai deixando cada vez mais evidente a inconfia- história do rabino e sua criação, mas dos modos
bilidade da visão mística de Natanael, ao descre- como a lenda persiste como parte integrante da
ver como a loucura o dominou e acarretou seu cultura judaica, aludindo à multiplicidade de
internamento em um hospício. explicações possíveis para o reaparecimento do
Nesse ponto, o sobrenatural já aparece fil- golem a cada 33 anos.
trado pelas interpretações psicológicas dos per- A história de O Golem está centrada no
sonagens, ou seja, pelo questionamento da “ve- ourives Athanasius Pernath, que, envolto em
racidade” do que é narrado, tendo em vista que incertezas sobre sua própria identidade, tenta
os eventos são intermediados por visões (leitu- reconstituir a parte de sua memória que teria
ras) subjetivas. Apesar disso, percebe-se que esse sido apagada como resultado de um tratamen-
sobrenatural permanece sendo o elemento te- to psiquiátrico. Nesse percurso, Pernath se vê
mático principal. envolvido na trama vingativa armada pelo es-
Em contraponto com esse tratamento (e tudante de medicina Charousek contra seu pai,
de modo mais perceptível a partir do final do o belchior judeu Wassertrum. O belchior – que
século XIX), alguns autores, sem abdicar dos ignora ser o pai do estudante – tivera um rela-
temas tradicionais, passaram a deslocá-los da cionamento com a mãe de Charousek e depois
posição uninuclear que ocupavam para a con- a vendera para um bordel.
dição de elemento disperso, dissimulado, mo- Charousek, movido pelo ódio ao pai, pro-
vediço e ambíguo que estrutura (ou desestrutu- voca o suicídio de um filho reconhecido de
ra) a lógica da narrativa. Wassertrum, Dr. Wassory (um oftalmologista
inescrupuloso que ganhou fama e fortuna rea-
lizando cirurgias desnecessárias em seus paci-
entes), quando este é denunciado publicamen-
3 KAFKA E MEYRINK: te pelo Dr. Savioli (utilizado por Charousek
APROXIMAÇÕES E TEMAS como instrumento de sua vingança). Wasser-
D A LITERA TURA F
LITERATURA ANTÁSTICA
FANTÁSTICA trum passa, então, a querer vingar-se do Dr. Sa-
violi. Por sua vez, Savioli tem um caso amoroso
com uma jovem chamada Angelina, pela qual
Pernath se sente atraído. Ao tentar proteger
3.1 Aproximações Angelina, Pernath acaba tornando-se também
alvo do ódio de Wassertrum.
Entre os autores que, até certo ponto, re- Ao mesmo tempo, Pernath está dividido
formulam a utilização de temas fantásticos em entre a atração física que sente por Angelina,
suas narrativas, merece atenção Gustav com quem acredita ter tido uma relação amoro-
Meyrink. Meyrink nasceu em Viena, em 1869,
residiu também em Hamburgo, Munique e Pra- 4
Segundo Matière (1998), existem duas versões populares para a lenda: a
ga, e morreu em 1932, na cidade da Starnberg, versão polonesa, em que o golem ganha vida ao ser escrita em sua fronte a
palavra hebraica “emeth” (verdade) e perde-a ao ser apagado o primeiro “e”,
Baviera, tendo sido, portanto, contemporâneo restando “meth” (está morto); e a versão de Praga, em que um pergaminho
de Kafka. Em 1915, foi publicada sua obra mais mágico colocado numa abertura atrás da cabeça (ou ainda entre os dentes
ou sob a testa) do Golem concede vida ao ser.
conhecida, O Golem, a qual obteve imediata- 5
Também segundo Matière (1998), a palavra golem, que aparece no Livro
mente boa repercussão na Alemanha. dos Salmos, Salmo 139, versículo 16, com seu significado original “embrião”
(a partir do hebraico) seria o ponto de partida das interpretações. Mais tarde,
O romance é ambientado em Praga (espe- a especulação cabalística da possibilidade de se criar vida partindo de uma
cificamente no bairro dos judeus e proximida- combinação adequada de letras, de onde emanaria o poder divino, passa a
dar fundamento à lenda, que, na seqüência, é vinculada às práticas de um
des – aliás, onde Kafka passou boa parte de sua rabino seguidor do hassidismo no século XIII.

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sa no passado, e o amor por Mirjam, que lhe 3.2 O visível/invisível
parece ser um amor “verdadeiro”, “espiritual”. e o tratamento das lendas
A relação entre os eventos narrados é qua-
se sempre dúbia, em virtude de a narração ser Nos textos de Kafka, como um elo dife-
feita pelo próprio Pernath (ou por seu alter ego, renciado (ou solto) na corrente de uma tradi-
alguém que estaria sonhando – ou vivendo? – a ção de literatura fantástica, pode-se perceber a
história de Pernath), refletindo o estado de con- reelaboração de certos temas, como a transfor-
fusão de sua identidade fragmentada e de uma mação de homem em animal (metamorfoses), o
atmosfera onírica que conforma a narrativa. duplo (desdobramento da personalidade), o
A lenda do golem aparece na narrativa visível e o invisível, a confusão entre realidade
em face da crença da população local de que o e imaginação/loucura/sonho, além da própria
ciclo de 33 anos estaria se completando. Diante ambientação da narrativa, como em O castelo,
disso, diversos eventos passam a ser vistos como que remete o leitor a espaços típicos da literatu-
relacionados ao retorno do golem. Na apresen- ra de terror.
tação desse fragmento do imaginário judaico, No entanto, esses temas, pela inserção do
as explicações fornecidas pelos personagens insólito na narrativa a que se prestam, apare-
oscilam entre a superstição e a lógica, sendo cem “sutilizados” por Kafka, ou ainda, “natura-
que Meyrink aponta para a possibilidade do lizados”, como se manifestam alguns estudio-
golem ser uma espécie de “duplo” de Pernath sos.7 O próprio castelo, do romance O castelo, é
ou, ainda, de ser a concretização do imaginário um elemento que está na fronteira do visível e
daquela comunidade. Abre-se, portanto, a pos- do invisível. Presente ao longo de todo o ro-
sibilidade de uma variedade de interpretações, mance, praticamente não adquire forma, confi-
característica do fantástico que, afinal, estaria gurando-se numa espécie de entidade superes-
presente também nas obras de Kafka. trutural, ideológica, que ordena (ou parece or-
Sabe-se que, ao longo de sua vida, Kafka denar) o modo de vida dos habitantes da al-
aproximou-se do judaísmo, tendo se interessa- deia. Ele é avistado por K. logo no início do
do, mais diretamente, pelo hassidismo.6 Segun- livro, mas ainda assim coberto por uma camada
do Scholem, citado por Balbuena (1994, p.118- de neve: “Agora se via lá em cima o castelo niti-
119), “deve-se ao hassidismo – corrente mística damente recortado no ar claro, mais nítido por
judaica do século XIII, dos seguidores de Iehu- causa da neve que, amoldando-se a todas as for-
dá, o Hassid – o desenvolvimento da lenda do mas, se estendia numa camada fina depositada
golem, ou homúnculo mágico”, o que nos per- por toda a parte” (KAFKA, 2000, p.17).
mite ver uma outra aproximação (ainda que tan- Em sua descrição mais precisa, o castelo,
gencial) entre Kafka e Meyrink. Deve ser men- aos poucos, é descaracterizado por K., ou seja,
cionado também que, conforme consta no pre- deixa de ser castelo:
fácio de O Golem, Kafka teria sido admirador de
Meyrink, e teria até mesmo, de acordo com Gon- Não era nem um burgo feudal nem uma residência
zález León (2005), se correspondido com o es- nova e suntuosa, mas uma extensa construção que
critor austríaco. Mas as possíveis aproximações consistia de poucos edifícios de dois andares e de
entre Kafka e Meyrink não se dão somente nos muitos outros mais baixos estreitamente unidos
âmbitos histórico e biográfico. A vinculação e o entre si; se não soubesse que era um castelo seria
tratamento que imprimem aos temas do fantás- possível considerá-lo uma cidadezinha. (KAFKA,
tico são aspectos que merecem atenção. 2000, p.17)

Após isso, ele retorna à sua condição de


invisibilidade, a partir da qual continuará in-
6
O movimento hassídico mais recente, denominado “novo hassidismo” ou
fluenciando o destino dos personagens.
“hassidismo beschtiano”, surgiu no séc. XVIII, fundado na Polônia pelo
Rabi Baal-Schem-Tov. Segundo Ettinger (1971, p.11): “Mesmo antes do séc.
XVIII, vários movimentos ou círculos eram chamados hassídicos. Os mais 7
Por exemplo, Merquior (1990, p.38): “No estilo maduro de Kafka não há
conhecidos eram os grupos de hassidim fiéis ao judaísmo nos dias da per- irrupção do sobrenatural. Este se naturaliza, tão freqüente, tão ubíquo se faz.
seguição por Antíoco Epifânio no séc. II a.C. e os hassidim aschkenazim dos Como nada é sólido, o sobrenatural, o fantástico, deixa de ser estranho e
séc. XII e XIII.” passa a ser lei.”

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Essa condição privilegiada de elemento as quais, apesar de variadas e muitas vezes di-
principal e ao mesmo tempo ausente da narra- vergentes, tornam-se “verdade” e não lenda.
tiva parece bastante simétrica à condição do Ao que parece, esse é um aspecto impor-
golem no romance de Meyrink. Tanto o castelo tante por estar na base de um dos conflitos que
quanto o golem são ao mesmo tempo centrais e provocam a tensão da narrativa: o confronto
dispersos nas narrativas. Centrais de modo tão entre o que é crendice e o que é fato. Esse con-
óbvio que são os títulos dos romances, e disper- fronto está presente, por exemplo, no diálogo
sos no sentido de que a eles são referenciados entre K. e a dona do albergue, em que discutem
todos os eventos e ações dos personagens. É no qual seria o sentimento de Klamm em relação a
castelo e no golem que o leitor procura uma Frieda, que supostamente o abandonara por K.
explicação, uma lógica para os acontecimentos Temos nesse diálogo (KAFKA, 2000, p.132) a in-
narrados. terpretação de K.: “Klamm esquece logo, disse a
Mas “procurar ” não significa “encon- senhora. Ora, isso me parece, em primeiro lugar,
trar ”, principalmente em se tratando de Kafka muito improvável, mas em segundo não pode
e de Meyrink, bem como do fantástico do sécu- ser provado; é claro que não passa de uma len-
lo XX em geral. O jogo estabelecido entre lógi- da, ...”; e em seguida, o ponto de vista da dona
ca e absurdo não encaminha (nem pode enca- do albergue: “Não é uma lenda – disse a dona
minhar) para uma resposta definitiva. A ambi- do albergue – Pelo contrário, é fruto da experi-
güidade é o que regula esse jogo. E a ambigüi- ência comum.” K. contesta: “Ou seja, pode ser
dade, especificamente em Kafka, não assume o refutada por uma nova experiência.” Mas, num
mero sentido de dúvida, em que se poderia he- paralelo com O Golem, pode-se chegar à conclu-
sitar entre uma interpretação e outra, mas de são que uma lenda também pode ser fruto da
convivência de opostos. Ali, uma coisa “é” e ao experiência comum, bastando para isso lembrar
mesmo tempo “não é”. Basta reparar na descri- que a experiência comum pode ser resultado de
ção do castelo. À afirmação categórica de que o leituras equivocadas de acontecimentos. Assim,
castelo “correspondia às expectativas de K.” a lenda não pode mais ser vista como o oposto
(KAFKA, 2000, p.18), segue-se (apenas algumas da consciência coletiva, mas como resultado da
linhas adiante) a declaração de que o castelo o diversidade de leituras de um dado objetivo que
tinha decepcionado. passa por um processo de subjetivação (ou in-
E o castelo desaparece, ou melhor, “trans- tersubjetivação) para, então, tornar-se novamen-
forma-se” em Klamm que, por sua vez, é tam- te uma “verdade aceita”.
bém quase invisível. Aparece então um possí- Essa transformação promovida coletiva-
vel jogo de duplos: Klamm-castelo e Pernath- mente de lenda a verdade remete a inúmeros
golem. A diferença, nesse ponto, é que a exis- outros romances anteriores aos de Kafka e de
tência de Klamm não é questionada (apesar de Meyrink. Não se pode deixar de pensar, por
quase não ser visto), enquanto a existência do exemplo, em Drácula, de Bram Stoker, e especi-
golem, sim (apesar de muitos o terem “visto”). almente na viagem de Jonathan Harker até o
Ou seja, o golem é assumidamente uma lenda castelo do Conde. Em sua passagem por uma
(pela existência não-comprovada que se baseia pequena aldeia, onde seria buscado por uma
nos relatos, pelas histórias que se criam e inter- carruagem que o levaria até o castelo, Jonathan
pretações derivadas), enquanto Klamm apare- Harker é insistentemente abordado pelos habi-
ce assim como uma lenda “coexistente” (uma tantes locais que tentam convencê-lo a não se-
existência comprovada, cuja essência inatingí- guir viagem e que, não obtendo resultado, pas-
vel, somente pode ser interpretada). Klamm exis- sam a municiá-lo com recomendações, rezas e
te “fisicamente” para os outros personagens, mas objetos para sua proteção. Existe uma consci-
também é uma criação destes na medida em que ência coletiva da qual o estrangeiro não parti-
é o resultado dos discursos a seu respeito. Esses cipa e que, portanto, ele é incapaz de compre-
discursos é que acabam por configurar essa len- ender, uma vez que não fez parte do processo
da “coexistente”. A personalidade de Klamm é de formação da “experiência comum”. Essa con-
formada e apreendida a partir das histórias e figuração acaba por se repetir também nas rela-
interpretações originárias das pessoas da aldeia, ções entre K. e os habitantes da aldeia.

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Ao se estabelecer uma ligação entre os três verifica-se a presença do tema do duplo. Esse
livros, temos: em Drácula, uma lenda que se tema, a respeito do qual já se falou, não parece
confirma; em O Golem, uma lenda de que se restrito à relação Klamm-castelo. De modo mais
duvida; e em O castelo, uma lenda que se con- evidente ele ressurge na representação dos aju-
firma e de que se duvida (e que se confirma e de dantes de K., os quais K. não é capaz de distin-
que se duvida...). E nesse aspecto, pode-se ver guir. Temos aí uma inversão do tema, ao invés
que Kafka introduz uma inconsistência de es- do “um” se reconhecer no “outro” (como com-
sência no fantástico; a ambigüidade em Kafka plemento ou como desdobramento da persona-
adquire um caráter de contradição interna dos lidade, por exemplo), o “um” e “outro” se fun-
discursos dos personagens, por meio dos quais dem, e viram “um só”, a ponto de K. decidir
uma interpretação conclusiva dos fatos narra- chamar ambos ajudantes pelo mesmo nome.
dos deixa de ser dúbia (ou isto ou aquilo) para Em Meyrink, o duplo também não ganha
ser impossível. uma forma explícita (como se vê, por exemplo,
Nas relações entre Kafka e Meyrink, pare- em O médico e o monstro, de Robert Louis Ste-
ce especialmente frutífero o desenvolvimento venson), no entanto, sua alusão é mais óbvia do
de uma análise que aborde o tratamento dado que em Kafka. Pernath encontra seu duplo no
por esses escritores a lendas. Um dos méritos de próprio golem, ou melhor, em suas metamorfo-
Meyrink é o modo como incorporou a lenda do ses, como, por exemplo, na marionete esculpi-
golem em seu livro sem fechá-la em seu aspecto da pelo amigo, em que se reconhece o rosto do
sobrenatural e permitindo que se extrapole a golem e o rosto de Pernath: “Assim mesmo,
leitura em diferentes direções, através das lei- como já tinha acontecido, o rosto me pareceu
turas psicológica, simbólica e até mesmo histó- familiar. Eu tinha me tornado ele, estava apoiado
rica e sociológica (ao se enfocar o contexto cul- no joelho de Vrieslander, e estava lançando
tural judaico, a questão do anti-semitismo, o olhares furtivos ao meu redor. [...] De repente
quadro político pré-primeira-guerra ou a recep- percebi a expressão assustada de Zwack e ouvi
ção favorável que a obra obteve na Alemanha suas palavras: Santo Deus, é o Golem!”
daquele período). (MEYRINK, 1973, p. 51) E ainda na carta de Ta-
Por sua vez, as lendas nas obras de Kafka rot – “o Louco”, encontrada por Pernath no
são incorporadas e submetidas ao insólito de “quarto do golem”: “O rosto daquele homem
sua ficção. Entre as narrativas de Kafka, o exem- parecia-se com o meu, ou pelo menos assim eu
plo mais interessante que trata desse aspecto, achei, de uma forma um pouco confusa. Aque-
fornecendo uma possível chave interpretativa, la barba – não era a barba do Louco...”
é “Prometeu” – incluída na antologia selecio- (MEYRINK, 1973, p. 91)
nada por Ernesto Sábato. Nessa narrativa, a par- Referindo-se a O Golem, Matière (1998, p.
tir do mito se criam as lendas: 419) fala de um “processo de individuação, de
uma transformação mental que, por meio da in-
Quatro lendas falam de Prometeu. [...] Segundo a tegração de imagens antitéticas, conduziria o
Quarta, cansaram-se dessa história insensata. Can- herói até o self reencontrado”, o que, por sua
saram-se os deuses, cansaram-se as águias e a ferida vez, parece também aplicável como possibilida-
fechou-se de cansaço. Sobrou o inexplicável penhas- de de interpretação para O castelo. Todavia, se
co. A lenda quer explicar o inexplicável. Assim, nas- no livro de Kafka, esse processo de individua-
cida de uma verdade, tem que voltar ao inexplicável. ção parece caminhar para o fracasso, no roman-
(KAFKA. “Prometeu”. In: Sábato, 1987, p. 105) ce de Meyrink existem sinais de que o sucesso é
(ou foi) possível. Num dos trechos finais do ro-
mance, é narrado o incêndio, cujo motivo não
foi explicitado, no prédio de Pernath, durante o
3.3 O duplo e o onírico qual se vislumbra o êxito alcançado:

O quarto estava repleto de fumaça. Como puxado


Não são poucos os temas fantásticos que por uma mão, virei-me de supetão. Minha imagem
aparecem retrabalhados por Kafka, entre eles, estava na soleira da porta. Meu “alter ego”. Estava

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coberto por uma capa branca e tinha uma coroa na entretanto, perder-se de vista algumas caracte-
cabeça. (MEYRINK, 1973, p. 225) rísticas essenciais.
Neste pequeno estudo, procurou-se des-
A partir daí, o romance de Meyrink cami- tacar as relações existentes entre Kafka e alguns
nha para um final clássico dentro da literatura temas tradicionais da literatura fantástica. Para
fantástica que é a confusão entre sonho e reali- isso, cotejou-se certos aspectos de O castelo com
dade, incorporando também um motivo que outros de O Golem, de Gustav Meyrink, que,
aparece reiteradamente no fantástico: o objeto apesar de algum tratamento diferenciado, pos-
mágico (no caso, o chapéu trocado com Perna- sui uma ligação mais direta com o fantástico do
th). Revela-se que o personagem que “sonha” século XIX.
(ou “vive”) a história não é Pernath, no entanto A ênfase dada a O castelo não significa
Pernath existe e é o dono do chapéu que fora necessariamente que esta seja a obra de Kafka
trocado com o “sonhador”. Persiste, portanto, a que melhor exprime sua relação com o fantásti-
dúvida instaurada pelo insólito da narrativa, co. Talvez seja mesmo o contrário. Nesse senti-
em que se flutua entre a explicação natural do, muitas novelas e contos de Kafka apresen-
(tudo foi um sonho) e a sobrenatural. tam uma relação mais clara o gênero, como, por
Em O castelo, o sonho se apresenta mais exemplo, “A metamorfose”. Já o insólito em O
como “sub estância” de uma atmosfera onírica castelo não se encontra explicitado em parte al-
da narrativa, como insinuação e alusão, princi- guma, no entanto, ele está em toda a parte, e
palmente nas descrições do espaço (visível e temas tradicionais (como o visível/invisível, o
invisível – por trás de neblina, neve, vapor e duplo, a atmosfera onírica...) já não estão em
fumaça, que se abrem para a visão de K. como primeiro plano.
no ingressar e no despertar de um sonho8 ) e A questão sobre a filiação de Kafka à lite-
nas relações ambíguas entre aparência e reali- ratura fantástica permanece em aberto, uma vez
dade de que dão conta os relatos nas diferentes que parece ser tão arbitrária (não totalmente, é
perspectivas dos personagens. claro; como se espera ter sido demonstrado)
quanto a própria definição do gênero, ou seja,
depende muito do interesse e do posicionamen-
to pessoal daquele que resolver se dedicar ao
4 CONCLUSÃO: assunto. A importância de serem apontados tra-
DIVERGÊNCIAS ços temáticos do fantástico na obra de Kafka
E CONVERGÊNCIAS reside, certamente, mais na contribuição que se
NO F ANTÁSTICO
FANTÁSTICO pode trazer para a compreensão do modo par-
ticular como o autor se relaciona com temas
desse gênero literário (e com a literatura, de
Na esteira dessa ambigüidade, verifica-se modo geral) do que para um exercício de cate-
como conclusão que essa relativa permanência gorização.
de temas fantásticos em Kafka e em Meyrink
aponta simultaneamente para convergências e
para divergências dentro da literatura fantásti-
ca, divergências estas que repercutiriam e se REFERÊNCIAS
multiplicariam ao longo do século XX, sem,

BALBUENA, M. Poe e Rosa à luz da cabala. Rio


de Janeiro: Imago, 1994.
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Como no lento e paulatino reconhecimento do ambiente que K. realiza em
várias passagens. Por exemplo: “Por fim, a fumaça se dissipou um pouco e K. BLOOM, H. O cânone ocidental. Os livros e a
pôde lentamente orientar-se. Parecia ser um dia de limpeza geral. Perto de escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva,
porta lavava-se roupa. A fumaça, porém vinha do canto esquerdo, onde,
numa tina de madeira [...] dois homens se banhavam na água que soltava 1995.
vapor. Mas mais surpreendente ainda, sem que soubesse exatamente no que CAILLOIS, R. De la féerie à la science-fiction.
consistia a surpresa, era o canto da direita. De uma grande fresta única na
parede dos fundos, chegava, provavelmente do pátio, uma pálida luz de neve In: Anthologie de la littérature fantastique,
[...].” (Kafka, 2000, p. 23, grifo meu) E por aí seguem descrições de detalhes
do ambiente sempre permeadas pelas incertezas de K.
Paris: Gallimard, 1966.

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CALVINO, I. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson MATIÈRE, C. Golem. In: BRUNEL, P. (Org.).
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